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PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA E PSICONEUROIMUNOLOGIA 33

MANEJO DE VARIÁVEIS PSICOLÓGICAS NO TRATAMENTO


DO CÂNCER EM CRIANÇAS: ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA
PSICONEUROIMUNOLOGIA

PSYCHOLOGICAL VARIABLES MANAGEMENT ON


CHILDHOOD CANCER TREATMENT: SOME
PSYCHONEUROIMMUNOLOGY CONTRIBUTIONS

Sílvia Maria Gonçalves COUTINHO1


Hospitalde Apoio de Brasília
Áderson L. COSTA JUNIOR2
Universidadede Brasília
Suyane KANITZ3
Universidadede Brasília

RESUMO

Estudos em psico-oncologia pediátrica apontam a necessidade de


intervenções multiprofissionais sistemáticas que possam contribuir para
a minimização de efeitos adversosproduzidospor diferentes situações
do tratamentodo câncera que crianças e familiares são submetidos ou,
preparar o paciente para enfrentar contextos identificados como de
caráter estressante. O presente artigo apresenta os princípios básicos
da psiconeuroimunologia e discute a funcionalidade de algumas
contribuições desta área para o desenvolvimento de programas de
apoio psicológico à crianças com câncer, que permitam a construção
de um repertório comportamental e cognitivo apropriado ao
enfrentamento de situações aversivas durante o período de tratamento
da doença. Um exemplo de programa de apoio psicológico, desenvolvido
em uma unidade de saúde do Distrito Federal é descrito.
Palavras-chave: Psicologia da Saúde, psico-oncologia pediátrica,
estratégias de enfrentamento, psiconeuroimunologia.

(1)
Mestre em Psicologia. Funcionária da Fundação Hospitalar do Distrito Federal. Endereço: SaN 202 Bloco 'G' Apartamento
201. 70832-080. Brasília. DF.
(2)
Professor Assistente do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). Endereço: SaN 211 Bloco 'K'
Apartamento 604. 70863-110. Brasília. DF. E-mail: aderson@unb.br.
(3)
Estudante de graduação em Psicologia da Una. Bolsista do PIBIC - UnB/CNPq. Endereço: SHIN ai 2 Conjunto 13
Casa 02. 71510-130. Brasília. DF.

Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 17, n. 3, p. 33-42, setembro/dezembro 2000


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ABSTRACT

Pediatric psychoncology studies show lhe need for multiprofessional


and systematic interventiqns that may contribute to reduction of adverse
effects from different situations on cancer treatment that children and
their parents are submitied, to or prepare lhe patient to cape with stress ful
contexts. The aim of this paper is to present and dis'cuss lhe basic
psychoneuroimmunology principIes and lhe use of some contribuitions
to psychological support programs for children with cancer, allow lhe
acquisition of behavioral and cognitive repertorie suitable for coping
with aversive situations during lhe disease treatment período. An example
of psychological support program has been developed by a public
health unit at Distrito Federal, Brazil.
Key-words: Health Psychology, Pediatric Psychoncology, Coping Styles,
Ps ychone u roi mm u nology.
.

