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Artigo

As falsas promessas deterministas


Por Maria Teresa Citeli

Certa vez, frente a uma questão polêmica, o sociólogo alemão Habermas disse: —
Saber do que se fala sempre ajuda.

O diálogo com meus alunos de graduação e pós-graduação em 2007 me fez lembrar


dessa citação porque, nos debates em torno da suposta dicotomia construída no
Ocidente há menos de 300 anos entre “natureza” e “cultura”, esclarecer do que se fala
sempre ajuda. Sobretudo nas últimas duas décadas, quando temos nos deparado com
intrigantes explicações para os comportamentos humanos que recorrem à teoria
evolutiva e ao mesmo tempo ancoram seus argumentos em aspectos da vida social dos
hominídeos que viveram quase sempre “empoleirados em árvores” ou “agachados em
cavernas”, como nas histórias contadas pelos praticantes da disciplina psicologia
evolucionista, surgida há menos de 20 anos.

Mas afinal, a que fenômeno estamos nos referindo quando falamos em “determinismo
biológico”? Chamo de “determinismo biológico” a tendência de explicar uma enorme
gama de características de sociedades humanas — desde o aparato jurídico, passando
por interesses, comportamentos, variações de habilidades, capacidades, padrões
cognitivos, manifestações da sexualidade, até a posição ocupada por diferentes grupos
nas sociedades — que envolvem limites e privilégios, como sendo universais, porque
estariam inscritas em determinadas partes do corpo humano ou animal, e/ou porque
seriam transmitidas de geração em geração, há milhões de anos, por entidades como
genes, apelos e propensões instintivas.

Neste artigo são apresentadas duas diferentes vertentes de estudos integrantes das
tendências explicativas acima listadas explorando suas tentativas de aproximação com
as ciências sociais. A sociobiologia, atuante no âmbito das ciências naturais e a
psicologia evolucionista, herdeira da primeira, recentemente constituída como disciplina
acadêmica que se apresenta como integrante do campo das ciências sociais, embora
opere reducionismos e universalizações típicos das vertentes científicas positivistas.

Quando se menciona o determinismo biológico, é comum encontrar alunos e professores


universitários admirados com a enorme distância que os cientistas sociais guardam em
relação às “lições” de metodologia de pesquisa e outros ensinamentos oferecidos pelos
colegas praticantes da sociobiologia e da sua versão remanufaturada nos anos 1990, a
psicologia evolucionista. Para quem recebeu formação básica em ciências sociais é mais
fácil entender esse desinteresse: para a maioria dos cientistas sociais, distantes do
território das ciências biológicas, esses discursos parecem tão incompreensíveis que não
suscitam qualquer possibilidade de interlocução, seja para refutar, concordar ou mesmo
abominar.

O fracasso do determinismo biológico em atrair cientistas sociais

Um dos motivos para esse desinteresse de sociólogos e antropólogos — longe de ser a


apregoada adesão ao determinismo cultural, ou o antropocentrismo, ou ainda, a
contaminação por um vírus, que nossos frustrados acusadores dizem provocar “biofobia”
—, deve ser buscado nas tradições das ciências sociais que, desde meados do século
XIX, foram demarcando as bases desses campos que se dedicam a entender as sutilezas
e o requinte observados nas associações que promovem a vida coletiva. Essa
demarcação foi feita pelo exaustivo debate sobre as relações sociais envolvidas na
produção e reprodução das formas de existência e na humanização pelo processo de
trabalho; ou na análise de um fenômeno aparentemente de ordem privada, como o
suicídio, como um fato social, negando com obstinação estudos que buscavam
explicações em fatores climáticos, psicológicos ou regionais; ou pela interpretação dos
valores professados pelos indivíduos para compreender as afinidades eletivas entre
ascese religiosa puritana e o “espírito” do capitalismo. Foi assim que Marx, Durkheim e
Weber, cada um a seu modo, foram lançando as bases teórico-metodológicas iniciais
das disciplinas que buscam apreender fenômenos sociais com base na desnaturalização
dos fenômenos subjacentes às relações de mulheres e homens entre si e destes com a
natureza. Da mesma tradição da sociologia e da antropologia faz parte a busca (nem
sempre bem-sucedida) de evitar explicações abrangentes para interpretar
comportamentos específicos como se fossem universais, justamente porque essas lidam
com diferentes culturas, que não podem ser explicadas a partir dos padrões vigentes na
sociedade em que vive o pesquisador.

