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UMA BIOGRAFIA AFRICANA

SWEET, James. Domingos Álvares: African Healing, and the Intellectual


History of the Atlantic World. Chapel Hill: The University of Carolina
Press, 2011. 300p.

M ais que uma moda, o gênero bio- go historiográfico – não simples cu-
gráfico tem se tornado uma verdadei- riosidades sobre o biografado.
ra febre entre os historiadores. Hoje Pertence a essa última categoria
em dia é fácil encontrar biografias de o recente livro de James Sweet, que
todo o tipo, oferecidas nos mais di- narra a história de Domingos Álva-
versos formatos: há livros e artigos res, nascido em Naogon, no interior
sobre personagens destacados ou (até da atual República do Benim, por
então) desconhecidos e textos com volta de 1710. Ali ele cresceu e se
discussões teóricas e metodológicas tornou um homem adulto, até ser es-
sobre as várias formas de praticar o cravizado entre 1728 e 1732. Leva-
gênero em abundância. Nas univer- do para Pernambuco a bordo de um
sidades e congressos são frequente- navio negreiro, trabalhou em enge-
mente ministrados cursos sobre o nhos próximos ao Recife e, depois de
tema e uma parte grande dos proje- alguns anos, foi vendido para o Rio
tos de pesquisa nos programas de pós- de Janeiro, onde viveu até ser denun-
graduação recorre à reconstrução de ciado à Inquisição. Preso e remetido
trajetórias de vida como recurso ana- a Lisboa, acabou condenado a degre-
lítico. Desde os anos 1960, pelo me- do em Castro Marim, na fronteira da
nos, essa forma de contar história tem Espanha, em 1744. Nos registros
atraído os historiadores, por diversos inquisitoriais, Domingos foi identifi-
motivos e com sentidos diferentes. A cado como escravo e feiticeiro afa-
qualidade é variada, mas algumas das mado – e foi assim que apareceu em
obras biográficas produzidas nos úl- listas de condenados pela Inquisição
timas décadas são, sem dúvida, ex- e em alguns livros que discutem a
cepcionais, fruto de trabalhos de pes- religiosidade popular no Brasil e em
quisa e reflexão rigorosos, e trazem Portugal. Não é desse modo, entre-
novidades importantes para o diálo- tanto, que ele é tratado no livro de

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Sweet. Aqui, mais que um caso entre um extenso processo inquisitorial, que
outros, ele está no centro da análise. é analisado em minúcias para colher
Mas essa não é a única diferença. dados e pistas que, depois, orientam a
Começo por questões de método procura de outras informações em uma
e recorro a uma das mais conhecidas variadíssima gama de fontes que, além
biografias que lidam com perseguidos do material textual mais comum (como
pela Inquisição para melhor me expli- registros eclesiásticos, documentos
car. Sweet já havia escrito um livro legais, censos, diários e relatos de vi-
sobre a importância da presença da ajantes), inclui tradições orais, etno-
religiosidade africana no mundo co- grafia, genealogia e mapas. Quando os
lonial português (Recreating Africa, documentos tornam-se silenciosos so-
2003; trad. port. Recriar África, 2007), bre o indivíduo em pauta, buscam gen-
utilizando grande número de proces- te parecida, que viveu no mesmo lu-
sos inquisitoriais. Agora, um dos ca- gar e na mesma época. Mantêm o olhar
sos ali mencionados ganhou destaque no personagem escolhido, mas tam-
e tornou-se o fio condutor da narrati- bém prestam atenção ao ambiente e
va. De certo modo, seu percurso é se- contextos em que viveram, e colhem
melhante ao de Carlo Ginzburg, que muitas informações sobre as pessoas,
também escreveu um primeiro livro instituições e estruturas sociais com as
analisando os embates entre a Inquisi- quais se relacionaram. Assim, solida-
ção e a feitiçaria no Friuli italiano dos mente ancorados nas fontes, ambos
séculos XVI e XVII (I benandanti, conseguem reconstruir detalhes da ex-
1966; trad. bras. Os andarilhos do periência individual de gente que cos-
bem, 1988) e, dez anos depois, pu- tuma aparecer nos livros de história
blicou outro livro (Il formaggio e i sob a forma anônima dos agrupamen-
vermi, 1976; trad. bras. O queijo e os tos coletivos.
vermes, 1987), inteiramente dedica- Nos dois livros, a narrativa é mui-
do a analisar um dos acusados encon- to bem cuidada. Nela, o embate entre
trados na pesquisa anterior. Na pri- o inquisidor e o prisioneiro acusado
meira abordagem, ambos abarcaram de feitiçaria, registrado em detalhes no
um grande arco temporal, para depois processo, ocupa um papel importan-
reduzir a escala e fixar-se na duração te, de modo a revelar a astúcia do in-
de uma vida individual. terrogado e sua estratégia para esca-
O procedimento adotado pelos par da morte num Auto de Fé. A prin-
dois pesquisadores para o foco mais cipal fonte é ao mesmo tempo o ponto
concentrado é semelhante. Tanto em de partida, o objeto da análise e um
O queijo e os vermes quanto em Do- dos fios condutores do texto (ou de
mingos Álvares, o ponto de partida é parte dele). Nos dois casos, é a capa-