O CAMPO DE CONHECIMENTO DA dimentos médicos invasivos, terapêutica


PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA farmacológica agressiva e restrições
ambientais, o que torna o acompanhamento
O câncer deve ser tratado como um psicológico do paciente e de sua família, em
problema desaúde coletiva, sendo responsável todas as etapas da doença, um elemento
por mais de 20% das mortes registradas em indispensável da assistência prestada.
países em desenvolvimento. Informações atuais Definindo-se a oncologia como a área da
revelam que o percentual de morte entre medicina que estuda o câncer, a psico-onco-
crianças, por motivo de câncer, é inferior a logia pediátrica pode ser caracterizada como
0,9% do total de casos mundiais da doença, o campo da psicologia da saúde que estuda
incluindo adultos e crianças. Outro dado a influência de fatores psicológicos sobre a
mundial revela o aumento significativo da etiologia, o desenvolvimento e o tratamento de
incidência média da cura de Leucemia Linfóide câncer em crianças. Segundo Gimenes (1996),
Aguda (LLA), principal tipo de câncer incidente a psico-oncologia começou a surgir como
em crianças, que passou de 30% na década uma área sistematizada de conhecimento a
de 60, para mais de 70% na década de 90 partir do momento' em que a comunidade
(Anderson, 1998; Miller, Young & Novakovic, científica passou a reconhecer que o
1994). aparecimento e a remissão do câncer,
Com o desenvolvimento de novas poderiam estar intermediados por um conjunto
modalidades de tratamento, incluindo de fatores cuja natureza ultrapassava as
inovações farmacológicas e tecnologia de condições apenas de natureza biomédica.
informática, observa-se uma tendência ao Avanços mais significativos em psico-onco-
aumento do número de crianças sobreviventes logia foram observados a partir da década de
de câncer. Todavia, apesar de mais eficientes, 70, com estudos que investigavam a influência
os tratamentos atuais não são suficientemente de variáveis de caráter psicossocial e comporta-
eficazes para garantirem eliminação da doença mental relacionadas ao controle da dor em
em todos os casos, exigindo a exposição da situações de procedimentos médicos inva-
criança a uma programação detratamerito sivos, estratégias' de enfrentamento em
que' inclui eventos estressantes, tais como: diferentes circunstâncias de tratamento,
internações hospitalares periódicas, proce- medidas de qualidade de vida durante e após

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quimioterapia, eficiência de intervenções do paciente e estratégias de enfrentamento,


multidisciplinares e suporte social de pacientes até a especificação de ambientes hospitalares
(Costa Jr., 1999). que possam atuar como contingências
redutoras de comportamentos de estresse em
Apesar desses avanços, Costa Jr.
crianças submetidas compulsoriamente a
(1999a), observa que ainda não existe um
diversos esquemas de tratamento.
corpo de conhecimento sistematizado em
psico-oncologia e aponta a necessidade do Qualquer que seja a orientação teórica
cumprimento de algumas exigências para tal: do pesquisador, ressalta-se a necessidade de
1) ampliação do espectro de situações, em que as intervenções de caráter psicológico
oncologia, em que o psicólogo possa estar possam promover a minimização de efeitos
presente; 2) estreitamento da relação entre a adversos sobre o comportamento da criança,
produção de conhecimento na área (com rigor tais como: isolamento social, depressão, baixa
metodológico) e a prestação de serviços resistência à frustração e irritabilidade. No
especializados em psico-oncologia e; 3) contexto da psico-oncologia pediátrica, as
elevação do nível técnico em que se dá a intervenções devem ser orientadas ao
intervenção psicológica, exigindo-se desenvolvimento comportamental da criança,
adequação teórico-metodológica dos constituindo-se em ajuda adicional para o
profissionais ao novo contexto (científico e enfrentamento de experiências potencialmente
social) que se instala. geradoras de medo e dor, tais como a
submissão periódica a procedimentos médicos
invasivos.
A NOÇÃO DE ENFRENTAMENTO
O ambiente hospitalar deve ser
No contexto da oncologia, o termo estruturado de modo a oferecer oportunidades
enfrentamento foi utilizado, em meados da pontuais de desenvolvimento à criança, da
década de 40, para designar a diversidade de mesma forma que outros ambientes naturais
comportamentos que pacientes com câncer, de cuidados. Programas de acompanhamento
seus familiares e a equipe médica psicológico, em psico-oncologia pediátrica,
apresentavam em diferentes circunstâncias podem incluir atividades de estímulo à
da doença. socialização, aquisição de habilidades
Uma interessante definição de comportamentais, seguimento de limites,
enfrentamento foi apresentada por Monat & regras ejogos de desempenho de papéis, que
Lazarus (1985), na qual o enfrentamento era são experiências tradicionalmente encontradas
definido como o esforço de adaptação do em instituições que atendem à criança em
indivíduo à situações desconhecidas de risco, seu ambiente natural, tais como escolas e
ameaça ou desafio. Nesses casos, o indivíduo creches.
tenta lidar com condições ambientais adversas
desenvolvendo novos estilos de comportamento
A PSICONEUROIMUNOLOGIA
ou adaptando estilos antigos.
Uma breve revisão de paradigmas
Ao longo dos tempos, é possível observar
relacionados ao conceito de enfrentamento,
várias tentativas de compreensão do papel
no entanto, aponta a existência de múltiplas
desempenhado por variáveis intervenientes
orientações teórico-filosóficas, desde a busca
sobre o processo saúde - doença, incluin-
de correlações entre fatores de personalidade
do-se a consideração da influência de fatores

