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Antonin Artaud

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Reitor
Ruy Garcia Marques

Vice-reitora
Maria Georgina Muniz Washington

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Conselho Editorial
Bernardo Esteves
Erick Felinto
Glaucio Marafon
Italo Moriconi (presidente)
Jane Russo
Maria Aparecida Ferreira de Andrade Salgueiro
Ivo Barbieri (membro honorário)
Lucia Bastos (membro honorário)
Ana Kiffer

Antonin Artaud

Rio de Janeiro
2016
Copyright  2016, Ana Kiffer.
Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou de parte do mesmo, em
quaisquer meios, sem autorização expressa da editora.

EdUERJ
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Coordenadora Administrativa Elisete Cantuária
Apoio Administrativo Roberto Levi
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Assistente Editorial Thiago Braz
Coordenadora de Produção Rosania Rolins
Assistente de Produção Mauro Siqueira
Supervisor de Revisão Elmar Aquino
Revisão Juliana Travassos
Elmar Aquino
Capa Thiago Netto
Projeto e Diagramação Emilio Biscardi

CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC
A785 Kiffer, Ana.
Antonin Artaud / Ana Kiffer - Rio de Janeiro : EdUERJ, 2016.
266 p.

ISBN 978-85-7511-392-9

1. Artaud, Antonin, 1896-1948 - Crítica e interpretação.


2. Teatro francês - História e crítica.. I. Título.

CDU 840-95
Nota da autora

Esse livro é fruto da pesquisa que se iniciou quando ingres-


sei no doutorado da UERJ, com bolsa CNPq, sob a orientação
de Ítalo Moriconi, tendo se adensado nos anos de pesquisa na
França, na Universidade de Paris VII, com bolsa da CAPES,
sob a orientação de Evelyne Grossman. Foi escrito entre 2000
e 2002. Sofreu uma primeira revisão em 2003, quando foi pu-
blicado na Espanha. E agora em 2014, entre a Bretanha e o Rio
de Janeiro, onde reescrevi a sua “Introdução”, assim como re-
visei capítulos, notas, edições e anexos. Agradeço à FAPERJ e à
EdUERJ que juntas acreditaram e criaram as condições para essa
publicação.
Nota sobre traduções

Foram mantidos no corpo do texto os trechos citados tra-


duzidos para o português pela autora. As passagens mantidas em
francês pela autora tiveram suas traduções ao português colo-
cadas em notas de rodapé. As traduções dessas passagens foram
em sua maioria feitas por Pedro Calcavecchia. Em alguns casos,
foram aproveitadas traduções já existentes em português, con-
forme indicado.
para Clara
Está, hoje que não está,
Numa memória mais de fora.
De fora: como se estivesse
Num tipo externo de memória.

João Cabral de Melo Neto


Escritos com o corpo

La puissance est le pathos, c’est-à-dire la passivité, la réceptivité,


mais la réceptivité est d’abord la puissance de recevoir les coups,
et d’en donner: une étrange endurance1.

Gilles Deleuze
Périclès et Verdi – la philosophie de François Châtelet

1
Tradução: “A potência é o pathos, isto é, a passividade, a receptividade, mas a
receptividade é, antes de tudo, a potência de receber os golpes, e de dar golpes:
uma estranha resistência”.
Sumário

Prefácio..........................................................................................15

Introdução.....................................................................................31

Capítulo 1: Fragmentações.............................................................57

Capítulo 2: Lettres, lettre, l’être....................................................127

Capítulo 3: Interjeições................................................................201

Referências...................................................................................253

Anexos.........................................................................................259

Sobre a autora..............................................................................265
Prefácio
Escrita ébria

[…] dès que Van Gogh avait tourné


la tête, le docteur Gachet lui fermait
le commutateur de la pensée.1
J’ai passé 9 ans moi-même dans un
asile d’aliénés et je n’ai jamais eu
l’obsession du suicide, mais je sais
que chaque conversation avec un
psychiatre, le matin, à l’heure de
la visite, me donnait l’envie de me
pendre, sentant que je ne pourrais
pas l’égorger.2
Antonin Artaud
Van Gogh le suicidé de la société

1
Tradução: “[...] apenas Van Gogh se virava, o doutor Gachet lhe desligava
o interruptor do pensamento.” Edição brasileira: ARTAUD, Antonin. Van
Gogh: o suicida da sociedade. Trad. Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: José Olym-
pio, 2003, p. 54.
2
Tradução: “[...] Eu mesmo passei nove anos num asilo de alienados e nunca
sofri da obsessão do suicídio, mas sei que, a cada conversa que tinha com um
psiquiatra, de manhã, na hora da consulta, sentia vontade de me enforcar por
ver que não podia estrangulá-lo.” Edição brasileira: ARTAUD, Antonin. Van
Gogh: o suicida da sociedade. Trad. Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: José Olym-
pio, 2003, p. 60.
16 Antonin Artaud

Ao querer dar conta da bibliografia sobre André Gide, ob-


jeto de pesquisa nos anos 1960, eu me deparei com os escritos de
Charles Du Bos (1882-1939). Um dos mais instigantes críticos da
cultura e da literatura modernas francesas, Du Bos é hoje pratica-
mente desconhecido da galera universitária. Dele guardei uma dis-
tinção conceitual e semântica, à qual recorro para abrir o prefácio
de Antonin Artaud, notável ensaio escrito por Ana Kiffer.
Observa Du Bos que, em termos de uma tipologia literária,
é importante distinguir o discurso complicado do discurso comple-
xo, desde que se tomem as respectivas etimologias como bússola
semântica (1947, pp. 144-9). Lembra que o primeiro adjetivo tem
como raiz o verbo latino plicare (plier, em francês; dobrar, em por-
tuguês). Complicado qualifica o discurso que se escreve e se dobra
para se exprimir por pregas. O discurso que se desdobra carrega
consigo um discurso original que, ao se repetir em sequência dra-
mática, ao avançar em escrita, está sempre se debruçando sobre
si mesmo e se voltando para o passado, sua contínua referência.
Investigativo, quer ir adiante à procura de novos efeitos esclarece-
dores, cuja força criativa é substantivada na possibilidade infinita
de reiteração. Esses novos efeitos esclarecedores são afins dos deri-
vados de imagens especulares, que nos são bem familiares, já que
estão por detrás dos discursos identitários tradicionais − da meta-
física, da sociologia e da psicanálise. A possibilidade do discurso
complicado é condicionada pelo seu centramento na metafísica
ocidental. Seu estatuto é, pois, ontológico.
A raiz plicare também comparece no verbo hermenêutico
que lhe corresponde − explicar. O prefixo ex- visa retirar algo
para o lado de fora das pregas do discurso, visa tornar claro o
que se apresenta de modo obscuro no interior do discurso for-
jado por dobras − ex-plicare. Compreender se confunde com a
tenacidade do leitor: a duras penas, ele retira algo para fora das
dobras, das pregas do discurso. Esse algo – a leitura − é o signi-
ficado que já vinha guardado inteirinho no discurso autoral, só
Escrita ébria 17

que escondido, camuflado ou recalcado pelo gesto de repetição,


de duplicação e de reduplicação, oculto no efeito de multipli-
cação e só nele revelado. Na cultura francesa, na sua didática, a
ex-plicação – conhecida como explication de texte3 − fundamenta
a leitura analítica e compreensiva.
Para Du Bos, a duplicação é o fundamento formal dos
sucessivos textos ficcionais escritos por romancistas como An-
dré Gide, cuja técnica de composição se tornou inigualável por
se organizar pela repetição em diferença, e se manifestar através
da estrutura qualificada por ele próprio, nas páginas do famoso
Journal, pelo termo heráldico de mise-en-abyme (construção em
abismo).4 A construção textual em abismo é exemplo clássico de
repetição interna que explicita a estruturação discursiva de obras
da literatura, teatro, artes plásticas e cinema. Ainda no Journal se
lê: “É por meio da composição que um artista aprofunda sua tela”.
Uma cena dramática (o roubo da tesoura enferrujada, co-
metido por menino árabe às costas de Michel, francês e adulto,
que finge não ter visto o pequeno delito – leia-se O imoralista,
1902) debruça-se sobre si mesma em romance posterior e se do-
bra para se repetir em sequência (o roubo do guia da Argélia co-
metido por menino francês de classe média às costas do escritor
Edouard, que também finge não estar vendo o pequeno furto
– leia-se Os moedeiros falsos, 1925). Na sucessão das cenas e dos
romances, agiganta-se o que a dobra esconde/revela e clama pela
explicação do leitor. A Argélia colonial, por onde viaja o enfer-
miço Michel em fins do século XIX, se desdobra na Paris cosmo-

3
Informa o dicionário: “exercice plus souvent oral qu’écrit qui consiste à faire
l’analyse détaillée d’un texte d’un point de vue sémantique et stylistique”. [Tra-
dução: “exercício mais frequentemente oral que escrito, que consiste em fazer a
análise detalhada de um texto de um ponto de vista semântico e estilístico”.]
4
A construção em abismo, segundo as palavras de Pierre Lafille, resulta “do hábi-
to, da necessidade gidiana de se contemplar trabalhando, de seguir seu próprio
devir, de viver e de criar em um jogo de imagens de si, semelhantes a si, mas de
ângulos diversos e de iluminações variadas”.
18 Antonin Artaud

polita dos anos 1920, por onde perambula o romancista Edou-


ard. Ao se reduplicar, a cena dramática pode ser “ex-plicada”
pelos olhos do leitor crítico, que ressaltará o ato ilícito cometido
por um enfant terrible diante de um adulto conivente, protegido
pela penumbra das intenções sorrateiras. Uma cena ilumina a
outra pelo jogo de vai-e-vem operado pelo leitor. Sobressai o
interesse mascarado da criança por objetos de valor diferente e
pelos olhares enviesados e especulares do adulto que passam a
reclamar uma reflexão judiciosa sobre as formas perversas do de-
sejo e da sensualidade masculina no discurso ficcional de André
Gide, cuja temporalidade acentua os efeitos complicadores, for-
talecidos pelas dobras.
Veja como dois quartetos do poema “L’irremediable”, de
Charles Baudelaire, transcritos abaixo, podem ajudar o leitor
na elucidação tanto da ausência de responsabilidade no caráter
moral do adulto quanto da sensualidade à flor da pele e ainda
desorientada, que se expressa pelo furto cometido por criança
analfabeta e por rapazinho parisiense, respectivamente. No poe-
ma de Baudelaire, o tópico da “consciência no mal” emerge do
próprio coração do sujeito que, ao se querer duplicado e reexami-
nado em imagem especular, abre uma prega para nela e por ela
caracterizar, por meio de afirmação analítica, o lugar do poço de
Verdade, cujas águas são ao mesmo tempo límpidas e obscuras:

Tête-à-tête sombre et limpide


Qu’un coeur devenu son miroir!
Puits de Vérité,5 clair et noir

5
Desde já seria revelador o fato de que, ao “poço de verdade” (discurso compli-
cado) deve-se contrapor o “abismo” (gouffre, discurso complexo). Observa Ana,
adiantando nosso raciocínio: “abismo – buraco vertical, assustador por sua pro-
fundeza e largura. Mas seu sentido inicial se mantém na associação constante
com a palavra ‘insondável’, que Artaud não deixou de utilizar [...]. Profundeza,
portanto, não atingível pela sonda. Abismo sem fundo da face: este, o inacessí-
vel plano da superfície”. Como complemento, veja-se o autorretrato de Artaud,
Escrita ébria 19

Où tremble une étoile livide,


Un phare ironique, infernal
Flambeau des grâces sataniques,
Soulagement et gloire uniques,
— La conscience dans le Mal!6

Na raiz etimológica do segundo adjetivo, complexo, está
o verbo plectere, que qualifica o discurso que tece ou urde sem
cessar. Ele se desenvolve se desenvolvendo, sem obediência às no-
ções de sujeito original que se desdobra e de limite, desprovido
de espaço cerceado por parapeito ou impedido por clausura. O
discurso qualificado por complexo não enuncia algo que pode/
precisa ser retirado de dentro do seu interior, algo que chega es-
condido ao leitor, empacotado em dobras que se desdobrariam ad
infinitum pela explicação. Se qualificado pelo adjetivo complexo,
o discurso não se confunde com – e não explora − uma espécie de
subjetividade original e soberana, cuja compulsão à repetição se
alastra graças à força inconsciente que vai recobrir o fundamento
do sujeito discursivo por situações formais similares (repetitivas)
que, ao serem reconstruídas pela linguagem em prisão imaginá-
ria, desafiariam e instigariam a compreensão do leitor.
Ex-plique-me, isto é, desdobre-me, ou te devoro! – eis o
desafio do discurso complicado. Não é por casualidade que a
enigmática esfinge seja, da perspectiva etimológica, uma figura
esculpida em dobra: um monstro alado com cabeça de mulher e
corpo de leão. Humana e animal.

desenhado no dia 11 de maio de 1946. Escreve Ana: “Sublinhemos apenas que


o surgir de seu autorretrato não teria se operado a partir do olhar que se veria
refletido no espelho. Artaud se desenha sem espelho”.
6
Na tradução de Ivan Junqueira: “Conversa a dois, clara e sombria, / Espelho
que a alma em si procura! / Fonte do Ser, límpida e impura, / Onde pulsa uma
estrela fria, // Farol irônico, infernal, / Archote aceso a Satanás, / Consolo e
glórias sem iguais / − A consciência dentro do Mal!”.
20 Antonin Artaud

Já o discurso complexo – e aqui nos encaminhamos final-


mente para Antonin Artaud − caminha pari passu com a urdidu-
ra e a trama que a imaginação vai conduzindo pela própria mão
pela folha de papel. A imaginação poética manipula palavras,
frases e figuras como se fosse hábil marionetista a mover simul-
taneamente vários cordéis nos bastidores da cena da escrita. A
movimentação das marionetes no palco (da escrita/desenho em
Artaud) é imprevisível, desconcertante e anárquica. Não traz em
si o resgate da origem nem acentua o futuro, premeditando-o.
Se o discurso complicado coloca o leitor em confluência com a
ontologia, já o discurso complexo nos remete a Michel Foucault
que, segundo Gilles Deleuze em Pourparlers, “sempre se opôs
aos métodos de interpretação”. Reitera Deleuze que Foucault
condiciona seu pensamento a esta direção: “nunca interprete, ex-
perimente. […] e a experimentação é sempre o atual, o nascente,
o novo, o que está sendo feito”.
Os elementos múltiplos e variados do discurso poético
de Antonin Artaud se encadeiam em gestual aleatório que abre
perspectivas inesperadas e fatais e caminhos singulares que, por
sua vez, desencadeiam significados (isto é, oferecem sentidos ao
leitor) no próprio lento, fragmentado e anárquico movimento de
caminhar que é o ato de dizer.7 No discurso poético, “o pessoal
toca o impessoal”, para retomar Ana ao ler o texto das cartas de
Artaud a Jacques Rivière. E ela continua: “o si mesmo aloja-se
em um ‘fora de si’”. A escrita não se dobra sobre si em busca de,
nem abre faixas de repouso para o sujeito. Por isso é que às vezes
falta oxigênio no ar da criação. A atmosfera poética se torna mais
e mais rarefeita e angustiante. Ofegante, a frase/o verso sobrevive
em ambiente quase irrespirável (vale dizer: inexplicável).

7
Cite-se Jacques Derrida, que cita Artaud: “Neste teatro, toda criação vem do
palco, encontra sua tradução e suas próprias origens em um impulso psíquico
secreto que é a palavra de antes dos vocábulos”.
Escrita ébria 21

No ato de elaboração do discurso, a fadiga do sujeito é inces-


sante e de tal forma opressiva e incontornável pela falta de oxigênio
no ar que se respira, que muitas vezes é ela própria – sob a forma
de “sufoco” − que explode em desejo de relaxamento para poder
respirar e emitir o “sopro” criativo.8 A força da fadiga do corpo se
expressa então por explosões anárquicas de sílabas/sons que esca-
pam à justaposição tradicional delas/deles em palavras, em frases,
em texto.9 Refiro-me às conhecidas glossolalias de Artaud, de que
Ana é sempre boa e respeitosa leitora. Refere-se ela também, no
discurso de Artaud, à figura da “interjeição”, momento em que a
poesia “se torce em direção ao ‘inferno não criado onde o corpo do
homem sufoca antes de começar a respirar’”.
A leitura do pensamento complexo será feita por Ana Kiffer
a partir dos efeitos de deslocamento (e não de desdobramento)
do discurso poético fragmentado, que vão do informe ao disfor-
me, do disforme ao cotó (trumeau).10 Por sua vez, a leitura pelos
efeitos de deslocamento compõe a narrativa estepe de Ana – uma
narrativa crítica sobressalente e de reserva, sem utilidade previsí-

8
Cite-se Maurice Blanchot: “Seria tentador aproximar o que dissemos de Artaud
do que dizem de Hölderlin, Mallarmé: que a inspiração é em primeiro lugar
esse ponto puro em que ela falta”. Quanto à especificidade do sopro, leia-se
Ana Kiffer: “Não seria somente a atividade fisiológica do sopro que oxigena o
corpo. O poeta vai buscar o momento em que a transmutação se concretiza. O
momento em que o ar se materializa em sopro. Em que o sopro resta, portanto,
como matéria do/no ar.”
9
Para uma leitura de outra perspectiva da questão apresentada, consulte-se o
capítulo 13 de Logique du sens, de Gilles Deleuze, no qual o filósofo estuda as
relações entre Lewis Carroll e Artaud a partir das traduções feitas pelo francês.
10
Segundo Evelyne Grossman, “les trumeaux seraient alors les mots des corps
écorchés, tronçonnés, morceaux de corps transfigurés en signes après l’opéra-
tion alchimique de réfection du corps humain”. [Tradução: os cotos seriam então
as palavras dos corpos esfolados, destroçados, pedaços de corpos transfigurados
em signos após a operação alquímica de refeição do corpo humano”.] Em refe-
rência a Van Gogh, diz ela: “Les trumeaux sont ces grumeaux de corps décom-
posés, fécalisés qui se lisent sur la toile dans les taches noires des corbeaux [...]”.
[Tradução: “Os cotos são estes grumos de corpos decompostos, fecalizados, legí-
veis sobre a tela nas manchas negras dos corvos”.]
22 Antonin Artaud

vel, a não ser em caso de acidente no percurso do discurso poéti-


co de Antonin Artaud. A narrativa estepe de Ana está sempre “ao
redor”. Se ativada, ela também não apresenta fim nem começo.
É múltipla e infinita na resposta ao pedido de socorro que o dis-
curso autoral grita em qualquer momento de necessidade ou de
pânico. A narrativa estepe – de responsabilidade da, por assim
dizer, crítica literária − está presente como um anjo da guarda
que vela pelos acidentes de percurso do discurso complexo.
No caso de Artaud, como também de muitos ficcionistas
e poetas geniais, não é indispensável recorrer à narrativa estepe,
embora seja aconselhável consultá-la, pois os acidentes, progra-
mados pelo acaso, baixam a todo momento como orixás. É bom
que se aclare porque não há a necessidade imperiosa de recorrer
à “crítica”: esta não ex-plica. Como o próprio discurso poético,
de que é estepe, ela apenas urde, ou trama sem cessar.
Não há, pois, correlação interna – no sentido de corres-
pondência do texto com sua explicação – entre as diversas partes
(poemas, livros) do discurso poético complexo de Antonin Ar-
taud e entre as diversas partes (subcapítulos, capítulos) do dis-
curso crítico de Ana Kiffer, que o tenta apreender pelo modo so-
bressalente. Discurso autoral e discurso estepe são dois discursos
paralelos e intrometidos. Metem os respectivos bedelhos um no
outro em momentos de descarrilamento.
Por isso, se houver correlação entre as partes do discurso
poético (poemas, livros) e as do discurso crítico (subcapítulos,
capítulos), ela não se dará pelo interior dos dois discursos. A
correlação será sempre manifestada em encontros e reencontros
pelo respectivo lado de fora de cada um dos dois discursos. Have-
rá, portanto e sempre, correlação externa entre Artaud e Ana, que
se dará pelo ajuste quase perfeito da narrativa estepe à narrativa
autoral, e vice-versa. No exercício mútuo de ajuste, ambas as
narrativas perdem imediatamente os respectivos adjetivos (isto é,
Escrita ébria 23

uma deixa de ser apenas poética e a outra de ser apenas crítica)


para serem só discurso complexo.
Discurso poético de Artaud e discurso crítico de Kiffer
são só discurso complexo. São só discurso que escorre, escorrega
e despenca em uma explosão indistinta de fonemas no mesmo
e alternativo cadinho. O discurso tout court se oferece, então,
como amontoados de deslocamentos do informe ao disforme,
do disforme ao cotó, a nos alertar para o fato de que se está sem-
pre trabalhando com grumos, com fragmentos, com derivas e
cascatas, isto é, com chispas de fogo que, mal se constituem em
imagem fonética (pela ação de escrever), já somem na atmosfera
como desenhos não figurativos (pela ação do corpo). Tornam-se
invisíveis na folha de papel para figurarem na realidade ambien-
te. Leia-se 50 dessins pour assassiner la magie: “Quand j’écris, /
j’écris en général une note d’un trait. Mais cela ne suffit pas / et je
cherche à prolonger / l’action de ce que / j’ai écrit dans / l’atmosphère
(grifo meu). Alors / je me lève / je cherche / des consonances /
des adéquations / de sons / des balancements du corps / et des
membres / qui fassent acte”.11 Tanto a folha de papel quanto a
atmosfera são lugares de escrita/desenho e prolongam a ação do
corpo no “corpo da língua”.12
Pergunta e responde Eveline Grossman: “Qu’est-ce
qu’écrire-dessiner? C’est refaire un ‘corps sans organes’, c’est-
-à-dire une multiplicité moléculaire, explosive et atomique
(l’inverse du ‘cadavre anatomique’ du corps organique), c’est

11
Tradução: “Quando escrevo / grito em geral uma nota / num traço. Mas isso
não basta / e procuro prolongar / a ação disto que / es crevi n’ / atmosfera. Então /
eu me levanto / procuro / consonâncias / adequações / sons / balanceamentos
do corpo / e membros / que façam ato”.
12
Não é necessário desenvolver a ideia que gira em torno do desenho como pos-
sível “explicação” do texto. Ana o diz de maneira lapidar: “Assim, a maioria
de seus grandes desenhos-escritos possuem um texto que os acompanha e os
comenta. Esses textos não buscam ‘explicar’ seus desenhos. Eles vêm inseri-los
no interior de uma prática […]”.
24 Antonin Artaud

inventer une scénographie picturale, une danse corporelle des


signes sur la page”.13
Daí vem a impossibilidade de se retirar para fora do pensa-
mento complexo algo que esteja – ou já está – lá dentro, a não ser
em um ato autoritário de imprudência do leitor (e como os há,
não tenhamos dúvidas) ou de mercantilização das ideias (papo-
-furado da crítica encharcada de psicanálise). É, pois, impossível
expor algo do pensamento complexo à luz do dia; impossível ex-
-plicá-lo, como no caso da leitura do texto complicado de André
Gide ou de Charles Baudelaire.
Aliás, um dos efeitos mais baratos de autoridade impruden-
te do leitor ou de mercantilização fácil dos objetos e das ideias no
mundo moderno da crítica de arte se encontra na disseminação da
ideia de “loucura”.14 Fragmento duma urdidura genética deveras
complicada, fragmento duma trama histórica que nos foi revelada
por Michel Foucault em L’ histoire de la folie à l’ âge classique, a
loucura moderna – mero coup monté (citando Artaud), mera ar-
madilha nas mãos dos psicanalistas e dos mercadores − tem sido
as moedas de mil-réis que encantam os soi-disant apaixonados pela
literatura e pelo teatro de Artaud – pela poesia de Baudelaire, de
Edgar Allan Poe, de Gérard de Nerval e de Coleridge, pelos escri-
tos filosóficos de Nietzsche, Kierkegaard e Hölderlin. O desmen-
tido de Artaud à versão corrente, médica e utilitária, das moedas
de mil-réis é cadenciado, solene, repetitivo e não tem fim, e serve
para urdir uma ideia complexa (dele) que, se próxima ao absurdo
da repetição infinita, acabará por ser convincente junto ao crítico
imprudente ou mercantil. Em outras e mais simples palavras: Ar-
taud transforma o discurso complexo em complicado (no sentido

13
Tradução: “Que é escrever-desenhar? É refazer um ‘corpo sem órgãos’, que é
dizer, uma multiplicidade molecular, explosiva e atômica (o inverso do ‘cadáver
anatômico’ do corpo orgânico), é inventar uma cenografia pictural, uma dança
corporal de signos sobre a página”.
14
Ana a escreve entre aspas, por razões óbvias.
Escrita ébria 25

de pensamento convencional da modernidade) para que a loucura


dos hospícios seja compreensível pelo leitor comum como armadi-
lha (coup monté) em que não se deve cair.
Ao transformarem o pensamento complexo sobre a loucura
em pensamento complicado, Antonin Artaud e Ana Kiffer aca-
bam por serem convincentes junto aos leitores mal acostumados
a pensar, ou acostumados a pensar pelos desvãos reveladores das
pregas. Seus leitores serão convencidos a conhecer o que na ver-
dade não compreendem, serão convencidos a conhecer o que
eles próprios tacham ardilosamente de loucura. Parodiando Ar-
taud: se você quiser levar a má vontade aos seus fins basta fazê-la
calar (la boucler).
Veja como a repetição se impõe sob a forma de discurso
complicado de convencimento por um pensamento que se quer
complexo e não abre mão de sua trama, de sua urdidura. Leia-
mos dois exemplos tomados de Artaud em que acentuo a reitera-
ção de “il n´’était pas fou”:

Gérard de Nerval n’était pas fou (grifo meu), mais il fut accusé
de l’être a fin de jeter le discrédit sur certaines révélations
capitales qu’il s’appretaît à faire.

Non, Van Gogh n´était pas fou (grifo meu), mais ses peintures
étaient des feux grégeois, des bombes atomiques, dont l’angle
de vision, à côté de toutes les autres peintures qui sévissaient à
cette époque, eût été capable de déranger […].15

15
“Gérard de Nerval não era louco, porém disso foi acusado com o propósito de
levar ao descrédito certas revelações capitais que estava prestes a fazer.

[...] Não, Van Gogh não era louco, mas suas pinturas eram feux grégois, bombas
atômicas, cujo ângulo de visão, ao lado de todas as outras pinturas polêmicas
à época, foi capaz de abalar gravemente [...]”. Edição brasileira: ARTAUD,
Antonin. Van Gogh: o suicida da sociedade. Trad. Ferreira Gullar. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2003, pp. 28-9.
26 Antonin Artaud

Em Artaud, o pensamento complicado é estratégico e efê-


mero, apenas retórico. Existe para que o leitor convencional re-
tire lá de dentro o “significado de loucura”, que ele esconde e
explora, que lança o descrédito sobre certas revelações capitais
que Nerval estava pronto para fazer. O discurso complexo se
abotoou em discurso complicado para que se reafirmasse a nega-
ção daquilo que o complicado induz.
Loucura + loucura + loucura... não é = a conhecimento da
verdade sobre a loucura dita e repetida pela convenção.
Pelo contrário. A verdade da loucura – isto é, sua inexis-
tência na vida e na obra dos artistas e filósofos já mencionados
− se ex-plica pela negação do que se acredita poder ser ex-plicado.
Nega-se peremptoriamente aquilo que é tido por todos – e em
particular pela instituição psiquiátrica – como loucura. A loucu-
ra ao quadrado da complexidade não é a dita loucura. No dis-
curso complexo, ela se revela apenas como um coup monté, como
complô maquinado em segredo, como armadilha:

Ce monde a besoin de cultiver des cobayes pour sa séculaire


collection de squelettes, / squelettes d’aliénation. / Je dis que
la folie est un coup monté (grifo meu) / et que sans la médecine
elle n’aurait pas existé16.

Antonin Artaud pertence ao grupo dos escritores cujo dis-


curso é complexo. Ao lê-lo, Ana Kiffer não busca uma joia, um
segredo ou um recalque que se escondem e se revelam por entre
as dobras do discurso com a intenção de liberá-los e de exibi-los
criticamente para o lado de fora do texto. Em Antonin Artaud é

16
Tradução: “Este mundo tem necessidade de cultivar cobaias para sua secular
coleção de esqueletos, / esqueletos de alienação. / E afirmo que a loucura é um
golpe arquitetado / e que sem a medicina ela não teria existido.” Edição brasilei-
ra: ARTAUD, Antonin. Van Gogh: o suicida da sociedade. Trad. Ferreira Gullar.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2003, pp. 16-7.
Escrita ébria 27

pelo (e não para o) lado de fora que se narra a vida, narrativa nô-
made que desarticula o vivido com vistas ao vivível. Ler Artaud
é − nos diz Ana Kiffer − compreender como se organiza o para-
doxo que me/nos leva a ver a própria vida pelo lado de fora, pela
narrativa que se escreve por entre as brechas do lugar de dentro
já em um lugar de fora, fazendo o discurso do corpo (por exem-
plo) escapar das amarras que o evidenciam à luz da medicina e
sintonizar seu sentido em um canal por onde já navegam outros
corpos possíveis. O vivido é o vivível.
Nesse sentido, seu discurso poético articula o lado de den-
tro do sofrimento limite e exacerbado do sujeito às viagens aven-
turosas do outro, a que ele tem acesso por experiência de leituras.
Suas referências passam a estruturar o lado de dentro da vida
pelo seu lado de fora, ou seja, pelo “pensamento alquímico me-
dieval, da cabala, do tarô, do teatro balinês e, sobretudo, pela sua
vivência dos ritos indígenas da serra Tarahumara no México”,
como nos informa Ana.
O texto viajante de Antonin Artaud pluraliza o indivíduo
dito francês em cidadão do mundo e, ao mesmo tempo, em ser
imortal. Todos os espaços são percorridos por ele, enquanto todos
os tempos se acoplam em um corpo presente em constante re/in-
venção de si próprio. A experiência da viagem (real ou simbólica,
se distinção for necessária)17 metamorfoseia o corpo de Artaud em
algo que é, ao mesmo tempo, relíquia de todas as eras passadas e
andor dos novos tempos. O texto viajante fragmenta e, por isso, se
confunde com o deslocamento do corpo de Artaud pela atualida-
de do espaço geográfico do planeta, ou a sua transmigração pelos

17
Os deslocamentos geográficos e históricos podem o ser graças ao fato de Ar-
taud ter sido espectador de quiosques ou pavilhões, que representam comuni-
dades diferentes em um único e fechado espaço urbano. Refiro-me às feiras ou
parques populares que Artaud visita, como o Vaterland, em Berlim, onde os
diversos países da Europa se fazem representar em quiosques, ou às Exposições
coloniais, como a de Marselha em 1922 ou a de Paris em 1931, que encantam
e transformam o homem de teatro.
28 Antonin Artaud

corredores do tempo histórico da humanidade. Se em um caso,


busca-se principalmente a saúde do corpo, no outro, o corpo se
alimenta da morte para alçar-se à condição de espírito.
Dois exemplos. Primeiro: “Sou o sr. Antonin Artaud do
Himalaia mas passei por Marselha, na rua Jardim das Plantas,
4, por Esmirna, Suíça, São Malô, Prócida, Roma, Paris, Lion,
Berlim, Bruxelas, México, Irlanda” (1984b, p. 361). Segundo:

[…] e depois de ter morrido na China em um terremoto na época


de Lao-Tsé, morri no Afeganistão, nos Andes, na Etrúria, em Jeru-
salém em um monte careca que se chamava Gólgota, na França sob
Felipe, o Belo, na fogueira dos templários, em Lepanto contra Car-
los V e, finalmente, na França, em Rodez, nos espasmos de um ele-
trochoque e eis-me sempre vivo e mais e mais ativo” (1978, p. 176).

Artaud são muitos. Como afirma Ana: “essa força ‘exóge-


na’ torna-se, para sua obra, uma força ‘endógena’ por excelência”.
Daí que o pensar em Artaud – lemos no ensaio de Ana –
“é diferir de si mesmo”. E continua: “a atividade do pensamento
não vem consolidar sistemas, nem criar mundos ou estabilizá-los,
mas, ao contrário, vem desalojar incessantemente nossos mundos
vividos ou vivíveis”. O pensar em Artaud é o distanciar-se grada-
tivo de algo que o constituiria pelo alicerce chamado identitário.
Este – como assinalado, neste prefácio − se dá ontologicamente
por dobras, por processo especular, que se recobre com as cores
e as exigências da metafísica, da sociologia e da psicanálise. O
pensar em Artaud, segundo Ana, é “pós-identitário”, assim como
seu autorretrato desenhado no dia 11 de maio de 1946. Pensar é
tramar, é urdir, é escapar-se por entre as brechas dos limites dis-
cursivos impostos pela grafia de vida que apenas afiança a expe-
riência única e singular. Pela trama da fuga, pelo texto viajante,
o corpo passa a afiançar também o exercício da perda contínua
do que lhe foi dado de presente pelas circunstâncias biográficas.
Escrita ébria 29

O corpo avança pelos espaços da diferença – adentra-se


pelo terreno de algo que não é, que ainda não é e que será. Nesse
lado de fora, onde o corpo reencontra o outro do próprio corpo,
se dá o estilhaçamento da experiência sofrida em discurso poéti-
co complexo que narra exatamente o modo como esse corpo se
perdeu a si mesmo para se constituir como diferente e outro, ou
seja, como possibilidades infinitas de vidas diferentes.
Artaud incorpora o mundo físico ao mundo dito espiritu-
al, que está ao seu redor, para navegar por ambos, embora logo se
expulse a si mesmo das águas tranquilizadas e tranquilizadoras.
Ele desarticula os pares a fim de urdir tramas que descrevem
experiências sucessivas de perda − vômito, excreção anal, sêmen,
palavras. Sua narrativa poética é a história de Deus escandalosa-
mente fecal. As palavras são a maneira como o corpo vivo elimi-
na, por fragmentos de podridão, a dor que o nutre/destrói.
Escreve Nietzsche que a psicologia do orgiasmo, como
sentimento transbordante de vida e força, no interior do qual
a própria dor trabalha como estimulante, deu a ele a chave do
conceito de trágico, conceito que não fora compreendido nem
por Aristóteles nem pelos pessimistas. As palavras de Artaud vi-
vem um estágio ambíguo entre ser o que o corpo nutrido pode
vomitar ou defecar de mais denso, e o que, neles, vômito e excre-
mento, pode representar o desejo absoluto de Vida. Falamos da
vida física, falamos da vida substancial do pensamento.
A leitura do ensaio de Ana Kiffer nos leva de volta à per-
gunta enunciada pelo próprio Artaud: “O que é preciso para se
refazer um corpo?”. Em matéria de carne, a língua portuguesa é
pobre. Em francês, há a distinção entre chair, a carne no sentido
espiritual, palavra cara aos poetas simbolistas de que Artaud se
distancia mais e mais, e viande, a carne de animal que, como em
uma tela brutalista de Rembrandt, nos remete à realidade san-
grenta dos açougues. Há ainda, em francês, o termo barbaque,
30 Antonin Artaud

que é a palavra popular, tosca e direta, para falar da carne animal


de má qualidade. Nem chair nem viande. Escreve ele:

É pela barbaque 18
só por ela
que se exprime
o
aquilo que não se sabe.

Silviano Santiago
Rio de Janeiro, novembro 2014.

18
Em gíria francesa, barbaque é também usado para qualificar o corpo da prosti-
tuta. Proxeneta [ou o poeta]: marchand de barbaque.
Introdução

No decorrer deste trabalho – que se iniciou há mais ou


menos 15 anos, quando cheguei a Paris para operar o primeiro
grande mergulho na vasta obra do escritor Antonin Artaud, e
continuou posteriormente através dos vários cursos e palestras
que ministrei sobre o autor – buscava, a partir de sua obra, de-
linear e adensar o percurso de minhas pesquisas sobre as rela-
ções entre o corpo e a escrita. Traçar esse problema – essa crise,
até certo ponto – ou essa rotação que opera Artaud no seio da
literatura, por meio da reivindicação de uma presença da cor-
poralidade no texto, parece-me ainda hoje fundamental para
entendermos muitas das manifestações artísticas ocorridas no
século XX: desde a poesia letrista, a música, a poesia concreta
e a performance, que vêm expandir o campo literário (poético)
ao mesmo tempo em que repensa a noção de teatralidade; até
as posteriores explosões estéticas e políticas da corporalidade no
âmbito do teatro, da dança, das artes plásticas, enfim, da vida e
da cultura dos anos 1960 e 1970, que tiveram, como sabemos,
inúmeros pontos de contato e de diálogo com os chamados que
a obra de Artaud já desde os anos 1920 e 1930 colocava em cena.
A questão do corpo e da escrita aparecerá aqui todo o tem-
po entrecortada por esses olhares enviesados, espacial e tempo-
ralmente falando. Leio Artaud em múltiplos tempos que percor-
rem agora mesmo essa escrita. Seria impossível fazer diferente, já
32 Antonin Artaud

que li Glauber Rocha antes de ter lido Artaud; já que pensava os


parangolés de Helio Oiticica antes mesmo de chegar a Paris; ou
as performances corporais de Lygia Clark... A filosofia de Deleu-
ze e de Derrida descortinara-se ao mesmo tempo em Paris. Estu-
dante brasileira em Paris. Certamente meu olhar para a obra de
Artaud espraia-se nessa terra que agiganta corpos (“minha terra
tem mais terra” diria Oswald de Andrade!), atravessada por rit-
mos estrangeiros. Batuques que talvez apenas de raspão tenham
habitado os tambores glossolálicos de Artaud depois de Cuba.
Depois do México. Também ele mesmo voltava estrangeiro ao
velho mundo. Sei hoje que os traços da terra e a força da fome
tingiram meu primeiro olhar em direção a Artaud. Ali reconhe-
cia essa força precária e tênue que subverte os estados limites, ao
largo de sucessivos abandonos.
Mas o cerne deste trabalho se fez mesmo nessa espécie de
vertigem vivida com a obra de Artaud. Agora, passados tantos
anos, sinto-me habitar um espaço ambíguo: o de uma intimida-
de exterior. Hoje, se ainda pudesse aportar esse livro, na quina de
uma estante qualquer, diria apenas: você é um “êxtimo”!
Apesar de habitado por essas múltiplas referências, este
livro não realizou uma busca por legados da obra de Artaud.
Aliás, continuo não apostando nesse traçado linear e cronológico
que arboriza obras, traça filiações, trabalho parceiro das noções
de herança, mas também da noção de dívida. A obra de Artaud
evoca constantemente um gesto desapropriador, como veremos.
Muito pouco afeito aos territórios bem delimitados, mas, para-
doxalmente, ou talvez por isso mesmo, encerrado em uma es-
pécie de solidão que tantas vezes o expulsou das ligações, das
coalisões, dos grupos, rendendo-lhe esse tributo mitológico de
quem atravessa a história da arte na “companhia de ninguém”.
História, aliás, povoada por grupos. Grupos dos quais foi siste-
maticamente expulso. Ironicamente exilado, acabou mesmo en-
cerrado em um asilo de alienados.
Ao redor 33

Difícil não aderir a esses dois extremos: que identifica he-


ranças e dívidas, ou que, isolando-o, acaba por mitificá-lo. Este
livro não consegue superar esse problema. Mesmo que o enxer-
gue, ele permanece ali, espreitando-nos.
Prevalece aqui a leitura de sua experimentação poética e
pictural. Por isso também tornou-se importante sublinhar em
sua obra os modos como um certo “pensamento do corpo” emer-
ge e se tece, nas suas próprias realizações formais e materiais. Da
radicalidade dessas experimentações resultará um questionamen-
to profundo dos assentos estabilizados do que se costuma carac-
terizar como “obra” literária. Como veremos aqui, sua escrita
expande os limites do propriamente textual, endereçando-se ao
traço pictórico, assim como à sonoridade (muitas vezes isenta de
significado) das palavras (ainda se poderia dizer palavras?) profe-
ridas em seus poemas. O corte radical, que muitos de seus textos
operam, em relação às possibilidades de atribuição de sentido,
à linearidade discursiva, à lógica consecutiva da língua lança o
leitor ao mar aberto e ao risco de naufrágio. Não por acaso as
atribuições de “absurdo” e de “loucura” colam-se ao imaginário
superficial de recepção da obra desse escritor.
No entanto, seria importante observar que a radicalidade
de suas “experimentações” incide sobre dois grandes pilares. O
primeiro deles nos confronta ao sofrimento limite e exacerbado
pelo qual atravessou Artaud, sofrimento esse que se impõe ao
movimento de escrita de seus Cadernos de Rodez,1 assim como
das suas inúmeras cartas, desde sua correspondência com Rivière
na década de 1920 até as últimas palavras endereçadas a Paule
Thévenin, pouco antes de morrer, e logo após a censura de sua

1
Nesta “Introdução”, o leitor encontrará algumas indicações de títulos ou de au-
tores quando nos referirmos a um texto ou obra. A ideia era realmente a de não
sobrecarregar essa entrada na discussão com notas e referências. O leitor ávido
poderá endereçar-se às “Referências” onde encontrará pelo nome do autor todas
as obras aqui aludidas.
34 Antonin Artaud

gravação para a Rádio Difusão Francesa de “Para acabar com o


julgamento de deus”.
Seria preciso observar que, se, por um lado, o seu sofri-
mento radical ajuda a consolidar a apreensão e a recepção de sua
obra enquanto “caso clínico” (daí as superposições evidentes en-
tre obra e vida, assim como a ênfase incessante e preponderante
do significante da “loucura” como traço maior de atribuição de
sentido à obra); por outro lado, em uma leitura que faça circular
de modo mais potente e menos rígido os campos da subjetivi-
dade e da política, entenderemos que o sofrimento de Artaud
– assim como um certo número de questões que evoca a sua
obra – insere-se no âmbito dessas experiências limite que entre-
laçaram o sofrimento subjetivo e o sofrimento político e, desse
modo, contribuíram para desestabilizar tanto a célula individual
como “habitat natural” do subjetivo, quanto a célula coletiva ou
social como “habitat natural” do político.
A sua obra, como a de outros escritores a partir dessa mes-
ma época, potencializa o que depois veremos surgir como pro-
fundo questionamento das macroestruturas nas análises microfí-
sicas do poder, como fará, por exemplo, Foucault. Mas também
nessa rotação em direção às micropolíticas que desde Deleuze
e Guattari começam a transformar o debate e as relações entre
subjetividade e política. Não há, no entanto, nenhuma dúvida
de que o momento em que Artaud escrevia era marcado pela der-
rocada do projeto de humanidade que vinha erguendo-se desde
o século XVIII na Europa. Sua experiência se atrela e se constitui
junto à emergência das duas grandes guerras, e à consolidação
de estados de exceção, que acabam por caracterizar o século XX
como o século dos totalitarismos.
O segundo pilar que é abalado na radicalidade das experi-
mentações que faz a obra de Artaud diz respeito ao modo como
esse escritor enceta, no seio da consolidação do nazifascismo eu-
ropeu (que hoje poderíamos entender como realização extrema
Ao redor 35

do pensamento eurocêntrico, devidamente ampliado pelo con-


texto pós-colonial para além do que se delimita como sendo o
atual território europeu), a construção de um pensamento outro.
Suas referências de leitura – que se inspiram no pensamento al-
químico medieval, na cabala, no tarô, no teatro balinês e, sobre-
tudo, na sua vivência dos ritos indígenas da serra Tarahumara,
no México – soavam, aos bons olhos do homem branco, no mí-
nimo carregadas de um forte teor de “exotismo”. No entanto,
e aí está a radicalidade de sua experiência, no modo como essa
força “exógena” torna-se, para sua obra, uma “força endógena”
por excelência. Todo seu trabalho e percurso é contaminado, e
não apenas inspirado por esse fora, fazendo escapar e deslizar seu
pensamento em direção a outros mundos possíveis.
Por essa razão se poderia dizer que a leitura de Artaud exi-
ge um confronto permanente com o fato de que pensar é dife-
rir de si mesmo. Ou seja: a atividade do pensamento não vem
consolidar sistemas, nem criar mundos ou estabilizá-los, mas, ao
contrário, vem desalojar incessantemente nossos mundos vividos
ou vivíveis. É bem verdade que aliar um pensamento do corpo
à experiência da perda de si mesmo parece, a priori, paradoxal.
Isso porque, normalmente, se reivindica ao pensamento aliado
ao corpo que ele signifique a fusão entre corpo e mente (portan-
to, a incorporação de si mesmo), seja por meio da atualização de
diversas formas do que se entende ser um pensamento monista,
seja pela atribuição de um sentido que se cristalizou na moderni-
dade e que fez coincidir a noção de corpo à noção de identidade.
Sob esse aspecto, a obra de Artaud questiona a estabilidade das
relações entre os corpos e as identidades, entre os sujeitos e a
propriedade.
É nessa direção que se poderia ver surgir aí – de manei-
ra assumidamente anacrônica – o traço de um pensamento que
mais recentemente vem sendo caracterizado sob o signo do pós-
-identitário. Do mesmo modo que sua busca por perspectivas
36 Antonin Artaud

não ocidentalizantes da cultura foi posteriormente vista como


potência desconstrutora dos estratos rígidos (macropolíticos, ter-
ritorializados) e eurocêntricos.
Fica até certo ponto evidente entender, passados todos
esses anos, como Artaud foi, e ainda é, colocado no hall dos
malditos, dos loucos, dos improdutivos, dos “vândalos”. Na sua
época, essa inserção se efetuava por muitos de seus próprios pa-
res: médicos, amigos, instituições e, posteriormente, também
por grande parte do pensamento crítico. Seria preciso dizer que
perpetuar a leitura que dá ênfase apenas à experiência da loucu-
ra como constitutiva de sua obra é, de certo modo, perpetuar
essa clivagem estável, que aparta o subjetivo do político. Ver a
sua experiência da loucura fora do contexto avassalador das duas
grandes guerras – ou ainda mais longe: fora do contexto pro-
fundamente interrogativo que sua obra coloca ao modelo domi-
nante do homem branco e ocidental – significa fechar os olhos
para o entrelaçamento entre as práticas médicas e psiquiátricas,
assim como religiosas e policiais que, em determinados momen-
tos da cultura, aliaram-se às práticas de controle, isolamento, e
até mesmo de extermínio. De todo modo, é certo que a obra de
Artaud e a maneira como ele entrelaça a experiência subjetiva à
experiência política nos obriga a rever a estabilidade dos limites
que apartam uma da outra. Exigindo de nós, por conseguinte,
um novo modo de pensar em que o coletivo e o individual sejam
revistos como categorias estáveis, e revistos também em sua rela-
ção de oposição.
Por todas essas razões, dar dignidade de pensamento a Ar-
taud tornou-se um gesto crítico necessário. Discutir suas infle-
xões sobre a própria categoria do pensamento foi como traçar
um microcosmo no seio do pensamento ocidental, um micro-
cosmo que atuasse como minoração desse bloco de pensamento,
no qual majoritariamente reina o modelo do homem branco e
ocidental, como apontaram Deleuze e Guattari, na esteira de
Ao redor 37