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cidade intelectual do interrogado que Ginzburg interessou-se mais pelo
se quer colocar em relevo: suas ideias, problema da “circulação cultural” e
seu modo de ver o mundo, os valores pela convergência de ideias entre
que orientaram sua vida. Ambos pos- Menocchio e os intelectuais humanis-
suem uma profunda simpatia e respei- tas da segunda metade do século XVI,
to pelo homem que biografaram. do que pelo substrato profundo de
No caso de Sweet, o resultado é crenças populares que orientava as
que a vida de Domingos Álvares ga- leituras do moleiro friulano. Sweet,
nha contornos não imediatamente ao contrário, herdeiro da melhor tra-
perceptíveis. Um deles, por exemplo, dição norte-americana de estudos
é muito significativo. Ao depor dian- africanistas, iniciada nos anos 1960
te do inquisidor, ele já não mais era por Jan Vansina e Philipe Curtin na
escravo. Sua experiência nas artes de Universidade de Wisconsin, oferece
curar fora logo reconhecida, utiliza- uma descrição extraordinariamente
da e explorada por seus senhores per- detalhada da formação política e re-
nambucanos, especialmente no Reci- ligiosa do africano mahi que foi bati-
fe. Mas ela também havia causado zado Domingos Álvares. Nascido na
tensões, que motivaram sua venda terra dos voduns durante o período
para o Rio de Janeiro. Ali, num am- da violenta expansão militar do
biente mais cosmopolita, e com licen- Daomé, ele havia se tornado um res-
ça do novo senhor, Domingos esta- peitado líder religioso em meio a um
beleceu-se em uma casa que passou contexto de guerras e convulsões.
a servir de ponto de referência para a Assim como muitos de seus
comunidade de fiéis que ele havia conterrâneos, era devoto dos poderes
conseguido estruturar e onde atendia de Sakpata, o vodum da terra e tam-
os que iam em busca de cura para bém senhor da varíola. Temido e cul-
doenças e feitiços. Sua clientela era tuado, Sakpata representava um po-
muito grande e ele conseguiu com- tencial de cura diante das misérias
prar sua alforria em 1739, continu- individuais e sociais, e por isso con-
ando a viver do que ganhava de seus gregava nesse contexto um volume
clientes e fiéis. Rapidamente progre- crescente de refugiados, doentes, exi-
diu, chegando a ter um terreiro na lados e famintos. Seus sacerdotes re-
região da Glória e casas de cura em presentavam um desafio ao poder
outras partes da cidade. Estava no político e militar do Daomé e foram
auge de sua fama quando foi denun- perseguidos. Domingos era um deles:
ciado e preso pela Inquisição. foi escravizado e deportado em dire-
Por que, então, ele teria se decla- ção ao tráfico atlântico.
rado escravo diante do inquisidor? É essa experiência formativa, ao