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psicológicos sobre o desenvolvimento e modelos biopsicossociais de atenção à saúde


tratamento de diferentes doenças. (Guimarães, 1988; Spink, 1992).
Pelletier (1997) observa que Hipócrates, Carvalho (1992), observa que apesar de
no século IV a.C., considerava a saúde como várias décadas de discussão sobre a
um estado de equilíbrio harmonioso entre efetividade de modelos biopsicossociais, as
mente, corpo e ambiente, sendo a doença, práticas de ensino na área de saúde ainda têm
uma resultante de desarmonia entre estes priorizado um modelo biomédico de
elementos. LeShan (1994), destaca que no atendimento; a conseqüência desta prática
Século IId.C., Galeno descrevia as mulheres, para a psicologia, é a perpetuação de modelos
que padeciam de melancolia, como possuido- psicoterápicos de atendimento clínico,
ras de maior predisposição a desenvolver enfatizando-se a prestação de serviços em
câncer de mama do que aquelas que consultórios particulares e o atendimento
apresentavam atitudes mais positiva diante da focalizado sobre o indivíduo e não sobre um
vida. Gimenes (1994), por sua vez, ressalta processo social desaúde e doença. Na mesma
que na Idade Média(Séc. XI), a Igreja pregava direção, Spink (1992) destaca que "mudanças
o entendimento da doença como uma recentes na forma de inserção de psicólogos
decorrência de punição divina ou como um na saúde e,a abertura de novos campos de
resultado de influências demoníacas que atuação vêm introduzindo transformações
atingiam, mais freqüentemente, pessoas qualitativas na prática que requerem, por sua
mentalmente enfermas ou espiritualmente vez, novas perspectivas teóricas" (p. 11).
vulneráveis. No século XIII d.C., relatos de São
Conforme aponta Goleman (1997), a
Tomás de Aquino também apontavam para a literatura faz referência a estudos que
aceitação da existência de relações funcionais investigam a hipótese da existência de uma
entre traços específicos de personalidade e a possível ligação fisiológica entre a mente e o
manifestação de doenças, tais como o câncer corpo, incluindo a observação de indivíduos
e outras doenças crônicas (LeShan, 1994). não humanos submetidos a condições
A evolução científica e tecnológica do ambientais aversivas e as evidências de que
final do Séc. XIX permitiu associar as os efeitos do estresse se manifestam sobre o
manifestações patológicas à presença de sistema imunológico, reduzindo seu grau de
microorganismos causadores, originando, eficiência geral.
então o modelo biomédico de saúde, o qual Preconizando a utilização de modelos
atribuía afenômenos de ordem orgânica(físicos biopsicossociais de atenção à saúde, a
e biológicos) a responsabilidade (ou a psiconeuroimunologia levanta a hipótese de
causalidade) pelas alterações de processos que situações ambientais caracterizadas por
fisiológicos e a conseqüente ocorrência de conteúdo psicológico adverso (tais como o
enfermidades (O'Leary, 1990). estresse) poderiam produzir alterações no
No Século XX, com os estudos pioneiros sistema imunológico e neural do indivíduo, de
de Freud sobre conversão histérica e forma a propiciar dois tipos básicos de reações:
psiconeuroses, percebeu-se as primeiras 1) imunodepressão - alteração em elementos
inadequações da hipótese de causalidade do sistema imunológico e/ou na reatividade
defendida pelo modelo biomédico. Iniciou-se, destes elementos, tornando o organismo mais
então, um movimento no sentido de reinte- suscetível a distúrbios fisiológicos e
gralizar fatores de natureza psicológica e social bioquímicos (Adler & Cohen, 1993; Bovbjerg,
à compreensão do processo saúde-doença, 1991; Cohen & Rabin, 1998; Kiecolt-Glaser &
dando origem às primeiras proposições de Glaser, 1995; 1997; Maier &Watkins, 1998) e;