Nietzsche, Artaud e outros. Um microcosmo que minorasse o


“pensamento claro”, como indicou Artaud e posteriormente
Derrida em suas críticas ao arcabouço iluminista e cartesiano da
filosofia ocidental. Um microcosmo que minorasse o arcabouço
ocidental do literário em proveito de sua aproximação cada vez
maior de situações-limite, tais como os efeitos glossolálicos e so-
noros dos últimos textos de Artaud, ou a estreita relação que cria
entre o traço escrito e o traço desenhado, ou mesmo sua apro-
ximação radical aos estados de perda de si nas releituras e apro-
priações que faz de Van Gogh ou Lewis Carroll, por exemplo.
Todas essas minorações participaram desse desmonte que a arte
do século XX foi operando no que diz respeito à propriedade:
propriedade de si mesmo, mantenedora da integridade tanto do
sujeito executor (autor ou artista) quanto do objeto executado
(obra de arte). Questionar esses contornos implica revisitar a no-
ção de propriedade tanto em seu sentido identitário (subjetivo)
quanto em seu sentido propriamente territorial e material (polí-
tico). Esse ato, efeito de um percurso de textos, desenhos, perfor-
mances e cartas escritas, cria uma caixa de ressonância, na qual
relações cada vez mais heterogêneas infiltram o campo artístico
– subjetiva e politicamente falando –, fazendo com que os con-
tornos e as separações hierarquizantes, delimitadoras do espaço
literário (para utilizar o termo de Blanchot), ou da partilha do
sensível (termo de Rancière) sofram abalos e assumam novas e
diferentes configurações.
É nesse contexto e em diálogo com essas contribuições,
efeitos e ressonâncias que se tornou necessário, no caso deste
livro, pensar a “obra” de Artaud enquanto gesto que aponta –
desconstruindo, reinventando, inserindo-se e muitas vezes apar-
tando-se de – o próprio ato do pensar. Retirando sua experiência
do plano do impensável, retirando os seus escritos da ordem do
impensado. Gesto preciso que reivindica também retirá-lo da
circunscrição delimitada ora pela “loucura”, ora pelo “improvi-
38 Antonin Artaud

so”. Ao contrário, nos pareceu que a operação poética de Artaud


é um questionamento profundo das categorias ou dos operadores
próprios do pensar. Certo, a poesia pensa. Ela não começou a
pensar com Artaud. Mas, de certa forma, nesse poeta, a poesia
pensa o pensamento. Singulariza-se em sua trajetória o entrelaça-
mento entre poesia, linguagem e pensamento através do corpo.
Seria o corpo locus da “crise” e da “crítica”. Como se toda a ques-
tão do pensamento fosse aqui perspectivada por meio da perda
da experiência do corpo. Ele sabe e diz: “quanto mais há pensa-
mento menos há corpo”. É desse modo que poderíamos, até certo
ponto, bordejar toda a sua aventura, repetindo como um mantra,
um eco ou um sussurro a pergunta que, nos parece, Artaud não
deixou um só minuto de evocar: “o que é preciso para se refazer
um corpo?”. O ouvido do poeta no entanto nos alerta: preciso é
necessário, mas também é precisão. Como um raio sobre a cabe-
ça. Uma faca no pescoço. Ou o golpe de uma só lamina.
O eco repete mas também multiplica toda e qualquer per-
gunta. Exigindo-nos reindagar: o corpo seria um só ou ele seria
sempre plural? Pergunta que nos transporta da evidência para a
exterioridade. Limite entre o óbvio e o invisível. Trabalhando
com essa exterioridade ou com óbvio nem sempre evidente ou,
ainda, como disse o poeta “escrevendo para analfabetos”,2 co-
meçamos a pensar com Artaud.
Hoje, temos publicados, por meio das Edições Gallimard,
28 volumes de Antonin Artaud ou 1.786 páginas na edição
Quarto Gallimard, empreendida em 2004 por Evelyne Gros-
sman.3 Com a edição revista e aumentada da obra de Artaud,

2
Artaud escreve no “Preâmbulo” para a edição de suas Obras completas: “Mais
que les mots enflés de ma vie s’enflent ensuite tout seuls de vivre dans le b a –
ba de l’écrit. C’est pour les analphabètes que j’écris” (1994a, p. 10). [Tradução:
“Mas que as palavras inchadas da minha vida se inchem em seguida sozinhas de
viver no be-a-bá do escrito. É para analfabetos que escrevo”.]
3
Seria preciso sublinhar que, quando empreendemos nossa longa pesquisa da
obra de Artaud, no período em que nos beneficiamos de um estágio doutoral
Ao redor 39

muitos dos cadernos anteriormente inéditos encontram-se pu-


blicados, ou disponíveis para os pesquisadores no setor de ma-
nuscritos da Biblioteca Nacional, em Paris.4
Em agosto de 1946 – após a proposta de publicação das
Obras completas do poeta feita por Gaston Gallimard –, ele es-
creve um texto que será o Preâmbulo e que consta no primeiro
volume publicado apenas em 1956. Mas seria somente a partir
de 1970 que a editora Gallimard empreenderia uma primeira e
nova edição revista e aumentada (assim como a publicação de
textos até então inéditos), à época sob a supervisão de Paule Thé-
venin.5 Desse modo, pode-se dizer que é a partir da década de

na França com Bolsa CAPES (1998-2000), sob a orientação na época da pro-


fessora doutora Evelyne Grossman, a mesma ainda não havia empreendido o
trabalho de fôlego que resultou na publicação de inúmeros textos inéditos do
poeta, assim como na revisão minuciosa (mas sempre atenciosa e sem deixar
de dever obviamente ao trabalho prévio) da edição anterior que começou a ser
empreendida por Paule Thevenin, logo após a morte de Antonin Artaud. Seria
hoje impossível refazer e reencontrar no seio da edição empreendida por Evely-
ne os trechos aqui citados de Artaud. No entanto, e isso é importante salientar,
a releitura de sua edição já foi obviamente empreendida por nós. Assim como
é evidente e inegável que a orientação vivida por nós no período do doutorado
com essa excepcional pesquisadora semeou incessantemente nossa aproximação
com a obra de Artaud. Mesmo que as citações não remetam à sua edição, reme-
teremos aqui inúmeras vezes o leitor à sua própria leitura, com ela discutiremos,
e adensaremos esse percurso pela obra de Artaud.
4
Durante nosso período de pesquisa na França, apenas uma parte dos manuscri-
tos do poeta estavam microfilmados. Além disso, eles eram cuidados especial-
mente por uma funcionária da BNF que “entrevistava” e “avaliava” o porquê do
interesse do pesquisador (que, no entanto, estava legalmente credenciado/ha-
bilitado) pela obra de Artaud. Controle interessante, se visto a posteriori como
mote para uma futura ficção autobiográfica de uma pesquisadora brasileira em
Paris. Hoje, toda a obra do poeta – inédita ou publicada – encontra-se mi-
crofilmada e com acesso permitido aos pesquisadores credenciados no Setor
de Manuscritos Modernos, Biblioteca Nacional Francesa, Richelieu. Tal acesso
permite uma visibilidade – que não consta na edição das Obras completas –
e que consta de modo esparso e ilustrativo na edição Quarto Gallimard, das
implicações entre desenho e escrita que permeia todo o período de criação do
poeta, que vai, grosso modo, de 1945 a 1948.
5
Paule Thévenin dirigiu junto à Editora Gallimard a publicação das Obras
completas de Antonin Artaud por toda a sua vida. Pode-se dizer que sua pró-
pria vida mudou completamente de rumo quando a então jovem estudante de
40 Antonin Artaud

1970 que a sua obra ganha fôlego de publicação e de leitura, não


sendo tal data mera coincidência. É no seio das transformações
de maio de 1968 em Paris, assim como das inúmeras manifesta-
ções que marcaram a década de 1970 em todo o mundo, que o
poeta do logo após guerra seria redescoberto e viria somar sua voz
ao corpo de reivindicações de então.
Sua trajetória foi múltipla, vasta, interrompida, e a publica-
ção de suas Obras completas, tanto a empreendida por Thévenin
quanto a mais recente de Grossman, seguiram o corte cronológi-
co para reunir a diversidade desses registros. Muitos textos de Ar-
taud são notas, no sentido tanto de anotação quanto de notação
rítmica e sonora das palavras. Desse material, seus Cadernos (tan-
to de Rodez quanto de Ivry sur Seine) estão plenos. Tornando
impossível para o leitor a tarefa de dar como “lido”, “registrado”,
“lembrado” ou “guardado” o conteúdo dessa multiplicidade de
experimentos. Mesmo após tê-los lido, continua-se diante de es-
paços turvados. Diante de uma obra que, além do título – muitas
vezes dado pelas próprias editoras, título quase sempre indicativo
ou tautológico – quase mais nada poderá se reunir sob um signo
aglutinador. A experiência da leitura ganha ela também outros
contornos, escapando, fugindo, descentrando-se. Muito pouco
se deixa “apreender”. A própria ideia de obra desmorona diante
dessa ausência de centro. Isso sem contarmos a pregnância do
traço desenhado para os seus textos, todos os que foram escri-
tos a partir de 1937. Nenhuma publicação, salvo aquelas que

medicina, a pedido de alguns amigos da época, encontra para Antonin Artaud


um asilo psiquiátrico perto de sua casa, nos arredores de Paris, em Ivry-sur-
-Seine, onde Artaud viveu seus dois últimos anos de vida. A presença constan-
te de Paule fez com que ela datilografasse inúmeros de seus textos escritos ou a
ela ditados pelo próprio autor. Esse trabalho perpetua-se e amplia-se após a sua
morte, fazendo com que a antes estudante de medicina venha tornar-se editora
de suas Obras completas.
Ao redor 41

editaram os microfilmes de seus textos,6 poderia vir à luz e ser


vendável se a sua forma escrita fosse reproduzida. Mesmo a colo-
cação na página de muitos de seus textos busca inverter a lógica
linear da leitura da esquerda para a direita, exigindo que o leitor
de seus manuscritos rode incessantemente a página para ler em
múltiplas direções os diferentes espaços utilizados pelo autor em
sua mis en page do texto. Essa ideia de um texto descentralizado
torna-se aqui um atributo crítico não apenas metafórico, mas
também literal. Material.
O primeiro corte temporal de sua obra reúne os textos da
época de sua participação no grupo surrealista, assim como sua
Correspondência com Jacques Rivière e ainda seus primeiros poemas
e prosas. Textos escritos no período que vai cronologicamente de
1913 a 1935.7 Costuma-se repartir a obra do escritor entre um “pri-
meiro” e um “último” Artaud. Um marco incide sobre tal divisão:
sua prisão em Dublin em 1937, sua deportação da Irlanda, seu
desaparecimento temporário em território francês e as sucessivas
transferências de asilo para asilo psiquiátrico na França durante a
Segunda Guerra Mundial. Em 1943, interno no asilo de Rodez,
Artaud voltaria a empreender o gesto de uma escrita e produção
incessantes que são marcas de toda sua obra. Para espanto, essa
vasta obra ganha em extensão e intensidade criadora a partir de
1943. Na primeira edição empreendida por Thévenin observa-se
que, dos 28 volumes publicados, 18 foram escritos entre 1943 e
1947, um ano antes de sua morte. Nesse período de cinco anos, a
obra do escritor, consagrado anteriormente como homem de tea-
tro, assume uma amplitude e uma complexidade ainda hoje pouco

6
Refiro-me aqui ao livro dos desenhos de Artaud: Artaud – dessins et portraits
(1986a). E, mais recentemente, ao caderno microfilmado que foi editado por
Evelyne Grossman: 50 dessins pour asassiner la magie (2004b).
7
Também na edição empreendida por Evelyne Grossman, apesar da apresen-
tação em um só grande volume, a divisão dos textos respeita a periodicidade
cronológica dos escritos de Artaud.
42 Antonin Artaud

conhecidas, se comparadas ao efeito do “primeiro Artaud”, surre-


alista e inventor do teatro da crueldade.
Este livro dedica-se de modo mais exaustivo a trabalhar
esse último período. No entanto, cabem algumas ressalvas: pri-
meiro: o poeta, que antes se dedicava ao pensar e realizar em
uma perspectiva teatral, está aqui imerso noutros registros, prin-
cipalmente os da poesia e os do desenho. Segundo: ainda assim,
Artaud não renega ou abandona as noções, ideias e criações que
participaram do primeiro momento. Ao contrário, há uma re-
leitura, uma reescritura e uma reapropriação de muitos dos seus
textos e questões anteriores.
Esse movimento de retorno e de diferenciação nos indica
a necessidade de repensar a divisão (didática, mas tendenciosa)
entre um primeiro e um último Artaud. Para tanto, sem negli-
genciar o dado histórico extensivo, propõe-se a emergência de
lugares intensivos. O primeiro deles já se situando no evento
inicial entre o texto de Artaud e a leitura do mesmo – sua Cor-
respondência com Jacques Rivière. Artaud envia em 1923 alguns
de seus poemas ao então diretor da Nouvelle Revue Française.
Jacques Rivière agradece em carta e justifica a não publicação
do poeta: “Senhor, sinto muito não poder publicar seus poemas
na Nouvelle Revue Française. Mas, eles me provocaram grande
interesse em conhecer o seu autor” (1994a, p. 23).8
Ocorre o primeiro encontro entre o poeta e o editor, en-
contro que é imediatamente revisitado por Artaud, através de
uma primeira carta:

É que a questão da recepção desses poemas é um problema de


vosso interesse tanto quanto o é para mim. Falo, claro, de sua
recepção absoluta, de sua existência literária [...]. Sofro de uma

8
“Monsieur, Je regrette de ne pouvoir publier vos poèmes dans la Nouvelle Re-
vue Française. Mais, j’y ai pris assez d’intérêt pour désirer faire la connaissance
de leur auteur.”
Ao redor 43

assustadora doença do espírito. Meu pensamento me abandona


em todos os níveis. Do simples fato do pensamento até o fato
exterior de sua materialização nas palavras [...], estou à procura
constante do meu ser intelectual [...]. É todo o problema do
meu pensamento que está em jogo. Para mim, não é nada mais
do que saber se tenho ou não o direito de continuar a pensar,
em verso ou prosa (1994a, pp. 24-5).9

Essa “recepção absoluta” de que fala Artaud – ou o ques-


tionamento da “existência literária” de seus textos – não deve ser
vista como um episódio inevitável de um primeiro encontro en-
tre um escritor e um editor, que será ultrapassado com o lança-
mento e a recepção positiva de sua primeira obra. Assim pensou
inicialmente Rivière...
Mas a intensidade das palavras do poeta acabou fazendo
com que o editor visse ali um acontecimento singular. Diante
desse acontecimento é que surge o seu desejo de publicar as car-
tas. Assim como de publicar os poemas, que foram inicialmente
julgados “impublicáveis”. Por ora atentemos para o fato de que
Artaud entrelaça todo o “sistema literário” à impossibilidade de
pensar. Tal impossibilidade manifesta-se no efeito bloqueador
de todo narrar, dizer ou escrever. Como se estivéssemos diante
de uma afasia do/no pensamento. Nenhum “encadeamento” é
possível. Tudo o que se espera articulado aí se desarticula. Esse
bloco ou massa sofreu um golpe. Não há mais articulação entre
palavra-imagem ou entre expressão-sentimento:

9
“Je souffre d’une effroyable maladie de l’esprit. Ma pensée m’abandonne, à
tous les degrés. Depuis le fait simple de la pensée jusqu’au fait extérieur de sa
matérialisation dans les mots. […] je suis à la poursuite constante de mon être
intellectuel. […]. C’est tout le problème de ma pensée qui est en jeu. Il ne s’agit
pour moi de rien moins que de savoir si j’ai ou non le droit de continuer à
penser, en vers ou en prose.”
44 Antonin Artaud

Aí está Senhor, todo o problema: ter em si a realidade insepa-


rável, a clareza material de um sentimento, tê-la até o ponto
onde ela não pode senão exprimir-se […], e aí, no momento
em que a alma se põe a organizar sua riqueza, suas descober-
tas, […], uma vontade superior e malvada ataca a alma como
um corrosivo, ataca a massa palavra-imagem, ataca a massa do
sentimento, e me deixa ofegante, como se estivesse na porta
mesmo da vida (1994a, p. 42).10

O bloco se danificou, tendo sofrido um verdadeiro ataque


(um roubo, um saque) e fazendo com que o encontro entre a
palavra e a imagem não se estabeleça, ou que a matéria a ser
expressa não chegue ao seu fim. Sem nos atermos por ora no
delimitar desse roubo ou ataque (já tão densamente feito por Jac-
ques Derrida em 1967, no texto “A palavra soprada”), atentemos
para os gestos que emergem desse roubo. Gestos que configuram
– ou reconfiguram – o espaço literário de e para Artaud. Tais
gestos poderíamos transitoriamente indicar sob a tríade de uma
escrita que (1) “empilha” pequenos restos; (2) encena a falha;
(3) combate o ataque. Gestos intensivos e lancinantes que a Cor-
respondência com Jacques Rivière possibilitou a Artaud esboçar.
Veja que já aqui, em 1923, podemos vislumbrar o que vinte anos
depois surgirá como sendo a prática de seus “desenhos-escritos”:
reunião de traços, o tremular e o falhar, os restos de palavras,
letras e ossos, figuras larvares, bestiário de informes, conjunto de
pequenas ausências.

10
“Et voilà, Monsieur, tout le problème: avoir en soi la réalité inséparable, et
la clarté matérielle d’un sentiment, l’avoir au point qu’il ne se peut pas qu’il
ne s’exprime [...]; et qu’au moment où l’âme s’apprête à organiser sa richesse,
ses découvertes [...], à cette inconsciente minute où la chose est sur le point
d’émaner, une volonté supérieur et méchante attaque l’âme comme un vitriol,
attaque la masse mot-et-image, attaque la masse du sentiment, et me laisse,
moi, pantelant comme à la porte même de la vie.”
Ao redor 45

Esses restos e falhas se apresentam na impossibilidade sen-


tida na alma, para conjugar sua expressão criadora. Há algo que
corrói a massa, o agrupamento, a reunião, o bloco, e a consistên-
cia se dilui. Seria o instante do esvaecer do ser que Artaud com
precisão expressa a Rivière: “Proust descreveu as intermitências
do coração; seria preciso agora descrever as intermitências do
ser” (1994a, p. 45).11
Um dado a mais complexifica essa equação desestabiliza-
dora do texto em Artaud:

Tristan Tzara, André Breton, Pierre Reverdy. Mas eles, a alma


deles, não está fisiologicamente tocada, ela não o é substancial-
mente atingida, ela é nos pontos em que ela se encontra com
outras coisas, mas ela não está fora do pensamento; então de
onde vem o mal, é mesmo o ar dos tempos, um milagre flutu-
ando no ar [...], ou a descoberta de um mundo novo, um alar-
gamento verdadeiro da realidade? O fato é que eles não sofrem
e que eu sofro, não apenas no espírito, mas na carne e na alma
de todos os dias. Essa inaplicação ao objeto que caracteriza a
literatura é em mim uma inaplicação à vida (1994a, p. 41).12

A inaplicação ao objeto, característica dos experimentos


dadaístas e surrealistas, não toca naquilo que para Artaud carac-
teriza uma “inaplicação à vida”, não toca no desmoronar desse
outro bloco primordial, qual seja: o da implicação, determina-

11
“Proust a décrit les intermittences du cœur; il faudrait maintenant décrire les
intermittences de l’être.”
12
“Mais eux, leur âme n’est pas physiolologiquement atteinte, elle ne l’est pas
substantiellement, elle l’est dans tous les points où elle se joint avec autre chose,
elle ne l’est pas hors de la pensée; alors d’où vient le mal, est-ce vraiment l’air
de l’époque, un miracle flottant dans l’air […], ou la découverte d’un monde
nouveau, un élargissement véritable de la réalité? Il n’en reste pas moins qu’ils
ne souffrent pas et que je souffre, non pas seulement dans l’esprit, mais dans
la chair et dans mon âme de tous les jours. Cette inapplication à l’objet qui
caractérise toute la littérature, est chez moi une inapplication à la vie.”
46 Antonin Artaud

ção, hierarquização e mesmo controle das relações entre corpo e


alma. Aí também esse par que consolida a história metafísica do
homem branco e ocidental encontra seu fracasso, oferecendo-se
o próprio autor como dejeto (resto) dessa equação malsucedi-
da entre a carne e o espírito, o corpo e a alma. A possibilida-
de da total desarticulação entre esses pares não deixa de esboçar
o semblante triste, oriundo do fracasso dessa relação tão tênue
que passou a ter o corpo com o espírito no seio do pensamento
ocidental. Nesse viés, Artaud é um dos filhos bastardos de Pla-
tão e de Descartes: tornando-se aquele que foi abandonado pela
supremacia do espírito, pela integridade da alma e pela clareza
do pensamento. A ruína de seu pensamento, sua inaplicação à
vida, essa pulverização sem centro de seu mundo interior que
pede passagem ou crédito ao editor, alarga não apenas o espaço
literário de sua época, mas ainda mais longe expande a própria
concepção de homem na cultura ocidental reinante.
Noutro viés, se poderia dizer que a insistência da dor sen-
tida em seu corpo e o abandono do espírito, sentido por ele
como essa não reunião entre o corpo e a mente, farão de Ar-
taud um discípulo forte de Rimbaud, Lautréamont, Nietzsche,
Van Gogh e outros. Outros que, como ele, sofreram a convul-
são autônoma das forças afetivas impactando ou desagregando
os núcleos identitários e os assentos do pensamento. Assentos
esses tão importantes no perpetrar da construção incessante
de almas dóceis e culpabilizadas. O desregramento dos fluxos
intensivos, esse pathos sofrido pelo corpo, indica que a singula-
ridade de Artaud está não apenas na ruína do sonho moderno
iluminista encenado pela arte desde fins do XIX até a primeira
metade do século XX, senão que em sua singular “posição da
carne”:13 que desfaz o corpo como unidade, e que, desalojando-o

13
“Position de la chair” é um texto surrealista escrito por Artaud e publicado na
N.R.F. 147 em dezembro de 1925.
Ao redor 47

dessa unidade, desfaz, ou ao menos desarruma, a lógica unifi-


cadora e organizadora do mundo.
Em sua performance14 avant la lettre, e na época censurada,
Artaud combatia, no imediato do pós-guerra (1947) a soberania
norte-americana, e dizia ser esta uma sociedade que só produ-
ziria soldados e tanques. Tratava-se ali, em tom ora profético-
-fantástico, ora delirante, de refazer o corpo humano, livrando-o
do julgamento de Deus, que se encarnava nas figuras dos áto-
mos, das bombas, da nova medicina, da manipulação genética,
das guerras bacteriológicas, e se infiltrava na forma larvar dos
micróbios ou no arranjo orgânico do corpo humano. Tal arranjo
se ergue em uma hierarquização dos órgãos (Artaud já havia fala-
do disso no texto dos anos 1930, “O teatro e a peste”), em uma
discursividade médico-política que prescreve o corpo enquanto
apenas um corpo orgânico, ou uma organização hierárquica do
aparato perceptivo do corpo, que privilegia determinados sen-
tidos, assim como busca abafar ou aniquilar outros sentidos do
corpo. Ou ainda: em uma discursividade médico-política que
delimita e hierarquiza gêneros/sexualidades, criando e identifi-
cando os corpos a serem valorizados, reconhecidos ou, ao con-
trário, apartados, aniquilados. Como sabemos, todo um desenho
de consolidação da vida, da noção mesma de vida, se ergue na
dependência da manutenção desse desenho de corporalidade.
Do tom delirante de seu combate poderíamos dizer que
estamos hoje diante de um texto quase jornalístico. Mas o im-
portante aqui a ressaltar é que toda essa reivindicação em Artaud
se atualiza em um combate às retificações e às idealizações do
corpo pleno. Combate que passeia entre todos os pequenos ou
os grandes lugares nos quais impera a lógica da “imagem e seme-

14
Referimo-nos ao texto já aludido aqui e intitulado “Para acabar com o julga-
mento de deus”.
48 Antonin Artaud

lhança”, própria aos pactos microfascistas que necessitam dessa


Gestalt identificadora, unificadora e plena.
Sabemos também que outras conexões se impõem face ao
“desarranjo” do corpo que propõe Artaud, fazendo surgir no-
vas corporalidades, algumas até mesmo incorporais. Isso porque,
fora da ideia unificada e organizada de corpo, surgem compostos
paradoxais, que são muitas vezes difíceis de serem traduzidos em
palavras encadeadas ou determinadas pelas relações pré-estabele-
cidas entre o pensamento e o corpo, entre a escrita e os corpos.
A invenção de novas escritas, como veremos, é aqui aliada dessa
criação de novos corpos de sensibilidade.
Deve-se dizer ainda que, se por um lado a reivindicação
do sofrimento que fez o poeta propiciou inúmeras leituras de sua
obra e vida como “caso clínico”, por outro, deve-se escutar nessa
mesma reivindicação uma resistência implacável de quem não
aderiu facilmente às tendências da época. Assim sendo, “o sofri-
mento”, “a doença do espírito”, “a inaplicação à vida” – sentidas
na carne – vão concentrando certa problemática do pensamento
e da literatura em torno do corpo. Lugar para onde o poeta leva
seus leitores e justifica a permanência dessa obra para além dos
“ismos” modernos abrindo, a posteriori, toda uma nova perspec-
tiva para o pensamento e a arte de nosso tempo.

***

A relação fundamental que se estabeleceu entre Artaud e Ri-


vière terá um alcance mais amplo do que aquele que a caracteriza
apenas enquanto evento fundador de uma obra. Isso porque será
na e por meio dessa correspondência que o poeta lançará as bases
de sua problemática. Segundo o próprio Artaud, tal problemática
se faz em torno de uma erosão do pensamento. O reconhecimento
do outro, no caso, o editor-leitor, residiria no direito à continuida-
de da implacável busca de seu próprio pensamento. Ressaltemos
Ao redor 49

aqui um lugar intensivo que marca toda a obra de Artaud, seja ela
“em verso ou prosa”: lugar de erosão do pensamento. Trata-se de
“se refazer”. Seria menos a “cura da doença do espírito” e mais o
constante refazer-se. É a partir dessa erosão primeira que Artaud
buscará até o fim de sua vida refazer-se. Observa-se a incidência
já inicial do prefixo “re”, ou seja: fazer-se de novo, como traço que
depende de um perder-se de novo. Nesse sentido, trabalharemos
intensivamente sobre uma questão que se coloca desde o início
para Artaud: refazer-se da erosão do pensamento na construção de
uma escrita que a suporte.15 Certo, observa-se uma radicalização
dessa questão nos últimos anos de vida do poeta, assim como a
inclusão de novas perspectivas para realização ou “materialização”
dessa escrita-pensamento. Essa questão será analisada intensiva-
mente, não se caracterizando como inicial ou final, e sim como
uma constante marcada por inflexões diferenciadoras.
Uma grande inflexão foi o silêncio de Artaud, se não esquece-
mos de sua Correspondência com Jacques Rivière, onde já se pode ob-
servar que se tratava de “escrever isso ou não escrever nada” (1994a,
p. 29).16 Em 1936, o poeta parte rumo ao México, onde busca en-
contrar “as bases vivas de uma cultura cuja noção parece aqui se
desagregar” (1973, p. 157).17 A procura dessa noção viva de cultura
aparece na imagem do fogo, dos vulcões mexicanos, dos ritos vivos
da serra Tarahumara. Artaud retorna em 1937 a Paris e parte logo
em seguida para a Irlanda. Sobre sua estada na Irlanda, se sabe que
o poeta foi preso em Dublin – acusado de distúrbio da ordem pú-
blica – e deportado para uma França já ocupada pelo nazifascismo
europeu. Ali começa seu percurso por inúmeros asilos psiquiátricos

15
Apenas para sublinhar que a noção de suporte deve ser entendida no sentido
plástico e material com o qual Artaud não deixará de se debater.
16
“Mais la question pour moi est de savoir s’il vaut mieux écrire cela ou ne rien
écrire du tout.”
17
“C’est peut-être une idée baroque pour un Européen d’aller rechercher au
Mexique les bases vivantes d’une culture dont la notion semble s’effriter ici”.
50 Antonin Artaud

franceses. De 1939 a 1942, Artaud desaparece do cenário europeu,


internado no hospício de Ville Évrard – onde permanecerá até 1943,
quando será transferido para o asilo de Rodez, cuja vantagem era a
de ser zona livre durante a Segunda Guerra. De sua partida para a
Irlanda e ainda durante seu internamento em Ville-Évrard, no perí-
odo de 1937 a 1939, Artaud empreende uma nova forma de corres-
pondência, cercada de atributos mágicos, reconhecidos como sorts.18
O suporte é queimado, macerado, tingido; as palavras, em parte
desfazendo-se e em parte saltando da página, endereçam-se aos ami-
gos ou àqueles a quem o poeta julga dever enviar um “aviso” (“ceci
est un avertissement”, diz Artaud em Sort, enviado a Hitler!). Cre-
ditadas de uma eficácia física e não apenas simbólica, essas cartas
– portadoras de sorte ou de azar, bordejando o destino – já indicam
essa rotação radical do suporte escriturário em seu diálogo profundo
com um pensamento erodido.
Após 1939 e até 1943, mesmo que Artaud não tenha parado
de escrever, muito pouco ou quase nada chegou à publicação, pois,
mais comumente, se reteve na administração do hospital ou, pos-
teriormente, em mãos de colecionadores. Será efetivamente a partir
de Rodez que se caracterizará o retorno “público” do poeta, onde o
silêncio anterior será lembrado, no poema escrito em abril de 1947:

dez anos que a linguagem partiu,


no seu lugar entrou
esse trovão atmosférico,
esse raio,
diante da pressão aristocrática dos seres,
de todos os seres nobres [...]
(1995a, p. 55).19

18
Abordaremos com maior atenção esse item no segundo capítulo.
19
“dix ans que le langage est parti,/ qu’il est entré à la place/ ce tonnerre atmos-
phérique,/ cette foudre, / devant la pressuration aristocratique des êtres,/ de
tous les êtres nobles [...]”. Todos os textos relativos aos desenhos do poeta que
Ao redor 51

A linguagem partida, ao lado da erosão do pensamento,


é o lugar onde iniciamos nosso estudo sobre Artaud. A lingua-
gem partida adentra a escrita de Artaud, ela coloca à escrita uma
questão própria e particular. Não sendo somente silêncio, mas
também fratura, tal linguagem terá que se refazer. Tocamos aqui
no cerne do desenvolvimento da questão do pensamento coloca-
da inicialmente: erosão do pensamento; e agora também erosão
da linguagem. Não se trata absolutamente da impossibilidade de
materializar um pensamento furtivo em palavras, mas de cons-
truir uma linguagem passível de suportar a sua própria fratura.
O retorno à linguagem traz consigo a experiência do seu desapa-
recimento. O poeta terá, a partir de então, o trabalho com uma
matéria prima que partiu e que se partiu. Terá o reconhecimento
– na carne – de uma ossatura que se quebrou:

[…] digo então que a linguagem separada é um raio que fiz vir
agora no fato humano de respirar, o qual meus golpes de lápis
sobre o papel sancionam. E desde certo dia de outubro de 1939
nunca mais escrevi sem também desenhar (1995a, p. 56).20

Se de algum modo essa linguagem que se partiu é também


separação, e Artaud o diz, ela – em seu “retorno” nos golpes de
lápis – seria sanção de sua própria fratura. Tal fratura é indicada
por Artaud como uma nova prática da linguagem, na qual uma
escrita-desenho vai se fazer.
Neste livro, procuraremos desenvolver as questões do
pensamento e da linguagem, tais quais levantadas por Artaud,

não foram extraídos de suas Obras completas referem-se ao catálogo do Museu


de Marseille citado (1995a).
20
“[…] je dis donc que le langage écarté c’est une foudre que je faisais venir
maintenant dans le fait humain de respirer, laquelle mes coups de crayon sur
le papier sanctionnent. Et depuis un certain jour d’octobre 1939 je n’ai jamais
plus écrit sans non plus dessiner.” 
52 Antonin Artaud

perseguindo essa nova prática de uma escrita-desenho. Tomare-


mos as construções poéticas e plásticas realizadas entre 1945 e
1946 no asilo de Rodez e, posteriormente (de 1946 a 1948), no
asilo de Ivry-sur-Seine, já em Paris, onde o poeta passa seus dois
últimos anos de vida. Ligadas pelo “traço de união”,21 escrita e
desenho serão pensados como uma nova prática da linguagem
partida. Como sugerimos aqui: uma prática-plástica do traço. A
ideia de traço não se resume ao hífen. Veremos como ela opera
no discurso de Artaud, em que as relações com a ideia de linha
serão índices significativos para se pensar no refazer da lingua-
gem no poeta.
Ao lado das criações poéticas e plásticas ou de seus dese-
nhos-escritos, analisaremos mais detidamente seu último livro
de poesias, cujo gérmen brota em fevereiro de 1946. Sem ser o
último texto de Artaud, Suppôts et suppliciations é um agrupar
de textos feito pelo próprio poeta que, como lembra Paule Thé-
venin, “participa desses livros por ele escritos e por ele colocados
como que em suspensão na vida” (1978a, nota introdutória da
editora).22 Nessa obra, Artaud realiza em toda sua radicalidade
as questões do pensamento e da linguagem que lhe são próprias.
Sua complexidade espantosa o fez ser um livro pouco abordado,
senão excluído, dos muitos trabalhos sobre Artaud. Livro onde
Artaud procura reunir sua busca, condensar sua trajetória e as
questões que a atravessaram. Livro em que se veem esboçados os
destinos encontrados pelo poeta para as questões que desde sem-
pre o afligiram. Porém, em Suppôts et suppliciations, teremos que
observar que a “doença do espírito”, descrita por Artaud a Riviè-

21
Tais construções são nomeadas dessins-écrits. Importante lembrar que em fran-
cês dizemos trait d’union para hífen.
22
“Suppôts et Suppliciations est le dernière recueil des textes qu’il ait composé,
renouant avec une forme qui lui est propre, celle de l’Ombilic des limbes ou du
Pèse-Nerfs suivi des Fragments d’un Journal d’Enfer, ces livres dont il écrivait
qu’il les mettait en suspension dans la vie.”
Ao redor 53

re como fuga, perda, falta, erosão ou desperdício do pensamento,


passa a ser mais radicalmente imposta ao seu próprio corpo.
Suppôts et suppliciations é a concentração de sua problemá-
tica no interior de um pensamento erodido e de uma linguagem
fraturada, que incidirá na busca por se tomar ou se refazer um
corpo. Conjugação das forças poéticas em confronto último com
a ausência de todas as forças. Para o poeta, a primeira parte do
livro, que se intitula “Fragmentações”, pretende ser “uma espécie
de revisão ofegante da cultura, uma abracadabrante cavalgada
do corpo através dos totens de uma cultura arruinada antes de
ter tomado corpo”. Da segunda, “Cartas”, o “corpo sofrendo
empreende essa cavalgada e se descobre”. Da terceira, “Interjei-
ções”, não se trata mais de cultura nem de vida, mas “dessa espé-
cie de inferno não criado, onde o corpo do homem sufoca antes
mesmo de começar a respirar” (1978a, p. 9).23
Se o poeta já colocava a erosão do pensamento no plano
de uma falência do corpo frente às reivindicações de uma “doen-
ça do espírito”, aqui, em Suppôts et suppliciations, trata-se de pôr
em questão o próprio corpo, e, por consequência, a própria noção
de espírito. Observa-se a crítica aguda aos “totens de uma cultura
arruinada”, a fragmentação desses mesmos totens ou despedaça-
mento das noções incutidas no corpo ocidentalizado. A “caval-
gada do corpo” manifesta-se para Artaud como necessariamente
humana, daí sua necessidade em inserir suas cartas, todas enviadas
aos amigos entre 1946 e 1947, e que apresentam o momento de
“descoberta do corpo”, em que “se vê claramente que se trata de

23
“La première constitue une espèce de révision haletante de la culture, une abra-
cadabrante chevauchée du corps à travers tous les totems d’une culture rui-
née avant d’avoir pris corps. Dans la seconde, le corps souffrant qui entreprit
cette chevauchée se découvre: […]. Dans la troisième, il n’est plus question: de
culture, ni de vie, mais de cette espèce d’enfer incréé où le corps de l’homme
suffoque avant de commencer à respirer, […].”
54 Antonin Artaud

um homem e não de um espírito” (1978a, p. 9).24 Procuraremos


desenvolver as relações evocadas pelo poeta entre carta e corpo.
Lembrando que, na língua francesa, trata-se de lettre; leia-se: carta
ou letra. Seria nesse trabalho “ao pé da letra” que a linguagem
fraturada, fragmentada, poderia refazer o corpo. No entanto, não
se trata de uma conquista evolutiva, em direção ao corpo pleno na
liquidação da fratura, da erosão, do detrimento. Artaud alerta: as
“Interjeições” não se relacionam mais nem com a cultura nem com
a vida (signos dos dois primeiros momentos, “Fragmentações” e
“Cartas”, respectivamente). Mas, participando desse “inferno não
criado”, elas incidem um corpo-afeto no corpo da língua.

***

A partir desses três gestos poéticos que compõem Suppôts


et suppliciations, pensamos o desenvolvimento das questões que
serão aqui tratadas. Assim, o primeiro capítulo deste trabalho,
“Fragmentações”, pretende introduzir a reivindicação de um
pensamento poético que não esteja separado da vida. Certo, tra-
ta-se de um pensamento que não se pretende sistema ou teoria.
Procuraremos mostrar que esse pensar introduz um questiona-
mento daquilo que o poeta chamou de “totens culturais” e que
não deixa de incidir sobre todo um corpo de conceitos. Para que
se possa acompanhar Artaud e indicar algo desse pensamento
poético, torna-se necessária uma aproximação dessa língua parti-
da do poeta, assim como a compreensão de um desejo de eficácia
com a própria língua que se constitui em torno de sua acepção de
crueldade. Só na aproximação da singularidade dessa linguagem
é que se poderia questionar a presença da negativa, fundamental
em seus poemas de Suppôts et suppliciations e que participa do

24
“Dans la seconde, le corps souffrant qui entreprit cette chevauchée se découvre:
et on voit bien qu’il s’agit d’un homme qui est un homme et non un esprit.”
Ao redor 55

gesto mais amplo de fragmentar os corpos conceituais e doutri-


nários, ou como disse: os “totens culturais”.
O segundo capítulo busca intensificar uma pesquisa sobre
a singularidade de sua poética. Procurando precisar a constru-
ção da, e na língua, a partir de um aprofundamento da ideia de
eficácia introduzida no capítulo anterior. Aqui, esta ideia será
desenvolvida na relação que as “Cartas” (lettres) mantêm com a
construção de sua linguagem poética (lettre), tendo como hori-
zonte o questionamento do ser (l’être) em proveito de um refazer
do corpo: “Lettres, lettre, l’être”.
O terceiro capítulo, “Interjeições”, investe em uma refle-
xão mais aprofundada dos desenhos-escritos, de suas realizações
poético-plásticas, vistas sob o ângulo da interjeição. Trata-se des-
se inferno não criado, nem de vida, nem de cultura. Trata-se
desse raio fulminante, desse golpe de lápis. Assim, buscaremos
os gestos desse traçar ou uma introdução no universo plástico
de Artaud: analisaremos mais detidamente a função autônoma
assumida pela letra no interior dos seus cadernos, assim como
nos seus desenhos-escritos.
Como todo livro, este aqui também é um livro local.
Parcial. Que insiste, nessa parcialidade, em dizer que a obra
de Artaud ressoa e ecoa como uma intensa reivindicação. Não
acreditar no dado, naquilo que parece ser “natural”, buscar no
não criado a própria força da criação. Não exatamente como
um critério modernista da ruptura ou do novo, mas, como gesto
de refazimento incessante da vida, como modo de atualização
permanente de virtualidades, ou, se preferirem, como insistência
de fazer penetrar no seio do irrespirável, que entendemos ser o
mundo possível, um pouco desse ar denso e fundo de um im-
possível porvir.
Ter pesquisado a obra de Artaud não significou apenas a
produção de um “conhecimento” acerca de um autor, de um perí-
odo da história da arte ou do pensamento (sinceramente o menos
56 Antonin Artaud

importante de tudo isso aqui). De algum modo, estudar Artaud


se impôs e se impõe como um gesto permanente, no qual desa-
prender torna-se muitas vezes mais importante do que aprender.
Experiência estranha, alheia e distante de tudo aquilo diante do
qual nos formamos. Uma experiência, sob esse aspecto, deforma-
dora. Esse convite – às vezes um chamado, às vezes uma exigência
cruel – permanece vivo, mesmo tendo passado tantos anos daque-
le primeiro e vertiginoso contato com a sua obra. Chamado que
lanço agora ao leitor. Na tarefa, bem sei, às vezes árdua, às vezes
frenética... na tentativa de se aproximar de um regime em que as
palavras coagulam, no seio dessa estação pesa-nervos do poeta, em
que as palavras estrangulam. E já falar não há.
Capítulo 1
Fragmentações

1.1. A língua partida ou “dez anos que a linguagem partiu”

Em abril de 1947, Artaud escreve o longo poema que as-


sim se inicia “dez anos que a linguagem partiu, que no lugar
entrou esse trovão atmosférico, este raio” (1995a, p. 55).1 O po-
ema nos introduz em um universo de retorno, de reapropriação
e reconstrução de uma linguagem poética. Artaud discute com o
silêncio que lhe foi imposto, com o aprisionamento asilar, com
os frágeis limites entre razão e desrazão, traços presentes desde os
manifestos surrealistas nas cartas enviadas aos reitores das uni-
versidades europeias ou aos médicos-chefes dos asilos de loucos
(1993). Mas, além da crítica e combate às instâncias de poder,
nesse texto somos levados a buscar certa especificidade na cons-
trução da linguagem poética de Artaud. À sua crítica e combate
anterior vinha somar-se a experiência vivida, o sujeitar-se a essas
mesmas instâncias outrora denunciadas. Assim, no poema, como
na maior parte de todos os seus textos escritos a partir de Rodez,
encontramos o que, por ora, chamaríamos de certa incorporação
à letra, à singularidade sintática, ao ritmo, ou como disse Jean

1
“dix ans que le langage est parti, qu’il est entré à la place ce tonerre atmosphé-
rique, cette foudre.”
58 Antonin Artaud

Michel Rey: “a poesia contamina toda a língua” (1991, p. 26).