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mesmo tempo religiosa e política, que gem pelo Atlântico a bordo dos navi-
serviu de base para Domingos enfren- os negreiros e o trabalho pesado como
tar as peripécias de sua vida. Ela cons- escravos nos engenhos e cidades na
titui também a base analítica de Sweet América portuguesa. Para ele, assim
– e isso lhe permite virar o processo como para muitos outros africanos, a
inquisitorial pelo avesso, utilizá-lo construção de laços de afinidade es-
como fonte sem jamais concordar piritual e parentesco, solidificados
com os inquisidores, que o chamavam por crenças e valores comuns, era um
de “feiticeiro”. Na África ou no Bra- elemento fundamental. O âmbito des-
sil, Domingos era um sacerdote dos sas alianças podia muitas vezes ex-
voduns e, como tal, liderava uma co- trapolar os limites da escravidão, en-
munidade de fiéis, ao mesmo tempo volvendo gente forra, livre e até da
cuidando de seus membros, fortale- classe senhorial. Por isso, dizer-se
cendo-os diante das misérias e doen- escravo de alguém diante da inquisi-
ças e deles dependendo para sobre- ção era, de algum modo, afirmar re-
viver. Sem compreender a natureza lações de proteção: estar submetido
de seu poder espiritual e político, e o ao domínio de um senhor era uma si-
modo como ele serviu de esteio a tuação menos frágil do que ser um
muitos africanos escravizados no liberto, um indivíduo sem conexões
Brasil, vindos ou não da Costa da e sem ter a quem apelar; esse era um
Mina, torna-se impossível entender a meio de mostrar laços identitários
história de vida de Domingos Álva- importantes, que podiam ser compre-
res e as escolhas que fez ao longo de endidos pelo inquisidor.
sua vida. A diferença do livro de Sweet
Assim como em sua terra natal, deve-se, em segundo lugar, a ques-
seus poderes também geravam ten- tões historiográficas. Ainda que
sões no Recife e no Rio de Janeiro. Ginzburg e ele lidem com práticas
As perseguições e o exílio forçado que foram chamadas de feitiçaria pela
estiveram presentes muitas vezes na inquisição, o objetivo dos dois auto-
vida de Domingos. Os paralelos en- res é bem diferente – e cada um está
tre a situação no Daomé e no Brasil engajado em diálogos com compa-
não se faziam sentir apenas nesses nheiros de ofício bastante diversos.
aspectos, mas também no modo como Em O queijo e os vermes , Ginzburg
Domingos e seus fiéis enfrentavam a buscava examinar as relações entre
experiência traumática das doenças os mundos da cultura escrita e oral e,
individuais e, especialmente, as so- ao fazer isso, propunha um novo
ciais: guerras, devastação, fomes, es- modo de conceber e analisar a cultu-
cravização – e com ela a terrível via- ra popular, questionando a indetermi-

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nação da história das mentalidades. cura discutir como Domingos podia
Ao afirmar a centralidade da cultura ao mesmo tempo ser sincero na sua
africana no mundo atlântico, Sweet conversão ao cristianismo e continu-
propõe um novo modo de pensar o ar um sacerdote vodum, tendo em
mundo colonial, geralmente analisa- vista o caráter integrativo de sua cul-
do do ponto de vista da expansão tura e religião.
europeia. Assim, ao invés de “acomodar” os
Mesmo quando tratam do “Atlân- africanos numa perspectiva que pri-
tico Negro”, na maior parte das ve- vilegia a história da colonização,
zes, diz Sweet, os estudiosos estão Sweet prefere lembrar que, “ao ofe-
preocupados em mostrar como os recer caminhos alternativos para pen-
africanos e seus descendentes se apro- sar a família, a religião, a medicina, a
priaram de ideias e instituições euro- economia e a política, africanos como
peias e americanas para defender a Domingos Álvares contestavam a
própria cultura e resistir, sem atentar própria legitimidade do poder impe-
para o fato de que as instituições e os rial” (p. 6). Exatamente por isso, se-
valores africanos constituíam parte guindo tendências historiográficas
importante desse mundo e contribuí- recentes, inspirado especialmente em
ram para lhe dar forma e estrutura. Steven Feierman, que estudou práti-
Entre 1500 e 1820, três de cada qua- cas de cura na Tanzânia, Sweet trata
tro imigrantes das Américas era afri- Domingos Álvares como um intelec-
cano. Ao invés de focalizar o nexo tual. Seus valores, crenças e ideias
entre Europa e América e o movimen- não aparecem simplesmente descri-
to em direção à cultura ocidental, é tos no livro; eles aparecem ali anali-
preciso prestar atenção nas categori- sados detalhadamente para que pos-
as e no ponto de vista desses homens samos compreender como aquele ho-
e mulheres e africanizar a história do mem, nascido na região Mahi e for-
mundo atlântico. Ao colocar a África mado em uma tradição política e re-
no centro da análise, Sweet participa ligiosa específica, pode entender o
dos debates sobre a dinâmica das cul- mundo em que vivia e as suas trans-
turas na área colonial, chamando a formações, muitas delas radicais, e
atenção para a continuidade das prá- escolher o modo como agir. A cura e
ticas africanas na América, mas tam- a devoção aos voduns não são só prá-
bém afirmando que o processo de cri- ticas religiosas, mas uma linguagem
oulização começava na África. Reto- política e uma maneira de conceber e
mando teses clássicas que enfatizam estruturar vidas individuais conecta-
a similitude entre formas sociais e das por uma rede de relações sociais
políticas europeias e africanas, pro- e espirituais.

