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Pires - Mercados Informais e Economia Popular. Possíveis Fronteiras Entre Moralidade e Legalidade
Pires - Mercados Informais e Economia Popular. Possíveis Fronteiras Entre Moralidade e Legalidade
Coordenadores:
Alexandre Werneck (UFRJ/IFCS)
Luís Roberto Cardoso de Oliveira (UnB/INCT-InEAC)
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Professor Adjunto do Departamento de Segurança Pública da Faculdade de Direito da Universidade
Federal Fluminense e Pesquisador Associado do Instituto de Estudos Comparados em Administração
Institucional de Conflitos (INCT-InEAC).
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Mercados Informais e Economia Popular: possíveis fronteiras entre
moralidades e legalidade nas relações da Sociedade e o Estado
Constato, porém, que um número significativo de estudos sobre conflitos no Brasil, para
buscar compreender os interstícios existentes “entre o legal e o ilegal” tendem, como
estratégia, a focalizar no Estado 2. Isto quer dizer que concebem neste universo distintos
2
Por exemplo, Gonçalves, 2000; Noronha, 2003 e Silva, 1993.
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objetos e problemáticas. Muitas são as abordagens que buscam contemplar as possíveis
maneiras como essa comunidade política se faz representar, em sua heterogeneidade de
atores e concepções normativas. Estas últimas incluem aspectos legais, códigos
corporativos, múltiplas perspectivas morais, entre outras variáveis que podem concorrer
para o exercício legítimo da violência consignada pela sociedade. Abordagens que
buscam, por um lado, interagir com a definição mais usual de Estado, particularmente
nestes contextos onde se podem visualizar mais nitidamente os organismos encarregados
pela repressão das práticas e comportamentos dos indivíduos. Por outro lado, tentam dar
conta de um fenômeno distinto daquele que pode ser observado nos países onde a
tradição democrática é mais antiga e duradoura.
É válido, não há dúvidas, pensar tais questões partindo das relações induzidas a partir do
Estado. No entanto, considero igualmente pertinente, e rentável, discorrer, problematizar
e analisar as possíveis fronteiras entre o legal e o ilegal desde um enfoque diferenciado.
Minhas etnografias, como também aquelas realizadas por alguns outros pesquisadores
que se ocupam dos mercados populares, onde a chamada informalidade é moeda
corrente, podem oferecer elementos para uma perspectiva distinta.
Uma referência importante neste sentido é o trabalho de Rabossi (op. cit), antropólogo
argentino que acompanhou os chamados mesiteros de Ciudad Del Leste em suas
estratégias de construir vidas possíveis na tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e
Paraguai. Ele nos sugere a compreensão de que o que se pode chamar de informalidade é
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resultado de tensões existentes entre formas diferentes de se pensar o formal, desde a
sociedade, combinando-se com múltiplas lógicas de se organizar o Estado.
Fundamentalmente, de se imaginar as relações possíveis deste com a sociedade civil.
Também me valho das reflexões de Hirata (2011), o qual demonstra, entre um de seus
trabalhos, como a emergência dos perueiros em São Paulo, em um primeiro momento,
responde a uma combinação de interesses para amenizar os efeitos da dramática leva de
demissões de trabalhadores da Companhia Municipal de Transportes Coletivos/SP e a
redução da oferta de transportes para o público em geral. Estes, entre muitos outros
trabalhos, chamam a atenção para como certos segmentos que compõem a sociedade, em
distintos contextos culturais, são protagonistas de conflitos em decorrência da afirmação
de suas existências.
Todas essas narrativas atestam uma atuação objetiva de segmentos da sociedade. Ora
contrapondo-se, ora negociando, outras vezes conformando-se aos limites propostos pelo
Estado, ou suas representações, muitas vezes encarnadas em agentes policiais, vigilantes
terceirizados ou qualquer outro que possa veicular o signo da repressão. Pode-se pensar,
então, que esta exerce significativa pressão para que se amplie o leque de oportunidades e
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de inclusão dos mais variados estratos que a compõe, ainda que na região adstrita a
marginalidade.
Considerando estes universos empíricos, e o que eles podem ter em comum, venho
pensando a sociedade nos termos propostos por Karl Polanyi (2002). Considero que é
possível, tanto quanto possível, extrair um bom rendimento reflexivo da concepção de
sociedade que está presente em suas reflexões.
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Essa perspectiva teórica pode ser uma chave a ser utilizada para uma compreensão
alternativa dos processos sociais investigados nos trabalhos sobre informalidade. Em
outras palavras, parte do que se produz na atividade de distribuição de mercadorias e
serviços, sem que tal atividade seja quantificada ou mesmo tributada pelo Estado, pode
ser interpretada como reação à exclusão de segmentos sociais inteiros da riqueza
socialmente produzida.