Poder-se-ia dizer que tal processo de contaminação poética re-
aliza na língua tanto sua crítica “aos totens culturais” (presente
desde seus primeiros textos) quanto a crise da própria linguagem
– que é partida porque se separou do poeta, mas também porque
seria ela mesma uma fratura. Nesse sentido, para que possamos
tornar mais claro esse movimento de materialização ou de rea-
lização, na linguagem, de sua própria fratura – de certa junção
entre crítica e crise2 ou entre pensamento e corpo – propomos
percorrer detidamente as duas versões dos textos sobre o teatro
da crueldade. Acreditamos que a confrontação entre esses dois
textos – o primeiro escrito em 1932-33 e o segundo, em 1947
– permitirá esboçar algo disso que nomeamos como materializa-
ção da linguagem poética de Artaud, para que, aí sim, possamos
refletir sobre as aberturas e os efeitos que ela irá provocar, como
mostrará o poema “Dez anos que a linguagem partiu”. A escolha
dos textos sobre a crueldade, não sendo aleatória, incide exata-
mente sobre a relação da crítica e da crise. Em torno à acepção de
crueldade, encontram-se as bases dessa junção ou da reivindica-
ção de um pensamento que não estaria separado da vida.3 Ainda

2
Certo retorno às origens etimológicas das palavras, reivindicado por Artaud,
poderia também aqui indicar a junção crítica e crise. Aliás, é exatamente o que
o poeta clama para se compreender sua noção de crueldade já em seu primeiro
texto-carta, escrito em 1932, ele diz: “Et je revendique, ce faisant, le droit de
briser avec le sens usuel du langage, de rompre une bonne fois l’armature, de
faire sauter le carcan, d’en revenir enfin aux origines étymologiques de la langue
qui à travers des concepts abstraits évoquent toujours une notion concrète”
(1994b, p. 97). [Tradução: “E assim fazendo reivindico o direito de quebrar
com o sentido usual da linguagem, romper de uma vez por todas a armadura,
explodir a carcaça, voltar, enfim, às origens etimológicas da língua, que através
de conceitos abstratos evocam sempre uma noção concreta”]
3
Neste momento, nos interessa assinalar que essa não separação entre pensamen-
to e vida em Artaud seria uma reivindicação singular que muito se confundiu
com o “estudo do caso Artaud”. Assinalamos que neste livro procuraremos dis-
cutir tal questão. Por ora, vale dizer que tal reivindicação se insere para nós nisso
que Jacques Derrida conceituou como sendo da ordem da aventura: “Si Artaud
résiste absolument – et, croyons-nous, comme on ne l’avait jamais fait aupara-
Fragmentações 59

além: o projeto de um teatro da crueldade vai atravessar a ex-


periência criadora do poeta, enunciando-se, desse modo, como
mais um lugar intensivo que vem questionar a ruptura entre um
primeiro e um último Artaud.
Na década de 1930, a experiência criadora do poeta visa-
va refazer as categorias teatrais por meio de uma reflexão poé-
tica e plástica sobre a linguagem cênica. A crueldade teria sido
a abertura para um teatro que fosse, por um lado, experiência
viva que não se repete e, por outro, a possibilidade de recons-
truir uma linguagem (cênica) atravessada pelo corpo. Como se
sabe, as experiências teatrais de Artaud acabariam fracassando.
No entanto, seu retorno criador viria finalmente realizar o pro-
jeto cruel, reiventando plástica e poeticamente a noção outrora
irrepresentável. Uma análise que, por um lado, contemple o en-
tendimento dessa noção de crueldade em Artaud e, por outro,
que possa indicar nas transformações mesmas do uso da língua
a realização de tal noção é o que se procura aqui esboçar.
O texto escrito em 1932, intitulado “O teatro da cruelda-
de – primeiro manifesto”, tem sua primeira edição na Nouvelle
Revue Française, número 229, em outubro do mesmo ano. Nesse
texto, conforme indica o subtítulo, Artaud procura lançar uma
proposta e sua programática. Texto manifesto que participaria
de toda uma política de intervenção das vanguardas.
Em sua pretendida transformação do teatro, Artaud busca
uma renovação da linguagem cênica; no entanto, suas reflexões

vant – aux exégèses cliniques et critiques – c’est par ce qui dans son aventure
(et par ce mot nous désignons une totalité antérieure à la séparation de la vie et
de l’oeuvre) est la protestation elle-même contre l’exemplification elle-même”
(1967, p. 261). [Tradução: “Se Artaud resiste totalmente – e, cremo-lo, como
ninguém mais o fizera antes – às exegeses clínicas ou críticas, é porque na sua
aventura (e com esta palavra designamos uma totalidade anterior à separação
da vida e da obra) é o próprio protesto contra a própria exemplificação”. Edição
brasileira: DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz
Marques Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho. 4 ed. São
Paulo: Perspectiva, 2004, p. 257. – (Estudos; 271 / dirigida por J. Guinsburg).]
60 Antonin Artaud

sobre a linguagem extrapolam o espaço cênico e incorporam uma


reflexão sobre o que é próprio à linguagem. É ainda nesse sentido
que se torna necessário esclarecer a assertiva de Artaud sobre o
rompimento com a sujeição do teatro ao texto – assertiva que ge-
rou inúmeras confusões acerca de sua proposta inovadora. Pois
não se trata de um rompimento com a palavra, com a linguagem
e uma “pregação” de um teatro fora da linguagem, teatro mími-
co ou sustentado inteiramente pela proposta do improviso cêni-
co. Há certamente nessa assertiva de Artaud uma crítica ao texto
literário que, centrado nos avatares da autoria, faria do espaço
cênico uma ditadura do psicológico, do mimetismo do diretor
em relação ao autor, sujeitando, em última instância, o teatro e a
criação a um texto anterior. Assim, pode-se observar que o que o
poeta clama é pela possibilidade de criar uma linguagem que, se,
por um lado, dialoga com o texto anterior – com a gramática que
nos sujeita –, também cria brechas e inaugura espaços, como dirá
mais tarde sobre Lewis Carroll: “On peut inventer sa langue et
faire parler la langue pure avec un sens hors grammatical, mais il
faut que ce sens soit valable en soi, c’est à dire qu’il vienne d’affre
[…]”4 (1979b, p. 170). Ora, não se trata de uma aniquilação da
linguagem, do texto, da palavra, mas, como disse ainda o poeta,
trata-se de “quebrar o sentido usual da linguagem, de romper
com sua armadura, de explodir a carcaça” (1994b, p. 97). Já
aqui encontra-se no pensamento de Artaud certa materialidade,
já que a linguagem está presente em sua própria ossatura. Veja-
mos: Artaud opõe uma expressão dinâmica no espaço às possi-
bilidades de expressão por meio da palavra dialogada. O teatro
poderia arrancar da palavra suas possibilidades de expansão fora
das palavras, de desenvolvimento no espaço, de uma ação disso-

4
Tradução: “Pode-se inventar uma língua própria e fazer falar a língua pura com
um sentido extragramatical, mas esse sentido deve valer por si mesmo, isto é,
sobrevir do pavor”.
Fragmentações 61

ciativa e vibratória sobre a sensibilidade: “É aqui que intervêm as


entonações, a pronúncia particular de uma palavra” (1994b, p.
87).5 Ora, o poeta nos envia para o aparentemente fora da pala-
vra (claro que explorando as especificidades de uma linguagem
cênica, tais como: espaço, objetos, movimentos, atitudes, gestos)
para reafirmar a singularidade de uma palavra. Palavra que so-
freria a intervenção de um movimento de expansão, de espacia-
lização, de dissociação e de vibração, gerando, segundo o autor,
“uma reunião de signos à maneira de um alfabeto”. Aqui, já não
estamos longe das realizações poéticas e plásticas que Artaud faz
a partir de 1945, como veremos. Entendido, portanto, que não
se trata de aniquilar a palavra e, por conseguinte, o texto; mas
da criação de uma especificidade tanto para uma quanto para
o outro por meio de uma rigorosa reflexão sobre a linguagem,
que nesse momento dos anos 1930 visava a uma incorporação
da palavra e do texto ao ato cênico, ao corpo do próprio ator, à
arquitetura mesma do espaço teatral. Tal incorporação se ofere-
cia ao autor por intermédio de um processo de contaminação
poética dos meios teatrais, de maneira que, reunidos, formassem
um “novo alfabeto”.

5
“Et ce que le théâtre peut encore arracher à la parole, ce sont ses possibilités
d’expansion hors des mots, de développement dans l’espace, d’action dissocia-
trice et vibratoire sur la sensibilité. C’est ici qu’interviennent les intonations,
la prononciation particulière d’un mot. C’est ici qu’intervient, en dehors du
langage auditif des sons, le langage visuel des objets, des mouvements, des atti-
tudes, des gestes, mais à condition qu’on prolonge leur sens, leur physionomie,
leurs assemblages jusqu’aux signes, en faisant de ces signes une manière d’alpha-
bet.” [Tradução: “E aquilo que o teatro ainda pode extrair da palavra são suas
possibilidades de expansão fora das palavras, de desenvolvimento no espaço,
de ação dissociadora e vibratória sobre a sensibilidade. É aqui que intervêm as
entonações, a pronúncia particular de uma palavra. É aqui que intervêm, fora
da linguagem auditiva dos sons, a linguagem visual dos objetos, movimentos,
atitudes, gestos, mas com a condição de que se prolonguem seu sentido, sua fi-
sionomia, sua reunião, até chegar aos signos, fazendo desses signos uma espécie
de alfabeto”. Edição brasileira: ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Trad.
Teixeira Coelho. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 101-2.]
62 Antonin Artaud

O rigor presente nas suas reflexões sobre o teatro viria a ser


a base de sua noção de crueldade. Em sua origem, a crueldade se
afasta do improviso cênico, da inspiração no sentido de gratui-
dade criadora. Crueldade é atrelada à aplicação, à determinação
implacável de uma ideia. Importa-nos ressaltar dois movimentos
na definição de crueldade. Primeiro: sua relação com a lingua-
gem e com o pensamento. Segundo: a escrita mesma do poeta
nesse primeiro momento de aparição dessa “noção concreta”. À
guisa de definição, nos atemos agora à carta enviada por Artaud
à Jean Paulhan em setembro de 1932:

Não se trata, nessa crueldade, nem de sadismo nem de sangue,


ao menos não de um modo exclusivo. Eu não cultivo sistemati-
camente o horror. Essa palavra deve ser tomada em um sentido
largo, e não no sentido material e rapace que lhe serve habitu-
almente. […] É possível imaginar muito bem uma crueldade
pura, sem dilaceramento carnal. E, filosoficamente falando, ali-
ás, o que seria a crueldade? Do ponto de vista do espírito, cruel-
dade significa rigor, aplicação e decisão implacável, determinação
irreversível, absoluta. O determinismo filosófico mais corrente
é, do ponto de vista da nossa existência, uma das imagens da
crueldade (1994b, p. 97, grifo meu).6

Nessa primeira definição, a relação da noção de crueldade


com o pensamento é explorada através de um diálogo com a

6
“il ne s’agit pas dans cette Cruauté ni de sadisme ni de sang, du moins pas de fa-
çon exclusive./ Je ne cultive pas systématiquement l’horreur. Ce mot de cruauté
doit être pris dans un sens large, et non dans le sens matériel et rapace qui lui
est prêté habituellement. […]. / On peut trés bien imaginer une cruauté pure,
sans déchirement charnel. Et philosophiquement parlant d’ailleurs qu’est-ce
que la cruauté? Du point du vue de l’esprit cruauté signifie rigueur, application
et décision implacable, détermination irréversible, absolue. Le déterminisme
philosophique le plus courant est, du point du vue de notre existence, une des
images de la cruauté.”
Fragmentações 63

filosofia. Porém, é preciso dizer que a experiência do pensamen-


to em Artaud, apesar de muito intensa e fundamental para a
construção de sua obra, não se estabelece no interior de sistemas
consolidados. Por isso também a crueldade, para o poeta, não
significa um “cultivo sistemático do horror”. Sua produção/ex-
periência com o pensamento é composta de afetos, de vértices
sensíveis, e de um gesto de combate à clausura dos sistemas e
das doutrinas. Isso alimenta seu confronto com os conceitos e
com o mundo das ideias, mas sempre exigindo um desalojar dos
assentos instituídos. Ele costuma dizer que no trabalho com a
linguagem se poderia atravessar os conceitos abstratos para deles
obter uma “noção concreta”. Exterior ao pensamento sistêmico,
mas ainda assim dialogando/perfurando os conceitos abstratos,
Artaud pode oferecer à filosofia e seu determinismo o espelho da
crueldade. Essa crueldade aqui inserida no campo do pensamen-
to torna-se consciência, lucidez, rigor. Afastando-se da barbárie,
o poeta aí nos insere:

A crueldade é antes de tudo lúcida, uma espécie de direção


rígida, submissão à necessidade. Não há crueldade sem cons-
ciência, sem um tipo de consciência aplicada. É a consciência
que daria ao exercício de todo ato de vida sua cor de sangue,
sua nuança cruel, pois se sabe que a vida é sempre a morte de
alguém (1994b, p. 98).7

Gostaria que lêssemos essa repetição da consciência, no tre-


cho anterior, como um apelo, uma chamada, aquilo que o poeta
irá diferençar como sendo uma ideia metafísica e uma “tentação

7
“La cruauté est avant tout lucide, c’est une sorte de direction rigide, la sou-
mission à la nécessité. Pas de cruauté sans conscience, sans une sorte de cons-
cience appliquée. c’est la conscience que donne à tout acte de vie sa couleur de
sang, sa nuance cruelle, uisqu’il est entendu que la vie c’est toujours la mort de
quelqu’um.” 
64 Antonin Artaud

metafísica” (1994b, p. 87).8 Ou, ainda, como ele mesmo diz acerca
de sua tomada de consciência, em carta à Jean Paulhan: “Querido
amigo, a crueldade não foi acrescentada ao meu pensamento, nele
ela sempre existiu, mas me foi preciso disso tomar consciência”
(1994b, p. 98).9 Somos chamados pelo texto a tomar consciência.
O “Teatro da Crueldade” pretende chamar à consciência, e ain-
da aplicar a consciência. Como se recebêssemos um convite para
adentrar uma “filosofia prática”, uma imbricação crescente entre a
experiência do pensamento e a criação da vida.
Assim como é necessário sair da palavra para ser reenviado
a uma palavra, é necessário sair da consciência sistêmica dos con-
ceitos abstratos para se adentrar em uma “aplicação da consciên-
cia – noção concreta”. O concreto residiria no gesto mesmo de
perfurar o abstrato. Isso para o poeta é aplicar a consciência; que-
brar a carcaça da linguagem; reencontrar as palavras para além
dos muros ou das grades de sentido, representação e conceitos a
que estariam fadadas. O apelo ao leitor é também cruel, aplica-
ção da consciência, explosão da noção concreta sobre o solo mais
cotidiano do viver que assevera: “já se sabe que a vida é sempre a
morte de alguém”. Frase que ressoa e ecoa, em uma consciência
que vaza qualquer definição de psicologia da consciência. Seria
nesse apelo, por meio da tentação, que Artaud clamaria por uma
consciência do leitor diante da crueldade. Ora, essa participa-
ção aqui, nesse primeiro escrito sobre a crueldade, aparece como
visada crítica em um movimento em que importa tomar cons-
8
Artaud assim difere o que entende por metafísica nesse espaço da crueldade:
“La question d’ailleurs ne se pose pas de faire venir sur la scène et directement
des idées mátaphysiques, mais de créer des sortes de tentations, d’appels d’air
autour de ces idées”. [Tradução: “A questão não é fazer aparecer em cena, dire-
tamente, ideias metafísicas, mas criar espécies de tentações, de atmosferas pro-
pícias em torno dessas ideias”. Edição brasileira: ARTAUD, Antonin. O teatro
e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.
102-3.]
9
“Cher Ami, La Cruauté n’est pas surajoutée à ma pensée, elle y a toujours vécu:
mais il me fallait en prendre conscience.” 
Fragmentações 65

ciência. Aqui, a escrita crítica do poeta poderia ser vista como


um gesto críptico. Artaud escava a consciência, perfura os con-
ceitos abstratos e oferece sua noção concreta. Tal concretude,
propomos, visaria menos a uma programática (manifesto) e mais
à necessidade de se localizar uma crise. Discurso crítico, gesto
críptico para localizar concretamente a crise.
Artaud escreve, em 1933, “O teatro da crueldade”; trata-se
aqui de relacionar as ideias (vide a conjunção aditiva “e”) e não
de manifestar um novo teatro, e seria exatamente nesse texto que
o poeta declararia:

Essa separação entre o teatro de análise e o mundo plástico nos


aparece como uma estupidez. Não se separa o corpo do espírito,
nem o sentido da inteligência, sobretudo em um domínio onde o
cansaço sempre renovado dos órgãos tem a necessidade de cho-
ques bruscos que reavivem nosso entendimento (1994b, p. 84).10

Ora, uma primeira indicação da crise aparece na estupidez


que reside na separação entre análise e plasticidade, entre sentido
e inteligência, entre corpo e espírito. Sobre tal separação o poeta
trama sua crítica e escava com sua escrita novas perspectivas para
a crise. Crise de um teatro psicológico, de uma cultura ociden-
tal racionalista, crise que o poeta experiencia cotidianamente em
seu próprio corpo,11 levando suas reflexões às últimas consequ-
ências. E estas consequências serão fortemente ressentidas em
seu texto “O teatro da crueldade” (1996d, pp. 107-18), escrito
em 1947. Ainda nos anos 1930, Artaud esperava do espetáculo

10
“Cette séparation entre le théâtre d’analyse et le monde plastique nous appa-
raissant comme une stupidité. On ne sépare pas le corps de l’esprit, ni le sens de
l’intelligence, surtout dans un domaine où la fatigue sans cesse renouvelée des
organes a besoin de secousses brusques pour raviver notre entendement.”
11
A “crise vivida em seu próprio corpo” é a matéria, por excelência, de sua Corres-
pondência com Jacques Rivière, como já indicado.
66 Antonin Artaud

cruel a exploração de nossa “sensibilidade nervosa, com ritmos,


sons, palavras, ressonâncias e ramagens” (1994b, p. 85).12 Assim,
sua visada material sobre a linguagem seria a proposta de uma
nova intelectualidade, almejada nesse primeiro projeto da cruel-
dade em 1933:

Il faut parler maintenant du côté uniquement matériel de ce


langage […]. Il sera vain de dire qu’il fait appel à la musique, à
la danse, à la pantomime, ou à la mimique. […]. Il rompt enfin
l’assujettissement intellectuel au langage, en donnant le sens
d’une intellectualité nouvelle13 (1994b, pp. 87-8).

Seria ainda essa materialidade da linguagem que encontra-


ria a poesia como força viva que, por sua vez, faz apelo à violên-
cia, de onde se infere a crueldade. Mas tanto uma quanto outra
só encontrariam eficácia se propiciando uma abertura dos senti-
dos. Por isso, crueldade não se fixaria em um cultivo ao horror.
A abertura dos sentidos deveria colocar o espectador e o leitor
diante de todas as suas possibilidades:

En un mot, nous croyons qu’il y a, dans ce qu’on appelle la


poésie, des forces vives, [...]. De même que nos rêves agissent

12
“[…] donc un spectacle qui ne craigne pas d’aller aussi loin qu’il faut dans
l’exploration de notre sensibilité nerveuse, avec des rythmes, des sons, des mots,
des résonances et des ramages, dont la qualité et les surprenants alliages font
partie d’une technique qui ne doit pas être divulguée.” [Tradução: “[...] portan-
to um espetáculo que não tema ir tão longe quanto for necessário na exploração
de nossa sensibilidade nervosa, com ritmos, sons, palavras, ressonâncias e rama-
gens, cuja qualidade e cujas ligações inesperadas participam de uma técnica que
não deve ser divulgada”.]
13
Tradução: “É preciso falar agora do lado unicamente material dessa linguagem.
[...] Seria inútil dizer que essa linguagem apela para a música, a pantomima
ou a mímica. [...] Rompe, enfim a sujeição intelectual à linguagem, dando o
sentido de uma intelectualidade nova e mais profunda [...]”. Edição brasileira:
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. 3 ed. São Pau-
lo: Martins Fontes, 2006, p. 103.
Fragmentações 67

sur nous et que la réalité agit sur nos rêves, nous pensons qu’on
peut identifier les images de la poésie à un rêve, qui sera efficace
dans la mésure où il sera jeté avec la violence qu’il faut. [...] D’où
cette appel à la cruauté et à la terreur, mais sur un plan vaste, et
dont l’ampleur sonde notre vitalité intégrale, nous mette en face
de toutes nos possibilités14 (1994b, pp. 83-4, grifo meu).

Tal abertura dos sentidos, em termos de projeto cênico,


visava antes de tudo ao corpo do próprio ator, que deveria ser
trabalhado para obter um reconhecimento preciso de cada ór-
gão; reconhecimento que inspirou suas leituras da cabala e de
diversas doutrinas orientais,15 assim como todo um trabalho de
desenvolvimento do sopro.
Em seus últimos escritos, vamos observar que seu conheci-
mento dos rituais sagrados e das ciências ocultas – que lhes inspira-
ram determinado domínio e consciência do corpo em cena – serão
retomados sobre outras bases. Já que aí vai interessar a construção de
um corpo e de uma consciência do corpo particular, fora, portanto,
dos domínios universais do espírito – como dirá o próprio Artaud.
A organização desse corpo deverá ser alterada e, para tanto, os rituais
que o conformam em sociedade deverão ser aniquilados pelo poeta.
Mas por que os rituais? Eles seriam o traço de nossas relações e ex-
periências com a morte. Para Artaud, o ritual seria a despossessão de
uma consciência do corpo que é sempre particularizada. Isso resul-
taria em uma possessão da consciência particular pelo espírito uni-

14
Tradução: “Em suma, acreditamos que há, no que se chama poesia, forças vivas,
[...]. Assim como nossos sonhos agem sobre nós e a realidade age sobre nossos
sonhos, pensamos que podemos identificar as imagens da poesia com um so-
nho, que será eficaz na medida em que será lançado com a violência necessária.
[...] Daí o apelo à crueldade e ao terror, mas num plano vasto, e cuja amplidão
sonda nossa vitalidade integral, nos coloca diante de todas as nossas possibilida-
des”. Edição brasileira: ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Tradução de
Teixeira Coelho. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 97.
15
Ver o texto “Atletismo afetivo”, no quarto volume das Obras completas (1994b,
pp. 125-33).
68 Antonin Artaud

versalizado. Daí a necessidade de se retomar as relações com a vida


e com a morte sob outras bases, como descreve em grande parte da
carta enviada à Marthe Robert em maio de 1946, e posteriormente
incluída no livro Suppôts et suppliciations:

Car on touche mieux les états du Bardo dans la vie que dans la
mort parce qu’on n’y a plus de conscience et que la conscience
de l’autre côté est mauvaise, étant celle qui n’a plus à faire au
corps particularisé mais à l’esprit universalisé […]. Or ces
bêtes ne sont pas dans la mort mais ce sont celles qui sont
dans la vie et qui du mort veulent se faire entendre afin de
lui prendre son restant de vie. […]. Ce qui veut dire que la
vie et la mort sont à reprendre sur d’autres bases et que c’est
le problème auquel je ne cesse en silence de m’attaquer depuis
que j’ai pensé au théâtre de la cruauté; il y a sur la terre trop de
crimes rituels, de yogis, de lamas, de messes, d’incantation, de
sacrifices sacrés, ou non sacrés mais toujours ritualisés, pour
qui les gens puissent vivre en paix16 (1978a, p. 123).

Se em 1933 encontramos uma escrita que visa a um traba-


lho rigoroso de definição e crítica – e se empenha em oferecer,
em chamar seu leitor para o interior dessa escavação, indicando-
-lhe as metas dessa construção –, em 1947 essa escrita assume
novas proporções. No interior do livro O teatro e seu duplo, onde

16
Tradução: “Pois os estados do Bardo são mais palpáveis na vida do que na
morte, porque nesta não há mais consciência, e a consciência do outro lado é
ruim, sendo uma que não tem mais a ver com o corpo particularizado, mas
com o espírito universalizado [...]. Ora, estas bestas não estão na morte, mas
são aquelas que estão na vida e que querem se fazer ouvir pelo morto a fim de
captar-lhe seu resto de vida. [...] O que quer dizer que a vida e a morte devem
ser retomadas sobre outras bases e que este é o problema ao qual eu não cesso
em silêncio de me atacar desde que comecei a pensar no teatro da crueldade;
há sobre a terra muito de crimes rituais, iogues, lamas, missas, encantação,
sacrifícios sagrados, ou não sagrados, mas sempre ritualizados, para que as
pessoas possam viver em paz”.
Fragmentações 69

constam os textos que até agora viemos pensando, Artaud lança


um projeto cênico, mas ali já se vê uma preocupação com a lin-
guagem e com a possibilidade de continuar ou não a pensar.17
Vejamos agora como tais bases foram alteradas pelo po-
eta no tocante à sua noção de crueldade. O texto de 1947 so-
bre a crueldade deveria ser incluído no conjunto de textos es-
critos para emissão radiofônica, intitulada “Para acabar com o
julgamento de deus”, que veio a ser no mesmo ano censurada.
Esse poema foi por Artaud considerado como “uma primeira
trituração do teatro da crueldade” (1996d, p. 139) após seu
retorno à escrita:

Conaissez-vous quelque chose de plus


outrageusement fécal
que l’histoire de dieu
et de son être: SATAN,
la membrane du coeur
la truie ignominieuse
de l’illusoire universel
qui de ses tétines baveuses
Ne nous a jamais dissimulé
que le Néant?

En face de cette idée d’un univers préétabli,


l’homme n’est jusqu’ici jamais parvenu à établir
sa supériorité sur les empires de la possibilité.
(1996d, p. 107)18

17
Mesma questão reaparece em sua Correspondência com Jacques Rivière.
18
Tradução: “Conheceis alguma coisa mais / ultrajantemente fecal / que a história
de deus / e de seu ser: SATÃ, / a membrana do coração / a porca ignominiosa
/ do ilusório universal / que de suas tetas babosas / Jamais nos dissimulou /
senão o Nada? // Em face desta ideia de um universo pré-estabelecido, / até
agora o homem não chegou a estabelecer / sua superioridade sobre os impérios
da possibilidade.”
70 Antonin Artaud

Poema de fôlego onde “ritmo, ressonância, palavras, ra-


magens” se ligam surpreendentemente ao longo de 11 páginas.
Poema para ser lido em voz alta (como fazia o poeta em todos os
seus últimos anos de escrita), repleto de sons, ruídos, interferên-
cias. Nele, encontramo-nos mais uma vez diante da necessidade
implacável de perfurar os conceitos e determinismos, os auto-
matismos da linguagem, do pensamento, da cultura portanto.
Porém – e sobretudo a partir daqui – tal perfuração visa não
somente a um reconhecimento (e domínio) do corpo, mas a uma
refeitura dele. Para nos aproximarmos dos últimos textos de Ar-
taud é imprescindível notar que linguagem, pensamento, cultura
e os conceitos assumem estatuto de corpo, são interrogados em
sua particularidade, em sua existência singular. Indicamos com
isso que, se o combate anterior poderia se caracterizar em um
combate “contra” (próprio aos discursos que se sustentam na
perspectiva exclusivamente crítica), aqui o “contra” coexiste com
e nos corpos, indicando a exacerbação de uma experiência da
crise, do desabamento do próprio corpo que impulsiona uma
perspectiva não apenas crítica, mas também clínica, visando o
refazer da própria experiência do corpo.
“O teatro da crueldade”, de 1947, é composto de três par-
tes: na primeira, encontra-se propriamente o poema “O teatro
da crueldade”; na segunda, um post-scriptum, poema em duas pá-
ginas que em muito dialoga com as noções concretas esboçadas
em 1933 pelo poeta; e, na terceira, outro post-scriptum, pequeno
poema que condensa os textos anteriores e as questões que neles
teriam sido evocadas. Se poderia dizer que a primeira parte do
poema estaria balizada sobre quatro tempos – um primeiro, no
qual se localiza a crise do homem; um segundo, em que se expõe
o teatro da crueldade; um terceiro, onde a crise se singulariza em
um homem, lembre-se: em uma palavra, tal qual proposta ante-
riormente como condição para se adentrar nas noções concretas,
como na realização teatral “à pronúncia particular de uma pala-
Fragmentações 71

vra”. E em um quarto tempo, no qual, com a crise singularizada,


poderá se redefinir o espaço, destinado na vida do homem ao
teatro da crueldade.
Artaud inaugurou o poema buscando localizar a crise do
homem: trata-se de uma operação escatológica, história consuma-
da em nossa cultura na figura de Deus e do diabo. Aqui a escato-
logia reúne em Artaud seus dois significados – eskatos e skatos do
grego, de onde se observa que o fim é excremencial. E reparem, esse
texto sobre a crueldade estaria incluído no conjunto de poemas
nomeado por Artaud “Para acabar com o julgamento de deus”,
proposição que pretende dar fim às origens religiosas do homem.
Ora, esse texto seria, já em sua proposta e definição, da ordem
do escatológico. Tal operação em Artaud virá indicar que a reli-
gião – origem e fim na formação do homem – é abjeta. Aí eskatos
e skatos se unem para, a partir de conceitos abstratos, criar uma
noção concreta. Dela podemos inferir sobre a abjeção um lugar
surpreendente, da ordem da dissimulação – operação simbólica e
humana, ilusão universal que expele o Nada. Essa seria a ideia de
“um universo pré-estabelecido”, onde o homem – até agora – “não
teria buscado estabelecer sua superioridade sobre os impérios da
possibilidade”. Nesse sentido, o abjeto seria exatamente o lugar do
homem e da cultura. Como disse Evelyne Grossman:

l’abjection pour Artaud ne désigne pas, comme dans l’ordre


symbolique occidental, ces forces qui viennent entamer les
frontières des corps (la pourriture, les excréments, les flux, les
écoulements) […]. Par un renversement total de cette logique,
l’abject n’est plus cet objet chu, éjecté du système symbolique
et que lui permet de se constituer comme “propre”; c’est au con-
traire le système symbolique tout entier qui est considéré comme
abject19 (1996, p. 113).

19
Tradução: “a abjeção, para Artaud, não mais designa, como na ordem simbólica
ocidental, estas forças que vêm talhar as fronteiras dos corpos (a podridão, os
72 Antonin Artaud

Para Artaud, só escavando a excrescência – tumor simbóli-


co – se poderia estabelecer o combate do homem – até aqui ine-
xistente – frente aos “impérios da possibilidade”. Estes impérios
são o “incomensurável”, o “impensável”, o que jamais é satisfeito
– ordem de uma necessidade incessante que chama ao combate
sempiterno do poeta. As possibilidades indicam o não estabele-
cido e a necessidade de se refazer. E, se, frente às possibilidades,
encontramo-nos diante do Nada, após termos levantado a corti-
na da dissimulação, o que se nos emerge é ainda e insistentemen-
te a excrescência ou o excremento homem, para Artaud, a besta:

Car s’il n’y a rien,


il n’y a rien
que cette idée excrémentielle
d’un être qui aurait fait par exemple les bêtes.

Et d’où viennent les bêtes


dans ce cas?20
(1996d, p. 106).

O poeta responde: de uma errônea construção do corpo hu-


mano. Retomando, assim, a discussão já indicada em 1933: a estupi-
dez humana se realiza na separação entre corpo e espírito. Mas, aqui,
Artaud avança na definição dessa separação e, mais ainda, em sua
concepção de corpo; que, se antes – no que se referia ao projeto cê-
nico –, buscava contemplar um conhecimento preciso de um corpo
orgânico, agora vai apontar para a traição que os órgãos representam

excrementos, os fluxos, os escoamentos) [...]. Por uma reversão total dessa ló-
gica, o abjeto não é mais este objeto decaído, ejetado do sistema simbólico que
permite que ele se constitua como ‘próprio’; é, ao contrário, o sistema simbólico
inteiro que é considerado como abjeto”.
20
Tradução: “Pois se não há nada / não há nada / além desta ideia excremental /
de um ser que teria feito, por exemplo, as bestas. // E de onde vêm as bestas /
neste caso?”.
Fragmentações 73

para o corpo. Traição representada na figura da besta, cujos ritos


vêm apenas firmar definitivamente.21 Estamos ainda no primeiro
tempo do poema em que propomos pensar a localização da crise:

De ce que le monde des perceptions corporelles


n’est pas à son plan,
et pas au point,

de ce qu’il y a une vie psychique


et aucune vie organique vraie,

de ce que la simple idée d’une vie organique pure


peut se poser,

de ce qu’une distinction
a pu s’établir entre
la vie organique embryonnaire pure
et la vie passionnelle
et concrète intégrale du corps humain.
Le corps humain est une pile électrique
chez qui on a chatré et refoulé les décharges22
(1996d, p. 108).

21
Ele diz em carta a Marthe Robert, maio 1946: “Or ces bêtes ne sont pas dans
la mort mais ce sont celles qui sont dans la vie […]. Et elles parlent pour leur
compte propre mais les rites imbéciles des lamas parachèvent leurs influences,
car les bêtes sont des mauvais esprits mais les prêtres des mauvaises bêtes”
(1986b). [Tradução: “Ora estas bestas não estão na morte, mas são aquelas que
estão na vida [...]. E elas falam por conta própria, mas os ritos imbecis dos lamas
perfazem suas influências, pois as bestas são espíritos ruins, mas os sacerdotes,
ruins bestas.]
22
Tradução: “Disto que o mundo das percepções corporais / não está em seu pla-
no / nem no ponto, // disto que há uma vida psíquica / e nenhuma vida orgânica
real, // disto que a simples ideia de uma vida orgânica pura / pode ser posta, //
disto que uma distinção / pôde instalar-se entre / a vida orgânica embrionária
pura / e a vida passional / e concreta integral do corpo humano. // O corpo
humano é uma pilha elétrica / em quem castraram e recalcaram as descargas”.
74 Antonin Artaud

Aqui já não seria somente o espírito – alheio ao corpo –


caracterizando o combate contra o mesmo. Não se trata somente
de uma crítica à cultura ocidental, mas de uma crise do próprio
corpo, da construção e organização dos corpos no interior dessa
cultura. O embrião, o órgão, não deveria estar separado da pai-
xão, ou de uma vida integral e concreta do corpo humano. Ora,
Artaud incide sobre a parte e o todo quando detecta as distinções
entre ponto e plano, entre o embrionário e as paixões, entre o
órgão e o psiquismo. Mas estaria o poeta indicando a possibilida-
de de um corpo pleno? E pleno no sentido de uma apropriação
integral de um corpo orgânico? Lembre-se: “de ce que la simple
idée d’une vie organique pure / peut se poser”. Haveria, então,
uma distinção entre o corpo todo corpo e o corpo todo pleno?
Parece importante assinalar que as relações entre parte e
todo não visam à construção de um todo que se confundiria com
o pleno. Seria de suma importância relevar que o estatuto de cor-
po em Artaud não é da ordem da plenitude. Isto porque, nesse
poeta, o vazio, o abismo, a cavidade são elementos fundantes do
corpo e de toda sua construção poética e plástica de um pensa-
mento do corpo. No trecho que segue, o corpo é visto sob a ótica
de uma física dinâmica, pilha elétrica que carrega e descarrega. O
polo destinado a expelir, exprimir e descarregar teria sido – para
o poeta – castrado e recalcado. Mas, assinalemos: esse corpo é
feito na absorção do vazio:

dont on a orienté vers la vie sexuelle


les capacités et les accents
alors qu’il est fait
justement pour absorber
par ses déplacements voltaïques
toutes les disponibilités errantes
de l’infini du vide,
des trous de vide
Fragmentações 75

de plus en plus incommensurables


d’une possibilité organique jamais comblée23
(1996d, p. 108, grifo meu).

Nesse questionamento acerca do corpo, que inclui um re-


pensar das relações entre o todo e a parte, assim como entre as
separações que balizam nossa cultura ocidental – um plano vasto
da separação entre corpo e espírito – Artaud escolhe enfrentar
as questões levantadas pela sexualidade. Ora, observa-se que a
sexualidade seria um acento e uma orientação que impediria jus-
tamente o confronto do corpo com os vazios. O apetite sexual,
ancorado em uma experiência heterocentrada do corpo, ajuda a
construir a organicidade do próprio corpo e elimina, justamente,
os espaços vazios, o entre-órgãos, ou um sem número de outros
corpos possíveis.24 O poeta continua incidindo sobre a crise, fi-
gurada aqui por meio dos apetites humanos. Indicando a neces-
sidade que o corpo tem de comer, como sendo, na modernidade,
da ordem do apetite sexual. Sua resposta poética é “fazer dançar
enfim a anatomia humana” para que a fome humana não mais
se situe sobre os paradigmas da escassez alimentar ou dos apetites
sexuais. É importante adentrar um pouco mais nessa relação en-
tre fome e sexualidade, entre necessidade e apetite na construção
desse corpo-poético da crueldade:

Faites danser enfin l’anatomie humaine,


de haut en bas et de bas en haut,
d’arrière en avant et

23
Tradução: “de quem se orientaram para a vida sexual / as capacidades e os acentos
/ quando ele é feito / justamente para absorver / por seus deslocamentos voltaicos /
todas as disponibilidades errantes / do infinito do vazio, / dos furos de vazio / mais
e mais incomensuráveis / de uma possibilidade orgânica jamais preenchida”.
24
Seria interessante notar todo um diálogo possível entre a reivindicação de Ar-
taud pela reconstrução dos corpos, ou mesmo por um Corpo sem Órgãos e as
recentes discussões que configuram hoje os estudos de gênero.
76 Antonin Artaud

d’avant en arrière,
mais beaucoup plus d’arrière en arrière,
d’ailleurs, que d’arrière en avant,
et le problème de la raréfaction
des denrées alimentaires
n’aura plus à se résoudre,
parce qu’il n’aura plus lieu,
même, de se poser25
(1996d, p. 109).

Do seu projeto “Para acabar com o julgamento de deus”,


pode-se inferir que Artaud perfura o conceito (doutrinário) de
eskatos para chegar à noção concreta de skatos (excremento), no-
ção que, exterior à doutrina, se insere no âmbito da crueldade.
Esse mesmo gesto cruel se impõe para o poeta face ao problema
levantado pela fome e pela sexualidade. Seria ainda outro o des-
tino desse gesto de perfuração e de atravessamento da ossatura
simbólica e material das palavras-conceitos:

Mais je veux dire plus simplement que le corps mutilé est cet
estomac de misère qui cherche toujours à se rassembler. Et que
le crime est de le faire monter dans les cimes, quand il aurait
mieux aimé être enterré rassemblé. Car la terre lui rend un
corps, elle le farcit, elle l’épaissit, alors que l’éther le dissémine
et l’oblige à d’étranges détentes, d’étranges retentes de ressort
pour parvenir à ressortir au jour26 (1978b, pp. 26-7).

25
Tradução: “Fazei dançar enfim a anatomia humana, / de alto a baixo e de baixo
a alto, / de trás pra frente e / da frente pra trás, / mas muito mais, aliás, de trás
pra trás, / que de trás pra frente, / e o problema da rarefação / dos gêneros ali-
mentícios / não será mais pra se resolver / pois não terá mais lugar, / sequer, de
se colocar”.
26
Tradução: “Mas quero dizer mais simplesmente que o corpo mutilado é este estô-
mago de miséria que busca sempre reintegrar-se. E que o crime é fazê-lo subir aos
cimos, quando ele teria preferido ser enterrado inteiro. Pois a terra dá-lhe um cor-
Fragmentações 77

O crime seria fazer o corpo subir às alturas – mente, espírito,


cérebro. O estômago é parte central do corpo e índice de relação
com a fome – ícone da mutilação desse mesmo corpo partido. A
terra como alimento, o éter abstração errante. Parece que, mais uma
vez, somos levados pelo o poeta a dilacerar a carcaça da linguagem
em seus antagonismos. Assim como o todo e a parte, o abstrato e
o concreto, ele aqui nos indica a terra e as alturas. Esse índice de
materialidade sensível em Artaud não deve ser rapidamente posto
no bolso dialético, tampouco na apologia do concreto. Seria sobre
um corpo-força que Artaud procuraria agir. Pilha elétrica castrada
em sua expulsão, mas ainda, carregada (feita para absorver) a inten-
sidade voltaica do contato com “os buracos do vazio”.

1.1.1. Corpo – Força – Fome

Como pesquisadora brasileira diante da obra de Artaud


não poderia deixar de notar o lugar preponderante que a fome
vem assumir em muitos de seus textos. E obviamente atentar
para a relação entre a fome e a construção de determinados cor-
pos no seio das culturas.
Não posso dizer que a questão da fome tenha sido tema am-
plamente discutido a propósito desse poeta. No entanto, a fome apa-
rece como traço fundamental que indica a impossibilidade de fazer,
a partir de Artaud, uma apropriação do corpo sob os paradigmas
de um dualismo racionalista. Mesmo tendo em conta o combate
levado pelo poeta contra o espírito, dever-se-ia assinalar que um pen-
samento do corpo em Artaud não se traça somente como aniquila-
ção do espírito. Assim, esse corpo seria o que restou da destruição
do espírito. Ou ainda: eliminando o espírito, o corpo seria apenas
apologia do físico e/ou fisiológico, do orgânico. Isso só serviria para

po, dá-lhe recheio e espessura, enquanto o éter o dissemina e o obriga a estranhas


distensões, estranhas compressões de mola para saltar de novo à luz do dia”.
78 Antonin Artaud

situar sua reivindicação de um pensamento do corpo no plano da


provocação, da destruição, do combate exclusivamente “contra”.
Mas também não nos parece possível ler Artaud como produtor de
um pensamento sistêmico que se somaria ao discurso filosófico da
destruição da metafísica. Delicado problema, posto que esses dois
movimentos podem ser inferidos de sua trajetória.
Seu combate contra o espírito necessariamente deslocará o
lugar tradicionalmente conferido ao corpo. Assim sendo, nega-
-se um corpo sustentado pela ideia de espírito (em uma operação
que os separou para desse modo uni-los hierarquicamente). Mais
uma vez, se a incisão de seu pensamento não agisse sobre tal
operação, o corpo se reduziria à atividade fisiológica de “expelir”
o espírito. Corpo que só defeca. Seria assim que, por ora, se faz
premente introduzir o lugar da fome como constitutivo desse
corpo. E por quê? Justamente a fome vai trazer à superfície os
buracos vazios do corpo. Anterior, no poeta, à reivindicação de
um “corpo sem órgãos”, a fome é traço fundamental para a dis-
cussão entre absorção e expulsão poética em Artaud.
O único artigo que encontramos sobre a fome em Artaud
foi escrito por Carlo Pasi, e intitulado “A força da fome”. Nele,
o autor se debruça sobre os últimos escritos de Artaud, após
Rodez, e também situa a fome como índice da crueldade em
Artaud. Para o autor, a “comunicação cruel, sobretudo na fase
final, depois de Rodez, aparece cada vez mais dividida entre a
abertura e a recusa” (2000, p. 179). Mas, para Pasi, abertura e
recusa (o conflito) serão frutos de uma ambiguidade do sujeito.
Assim, ele vai aliar a abertura à força, à construção, à positivida-
de, e a recusa será pensada como negativa, no sentido destruti-
vo, impeditivo ou, como disse o autor, “fóbico”. Sua hipótese
central é a de que a força da fome seria índice de uma recusa da
sexualidade. Tal leitura acaba por apaziguar o conflito enquanto
combate de forças, para cristalizá-lo em um sujeito ambíguo, di-
vidido entre a fobia de tocar e a necessidade de tocar. Nós sabe-
Fragmentações 79

mos que a “dimensão conflitante” em Artaud nos remete já aos


seus escritos primeiros sobre o teatro da crueldade. Como vimos
procurando desenvolver, há uma localização da crise como fun-
damento da crueldade. Tal crise, esboçada a partir da separação
entre corpo e espírito, seria o ponto inicial de escavação de seu
próprio texto criador. Artaud, já em sua correspondência com
Rivière, se coloca como “ator” dessa mesma crise, oferecendo ao
seu primeiro leitor sua desastrosa “doença do espírito”. Ora, Pasi
assinala – até aqui, na mesma direção que vimos encontrando
– que, nesse último Artaud, “tudo se passa como se as páginas
altamente proféticas de O teatro e seu duplo encontrassem nessas
circunstâncias traumáticas sua encarnação” (2000, pp. 184-5).
No entanto, tal encarnação é assim visitada pelo autor do artigo:
“Dans Le théâtre et la peste (1933), il semblait évoquer cet espace
tourbillonnaire du mythe noir où finira par sombrer dans la nuit
son destin de victime sacrificielle”27 (2000, p. 183). Vale lem-
brar: o conflito esteve sempre encarnado, ele encontrará – nisso
que Pasi denomina como circunstâncias traumáticas – o desafio
último a se realizar. Construção vertiginosa de um corpo poético
da crueldade. Assinalamos que o retorno à escrita em Artaud as-
sume uma proporção vertiginosa, marcado por uma intensidade
criadora pouco encontrada na história das artes. Sua obra se avo-
luma espantosamente desde que, em 1943-44, interno no asilo
de Rodez, volta a escrever, em um primeiro movimento de relei-
tura/reescrita de seus textos anteriores. Os golpes de intensidade
sobre o conflito – ou incidência traumática – se materializam em
seus golpes de lápis sobre a página.
De outra forma, como mostra o texto de Pasi, o destino sacri-
ficial estaria fadado a dizer que “toutes les persécutions et les terreurs
remontent de l’enfance”28 (p. 186). Ou ainda que “ces figures mons-

27
Tradução: “Em O teatro e a peste (1933), ele parecia evocar esse espaço turbilhonante
do mito negro onde acabará por submergir na noite seu destino de vítima sacrificial”.
28
Tradução: “todas as perseguições e terrores sobrevêm da infância”.
80 Antonin Artaud

trueuses et dévoratrices peuvent aussi assumer des formes plus soli-


des et concrètes, celles des représentants d’une societé dont il se sent
expulse”29 (p. 186, grifo meu). Ora, Artaud não se sentiu expulso: ele
efetivamente o foi. Mas o que importa destacar é, sobretudo, a ideia
de que a fome em Artaud não se manifesta como presa de uma dia-
lética entre a ingestão e a expulsão. Ela é índice do refazer dos corpos
– que passa, necessariamente, pelas cavidades, o esburacar e perfu-
rar, os vazios que permitem dilacerar ativamente e afirmativamente
as organizações impostas, e mesmo a orgânica. É assim que ela se
situa para além da ingestão (alimento) e da expulsão (fezes). Ela não
é recusa ou fobia, mas afirmação de corpos partidos, fragmentados,
esburacados, esvaziados, destituídos da lógica logocêntrica ou mes-
mo da experiência fálica e heterocentrada do corpo. Lembro, aqui,
Maurice Blanchot que – a propósito de Nietzsche – nos auxilia a
elucidar esse lugar “para além” da ambiguidade, que defendemos em
Artaud e, desse modo, introduz o desenvolvimento que buscaremos
dar à questão da fome:

Il y a donc deux sortes de pluralisme. L’un est philosophie de


l’ambiguïté, expérience de l’être multiple. Puis cet autre étrange
pluralisme, sans pluralité ni unité, que la parole de fragment
porte en elle comme la provocation du langage30 (1987, p. 232).