Esse resumo superficial dos interesses e recursos utilizados pelos praticantes das
ciências sociais facilita entender porque E. O. Wilson — em sua proposta da nova
disciplina sociobiologia que, segundo ele, propiciaria os meios adequados para o estudo
“científico” das bases biológicas do comportamento humano, o que permitiria subsumir
as ciências sociais às naturais — fracassou cabalmente em seu propósito de atrair
adeptos entre os cientistas sociais, que se mantiveram indiferentes (com algumas
exceções, como o antropólogo Marshall Salhins, que se dedicou a rebater os usos e
abusos da pretensiosa proposta disciplinar no que tange a explicações do
comportamento social).

Até início dos anos 1990, as críticas mais contundentes à sociobiologia nas
universidades norte-americanas e do Reino Unido eram provenientes de dois grandes
grupos de pesquisadores: 1) colegas do campo das biológicas (como Stephen Jay
Gould); e 2) mulheres cientistas (praticantes das ciências naturais e sociais) e
estudiosos de gênero, que reagiam indignados, mostrando as falhas lógicas e as
conseqüências sociais das afirmações que pretendiam explicar, a partir da biologia e da
teoria da evolução, desde os atuais sistemas legais, econômicos e de parentesco até as
possíveis bases biológicas da discriminação sexual (com suas explicações para a
violência e o abuso sexual, a agressividade e a promiscuidade masculina, passividade e
baixo interesse sexual das mulheres).

Apesar das muitas críticas que a sociobiologia recebeu no seu âmbito disciplinar, são
muitos os biólogos que reconhecem o potencial da nova disciplina, por exemplo, para os
estudos da comunicação entre animais. Além disso, é inegável o retumbante sucesso
obtido pelos seguidores e colaboradores de Wilson junto aos meios de comunicação,
sobretudo no que se refere às perspectivas evolutivas aplicadas a aspectos da
sexualidade humana, inspirando na década de 1980 manchetes como as selecionadas
na mídia norte-americana:

Machismo tem bases biológicas e diz "Eu tenho bons genes, deixe-me reproduzir". Time

Se pegarem você dando suas voltinhas, não diga que a culpa é do diabo. É seu DNA.
Playboy

Estupro: geneticamente programado no comportamento masculino. Science Digest

Os homens são geneticamente mais agressivos porque são mais indispensáveis.


Newsweek

Nos Estados Unidos, os arautos da nova disciplina sugeriam o uso dessas


argumentações até no julgamento de estupradores, para explicar as forças evolutivas
que supostamente impelem os machos, sejam eles patos, insetos ou primatas humanos
e não-humanos, à prática do sexo forçado.

No Brasil, entretanto, por algum motivo ainda não estudado, até o final da década de
1980 não surgiram porta-vozes bem treinados para o relacionamento com a mídia.
Dessa maneira, a sociobiologia ficou relativamente circunscrita às universidades na
formação de biólogos, e possivelmente de médicos e psicólogos, sendo restritos também
o número de traduções de livros acadêmicos ou de obras de popularização dessa
vertente explicativa do comportamento animal e humano.

Entretanto, o fracasso dos fundadores da sociobiologia em sua pretensão de atrair


cientistas sociais para adotar seus modelos explicativos não foi suficiente para conter o
ímpeto da pregação em favor das bases biológicas e universais dos comportamentos
humanos.

Novas faces do determinismo: a contribuição dos estudos sobre ciência e mídia

No início na década de 1990, no Reino Unido, teve início um novo esforço criativo,
quase desviante, para contornar as resistências acadêmicas contra a sociobiologia, de
modo a lançar na grande mídia as bases para uma nova disciplina, que veio a se chamar
psicologia evolucionista a qual, dez anos depois, já integrava a grade curricular dos
cursos de psicologia, inclusive no Brasil.

As estratégias de mídia adotadas pela psicologia evolucionista foram estudadas pela


pesquisadora inglesa Ângela Cassidy. Em dois artigos, publicados em 2005 e 2006 na
revista Public Understanding of Science, ela procede à análise quantitativa de matérias
jornalísticas contendo as expressões “sociobiologia” e “psicologia evolutiva” publicadas
no Reino Unido de 1990 a 2002, comparando-as a levantamento similar de artigos
acadêmicos, apoiando-se ainda em entrevistas feitas com os participantes da
controvérsia na mídia.

Maria Teresa Citeli é socióloga, professora do Departamento de Política Científica e


Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp.

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