É dessa forma, portanto, que os mercados que se erigem nas ruas do Rio de Janeiro e de
Buenos Aires, locais onde desenvolvi e ainda realizo trabalho de campo, ou a partir das
barracas do camelódromo de Porto Alegre 3, são resultados de interações nas quais os
atores sociais com suas demandas, seus interesses, suas histórias de vida, suas técnicas e
estratégias, posicionam-se no mundo. Ora em diálogo com as normas prescritas por um
ideal estatal, resguardando-a em tótum ou em parte – e não raras vezes, por pouco tempo
-, ora rejeitando esse diálogo, em prol de assegurar suas formas de reprodução econômica
e política, numa perspectiva ampla.
3
Minuciosamente descritos por Machado (2005).
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etnografias. Igualmente não me parece que a sistematização que farei a seguir consiga
esgotar a existência dos elementos essenciais que põem em marcha os episódios relatados
e que, fundamentalmente, dão conta de uma ordem distinta daquela representada
enquanto um ideal normativo. O que sugiro é que há pelo menos quatro destas dimensões
que seriam resultantes e, ao mesmo tempo, mecanismos através dos quais se podem
pensar os processos de institucionalização das racionalidades político-econômicas em
jogo nos contextos analisados. Elementos ou noções que podem também ser pensados
como questões que nos ajudam a refletir o jogo de ação e reação entre sociedade e
Estado.
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Isso estava previsto no artigo 83 da lei 1472/2004. Nos primeiros dias de dezembro de 2011, porém, essa
noção foi retirada do Código de Convivência Urbana, que é a lei que regula o espaço público portenho.
Isso depois de uma forte pressão dos comerciantes estabelecidos formalmente, através da Câmara de
Comércio Argentino, entidade que representa parte deste segmento. Mais adiante traço considerações sobre
esse acontecimento.
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Principalmente, como referi, vigilantes terceirizados. Ver Pires, 2011.
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Consideração esta que, conforme já apontei em outros trabalhos meus, se constitui em objeto de troca em
contraposição ao “respeito” devido por parte de atores subalternizados em relação a sujeitos detentores de
algum exercício de controle e poder nas relações no espaço público fluminense. Consideração e respeito,
portanto, correspondem a objetos trocados de forma assimétrica, gerando contínua incomplementaridade
naquelas relações econômicas, de acordo com uma perspectiva maussiana.
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mencionados, se mesclavam e se alternavam, momento a momento, nas ênfases que
presidiam os processos de interação.
Em ambos os contextos etnográficos, como em outros por mim etnografados, para além
dos valores que os agentes estatais possam partilhar enquanto membros da sociedade,
existem percepções intrínsecas a esse público os quais contribuem para forjar interesses
pretensamente institucionais, sejam explícitos ou implícitos. Entre estes últimos se pode
aludir o interesse pela manutenção da ordem, em meio ao reconhecimento velado das
dificuldades do sistema de mercado prover o direito ao trabalho para todos. Também se
pode referir ao interesse da Polícia por estabelecer informantes em um ambiente que
pode ser também freqüentado por supostos marginais ou fugitivos da justiça, em favor
das investigações para prever ou solucionar crimes. Supostamente em prol da
manutenção da mesma ordem, agora por outros meios e atendendo a interesses nem
sempre explicitados. Ou, subsidiariamente, o interesse em reafirmar o poder de controle,
recorrendo a Foucault, desde o “infinitamente pequeno” (Foucault APUD Pita, 2003).
São muitos, enfim, os interesses que podem animar não só as possíveis relações entre as
agências e a sociedade, mas também as negociações inexoráveis entre as próprias
agências no exercício do controle sobre o público em geral.
Muitas vezes, porém, os atores em interação expressam seus interesses para além da mera
subsistência, por um lado, ou desconectados de interesses pretensamente públicos, por
outro. Há indivíduos que estão nas ruas ou nos camelódromos do Rio de Janeiro
revelando, por exemplo, uma paixão por acumular dinheiro. Segundo minhas pesquisas,
isso parece contrariar certas perspectivas morais que, uma vez hegemônicas, concebem o
espaço da rua como lugar para o exercício da venda ambulante enquanto atividade
precária, voltada para uma subsistência proba e ascética. Passível, portanto, da vigília
sistemática de segmentos que operam sob uma concepção que bem pode ser entendida
como anti-acumulação. Patrocinada, geralmente, por sujeitos sociais específicos e
detentores de poder econômico e, sobretudo, político.