Seria, portanto, nas fendas, nos espaços e vazios que a fome


importaria para a constituição dos corpos em Artaud, através des-
sa escrita cruel que se oferece sempre como provocação da lin-
guagem. A fome é absorção de vazio. Ela não se opõe à expulsão.

29
Tradução: “essas figuras monstruosas e devoradoras podem também assumir
formas mais sólidas e concretas, aquelas dos representantes de uma sociedade
da qual ele se sente expulso”.
30
Tradução: “Há, portanto, dois tipos de pluralismo. Um é filosofia da ambigui-
dade, experiência do ser múltiplo. E depois, esse outro estranho pluralismo,
sem pluralidade nem unidade, que a palavra-fragmento porta em si como a
provocação da linguagem”.
Fragmentações 81

Fome não seria a mesma coisa que alimento ou comida, que ape-
tite. O poeta diz em outro texto: “comme s’il y n’y avait pas des
gens qui mangent / sans aucune espèce d’appétit; / et qui ont faim.
// Car cela aussi / existe / d’avoir faim / sans appétit”31 (1996d,
p. 93). Do contrário, como mostrou Pasi, teríamos que nos co-
locar frente à fome como “pulsão vital que pode acionar um re-
nascimento, a nova obra, a realização da nova anatomia” (2000,
p. 185).32 E encontrar na sexualidade “la menace qui inverse la
tendence constructive de la faim en danger d’anéantissement où
se fait jour la phobie du toucher, du contact sexuel33” (Pasi, 2000,
p. 185). Quanto a nós, defenderíamos que a fome não se opõe à
sexualidade, apenas o apetite se caracterizou como sexual. E o se-
xual se caracterizou como sendo um só: orgânico, fálico, humano
(modelo Homem), heterocentrado: “Le corps humain a besoin de
manger, mais qui a jamais essayé autrement que sur le plan de la
vie sexuelle les capacités incommensurables des appétits?”34, in-
daga o poeta. Dessa forma, Artaud destina à fome um lugar dife-
renciado daquele que é dado ao apetite. Ele denuncia, ainda, uma
“produção” alimentar crítica ao discurso “salutar” e aí encontra-
-se uma equivalência simbólica entre comida e sexo e não uma
oposição simbólica entre fome e sexualidade: “Faites danser enfin
l’anatomie humaine, / […], / et le problème de la raréfaction ali-
mentaire / des denrées alimentaires / n’aura plus à se résoudre”35.
Produção de sexualidade ou rarefação de alimentos são equivalen-

31
Tradução: “como se não houvesse gente que come / sem apetite algum; / e que
tem fome. // Pois também isso/ existe: / ter fome / sem apetite”.
32
“La faim devient alors la pulsion vitale qui peut amorcer une renaissance, la
nouvelle oeuvre, la réalisation d’une nouvelle anatomie.”
33
Tradução: “a ameaça que inverte a tendência construtiva da fome em perigo de
aniquilamento, em que surge a fobia do toque, do contato sexual”.
34
Tradução: “O corpo humano precisa comer, mas quem alguma vez experimen-
tou de outra maneira, que não no plano da vida sexual, as capacidades inco-
mensuráveis dos apetites?”.
35
Tradução : Fazei dançar enfim a anatomia humana, / [...], / e o problema da
rarefação / dos gêneros alimentícios / não será mais pra se resolver”.
82 Antonin Artaud

tes. A fome, diferente, seria ícone formador desse corpo em Artaud


– corpo-força traçado também na ingestão e na expulsão. O que
ele nos diz é que a expulsão foi castrada e recalcada. Mas esse já é
um segundo movimento poético. Ele indica: há que voltar atrás,
mais atrás, para fazer “dançar a anatomia” e encontrar a fome
como “centro-nodal” desse corpo miserável – onde aí sim se abre
à intensidade do próprio vazio. Logo, fome não seria força positiva
versus sexualidade, força negativa, fome seria esse ponto zero – usi-
na de força, cheio de vazio. Lugar onde os contrários deixam de
agir como tais e abrem frente aos gestos produtivos, sejam esses de
expulsão ou ingestão, outros caminhos que não o da dissimulação
simbólica e abjeta do Nada, que não a doutrina dos julgamentos,
ou, como disse o poeta – ainda em 1925, muito antes de sua rei-
vindicação de um “corpo sem órgãos” –, “il faut connaître le vrai
néant effilé, le néant qui n’a plus d’organe”36 (1994a, p. 69).
E seria nesse momento que o apelo “para trás” nos levaria a
discutir essa dança de um corpo mutilado, um estômago de miséria
e sua busca em “reunir” (rassembler). Em um inevitável movimento
diante dessa dança poética de Artaud, no confronto com a cruel-
dade, somos levados também para trás, na leitura de poema escrito
em 1932 e intitulado “A fome não espera...” (1973, pp. 11-5). Mais
uma vez insistimos na necessidade de percorrer esses momentos de
intensidade diferentes na trajetória do autor. Não se poderia deixar
de assinalar que, esses textos, tendo sido escritos no entre guerras e
imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, acenam, de for-
ma bastante precisa, com uma implicação direta sobre a criação da
noção de crueldade em Artaud. Assim sendo, a reincidência da rare-
fação alimentar está presente no poema de 1932 e no texto da cruel-
dade de 1947. Ora, o que vamos observar mais uma vez é que aquilo
que na década de 1930 era iminente – para toda uma população – se
corporifica na catástrofe a partir de 1940.

36
Tradução: “é preciso conhecer o verdadeiro nada desfiado, o nada já sem órgãos”.
Fragmentações 83

Acompanhamos até aqui que em 1947 o destino poético ao


problema da rarefação alimentar se entrelaça à necessidade em fazer
dançar a anatomia humana e em questionar a égide de seu ape-
tite na sexualidade. Avançando nesse mesmo texto se pode inferir
que Artaud nos diz de uma fome que teria sido incorporada a uma
política de produção/consumo e distribuição alimentar. Produz-se
determinada fome porque se negocia e se fixa o apetite, impedindo
a dança da anatomia. A produção e fixação do apetite como sendo
sempre sexual alertaria para a exclusão de outros possíveis e inco-
mensuráveis apetites humanos. Ora, tal associação nos indica uma
economia produtora da fome e da sexualidade. No entanto, essa eco-
nomia produtora destina ao homem a “fornicação” com o oculto,
tramando/trucando dessa forma a vida do espírito, dos demônios,
de Deus, da demência – limbo que nos afasta da possibilidade de
intervir na realidade, de observá-la como não acabada, ou melhor,
como nem sequer construída.37 Espírito, oculto, éter que nos afas-

37
“On a fait manger le corps humain, / on l’a fait boire, / pour s’éviter / de le faire
danser. // On lui a fait forniquer l’occulte / afin de se dispenser / de pressurer
/ et de supplicier la vie occulte. // Car il n’y a rien / comme la soi-disant vie
occulte / qui ait besoin d’être supplicié. / C’est là que dieu et son être ont pensé
fuir l’homme dement, / là, sur ce plan de plus en plus absent de la vie / occulte
/ où dieu a voulu faire croire à l’homme / que les choses pouvaient être vues et
saisies en / esprit, / […] / Mais le monde des démons est absent. Il ne rejoindra
jamais l’évidence. / Le meilleur moyen de s’en guérir / et de le détruire / est
d’achever de construire la réalité. / Car la réalité n’est pas achevée, / elle n’est pas
encore construite. De son achèvement dépendra / dans le monde de la vie éter-
nelle / le retour d’une éternelle santé. // Le théâtre de la cruauté […]” (1996d,
p. 109). [Tradução: “Fizeram o corpo humano comer, / fizeram-no beber, /
para evitar / fazê-lo dançar. // Fizeram-no fornicar com o oculto / a fim de se
dispensar / de espremer / e supliciar a vida oculta. // Pois não há nada / como
a pretensa vida oculta / que precise ser supliciado. / Foi para lá que deus e seu
ser cuidaram fugir ao homem demente, / lá, nesse plano mais e mais ausente da
vida / oculto / onde deus quis persuadir o homem / de que as coisas podiam ser
vistas e tocadas / em espírito, / [...] / Mas o mundo dos demônios está ausente.
Nunca mais se juntará à evidência. / O melhor meio de curar-se dele / e destruí-
-lo / é concluir a construção da realidade. / Pois a realidade não está concluída,
/ ela ainda não está construída. De seu acabamento dependerá / no mundo da
vida eterna / o retorno de uma saúde eterna. // O teatro da crueldade [...]”.
84 Antonin Artaud

ta desse corpo-força em dança poética e anatômica – do teatro da


crueldade. Essa possibilidade de intervir – ou ainda, a necessidade
de questionar o inato, de fazer do não criado matéria, e do criado o
imaterial – é constante no poeta. Em seu texto de 1932, “A fome não
espera…”, somos mais uma vez confrontados com essa inversão cria-
dora.38 Texto que busca participar de um quadro social avassalador,
texto poético e político que assim se inicia:

La faim n’attend pas,


Courrir au plus pressé,
Donner à manger à tous.
Qu’est-ce qu’il reste?
Où gît le problème?
Sucre
Café
Blé minoterie
Pommes de terre raffinerie
Autre légumes boulangerie
Vin alimentation39
(1973, p. 11).

O poema se dá a comer. Artaud convida o leitor à comer


sua poesia, sabendo que comer poesia significa absorver os vazios
da fome. Ele diz em carta à Henri Parisot, em 1945, de Rodez:
“je n’aime pas les poèmes de la nourriture mais les poèmes de la
faim”40 (1979b, p. 203). E justamente nesse seu poema vemos
que a fome pode se esboçar como motor de força de intervenção

38
Lembro aqui o caráter de inversão proposto por Evelyne Grossman no tocante
ao fenômeno da abjeção.
39
Tradução: “A fome não espera, /Acorrer ao mais aflito, / Dar de comer a todos.
/ O que resta? / Onde se abriga o problema? / Açúcar / Café / Trigo moenda /
Batatas refinaria / Outros legumes padaria / Vinho alimentação”.
40
Tradução: “não gosto dos poemas de nutrição, mas daqueles da fome”.
Fragmentações 85

sobre a crise, associando-se, desse modo, às bases de seu teatro da


crueldade. Citaremos alguns trechos necessários para a compre-
ensão dessa intervenção:

Mais une intervention, puisqu’une intervention est inévitable


et nécessaire, ne pourrait se faire, pour être efficace elle-même
et décisive, que dans le sens d’un certain nombre de nécessités
naturelles et en flairant les évenements [...]. Que la situation
soit grave, angoissante, et plus qu’angoissante, menaçante, nul
ne le niera et il ne dépend peut-être plus de nous qu’elle ne de-
vienne d’ici à demain catastrophique [...]. L’état ne donne pas
d’allocation de chômage, mais les municipalités, désireuses
tout de même de ne pas laisser absolument mourir de faim les
trois cent mille chômeurs de la région parisienne, prennent sur
des caisses de secours hâtivement organisées une somme de six
à huit francs par jour à donner à chaque chômeur, qui pour peu
qu’il ait un peu de famille a juste de quoi conserver là-dessus
de forces pour se voir lucidement mourir de faim. Ceci est la
solution telle qu’elle se peint aux non-prévenus et aux igno-
rants. Mais ces éléments sont insuffisants pour dresser, devant
les yeux de qui n’a pas peur de considérer la vérité en face, le ta-
bleau précurseur d’immenses, inévitables et sans doute salutai-
res parce que nécessaires bouleversements.41 (1973, pp. 13-5).

41
Tradução: “Mas uma intervenção, já que uma intervenção é inevitável e neces-
sária, não poderia fazer-se, para ser ela mesma eficaz e decisiva, senão no sentido
de um certo número de necessidades naturais e farejando os acontecimentos
[...] Que a situação seja grave, angustiante, e, mais que angustiante, ameaçado-
ra, ninguém o negará, e talvez não dependa mais de nós o ela se tornar, de hoje
pra amanhã, catastrófica [...]. O estado não aloca empregos, mas as municipa-
lidades, desejosas de qualquer maneira a não deixar absolutamente morrer de
fome os trezentos mil desempregados da região parisiense, pegam dos fundos de
assistência apressadamente organizados uma soma de seis a oito francos por dia
para dar a cada desempregado, que, por pouco que tenha uma família, tem o
bastante para conservar com isso o tanto de forças necessárias para se ver lucida-
mente morrer de fome. Esta é a solução tal qual se pinta aos desprevenidos e aos
ignorantes. Mas esses elementos são insuficientes para erguer, diante dos olhos
86 Antonin Artaud

A intervenção para o poeta se relacionaria com a necessi-


dade e com a eficácia. Estamos balizados pelas mesmas acepções
que constelam a “noção concreta de crueldade”. A necessidade
é da ordem da violência. Mais uma vez, violência e eficácia são
necessárias à implementação da poesia cruel. Entretanto, além
dessa confirmação, nos interessaria discutir com o texto sua lú-
cida e surpreendente proposta: “fazer da fome tesouro”. Aqui so-
mos enviados para um reconhecimento da fome como força e
ainda, para o inevitável, a fome como mercadoria, tesouro, ouro,
dinheiro – valor econômico no destino inevitável da política. O
poeta alerta: façamos nós mesmos de nossa fome nossa rique-
za; mesmo que a catástrofe não dependa mais de nós. A fome
como força reaparece em 1947, aí indicando, porém, um retor-
no à saúde ou ao teatro da crueldade. A fome como traço desse
corpo-força seria contato com os buracos do vazio, estômago de
miséria, lugar de reconstrução do corpo mutilado, como já assi-
nalamos. Esse texto de 1932 antecipa-se à catástrofe, mas, e prin-
cipalmente, destina aos seus leitores a necessidade de “se tomar
o próprio corpo”. Antes que a produção se rarefaça, façamos nós
de nossa fome nosso tesouro. A partir de seus últimos textos, a
concepção de um corpo-força avança. Mas já poderíamos aqui
inferir o lugar do vazio-cheio, a força da fome como constitutiva
desse corpo, e um apelo à desalienação simbólica de um leitor
fadado aos esquemas de ingestão-produção.
Esse poema político de 1932 nos abre ainda outra pers-
pectiva: as questões colocadas por Artaud tocam problemas
certamente mais amplos do que seu “drama individual”. So-
mente aí poderíamos retornar ao segundo tempo do poema de
1947 – onde se expõe, mais uma vez, o teatro da crueldade.
Localizada a crise, de forma a, como disse o poeta, identifi-

de quem não tem medo de considerar a verdade em face, o quadro precursor de


imensos, inevitáveis e, sem dúvida, salutares, porque necessários, transtornos”.
Fragmentações 87

car “un angle par lequel mon drame particulier touche à la vie
genérale”42 (1978a, p. 220).
O poeta reafirma a necessidade de um teatro cruel como
“retorno de uma eterna saúde”, sendo essa a possibilidade de
“construir a própria realidade”: “Le meilleur moyen de s’en gué-
rir / et de le détruire/ est d’achever de construire la réalité. / Car
la réalité n’est pas achevée, / elle n’est pas encore construite. / De
son achèvement dépendra/ dans le monde de la vie éternelle/
le retour d’une éternelle santé”43 (1996d, p. 110). O teatro da
crueldade estaria ligando mundos diferentes, um mundo onde a
vida seria eterna e este outro onde caracterizamos a realidade. É
importante assinalar que a trajetória de Artaud está marcada por
essa concepção de um outro plano que não se resume à existên-
cia disso que chamamos realidade. Como assinalamos, em um
primeiro momento – marcado por seu encontro com o teatro
balinês na Exposição Colonial, de 1931 (1994b, pp. 51-66), em
Paris, sua pesquisa sobre Heliogábalo (1982b, 7-115), que resulta
em livro escrito em 1934, sua busca por uma cultura viva no Mé-
xico em 1936 e todos os seus estudos sobre a cabala e as religiões
orientais claramente presentes no livro As novas revelações do ser
(1982b, pp. 115-44), de 1937, assim como n’O teatro e seu duplo,
escrito a partir de 1931 e publicado em 1938 – Artaud parecia se
ligar à ideia de uma mística das origens, ou ainda, a construção
de um lugar primeiro, puro, originário, uno, que a cena teatral
deveria atualizar ou rerritualizar.
Mas, aqui, e em todo seu último período criador, ocorre
um deslocamento importantíssimo. Permanece a ideia de que os
corpos não se esgotam sobre o plano em que os concebemos; per-
manece, portanto, a necessidade de refazê-los. Permanece, ainda,
a ideia de um plano temporal do retorno, que nos aponta para

42
Tradução: “um ângulo pelo qual meu drama particular toca a vida geral”.
43
Ver nota 78.
88 Antonin Artaud

a necessidade de constante construção. Esse retorno – teatro da


crueldade – se localiza precisamente sobre a necessidade sem-
pre presente, incessante no homem, de se refazer. No entanto,
observamos que aqui Artaud não se filia mais à ideia de uma
origem como reunião dos contrários para formação do uno. Ele
indica o retorno como sendo da ordem de uma necessidade eter-
na nesse mundo aqui ainda não acabado e aberto, portanto, a
se refazer. Movimento da necessidade, da constância e da aber-
tura: “Le théâtre de la cruauté / n’est pas le symbole d’un vide
absent, / d’une épouvantable incapacité de se réaliser dans / sa
vie d’homme. / Il est l’affirmation / d’une terrible / et d’ailleurs
inéluctable nécessité”44 (1996d, p. 110).
É importante assinalar a afirmação do teatro da crueldade
na vida do homem. Ele não se destina aos deuses, ele se carac-
teriza como necessidade daqui. No estudo feito por Monique
Borie, intitulado Antonin Artaud – le théâtre et le retour aux sour-
ces, a autora defende a ideia de um Artaud que buscará sempre
as origens, esse uno primeiro. Assim, sua saída para o dualismo
racionalista do velho mundo seria o monismo antigo ou alheio
do novo mundo: “Seule une culture unitaire lui propose une
vision qui rend possible la reconquête d’une idée de la totalité”45
(1989, p. 181). Borie sugere que uma constante nas pesquisas e
criações do poeta é a saída unitária como solução para o conflito
dualista. Mas como vimos tentando indicar – e a noção de fome
também aí se insere – prevalece a ideia de que não se poderia
ensacar a complexidade presente nesses últimos textos de Artaud
como sendo uma repetição de um modelo de forças unitárias
presente nos mitos antigos, ou nas culturas orientais ou ainda

44
Tradução: “O teatro da crueldade / não é o símbolo de uma vida ausente, / de
uma assustadora incapacidade de se realizar na / sua vida de homem. / Ele é a
afirmação / de uma terrível / e, aliás, inelutável, necessidade”.
45
Tradução: “Apenas uma cultura unitária sugere a ele uma visão que torna pos-
sível a reconquista de uma ideia de totalidade”.
Fragmentações 89

em toda uma ideia mágica que cerca a Idade Média. Claro, se


comparado ao teatro psicológico, ao cartesianismo francês ou à
racionalidade tecnológica – liderada pelos Estados Unidos a par-
tir da Segunda Guerra e denunciada pelo poeta46 –, Antonin Ar-
taud estaria mais próximo do mito desse outro mundo alheio ou
distante aos olhos do europeu. No entanto, insistimos que seu
teatro e sua concepção de crueldade pertencem ao nosso mundo,
sendo a afirmação e não a negação do mesmo. E, sobretudo, seria
preciso frisar que a totalidade não se oferece como horizonte para
o refazer dos corpos em Artaud. Eis aí onde se insere a valência
da fome para o seu pensamento do corpo. Não seria ainda um
pensamento marcadamente dualista que põe em cena a própria
noção de monismo? Não seria ainda o mesmo olhar que afirma-
ria: como não o enquadramos nessa nossa lógica, ele pertence à
outra, mas ainda assim fruto da “nossa” lógica? Pois parece haver
a necessidade de rompimento com o solo da lógica em Artaud,
ou com as doutrinas do julgamento. A grande dificuldade é que
isso se constrói sobre o terreno do pensamento e da linguagem,
onde dificilmente dela escapamos. O combate é constante, al-
guns outros lugares são criados pelo poeta, eles emergem e se
revelam em sua própria transitoriedade. O rompimento, a se-
paração e a erosão são o solo de Artaud, não há terra firme por
aqui. Nesse sentido, penso ser mais interessante assinalar – além
de suas possíveis ligações com essa “mágica” de uma cultura viva
e antiga – aquilo que foi próprio à sua criação, que parte desse
nosso mundo moderno e lança para seus posteriores um desafio
antes não colocado. O traço diferencial, se comparado aos textos
anteriores, em que o poeta se identificava mais claramente com
culturas “outras”, se faz presente aqui nessa reformulação de sua
poesia cruel.

46
Ver o texto “Pour en finir avec le jugement de dieu”, no 13o volume das Obras
completas (1996d, pp. 84-7).
90 Antonin Artaud

Se em 1932 o poeta se confrontava com a necessidade


de refazer o homem ou acabar de construir a realidade, ele não
deixou de indicar – como mostrou no poema da fome – que
essa necessidade poderia já não mais conseguir intervir em nossa
realidade, marca rigorosa e perspicaz de sua crítica. Se antes ha-
veria uma busca de retorno ao originário ou ao não tocado pela
dita civilização,47 aqui já não se trata mais disso. A contaminação
estaria generalizada. Se poderia mesmo dizer que aqui o teatro
da crueldade é a contaminação. Não há um mundo puro, mas
a necessidade de contaminar os mundos, para finalmente fazer
dançar o corpo humano. Tal contaminação se esboça na língua
ou na construção dessa linguagem poética de Artaud:

Sur les pentes jamais visitées


Du Caucase
Des Karphates
De l’Himalaya,
Des Apennins,
Ont lieu tous les jours,
Nuit et jour,
Depuis des années et des années,
D’épouvantable rites corporels
Où la vie noire,
La vie jamais contrôlée et noire
Se donne d’épouvantables et repoussants repas48
(1996d, pp. 110-1)

47
Assinalamos aqui a viagem ao México feita por Artaud em 1937, na trilha desse
novo homem.
48
Tradução: “Sobre as escarpas nunca visitadas / Do Cáucaso / Dos Cárpatos /
Do Himalaia / Dos Apeninos / Têm lugar dia a dia, / Noite e dia, / Há anos e
anos, / Terríveis ritos corporais / Em que a vida negra, / A vida jamais controla-
da e negra / Compraz-se em terríveis e repugnantes repastos”.
Fragmentações 91

Gostaríamos de invocar aqui certa incorporação das danças


“visitadas” ou “criadas” por Artaud como elemento fundamental
para a construção de seu ritmo poético. Mas, ainda, essa incorpo-
ração das “danças macabras”, dos “ritos negros”, aparecem como
construção da cena cruel não mais em oposição à cultura ociden-
tal. Artaud indica que as escarpas nunca visitadas – desses mun-
dos não ocidentalizados – estariam em plena contaminação com
os eczemas, tuberculoses ou epidemias de nossas vidas modernas.
Ora, não há mais aqui um lugar para o puro – tudo já teria sido
contaminado:

Il n’est pas besoin de chercher ailleurs que dans


ces danses rituelles noires
l’origine de tous les eczémas,
de tous les zonas,
des toutes les épidémies,
de toutes les pestes
dont la médecine moderne,
de plus en plus déroutée,
se montre impuissante à trouver la cautérisation49
(1996d, pp. 112-3)

O “retorno de uma eterna saúde” não seria mais um retor-


no ao originário, e sim à essa zona limite onde vida e morte se
encontram não mais em oposição, onde seria preciso buscar os
frutos dessa conjunção epidêmica:

En écoutant la respiration ou le pouls d’un malade,


en prêtant l’oreille, devant les camps de concentration

49
“Não é preciso procurar em outros lugares / que não estas danças rituais negras
/ a origem de todos os eczemas, / de todas as zonas / de todas as epidemias, / de
todas as pestes / de que a medicina moderna, / a cada passo mais perdida, / se
mostra impotente para encontrar a cauterização”.
92 Antonin Artaud

de ces corps rationnés de la misère,


aux battements de pieds, de troncs et de sexes
du champ immense et refoulé
de certains terribles microbes
qui sont
d’autres corps humains.

Où sont-ils?
Au niveau où dans les profondeurs
de certaines tombes
en des endroits historiquement
sinon géographiquement insoupçonnés
[…]
Là, les vivants s’y donnent rendez-vous
avec les morts
[…]
Ce sont ces soulèvements
où la rencontre de deux mondes inouïs se peint
sans cesse50
(1996d, pp. 114-5)

Como se vê, parece impossível adentrar nos últimos tex-


tos e desenhos de Artaud sem atentar para a contaminação. Ela
é contaminação poética da linguagem – como disse Jean Michel
Rey (1991, p. 26) –, é, ainda, a derrocada de uma origem pura,
também a necessidade de comunicar mundos distantes, corpos or-

50
Tradução: “Escutando a respiração ou o pulso de um doente, / dando ouvidos,
diante dos campos de concentração / desses corpos racionados pela miséria, /
às batidas de pés, de troncos e de sexos / do campo imenso e recalcado / por
certos terríveis micróbios / que são / outros corpos humanos. // Onde estão?
No nível onde as profundezas / de certas tumbas / e de sítios historicamente / se
não geograficamente insuspeitos / [...] / Ali os vivos vão se encontrar / com os
mortos / [...] / São esses levantes / Onde o encontro de dois mundos inauditos
se pinta / sem trégua”.
Fragmentações 93

ganizados e hierarquizados. A contaminação torna-se a base para


a poética da crueldade. Se antes a imagem da peste já oferecia a
Artaud a presença da cena cruel, ela agora pestífera em corpo da
língua, que se multiplica, se parte, faz dançar as letras, explode em
fragmentos. Os vazios se interpõem, sopram o poema, o corpo da
fome é o estilhaçar da sexualidade presa apenas aos órgãos, sexua-
lidade produzida e enganosa. O corpo estilhaçado de uma lingua-
gem partida pode assim se anunciar novo, retomar as perguntas
sobre a origem a partir de um outro lugar, lugar onde o poeta o
diz como só ele o sabe e introduz seu leitor nessa desconstrução do
corpo em relação com os seus próprios escombros:

Post-Scriptum
Qui suis-je?
D’où je viens?
Je suis Antonin Artaud
et que je le dise
comme je sais le dire
immédiatement
vous verrez mon corps actuel
voler en éclats
et se ramasser
sous dix milles aspects
notoires
un corps neuf
où vous ne pourrez
plus jamais
m’oublier51
(1996d, p. 118)

51
Tradução: Pos Scriptum / Quem sou eu? / De onde venho? / Eu sou Antonin Ar-
taud / e que eu o diga / como o sei dizer / imeditamente / você verá meu corpo
atual / voar em estilhaços / e se recompor / sob dez mil aspectos / notórios / um
corpo novo / onde você não poderá / jamais / me esquecer”.
94 Antonin Artaud

O “imediatamente” nesse poema lapidar de Artaud nos


insere, para além da contaminação, nesse universo poético onde
a linguagem partiu. Aqui, o imediato não se confunde com o
gratuito, trabalho de improviso. Parte da linguagem aquilo que
nela é “mediação”.52 O imediato passa a ser o não mediado. O
dizer é invenção do dizer, “e que eu o diga como o sei dizer”. A
não mediação seria também entre texto e leitor, em uma busca
de eficácia poética que, como seu teatro da crueldade, visaria
– perfurando o leitor/espectador, estilhaçando o corpo – a cria-
ção de um corpo novo, “onde você não poderá jamais esque-
cer”. Linguagem imediata que reaparece no poema “Dez anos
que a linguagem partiu”:

Dix ans que le langage est parti,


qu’il est entré à la place
ce tonnerre atmosphérique,
cette foudre,
devant la pressuration aristocratique des êtres,
de tous les êtres nobles
du cu,
con, de la pine,
de la lingouette,
de la plalouettee
plaloulette
pactoulette,
de la transe tégumentaire,
de la pellicule,
noble raciaux de l’érotique corporelle,
contre moi, simple puceau du corps,

52
Lembramos aqui que essa via de abordagem nos foi aberta nas discussões
propostas pelo curso do Professor Gerard Dessons intitulado “Antonin Ar-
taud – fou du langage” na universidade de Paris 8 Saint Denis ano letivo de
1999-2000.
Fragmentações 95

dix ans que j’ai fait sauter une fois de plus le Moyen
Age,
[…]
Comment?
Par un coup
anti-logique
anti-philosophique,
anti-intelectuelle,
anti-dialectique
de la langue
par mon crayon noir appuyée
et c’est tout.53
(1995, p. 55)

Linguagem não mediada – partida de seus sentidos ple-


nos, chama ao poeta o corte, o golpe, a sanção. O não mediado
é também o não conciliável. Assim, uma poesia contaminada
que explode os sentidos e representações na força do golpe de
lápis, linguagem presença, raio, trovão. Acontecimento. Pois se-
ria, como sabemos, nesse mesmo poema que Artaud definiria sua
nova prática com a linguagem:

je dis donc que le langage écarté c’est une foudre que je faisais
venir maintenant dans le / fait humain de respirer, laquelle mes
coups de crayon sur le papier sanctionnent. / Et depuis un cer-

53
Tradução: “Dez anos que a linguagem partiu, / no seu lugar entrou / esse trovão
atmosférico / esse raio, / diante da pressão aristocrática dos seres, / de todos os
seres nobres, / do cu, / cono, da piroca, / da lingueta, / da pingoleta, / pingolada,
/ pactolota / da transa tegumentar, / da película, / nobres raciais da erótica cor-
poral, / contra mim, simples virgem do corpo, / dez anos que fiz rebentar uma
vez mais a Idade Média, / [...] / Como? / Por um golpe / antilógico / antifilosó-
fico / anti-intelectual / antidialético / da língua / por meu lápis negro apoiado /
e isso é tudo”.
96 Antonin Artaud

tain jour d’octobre 1939 je n’ai jamais plus écrit sans non plus
dessiner54 (1995a, p. 56).

“Dez anos que a linguagem partiu” foi escrito em 1947 e


faz referência ao ano de 1937, quando Artaud teria sido preso
na Irlanda e ingresso no turbilhão do abandono, da fome, da
miséria e da barbárie dos asilos psiquiátricos franceses durante
a Segunda Guerra. O poema vem nos colocar frente às questões
cruciais que pretendemos aqui desenvolver. Artaud revisita seu
confronto com a sociedade – tal qual viu em Van Gogh (1996d,
pp. 9-63).55 Ele nos coloca diante do imediato, cheio de vazios
– no “fato humano de respirar”. Golpe e sopro se unem na cons-
trução de sua nova plástica poética e, assim, a letra escrita e a
letra vão se diferenciar. A linguagem partida irá reencontrá-las
como distintas. O poeta passa a ser um desenhador de aconte-
cimentos. Ele golpeia as “transposições de temas artísticos”,56 e
corta a linguagem mediação – representação –, propondo um
“verbo” – “gesto” –, uma nova “gramática” e termina seu poema:
“Et ça veut dire qu’il est temps pour un écrivain de fermer bouti-
que, et de quitter la lettre / écrite pour la lettre”57 (1995a, p. 60).

54
Tradução: “digo então que a linguagem separada é um raio que eu fazia vir
agora no / fato humano de respirar, o qual meus golpes de lápis sobre o papel
sancionam. / E desde certo dia de outubro de 1939 nunca mais escrevi sem
também desenhar”.
55
Alertamos para o fato de que Artaud, no texto sobre Van Gogh, vai incisiva-
mente criticar a força com a qual a sociedade se recusou a ouvir o pintor – recu-
sa que, para Artaud, se manifesta logicamente na orelha decepada de Van Gogh.
56
“Or ce que je dessine ce ne sont plus des thèmes d’Art transposés de l’imagi-
nation sur le papier, ce ne sont pas de figures affectives, ce sont des gestes, un
verbe, une grammaire, une arithmétique, une Kabbale et qui/ chie à l’autre,
qui chie sur l’autre” (1995a, p. 56). [Tradução: “Ora, o que eu desenho não
são mais temas da Arte transpostos da imaginação para o papel, não são mais
figuras afetivas, são gestos, um verbo, uma gramática, uma aritmética, uma
Cabala, e que / caga pro outro, que caga em cima do outro”.]
57
Tradução: “E isso quer dizer que é hora de o escritor fechar negócio, e abando-
nar a letra / escrita pela letra”.
Fragmentações 97

1.2. Negação e abertura: o contra em Artaud

Até então prevalecem na reivindicação de um corpo em


Artaud duas noções concretas: a fome e o imediato. Da primei-
ra: fome como índice de não organicidade do corpo (de sua não
totalidade) e de confronto com o vazio (desconstrutor do mo-
delo de corpo humano) enquanto força criativa. Da segunda:
o imediato como não mediação, como presença de uma ideia
de força na escrita, de onde se infere a letra como presença do
traço, do “golpe de lápis”, do gesto, do acontecimento. Ago-
ra, o objeto da nossa discussão é o gesto mesmo de perfurar a
linguagem e o pensamento (enquanto conceitos abstratos). A
noção concreta de imediato, decerto complexa, colocaria algu-
mas questões cruciais para adentrar esse universo. O poeta, di-
ferindo a letra escrita da letra e nos inserindo em seus golpes de
lápis sobre a página, estaria nos enviando à prevalência do gesto
sobre o texto? E tal gesto induziria, inevitavelmente, a miragem
de um sujeito, aquele que produz o gesto? O que seria uma lin-
guagem não mediada? A oposição entre aquele que escreve e o
que se escreve seria a saída para tal pergunta? Artaud descons-
trói uma noção de linguagem e também de sujeito – esse que
daria sentido ao mundo e que, com Descartes, se firmou como
postulado fundamental do pensamento moderno.
Em meu trabalho sobre Artaud me preocupei em esbo-
çar sua própria especificidade. Como consequência, poderemos
observar como ele se inscreve na ruptura com a tradição de um
pensamento moderno. Assim, tais gestos esboçam: primeiro:
os golpes de lápis como sanção (condenação) aos esquemas ló-
gico, filosófico, intelectual e dialético da língua; mas também,
segundo: aos esquemas afetivos mediados pela imaginação –
ou às “transposições de temas artísticos”; terceiro: os golpes de
lápis como traço de afirmação de um gesto na construção de
sua linguagem (desenhos-escritos), de um verbo, ou como disse
98 Antonin Artaud

o poeta de “uma máquina que ao mesmo tempo tem sopro”.


Ainda, quarto: as glossolalias como atividade de uma língua
que busca se aproximar da letra, mas uma letra que não seria
palavra de sentido.
Desdobrando tais gestos – simultâneos na poética de Artaud
– podemos reencontrá-los: uma operação que perfura os esquemas
concebidos da linguagem e, ao perfurar (e fragmentar), figura o
combate entre o imediato e o mediado, provocando as concepções
de sujeito e de linguagem. Uma escrita que busca espacializar a
linguagem em um campo de forças e não somente na tempora-
lidade sequencial do texto, ou na lógica binária, linear e logocên-
trica dos signos: “deixar a letra escrita pela letra”. Mas seria ainda
preciso observar que a atividade poética e plástica busca criar um
pensamento do corpo que sustente essa prática, aliada a ela, dela
inseparável – no sentido de uma “nova intelectualidade” – que
Artaud já buscava desde seus primeiros textos para um teatro da
crueldade. Assim, a maioria de seus grandes desenhos-escritos pos-
suem um texto que os acompanha e comenta. Esses textos58 não
buscam “explicar” seus desenhos. Eles vêm inseri-los no interior de
uma prática, diferenciando-a de outras práticas, situando-a em re-
lação ao domínio das artes plásticas, de seus academicismos, assim
como de suas diferentes correntes e escolas. Eles fazem corpo junto
ao corpo dos desenhos. Eles buscam, como seus desenhos-escri-
tos, oferecer às palavras “a forma de um novo comportamento”. É
nesse sentido que situamos o poema “Dez anos que a linguagem
partiu”: inaugural na reivindicação de um pensamento próprio à
“nova” prática-plástica da linguagem.
Não se poderia dizer que Artaud se insere no universo
plástico somente a partir de 1945 quando, interno no asilo de

58
Tais textos encontram-se dispersos nos Cadernos ou então reunidos no catálogo
do Musée de Marseille aqui já citado. Eles serão indicados no decorrer desse
trabalho.
Fragmentações 99

Rodez, cria seus grandes desenhos-escritos.59 Já em 1915, e em


todo o período de sua participação na cena teatral francesa, po-
demos encontrar desde desenhos de paisagem e retratos até fi-
gurinos e cenários para diversos espetáculos. Na mesma época,
Artaud escreve artigos e prefácios sobre artistas e temas das artes
plásticas (1980, pp. 165-248). No entanto, a partir de Rodez,
seus desenhos se inserem em uma nova prática, em que, no uso
da língua, se faz presente o traço pictórico. Assinala-se ainda a
intensidade criadora desses seus últimos três anos de vida que
geraram a publicação póstuma de nove Cadernos,60 em torno de
40061 páginas cada um, escritos e desenhados incessantemente
pelo poeta em pequenos “cadernos escolares” que lhes eram for-
necidos primeiro em Rodez e, posteriormente, em Paris, no asilo
de Ivry sur Seine, onde veio a falecer em março de 1948. Nessa
última fase, seu material pictórico poderia assim ser dividido: os
grandes desenhos-escritos (foram encontrados em torno de 65),
pequenos desenhos, gris-gris, e, ainda, os seus poemas espaciali-
zados sobre a página. Essas práticas constelam toda a feitura de
seus Cadernos, mas o acesso ao material gráfico é restrito, posto
que – não tendo sido editado – encontra-se no setor de manus-
critos da Biblioteca Nacional Francesa. Eis aqui um indicador da
extensão dessa obra e da necessidade de trabalhos que busquem

59
Costuma-se atribuir o nome Grands dessins-écrits de Rodez ao trabalho plástico
efetuado por Artaud no período entre 1945 e a sua morte em 1948. A maioria
deles feitos com lápis e giz sobre papéis de 65,5 x 50,5 cm. O adjetivo – grande
– refere-se ao suporte utilizado em contraposição aos inúmeros desenhos que
participam de toda sua escrita sobre os “pequenos cadernos de escola” utilizados
por Artaud em Rodez e, posteriormente, em Ivry, Paris.
60
Os Cadernos estão nas Obras completas, do 15o ao 25o volume.
61
Frisamos que a edição linearizou a escrita e excluiu os pequenos desenhos que
constelam a feitura de todos os cadernos de Artaud. Hoje, na edição de 2004,
empreendida por Evelyne Grossman para Quarto Gallimard, encontram-se
muitas fotos em miniatura dos microfilmes dos cadernos de Artaud. Permi-
tindo ao leitor, se não uma edição (até certo ponto irrealizável) que espelha a
colocação na página de sua escrita e os desenhos de seus Cadernos, ao menos o
exemplo e contato com as fotos de algumas das páginas dos mesmos.
100 Antonin Artaud

esboçar tal complexidade; ao mesmo tempo, que evidenciem seu


caráter sempre parcial. O dado concreto, que nos coloca diante
de uma obra aberta, seria fundamental para propiciar leituras
comprometidas com esse caráter não definitivo (e não totaliza-
dor) do universo do poeta. Entendam: “definitivo” é entendido
aqui como doutrinário, conhecimento fechado e acabado acerca
de uma obra, o que daria ao escrito seu caráter de fixidez. Para
nós, a abertura apareceu como traço fundamental de suas cons-
truções. Ela não seria somente consequência de uma obra não
linear, de livros e textos sem títulos ou sem ordenação em capí-
tulos, assim como de uma obra que utiliza diferentes suportes
e linguagens, mas, sobretudo, abertura enquanto determinada
prática de uso da língua, de construção poética e de traço pic-
tórico que pretende se sustentar em um pensamento específico,
como procuraremos mostrar. E se assim for, a maneira como tal
obra se perfaz é traço desse pensamento, de sua formação, gesta-
ção e afirmação.

1.2.1. Negação e negatividade

Em um pequeno texto, escrito entre agosto e setembro de


1946, contido em um de seus nove Cadernos, 23o volume das
Obras completas, encontramos lapidar construção para iniciar-
mos o debate em torno das funções da negação e da abertura, de-
bate propiciador de um pensamento próprio à poética de Artaud:

Moi je ne sais pas,


il n’y a que les êtres pour toujours croire savoir et être taraudés
par l’obsession de savoir et l’outrecuidance de leur savoir.
La science m’offusque
et mes rapports avec les choses,
la conscience,
c’est de crocheter d’une affirmation négatrice la pétulance
Fragmentações 101

d’un passager savoir,


inventer la négation d’un savoir62
(1987, p. 159)

Primeira frase: afirmação de um não saber; já que aqui o


verbo saber, apesar de se situar em uma construção da ordem
da negativa, aparece de forma intransitiva e, ainda, específica ao
sujeito que inaugura o poema – “moi je ne sais pas”. Segunda
frase: inicia-se com diferente construção negativa – “não há se-
não os seres”; aqui, em torno do saber, aparece o ser e o crer – a
crença em saber como efeito do ser. Notemos ainda: a obsessão
do saber – configuração do ser atormentado/transpassado (ta-
raudés) – se manifesta no poema em sua repetição afirmativa. O
saber seria negado (diferentemente) na primeira e na última fra-
se, onde também se esboça a enunciação do poema: a passagem
da afirmação de um não ao inventar a negação. Vejamos o bloco
do quarto ao oitavo verso, onde esse movimento parece se es-
boçar: um saber é nomeado – “a ciência me ofusca”. Seguem-se
dois atributos que concernem ao saber da ciência: a relação com
as coisas e a consciência. Mas o poeta singulariza, são as “suas
relações” que seriam “a consciência”. A relação com as coisas é
o que porta a própria palavra – con-science. E o que ela seria? O
poema responde: “c’est de crocheter d’une affirmation négatrice
la pétulance/ d’un passager savoir […]”. Crocheter, em francês,
seria a abertura de uma porta ou fechadura se utilizando de um
crochet – gancho, agulha, parafuso, gazua; ou ainda: picar, pin-
tar, esburacar utilizando-se, mais uma vez, de um crochet. Sobre
uma afirmação negadora se arromba, se pinta, se pica, se escava,

62
Tradução: “Eu, por mim, não sei, / não há senão os seres pra acharem que sem-
pre sabem e serem atormentados / pela obsessão do saber e a presunção de seu
saber. / A ciência me ofusca / e às minhas relações com as coisas, / a consciência,
/ é escavar com uma afirmação negadora a petulância / de um saber passageiro,
/ inventar a negação de um saber”.
102 Antonin Artaud

se abre – “a petulância de um saber passageiro”. Petulância e


passageiro parecem ser fundamentais nesse poema, por reunirem
em si atributos negativos e positivos muito fortemente. A petu-
lância seria vitalidade, ardor, vivacidade, insolência – qualida-
des positivas que foram se caracterizando negativamente. Assim
também passageiro, que se por um lado nos chama à passagem,
portanto à ação de passar, à travessia, também se fixa em torno
do efêmero, daquilo que não permanece e que se acaba – atribu-
to de negatividade. O poema perfura a afirmação que se tornou
negadora e que o poema caracterizou na “petulância de um saber
passageiro” como tal, esboçando o gesto que permitirá “inventar
a negação de um saber”.
Negação de um saber: Retomemos, mais uma vez, os pri-
meiros textos de Artaud sobre o teatro da crueldade. Em La mise
en scène et la métaphysique (1994b), Artaud frisa sua crítica dian-
te da “ditadura exclusiva da palavra” e propõe ao teatro “uma
poesia no espaço independente da linguagem articulada”. Dis-
cutimos anteriormente como sua proposta não visa aniquilar a
linguagem, nem a palavra, nem o texto, mas incisivamente sua
“ditadura e exclusividade”. Para tanto, vimos desenvolvendo a
busca do poeta para quebrar essa armadura, essa ossatura rígida
da linguagem, e criar, finalmente, sua poesia no espaço – o que
a cena teatral não permitiu. Nesse texto, onde o poeta procura
relacionar o novo teatro com a tradição de pensamento ocidental
que Artaud chama de “metafísica”, se esboça o solo de “um saber”
que será minado/negado no decorrer de sua trajetória poética:

Et en opposition avec cette façon de voir, façon qui me paraît


à moi tout occidentale ou plutôt latine, c’est-à-dire butée, je
dirai que dans la mesure où ce langage part de la scène, où il
tire sont efficacité de sa création spontanée sur la scène, dans la
mesure où il se bat directement avec la scène sans passer par les mots
(et pourquoi n’imaginerait-on pas une pièce composée directe-
Fragmentações 103

ment sur la scène, réalisée sur la scène), - c’est la mise en scène


qui est le théâtre beaucoup plus que la pièce écrite et parlée.
On va me demander sans doute de préciser ce qu’il y a de latin
dans cette façon de voir opposée à la mienne. Ce qu’il y a de
latin, c’est ce besoin de se servir des mots pour exprimer des idées
qui soient claires. Car pour moi les idées claires sont, au théâtre
comme partout ailleurs, des idées mortes et terminées63 (1994b,
p. 39, grifo meu).