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Mais que isso. A luta constante de afastado de todos e num meio hostil,
Domingos Álvares para manter vivas ele não conseguiu reconstruir uma
as práticas africanas de possessão comunidade espiritual e um modo de
pelos espíritos, de adivinhação, tera- ser coletivo baseado na força dos an-
pia e cura implicou enfrentar os pila- cestrais e do parentesco, como havia
res da cultura ocidental e das feito em tantas outras ocasiões. Trans-
“modernidades” atlânticas: o capita- formou-se em um descobridor de te-
lismo, o colonialismo, a escravidão, souros perdidos, aproveitando-se de
o monoteísmo, a medicina. Seu po- todas as oportunidades para conseguir
der ameaçou o modo como os euro- sobreviver. Ao sair de Castro Marim
peus entendiam a religião, a ciência, e tentar a vida em outras localidades
a economia e a política. Alguns, por próximas, infringiu a sentença inqui-
interesse ou com sinceridade, até po- sitorial do degredo e passou a ser
diam estar interessados em suas curas novamente procurado pela Inquisi-
ou procurá-lo para adivinhações - e ção. Denunciado mais uma vez por
talvez justamente aí residisse o poten- suas práticas curativas e adivinha-
cial disruptivo das ideias de gente ções, ele viveu perambulando e fu-
como Domingos Álvares. Conforme gindo de cidade em cidade. Acabou
ele conseguia mais seguidores, maior preso e sentenciado pela segunda vez
o desafio político proporcionado àque- ao degredo, em 1748 – desta vez em
les que zelavam pelas verdades estru- Bragança, no centro de Portugal –
turantes do processo colonizador. mas logo desapareceu das vistas de
Perseguido e preso pelo Santo todos e dos registros documentais.
Ofício, Domingos mostrou-se hábil O livro de Sweet é bem mais que
em responder as perguntas do uma biografia. Pelas mãos desse ex-
inquisidor de modo a conseguir livrar- traordinário pesquisador e narrador,
se da pena capital. Enfatizou o fato somos levados às profundezas do
de ser cristão praticante, batizado e mundo atlântico. Mais que um per-
crismado, repetindo sempre que as sonagem, Domingos Álvares é o pon-
curas que praticava deviam-se às pro- to a partir do qual toda a análise ga-
priedades naturais das ervas utiliza- nha seu sentido. Trata-se, sem dúvi-
das e dos ensinamentos adquiridos em da, de uma história atlântica – não
sua terra natal. Passou meses na pri- porque ela desenvolve-se por três
são, submeteu-se à humilhação em continentes, mas porque, entendendo
dois Autos de Fé, mas conseguiu so- o modo como Domingos viveu sua
breviver. vida e como se relacionou com todas
A história de Domingos não tem as pessoas e espíritos que compu-
um final feliz. Exilado no Algarve, nham seu mundo, podemos compre-

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ender como milhares de homens e possa considerar Domingos como
mulheres enfrentaram as forças im- parte dessa “modernidade”, ele era
periais do capitalismo, da guerra e do um dos seus mais fervorosos oponen-
tráfico de escravos, dando sentido a tes. Seu livro nos mostra a possibili-
suas vidas. Estamos, portanto, num dade de fazer uma história intelectu-
campo bem diverso da maior parte al do mundo atlântico completamen-
dos livros que lidam com a história te diferente das que estamos acostu-
da colonização e da escravidão: Do- mados a ver: centrada nas ideias e
mingos Álvares se junta ao elenco das valores da maioria das pessoas que
obras que abrem uma nova perspec- nele viveram e que, ao invés de lutar
tiva para pensar o modo como se for- por uma liberdade individual, busca-
maram e sobreviveram ideias radical- vam reconstruir um modo de ser co-
mente opostas aos pilares da civili- letivo baseado na força dos ancestrais
zação ocidental. Ainda que Sweet e do parentesco.
Silvia Hunold Lara
Universidade Estadual de Campinas

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