Com sua mentalidade, agem como se existissem reservas de mercado para quem pode e
quem não pode acumular bens. Concepção esta que, diga-se de passagem, poderá ser um
dos disparadores da necessidade de que agentes públicos ofertem a tolerância para com o
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comerciante informal que visar obter maiores dividendos que a mera subsistência.
Entramos, assim, no terreno no qual se comercializam, como diria Misse, mercadorias
políticas7. E estas deverão ser tão mais caras quanto mais punível for - pelas autoridades
competentes - o desvio de não só permitir, como também compor com os interesses de
obtenção do lucro. Muitas vezes representados, bombasticamente, como interesses de
enriquecimento ilícito8, declinando da concessão voltada apenas para subsistir com o
exercício de uma atividade não legalizada como é, na maioria dos casos, a venda
ambulante.
A recepção de recursos por parte dos agentes estatais, no registro dessa atenta moral cada
vez mais dominante, não é mais percebido como os tolerados “cafezinho”, “agrado”,
“regalo”, entre outras designações, para se constituir em crime de corrupção.
Recentemente em Buenos Aires a possibilidade de exercício da venda ambulante para
subsistência foi mitigada, com a reformulação do mencionado código de convivência, a
lei que institui a autonomia de Buenos Aires. Uma reação contra comerciantes
ambulantes que, para além de subsistir, passaram mesmo a poder acumular, ameaçando
as taxas de lucratividade de determinados segmentos entre os chamados comerciantes
estabelecidos. Acumulação esta que propicia pagamentos mais vultosos pela tolerância
policial, para além dos valores que, numa conta velada mas nunca explicitada, poderia
complementar os soldos dos agentes públicos, particularmente policiais. Estes
reconhecidamente irrisórios frente ao risco e desgastes inerentes a tais atividades. Em
resumo, parece ter sido oficialmente suspensa a tolerância com aqueles que querem mais
do que apenas subsistir. Seja na sociedade, seja no âmbito da pretensa burocracia.
Ora, para além dos interesses materiais, estar nas ruas pode se traduzir também como
uma linha de fuga ou, se quisermos, estratégia de enfrentamento aos processos rotineiros
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Segundo o sociólogo brasileiro, são assim chamados determinados objetos de trocas que combinam
especificamente dimensões políticas e dimensões econômicas, de tal forma que um recurso ou custo
político seja metamorfoseado em valor de troca. O preço desses bens ou serviços são veiculados em um
mercado informal que, por definição, é avesso a regulamentação estatal ou pública. Assim, independe das
leis de mercado, estando vinculado a avaliações estratégicas de poder, de recurso potencial à violência e de
equilíbrio de forças, ou seja, a avaliações estritamente políticas . Ver Misse, 2004: 207.
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Exemplares são as decisões judiciais que, diante das demandas apresentadas por camelôs contra
autoridades públicas por abuso de poder, reclamando perdas materiais e morais, definem reparações
irrisórias sob o argumento que a instância judicial é reparadora da injúria moral sofrida pelo litigante, e não
instrumento para seu enriquecimento ilícito.
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de uma sociedade que dita limites claros a determinados segmentos sociais. Também
podem se referir a meios criativos para se buscar espaço de trabalho em um mercado
cada vez mais seletivo. Via de regra, porém, os múltiplos interesses presentes nos
espaços das ruas ou dos mercados informais dão conta de processos que são expressões
de negociações difíceis, repressão e acordos relativamente instáveis que constituem,
como também diria Pita (2003), “território sociais e morais de controle policial”.
Assim, ter uma identidade reconhecida, com base numa trajetória, é parte dos
mecanismos de crédito obtidos nestes inúmeros mercados, fazendo com que as
possibilidades de negócios se componham de diacríticos importantes para a conjunção
entre confiança e reputação. Esta última vai além dos atributos de honestidade, passando
fundamentalmente pela representação de “talento”, “sucesso”, entre outros atributos
específicos que constroem uma representação de trabalho que diverge daquela tutelada
pelo Estado, com base na formalização ou, como se diz no Brasil, de carteira assinada
(Santos, 1979)
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das múltiplas agências em seu interior, constituindo um cenário mais ou menos propício
para a observância de ilegalismos.