Antes de entrarmos no objeto de nossa discussão, seria im-


portante relevar alguns pontos do texto que se relacionam espe-
cificamente ao mundo teatral. Em primeiro lugar, vale lembrar
que Artaud – no tocante ao teatro – se endereça precisamente a
um público de diretores e críticos e a uma determinada cultura
teatral fadada às comédias de costume, ao teatro leve e ao teatro
psicológico, cuja clareza se firma nas “explicações” e na compre-
ensão dos comportamentos burgueses de uma época. Em segun-
do, este teatro estaria destinado a se subjugar ao texto escrito, e,
mais, ao valor dado e fixado desse escrito, porque ele era literário.
Ao diretor, pouco movimento restaria. É nesse sentido que Ar-
taud recoloca o específico ao teatro como sendo a cena, e não o
texto. Assim como, mais tarde, em 1947, colocará, falando de

63
Tradução: “E em oposição a esse modo de ver, modo que me parece bem oci-
dental, ou antes latino, isto é, obstinado, diria que na medida em que essa
linguagem parte da cena, onde extrai sua eficácia de sua criação espontânea em
cena, na medida em que se confronta diretamente com a cena sem passar pelas
palavras (e por que não imaginar uma peça composta diretamente em cena,
realizada em cena?), o teatro é a encenação, muito mais do que a peça escrita
ou falada. Pedir-me-ão, sem dúvida, que explique o que há de latino nesta visão
oposta à minha. O que existe de latino é esta necessidade de utilizar palavras
para expressar ideias que sejam claras. Para mim, no teatro, como em toda
parte, ideias claras são ideias mortas e acabadas”. Edição brasileira. ARTAUD,
Antonin. O teatro e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p. 40 (Coleção Tópicos).
104 Antonin Artaud

Van Gogh, o específico à pintura.64 Mas a cena deveria ser explo-


rada, com ela deveríamos nos “bater”, para encontrar essa “po-
esia no espaço”. E é precisamente aqui que a “espontaneidade”
em nada se relaciona com o improviso, com o superficial no sen-
tido de pouco trabalhado, festivo e gratuito. A espontaneidade
se aproximaria do imediato, tal qual sugerimos anteriormente.
O que efetivamente nos interessa nesse trecho é sua precisão
sobre as afirmações, as bases, ou os pilares disso que nomeia como
“cultura latina”. Em uma primeira instância, tal cultura – que, no
tocante ao teatro, negaria a cena para afirmar o texto – se baseia
na “necessidade de se servir das palavras para exprimir ideias que
sejam claras”. Aqui, portanto, as palavras são meios, instrumentos,
para se atingir determinado fim. Nessa cultura, a expressão supõe
um sujeito (que possui ideias claras), um objeto e as palavras que
irão expressá-lo. O poeta se opõe à concepção fixada entre sujeito-
-objeto. De um lado, a palavra como meio; de outro, a expressão
como índice de um sujeito; e, finalmente, esse sujeito que se sus-
tenta e só existe enquanto tal porque é ideia clara. Se, como vimos
anteriormente, a separação do corpo e do espírito, e principalmen-
te a supremacia de um sobre o outro, seria o locus da incisão crítica
de Artaud à cultura, ela aqui se firma em semblante inevitável.
“As ideias claras são ideias mortas, terminadas”, escreveu Artaud.
Se poderia dizer, fixadas, imobilizadas pela palavra de um sujeito
já morto. Jacques Derrida diz a respeito disso: “Il s’y attaque com-

64
“C’est ce qui me frappe le plus dans van Gogh, le plus peintre de tous les
peintres et qui, sans aller plus loin que ce qu’on appelle et qui est la peinture, sans
sortir du tube, du pinceau, du cadrage du motif et de la toile pour récourir à
l’anedocte, au récit, au drame, à l’action imagée, […], est arrivé à passionner la
nature et les objets” (1996d, p. 28, grifo meu). [Tradução: “E é isto que mais
me toca em Van Gogh, o mais pintor de todos os pintores, e que, sem ir além
do que se chama pintura e que é pintura, sem deixar de lado o tubo, o pincel,
o enquadramento do assunto e da tela, para recorrer à anedota, à narrativa, ao
drama, à ação imaginada, [...], conseguia passionalizar a natureza e os objetos”.
Edição brasileira: ARTAUD, Antonin. Van Gogh: o suicida da sociedade. Tradu-
ção de Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003, p. 49.]
Fragmentações 105

me à un mot latin. Sans avoir peur du mot: à une chose latine, à


cette sédimentation historique d’une chose et d’un mot ensemble
consolidés non loin du sujet et de la substance, des idées qui soient
claires de Descartes”65 (1986, p. 59). Aqui se configura como o
solo primeiro de um saber que será negado por Artaud. Mas, como
pensá-lo a partir de um texto que busca relacionar-se justamente
com a metafísica? E assim, como Artaud negaria – nesse mesmo
texto – o autor das Meditações metafísicas? Seria preciso, como na
maioria dos textos de Artaud, buscar explicitar o que esse poeta
entende por metafísica. Pois se observa, justamente, que o projeto
por ele esboçado “recoloca em questão todas as relações de objeto
a objeto e das formas com suas significações”. Ele diz ainda que
“teatralmente, essas inversões de formas, esses deslocamentos de
significação, poderiam vir a ser o elemento essencial dessa poesia”
(1994b, p. 41). Logo, como vimos a respeito de sua noção de fome
ou de crueldade, seu entendimento da metafísica é fundamental
para que possamos aqui sedimentar o solo do pensamento que foi
escavado pelo poeta.
Seria ingênuo crer que Artaud desconhecesse tal conceito,
como mostra seu texto:

Voilà la deuxième ou la troisième fois que je m’adresse ici à la


métaphysique. Je parlais tout à l’heure, à propos de la psycholo-
gie, d’idées mortes et je sens que beaucoup seront tentés de me
dire que s’il y a au monde une idée inhumaine, une idée ineffi-
cace et morte et qui ne dit que peut de chose, même à l’esprit,
c’est bien celle de la métaphysique66 (1994b, p. 42).

65
Tradução: “Ele a ataca como a uma palavra latina. Sem ter medo da palavra:
uma coisa latina, esta sedimentação histórica de uma coisa consolidada com
uma palavra, não longe do sujeito e da substância, das ideias que sejam claras
de Descartes”.
66
Tradução: “Essa é a segunda ou terceira vez que falo aqui em metafísica. Ainda
há pouco, a respeito da psicologia, eu falava de ideias mortas e sinto que muitos
se veriam tentados a dizer-me que, se existe no mundo uma ideia inumana,
106 Antonin Artaud

Importa mais uma vez perfurar os conceitos abstratos –


ideias mortas – e buscar na trilha do poeta como ele constrói
suas noções concretas. Em um plano geral, para Artaud, “tirar as
consequências poéticas extremas dos meios de realização é fazer
metafísica” (1994b, p. 44).67 Mais uma vez, o poeta vai esmiuçar
os meios de realização teatrais. E, porque as bases do teatro para
Artaud seriam poéticas, torna-se necessário – para desenvolver
sua ideia metafísica – pensá-la em sua relação com a linguagem
articulada:

Faire la métaphysique du langage articulé, c’est faire servir le


langage à exprimer ce qu’il n’exprime pas d’habitude: c’est s’en
servir d’une façon nouvelle, exceptionnelle et inaccoutumée,
c’est lui rendre ses possibilités d’ébranlement physique, c’est le
diviser et le répartir activement dans l’espace, c’est prendre les
intonations d’une manière concrète absolue et leur restituer le
pouvoir qu’elles auraient de déchirer et de manifester réellement
quelque chose, c’est se retourner contre le langage et ses sources
bassements utilitaires, on pourrait dire alimentaires, contre ses
origines de bête traquée, c’est enfin considérer le langage sous
la forme de l’Incantation”68 (1994b, p. 45, grifos meus, com
exceção do último).

uma ideia ineficaz e morta e que pouco diz, mesmo ao espírito, essa ideia é
exatamente a da metafísica”. Edição brasileira: ARTAUD, Antonin. O teatro e
seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 44.
(Coleção Tópicos).
67
“Or tirer les conséquences poétiques extrêmes des moyens de réalisation c’est en
faire de la métaphysique.”
68
Tradução: “Fazer a metafísica da linguagem articulada é fazer com que a lingua-
gem sirva para expressar aquilo que normalmente ela não expressa: é usá-la de
um modo novo, excepcional e incomum, é devolver-lhe suas possibilidades de
comoção física, é dividi-la e distribuí-la ativamente no espaço, é tomar as ento-
nações de uma maneira concreta absoluta e devolver-lhe o poder que teriam de
dilacerar e manifestar realmente alguma coisa, é voltar-se contra a linguagem e
suas fontes rasteiramente utilitárias, poder-se-ia dizer, alimentares, contra suas
origens de animal acuado, é, enfim, considerar a linguagem sob a forma do En-
Fragmentações 107

O trecho mostra que a metafísica para Artaud em muito se


diferenciaria de um conjunto de ideias racionais, que se elevaria
e se distanciaria do plano sensível para então encontrar o conhe-
cimento das coisas. Ora, Artaud encontra a metafísica da lingua-
gem justamente na possibilidade que ela tem de provocar um
“abalo físico”. Ele “rasga” o tecido da linguagem. O gesto que
rasga a linguagem propiciaria às palavras uma entonação capaz
de rasgar outros tecidos sensíveis próximos ao espectador e tam-
bém ao leitor. Observa-se na metafísica de Artaud, assim como
em sua noção de crueldade, um exercício diante da palavra que
vai desfixar seus sentidos, desmontar as letras, reencontrar ca-
madas subterrâneas esquecidas, um trabalho ao pé da letra que,
nesse caso, encontraria a metafísica como uma “física primeira”.
Como disse Gérard Durozoi em seu estudo sobre o poeta:

Ce qu’il nomme métaphysique ne correspond pas en effet à


ce que la tradition philosophique occidentale entend par le
même mot. Cette tradition introduit un dualisme radical dans
l’univers puisqu’elle distingue seulement le physique (sensible,
visible, scientifiquement dominable) de ce qui le dépasse et se
situe “au-delà” (c’est là l’un des sens du préfixe grec méta-).
[…] Artaud refuse ce dualisme. Pour lui, la métaphysique est
sans doute encore le fondement du physique, mais elle ne dé-
vient pas pour si peu insensible et immatérielle. Tout au con-
traire: il n’y a pas de métaphysique que ce qui affleure au phy-
sique, ce qui transparaît dans le visible. La métaphysique est une
physique première, ou primordiale. Elle devient dès lors le lieu
d’une quête possible: la manifestation en est concevable, com-
me union, unité plutôt, du concret et de l’abstrait, ou, si l’on

cantamento”. Edição brasileira. ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Trad.


Teixeira Coelho. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 46-7. (Coleção
Tópicos).
108 Antonin Artaud

préfère, comme prolongement ou résonance réciproque de l’un


dans l’autre69 (1972, p. 140, grifo meu).

Desse modo, encontraríamos na negação do pensamento


dualista uma das bases da construção de seu pensamento po-
ético. Sua crítica recai sobre a separação que esse pensamento
impõe, mas, e sobretudo, sobre a hierarquia como modo dessa
separação: o espírito sobre o corpo, a racionalidade sobre a sensi-
bilidade, o sujeito sobre a linguagem, a linguagem sobre as coisas,
Deus sobre o homem. Poderíamos frisar que esse primeiro con-
fronto de Artaud se localizaria sobre essas hierarquias – evento
que se manifesta claramente na sua adesão ao grupo surrealista
em 1924 e nas propostas, manifestos e cartas endereçados aos re-
presentantes legais desse mesmo pensamento hierárquico: como
aos médicos-chefes dos asilos de loucos, aos reitores das Uni-
versidades Europeias, ao Papa, entre outros. Mas, no entanto,
não se torna tão óbvio para mim que seu objetivo último seria
alcançar um pensamento do uno, como assinalou Durozoi, entre
outros. Em primeiro lugar, não me parece que a busca da uni-
dade se iguale ao que Durozoi constrói como ressonância de um
elemento no outro, seu antagônico. Parece haver aí uma passa-
gem entre um pensamento do uno, da fusão, a um pensamento
dialético. A síntese dialética – pressuposta na interferência de

69
Tradução: “Isto que ele nomeia metafísica não corresponde, com efeito, àquilo
que a tradição filosófica ocidental entende pela mesma palavra. Essa tradição
introduz um dualismo radical no universo, já que ela distingue somente o físico
(sensível, visível, cientificamente dominável) daquilo que o ultrapassa e se situa
‘além’ (está aí um dos sentidos do prefixo grego meta-), [...] Artaud recusa esse
dualismo. Para ele, a metafísica ainda é, sem dúvida, o fundamento do físico,
mas ela não se torna por tal insensível e imaterial. Bem ao contrário: não há
metafísica que não seja o que aflora no físico, que transparece no visível. A me-
tafísica é uma física primeira, ou primordial. Ela se torna então o lugar de uma
busca possível: a sua manifestação é concebível, como união, ou melhor, como
unidade, do concreto e do abstrato, ou, caso se prefira, como prolongamento
ou ressonância recíproca de um no outro”.
Fragmentações 109

um elemento sobre seu negativo – não seria da mesma ordem


da fusão entre contrários, apesar de permanecer o dualismo nela.
O que seria importante frisar é o percurso efetuado ao lon-
go das “negações” postas na obra de Artaud e de que maneira
elas operam no surgir (no inventar) de uma experiência do pen-
samento que, entretanto, recusa qualquer sistematização. Como
notamos, a negação dos pensamentos sistêmicos (que participa
dessa recusa mais ampla feita ao campo das doutrinas) já se ma-
nifestava desde os primórdios da cena artaudiana. Sua relação
com o surrealismo não deixou de participar e de compor esta
cena. Por um lado, o poeta fortalece a investida negadora tão
cara aos movimentos vanguardistas. Mas, por outro lado, Artaud
viria a representar uma ameaça quando a negação bombástica
dos manifestos surrealistas deslizou para a urgência em restabe-
lecer novos valores – artísticos, sociais e culturais. Em 1927, ele
foi expulso do grupo surrealista. A aderência dos surrealistas ao
pensamento marxista e a opção pelo sectarismo partidário re-
sultariam em sua exclusão. Mas, se deve notar que as questões
acerca da revolução ultrapassariam esse episódio limite e atra-
vessariam as relações entre o poeta e os surrealistas, sobretudo
André Breton. As diferenças entre Artaud e Breton seriam muito
anteriores ao fato que gerou o rompimento. De certa forma, o
poeta parecia inquietar as tendências de um movimento que se
mostrou desde muito cedo desejante de firmar, balizar e solidifi-
car saídas para a transformação do homem. Como disse Maurice
Blanchot (1999), um grande problema dos surrealistas teria sido
sua complacência para com o sucesso.
Em 1947, André Breton e Marcel Duchamp organizam
em Paris a Exposição Internacional Surrealista. Artaud teria sido
convidado a expor seus desenhos, não aceita e responde em carta
à Breton aquilo que já teria marcado, vinte anos antes, sua rup-
tura com o grupo:
110 Antonin Artaud

Et il y a à ce point une révolution toujours à faire à condition


que l’homme ne se pense pas révolutionnaire seulement sur le
plan social, mais qu’il croie qu’il doive encore et surtout l’être
sur le plan physique, physiologique, anatomique, fonctionnel,
circulatoire, respiratoire, dynamique, atomique et électrique70
(1968, p. 8).

A revolução, para Artaud, compreenderia um movimento


sempiterno, desestabilizador, constante, inconciliável face aos pon-
tos de fixação – ideológicos e doutrinários. Mas, ainda, seria uma
revolução agindo sobre a organização dos corpos, desfazendo suas
amarras orgânicas já que estas serviriam justamente à invasão ou à
“incubação” das doutrinas, sempre maléficas. Já em 1927, Artaud
escreveria um texto face às acusações que sofreu dos surrealistas,
cuja função se oferecia no próprio título – “Ponto final”:

Ces désespérés qui dans la peur d’être dupes se rallient au lam-


beau le plus pourri de la vie! Qui ne veulent plus considérer
d’autre action que celle capable de changer quelque chose à
l’ordre brut de la réalité! Donnent au problème de la révolution
sa solution la plus systématique!71 (1993, p. 71, grifo meu).

Aqui também aparece – na procura incessante de Artaud


– sua recusa aos pensamentos sistêmicos que aparentemente ofe-
receriam saídas ou alternativas para a crise do homem:

70
Tradução: “E há, neste ponto, uma revolução sempre por fazer, com a condição
de que o homem não se pense revolucionário somente no plano social, mas que
acredite dever ainda, e sobretudo, sê-lo no plano psíquico, fisiológico, anatômi-
co, funcional, circulatório, respiratório, dinâmico, atômico e elétrico”.
71
Tradução: “Estes desesperados que, com medo de serem parvos, se agarram ao
farrapo mais roto da vida. Que não querem considerar mais outra ação além
daquela capaz de mudar alguma coisa na ordem bruta da realidade! Conferem
ao problema da revolução a sua solução mais sistemática!”.
Fragmentações 111

Le surréalisme ne pouvait pas me rendre une substance perdue,


mais il m’a apprit à ne plus chercher dans le travail de la pen-
sée une continuité qui m’était devenue impossible, et à savoir
me contenter des larves que mon cerveau faisait traîner devant
moi72 (1993, p. 67).

Essa breve passagem pelo surrealismo nos mostra mais al-


guns elementos para que tentemos nos aproximar das negações
operadas pelo pensamento de Artaud, para que possamos indicar
a complexidade que as cerca, impedindo de circunscrevê-las a
partir dessa ou daquela teoria. Interessa-nos assinalar, para além
das fontes doutrinárias negadas ao longo da experiência que
constrói seu próprio pensamento, como o poeta vai atravessar –
perfurando e questionando – essas mesmas fontes. Isso resultaria
em dizer que essas mesmas fontes negadas por Artaud irão par-
ticipar e até conduzir traços importantes de sua experiência do
pensamento. O movimento que visa provocá-las e perfurá-las vai
trazê-las para a cena central do seu próprio pensamento.
Tentemos, então, percorrer a busca de um pensamento
próprio e a luta com inúmeras tentativas de aprisionamento de
seu pensar. Essa luta não deixaria de se acentuar face ao aprisio-
namento concreto que viveu de 1937 a 1945. Pode-se mesmo
dizer até os últimos dias de sua vida. Pois mesmo tendo sido
liberado do asilo de Rodez em 1945, com a ajuda de seus ami-
gos, entre eles, Arthur Adamov, Jean Dubuffet e Marthe Robert
mais ativamente, e por eles encaminhado (com a indicação de
Paule Thévenin, na época estudante de medicina) ao asilo de
Ivry sur Seine, nos arredores de Paris, se pode notar que, mesmo
usufruindo da liberdade de ir e vir, o poeta continuou e morreu

72
Tradução: “O surrealismo não podia me devolver uma substância perdida, mas
ele me ensinou a não mais buscar no trabalho do pensamento uma continuida-
de que se me tornara impossível, e a saber me contentar com as larvas que meu
cérebro fazia rastejar diante de mim”.
112 Antonin Artaud

asilado. Em sua resposta aos surrealistas, em 1927, após sofrer


agressões públicas vindas do grupo, o poeta escreve nas últimas
linhas de “Ponto final”: “L’éternité sonne la patience. En atten-
dant je ronge mon frein. Mais j’avais surtout besoin de me libé-
rer. De bien déterminer ma solitude. Je peux souffrir seul. Je sais
que le temps me venge”73 (1993, p. 69).
De certa maneira, se poderia dizer que muito tempo foi
necessário para que se começasse a descobrir a obra deixada pelo
poeta. Ainda nessa perspectiva, se poderia indicar que Artaud te-
ria propiciado, mais tarde, uma profunda transformação do pen-
samento contemporâneo com seus questionamentos acerca da
linguagem e do sujeito, em que nomes como Michel Foucault,
Jacques Derrida e Gilles Deleuze facilmente seriam reconheci-
dos. A marca de sua solidão, de sua diferença radical, não seria
de todo silenciada. A força e eficácia buscada por sua escrita não
deixaria de contribuir para os abalos dos sistemas bem estabele-
cidos de um pensamento dialético ou os esquemas hierárquicos
do poder. Permitindo a eclosão de novos modos de aliar e pensar
política e subjetividade. Seja no âmbito da biopolítica ou naque-
le da configuração de novas micropolíticas menos segmentariza-
das, partidarizadas ou mesmo organizadas.
Artaud, sob esse aspecto, teria tornado sua experiência
limite de despossessão do próprio pensamento – de separação
mesma da linguagem – um elemento de força e, por conseguin-
te, de conhecimento. Da experiência limite como fonte de co-
nhecimento resulta a negação do saber. A distinção mesma entre
saber e conhecimento. Isso já o separava dos surrealistas. Isso
mesmo que posteriormente serviria, por exemplo, a Foucault,
como argumento incontornável para construção de sua histó-

73
Tradução: “A eternidade repica a paciência. Enquanto espero, gasto meu freio.
Mas, acima de tudo, eu precisava me liberar. Bem determinar a minha solidão.
Eu posso sofrer só. Eu sei que o tempo me vinga”.
Fragmentações 113

ria arqueológica da loucura.74 Lembrando o que diz Foucault:


o sujeito ideal e inteligível da dialética hegeliana, ou o sujeito
substância da razão em Descartes, ou mesmo o sujeito que daria
sentido ao mundo do existencialismo sartriano, todos eles te-
riam sido sentidos por uma geração posterior como totalmente
insuficientes frente à barbárie vivida pelos europeus na Segunda
Guerra Mundial. Desse modo, o engano com a vida experimen-
tado por Artaud se faria ouvir mais tarde, passados os primeiros
momentos do pós-guerra.
Para Artaud, a travessia do engano foi se radicalizando
em sua produção poética e plástica. Em 1947, na reverberação
da Exposição Internacional do Surrealismo, e com o retorno de
Breton do exílio nos Estados Unidos, inúmeras revistas retomam
o debate dessa vanguarda. Artaud, em meio a demandas, cria um
poema que virá abrir a terceira e última parte de seu livro Suppôts
et suppliciations, intitulada – a parte e o poema – “Interjeições”:

Maloussi toumi
Tapapouts hermafrots.
Emajouts pamafrot
Toupi pissarot
Rapajouts erkampfti
Ce n’est pas le concassement du langage mais la pul-
vérisation
hasardeuse du corps par des ignares qui
Lokalu durgarane
Lokarane alenin tapenin
Anempfti
Dur geluze
Re geluze
Re geluze

74
Ver, por exemplo, “Entretien avec Michel Foucault” (Artaud, 1994b, pp. 41-95).
114 Antonin Artaud

Tagure
Rigolure tsipi
Nulle autre partouze d’esprit n’explique la constitution des
choses,
il n’y a pas de choses,
elles n’ont pas de constitution.
C’est la pétée des gaz érotiques de l’endroit où ça tombe
mort.

Du corps par le corps avec le corps depuis le corps et


jusqu’au corps.
La vie, l’âme ne naissent qu’après. Elles ne naîtront plus.
Entre le corps et le corps il n’y a rien.
Le corps se fait en arrière de lui-même et non en avant,
par coupures de rajouts - ... goût,
beaucoup moins que l’inerte rien,
qui le dépasse de cent trains75
(1978b, pp. 11-2).

Após a primeira estrofe de glossolalias, Artaud nos diz


que não se tratou de reduzir a matéria da linguagem a frag-
mentos, mas sim de pulverizar corpos. A tragédia seria um
pouco mais grave. Sua irreverência, o humor ácido na escolha
das palavras tais como – “partouze d’esprit” ou “pétée de gaz

75
Tradução: Maloussi toumi / Tapapouts hermafrots. / Emajouts pamafrot / Toupi
pissarot / Rapajouts erkampfti / Isto não é o trituramento da linguagem mas a
pulverização / temerária do corpo pelos ignaros que / Lokalu durgarane / Loka-
rane alenin tapenin /Anempfti / Dur geluze / Re geluze / Tagure / Rigolure tsipi
/ Nenhuma outra suruba do espírito explica a constituição / das coisas, / não
há coisas, elas não têm constituição. / É a peidada dos gases eróticos do lugar
onde isso cai / morto. // Do corpo pelo corpo com o corpo desde o corpo e até
o corpo./ A vida, a alma só nascem depois. Elas não vão mais nascer. / Entre
o corpo e o corpo, nada há. / O corpo se faz atrás de si mesmo, não na frente,
/ por incisões de aditivos – gosto, / muito menos que o inerte nada, / que de
cem trens o ultrapassa”.
Fragmentações 115

érotiques” – não seriam suficientes para abafar o teor dessa


denúncia depois dos horrores dos campos de concentração.
Esse poema ditado, oral, musical, prenhe de entonação, de
“encantação”, seria marco em sua invenção da negação – afir-
mação máxima do corpo que se faz no corte que acrescenta
– “par coupures de rajouts”.

1.2.2. A abertura ou a invenção da negação

Esse poema poderia ser lido como emblemático na carac-


terização de uma poesia do contra, de um poeta que viria, vinte
anos depois, a ser reconhecido como inspirador de movimentos
como a contracultura, os beatniks e as barricadas francesas no
maio de 1968. Em 9 de dezembro de 1965, o jornal Le Figaro
Littéraire anuncia a manchete: “Artaud naturalisé beatnik” 76.
No mesmo ano, Jacques Derrida escreve para a revista Tel Quel,
número vinte, seu primeiro texto sobre o poeta, intitulado “La
parole soufflée” 77; ainda em 1965, o ator e amigo Roger Blin
escreve Artaud homme de théâtre78 . Em 1967, ocorre em Praga
uma encenação da peça de Artaud, Les Cenci;79 assim como, na
França, a edição revista e aumentada de suas Obras completas
pela editora Gallimard. A década seguinte só viria consolidar
a visibilidade do poeta. O Jornal de Genebra noticia em 31 de
dezembro de 1972: “Artaud partout”; 80 em 1975, Le Quotidien
de Paris escreve a matéria “Van Gogh et Artaud – les cris de
poètes assassinées”81 e o jornal Le Figaro anuncia “Artaud – le

76
Tradução: “Artaud naturalizado beatnik”.
77
Tradução: “A palavra soprada”.
78
Tradução: “Artaud homem de teatro”.
79
Tradução: “Os Cenci”.
80
Tradução: “Artaud em toda parte”.
81
Tradução: “Van gogh e Artaud – os gritos de poetas assassinados”.
116 Antonin Artaud

génie fou”.82 Em 1976, funda-se em Paris a Associação das Ví-


timas da Psiquiatria.83
Essa apropriação do poeta estaria intimamente ligada à for-
ça da negação em sua trajetória artística como vimos mostrando.
O que me parece ser ainda fundamental é relevar certa consistên-
cia presente no movimento do negar. Se poderia dizer também,
certa resistência. Ou como gostaríamos de pensar com Artaud,
um movimento de invenção da negação. A invenção desloca da
negação seu caráter de reatividade. Artaud não estaria somente
se posicionando contra aquilo que já existiria – seja em termos
de pensamentos filosóficos ou correntes artísticas ou não impor-
ta qual pilar sustentador da cultura. Ele estaria, à sua maneira,
inventando não mais aquilo que se nega, mas a própria negação
como traço constitutivo de seu pensamento. Como mostra o po-
ema “Interjeições”, a negação é retirada de sua gramática conven-
cional – onde se anuncia um sujeito que nega, a partícula adverbial
“ne”, um verbo que é ação do negar e a segunda partícula adverbial
“pas”. O deslocamento que retira da negação o prenúncio de que
o objeto negado deve ser compreendido como ação de tudo negar.
Vejamos: esse poema se mostraria como lista – vide seu próprio
espaçamento sobre a página onde a série de negações é centrali-
zada. Mas a lista não é arbitrária, ela se alinha em combinatórias
de som e sentido simultaneamente, nos dando a sensação de um
deslizar de palavras. Por exemplo: “Pas d’avenir, / pas d’infini, /
pas d’éternité, / pas de problème, / pas de question, / pas de solu-
tion, / pas de cosmos, / pas de genèse, // pas de croyances, / pas
de foi, / pas d’idée, / pas d’unité”84 (anexo 1). Entre “Avenir – In-

82
Tradução: “Artaud – o gênio louco”.
83
Todas essas informações são oriundas de pesquisas em fontes jornalísticas da épo-
ca, que realizamos em fevereiro de 1998 na Bibliothèque de L’Arsenal em Paris.
84
Tradução: “Sem-futuro, /Sem-infinito, / sem-eternidade/ sem-problema, /
sem-questão, / sem-solução / sem-cosmos, / sem-gênese, / sem-crença, / sem-
-fé, / sem-ideia, / sem-unidade”.
Fragmentações 117

fini – Eternité” somos levados em bloco para um universo que dá


sentido ao mundo – ligando o futuro ao pensamento das origens,
“gênese” – que irá finalizar a estrofe. Mas haveria ainda uma que-
bra significativa nesse ritmo apocalíptico da estrofe, representa-
da no verso – “pas de problème” – uma das frases mais banais
no uso da língua francesa e que aqui choca o leitor. Ora, o “pas
de problème”, que em nosso uso da língua poderíamos entender
como “tudo bem”, cria uma ruptura frente às negações anteriores
e desliza para as posteriores, recolocando o problema efetivamente
como “problema, questão e solução” para retornar ao cosmos e à
gênese da própria estrofe. A não arbitrariedade da negação – índice
da combinatória geradora do poema – tampouco poderia ser lida
como fixação dos objetos negados. A própria exaustão criada pela
lista nos coloca ante a impossibilidade de nos prendermos a cada
item negado. E assim a negação não poderá se resumir “naquilo
que eu nego”, “naquilo que sou contra”.
O filósofo Gilles Deleuze, que encontrou na obra e tra-
jetória de Artaud uma das fontes inspiradoras para formula-
ção de seu pensamento da diferença, escreveu em Critique et
Clinique:

Tous les gestes sont des défenses ou même des attaques, esqui-
ves, parades, anticipation d’un coup qu’on ne voit pas toujours
arriver, ou d’un ennemi qu’on arrive pas toujours à identifier:
d’où l’importance des postures du corps. Mais ces combats ex-
térieures, ces combats-contre trouvent leur justification dans
des combats-entre qui déterminent la composition des for-
ces dans les combattants. Il faut distinguer le combat contre
l’Autre, et le combat entre Soi85 (1993, p. 165).

85
Tradução: “Todos os gestos são defesas ou mesmo ataques, esquivas, paradas,
antecipações de um golpe que nem sempre se vê chegar, ou de um inimigo que
nem sempre se consegue identificar: daí a importância das posturas do corpo.
Mas esses combates exteriores, esses combates-contra encontram sua justifica-
118 Antonin Artaud

Aquilo que nos interessa em sua distinção é a clareza


com que define o combate-contra. Para o mesmo, tal combate
se resumiria em uma “vontade de destruição” muito parecida
com o “Julgamento de Deus – que encontraria na destruição
um ideal de justiça” (Deleuze, 1993, p. 166). Esse argumento
reverbera em nossa leitura da negação operada por Artaud.
Ela não se resume no “contra”, mesmo que esse importe para
situar onde o poeta não se encontra. Mesmo que o “contra”
sobreviva como instante de negação e afirmação simultâneos
do saber. Instante que traz para a cena do pensamento o risco
de seu próprio paradoxo.
Mas, como vimos, há para Artaud a invenção da negação,
e aqui, para além “daquilo que nego”, interessa “como nego”.
Importa não abandonar o solo concreto de sua escrita que vai
provocar as bases racionais da linguagem e do pensamento.
A relação entre a negação e a invenção da negação é o que se-
ria fundamental para a construção do corpo poético-plástico
em sua força de eficácia, que é movimento, e que só em mo-
vimento incessante (“corpo em movimento”) transformaria
os atributos fixos do pensamento e da linguagem. Para nós, a
poética e a plástica de Artaud figuram esse movimento a par-
tir de uma noção que não se encontraria mais na negação nem
no contra, que é da ordem da invenção, e que encontramos
como abertura. É fundamental entendermos que a invenção
é, antes de tudo, invenção de um corpo. O que nos interessa
repensar é o movimento: a relação entre o que Deleuze cha-
mou de “contra” e “entre”. Para o pensamento de Deleuze
– cuja matéria é força – o “combate-entre” irá propiciar uma
aproximação da problemática em torno da escrita86 que retira

ção nos combates-entre que determinam a composição das forças nos comba-
tentes. É preciso distinguir o combate contra o Outro e o combate entre Si”.
86
A proposta se situa claramente no texto “Avant propos”, em Critique et Clinique.
Fragmentações 119

do escrever os atributos fixos de sentido, sejam eles sintático-


-gramaticais ou médico-legais, como no tocante à questão do
delírio, por exemplo. O filósofo indica, através do que chama
de “zonas de vizinhança”, ou de “linhas de fuga”, ou de “limi-
te”, o movimento incessante que faz da escrita um vir-a-ser.
Observamos que o combate não se resume no “contra”. E su-
gerimos que o específico de Artaud será sua passagem à in-
venção da negação. Em seu segundo poema de “Interjeições”,
intitulado “Cogne et foutre”, Artaud escreveu:

Qui a lié le sens, lié la pensée, et qui a lié le sens la


pensée,
les a liés en fonction d’une idéation préventive qui avait
ses tables formelles écrites, ses tables de significations
perceptives inscrites sur les parois d’un inverse cerveau.
C’est que le cerveau humain n’est qu’un double qui
dégage
par projection un son pour un signe, un sens pour un
son,
un sentiment pour un signe d’être, […].
Et chaque livre écrit sera lu, et il ne pourra plus rien dire à
des cerveaux complètement décomposés, après avoir
été
arbitrairement imposés et réimposés.
[…].

Je connais un état hors de l’esprit, de la conscience, de


l’être,
et qu’il n’y a plus ni paroles ni lettres,
mais où l’on entre par les cris et par les coups.
120 Antonin Artaud

Et ce ne sont plus des sons ou des sens qui sortent,


plus des paroles
mais des CORPS.87
(1978b, p. 30).

Poder-se-ia ler esse poema, assim como muitos textos de


Artaud, e retirar dele uma mística. Se não há mais palavra,
nem letra, nem som, se estamos fora da consciência, do espí-
rito, do ser, tornamo-nos ou místicos ou mortos. Ou, o mais
óbvio: delirantes. De outro modo, poder-se-ia dizer: o cérebro
não sabe ler! “Vamos destruir o cérebro e ‘liberar’ o corpo”!
Mas a complexidade começa no instante mesmo em que o po-
ema se dá a ler, que ele está escrito, com palavras, sons, signos,
caracteres gráficos, letras. Tal complexidade não nos parece
ser oriunda de uma mística nem de uma destruição. Ela apon-
ta para isso que Artaud chamou de um “estado fora” (“un état
hors...”), e que sua poesia percorre com intensidade e precisão.
Seu diálogo com os “saberes” não é ingênuo, tampouco sua
construção. O trecho acima trata do problema do duplo. O
cérebro como duplo, invertido, caixa preta, de onde se libera
um som como signo, um sentido como som, um sentimento
como signo do ser. A descrição não é neurológica, a inversão
é da ordem de uma “ideação preventiva”. Significações per-
ceptivas inscritas. Surpreendente: inscrições arbitrariamente

87
Tradução: “Quem ligou o sentido, ligou o pensamento, e quem ligou o sentido
ao pensamento, / ligou-os em função de uma ideação preventiva que tinha /
suas tabelas formais escritas, suas tabelas de significações / perceptivas inscritas
sobre as paredes de um cérebro invertido. / É que o cérebro é simplesmente
um duplo que libera / por projeção um som por um signo, um sentido por um
som, / um sentimento por um signo de ser, [...]. / E cada livro escrito será lido,
e não poderá mais dizer nada a / cérebros completamente decompostos, depois
de terem sido / arbitrariamente impostos e reimpostos. / [...] // Eu conheço um
estado fora do espírito, da consciência, do ser, / e que não tem mais palavras
nem letras, / mas onde se entra com gritos e golpes. // E não são mais sons ou
sentidos que saem, / não mais palavras, / mas CORPOS”.
Fragmentações 121

impostas. Dessa lição o poeta diz: “Les lobes du cerveau ne


sont pas infinis, l’infini non plus, / mais il dure”88. E é da
duração do infinito que ele “conhece” um “estado fora”; ou
seja, o infinito não é percebido enquanto ideia (preventiva) e
prévia, o que permite afirmar que “o infinito não é infinito”.
No entanto, é da duração – como força ininterrupta – a expe-
riência desse “estado fora”. Aqui, mais uma vez Artaud chama
o corte, o golpe, o choque, o talhar, o perfurar, o abrir-se para
o lado de fora. Mais uma vez poder-se-ia ler o grito ou o cho-
que como substância, e do som tirar um sentido (atividade
do duplo): desespero, choque-elétrico? Temos entendido que
esse ruído, esse som, ou esses artefatos (pregos, figuras pon-
tiagudas, tubulares, raios) presentes em muitos de seus dese-
nhos, assim como em sua poesia, perfazem um movimento de
abertura – que é passagem, travessia, vazio, branco – “estado
fora” que irá construir esses corpos poéticos e plásticos que
constelam sua obra. Seria a abertura para se refazer um corpo
onde a negação é passageira da invenção:

La tristesse hideuse du vide,


du trou où il n’y a rien,
il ne souffle pas le rien,
il n’y a rien,
c’est au tour du trou,
au point où les mots se retirent,
un trou sans mot,
syllabe sans sons89
(1978b, p. 75).

88
Tradução: “Os lobos do cérebro não são infinitos, tampouco o infinito, mas
ele dura”.
89
Tradução: “A tristeza hedionda do vazio, / do buraco onde não há nada, / ele
não sopra o nada, / não tem nada, / é em torno da toca, / no ponto onde as
palavras se retiram, / um buraco sem palavra, / sílaba sem sons”.
122 Antonin Artaud

Mas assim como não é substância, como o buraco não é fe-


chado e não tem fundo, a abertura também não poderia ser pura,
invenção romântica ou inspiração. Como orifício, ela é lugar de
infecção e de contaminação. Pois, como vimos, a negação passa
pelo buraco da invenção. O mundo podre – “invertido, povoado
de bestas, Deus, diabo, papai-mamãe” – atravessa esse corpo e
ocupa a abertura:

L’électricité est un corps, un poids,


le pilonnage d’une face,
l’aimant tassé d’une surface refoulée du dehors d’un
coup,
à la lisière de ce coup,
coup de poing bleu de ma main verte de désespoir et de
colère, un jour que
devant ce coup
le trou que j’aillais porter aux choses
happa ma main
non pour se garer d’une atteinte
mais pour être le maître,
enfin90
(1978b, p. 62).

Aqui reencontramos o combate-entre na medida em que a


abertura não se interioriza ou se exterioriza, nem psicologia das
profundezas nem projeção paranoica, a abertura é dentro-fora ao
mesmo tempo: “les fonds du corps / à leur face / ne donnent plus

90
Tradução: “A eletricidade é um corpo, um peso, / a piloada de uma face, / o ímã
empilhado de uma superfície repelida de fora de um golpe, / à orla desse golpe,
/ soco azul da minha mão verde de desespero e de / cólera, um dia que ante /
esse golpe / o buraco que eu vinha trazer às coisas / tragou minha mão / não
para escapar da pancada, / mas pra ser o senhor, / enfim”.
Fragmentações 123

rien / car la face a pris le dehors et le dedans, // mais silence”91


(1978b, p. 38). A poesia de Artaud é infectada, perpassada por
tudo isso que ele acusa, dessa negação, da duração desse infinito,
ele escava sua própria matéria para refazer um corpo – um corpo
que se relaciona com a dor e com morte – que se separa vivo para
se reunir outro:

Ce qui est corps c’est l’émaciation de la matière de soi-même,


/ gagnée par soi-même; / ce qui n’a été gagnée dans la douleur
du soi-même / tombe à l’heure de la mort / […] / Car rien
qui bestialise un être comme le goût du bonheur éternel, la
recherche à tout prix du bonheur éternel, / et mademoiselle
Lucifer est cette pute qui n’a jamais voulu quitter le bonheur
éternel. // Mais maintenant la vieille prospection cosmique de
dieu/ n’aura plus lieu. // La fameuse dimension totale est de
devenir en simple homme/ aussi fort que tout l’infini92 (1978b,
pp. 49-50).

Esse poema sem título é seguido por um pequeno poema


que parece completá-lo, encaminhá-lo para esse lugar que ainda
não é e simultaneamente já não é mais – lugar cuja estruturação
poética constrói enquanto presente ou matéria da própria escri-
ta. Corpo dessa abertura entre a vida e a morte, que se manifesta
no “estado fora” – diluindo, desse modo, a própria relação opo-

91
Tradução: “os fundos do corpo / em sua face / não dão mais nada / porque a
face apreendeu o fora e o dentro, / mas silêncio”.
92
Tradução: O que o corpo é, é a emaciação da matéria por si mesma, / ganhada
por si mesma; / aquilo que não se ganhou na dor de si mesmo / tomba na hora
da morte / [...] / Pois nada pra bestializar um corpo como o gosto da felici-
dade eterna, a busca a todo custo da felicidade eterna, / e senhorita Lúcifer é
essa puta que nunca quis abandonar a felicidade eterna. // Mas agora a velha
prospecção cósmica de deus / não terá mais lugar. // A famosa dimensão total é
tornar-se, simples homem, / tão forte quanto todo o infinito”.
124 Antonin Artaud

sitiva entre vida e morte; relação, portanto, que em muito se


diferencia do “contra”:

Et abstrait,
enfin,
tu le seras,
ô homme,
homme,
tu le seras,
homme,
jusqu’au corps,
jusqu’à ce qu’enfin
le corps
s’avance,
jusqu’au point
où le corps
s’avance,
où il s’annonce comme un corps,
par delà le concret du corps,
dit concret
par l’intelligence
ou la science93
(1978b, p. 51).

No desenho e no texto “L’homme et sa douleur”,94 Artaud


também evoca a perfuração que passa a vida na morte e a morte

93
Tradução: “E abstrato, enfim, / tu serás, / ó homem, / homem, / tu o serás, /
homem, / até ao corpo, / até que enfim / o corpo / se adiante / até o ponto /
onde o corpo / se adianta, / onde ele se anuncia como um corpo, / para além do
concreto do corpo, / dito concreto / pela inteligência / ou a ciência”.
94
“O homem e a sua dor”. Indicamos dois livros catálogos na seção “Referências”
deste livro, onde se encontram os desenhos aqui citados: tanto a edição do
Musée de Marseille quanto a Edição Gallimard organizada por Jacques Derrida
e Paule Thévenin.
Fragmentações 125

na vida. Pode-se dizer que ele reencena em outro lugar o sofri-


mento de Cristo. Ele retoma a questão metafísica, mais uma vez
criticando o que nela é transcendência, para recolocar o lugar
da dor não em um Cristo pregado sobre a cruz cuja morte nos
libertaria, mas em um homem que caminha, cuja dor se prega
em seu próprio corpo, e que nem a morte o faria parar: “Non,
mais même pas la mort ne saurait l’arrêter”95. Nesse ponto preci-
saríamos desvendar a “presença desse homem” na construção de
sua própria história.

95
Tradução: “Não, nem mesmo a morte saberia detê-lo”.
Capítulo 2
“Lettres, lettre, l’être”

Sabe-se que após Tric trac du ciel, primeiro livro de Antonin


Artaud, publicado em 1922 – seleção de poemas –, o escritor se
endereça à Nouvelle Revue Française, então dirigida por Jacques
Rivière, na tentativa de fazer com que ele editasse alguns de seus
poemas. Esse contato dará início ao evento singular e significa-
tivo que vai marcar toda a trajetória do poeta e será conhecido
posteriormente sob o título Correspondência com Jacques Rivière.
A relevância de tal acontecimento se faz sentir 22 anos depois,
quando Artaud escreve o preâmbulo para publicação de suas
Obras completas, pela Editora Gallimard:

Voici le texte de la lettre que je reçus de Jean Paulhan alors son se-
crétaire, vers le mois de septembre 1923: / “Cher Monsieur, / voici
vos poèmes, auquels moi je trouve un grand charme. Il semble à
Jacques Rivière que ce charme ne soit ni assez ferme, ni encore
assez assuré.” / A la suite de cette lettre, je travaillai encore un mois
à écrire un poème verbalement, et non grammaticalement, réussi.
Puis j’y renonçai. La question n’étant pas pour moi de savoir ce
qui parviendrait à s’insinuer dans le cadre du langage écrit, / mais
dans la trame de mon âme en vie1 (1994a, p. 8).

1
Tradução: “Eis o texto da carta que recebi de Jean Paulhan, então seu secretário,
no mês de setembro de 1923: / ‘Prezado Senhor, / aí estão seus poemas, nos
128 Antonin Artaud

Seria o verbo e não exatamente o funcionamento ou as leis


da linguagem que interessariam ao poeta. Verbo que ele associa a
uma escrita que sai da trama do papel para constituir-se na trama
de uma vida. Decerto, os anos 1920 marcaram sua trajetória, por
um lado, com a força do gesto teatral e, por outro, com o enga-
jamento em 1924 no grupo surrealista. Mas nem a vanguarda
nem o teatro buscado por Artaud parecem ser aqui os vetores de
força que fazem com que, em 1946, ele se aproprie desse evento
passado e o faça fato-motor de toda sua obra:

Je ne suis pas critique, comme Brunetière ou Benjamin Cré-


mieux, pour qualifier la sorte de travail que j’ai réalisé en écri-
vant ces lettres, et s’il est vrai que c’est toute la question de
l’inspiration poétique et de son verbe / (et de son verbe, quoi
donc son verbe, ça s’appelle, dit-on, prosodie) / que j’ai reprise
dans cette écrit. […] L’inspiration n’est qu’un foetus et le verbe
aussi n’est qu’un foetus. J’ai sais que quand j’ai voulu écrire j’ai
raté mes mots et c’est tout. / Et je n’ai jamais rien su de plus2
(1994a, p. 9).