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2) imunocompetência - alteração na quan- investigar a influência de fatores psicológicos


tidade ou reatividade de elementos do sistema sobre a etiologia de distúrbios neoplásicos.
imune, de forma a maximizar a ação de defesa Os autores avaliaram o sistema imunológico
e impedir distúrbios isiológicos e/ou melhorar de mulheres portadoras de câncer de mama,
a capacidade de combate do organismo contra submetidas a um contexto potencialmente
agressores (Andersen, Kiecolt-Glaser & gerador de estresse -tratamento cirúrgico - in-
Glaser, 1994; Cohen & Rabin, 1998). cluindo mastectomia total ou parcial. Utilizando
O experimento pioneiro, que buscava uma amostra de mulheres que haviam sofrido
relacionar a influência de fatores psicológicos cirurgia recentemente, avaliaram a ocorrência
sobre o sistema imunológico, foi realizado por de estresse e de pensamentos intrusivos (por
Ader em 1974 (apud Goleman, 1997). Os exemplo, "eutive sonhos sobre ser um paciente
dados obtidos com ratos apontavam indícios com câncer") ou permissivos (por exemplo,
de que o sistema imunológico daqueles animais "eu tento não pensar sobre isto") em períodos
havia aprendido uma reação condicionada. O específicos do tratamento. Efetuaram, ainda,
experimento consistia em um condicionamento testagem imunológica, procedendo-se à
clássico, em que os sujeitos eram treinados a análise bioquímica de células NK (natural
responder (em esquema aversivo) à água com killer) e linfócitos T. Os autores observaram
gosto de sacarina. A água misturada com que o estresse estava significativamente
sacarina era seguida por uma injeção de associado a uma redução nonúmero de células
ciclofosfamida, que produziria náuseas. Por NK e ao aumento de pensamentos intrusivos.
coincidência, os sujeitos começaram a adoecer Os níveis de estresse eram capazes de
e morrer. Observações minuciosas levaram o
predizer uma diminuição significativa na reação
autor a descobrir que a ciclofosfamida produzia,
das células NK à presença do interferongama
além das náuseas, o efeito de imunos-
(um dos mediadores da resposta imune),
supressão, caracterizada pela diminuição das
concluindo-se que a presença do estresse
células-T do sistema imunológico. Mais
poderia inibir respostas imunológicas
adiante, Ader percebeu que, após estabelecido
específicas que eram funcionalmente
o condicionamento respondente, a ingestão
da água com sacarina, dissociada da injeção relevantes para o prognóstico do câncer,
de ciclofosfamida, também produzia uma incluindo a reatividade das células NK e
imunos supressão. células T.
Spiegel, Bloom e Kraemer (1989) já
Segundo Bovbjerj (1991), estudos em
psiconeuroimunologia devem procurar haviam demonstrado que a hipnoterapia, como
descrever os efeitos de fatores psicológicos auxiliar ao tratamento de dor, poderia estar
sobre as atividades do sistema imunológico e, associada ao aumento de taxa de sobrevida
reciprocamente, os efeitos de variáveis de mulheres com câncer de mama. Uma
imunológicas sobre o Sistema Nervoso Central amostra de mulheres com câncer obteve
e, consequentemente, sobre o comportamento, sobrevida de umano e meio a mais, em média,
em uma tentativa de especificar mecanismos do que a taxa de sobrevida de pacientes do
biológicos que sustentem a hipótese de fatores grupo controle. Estudos prospectivos
psicológicos como condicionantes de uma mostraram que a divergência nos índices de
predisposição do organismo ao câncer. sobrevida tinha início, em média, 20 meses
Andersen, Farrar, Golden-Kreutz, depois da intervenção se encerrar, sugerindo
MacCallum, Cortney e Glaser (1998), por que o efeito da intervenção psicológica era
exemplo, realizaram estudo com objetivo de bem mais imediato do que se esperava.

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Em uma revisão bibliográfica sobre a de neoplasias geraram o desenvolvimento de