Eu prefiro pensar que, em função das suas atribuições a polícia lida com o inesperado, o
dinâmico. Uma atuação que, via de regra, na nossa tradição jurídico-política se faz sem
autonomia para definir o que se pode fazer, frente às dinâmicas do fluxo social. Ou seja,
não é lícito que estes possam realizar composições com os diversos pontos de vista em
conflito nos processos sociais, concorrendo para um ordenamento que seja reconhecido
pelos atores. Em lugar de confiar-lhes a responsabilidade para agir de acordo com os
contextos, são culpabilizados caso não cumpram a lei que focaliza tipificações e não se
interessa pelos processos constituídos pelos acontecimentos (Kant de Lima, 2005). A
mesma lei que, em seu computo geral, mostra-se defasada no provimento das condições
de bem estar e reprodução igualitária a todos os membros da sociedade.
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Para estabelecer esta distinção me amparo nas contribuição de Sofia Tiscornia, para quem muitos juristas
estabelecem as atividades de controle correspondentes às tarefas da Administração Pública - o chamado
poder de polícia - para ordenamento do espaço público e promoção do bem-estar em prol das garantias
individuais, coletivas e da cidadania (Tiscornia, 2004: 59). Segundo a antropóloga argentina, o poder da
polícia, parafraseando Foucault, se molda no uso de formas de castigos oriundos do direito penal – a
detenção, particularmente. Remontar-se-ia, segundo ela, enquanto uma impropriedade que permitiria à
Polícia - referenciada por normas com força de lei, editadas pelo chefe de Policia Federal na cidade
portenha, chamados edictos policiales, - definir e identificar as atitudes e comportamentos
“desordenadores” e atentatórios à “moralidade”. Enquanto vigiu, no século XX, a polícia podia prender
pessoas por beber nas ruas, por estar flanando – o que, dependendo do ator, poderia ser interpretado como
vadiagem – ou, simplesmente, por “atitude suspeita” .
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das já aludidas mercadorias políticas seja mais visível nela. Isso que não quer dizer que
seja exclusivamente dela.
A Polícia está na repressão, mas também participa, ora passiva, ora ativamente, no
arreglo portenho ou no arrego carioca. Modalidades diferentes de se negociar ou tornar
disponível a possibilidade de tolerância. Diferentes concepções de igualdade, em cada
uma das duas sociedades, modulam a maior ou menor incidência do uso da violência
física – e letal - nos processos negociais ou nas práticas de extorsão. As negociações são
formas menos traumáticas de se promover os intercâmbios de bens materiais e
simbólicos neste mercado em que se compram oportunidades e confianças. As extorsões,
como sugeriu Misse, está em um dos extremos em que se convalida as mercadorias
políticas, abrindo espaços para a criminalização e o confronto dentro do próprio Estado.
O que acaba por permitir matrizes discursivas que, reafirmando a lei, transformam na
espetacularização das punições exemplares uma forma estreita de se representar e fazer
justiça.
Como argumentei, muitas etnografias que focalizam o chamado mercado informal nos
mostram de que maneira a sociedade pode se organizar e, fazendo dialogar os mais
variados interesses, relacionar-se em maior ou menor intimidade com as normas legais e
com os agentes estatais. Seja acatando em parte as normas ou não, as práticas e
habilidades dos sujeitos, essenciais para o desenvolvimento dos processos econômicos,
fazem com que as normas sejam modificadas todo o tempo. E o crescimento desse
mercado diversificado, fazendo com que circulem, em todo o mundo, mercadorias e
sujeitos de diferentes origens, sugere que seja difícil captar tais processos.
É comum nas faculdades de direito o jargão no qual se veicula a idéia de que a sociedade
é muito mais dinâmica do que o Direito. Tão dinâmica que, quando um processo político
qualquer alcança a modificação de uma determinada norma, esta já vem ao mundo com
certa defasagem, considerando as exigências dos segmentos sociais em conflito. Pode
ser, assim, que a origem da norma, no fundo, esteja destinada muito mais a reafirmar os
interesses de controle e de poder de determinados grupos sobre o conjunto dos demais.
Estes, assim, passariam a ter novas referências normativas para impor um ordenamento
remasterizado, não refletindo, necessariamente, os interesses mais amplos da sociedade.
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Bibliografia
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Nova. Revista Electronica de Geografia y Ciencias Sociales Vol. VI, núm. 119 (31), 1 de
agosto de 2002.
TISCORNIA, Sofia (2004). Entre el honor y los parientes. Los edictos policiales y los
fallos de la Corte Suprema de Justicia. El caso de “lãs Damas de la calle Florida” (1948-
1957). In Tiscórnia, S. (org). Burocracias y Violencia: Estudios de antropologia jurídica.
– 1ª ed. – Buenos Aires: Antropofagia.
WEBER, Max. (1982). A “Objetividade” do Conhecimento nas Ciências Sociais. In
Weber. COHN, Gabriel (org). 2ª ed. São Paulo: Ed. Ática (Grandes Cientistas Sociais, nº
13).
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