O evento é assim retomado por Artaud, nesse momento


simbólico que é a escrita inaugural de suas Obras completas. Sua
Correspondência com Jacques Rivière estaria traçada sob o signo de

quais eu mesmo vejo um grande charme. Parece a Jacques Rivière que este char-
me não está nem firme o bastante, nem ainda suficientemente consolidado.’ /
Em seguida a esta carta, eu trabalhei ainda um mês na escrita de um poema ver-
balmente, e não gramaticalmente, bem sucedido. Depois, renunciei. Não sendo
para mim questão de saber o que viria a se insinuar na moldura da linguagem
escrita, / mas na trama de minha alma em vida”.
2
Tradução: “Eu não sou um crítico, como Brunetière ou Benjamin Crémieux,
para avaliar o tipo de trabalho que eu realizei escrevendo estas cartas, e se é ver-
dade que é toda a questão da inspiração poética e de seu verbo / (e de seu verbo
- o quê, então, seu verbo?, isto se chama, digamos, prosódia) / que eu retomei
neste escrito. / [...] / A inspiração não é senão um feto e o verbo também não é
senão um feto. Eu sei que quando quis escrever eu falhei com as palavras e isso
é tudo. E eu nunca soube de mais nada”.
“Lettres, lettre, l’être” 129

uma erosão da linguagem e do pensamento poético. Sob o ícone


de sua falha com as palavras (“j’ai raté mes mots”), o poeta escre-
ve poesia. Poder-se-ia mesmo oferecer às cartas escritas por Ar-
taud à Rivière o lugar privilegiado desse fazer poético. Qual seria
a direção que ele busca oferecer em 1946 ao evento das Corres-
pondências escritas em 1923-24? E, ainda mais, se conhecemos,
nós leitores, a presença significativa que as cartas irão ocupar em
toda a sua obra? Mais além: se tomamos, com Artaud, a falha
como traço fundamental de sua poética – que o faz até mesmo
retomá-la como a questão que apresenta suas Obras completas –
para onde ele estaria remetendo a noção mesma de obra? Para
tecer ainda mais essa trama: o preâmbulo à obra, assim como o
prefácio ao livro, não seriam essas cartas dos autores destinadas
aos seus leitores?

2.1. “L’homme qui pense se dépense”

O título deste subcapítulo é na verdade uma frase escrita


por Rivière à Artaud no decorrer da Correspondência.3 Mas, além
disso, ele parece aglutinar uma série de signos que percorrem
desde a correspondência até as cartas incluídas em Suppôts et su-
ppliciations. A presença etimológica é um traço significativo de
sua escavação com as palavras. Como vimos, a propósito do ter-
mo crueldade (assim como de metafísica), a escavação etimoló-
gica é matéria dessa própria erosão do pensamento que perfura e
perfaz sua linguagem poética. Assim sendo, pensar – pensare, do
latim clássico pendere – vai aliar o pensar ao pesar: indicando que
seria a partir dessa raiz, onde nos aproximaríamos do dispêndio
(dispendere), e da poesia em suspensão (suspendere) na obra de
Artaud: “Il y a donc un quelque chose qui détruit ma pensée; un

3
“L’homme qui pense se dépense à fond” (1994a, p. 35). [Tradução: “O homem
que pensa se esgota”.]
130 Antonin Artaud

quelque chose qui ne m’empêche pas d’être ce que je pourrais


être, mais qui me laisse, si je puis dire, en suspens”4 (1994a, p.
28, grifo meu).
Ademais, na apresentação de seu livro L’Ombilic des limbes,
escrito após a Correspondência, e publicado pela primeira vez tam-
bém na Nouvelle Revue Française em 1925, Artaud escrevia: “Ce
livre je le mets en suspension dans la vie, je veux qu’il soit mordu
par les choses extérieures, et d’abord par tous les soubresauts en
cisaille, toutes les cillations de mon moi à venir5” (1994a, p. 49).
Dessa mesma forma, Artaud pensou Suppôts et supplicia-
tions, livro em suspensão na vida, que reivindica, de um lado,
esse confronto com “as coisas exteriores” e, de outro, toca em
sutileza e precisão a intermitência, o “piscar de olhos” de um
devir. Devir que retoma a correspondência inicial com Rivière,
onde se trata de se fazer, de se construir, de se parir, instante
fulgurante que destina à criação esse lugar incômodo e paradoxal
entre existir e não ser ainda. Passados 21 anos da Correspondên-
cia, o poeta destina ao mesmo lugar suas Obras completas: “Ainsi
donc les poèmes de ce livre manqué sont de la teneur de ceux qui
me furent refusés par Jacques Rivière pour la N.R.F. et au sujet
desquels je lui écrivis les lettres ci-après”6 (1994a, p. 9).
Gostaríamos de pensar que essa falha acusada pelo próprio
poeta no uso das palavras (“j’ai raté mes mots”), ou ainda, o livro
manqué, também rateado, falhado, ou, o movimento de “um
piscar de olhos”, a intermitência e a frequência, assim como a

4
Tradução: “Há portanto uma qualquer coisa que destrói meu pensamento.
Uma qualquer coisa que não me impede de ser o que eu poderia ser, mas que
me deixa, se assim posso dizer, em suspenso”.
5
Tradução: “Este livro, eu o ponho em suspensão na vida, eu quero que ele seja
mordido pelas coisas exteriores, e antes de tudo, por todos os sobressaltos em
cisalha, todos os piscares de olhos de meu eu por vir”.
6
Tradução: “Portanto, os poemas deste livro falhado são do teor daqueles que me
foram recusados por Jacques Rivière para a N.R.F. e a propósito dos quais eu
lhe escrevi as cartas que seguem”.
“Lettres, lettre, l’être” 131

precisão, estariam ligadas a essa suspensão na vida, própria de


um pensar que se aproximaria mais de um pesar (pendere), de um
dispêndio (dispendere – descrito por Rivière a Artaud) do que da
atribuição usual que associa falha a falta.
Relembremos aqui do texto fundamental, escrito por Mau-
rice Blanchot a propósito de Artaud. Blanchot frisa o caráter de
evento significativo7 da correspondência com Rivière. Leitores
posteriores, nós deveríamos também frisar a importância da leitu-
ra de Blanchot, que lança luz em fins dos anos 1950 sobre o poeta
dos anos 1930-40. Leitura de certo modo fundadora, que fará com
que a Correspondência se torne esse acontecimento primordial que
as leituras posteriores de Artaud irão sempre revisitar. No próprio
título desse livro de ensaios, Blanchot remete o leitor à questão do
devir. O livro por vir se desenha assim em torno do que o autor
entende como sendo “essencial” ao processo de criação:

Nous sommes donc aux abords d’un phénomène auquel sem-


blent liés la littérature et même l’art: s’il n’est poème qui n’ait
pour “sujet” tacite ou manifeste son accomplissement comme
poème, et si le mouvement d’où vient l’oeuvre est ce en vue de
quoi l’oeuvre est parfois réalisée, parfois sacrifiée8 (1959, p. 51).

Evento também significativo será esse que atribui à sua


escrita o caráter de “problema” face à literatura e à arte em ge-

7
“C’est la celèbre correspondance avec Jacques Rivière, un événement d’une
grande signification” (Blanchot, 1959, pp. 50-8). [Tradução: “É a célebre cor-
respondência com Jacques Rivière um acontecimento de grande significância”.
Edição brasileira: BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Tradução de Leyla
Perrone-Moisés. São Paulo: 2005, p. 47. (Coleção Tópicos).
8
Tradução: “Estamos, pois, na vizinhança de uma questão à qual parecem liga-
das a literatura e a arte em geral: se não há poema que não tenha por ‘assunto’,
tácito ou manifesto, sua realização como poema, e se o movimento do qual
provém a obra é aquilo com vistas a que a obra é por vezes realizada, por vezes
sacrificada”. Edição brasileira: BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad.
Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: 2005, p. 48. (Coleção Tópicos).
132 Antonin Artaud

ral. Diálogo fundamental, posto que subtrai o lugar asilar a que


muito se destinou o autor e sua obra. No entanto, seria também
essa mesma leitura, que ao visar o “evento” como mostração de
uma essencialidade exemplar, destinaria à sua escrita o lugar de
uma “falta essencial”:

Il y a comme touché, malgré lui et par une erreur pathéti-


que d’où viennent ses cris, le point où penser, c’est toujours
déjà ne pouvoir penser encore: “impouvoir”, selon son mot,
qui est comme essentiel à la pensée, mais fait d’elle une manque
d’extrême douleur9 (Blanchot, 1959, p. 53, grifo meu).

Se entendemos que a falha não é exatamente a falta, ela


deslizaria, por conseguinte, de qualquer “essência” do pensamen-
to para esse lugar de “desenraizamento” do pensamento, tam-
bém nomeado impouvoir. Ainda que Blanchot atrele o impouvoir
a uma essencialidade do pensamento, acreditamos ser possível
pensá-lo como movimento poético que desierarquiza as estru-
turas verticais e horizontais da linguagem. Afastada a essencia-
lidade, seríamos levados a fisgar essa construção que se aproxi-
maria das “Interjeições”. A interjeição evocaria esse movimento
de tensão que deixa a obra em suspenso, violência que conjuga o
instante como tempo fecundo entre o nascer e o morrer. Em vez
de uma “ausência de obra” fundada na falta uma obra que não se
fixa no ser, desenraizando justamente essas noções investidas de
“poder”, remetendo-as para o seu próprio impouvoir.

9
Tradução: “É como se tivesse tocado, inadvertidamente e por um erro patético
que provoca seus gritos, o ponto em que pensar já é sempre não poder ainda
pensar. E um ‘impoder’, diz ele, que parece essencial ao pensamento, mas trans-
forma-o numa falta extremamente dolorosa”. Edição brasileira: BLANCHOT,
Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: 2005, p. 50.
(Coleção Tópicos).
“Lettres, lettre, l’être” 133

Outra noção que decorreria dessa seria a de ação, algo em


movimento, também aludido pela estreita implicação dos textos
de Artaud com toda uma ideia de devir, concebida em um pri-
meiro momento como devir do “eu” e, a partir de Rodez, como
devir de um corpo. A ação encontraria no verbo sua expressão
poética, busca de um “poema verbalmente, e não gramatical-
mente, bem sucedido”.
Se dermos continuidade a tal hipótese, seremos levados a
pensar sobre o que Artaud entende por um poema verbal. Para
além da ação – que está intimamente relacionada à poesia não
separada da vida, a poesia ela mesma geradora de vida – o verbo,
como parece ser retomado no preâmbulo, busca tocar certa me-
cânica da criação:

L’inspiration n’est qu’un foetus et le verbe aussi n’est qu’un


foetus […] / Que mes phrases sonnent le français ou le papou
c’est exactement ce dont je me fous. / Mais si j’enfonce un mot
violent comme un clou je veux qu’il suppure dans la phrase
comme une ecchymose à cents trous10 (Artaud, 1994a, p. 10).

O verbo/feto seria essa máquina primordial do fazer poéti-


co. É precisamente essa máquina do fazer poético (e plástico) que
substitui e impede, em seu funcionamento constante e sempre
presente, qualquer referência essencialista a uma origem primei-
ra da criação perdida (e, portanto, localizada) em algum lugar do
passado. Pois, como ele colocou desde o início a Jacques Rivière,
trata-se de uma “obra abortada”11. No preâmbulo, Artaud reto-

10
Tradução: “A inspiração não é senão um feto, e o verbo também não é senão
um feto [...] / Se as minhas frases soam como o francês ou como o papou, é
exatamente ao que não dou a mínima. / Mas se eu prego uma palavra como um
prego, eu quero que ela supure na frase como uma equinose de cem furos”.
11
“Car je ne puis pas espérer que le temps ou le travail remédieront à ces obscu-
rités ou à ces défaillances, voilà pourquoi je réclame avec tant d’insistance et
d’inquiétude, cette existence même avortée” (1994a, p. 25). [Tradução: “Por
134 Antonin Artaud

ma, e não por acaso, as questões fundamentais da Correspondên-


cia. A ideia do aborto se apresenta por meio das correlações entre
verbo/feto e inspiração/feto. A mesma questão foi assim coloca-
da por Artaud em 1924: “Je voudrais que vous compreniez bien
qu’il ne s’agit pas de ce plus ou moins d’existence qui ressorti à ce
que l’on est convenu d’appeler l’inspiration, mais d’une absence
totale, d’une véritable déperdition”12 (1994a, p. 24).
Pois então no preâmbulo temos o verbo e a inspiração en-
quanto fetos (de onde a língua pode ser o francês ou o “papou”),
que remetem para a “obra abortada”, ou, como manifesta a ci-
tação acima, a inspiração cederia ao dispêndio, assim visto por
Artaud em 1924. Dispêndio ou desperdício, desenraizamento
ou impouvoir, paralisia ou ausência de seu próprio pensar. Não
se tratando nem em um nem em outro texto de julgar “critica-
mente” a qualidade desses escritos “mal sucedidos” ou não, mas
de penetrar na questão que põe a obra em movimento. Abordar
a obra com a noção de totalidade implica ou em cair na busca
de uma origem da obra, ou em considerá-la fechada na materia-
lidade desses escritos que podemos ter em mãos. Nos dois casos,
tornando-a incompatível com a falha. Pois, a noção de totalida-
de articula-se com o fechado e com a falta, mas não com a falha.
O que Artaud vem oferecer ao leitor é manifestação dessa crise
– uma obra falhada – e sua apropriação “em verso ou prosa”.13

não poder esperar que o tempo ou o trabalho remedeiem essas obscuridades


ou essas fraquezas, por isso eu reclamo com tanta insistência e inquietude, essa
existência mesma abortada”.]
12
Tradução: “Eu gostaria que você compreendesse bem que não se trata do menos
ou mais de existência provindo disso que se convencionou chamar inspiração,
mas de uma ausência total, de um verdadeiro desperdício”.
13
Relembremos aqui como Artaud termina sua carta de 5 junho de 1923 (já
citada na “Introdução” deste trabalho) a Rivière: “C’est tout le problème de ma
pensée qui est un jeu. Il ne s’agit pour moi de rien moins que de savoir si j’ai ou
non le droit de continuer à penser, en vers ou en prose” (1994a, p. 25). [Tradu-
ção: “É todo o problema de meu pensamento que está em jogo. Não se trata,
para mim, de nada menos que saber se eu tenho ou não o direito de continuar
a pensar, em verso ou em prosa”.]
“Lettres, lettre, l’être” 135

Nesse sentido, Blanchot foi preciso ao conseguir ler aquilo que


Rivière, enquanto crítico-editor, não podia enxergar nas cartas
de Artaud: “Il sait, avec la profundeur que l’expérience de la dou-
leur lui donne, que penser, ce n’est pas avoir des pensées, et que
les pensées qu’il a lui font seulement sentir qu’il n’a pas encore
commencé de penser”14 (1959, p. 53).
A experiência do pensamento (entendendo esse último
como experiência do impossível a nascer) percorre a obra de Ar-
taud. Obra que se localizaria, nesse paradoxo entre o fazer/pen-
sar e o não ter ainda começado a fazer/pensar. Aborto ou feto,
essa obra mal nascida se caracterizaria em torno do que Artaud
acusa como sendo sua “doença do espírito”:

Il faut que le lecteur croie à une véritable maladie et non à un


phénomène d’époque […] / Une maladie qui affecte l’âme dans
sa réalité la plus profonde, et qui en infecte les manifestations.
Le poison de l’être. Une véritable paralysie. Une maladie qui
vous enlève la parole, le souvenir, qui vous déracine la pensée15
(1994a, p. 41).

Aí está a doença do espírito – desenraizar do pensamen-


to. É importante assinalar que o momento no qual Artaud busca
circunscrever e descrever sua doença é o mesmo em que ele rei-
vindica uma dupla diferenciação: com as tendências da época e
com seus possíveis leitores. Sobre as tendências: decerto Artaud

14
Tradução: “Ele sabe, com a profundidade que a experiência da dor lhe confere,
que pensar não é ter pensamentos, e que os pensamentos que tem fazem-no so-
mente sentir que ainda não começou a pensar”. Edição brasileira : BLANCHOT,
Maurice. O livro por vir. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: 2005,
p. 50. (Coleção Tópicos).
15
Tradução: “É preciso que o leitor acredite em uma verdadeira doença, não em
um fenômeno de época [...] / Uma doença que afeta a alma em sua realidade
mais profunda, e que infecta as suas manifestações. O veneno de ser. Uma real
paralisia. Uma doença que te rouba a palavra, a lembrança, que te desenraiza o
pensamento”.
136 Antonin Artaud

alude à diferença entre aquilo que para as vanguardas tornou-se


atitude fundamental – fazer da experiência criadora um processo
de tabula rasa. Há aí uma importante diferença entre um pensar
que se desenraiza e aquele que vai buscar criar outras raízes, outras
escolas. Ora, Artaud não parece estar buscando uma escola, mas
acusando que as raízes do seu próprio pensar são arrancadas, que
sua busca será doravante esse pensamento esgarçado, de direções
múltiplas e entrecortadas. A base dessa reivindicação deveria poder
se consolidar se determinado pacto se estabelecesse entre o autor
e os leitores de sua Correspondência: “não se trata aqui de nenhum
engano, há alguém que não somente vos escreve, há alguém que
assim vive”. Se sabe que o poeta não fazia de sua assinatura o fun-
damental desse pacto, mas sim o fato de que o leitor tivesse acesso
a toda a correspondência, a “todos os elementos do debate”:

Pourquoi mentir, pourquoi chercher à mettre sur le plan litté-


raire une chose qui est le cri même de la vie, pourquoi donner
des apparences de fiction à ce qui est fait de la substance indé-
racinable de l’âme, qui est comme la plainte de la réalité? Oui,
votre idée me plaît, elle me réjouit, elle me comble, mais à con-
dition de donner à celui qui nous lira l’impression qu’il n’assiste
pas à un travail fabriqué. Nous avons le droit de mentir, mais
pas sur l’essence de la chose. Je ne tiens pas à signer les lettres
de mon nom. Mais il faut absolument que le lecteur pense qu’il
a entre les mains les éléments d’un roman vécu. Il faudrait pu-
blier mes lettres de la première à la dernière et remonter pour
cela jusqu’au mois de juin 1923. Il faut que le lecteur ait en
main tous les éléments du débat16 (1994a, p. 40).

16
Tradução: “Por que mentir, por que buscar transpor ao plano literário uma
coisa que é o grito mesmo da vida, por que dar ares de ficção a isto que é feito
da substância inarraigável da alma, que é como a queixa da realidade? Sim, sua
ideia me apraz, me cumula de alegria, mas com a condição de que não se dê
àquele que nos lerá a impressão de que assiste a um trabalho fabricado. Nós
“Lettres, lettre, l’être” 137

Não se trata para Artaud de uma questão moral face à


mentira ou à verdade, mas quiçá ética incidindo sobre o campo
do literário. Isso porque o que está em jogo são as relações entre
o direito do autor e do leitor. Desse último: ter em mãos todos os
elementos do debate, convencer-se de que se trata de um roman-
ce vivido. Vejamos bem: Artaud distingue entre um plano literá-
rio ficcional e alguma outra coisa que continua sendo da ordem
do literário (posto que do convencimento), aludida enquanto
romance vivido. O direito do autor, por sua vez, não se consoli-
daria na assinatura, senão naquilo que lhe autoriza falar, à saber:
“Je suis un homme qui a beaucoup souffert de l’esprit, et à ce
titre j’ai le droit de parler”17 (1994a, p. 30). Ora, trata-se de uma
reivindicação, aqui endereçada ao editor. Mas ela visa a campo
mais amplo, posto que o problema se coloca face à literatura em
geral, de onde aquilo que preocupa Artaud seria da ordem ética
do discurso: o direito à palavra do autor e do leitor. Problema
que circunda esse campo de forças que agem nas produções dis-
cursivas. Interessa saber, além do que digo, quem diz, para quem
diz e como diz. Esse “quem” não se restringe à falácia de uma
assinatura. O nome aqui é mais do que a assinatura. É o direito
à palavra, que só poderia se consolidar através dessa modalidade,
desse “como” posso falar. Em primeiro: “só posso falar se alguém
puder ouvir o que tenho a dizer”. Daí a importância do processo,
cujo leitor deverá possuir todos os seus elementos, condição de
sua escuta/leitura. Esse processo é aquele que autoriza, que dá o
direito à palavra. Nele, o autor se constitui, assim como o leitor.

temos o direito de mentir, mas não sobre a essência da coisa. Eu não faço ques-
tão de assinar as cartas com meu nome. Mas é absolutamente necessário que o
leitor pense que tem entre as mãos os elementos de um romance vivido. Seria
preciso publicar minhas cartas da primeira à última, e, para isso, remontar ao
mês de junho de 1923. É preciso que o leitor tenha em mãos todos os elemen-
tos do debate”.
17
Tradução: “Eu sou um homem que sofreu muito do espírito, e a este título eu
tenho o direito de falar”.
138 Antonin Artaud

A Correspondência com Jacques Rivière é, em parte, realização des-


se processo que acompanhará Artaud em toda a sua obra.
Se entendemos que a Correspondência é esse “processo”
através do qual Artaud se autoriza o direito à palavra, tornar-se-á
lógica a apropriação que ele faz de tal evento na abertura de suas
Obras completas. Sabe-se, no entanto, que o direito reivindicado
pelo autor verte sobre alguns pontos fundamentais, todos inter-
ligados: primeiro, o desenraizamento do pensamento; segundo,
o sofrimento avassalador; terceiro, uma obra abortada. Por sua
vez, a constituição do “processo” só pode se dar na exigência de
um leitor que pactue com todo o processo. Leitor, doravante,
implicado na intensidade dessa reivindicação, conjugado com a
impossibilidade mesma dessa obra que, no entanto, a tem em
mãos. Essa implicação já foi até mesmo pensada em termos de
uma “modificação anatômica do leitor”:

On peut penser que le poids de la publication intégrale de ses


écrits est à l’origine d’un désarroi des lecteurs, écrasés par une
masse inhumaine qu’on leur jette d’un bloc à la figure. Bonne
occasion, il est vrai, pour “refaire le visage humain”, comme le
proposait Artaud18 (Bongiorno, s.d.).

Nesse ponto, indicamos também a leitura de E. Grossman,19


na alusão aos transtornos das referências identitárias do leitor,
exigindo novas recepções para a obra. Trata-se de uma implicação
que recai sobre determinada compreensão de “uma presença do

18
Tradução: “Podemos pensar que o peso da publicação integral de seus escritos
está na origem de um desarranjo dos leitores, esmagados por uma massa inu-
mana que se lhes lança em bloco à figura. Boa ocasião, é verdade, para ‘refazer
o rosto humano’, como o propunha Artaud”.
19
Remeto aqui para os seminários ministrados por Evelyne Grossman em Pa-
ris VII, no ano letivo de 1999-2000, que versaram sobre o tema dos “Apa-
gamentos identitários nas escritas limites do século XX: Céline, Artaud,
Beckett, Michaux”.
“Lettres, lettre, l’être” 139

homem” na sua própria escrita. É verdade que tal presença vai


aludir às relações entre corpo e escrita, remetendo-nos para essa
modificação anatômica entre autor e leitor. Mas, no primeiro
momento – manifesto pela Correspondência com Jacques Rivière
– encontramos os vértices da obra que em 1946 mal começa
a ser publicada. Ao menos 20 anos serão necessários para que
os leitores de Artaud comecem a ter em mãos os 26 volumes
hoje publicados e, ainda, para que esse “processo” – buscado
desde 1924 – possa se constituir com todos os elementos não
somente do debate, mas, e principalmente, do combate exigido
por Artaud.
O combate manifesto na Correspondência se esboça em
torno às relações entre a dor e o desenraizar – a erosão do pen-
samento. Debutando uma escrita abortada de metáfora carnal:
corpos da terra. Erosão que será doravante a arma de seu próprio
combate, daí uma “palavra violenta como um prego que supura
na frase como uma equimose de cem buracos”.20 Impossível não
lembrar aqui de dois desenhos, feitos por Artaud em 1946: O
homem e sua dor (1995a) e Os corpos da terra (anexo 2). É assim
que seu combate se faz como noção de crueldade, comunicação
cruel com o leitor. Ele será sempre uma apropriação das “armas
inimigas” ou, como dissemos anteriormente, abertura que abor-
ta a obra, infectada por tudo o que essa acusa.
Blanchot, mais uma vez, é quem chama a atenção para
um centro de deslocamento na escrita de Artaud, que passaria,
portanto, a partir da Correspondência com Jacques Rivière, a se
caracterizar como uma escrita-combate: “Artaud écrivait contre
le vide et pour s’y dérober. Il écrit maintenant en s’y exposant
et en essayant de l’exprimer et d’en tirer expression”21 (1959,

20
“Mais si j’enfonce un mot violent comme un clou je veux qu’il suppure dans la
phrase comme une ecchymose à cent trous.”
21
Tradução: “Artaud escrevia contra o vazio e para escapar a ele. Escreve agora
expondo-se a ele, tentando exprimi-lo e tirar dele uma expressão”. Edição brasi-
140 Antonin Artaud

p. 56). Entendemos que a escrita combate se perfaz sempre ten-


do que passar por uma escrita contra; no entanto, será somente
não se fixando no contra que a expressão, mesmo abortada, será
possível em Artaud. Diferentemente de Blanchot, não encon-
tramos em nossa leitura de Artaud a presença de um “esquivar-
-se” da erosão desde sempre inevitável. Isso porque a erosão não
significa uma falta, que caracterizaria, por sua vez, essa dívida
aludida por Blanchot: “Le tourment vient de ce qu’il ne peut
s’acquitter de sa pensée, et la poésie reste en lui comme l’espoir
d’éteindre cette dette qu’elle ne peut pourtant qu’étendre bien
au-delà des limites de son existence”22 (p. 56). Se, como bem
notou Blanchot, o vazio em Artaud é um “vazio ativo”, que em
nada se relaciona às descrições de “estados psicológicos” (p. 57),
ele não será falta ou perda de uma totalidade originária. O abor-
to nasce em Artaud, reivindicando outras posições frente ao pro-
cesso que autoriza um autor e sua obra.
No entanto, é certo que as imposições do vazio se mani-
festarão diversamente no decorrer do percurso criativo do poeta.
Em seu combate, ele vai justamente “correr o risco” desse con-
fronto “ativo” com o próprio vazio.
Quando, em setembro de 1924, a Nouvelle Revue Françai-
se número 132 edita as cartas entre Artaud e Rivière, elas apare-
cem sob o título de Une correspondance e, sobre a capa, no lugar
normalmente destinado ao nome do autor, encontram-se apenas
três pequenas estrelas. No interior do livro as cartas escritas por
Rivière possuem as iniciais de seu nome e as escritas por Artaud
encontram-se com sua assinatura. No entanto, a apresentação

leira : BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São
Paulo: 2005, p. 54. (Coleção Tópicos).
22
Tradução: “O tormento decorre de ele não poder se isentar de seu pensamento,
e a poesia permanece nele como a esperança de quitar essa dívida, que no entan-
to ela só pode estender muito além dos limites da existência”. Edição brasileira :
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:
2005, pp. 53-4. (Coleção Tópicos).
“Lettres, lettre, l’être” 141

do livro, assim como aquilo que diz Artaud sobre a questão entre
autor e leitor, nos indica a diferenciação precisa entre nome e as-
sinatura. Trata-se, portanto, de se nomear – processo de autoria
que Artaud vai experimentar em toda sua radicalidade.
Os anos 1920 poderiam ser considerados como o início
de todo esse processo que não se dará de forma linear. A questão
posta na correspondência alude já ao movimento de um devir
sob o signo de uma experiência de erosão. Desmoronar que co-
loca o devir em um horizonte cataclísmico. Como sabemos, Ar-
taud passa o entre guerras, até 1936, em território europeu, onde
se sucedem suas desavenças, em 1927, com o grupo surrealista
e todo o início dos 1930 dedicados principalmente às experiên-
cias teatrais. Tempos difíceis para a Europa, que se fazem sentir
nas dificuldades enfrentadas por Artaud23 para sobreviver de sua
arte. A falência do “velho mundo” é visível e palpável para o
escritor que busca, em 1936 – com sua viagem ao México –,
encontrar uma cultura desaparecida na Europa. Em 1937, já em
Paris, Artaud escreve um livro enigmático que retoma sob outro
plano as questões que o fizeram debutar na escrita da Correspon-
dência. São As novas revelações do ser,24 livro cujo autor assina “O
revelado”. Em início de junho 1937, durante o processo para pu-
blicação desse livro, em carta à Jean Paulhan,25 Artaud escrevia:

Cher ami, / Il ne faut même pas des initiales. Rappelez-vous.


La correspondance avec Rivière avait paru avec trois étoiles et
de tout ce que j’ai écrit c’est peut-être tout ce qui restera. Après
13 ans écoulés on dirait que j’en reviens au même point mais

23
Nesse sentido, as “Cartas à Genica Athanasiou” (1969) são exemplares. O que
deveria ser uma correspondência amorosa transforma-se em uma manifestação
das crises vividas por Artaud, pelo teatro, pela literatura e pela Europa em geral.
24
Les nouvelles révélations de l’Être (1982b, pp. 115-44).
25
Jean Paulhan, que era, em 1924, o secretário de Jacques Rivière, seria agora o
diretor da Nouvelle Revue Française.
142 Antonin Artaud

le tour que j’ai fait était en spirale: il m’a mené plus haut26
(1982b, p. 180).

O mesmo ponto: o devir de um “eu”, já acusado por Artaud


à Rivière, no entanto, aí Artaud discernia entre o nome e a assi-
natura. A espiral do tempo fez com que em 1937 desaparecessem
tanto um quanto outro. Para Artaud, em todo esse momento, que
se estenderá, pode-se dizer, até 1943 (quando ele retomará a escrita
por meio, de novo, das “Cartas de Rodez”), a erosão aparecerá sob
um signo ainda mais radical: o da “separação”:

C’est un vrai Désespéré qui vous parle et qui ne connaît le


bonheur d’être au monde que maintenant qu’il a quitté ce
monde, et qu’il en est absolument séparé. / Morts, les autres ne
sont pas séparés. Ils tournent encore autour de leurs cadavres. /
Je ne suis pas mort, mais je suis séparé27 (1982b, p. 121).

Trecho extraído do prefácio de As novas revelações do ser,


livro que nos introduz em um plano de catástrofe do mundo
através de uma escrita enigmática que se utiliza da cabala e do
tarô para, por um lado, prever (representar) a catástrofe e, por
outro, traçar meios de “consciência e revolta” frente à inevitável
“destruição total”.28 Nesse mesmo prefácio, Artaud escreveria so-

26
Tradução: “Caro amigo, / Nem mesmo as iniciais são necessárias. Lembre-se.
A correspondência com Rivière viera à luz com três estrelas, e de tudo o que
escrevi será talvez só o que ficará. Depois de treze anos passados, diriam que
eu retorno ao mesmo ponto, mas a volta que eu fiz foi em espiral: ela me levou
mais alto”.
27
Tradução: “É verdadeiramente um Desesperado que vos fala e que só conhece
a felicidade de estar no mundo agora que ele abandonou este mundo, e que
está absolutamente separado dele. / Mortos, os outros não estão separados.
Eles ainda giram em torno de seus cadáveres. / Eu não estou morto, mas estou
separado”.
28
“Parce que je prévois la Destruction totale par l’Eau, la Terre, le Feu, et par une
Étoile qui occupera la surface totale de l’Air où l’Esprit de l’Homme a baigné,
je prêche aussi la Destruction totale, mais Consciente et Révoltée” (1982b, p.
“Lettres, lettre, l’être” 143

bre a descida ao vazio. Signo da erosão primeira, o vazio que teria


se apresentado como o espaço possível para debutar sua escrita
enquanto combate, se torna agora o lugar para a expressão do
“revelado”: “Voilà longtemps que j’ai senti le Vide, mais que j’ai
réfusé de me jeter dans le Vide”29. Diferença fundamental se in-
terpõe nessa volta em espiral: se na Correspondência esse vazio se
indiciava na erosão, no desenraizamento, no impoder, ele agora
se espacializa, assume sua estatura em maiúscula e se abre para
que nele Artaud se lance. Como assinalou tão bem Jean Michel
Rey, esse vazio é também um desejo expresso de anonimato:

En se pliant à l’obligation d’effacer son propre nom du texte en


cours de publication, Artaud revendique une sorte de droit à
l’anonymat, pour un temps; d’une certaine manière, il s’affirme
comme disparaissant, se présente como devenant (ou: devenu)
méconnaissable. Devenir sans figure assignable: ne plus être à
même de s’imposer comme auteur: être en passe de se dissoudre
soi-même dans l’écrit. L’envers d’un désir d’être, d’une volonté
de faire retour par l’écriture30 (1991, p. 16).

Assim sendo, o “revelado”, ou a presença de um “ser” que


se revela em Artaud no interior desse “vazio”, desfaz a estatura do
ser ou do homem que, a partir de Rodez, e principalmente das

143). [Tradução: “Porque eu prevejo a Destruição total pela Água, a Terra, o


Fogo, e por uma Estrela que ocupará a superfície total do Ar onde o Espírito
do Homem mergulhou, eu prego também a Destruição total, mas Consciente
e Revoltada”.]
29
Tradução: “Faz muito tempo que eu senti o Vazio, mas sem ter consentido em
me lançar no Vazio”.
30
Tradução: “Ao se dobrar à obrigação de apagar o próprio nome do texto em vias
de publicação, Artaud reivindica uma espécie de direito ao anonimato, por um
tempo; de uma certa maneira, ele se afirma como desaparecendo, se apresenta
como se tornando (ou tornado) irreconhecível. Tornar-se sem figura assinável:
não estar mais aí para se impor como autor: estar em vias de se dissolver a si
mesmo no escrito. O inverso de um desejo de ser, de uma vontade de retornar
pela escrita”.
144 Antonin Artaud

“Cartas”, ele buscará refazer. Mais uma vez, valeria frisar a radi-
calidade da experiência de Artaud: lançando-se no vazio, levando
ao extremo as questões que o autorizariam ou não a pensar, bus-
cando “o que seria escrever em conformidade com seu nome”,31
Artaud necessariamente (logicamente)32 teria que se “separar” e,
por consequência, desaparecer; não somente sua assinatura, se-
não que o próprio autor/Artaud.
Decerto, como lembra ainda Jean Michel Rey, a catástrofe
anunciada permite a inevitável associação com a destruição mais
radical que a humanidade experimenta no século XX: a Segunda
Guerra Mundial, a bomba atômica e os campos de extermínio.
As alusões de Artaud, nesse livro enigmático e de certo modo
profético, recaem sobre a força mágica do fogo.33 Inspirado nas
tradições mais antigas (bíblicas e cabalísticas) Artaud passa, nes-

31
Como disse J.M. Rey: “j’entends les textes du moment du Rodez –, comme
l’amorce d’un tour de spirale qui, avec le temps, permet à son auteur de sortir de
la perspective de la séparation, c’est-à-dire d’écrire en conformité avec son nom,
qui l’autorise (au terme de l’époque de Rodez) à dire, en toute connaissance de
cause, moi, Antonin Artaud” (1991, p. 14). [Tradução: “eu entendo os textos do
momento de Rodez -, como o detonador de um movimento em espiral que, com
o tempo, permite a seu autor sair da perspectiva da separação, ou seja, escrever
em conformidade com seu nome, que o autoriza (nos termos da época de Rodez)
a dizer, com conhecimento total de causa, eu, Antonin Artaud”.]
32
A lógica é pensada por nós como sugerida por Artaud no texto sobre Van Gogh.
Lembramos mais uma vez que nesse texto ele faz alusão a uma sociedade que
teria se recusado a ouvir o pintor e, em consequência, afirma: “Quant à la
main cuite, c’est de l’héroïsme pur et simple,/ quant à l’oreille coupée, c’est de
la logique directe” (1996d, p. 19). [Tradução: “Quanto à mão assada, trata-se
de heroísmo puro e simples, / quanto à orelha cortada, é lógica direta”. Edição
brasileira: ARTAUD, Antonin. Van Gogh: o suicida da sociedade. Trad. Ferreira
Gullar. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003, p. 34.]
33
“Je veux dire que si les hommes allument l’incendie dehors, le feu ne s’arretera
plus ni dehors ni surtout dedans, puisque celui du dehors ne sert qu’à montrer
celui du dedans. Il a fallu toujours un grand effort humain pour faire sortir le
feu du dedans. Cette fois il suffira d’une étincelle” (1982b, p. 183). [Tradução:
“Quero dizer que se os homens acendem o incêndio lá fora, o fogo não se deterá
mais, nem fora nem muito menos dentro, já que o de fora serve apenas para
mostrar o de dentro. Um grande esforço humano foi desde sempre requerido
para fazer sair o fogo de dentro. Desta vez, bastará uma faísca”.]
“Lettres, lettre, l’être” 145

se final dos anos 1930, às experiências mágicas de dissolução e


transformação do homem. E é desse modo que a catástrofe por
ele anunciada vai realizar-se sobretudo em sua própria experiên-
cia: “Accepter de brûler comme j’ai brûlé toute ma vie et comme
je brûle actuellement, c’est acquérir aussi le pouvoir de brûler”34
(1982b, p. 189). Volta fundamental da “espiral” do tempo em
Artaud, posto que o que se esboça com toda força – e que per-
manecerá a partir de Rodez – é essa apropriação, essa infeção do
mal que ele acusa. Ressaltaríamos esse como ponto fundamental
de sua espiral. Isso porque, mesmo que posteriormente ele ne-
gue ou abandone certa “lógica mágica”,35 dela restará a presença
do vazio. Se, nesse momento, o vazio se espacializa em buraco
absorvente, ele será doravante abertura ativa de sua criação. Do
vazio maiúsculo restará essa força que se apodera do alheio, força
de que Artaud – em sua separação e desaparecimento – se prepa-
rou para apropriar-se:

Mon destin est cruel pour un but encore plus cruel auquel je
sais qu’il me prépare. Et je serai BIENTÔT préparé. Votre
ami, / Antonin Artaud. // P.S.- J’ai décidé de ne pas signer le
Voyage au Pays de Tarahumaras. Mon nom doit disparaître36
(1982b, p. 178).

34
Tradução: “Deixar-se arder como ardi toda a vida e como ardo atualmente, é
adquirir também o poder de arder”.
35
Acrescentemos aqui referências à produção dos sorts artaudianos: cartas mági-
cas, onde o fogo é o elemento preponderante da construção plástica. O suporte
é queimado, colorido em tons derivados do fogo e a mensagem visa, por meio
de todos os elementos assim postos, proteger ou destruir o destinatário. Frisa-
-se: o destinador está também implicado nessa mesma lógica.
36
Tradução: “Meu destino é cruel para um fim ainda mais cruel para o qual eu
sei que ele me prepara. EM BREVE eu estarei preparado. Seu amigo, Antonin
Artaud. // P.S.: Eu decidi não assinar a Viagem ao país dos tarahumaras. Meu
nome deve desaparecer”.
146 Antonin Artaud

Carta escrita em fins de maio 1937 a Jean Paulhan, na


qual o anúncio do desaparecimento do nome se realizará de
maneira ainda mais radical com o desaparecimento do próprio
Artaud, que, como sabemos, em sua viagem à Irlanda – nesse
mesmo ano – é preso pela polícia e deportado para uma Fran-
ça já implicada no crescente nazi-fascismo europeu. O que nos
parece importante salientar em torno ao “desaparecimento” ou
à “separação” de Artaud é a força de uma experiência “mágica”
que, se nesse momento, assume um discurso “místico”,37 per-
manecerá doravante enquanto vetor de força que se apodera do
“fogo destruidor” para, com ele, operar sua própria construção.
Ora, ainda importante seria observar que a realização dessa for-
ça se dá preponderantemente por meio das cartas escritas por
Artaud. Se elas são, ainda em Paris – antes de embarcar para a
Irlanda – o lugar por excelência do anúncio de seu desapareci-
mento, elas serão, da Irlanda em 1937, assim como do hospício
de Ville-Évrard na França (onde Artaud é localizado em 1939),
expressão e materialização dessa mesma força. Conhecidos como
sorts, essas cartas de atributos mágicos escritas entre 1937 e 1939
buscam, como disse Paule Thévenin, “mais do que transmitir
uma mensagem ou pensamento, agir por elas mesmas e fisica-
mente” (Artaud, 1986a, pp. 24-5).38

37
Entendemos por discurso místico a apropriação de discursos sistematizados
que pretendem justamente dar conta do oculto, do mágico, do desconhecido,
através de toda uma construção lógica devedora da racionalidade ocidental.
Tais discursos, em Artaud, versam – sobretudo – acerca do tarô, da cabala e do
catolicismo.
38
“C’est de Dublin aussi que partiront ces premières missives conjuratoires et
protectrices ou, au contraire, offensives et vindicatives qu’il appelle des sorts.
L’écriture n’y a plus pour seule fonction de transmettre un message, une pensée,
elle doit agir par elle-même et physiquement” (Artaud, 1986a, pp. 24-5). [Tra-
dução: “É também de Dublin que vão partir as primeiras missivas conjuratórias
e protetoras ou, ao contrário, ofensivas e vindicativas que ele chama de sorts. A
escrita não tem mais por única função a transmissão de uma mensagem, de um
pensamento, ela deve agir por ela mesma e fisicamente”.]
“Lettres, lettre, l’être” 147

Mesmo não sendo esses nossos objetos de interesse espe-


cífico no trabalho, tornou-se fundamental fazer esse percurso
desde a Correspondência até os sorts, na tentativa de acompanhar
essa espiral do tempo, que seguirá sua última volta a partir das
“Cartas escritas de Rodez” (1996c). No entanto, o que nos cabe
assinalar e buscar desenvolver seria a presença da carta como lu-
gar e suporte de realização desses pontos em que a obra do poeta
parece se dobrar sobre si mesma e criar, a partir dessa dobra,
caminhos até então insuspeitáveis.
Se colocamos inicialmente a questão da erosão do pensa-
mento e da linguagem como centrais na tentativa de nosso traba-
lho, nos vemos agora frente à necessidade de explorar alguns dos
lugares significativos da enunciação e da realização mesma dessa
erosão: lugar que as cartas ocuparam de forma privilegiada em
toda a obra de Artaud.