relação entre estresse e doenças infecciosas, programas de acompanhamento psicológico
Cohen e Williansom (1991) propõem três a pacientes com câncer e seus familiares.
modelos teóricos de como os estressores Simonton, Mathews-Simonton e Creighton
poderiam influenciar doenças físicas. O primeiro (1987), por exemplo, partindo da premissa de
modelo aponta para o papel do estresse na que todo indivíduo influencia ativamente a
predisposição da pessoa adquirir uma nova evolução de seu próprio estado de saúde ou de
infecção. O segundo modelo, aborda a doença, através de reações psíquicas, crenças
influência do estresse sobre a duração e a cognitivas e respostas comportamentais
gravidade de uma infecção já existente e o particulares, defendem que a percepção que o
terceiro, descreve como o estresse pode indivíduo elabora acerca de sua doença é
influenciar as sensações físicas e a percepção fundamental para a obtenção da sua
dos sintomas como doenças e a antecipação participação ativa e positiva durante o processo
da busca de serviços de saúde. Todos os de enfrentamento da doença e após encerrado
modelos enfatizam a influência do estresse este período. Estes autores propuseram um
como potencial gerador de doença física ou modelo em que o estresse atuaria como um
como elemento de oportunização para o co-fator no desenvolvimento do câncer. A
desenvolvimento de transtornos de caráter depressão condicionada por um fator
comportamental. ambiental, ou por um estado de estresse,
produziria alterações funcionais sobre o
CONTRIBUIÇÕES DA sistema límbico do paciente; este último
PSICONEUROIMUNOLOGIA PARA O exerceria sua função repressora sobre a
TRATAMENTO DO CÂNCER atividade hipotalâmica, suprimindo parte da
atividade imunológica do organismo, o que por
As evidências de que fatores psicológicos sua vez viria a favorecer o surgimento e o
poderiam influenciar o curso de doenças desenvolvimento de células neoplásicas.
crônicas, favoreceram a adoção de modalidades
A partir deste modelo, Simonton e
de intervenção psicológica para o
Cols. (1987) desenvolveram um programa de
enfrentamento de situações aversivas
intervenção psicológica que, visando a alteração
relacionadas ao tratamento do câncer. Carey da autopercepção do paciente, geraria um
e Burish (1988) apontaram algumas estratégias clima geral de esperança positiva no paciente;
utilizadas em situação de quimioterapia, para esta percepção seria registrada pelo sistema
minimizar o estresse condicionado aos límbico que atuaria no sentido de favorecer o
possíveis efeitos colaterais do tratamento. Os incremento da atividade imunológica e,
autores se referem ao estabelecimento de conseqüentemente, maximizar a resposta
relações entre a utilização de técnicas orgânica para o combate ao câncer. Este
específicas (tais como a hipnose, a programa é composto por um conjunto de
dessensibilização sistemática, o biofeedback atividades que incluem: relaxamento e
associado ao relaxamento muscular visualização, manejo de benefícios secundários
progressivo e as técnicas de distração cognitiva) da doença, estabelecimento de objetivos e
e a redução de náuseas, vômitos, percepção metas de vida, planejamento de atividades
de dor e elaboração de crenças negativas físicas e intervenção psicossocial junto à
associadas com a quimioterapia. família.
A correlação positiva entre fatores O primeiro passo do programa é a
adversos de natureza psicológica e a incidência identificação de fatores estressores que o