2.2. Correspondências

Decerto as indagações sobre as cartas como escritos funda-


mentais na formação da obra de Artaud, e não como fenômeno
paralelo, parecem ser primordiais. O fato de percebermos que,
em Artaud, as cartas se esboçaram como lugar fundamental de
metamorfose de seu próprio projeto de escritura é o nosso ponto
de partida. Ainda: se assinalamos que por meio da correspondên-
cia inicial com Jacques Rivière, Artaud se vê diante de problemas
que o posicionam frente ao literário, estamos, dessa maneira,
indagando – com Artaud – esse campo da literatura e não bus-
cando circunscrevê-lo em seu interior, ou defini-lo nessa relação.
Tais são os movimentos de tensão desse diálogo empreendido na
correspondência com Rivière. Já aí nota-se como a noção mesma
de gênero literário vem sendo exposta como um dos problemas
que sua obra coloca para a literatura em geral. Há um desloca-
mento dessa noção desde o início de sua trajetória como escritor,
148 Antonin Artaud

quando se tratava de escrever, independentemente da definição


ou do gênero que caracterizaria seus escritos. A primeira crítica
do editor, e sua subsequente recusa à publicação, formulada na
hipótese de poemas que ainda não eram “suficientemente só-
lidos” será respondida por Artaud. Respondida justamente em
torno desse ponto, qual seja: que não lhe interessa a circunscrição
de sua escrita no gênero poesia, que sua questão é “escrever isso
ou não escrever nada”, e finalmente a contundente elucidação de
que sua “insuficiência” formal ancora-se em um dispêndio, em
uma erosão do próprio pensamento, que fisicamente sofre.
A partir daí, poder-se-iam privilegiar três pontos, na espiral
do tempo, percorridos por Artaud: primeiro, a problematização
das condições/impossibilidades de sua escrita face ao arcabouço
material e simbólico que o circundava para acolher, legitimar,
dar crédito a essa escrita (Correspondência). Segundo, a materia-
lização de uma determinada escrita que se realiza em ruptura/
separação com os processos simbólicos e materiais que a circun-
dam (sorts). Terceiro, a realização de uma escrita que já estaria
se relacionando com um corpo anterior de escritos ou com certa
noção de obra – inaugurado com as “Cartas escritas de Rodez”.
Por outro lado, somos obrigados a notar que, para além desses
três pontos de virada, sua obra – em toda sua extensão – esten-
deu e intensificou muito as noções de carta e correspondência.
Em uma primeira instância – que atravessa os anos 1920
– as cartas assumem dois lugares fundamentais: um, posto pela
Correspondência, lugar de questionamento das próprias possibili-
dades da escrita; outro, que se estabelece através das políticas das
vanguardas, em particular, a partir de sua relação com o surre-
alismo, que indicaríamos aqui como sendo da ordem do ende-
reçar – são as cartas-manifestos. No entanto, em Artaud, elas
se estenderão para além de uma intervenção de época, fazendo
dessa noção de endereçamento a fonte do que ele posteriormente
vai chamar de presença do homem (algo que se executa como
“Lettres, lettre, l’être” 149

sendo da ordem de um exercício da crueldade). Em uma segun-


da instância, encontraríamos as cartas de seu retorno do Mé-
xico, onde, a partir de agosto e setembro de 1937, já se pode
notar a presença de outros elementos gráficos e plásticos em sua
escrita. Nesse ponto, se inicia um diálogo fecundo e inovador
entre plástica e escritura, de onde os sorts seriam a realização ex-
ponencial. Em uma terceira instância, se poderia falar de um
retorno à escrita de Artaud em 1943 com as “Cartas escritas de
Rodez” – aqui privilegiando essa ideia de um refazer do próprio
lugar de enunciação. Em uma quarta instância, encontraríamos
os cadernos escritos por Artaud em Rodez e em Yvry-sur-Seine de
1945 até sua morte, em 1948. Também esses escritos inauguram
diferentes estatutos, posto que neles se encontram elementos da
ordem de uma escrita carcerária, asilar ou do isolamento, exaus-
tiva e quotidiana – como lista de alimentos, notas, lembretes e
pequenos desenhos à margem; mas também aí é onde se vê con-
solidar o exercício de uma nova prática pictórica e gráfica – onde se
encontram desenhos que se relacionam nitidamente com a escri-
ta; e, ainda, onde encontraríamos esses rascunhos de livros que o
autor desenvolverá posteriormente, como é o caso para Suppôts
et suppliciations. Por último, destacaríamos as “Cartas” incluídas
em Suppôts et suppliciations – projeto específico no qual o autor
concebe o livro e nele frisa a intenção dessa inclusão: aqui encon-
traríamos a junção dos diversos elementos evocados ao longo de
seus escritos, como procuraremos mostrar.
Parece óbvio que não poderemos nos debruçar em profun-
didade sobre todas as instâncias acima evocadas. Mas o esforço
para tentar pensar, diferençar ou criar crivos nesse emaranhado
de modos discursivos já é o gesto de abertura e reflexão que busco
encetar aqui. O fato de encontrarmos em Suppôts et suppliciations
alguns dos elementos acima levantados nos permitirá abordá-los
na singularidade de sua aparição e não como elementos simples-
mente descritivos de uma obra. Por fim, como empreendemos
150 Antonin Artaud

um trabalho que visa aprofundar as relações entre escrita e de-


senho em Artaud, estaremos – mesmo que não especificamente
– abordando as questões levantadas em 1937, a partir dos sorts e
posteriormente desenvolvidas em seus cadernos.
Para que possamos chegar às “Cartas” incluídas em Su-
ppôts et suppliciations, foi necessário fazer esse passeio desde a
Correspondência com Jacques Rivière e, agora, me parece ainda
fundamental percorrer esse momento de volta à escrita, quando
Artaud, encontrando-se no asilo de Rodez, pede aos amigos que
lhe enviem seu livro O teatro e seu duplo, e inicia, a partir mesmo
dessas cartas, uma nova direção na sua obra. Se nos referimos a
essa volta, logo em um primeiro momento, através das “Cartas
escritas de Rodez”, como sendo da ordem de uma relação de
sua escrita com certa noção de obra, isto se deve de imediato à
apropriação e releitura de seus textos anteriores que vão recolocá-
-lo frente à escrita. No imediato do confronto com suas ideias
anteriores e com a experiência do isolamento asilar, da miséria
e da fome, dos eletrochoques – da “separação com a vida” –,
Artaud vai dar início a um momento de sua obra que poderia ser
considerado como o de maior complexidade, assim como aquele
que vai poder “responder” pelo atributo de obra dado ao corpo
textual do poeta. A partir de Rodez, as ideias, as iniciativas, ou
os textos outrora “malsucedidos”39 serão finalmente realizados e,
em uma nova amplitude, perspectiva e voltagem.
Os cadernos escritos quotidianamente por Artaud exaltam
a complexidade do último momento de sua obra. Eles reverbe-
ram a busca de um fazer poético-plástico e realizam aquilo que

39
Decerto “mal sucedido” refere-se ao escrito por Artaud em seu preâmbulo: tra-
ta-se de uma obra falhada. Mas também não devemos negligenciar o “rótulo”
primeiro imposto a sua poesia na recusa efetuada pelo editor Jacques Rivière.
Valeria ainda frisar que todo esse último período da obra de Artaud ainda se
oferece para ser descoberto e reconhecido.
“Lettres, lettre, l’être” 151

o teatro cruel não conseguiu efetivar. Estudos específicos40 vêm


sendo recentemente empreendidos sobre esses escritos, somente
parcialmente editados41 em 11 volumes42 de suas Obras comple-
tas. Nosso interesse aqui recai sobre as hipóteses que relacionam
a escrita dos cadernos com as cartas no interior de sua obra, as-
sim como com uma das particularidades dessa escrita, que seria
sua estreita relação com o traço pictórico. Sendo agora sobre as
relações entre as cartas e os cadernos que julgamos fecundas pos-
síveis correspondências com as “artes de si”.
Partimos dessa interrogação básica: como se efetuou con-
cretamente a volta de um escritor que ficou internado por anos
em vários asilos psiquiátricos durante a Segunda Guerra Mun-
dial, tendo, portanto, passado por rarefação alimentar, fome,
abandono e tratamentos seguidos de eletrochoque? O que se
passa para que Artaud queira retomar um processo de autoria,
e escrever com o “seu nome”? De que modo ele constrói uma
escrita cujas relações se tecem a partir das noções de eficácia, ou
seja: sua “ação na trama da vida”; e de endereçamento, qual seja:
a potencialidade “mágica” ou “física” das intensidades ou das
forças antes de qualquer coagulação de sentido? Por meio desses
elementos buscaremos esboçar uma primeira correspondência
entre as cartas e os cadernos, partindo do amplo espectro repre-
sentado pelas artes ou escritas de si.
De modo geral, pode-se dizer que as “artes de si” esta-
riam intimamente ligadas ao isolamento e à necessidade de um
exercitar-se na arte de viver (askêsis). Mas essa correspondência
inicial entre um Artaud isolado e buscando reviver não seria de
todo suficiente para compreendermos algo da complexidade evo-

40
Aludimos ao trabalho já citado de Giorgia Bongiorno, que versa sobre a figura
das “filhas do coração” que percorrem os cadernos de Artaud (s.d.).
41
Hoje, essa parcialidade foi bastante revista na edição empreendida por Evelyne
Grossman, dos Cadernos de Ivry (2011).
42
Os livros correspondentes vão do 15o ao 25o volume.
152 Antonin Artaud

cada pelo seu retorno à escrita a partir dos cadernos. A noção de


uma escrita ascética, para Foucault, que se manifesta enquanto
“arma no combate espiritual”,43 agiria precisamente sobre o pen-
samento, mais do que sobre os atos. Assim sendo, “ela dissiparia
a sombra interior onde se atam as tramas do inimigo”. Os cader-
nos de Artaud entrelaçam de modo contundente o pensamento à
ação. Levando-nos a pensar que, nesse momento, para Artaud, a
escrita insurge muito mais como potência do gesto do que como
projeto de obra. O impensável para a escrita enquanto gesto é a
sua separação de um mundo onde as coisas agem, e pensamen-
tos e ações interpenetram-se. Como vemos, “as tramas inimigas”
armaram-se para Artaud no momento em que encerraram a es-
crita no mundo das mentiras ou nesse mundo onde a verdade se
suspende. No entanto, enquanto escrita moderna, marcada por
esses pactos (poéticos ou ficcionais) da mentira ou da suspensão
da verdade, ele sabe que escrever significa adentrar, inevitavel-
mente, em território inimigo:

Cognez, moi je rappelle toujours mes forces,


je suis dieu,
et j’étouffe l’être, et les êtres en moi,

43
Em “L’écriture de soi”, Foucault diz: “Enfin, l’écriture des mouvements intéri-
eurs apparaît aussi selon le texte d’Athanase comme une arme dans le combat
spirituel: alors que le démon est une puissance qui trompe et qui fait qu’on
se trompe sur soi-même […], l’écriture constitue une épreuve et comme une
pierre de touche: en portant au jour les mouvements de la pensée, elle dissipe
l’ombre intérieure où se nouent les trames de l’ennemi” (Foucault, 1994c, pp.
415-30). [Tradução: “Enfim, a escritura dos movimentos interiores aparece
também, segundo o texto de Atanásio, como uma arma no combate espiritual:
enquanto o demônio é uma potência que engana e faz com que o sujeito se
engane a si mesmo [...], a escrita constitui uma experiência e uma espécie de
pedra de toque: revelando os movimentos do pensamento, ela dissipa a sombra
interior onde se tecem as tramas do inimigo”. Edição brasileira: FOUCAULT,
Michel. Ética, sexualidade e política. Org. Manoel Barros da Motta; trad. Elisa
Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitá-
ria, 2004, p. 145. (Ditos e Escritos, V).]
“Lettres, lettre, l’être” 153

un être affectif
et non un corps animal,
un corps animal:
et non un esprit animique44
(1983b, p. 157).

Muito do que se lê nos cadernos de Artaud portam esse


imperativo inicial – como o “verbo que age na trama da vida”.
Ele exige a ação, e ainda: ele a traz para o corpo mesmo da escri-
ta. Uma escrita que por sua vez se impõe na força de um presente
(ação) tão imediato – “et j’étouffe l’être” – que a ação (o tempo
presente) aparece somente por meio da realização da escrita. É
nesse sentido que essa escrita insurge e se perfaz enquanto gesto.
Continuemos um pouco mais com Foucault nessa esca-
vação dos “escritos de si” e abandonemos os textos cristãos, que
visavam a essa prática ascética como trabalho sobre o pensamen-
to, para nos colocarmos frente aos escritos greco-romanos. Neles
encontraremos, surpreendentemente, esse vetor de força que liga
a escrita e o pensamento à ação transformadora ou formadora de
si (askêsis): “Comme élément de l’entraînement de soi, l’écriture
a, pour utiliser une expression qu’on trouve chez Plutarque, une
fonction éthopoiétique: elle est un opérateur de la transformation
de la vérité en êthos”45 (Foucault, 1994c, p. 418). Essa escrita
apareceria em formas já conhecidas que teriam até então outros
destinos: são elas os hupomnêmata e a correspondência.

44
Tradução: “Apanha! eu, reconvoco sempre as minhas forças, / eu sou deus, / e
eu sufoco o ser, e os seres em mim, / um ser afetivo / e não um corpo animal, /
um corpo animal: / e não um espírito anímico”.
45
Tradução: “Como elemento de treinamento de si, a escrita tem, para utilizar
uma expressão que se encontra em Plutarco, uma função ethopoiética: ela é
a operadora da transformação da verdade em êthos.” Edição brasileira: FOU-
CAULT, Michel. Ética, sexualidade e política. Org. Manoel Barros da Motta;
trad. Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, p. 147. (Ditos e Escritos, V).
154 Antonin Artaud

Os hupomnêmata poderiam ser definidos tecnicamente


como “livros de conta, de registros públicos, cadernetas indivi-
duais que serviriam como manual – livro de vida, guia de condu-
ta” (Foucault, 1994c, p. 418).46 O importante a destacar reside
no fato de que tais livros se ofereciam como uma memória ma-
terial das coisas e que, portanto, eles não estariam destinados ao
imaginário do acúmulo – da biblioteca –, mas sim ao pertenci-
mento ativo, de modo “que a alma não os faça somente seus, mas
que ela mesma se transforme neles” (p. 419).47 Esse ponto me
parece importante na ilustração do que Foucault chama de “sub-
jetivação do discurso” e que, em Artaud, nós apontamos, a partir
de Jean Michel Rey, como sendo da ordem de um “escrever em
conformidade com o seu nome”. Ora, é óbvio que não estou
sugerindo que os cadernos de Artaud seriam reapresentações dos
hupomnêmata no sentido técnico ou descritivo. Mas, que seria
possível pensar esses escritos múltiplos, sem ordenação narrati-
va, cujas datas apenas servem como índice, cujos termos são tão

46
“Les hupomnêmata, au sens technique, pouvaient être des livres de compte, des
registres publics, des carnets individuels servant d’aide-mémoire. Leur usage
comme livre de vie, guide de conduite semble être devenu chose courante dans
tout un public cultivé.” [Tradução: “Os hupomnêmata, no sentido técnico, po-
diam ser livros de contabilidade, registros públicos, cadernetas individuais que
servem de lembrete. Sua utilização como livro da vida, guia de conduta, pare-
ce ter se tornado comum a todo um público culto”. Edição brasileira: FOU-
CAULT, Michel. Ética, sexualidade e política. Org. Manoel Barros da Motta;
trad. Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, p. 147. (Ditos e Escritos, V).]
47
“Et il faut pour cela qu’ils ne soient pas simplement logés comme dans une
armoire aux souvenirs mais profondément implantés dans l’âme, “fichés en
elle” dit Sénèque, et qu’ils fassent ainsi partie de nous-mêmes: bref, que l’âme les
fasse non seulement siens, mais soi” (grifo meu). [Tradução: “E por isso é preciso
que eles não estejam simplesmente colocados em uma espécie de armário de
lembranças, mas profundamente implantados na alma, ‘nela arquivados’, diz
Sêneca, e que assim façam parte de nós mesmos: em suma, que a alma os faça
não somente seus, mas si mesmo”. Edição brasileira: FOUCAULT, Michel. Éti-
ca, sexualidade e política. Org. Manoel Barros da Motta; trad. Elisa Monteiro,
Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 148.
(Ditos e Escritos, V).]
“Lettres, lettre, l’être” 155

díspares que podem ir desde um poema incluído posteriormente


em outro livro a notas-lembretes, lista de alimentos ou extensas
formulações do combate para o qual Artaud se preparou; como
sendo da ordem dessa construção de uma memória material que,
em Artaud, vai, ainda mais além, visar a constituição de um cor-
po próprio: “Dire et écrire n’importe quoi pour ne pas perdre
l’idée afin de s’en souvenir pour après faire sortir la vraie char-
pente, squelette d’incarnation”48 (1984b, p. 295).
Esse corpo “próprio” é, no entanto, um corpo que chama
pelo “impróprio”, por tudo que possa diferi-lo de um arcabouço
moral ou subjetivo prévio. Esse corpo está por vir. Como proje-
ção, no sentido material e simbólico, de sua própria escrita dese-
nhada. Por isso mesmo o íntimo passa ao êxtimo. O pessoal toca
o impessoal. O si mesmo aloja-se em um fora de si. Descolando
toda a escrita das correspondências, cartas e cadernos de uma
ideia de narrativa sobre si:

Moi c’est ce recul / qui ne s’exprime jamais / par des attitudes


morales détachées du corps / mais toujours des attitudes
physiques / dans et avec tout le corps, // reculer dans le caca
descendant, / abstractif, / c’est reculer non en conscience / mais
avec tout le corps / car c’est le corps qui est la conscience / et
elle ne peut être sans lui49 (1986b, p. 335).

É pois em ruptura com o plano moral – abstrato, desatado


do corpo –, que nos aproximaríamos de um corpo-escrito – po-
tencializado nos cadernos e nas cartas – sem circunscrevê-lo no

48
Tradução: “Dizer e escrever seja o que for para não perder a ideia, a fim de
lembrá-la para depois fazer sair a verdadeira carcaça, esqueleto de incarnação”.
49
Tradução: “Eu: este recuo / que não se exprime nunca / por atitudes morais
destacadas do corpo / mas sempre atitudes físicas / em e com o corpo, // recuar
na caca descendo, / abstrata, / é recuar não em consciência / mas com todo o
corpo / pois o corpo é que é a consciência / e ela sem ele não é”.
156 Antonin Artaud

âmbito pessoal de uma literatura íntima que busca narrar sua


“verdadeira” história de vida, ou, ainda, no exercício da corres-
pondência como espaço paralelo à obra e muito lida enquanto
revelação do autor escondido pelo projeto literário e só manifes-
to através dessa sua outra “aparição” simultânea. A moralidade
cede ao físico um espaço de atitude que vai situar essa escrita em
um plano de eficácia, mais do que naquele do convencimento
literário que ainda se apresentava como um dos horizontes na
Correspondência com Jacques Rivière. Eficácia física e material,
bem entendido, que circunda todas as últimas manifestações em
obra do poeta.
Se versarmos ainda por algum tempo nessas práticas anti-
gas de escrituras, veremos como elas buscavam se distinguir – nas
suas apropriações de outros textos, na citação e leitura – da for-
mação de um corpo doutrinário. Os hupomnêmata, em sua for-
ma fragmentária e dispersa, se descolavam das “séries de retratos
reconhecidos, porém mortos”. Assim sendo, o papel da escrita
seria o de “constituir, com tudo aquilo que a leitura constituiu,
um corpo”. Mas, como lembra Foucault:

Et ce corps, il faut le comprendre non pas comme un corps


de doctrine, mais bien – en suivant la métaphore si souvant
évoquée de la digestion – comme le corps même de celui qui, en
transcrivant ses lectures, se les est appropriées et a fait la sienne
leur vérité: l’écriture transforme la chose vue ou entendue en
forces de sang (in, vires, in sanguinem)50 (1994c, p. 422).

50
Tradução: “E é preciso compreender esse corpo não como corpo de doutrina,
mas segunda a metáfora da digestão, tão frequentemente evocada – como o
próprio corpo daquele que, transcrevendo suas leituras, delas se apropriou e fez
sua a verdade delas: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida em forças e em
sangue (in vires, in sanguinem)”. Edição brasileira: FOUCAULT, Michel. Ética,
sexualidade e política. Org. Manoel Barros da Motta; trad. Elisa Monteiro e Inês
Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 152. (Ditos
e Escritos, V).
“Lettres, lettre, l’être” 157

Há toda uma série de textos de Artaud a serem explorados


nessa perspectiva. Por exemplo, em seu último período, “Van
Gogh – o suicidado da sociedade” (1996d), assim como sua “tra-
dução” de Lewis Carroll, L’arve et l’aume (1989a),51 ou ainda,
em 1934, seu texto sobre “Heliogábalo ou o anarquista coroado”
(1982b). É inegável o fato de estarmos diante de uma escrita que
busca destruir os corpos doutrinários e conceituais, visando à
constituição de um corpo próprio: “Quant à l’être, il est ce qui
ne sort pas de l’être pour entrer dans la critique et le jugement”52
(1986b, p. 418). De fato isso já se apresentava nas suas pro-
postas para um novo teatro, assim como nos múltiplos ataques
vanguardistas às doutrinas religiosas ou científicas, assinadas em
cartas-manifesto por Artaud. Mas, diferentemente das propostas
anteriores, aqui estamos diante de uma escrita que, por um lado,
não visa mais a quaisquer propostas e, por outro, uma escrita que
não só fragmenta os discursos doutrinários, senão que ela mes-
mo se estilhaça e assim se oferece ao leitor. É ainda importante
notar a busca de uma eficácia física por meio da própria matéria
escrita, o que outrora se dava fundamentalmente nas projeções

51
Vale aqui citar trecho do prefácio de Artaud à edição dessa tradução, publicado
por L’Arbalète, em 1989: “Mes cahiers écrits à Rodez pendant mes trois ans
d’internement, et montrés à tout le monde, écrits dans une ignorance complète
de Lewis Carroll que j’avais jamais lu, sont pleins d’exclamations, d’interjec-
tions, d’abois, des cris, sur l’antinomie entre vivre et être: / agir et penser, /
matière et âme, / corps et esprit. / D’ailleurs ce petit poème on pourra le com-
parer avec celui de Lewis Carroll dans le texte anglais et on se rendra compte
qu’il m’appartient en propre et n’est pas du tout la version française d’un texte
anglais”. [Tradução: “Meus cadernos escritos em Rodez durante meus três anos
de internação, e mostrados a todo mundo, escritos em uma ignorância com-
pleta de Lewis Caroll, que eu nunca tinha lido, são cheios de exclamações, de
interjeições, de latidos, de gritos, sobre a antinomia entre viver e ser: / agir
e pensar, / matéria e alma, / corpo e espírito. / Além do mais, este pequeno
poema, quem quiser compará-lo com aquele de Lewis Carroll no texto inglês,
se dará conta de que ele me pertence propriamente, e não é absolutamente a
versão francesa de um texto inglês”.]
52
Tradução: “Quanto ao ser, ele é o que não sai do ser para entrar na crítica e no
julgamento”.
158 Antonin Artaud

cênicas de Artaud. Os cadernos são incontornáveis nesse ponto:


estamos diante de outra perspectiva sobre e através da escrita que
será doravante empreendida pelo poeta:

Les mots ne veulent rien dire: ils doivent vivre, / le langage n’est
pas une convention, / il marche sur la dialectique discursive en
la damnant et passe, / donc c’est bien ma vie ici / et mes oeuvres
présents vivront éternellement en se perfectionnant. […].
L’alphabet est une caille rôtie. / Car il faut que l’on comprenne que
tout ceci n’est pas une doctrine / mais un fait53 (1987, pp. 140-1).

Ora, estamos diante de uma reivindicação contundente.


Importante notar que o ato de reivindicar ultrapassa o “conte-
údo” reivindicativo para se manifestar e materializar em novas
formas de escrita. Os cadernos, assim tomados, representam essa
forma outra – que radicaliza as questões postas na correspondên-
cia com Rivière – que rompe com um campo do convencimento
literário para se aventurar nessa escrita exaustiva e estilhaçada, na
qual se trata, mais do que da reconstrução subjetiva, da incisão
na construção material de um corpo-escrito. Aí também onde os
pequenos desenhos dos cadernos extrapolam uma plástica figu-
rativa do texto para se imbricarem em uma prática ininterrupta
do traço. Os cadernos vão buscar construir essa linguagem viva,
feita de fatos, fatos não biográficos, fatos que se aproximam mais
da crueldade, do invivível, da força muitas vezes irrepresentá-
vel do acontecimento. Tudo isso questiona o subjetivo para se
apropriar de um novo corpo que posteriormente adentrará seu

53
Tradução: “As palavras não querem dizer nada: elas devem viver, / a linguagem
não é uma convenção, / ela marcha sobre a dialética discursiva, danando-a, e
passa, / portanto, é bem minha vida o que está aqui / e minhas obras presentes
viverão eternamente se aperfeiçoando. [...] o alfabeto é uma codorna assada. /
Pois é preciso compreender que nada disso tudo é uma doutrina / mas um fato”.
“Lettres, lettre, l’être” 159

livro Suppôts et suppliciations – e, fundamentalmente, através das


“Cartas” nele incluídas.
Para Foucault, os cadernos de notas – hupomnêmata –
estariam muito próximos da prática da correspondência, e não
somente porque esses seriam uma matéria primeira de textos
enviados a outros. A ligação intrínseca se localizaria, de forma
ampla, sobre a noção de “exercício pessoal”. O importante dos
exercícios concentra-se na sua dupla ação: sobre aquele que es-
creve e sobre aquele que lê: “La lettre qu’on envoit agit, par le
geste même de l’écriture, sur celui qui l’adresse, comme elle agit
par la lecture et la relecture sur celui qui la reçoit”54 (1994c, p.
423). Foucault chama a atenção para o caráter de armamento
pessoal empreendido por meio desses escritos: “L’écriture qui
aide le destinataire arme le scripteur – et éventuellement les tiers
qui la lisent”55 (p. 424). A coincidente metáfora bélica/missiva
– que em muito se relaciona com o combate de Artaud. Dessa
maneira, a atenção recai não sobre as correspondências entre os
fatos históricos da vida e sua possível narração poético-literária,
mas sobre essa prática da escrita como exercício que faz existir a
vida. É precisamente o ato escritural que capacita a criação de de-
terminada experiência. É a escrita enquanto ato, e daí sua força
bélica, sua construção mais maquinal do que convencional em
meio à linguagem, como vamos observar em Artaud.
A relação intrínseca entre os hupomnêmata e as cartas não
seria suficiente, segundo Foucault, para que pensemos nessas úl-
54
Tradução: “A carta que se envia age, por meio do próprio gesto da escrita, sobre
aquele que a envia, assim como, pela leitura e releitura, ela age sobre aquele que
a recebe”. Edição brasileira: FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade e política.
Org. Manoel Barros da Motta; trad. Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado
Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 153. (Ditos e Escritos, V).
55
Tradução: “A escrita que ajuda o destinatário arma aquele que escreve – e even-
tualmente terceiros que a leiam”. Edição brasileira: FOUCAULT, Michel. Éti-
ca, sexualidade e política. Org. Manoel Barros da Motta; trad. Elisa Monteiro e
Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 155.
(Ditos e Escritos, V).
160 Antonin Artaud

timas como sendo um simples prolongamento dos primeiros.


Mas, ainda aqui, aquilo que as diferencia vai nos aproximar de
algumas noções fundamentais sobre a escrita das cartas no corpo
da obra de Artaud. Isso porque, como observou Foucault, a carta
é aquela que “torna o escritor presente diante deste ao qual ele se
endereça” (p. 425).56 Tal presença seria aludida como sendo “de
forma imediata e quase física”, não se concentrando, portanto,
naquilo que é narrado, mas na força de presentificação perten-
cente ao ato mesmo de narrar. Para o filósofo, tal força residiria
sobretudo no fato de que aquele que escreve se abre ao olhar e
exame do outro. Daí um jogo de reciprocidade que não limita a
correspondência nem em um manual de conselhos, tampouco na
narração dos acontecimentos da vida. Seria nesse plano de forças
recíprocas que Foucault encontraria as bases de um processo de
subjetivação do discurso, cujo par estaria nessa possibilidade de
objetivação da alma – fonte do discurso epistolar posterior.
Em Artaud, a força da presença quase física do autor se
localizaria na escrita enquanto arma/ato, como também em sua
intrínseca relação com o endereçamento. Parece-nos que a cor-
respondência entre autor e leitor se dá em torno de tal noção de
endereçamento e não nesse processo da escrita que se abre ao
olhar e exame do outro – base para a subjetivação do discurso
em Foucault. Isso porque, para Artaud, o endereçar é portador
dessa força missiva quase como um arremesso, um míssil, um
combate armado, que o poeta lança contra o seu leitor. Toda

56
“La letrre rend le scripteur présent à celui auquel il s’adresse. Et présent non pas
simplement par les informations qu’il lui donne sur sa vie, […], présent d’une
sorte de présence immédiate et quasi physique.” [Tradução: “A carta torna o
escritor ‘presente’ para aquele a quem ele a envia. E presente não simplesmente
pelas informações que ele lhe dá sobre sua vida, [...]; presente com uma espécie
de presença imediata e quase física”. Edição brasileira: FOUCAULT, Michel.
Ética, sexualidade e política. Org. Manoel Barros da Motta; trad. Elisa Monteiro
e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 156.
(Ditos e Escritos, V).
“Lettres, lettre, l’être” 161

essa ideia de uma escrita de combate – se aproximando de uma


construção de máquinas, de armamentos – teria sido enunciada
já na correspondência com Rivière. Mas, na sua espiral do tem-
po, esse fenômeno teria se exacerbado e, a partir dos sorts, ele
viria a ser explorado sob outras perspectivas plásticas e gráficas da
linguagem. Deveríamos aqui notar que a correspondência com
Rivière poderia até se assemelhar a esse processo de subjetivação
discursiva através de uma objetivação da alma – como proposto
por Foucault. O próprio espanto do editor diante das cartas de
Artaud remete para isso:

Mais comment y échappez-vous si bien quand vous tentez de


définir votre mal? Faut-il croire que l’angoisse vous donne cette
force et cette lucidité qui vous manquent quand vous n’êtes pas
vous-même en cause? Ou bien est-ce la proximité de l’objet
que vous travaillez à saisir qui vous permet tout à coup une
prise si bien assurée? En tout cas, vous arrivez, dans l’analyse de
votre esprit, à des réussites complètes, remarquables57 (Artaud,
1994a, p. 34).

No entanto, ao nos aproximarmos das cartas escritas por


Artaud a partir de Rodez, somos obrigados a acompanhar as
transformações e radicalizações disso que poderia ser considera-
do como base de um discurso epistolar. Afastando-se dele, Ar-
taud afasta-se do processo de subjetivação que Foucault vê como
o seu par. Talvez esse desenvolvimento nos leve até mesmo à
necessidade de diferençar carta e correspondência no interior da

57
Tradução: “Mas como é que você se sai tão bem quando tenta definir o seu
mal? Deve-se supor que a angústia lhe empresta essa força e essa lucidez que lhe
faltam quando não é você mesmo que está em causa? Ou seria a proximidade
do objeto que você se esforça por compreender que lhe permite uma apreensão
tão acertada? Em todo caso, você chega, na análise de seu espírito, a resultados
completos, notáveis”.
162 Antonin Artaud

obra de Artaud e em relação aos sedimentos culturais que envol-


vem tais manifestações da escrita.

2.3. Sob o signo da trans-posição

Adentrar em todo o último momento da criação de Artaud


exige-nos um movimento complexo que nos envolve muitas ve-
zes no paradoxo ou mesmo na ilegibilidade em face dos textos e
das questões neles levantadas. No tocante às “cartas”, não seria
diferente, e se poderia mesmo dizer que através delas nós acom-
panhamos de perto essas transformações do discurso, da língua e
das posições de Artaud em face de tais questões. Desse modo, sua
importância residiria também no fato de se oferecerem como lo-
cus privilegiado de enunciação do seu próprio projeto de escrita.
Como dissemos anteriormente, toma-se como “retorno”
de Artaud à cena criadora o momento em que este, do asilo de
Rodez, se recoloca diante da escrita em uma insistência cotidiana
e em uma consistência que lhe remete para seu percurso anterior.
Artaud é localizado em 1939 no hospício de Ville-Évrard, zona
de ocupação durante a Segunda Grande Guerra. Em 1942, Ro-
bert Desnos, tocado pelas condições subumanas às quais estaria
submetido o poeta, dá início – com apoio de outros amigos – à
empreitada de transferência do escritor. Amigo do doutor Fer-
dière – médico chefe do asilo de Rodez –, Desnos busca meios
para a transferência, cujos obstáculos centravam-se na impossi-
bilidade de trazer um doente localizado em zona ocupada para
zona livre. Foi assim que encontraram como saída uma escala
feita por Artaud em Chezal-Benoît – hospital psiquiátrico agrí-
cola –, localizado na linha de demarcação e onde Ferdière teria
contatos suficientes para operar tal transferência. Assim sendo,
foi somente um ano depois, em 1943, que Antonin Artaud che-
gou ao asilo de Rodez. Como lembra Paule Thévenin, o poeta
não deixou de escrever em Ville-Évrard. Além dos sorts, sabe-se
“Lettres, lettre, l’être” 163

da existência de cartas, por meio das quais ele “lançaria um cha-


mado aos amigos para que ouvissem seu sofrimento e finalmente
que o ajudassem a pôr fim à sua horrível situação” (1996c, p.
267).58 Essas cartas, que não puderam ser reunidas em um vo-
lume, não foram jamais enviadas e ficaram retidas na adminis-
tração do hospital ou foram vendidas posteriormente a colecio-
nadores. Mas o que se sabe é que será em Rodez que Artaud irá
retomar exaustivamente a escrita enquanto processo de criação
e recriação, seja poética ou pictórica. Aí, ele retoma uma escrita
cotidiana que de forma primeira se manifestará nas cartas. Esse
acontecimento e passagem serão anunciadores da complexidade,
da extensão e da intensidade por vir de sua obra. Eles não seriam,
por isso mesmo, menos complexos.
A primeira complexidade emergiria com a figura de um
Artaud servo de Deus, comprometido com um discurso de pro-
pagação e convencimento de sua própria fé. Da força em uma
crença mágica que o teria levado à Dublin, à prática de uma
escrita “destruidora” ou “protetora”, lançada pelos sorts, o poeta
desembocaria em uma escrita prenhe de religiosidade, mas onde
se mantém seu traço reivindicativo e contestatório. Identificado
por vários críticos e leitores como sendo seu “período de delí-
rio religioso”, valeria aqui aprofundar a discussão. Isso porque,
lembrando a volta em espiral, parece que esse retorno do poeta
escaparia também à linearidade narrativa,59 apontando mais para

58
“C’est à Rodez qu’Antonin Artaud se remet vraiment à écrire. La lettre n’est
plus seulement, comme à Ville-Évrard, l’appel qu’il lance à ses amis pour faire
entendre sa détresse et pour demander qu’il soit mis fin à son horrible situation,
elle redevient, comme à l’époque de la Correspondence avec Jacques Rivière,
oeuvre d’écrivain […].” [Tradução: “É em Rodez que Artaud se põe de novo,
realmente, a escrever. A carta não é mais apenas, como em Ville-Évrard, o apelo
que ele lança a seus amigos para fazê-los ouvir seu sofrimento e para pedir que
se ponha fim à sua horrível situação; ela se torna de novo, como à época da
Correspondência com Jacques Rivière, obra de escritor [...]”.]
59
Seria interessante aludir aqui à sua prática de mis-en-page do texto presente des-
de seu retorno criativo em Rodez. O poeta passa a utilizar as margens da página
164 Antonin Artaud

um círculo turbulento do que propriamente para uma fase, ou


período, que se dissipará posteriormente.
Encontramos nos próprios textos dessa época a possibi-
lidade de problematizar a questão religiosa, tal qual ela se es-
boçava para o próprio poeta. E problematizar, aqui, significa
retirá-la das soluções e entendimentos unívocos, reinserindo-a
no interior de suas próprias contradições e, muitas vezes, de
inexoráveis paradoxos.
Lendo as cartas religiosas de Artaud, uma nos pareceu es-
pecialmente significativa para abordar a questão no momento de
retorno à escrita. Tal carta foi escrita no início de julho de 1943
para o pintor Frédéric Delanglade, amigo do doutor Ferdière,
que se encontrava em Rodez, passando uma temporada. Ainda
importante é o fato de que, nessa carta, estamos diante de uma
reflexão sobre o universo pictórico e plástico, que, como sabe-
mos, irá em seguida ser explorado por Artaud. Algumas alusões
sobre a influência de Delanglade na investida pictórica de Ar-
taud não seriam em vão, daí também a importância dessa carta
neste livro. No tocante à questão religiosa, nos pareceram intri-
gantes as operações feitas pelo poeta na reflexão que empreende
sobre uma das telas de seu destinatário pintor. Poder-se-ia dizer
que Artaud esboça uma transfusão física entre as matérias do re-
ligioso e do erótico, tão intimamente ligados, como já nos teria
mostrado Bataille60, entre tantos outros. Também uma transfu-
são com a própria matéria espaço-temporal que liga passado e

de forma sistemática. O leitor se vê diante de um texto central e outros à mar-


gem, estes últimos estariam muitas vezes em contradição com o primeiro. Essa
prática de mis-en-page nos foi dada ver nas pesquisas dos manuscritos de textos
posteriores ao momento inicial de seu retorno à escrita, onde a mesma perma-
necerá. Sabemos que muitos dos textos centrais (esses os que foram editados)
demonstram sua servidão a Deus enquanto os textos à margem se manifestam
como blasfêmia diante de Deus e das religiões em geral.
60
Especificamente em seu livro O erotismo, mas, de um modo geral, Georges
Bataille, em grande parte de sua obra, faz esse percurso do sagrado ao erótico,
tornando-se na modernidade um pensador ícone dessas relações.
“Lettres, lettre, l’être” 165

presente, asilo e igreja, sob a insígnia e a incógnita manifestação


do inconsciente, como também já nos foi oferecido conhecer
depois do invento freudiano. Nesse contexto complexo, emerge
um vocábulo precioso: a “transposição”. A operação é aludida
como sendo da ordem do infernal: “qu’une infernale transposi-
tion d’une toile sublime a été faite mais sans je crois que vous-
-même vous le sachiez”61 (1996c, p. 47). Interessante operação
que introduz no seio de sua crença religiosa um dispositivo que
se oferece como abertura (invenção da negação) de sua própria
crença: “Car si cette toile fait mal à voir pour un coeur qui a le
sens du Divin, il y a une chose remarquable en elle, c’est que
cette peinture qui pourrait être érotique ne fait pas penser à
l’érotique mais au Divin”62 (p. 47). Poderia ser uma fenda aberta
no interior do que se chamou como delírio religioso de Artaud;
significativo, ainda, é que ela se abre frente ao olhar plástico do
poeta. Caminho, doravante, que será empreendido e que coin-
cide com seu processo de saída da sua possível servidão a Deus.
O que agora nos interessa é pensar como a “transposição
infernal” abriu a possibilidade de transpor mundos que estariam
isolados sob o véu religioso: erotismo e divino, paraíso e inferno.
Foi nesse sentido que ela nos apareceu como traço, indício da pas-
sagem de Artaud. Assim, desdobrando o evento e o vocábulo, pas-
samos da transposição à trans-posição. Desse modo, para além do
gesto que transpõe, encontramos a posição transversal do próprio
discurso, que se esboçaria no retorno “religioso” do poeta.
A questão do nome e da assinatura são ícones dessa posi-
ção transversal do poeta. É assim que, em quase todo o ano de
1943 – quando volta a escrever –, Antonin utilizará o sobrenome

61
Tradução: “que uma transposição infernal de uma tela sublime foi feita, mas,
creio, sem que você mesmo o soubesse”.
62
Tradução: “Pois se esta tela faz mal à vista para um coração que possui o sentido
do Divino, há algo notável nela, é que esta pintura, que poderia ser erótica, não
faz pensar no erótico, mas no Divino”.
166 Antonin Artaud

de solteiro de sua mãe, Nalpas. Ainda, de forma intrigante, An-


tonin volta a assinar Artaud em carta escrita à Michel Leiris em
24 de setembro desse mesmo ano. E será aí, nessa mesma carta,
na qual o poeta se reinveste de sua assinatura, que ele irá pedir
ao amigo o envio do livro O teatro e seu duplo. A referência à
obra anterior, como vimos sugerindo, é significativa no processo
tanto do retorno à escrita de uma obra, quanto da possibilidade
de se nomear Autor/Artaud. Balizados por essas duas aparições,
pensamos ser possível adentrar na espiral do poeta, transpon-
do obliquamente as figuras de Deus, atravessando-as nas suas
relações com as posições, os ângulos, os vértices de força que
compõem sua escrita e se relacionam com o processo de nome-
ação do Autor/Artaud. É importante salientar que, mesmo que
não estejamos centrando nossas questões em torno desse “perío-
do”, torna-se praticamente impossível adentrar nas suas últimas
criações poético-plásticas negligenciando-o. Isso porque, como
temos visto e ainda veremos, as figuras de Deus permanecerão,
mesmo que o poeta tenha “transposto” aquilo que se entendeu
como sendo seu “delírio religioso”.
Traço primeiro a destacar seria o de que, em Artaud, as
figuras de Deus não foram jamais unívocas. De um modo ge-
ral, observa-se uma recusa contundente de Deus em seu período
surrealista (décadas de 1920 e 1930) e novamente a partir de
1944-45, no momento de sua saída do asilo de Rodez, retorno à
Paris, reencontro com os amigos e com a cena cultural e artística
da época; assim como o fato de que, em 1945, Artaud já teria
reconsolidado seu gesto de escrita e suas novas práticas criadoras.
Por outro lado, observam-se movimentos e discursos diferencia-
dos de adesão à religiosidade entre 1937 e 1943-44. De sua ida
ao México, já em 1936, podemos obter indícios dessa “adesão”
posterior: o poeta viaja em busca de uma experiência mítica da
e com a cultura. Aquilo que chamava de “bases vivas da cultura”
se manifestaria em seu contato com os rituais sagrados dos índios
“Lettres, lettre, l’être” 167

da serra Tarahumara, onde Artaud parece ter estado, como se


pôde ler posteriormente nos textos sobre os rituais do peiote e do
sol negro – tutuguri (1979b e 1996d, entre outros). Suas “Con-
ferências na Universidade do México” (1973) contestam com
clareza uma relação mimética do novo mundo diante do velho
mundo. Para o poeta, seria na cultura antiga do México, anterior
à colonização, onde se poderiam tramar as forças revolucioná-
rias, e não em uma “importação” repetitiva das teorias europeias
sobre o Estado. Mas, independentemente dessa aliança com as
vozes autóctones, Artaud se entregava, já aí, ao salto no desco-
nhecido, manifestando seu desejo de apoderar-se dessas forças
ocultas. Ocultas, ao menos, para o mundo “civilizado”.63 De seu
retorno à Europa, tratava-se de trazer à luz o oculto, no entanto,
de forma peculiar: revestindo-se, o próprio Artaud, desse mes-
mo oculto. Seria, como vimos, o período de apagamento do seu
nome. Sua voz passa a falar através de “Outro”, “O revelado”.
63
Lembremos aqui a ficção biográfica, Viagem ao México, escrita por Silviano San-
tiago a propósito de Antonin Artaud. Interessa destacar como o autor explora as
apropriações e conquistas do “novo mundo” pelo “velho mundo”, construindo
– de um ponto de vista que intercambia e atravessa os estereótipos do subde-
senvolvido com o desenvolvido – uma crítica inusitada, capaz de proporcionar
uma refeitura dessas incursões do “erudito” sobre o “popular”, de forma que se
assemelha muito à própria viagem do poeta Artaud. Também nesse sentido, a
crítica de Evelyne Grossman, no livro Artaud/Joyce - le corps et le texte [Artaud/
Joyce – o corpo e o texto], a propósito das diferentes “conciliações” com as vozes
do “outro”, desconhecido ou exótico, que se apresentam nas viagens de Artaud
e nessas posteriores do antropólogo Claude Lévi-Strauss, nas quais ao último
escaparia justamente a ideia de força e a contaminação que aí se impõe: “L’idée
d’énergie et de puissance du mana est trop entachée à ses yeaux de mentalité
magique pour entrer dans le système d’explication scientifique que construit
l’anthropologie. Admettre la force du mana relèverait de la contamination de
l’anthropologue par le sauvage” (Grossman, 1996, p. 94). [Tradução: “A ideia
de energia e potência do mana é, a seus olhos, demasiado maculada de mentali-
dade mágica para entrar no sistema de explicação científica que a antropologia
constrói. Admitir a força do mana seria efeito da contaminação do antropólogo
pelo selvagem”.] Mais recentemente, não poderíamos deixar de aludir aos tra-
balhos do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro que vem, sob a insurgência
da noção de perspectivismo, permitindo adensar de forma exponencial essas re-
lações de trans-posições que viemos aqui tentando aludir em Artaud.
168 Antonin Artaud

Mas, é importante notar que, desse modo, estaria também seu


corpo se oferecendo para que esse “Outro” falasse através dele.
Seria precisamente com os efeitos dessa intrusão que Artaud teria
que lidar quando retoma sua atividade diante da vida. Em 1943,
diferentemente desse período que o leva ao exílio, prisão e asilo,
seu discurso não estaria mais na fusão ou intrusão de um “Ou-
tro” – desconhecido, mágico, oculto, Deus. Não é mais através
dele que falaria o “Outro”. No entanto, atravessado pelo “Ou-
tro”, Artaud voltaria a falar. Sutil diferença que se perfaz nessa
espiral discursiva e irruptiva do poeta.
Ainda menos unívoca será a aparição desse discurso que
se pretende atravessado por Deus. Se, por um lado, a posição de
fusão com as forças mágicas se desloca, inserindo sua escrita em
um plano de devoção em face do Supremo e não mais de devora-
ção do mesmo (no qual o poeta tinha se tornado “O revelado”),
Artaud, por outro lado, vai esboçar uma religiosidade que não se
sustentará na clara divisão entre preceitos morais acerca do bem
e do mal, Deus e diabo. Ele se distancia de uma leitura instituí-
da e hierárquica da bíblia, como se devolvesse a ela seu estatuto
poético por excelência. Além disso, o poeta vai reunir elementos
oriundos de outros textos religiosos, operando um sincretismo
que escaparia por completo à lógica/leitura institucional das re-
ligiões. Desse modo, sua adesão ao religioso se dará por meio de
um discurso por vezes dificilmente aceitável, até mesmo para o
mais fervoroso católico. Difícil posição que o concerto das vozes
da Razão não poderia senão isolar no interior de uma construção
delirante.64

64
Ver, por exemplo, texto escrito pelo padre de Rodez, Henri Julien, na época em
que o poeta ali se encontrava, intitulado “J’étais donc l’aumonier” (1977) [“Eu
era então o capitão”]. Nesse artigo é possível ler que a fé de Artaud era percebida
pelo próprio padre como sendo da ordem de um delírio religioso. Poder-se-ia
dizer, nesse sentido, que o “panóptico” psiquiátrico deixa poucas alternativas a
quem por ele passa.
“Lettres, lettre, l’être” 169

O mal que afligia Artaud não foi por ele mesmo nunca ne-
gado (como podemos ver na sua correspondência com Rivière). No
entanto, o que escapa às construções sistemáticas seria menos o mal
e sempre o mal como força vital. É nesse sentido que a discussão
em torno ao delírio ou à loucura de Artaud mostra-se inoperante
quando aquilo que interessa é ler e pensar a partir de seus textos,
desenhos, enfim, da sua obra. Por outro lado, buscar decifrar como
é a composição dessas forças com a construção de seu pensamento
poético me parece a tarefa crucial, mesmo que para tanto sejamos le-
vados à incompreensão de muitos fenômenos e à impossibilidade de
um suporte teórico que possa compreender as inscrições de Artaud
no campo simbólico – campo este que estaria, a princípio, diante
delas, doutrinária e categoricamente restrito e fechado.
Ainda nesse sentido, encontramos uma leitura interessan-
te, feita pelo filósofo Jacob Rogozinski (1998), sobre a questão
religiosa em Artaud. O interessante reside justamente no fato de
que as teorias sistemáticas65 acerca da loucura não possibilitam
um acesso eficaz em face dos textos do poeta. Ainda interessan-
te é o fato de que os textos inspirados por uma leitura e com-
preensão do “delírio psicótico” – de que Rogozinski participa
– acabam situando o questionamento de determinada obra no
interior de um campo conceitual alheio e servem, dessa maneira,
muito mais aos possíveis avanços da própria teoria utilizada do
que à compreensão da obra em questão. Nessa perspectiva, o
texto do filósofo é exemplar e muito fecundo. Para nós, interessa
discutir de que maneira a obra de Artaud continua escapando aos
campos de saber doutrinários. Ainda: pretendo mostrar como
iremos abandonar a perspectiva da loucura e do delírio assim
vistos, e de que maneira podemos nos aproximar da própria ma-