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paciente enfrenta (e que podem estar 1) saber respeitar o limite de cada indivíduo,
influenciando funcionalmente o processo uma vez que o estresse dos familiares é
saúde-doença). Os autores observam que não prejudicial ao paciente; 2) constituir um grupo
se deve gerar culpa no paciente, mas tentar familiar integrado, em que todos os membros
mobilizar uma mudança atitudinale liberar possam expressar afetividades e cognições;
energia para lutar simbolicamente contra a 3) não superproteger o doente, uma vez que
doença. Depois, é necessário que se mostre esta prática impede (ou pelo menos dificulta)
ao paciente que benefícios secundários, a mobilização de recursos do próprio paciente;
proporcionados pela situação de doença, 4) manter as atividades de vida diária o mais
podem ser obtidos. próximo do que era antes da doença, visto que
os familiares devem estar prontos a ajudar
O relaxamento e a visualização
quando for preciso e isto só é possível se eles
constituem o instrumental técnico do programa
não estiverem desgastados pelas mudanças
e têm por objetivo preparar o organismo para o
já ocorridas; 5) o paciente deve participar de
início do processo de reação ao câncer e
todas as decisões da equipe de saúde, que
aumentar a eficiência potencial do tratamento
devem ser integralmente respeitadas pelos
médico (em andamento). O paciente vai
membros familiares; 6) os familiares devem
aprender a elaborar imagens mentais do
realizar exercícios de visualização, sempre
medicamento destruindo as células
que possível, em conjunto com o paciente, o
cancerosas e de células brancas combatendo
que facilita a expressão de sentimentos
estas últimas, por exemplo. Estes
relacionados às experiências vivenciadas.
procedimentos proporcionam oportunidades
para que o paciente seja treinado em respostas Outro programa de apoio psicológico a
de autocontrole, que auxiliama liberação de pacientes com câncer, elaborado por LeShan
estresse e tensão, entendidos como fatores (1994), propõe o manejo de variáveis
facilitadores do desenvolvimento de câncer. relacionadas as estruturas de personalidade e
Um dos principais objetivos do programa ao repertório de comportamentos emocionais
é o estabelecimento de metas de vida em de indivíduos com câncer. O autor destaca
períodos específicos de tempo, após o início três aspectos fundamentais da personalidade
do tratamento da doença. O programa deve de pacientes com câncer: 1) presença de um
permitir que os pacientes possam se apegar a marcante auto-desprezo - indivíduos que não
elementos essenciais de suas próprias vidas, valorizam suas realizações, não gostam de si
reforçando suas expectativas de sucesso de mesmos e não acreditam no próprio sucesso;
tratamento a partirda reestruturação cognitiva 2) incapacidade de demonstrar repertório de
de conceitos como recaída e morte. Fazem hostilidade em auto-defesa, embora apresen-
parte do programa, também, um conjunto de tem respostas freqüentes de agressão em
exercícios físicos, para liberar a tensão e defesa dos direitos de outros; 3) sentimentos
ampliar o repertório de comportamentos dos de desespero que resultam dos dois primeiros
pacientes para enfrentarem situações de fatores, e que se tornam elementos básicos
dificuldades individuais, tais como lidar com de vida. Este desespero não decorre do
experiências de dor e expectativas de medo. desenvolvimento do câncer, mas é entendido
Por fim, o programa prevê uma atenção como um fator de constituição emocional.
especial às necessidades da família do Observa-se que o programa desenvolvido
paciente. Matthews-Simonton (1990) propõe por LeShan(1994) pretendedespertar recursos
um conjunto de estratégias específicas para (intrínsecos) da própria pessoa e liberar forças
lidar com paciente e com a família, incluindo: que possam fazer com que a pessoa conheça

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a si mesma. O programa é baseado no O MANEJO DE VARIÁVEIS


pressuposto de que é possível reagir a PSICOLÓGICAS DURANTE O
acontecimentos negativos de forma mais TRATAMENTO DO CÂNCER EM
positiva e inclui princípios de relaxamento e de CRIANÇAS: UM EXEMPLO
visualização.
Com crianças em tratamento de câncer,
No Brasil, Falcone (1995) propõe um um programa fundamentado nas orientações
programa de atendimento psicológico a teórico-filosóficas de Simonton e Cols. (1987)
pacientes com câncer que se fundamenta em e de LeShan (1994), além de princípios gerais
princípios filosóficos da terapia cognitivo-com- de psiconeuroimunologia e de psicologia
portamental (TCC). O programa inclui quatro cognitiva,vem obtendo resultados promissores
fases distintas: a primeira visa a avaliação de junto a uma unidade da rede de saúde do
dados físicos e emocionais do paciente, Distrito Federal.
incluindo a utilização de instrumentos
Tendo por objetivos gerais propiciar um
específicos para a demanda comportamental
atendimento personalizado, humano e de
de cada paciente, tais como: medidas de
qualidade às crianças com câncer e suas
depressão, estratégias de enfrentamento para
famílias, além de estimulá-Ios a desempenhar
avaliação de situações promotoras de estresse
um papel ativo no processo de tratamento,
e auto-registro de situações desagradáveis
bem como promover o auto-conhecimento das
vivenciadas pelo paciente.
necessidades psicossociais da criança, os
Na segunda fase, é proposta uma programa inclui sessões planejadas (com
abordagem psicossocial na qual se apresenta periodicidade semanal ou quinzenal) que
ao paciente os fundamentos da TCC, ressal- utilizam os recursos técnicos do relaxamento,
ta-se o papel ativo do paciente durante o da visualização ativa e do desempenho
processo detratamento e aponta-sea influência psicodramático de papéis. As manipulações
de seu estado psicológico sobre a evolução da ambientais programadas durante as sessões
doença. Na terceira fase, são introduzidas têm por objetivo permitir a aquisição e a
técnicas de reestruturação cognitiva, manutenção de comportamentos favoráveis
buscando-se a modificação de pensamentos ao sucesso do tratamento médico, demons-
automáticos que geram ansiedadee depressão, trando-se as relações funcionais que se
e o treinamento em solução de problemas, estabelecem entre a intervenção profissional
possibilitando o desenvolvimento de em grupo e os efeitos sobre o repertório de
estratégias de enfrentamento mais eficientes. comportamentos exibidos pela criança após
Na quarta fase propõe-se a avaliar os efeitos encerrado o programa.
do tratamento e utilizar os dados obtidos em
As atividades programadas pretendem
fases anteriores. Esta fase inclui, também,
fazer com que a criança construa e possa
uma entrevista final que busca identificar
dispor de um repertório de comportamentos
mudanças comportamentais e cognitivas
apropriados a enfrentar diversas situações de
percebidas pelo próprio paciente ao longo do
caráter aversivo durante o período de
programa.
tratamento da doença. Levanta-se a hipótese
Também no Brasil,o Programa Simonton, de que a manipulação de conteúdo cognitivo,
para adultos, foi introduzido em São Paulo e durante as sessões do programa, permitem
vem sendo aplicado, com adaptações, pelo que a criança possa reestruturar suas
CORA - Centro Oncológico de Recuperação e percepções acerca de diferentes elementos
Apoio - desde 1986, com resultados signi- relacionados à doença e ao tratamento,
ficativos. incluindo-se, por exemplo: 1) descoberta de

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benefícios secundários da doença; 2) of cancer stress and disease course.


estimulação da expressão de sentimentos American Psychologist, 49, 389-404.
negativos relacionados à doença; 3) redefinição ANDERSEN, B.L, FARRAR, W.B., GOLDEN-
dos conceitos de morte, dor, doença e auto- KREUTZ; KURT, LA., MACCALLUM, R.,
conceito. A reestruturação destas percepções CORTNEY, M.E. e GLASER, R. (1998).
passa a controlar o comportamento da criança Stress and immune responses after surgical
em diferentes situações relacionadas ao treatment for regional Breast Cancer.
tratamento da doença. Journal of lhe Nacional Cancer Institute,
Sugere-se que a participação no 90(1),30-36.
programa, incluindoas oportunidades à criança ANDERSON, B. (1998). Stress reduction:
para conhecer e manejar seus recursos Three trials test its impact on breast cancer
pessoais de enfrentamento à doença e para progression. Journal of The National Cancer
perceber, compreender e controlar sentimentos Institute, 90(1),12-14.
e emoções relacionados à doença, atue como
BOVBJERG,D.H.(1991)Psychoneuroimmunology:
situações estabelecedoras de ação prolongada,
Implications for Oncology? Cancer, 67(3),
úteis a diferentes situações de tratamento que
828-832.
ainda serão dispostas à criança no futuro.
CAREY, M.P. & BURISH, T.G. (1988). Etiology
As estratégias de intervenção propostas
and treatment of the psychological side
pelo programa visam a possibilidade de obter effects associated with cancer
maior controle funcional sobre as contingências chemotherapy: A critical review and
do ambiente, implicando a promoção do discussion. Psychological Bulletin, 104,
desenvolvimento de ambientes hospitalares 307-325.
planejados às necessidades cognitivas e
comportamentais de seus usuários, de modo CARVALHO, R.S. (1992). A formação em
a oferecer às crianças e adolescentes que psicologia para o trabalho na saúde pública.
passam pelo tratamento de câncer, Em: F.C.B. Campos (Org.). Psicologia e
oportunidades de participação em atividades Saúde: repensando práticas. (pp. 25-
orientadas à estimulação de habilidades 40). S. Paulo: Hucitec.
próprias a cada estágio do desenvolvimento, COHEN, S. & WILLlANSOM, G.M. (1991).
bem como, a canalização e mobilização de Stress and infectious disease in humans.
habilidades comportamentais de auto-ajuda Psychological Bulletin, 109, 5-24.
que favoreçam o processo de enfrentamento
da doença (em diferentes momentos do COHEN, S.& RABIN, B.S. (1998). Psychologic
tratamento) e atuem como terapia Stress, Immunity, and Cancer. Journal of
complementar ao tratamento médico. lhe National Cancer Institute, 90(1), 3-4.
COSTA JR., A.L (1999). Psico-oncologia e
manejo de procedimentos invasivos em
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