65
Óbvio notar que a grande teoria que teria se destinado à compreensão dos fe-
nômenos psicóticos na modernidade seria a psicanálise de Freud e seus leitores
posteriores, sobretudo, Jacques Lacan.
170 Antonin Artaud

téria de força que se impõe em seus textos. Se negligenciarmos


isso, o resultado pode ser ou uma taxação de “irracionalidade”
completa, a loucura por excelência, ou uma insistência absoluta
em “dar significado” a tudo o que se lê, caindo muitas vezes
em uma construção lógica sobre o próprio oculto, e atribuin-
do, assim, um misticismo àquilo que por vezes é vetor de força
agindo no próprio vazio da linguagem em Artaud. Buscar traçar
tal percurso é a base mesma da minha pergunta diante da obra
em questão – onde sublinhamos a existência de um pensamento
em Artaud que vai justamente se colocar no limiar das grandes
teorias modernas em face ao campo do literário e do psíquico, ou
das criações artísticas e da construção de subjetividades.
Se ressalto a leitura de Rogozinski é, por um lado, pelo
fato de que ela se situa em uma posição inovadora frente a leitu-
ras anteriores que pretendiam simplesmente enquadrar Artaud
no campo da psicose. Sua diferença reside no demonstrar que
apesar de todo o percurso teórico acerca da psicose, os textos do
poeta levam à conclusão de que algo aí produzido escapa ao cam-
po conceitual empregado, ou seja: o autor mostra com exatidão
o limiar que sugeri acima.66 Por outro lado, devo expor que em
meu trabalho cheguei à hipótese da “trans-posição” a partir das
leituras dos próprios textos religiosos do poeta. E, ao lermos o
artigo do filósofo, encontramos como formulação primeira a se-
guinte questão: “Comment franchir Dieu?”67. Pergunta que re-
mete para a questão mesma colocada pelo poeta: “Parti du corps
66
“Sur cette tentative d’Artaud, la psycanalyse n’a pour l’instant rien à nous dire,
car ce travail d’écriture met ici en jeu la possibilité de réinscrire dans la langue
cela même – le réel du corps et de la jouissance, sans doute aussi la chair et le
rythme – qui, en bonne doctrine lacanienne, excède toute inscription dans
l’ordre signifiant” (Rogozinski, 1998, p. 121). [Tradução: “Sobre esta tentativa
de Artaud, a psicanálise não tem, por ora, nada a nos dizer, pois esse trabalho de
escrita põe em jogo a possibilidade de reinscrever na língua exatamente isso – o
real do corpo e do gozo, e também, sem dúvida, a carne e o ritmo – que, em
boa doutrina lacaniana, excede toda inscrição na ordem significante”.]
67
Tradução: “Como transpor Deus?”.
“Lettres, lettre, l’être” 171

j’ai laissé dieu pour refaire un autre corps / j’ai franchi dieu pour
achever tout mon corps”68 (1984b, p. 151). É interessante notar
que essa citação de Artaud data de 1946, momento posterior ao
que se considerou como sendo o de seu “delírio religioso”.
Sublinhemos agora essa convergência acerca da transposi-
ção, da travessia, do atravessar. Ora, o que nos foi possível ob-
servar é que essa questão já se colocava no próprio discurso que
se pretendia aderido a Deus, no momento mesmo em que o po-
eta “atravessava” ou “transpunha” certa figura de Deus. Pontuar
essa fenda aberta no instante que se considera como sendo de
colagem de Artaud a Deus é apenas a primeira indagação so-
bre o quão pouco fecundo seria pensar nessa travessia mantendo
como paradigma a centralidade da noção de sujeito. O que, no
caso, renderia ao poeta o estatuto de uma estrutura psicótica e
degenerescente. Ainda relevante: para desdobrar tal hipótese de
uma entrada no delírio psicótico deve-se operar com a noção de
rejeição – verwerfung (Freud, 1976) – do nome do Pai, como
se falhasse, no universo simbólico do sujeito, esse significante
paterno que funcionaria como barreira protetora frente ao Real
inominável do nascimento, da morte, da identidade sexual e da
procriação (Freud, 1976, p. 116). A psicose seria, portanto, essa
tentativa de responder às questões últimas – trágicas – como se
elas pertencessem a um sujeito. O problemático nessa interpre-
tação reside principalmente na crença em um núcleo subjetivo,
que assim se torna fixo (segundo Artaud: terminado, morto) – é
a crença inabalável acerca do próprio conceito de sujeito.
É assim que em seu artigo Rogonzinski terá que encontrar
– a partir dessa ideia pré-concebida de funcionamento subjeti-
vo – uma correspondência “factual” da falência do significante
paterno. Ora, exatamente nesse ponto é onde a crítica opera uma

68
Tradução: “Partido do corpo, abandonei Deus para refazer um outro corpo / eu
transpus deus para levar todo meu corpo a cabo”.
172 Antonin Artaud

“transposição” fixa,69 que vai de encontro à matéria em movi-


mento que tem em mãos. Violência interpretativa ou não, o fato
é que essa argumentação não funciona com Artaud. Daí a força
limite de seus textos frente aos quadros doutrinários. E por quê?
Justamente porque nesse poeta, como temos visto, a questão
fundadora vai operar sobre os problemas postos pelas doutrinas,
vai incidir sobre o pensamento que governa a separação com
a vida, vai se tecer sobre as cisões entre corpo e psíquico, fato
e ficção, homem e Deus. De outro modo, como na leitura de
Jacob, dever-se-á afirmar que o rompimento do poeta com sua
noiva Cécile Schramme, em 1937, é o “momento de queda desse
significante paterno, que o leva à Irlanda como portador de um
cajado mágico de St. Patrick – ícone, por excelência, de uma
tentativa de restituição do pai e, ao mesmo tempo, prova de sua
potência perdida”. Ora, não se trata de acreditar ou não em um
fato/interpretação – sempre discutível. A saída assim posta nos
coloca frente a um dilema interminável e deveras infrutífero se
a tarefa é tentar ler Artaud. Isso porque se seu affaire mal suce-
dido com Cécile foi detonador de uma psicose delirante, a nós,
leitores, não resta muito mais do que agradecer à pobre noiva
pelo legado que nos deixou. No entanto, o que interessa ainda
pensar é como a produção textual discursiva e louca nesse poeta
abre o buraco encoberto pelas doutrinas, e desse buraco mesmo
se mostra capaz de apontar para novas invenções de linguagem
que vão necessariamente questionar a fixidez em torno dessas

69
Por mais paradoxal que pareça, a transposição refere-se aqui à correlação “ins-
tituída” entre um saber prévio e aquilo que não sabemos: a matéria textual
criadora e aberta. É assim que tal transposição só poderá operar de forma fixa:
através de uma suposição anterior (a doutrina) que decorre em uma suposição
posterior (a vida subjetiva de determinado escritor). Ora, a vida subjetiva, como
temos visto – e em um alargamento e transgressão dessa noção mesma – são os
textos do poeta, que nessa operação crítica passam silenciosos pelas mãos das
doutrinas.
“Lettres, lettre, l’être” 173

mesmas noções de texto, discurso e sujeito. Assim como mover


os limites instituídos pela cultura entre normal e patológico.
O que me parece importante frisar reside na ineficácia pre-
sente nesse gênero de abordagem diante dos textos do poeta: se en-
tendemos que o que está em jogo não é mais a ideia de um signifi-
cante paterno entendido como falo que falharia em Artaud, mas, e
sobretudo, a falência das próprias doutrinas enquanto significantes
fálicos70 encobrindo as construções de pensamento e linguagem em
Artaud – o saber sobre a língua e o ser postos por ele em questão.
O artigo de Rogozinski toca esse instante limite do saber diante dos
textos de Artaud. Ainda: sua aproximação do limite se traça através
de um ponto preciso, que é alvo na escrita do poeta: as relações entre
Deus e o corpo do homem. A questão primeira da encarnação. Seu
desdobramento em uma escrita que visa refazer um corpo, através,
dessa vez, de outros meios que não aqueles postos pela figura de
Cristo e perpetuados com seu corpo e sangue. A questão precisa de
construir um corpo próprio/impróprio, singular, e não esse formado
pelo corpo do “Outro”. É assim que o poeta vai dizer em 1946 que
é preciso deixar Deus para refazer-se um corpo.
Interessa ainda desenvolver a transposição enquanto ato
que transpõe. Como indagou Jacob Rogonzinski, esse atravessar
se relacionaria com algo da transgressão de um limite, de uma
fronteira, de um interdito? Se entendemos que há uma tentativa
radical em construir um corpo-escrito sob outros paradigmas
que não os da encarnação de Cristo, sim, a obra do poeta agiria
como transgressão desse limite simbólico imposto pelo corpo de

70
Em texto recente (“Manifiesto Contrassexual”), a autora Beatriz Preciado fala
como o próprio conceito de différance, construído pelo pensamento de Jacques
Derrida, deveria ser visto como “dildo”, elemento protético, ao mesmo tempo
material e simbólico, que faz funcionar as máquinas diferenciadoras, no caso do
gênero, no seio das culturas. Dessa referência importa-nos agora frisar a força
com que muitos estudos contemporâneos vêm operando na identificação dos
campos doutrinários (saberes instituídos) com esse exército fálico que delimita,
mas também encerra a força movente no seio das culturas.
174 Antonin Artaud

Cristo aos nossos corpos: “J’ai fait venir parfois, à côté des têtes
humaines, des objets, des arbres ou des animaux parce que je ne
suis pas encore sûr des limites auxquelles le corps du moi humain
peut s’arrêter”71 (Artaud, 1998, p. 207, grifo meu).
No entanto, parece que a operação transgressora se dá so-
bre o próprio limite. Não se trata de ultrapassar uma fronteira
onde estaria garantida a chegada noutro território – daí tam-
bém a inoperância em considerar a presença de Deus em Artaud
como sendo uma “fase” de sua psicose e posterior “cura” dos
fenômenos delirantes. Trata-se mais de cindir o próprio limite,
de escavá-lo, operação escatológica sobre o próprio escatológi-
co. É assim que o atravessar se mostra como a operação de seu
pensamento, uma travessia em aberto e não linear posta nos seus
textos, corpo-escrito também atravessado, este construído pelo
poeta na sua obra abortada.
Se nos parece importante passar, de maneira mais deta-
lhada, por essa discursividade religiosa em Artaud, é fundamen-
talmente para que possamos nos aproximar do universo que vai
ser explorado a seguir, no qual, para o poeta, as figuras de Deus
permanecerão em combate com a máquina poético-plástica por
ele criada. Ora, o que pretendemos aprofundar com a carta à
Delanglade é que tal combate aí mesmo já se enunciava; retirado
o verniz de um poeta obviamente humilhado (humilde), servo,
aprisionado, vê-se irromper o gérmen da escrita que doravante
existirá – onde os contrários se penetram indicando um mais
além do que a simples contradicção, atravessado da contra-dic-
ção que vai posteriormente inflar a letra do poeta e o levar assim
a desdobrá-la em um fazer poético ainda aqui inesperado.

71
Tradução: “Por vezes fiz surgirem, ao lado das cabeças humanas, objetos, ár-
vores ou animais, porque eu ainda não estou certo dos limites nos quais o
corpo do eu humano pode se deter”.
“Lettres, lettre, l’être” 175

É, desse modo, que poderemos observar em seu diálogo


com o pintor a manifestação de seu próprio combate com as
forças limites, as visões desse corpo-escrito atravessado por Deus
e a fenda mesma aberta pela travessia. Poder-se-iam destacar dois
gestos fundamentais presentes na carta: primeiro, as relações en-
tre o sagrado religioso e o sublime artístico – e a própria rela-
ção entre esses termos como índice de um plano religioso isento
de atributos fixos, sejam morais ou institucionais, deslocando a
ideia de Deus para um plano que seria mais de forças do que de
preceitos. Segundo, a tela pictórica de Delanglade – tal qual vista
pelo poeta – e a tela escrita de Artaud como espaços de cruza-
mento, transfusão e transposição desses gestos primeiros diante
do sagrado e do sublime.
A carta de Artaud à Delanglade se inicia buscando localizar
onde está Deus em face dos homens, do bem e do mal, e afirma:
“Puisque l’Infini partout c’est la Sublimation définitive des Jus-
tes auxquels vous appartenez. Et que le Mal n’est que le Recul de
l’Indéterminé devant Dieu”72 (1996c, p. 45). Destaquemos por ora
o não maniqueísmo presente nessa complexa definição do poeta:
Deus é o Infinito assim como o Mal é o Indeterminado, a operação
Divina é a Sublimação, assim como a operação maléfica está no re-
cuo desse mesmo Indeterminado diante de Deus. Ora, não se trata
aqui de um antagonismo evidente entre o Bem e o Mal, mas quiçá
de uma sutil passagem entre o Infinito e o Indeterminado, passa-
gem que, ainda nessa carta, Artaud tentará suprimir inserindo-a sob
o signo do desvio: “Supprimer le Mal c’est se détourner de la page où
l’on avait cru lire sa réalité”73 (1996c, p. 46). Vejamos, ainda, que as
preocupações do poeta, no que concerne à figura de Deus, não irão

72
Tradução: “Visto que o Infinito é, por toda parte, a Sublimação definitiva dos
Justos aos quais você pertence. E que o Mal não é senão o Recuo do Indetermi-
nado diante de Deus”.
73
Tradução: “Suprimir o Mal é se desviar da página onde se acreditara ter lido sua
realidade”.
176 Antonin Artaud

se cristalizar em torno aos possíveis conteúdos moralizantes do Bem


e do Mal, mas através dessas noções de desvio e direção (détourner e
tourner em francês, respectivamente) em face ao campo do Infinito-
-Indeterminado. É desse modo que a figura de Deus vai se tecendo
a partir de todo um imaginário de forças, de gestos, de posturas, de
perspectivas, muito mais do que de preceitos:

Et ce dont on se détourne ou qu’on tourne du côté où Dieu n’est


pas n’a jamais donné lieu à beaucoup de bruit ni à beaucoup
de mouvements dans la Nature, car si votre Nature à vous a été
faite pour vivre au point où ce qui n’est rien passe à ce qui est
tout en revanche elle ne peut rester du côté où il ne se passe
rien74 (1996c, p. 46).

Tal figura-força irá se manter nos textos posteriores do


poeta, mas a passagem entre Infinito e Indeterminado não se
dará mais por meio do desvio, e sim através de sua própria aber-
tura, como vemos em poema emblemático “Para acabar com o
julgamento de deus”:

Ce qui est grave / est que nous savons / qu’après l’ordre / de ce


monde / il y en a un autre // Quel est-il? // Nous ne le savons
pas. // Le nombre et l’ordre de suppositions possibles / dans ce
domaine / est justement/ l’infini! // Et qu’est-ce l’infini?// Au
juste nous ne le savons pas! // C’est un mot / dont nous nous
servons / pour indiquer / l’ouverture75 (1996d, p. 91).

74
Tradução: “E isto de que se desvia ou que se vira do lado onde Deus não está
nunca deu lugar a muito barulho nem a muito movimento na Natureza, pois
se a sua Natureza a si foi feita para viver no ponto onde aquilo que não é nada
passa àquilo que é tudo, ela não pode, em reverso, ficar do lado onde não se
passa nada”.
75
Tradução: “O grave / é que nós sabemos / que após a ordem / deste mundo / há
uma outra // Qual é? / Nós não sabemos. // O número e a ordem de suposições
possíveis / nesse domínio / é justamente / o infinito! // E o que é o infinito? //
“Lettres, lettre, l’être” 177

O que interessa nesse campo de forças é a posição que nele


se ocupa – no sentido de posicionar-se no ângulo onde passam as
forças, “onde se faz barulho” (como disse o poeta). Daí, em sua
carta ao pintor, a pregnância em torno do desviar-se, do virar-se,
do colocar-se diante, dentro, tecendo desse modo ângulos que o
posicionam obliquamente, transversalmente, em face ao infinito
e ao indeterminado (as questões religiosas, por excelência) e que,
posteriormente, será localizado como abertura da consciência,
buraco, vazio, nada.
Para desenvolvermos tais posições, vamos começar por
destacar o momento inicial de endereçamento da carta de Ar-
taud ao pintor, momento onde as telas escrita e pintada irão
transpor uma a outra, aí onde seu destinatário se presentifica e o
poeta se enuncia: “En général l’âme d’un peintre est dans la toile,
mais on sent la vôtre toujours devant. Vous avez regardé passer
des choses et vous les avez peintes mais vous vous êtes bien gardé
de vous mettre dedans”76 (1996c, p. 46). Impossível não lermos
aqui o próprio poeta se lançando dentro do vazio, tal qual enun-
ciou em As novas revelações do ser, assim como seus textos poste-
riores que versarão sobre seus desenhos, por exemplo: “Le visage
humain est une force vide, un champ de mort. [...]. Ce qui veut
dire que le visage humain n’a pas encore trouvé sa face et que
c’est au peintre à la lui donner [...]”77 (1996c, p. 206). Do vazio,
branco da tela, o pintor arranca os traços do rosto – transposição
que não nos deixa mais identificar claramente onde está o pintor
nem aquele que é pintado, posto que é no entrelaçamento entre

A rigor nós não sabemos! // É uma palavra / de que nos servimos / para indicar
/ a abertura”.
76
Tradução: “Em geral, a alma de um pintor está na tela, mas a sua sentimos estar
sempre ante. Você viu passarem coisas e você as pintou, mas você sempre se
guardou de se pôr lá dentro”.
77
Tradução: “O rosto humano é uma força vazia, um campo de morte. [...] O que
quer dizer que o rosto humano não encontrou ainda a sua face, e cabe ao pintor
lhe dar uma [...]”.
178 Antonin Artaud

tela/vazio, rosto/morte, no golpe que passa de um ao outro, onde


os traços se farão retraços.78
A partir dessa sua afirmação a Delanglade, acerca da po-
sição do pintor face à tela, Artaud vai olhar para um quadro em
específico e, a partir daí, se confrontar – ele mesmo – com sua
própria posição de devoção a um Deus: “Il y a une de vos goua-
ches, et au point de vue pictural pur, qui en soi n’existe pas, elle
est de beaucoup la meilleure à mon sens, qui est, cette gouache,
un épouvantable sacrilège”79 (1996c, p. 46). Em uma primei-
ra leitura, a sentença acima restaria no domínio do obscuro, da
contradição, do desacordo entre as partes, da sensação de que
falta algo, enfim, de perguntas tais como: seria uma das telas que
em si não existe? Ou seria o ponto de vista pictural puro que
em si não existe? E, ainda, como conjugar – através de um olhar
devoto – o voto da melhor tela como aquela que representa-
ria um apavorante sacrilégio? Procurar a dicção de Artaud nesse
momento das cartas de Rodez é, em certa medida, se deparar
com essa contradição, com essa malversação que – para além das
leituras nas quais se visa contemplar as dificuldades inerentes ao
reaprendizado do uso da língua e as associações possíveis entre
fenômenos psíquicos e linguísticos – apontam para um mecanis-
mo que doravante será explorado e que se refere ao maldizer e ao
dizer mal.80 A blasfêmia posterior se tece aqui mesmo no seio da
devoção e, importante, se tece na tessitura da língua, nas possibi-
lidades combinatórias e conjuratórias em um só e mesmo golpe.

78
Desenvolveremos no próximo capítulo essas relações que aqui foram apenas
indicadas.
79
Tradução: “Tem um guache seu – e do ponto de vista pictural puro, que em si
não existe, ele é, para mim, de longe o melhor –, que é, esse guache, um apavo-
rante sacrilégio”.
80
Envio aqui para a reflexão acerca do dizer mal e do maldizer desenvolvido por
Evelyne Grossman no artigo “Antonin Artaud et la figure du poete maudit
(maudire/maldire: supplicier la langue)” (2000).
“Lettres, lettre, l’être” 179

Em uma leitura mais atenta da sentença acima: uma pri-


meira direção aponta para a impossibilidade de um ponto de vis-
ta pictural puro – importante para as manifestações posteriores
de Artaud onde iremos ver a interseção entre desenho e escrita.
Uma segunda direção aponta para a fenda que se abre no interior
da devoção: “é apavorante, é sacrilégio, mas, ainda assim, é a me-
lhor de suas telas!”. E, como sabemos que o poeta não se enuncia
de um ponto de vista pictural puro – ou seja: isento, neutro – a
tela é a melhor aos seus próprios olhos, mesmo que para tanto ele
cegue os olhos dos céus com a assustadora visão.
Interessa destacar como é na feitura com a própria língua,
na sua aventura com as palavras e nas relações entre essas, que
o poeta pode transpor as figuras unívocas de Deus. Aí onde a
vacilação identitária – lida como fenômeno psicótico – se retira
do fundo paralisante (doentio, devoto de uma só língua) para se
movimentar no horizonte das inscrições da linguagem. Logo, o
que interessa destacar é o quadro plástico e poético, sua possibi-
lidade mesma de inscrever transformando o dado fixo, criando
as aberturas possíveis frente àquilo que poderia paralisá-lo. Tal
quadro emerge em face à tela do pintor Delanglade e leva o poeta
a construir um olhar possível, de través, rompendo assim com a
paralisia dos mundos estratificados. Aqui, vale lembrar o dese-
nho que será realizado por Artaud em janeiro 1946 intitulado
Dessin à regarder de traviole81. Olhar de través que permitirá ao
poeta traçar a sufocação e o sofrimento do homem “confecciona-
do” por Deus, humanidade, sociedade. O Ser uno se desfaz para
aparecer, por meio do corpo mutilado, a construção posterior do
próprio homem por ele mesmo:

Et d’où vient le mal que l’être dans l’absolu se prépare pendant


que l’homme aux bras coupés, matière de mutilation, attend

81
Tradução: “Desenho para olhar de través”.
180 Antonin Artaud

depuis les siècles des siècles d’être par dieu confectionné. / C’est
que ce n’est pas dieu qui fait l’homme mais un homme lui-
même enterré / et l’homme sorti de cet homme de lui-même
s’achève après82 (1996c, p. 124).

Tentarei, assim, sugerir que essa transversalidade na aborda-


gem das questões religiosas já se colocava no momento que muito
se leu como “adesão” total de Artaud a Deus. A não estratificação
é proporcionada justamente por esse olhar de través, que deduz a
parcialidade, os corpos assim despedaçados, divididos. Mas a divi-
são não se fixa na estratificação, ela se movimenta com o próprio
olhar que abraça os pedaços possíveis. E esse abraço é uma conci-
liação com o despedaçado, mutilado, com a angústia do que não
se totaliza, isso que Artaud nesse mesmo desenho escreve como “a
sufocação da consciência do pesquisador no meio e em torno à sua
ideia”. Angústia e sufocação que finalmente o autor faz com que
“sejam recebidas e façam parte da obra feita”.83
Na carta à Delanglade – assim como na maior parte das
cartas iniciais de Artaud em Rodez, que percorrem o ano de
1943 – essa sufocação vai se deixar ler em sacrilégio, mas tam-
bém na injustiça da qual o poeta era alvo e da qual, portanto,
nem mesmo Deus estaria liberto. Ele vai mais uma vez tensionar
o campo divino, nele introduzindo o sofrimento e a dor próprios
ao mal (malheur) – operação que desestratifica o bem do mal,
perfurando uma passagem tênue entre os dois:

82
Tradução: “E daí vem o mal que o ser se prepare no absoluto enquanto o
homem de braços cortados, matéria de mutilação, espera desde os séculos dos
séculos ser por deus confeccionado. / É que não é deus que faz o homem, mas
um homem ele-mesmo enterrado / e o homem saído deste homem de si mes-
mo se perfaz depois”.
83
“J’ai voulu que toute cette affre et essoufflement de la conscience du chercheur
au milieu et au tour de son idée prennent pour une fois sens, qu’ils soient reçus et
fassent partie de l’oeuvre faite, […].” [Tradução: “Eu quis que toda essa angús-
tia e sufocamento da consciência do explorador no meio e em torno à sua ideia
façam, por uma vez, sentido, que sejam recebidas e façam parte da obra feita”.]
“Lettres, lettre, l’être” 181

Dieu est Tout-Puissant, il peut tout, il a pour lui l’Éternité et


l’infini et il se trouve devant ce fait affreux que les choses en Vérité
sont injustes, et qu’il ne lui est pas possible de faire qu’ici-bas elles
ne le soient pas, et même un peu plus qu’ici-bas. Car l’injustice
qui est au fond de tout ne commence pas sur la terre mais elle se
montre déjà au point où s’entrouvre l’Éternité (1996c, p. 49)84.

Se interessa totalizar a apreensão dos textos do poeta nesse


momento é claro que a passagem citada serve para destacar um
Artaud que proclama Deus como o Todo Potente e daí deduzir
uma adesão religiosa. No entanto, seu texto parece se perfazer na
tentativa de indicar a própria impotência de Deus, sua abertura à
injustiça, sua parcialidade. O que estamos tentando mostrar com
a carta à Delanglade (e obviamente nos destinos posteriores) é
que essa parcialidade se traça já aqui frente aos corpos despedaça-
dos e sufocados que ele verá figurar na tela do pintor. A questão
– claramente posta no desenho feito por Artaud em 1946 – é
que o despedaçar é também um mutilar, presença inelutável da
crueldade. Se em 1946 a crueldade está inteiramente posta em
Deus ou na humanidade ou na sociedade, ela, aqui, toca sinuo-
samente, obliquamente, esses mesmos pilares, atribuindo a Deus
sua parcela de injustiça. Mas, para o poeta, a injustiça inelutá-
vel estaria ligada ao que em 1932-34 ele formulou como sendo
“princípio de crueldade”. Vejamos como ele retoma a mesma
problemática aqui, em sua carta à Delanglade: “Car celui qui
l’a peinte est un Double et il représente exactement par rapport

84
Tradução: “Deus é Todo-Potente, ele pode tudo, ele tem para ele a
Eternidade e o infinito e ele se vê diante desse fato hediondo – de que as coisas
em Verdade são injustas, e que não lhe é possível fazer que elas não o sejam
aqui embaixo, nem mesmo um pouco mais acima. Pois a injustiça que está no
fundo de tudo não começa na terra, mas ela já se mostra no ponto em que se
entreabre a Eternidade”.
182 Antonin Artaud

à vous-même tout ce dont vous ne voulez pas et dont jusqu’ici


vous avez cherché à vous délivrer en peignant”85 (1996c, p. 46).
Como sabemos, desde 1932, Artaud se ataca ao problema
do duplo como sendo uma das manifestações do princípio da
crueldade. O teatro e seu duplo é a tentativa primeira de agarrá-lo.
Questão complexa posto que o duplo vai aparecer como sendo o
dejeto do desejo e o virtual vai se manifestar como a possibilida-
de de colocar em cena as forças que gestam a criação. É assim que
se observa toda uma problemática em torno à cena criadora, atre-
lada, por um lado, à necessidade de negar ou recusar uma me-
cânica imposta à própria cena e, por outro lado, à obrigação de
manifestar nada mais do que a virtualidade de outra cena possí-
vel, ou, como vimos anteriormente: o feto como fruto da criação
abortada. Mas, aqui mesmo, na carta ao pintor, ele reenuncia
essa angústia da criação, que se associará à diferenciação entre a
força do duplo e a do virtual, ou do finito e do infinito: “Le créé
est immédiatement le Malheur parce que l’Infini avec le Temps
s’abaisse et se compromet avec le fini”86 (1996c, p. 50). É assim
que a criação – e como não importa qual, mesmo a de Deus não
estaria excluída desse mecanismo – estaria fadada a se relacionar
com a inscrição do mal – terminado, finito, morto. Desse modo,
o duplo age como inscrição maléfica, cadeia de repetição/criação
à qual o homem é fadado, posto que, como vimos, mesmo Deus,
o Todo-Potente, se abre aqui em sua própria impotência. Discur-
so significativo se atrelado à sua posição de devoto. Índice, mais
uma vez, de que tal posição não se verticaliza em Artaud.
Como, para o poeta, as questões fundamentais giram em
torno à mecânica da criação, ele vai ver na tela do pintor o meca-

85
Tradução: “Pois aquele que a pintou é um Duplo e ele representa, em relação
a você mesmo, tudo aquilo que você não quer e de que você até aqui tentou se
livrar pintando”.
86
Tradução: “O criado é imediatamente o Malogro porque o Infinito com o Tem-
po se rebaixa e se compromete com o finito”.
“Lettres, lettre, l’être” 183

nismo de repetição imbricado à cena criadora. A repetição seria


a inscrição do duplo, posto que não haveria como tocar – e nem
mesmo Deus – na cena primeira da criação. Diante dessa tela –
onde se vê figurar a ponte vertiginosa do duplo – está presente
a figura da mulher como propiciadora da inscrição do duplo no
seio da cena de criação humana: a cena sexual. É assim que a
mulher assume o rosto possível do demônio, do mal, que em
sua transposição para a cena cultural vai se inscrever no mito da
Razão, no ícone formador da cultura moderna ocidental e latina:

C’est la gouache qui représente une sorte de chambre ardente


avec quatre femmes qui sont en réalité quatre démons aux
quatre coins d’un grand tapis grenat, […]. Ce démon est
une chose centrale comme l’ignoble Déesse Raison que la
Révolution Française avait fait ériger dans les Églises, par pur
culte de la Pornographie87 (1996c, pp. 46-7).

A corporificação do mal é um processo fundamental na


tentativa de inscrever outras cenas possíveis para a própria cria-
ção. Esse é só mais um dos processos que permanecerão em todo
o último período do poeta e que se enunciam em seu próprio
conflito já aqui, diante da tela do pintor: “[…] parce que le Mal
n’est pas une bataille abstraite de la conscience avec ses abstrac-
tions. Tout ce qui est impondérable a un corps et les abstrac-
tions ont aussi un corps. Sinon avec quoi et par rapport à quoi
pourrait-on les nommer et les designer”88 (1996c, p. 50). É assim
que o problema do duplo, como cisão que constitui o conflito

87
Tradução: “É o guache que representa uma espécie de quarto ardente com qua-
tro mulheres que são na verdade quatro demônios nos quatro cantos de um
grande tapete grená, [...]. Esse demônio é uma coisa central, como a ignóbil
Deusa Razão que a Revolução Francesa fizera erguer nas Igrejas, por puro culto
da Pornografia”.
88
Tradução: “porque o Mal não é uma batalha abstrata da consciência com suas
abstrações. Tudo que é imponderável tem um corpo e as abstrações também
184 Antonin Artaud

de forças, vai indicar os traços da mecânica criadora do poeta:


dar corpo às suas vozes, figura aos signos que representam seu
combate e, sobretudo, apontar para a necessidade inelutável de
se refazer o corpo – o das coisas e o seu próprio:

Le Double qui l’a faite est un corps et c’est celui dans lequel
vous vous trouvez vous-même, mais ce n’est pas vous, et c’est
n’est pas votre corps, pas plus que celui dans lequel je suis
n’est le mien. Le corps où nous sommes n’est qu’un produit
d’emprunt où nous sentons vivre avant nous la conscience de
tout le monde89 (1996c, pp. 51-2).

Prenúncio da problemática que vai ocupar toda a última cria-


ção do poeta – o refazer de um corpo. É nesse sentido que interessou
pensar suas relações com a religiosidade. Para além de quaisquer
definições genéricas acerca dos fenômenos psicóticos, sua posição
trata de explorar os limites dos corpos e os sedimentos culturais que
os sustentam. A “consciência anterior de todo o mundo” e a propul-
são de uma outra consciência que ele tratará de espacializar em seus
escritos. A própria espacialização se relaciona com a corporificação,
com a tentativa de dar corpo ou “nomear”, como escreveu Artaud.
É nessa busca que as letras vão assumir estatuto de corpos e, inflan-
do-as, o poeta vai se deparar com novas direções poético-plásticas,
com a construção de uma linguagem talvez capaz de refazer corpos,
sob outros paradigmas que não os da encarnação de Deus no filho
devoto. Outros corpos que, através do sacrifício do pecado original,
da cena sexual, não perpetuam o corpo de Cristo.

têm um corpo. Senão, com que e em relação a que poder-se-ia nomeá-los e


designá-los”.
89
Tradução: “O Duplo que o fez é um corpo e é aquele no qual você mesmo se
encontra, mas não é você, e não é o seu corpo, não mais que o corpo no qual
eu sou é o meu. O corpo onde somos não é mais que um produto emprestado
onde nós sentimos viver antes de nós a consciência de todo o mundo”.
“Lettres, lettre, l’être” 185

Assim, utilizamos as palavras de outro poeta, para situar a


pergunta que adentra Suppôts et suppliciations, trazendo para as
“Cartas” a busca do que seria essa construção de outros corpos
possíveis, que miniaturizam ou fazem fugir os emblemas for-
madores do modelo Homem (com maiúscula) em proveito de
todo e qualquer um: “Pas d’autre monstre, pas d’autre dieu, pas
d’autre mécanisme de la méconaissance qu’entre nous (hommes
minusculés) et l’Humanité. Comment changer l’Humanité en
nous-les-hommes?”90 (Deguy, 2000, p. 11).

2.4. O endereçamento: precisão, presença e crueldade

O poema de Michel Deguy permite aproximarmo-nos da


questão colocada por Artaud na introdução de seu último livro de
poesias. Livro que, de certo modo, vem responder à problemática
que envolve todo o último momento da obra de Artaud. Permite
tocar a força da crueldade na falência do projeto humanitário da
sociedade. Ele se inclina para o minúsculo, fazendo com que nos
aproximemos desses corpos despedaçados que Artaud vai cons-
truir. Ele traz para o seio do homem a possibilidade de transfor-
mação, tocando assim a revolução tal qual Artaud a entendia: uma
revolução dos corpos menores que é “física, fisiológica, anatômica,
funcional, circulatória, respiratória, dinâmica, atômica e elétrica”
(1968, p. 8). E, ainda: ele nos faz associar Deus ao monstro, ao
desconhecido, à humanidade, à crueldade, trilhando, dessa ma-
neira, as pegadas desse Artaud que tentamos até aqui reconstruir.
As cartas que compõem Suppôts et suppliciations foram es-
critas, ainda em Rodez, em 1945 e algumas posteriormente em
Paris, em 1946. Quase todas foram endereçadas aos amigos do

90
Tradução: “Nenhum outro monstro, nenhum outro deus, nenhum outro me-
canismo do desconhecimento que não o entre nós (homens minusculados) e a
Humanidade. Como mudar a Humanidade em nós-os-homens?”
186 Antonin Artaud

poeta. Apenas uma das cartas teria sido escrita a partir da en-
comenda de um editor, que lhe pedia um texto sobre o amor,
para a revista belga Variétés. E, ainda em Suppôts et suppliciations,
na primeira parte – “Fragmentations” – encontra-se um texto
crítico, que também se apresenta como carta, intitulado “Lettre
sur Lautréamont”. É assim que valeria, agora, destacar como as
cartas assumem nesse período o estatuto de construção mesma
de sua obra, encontrando um desejo expresso de publicação e se
oferecendo como meio eficaz de projeção das questões levanta-
das pelo poeta.
Como sabemos, a Correspondência com Jacques Rivière foi
definitiva para que o poeta encontrasse nas cartas essa eficácia
primeira. Aí ela se relacionava sobretudo com o acontecimento
da publicação (no sentido oferecido por seu editor que atribuía à
Correspondência o valor de texto “bem-sucedido” em relação aos
poemas “malsucedidos” de Artaud), e ainda com o processo de
nomeação e autoria a que nos referimos anteriormente – onde a
incidência da eficácia recairia em convencer os leitores de que o
debate/combate se tratava de um “romance vivido”. Nesse pon-
to, nos faltaria desenvolver um pouco mais a amplitude proje-
tiva que as cartas assumirão nesse último período. Isso porque
observa-se uma direção, antes insuspeitada, que lhes oferecerá
um lugar privilegiado para localizar a posição do poeta ante o seu
próprio projeto criador.
É claro que não se pode negligenciar o evento de sua
Correspondência inicial, no qual o acaso da publicação teria
contribuído para as inclinações futuras, no sentido de poten-
cializar tal meio de expressão. Mas, aqui, as cartas assumem
uma direção que, se foi oferecida no acontecimento da publi-
cação com Rivière, dele se afastará para imprimir um traço
que participa desse projeto de construir corpos possíveis para
operar a transformação desejada desde O teatro e seu duplo. É
assim que, entre o acaso da publicação primeira de sua Cor-
“Lettres, lettre, l’être” 187

respondência e o desejo expresso de escrever cartas que sejam


publicadas, há um deslocamento significativo no seio mesmo
do seu projeto de escritura. Com Suppôts et suppliciations, esse
projeto se radicaliza e se visualiza ainda mais. Dado que aí é
na concepção mesma da obra que o autor vai visar incluí-las.
Elas ocuparão o lugar central nesse livro complexo que en-
globa poesia, textos críticos, aforismas etc. Sua centralidade é
precisa na arquitetura corpórea do texto, é o lugar determina-
do para tecer o salto pretendido pelo poeta com o livro. Seria,
mais uma vez, um ponto preciso de suspensão. Sabemos que
o livro se apresenta como uma cavalgada do corpo, da qual
se perfaz a travessia. As cartas se inserem no momento da
travessia em que “o corpo que sofre se descobre” e afirma: “on
voit bien qu’il s’agit d’un homme qui est un homme et non
un esprit”91 (1978a, p. 9). Recusa, mais uma vez, da mediação
representada pelo espírito e busca de um imediato: contato
daquele que escreve com a própria escrita, assim como daque-
le que lê com aquilo que está lendo. Em nome desse contato,
Artaud retomaria alguns elementos que se tornaram significa-
tivos a partir de sua Correspondência com Rivière:

C’est ainsi, qu’entre les fragmentations du début et les


abracadabrantes interjections de la fin, j’ai voulu établir le pont
d’une correspondance vraie, / échangée entre quelques vivants
afin de permettre au lecteur de matérializer vraiment le débat92
(1979a, p. 10).

91
Tradução: “vê-se bem tratar-se de um homem que é um homem e não um
espírito”.
92
Tradução: “É assim que entre as fragmentações do início e as abracadabran-
tes interjeições do final, eu quis estabelecer a ponte de uma correspondência
verdadeira, / trocada entre alguns seres vivos, a fim de permitir ao leitor que
materialize verdadeiramente o debate”.
188 Antonin Artaud

Estaríamos novamente frente à necessidade de encontrar


o verdadeiro debate. De lançar aos leitores os traços da matéria
viva que se abre em sua aventura. Mas, vejamos agora como ele
vai inserir o debate, proporcionado pelas cartas, no projeto es-
pecífico de Suppôts et suppliciations: elas visariam “esclarecer o
drama das interjeições – retirando-as assim do plano do delírio
para inseri-las no interior de uma luta viva, aquosa e purulen-
ta do homem” (1978a, p. 10).93 Continua presente a reivindi-
cação de uma escrita-combate em que as cartas assumem lugar
privilegiado por sua força de endereçamento, sua potência, para
tornar presente aquele que escreve, a vertente missiva que se faz
bélica. Pois, como sabemos, para Artaud, o verdadeiro debate
se perfaz no combate. Essa a luta viva que só poderia pulsar,
deslizar e supurar se o leitor estivesse também munido e armado
do mesmo combate. Daí a dupla função da carta – arma aquele
que escreve e aquele que lê. Faz a luta tornar-se aguda; a letra,
corpo; e a matéria se supurar na escrita e na leitura. Ou, como
escreveu em carta a Guy Lévis Mano: “à quoi serviraient les écrits
si ce n’était pas pour faire crever à temps certains gros abcès”94
(1978a, p. 75). Seria um corpo-escrito vivo e ao mesmo tempo
vital, posto que é aí no combate/debate que ele pode se fazer
e se refazer. Mas a travessia do poeta impôs novos elementos
e direções ao antigo combate, posto que, para o autor, tal in-
clusão visava “esclarecer” o drama das interjeições. E, esclarecer
seria precisamente “retirá-las do plano do delírio”. Ponto onde
as questões se complexificam, já que – se insistimos em indagar
onde está o sujeito –, lendo essas cartas, não estaremos diante de
um plano em oposição clara e direta ao do delírio. E tampou-

93
“C’est ainsi que le drame des interjections s’éclaire et qu’il passe, du plan du
délire où l’universelle paresse d’esprit serait tentée de le cloîtrer, à celui d’une
lutte vivante, aqueuse, purulente d’un homme […].”
94
Tradução: “de que serviriam os escritos se não fosse para fazer arrebentarem em
tempo certos gordos abscessos”.
“Lettres, lettre, l’être” 189

co elas se pretendem relatos dos infortúnios e injustiças vividos,


nem invenção contundente para “convencer” o leitor. Em todas
as cartas incluídas em Suppôts et suppliciations, Artaud viria se
inserir no interior da cena da criação, tal qual nos contou a bí-
blia. Por exemplo: “mais je retrouvé hier avec horreur un dernier
souvenir de ma vie à Jérusalem il y a deux milles ans. Je sais que
je m’y appelais M. Artaud, que tout le monde m’y prenait pour
un innocent […], m’accusait d’avoir des voix, de déclamer et
de chanter tout haut, […]”95 (1978a, p. 71). É certo que no
combate declarado do poeta contra Jesus Cristo e Lúcifer, ele
vai buscar a construção de uma máquina escrita – corpórea –
capaz de pôr em cena e ao mesmo tempo cauterizar (tal qual ele
previa para a cena teatral) esse mesmo combate contra a criação
de Deus. Ou seja: o homem como sua imagem e semelhança.
Artaud se “transpõe” espaço-temporalmente para refazer-se ho-
mem. É nesse plano “projetivo” que se inserem suas cartas. Elas
não buscam narrar a vida do poeta nem a de Cristo, elas visam
contaminar uma cena com a outra. A força de contaminação se
ofereceria como lugar de reconstrução (do refazer) de um corpo.
E é aí mesmo que ele vai construir as interjeições. Para nos con-
ciliarmos com os vetores de força que se fazem poética e plastica-
mente, deveríamos – como sabia o poeta – nos desvencilharmos
da pregnância do significado e incluirmos sua escrita no interior
de um projeto cênico que visa tornar visível, tanto quanto mate-
rializar, as forças combativas em questão.
Nada que nos autorize a licença poética nem a narrativa de
memórias. E ainda não esqueçamos que é o próprio autor quem
busca retirar-nos do plano do delírio. No entanto, ele deixa para
nós a tarefa de construir outro plano (dada a desestabilização dos

95
Tradução: “Mas ontem eu encontrei com horror uma última lembrança de mi-
nha vida em Jerusalém há dois mil anos. Eu sei que eu me chamava M. Artaud,
que todo mundo me tomava por um inocente [...], me acusava de haver vozes,
de declamar e cantar alto, [...]”.
190 Antonin Artaud

possíveis) que ele apenas busca indicar como sendo o plano do


“homem”. Daí a centralidade no evento das cartas: entre-lugar,
nem delirante nem normal, nem arte nem vida, que insurge
como zona de contaminação entre um e outro para, a partir de-
les, ocupar outra posição.
Ressaltaríamos que tal posição continuaria se referindo à
eficácia. Como dissemos, trata-se aqui de uma eficácia física que
vai se distanciar, portanto, do plano do convencimento anterior
para se tramar em uma arquitetura complexa do homem. É as-
sim que esse homem o é sem espírito. Ele convoca – na urgência
mesma dessa perda – uma aliança, um pacto, muito diferente
daquele que se tramou com Jacques Rivière – no qual vemos se
localizar a diferença entre aquilo que era do convencimento e
que agora se perfaz em torno à ideia de presença (força):

Et cela est que votre conscience individuelle d’être sera perdue si


je ne peux arriver à défendre définitivement la mienne. Celle-ci
ne peut sombrer, mais je ne peux défendre la conscience de mes
amis basée sur la durée et l’integrité de la mienne si mes amis
ne se décident pas à comprendre qu’il y a urgence à me porter
secours non dans le sens de la vie actuelle, c’est-à-dire comme
à un poète interné à qui on a rendu la liberté mais qui n’a pas
les moyens pécuniaires de vivre dehors […], mais dans un sens
contre la vie actuelle, c’est-à-dire comme à un voyageur d’infini
irrité de la monstruosité de cette terre96 (1978a, pp. 61-2).

96
Tradução: “E acontece que a sua consciência de ser se perderá se eu não posso
chegar a defender definitivamente a minha. Esta não pode sucumbir, mas eu não
posso defender a consciência dos meus amigos baseado na duração e integridade
da minha, se os meus amigos não se decidem a entender que há urgência em me
prestar socorro, não no sentido da vida atual, como a um poeta internado a quem
foi devolvida a vida e a liberdade, mas que, no entanto, carece dos meios para, em
liberdade, sobreviver [...], mas em um sentido contra a vida atual, isto é, como a
um grande viajante do infinito irritado com a monstruosidade desta terra”.
“Lettres, lettre, l’être” 191

Comecemos por destacar a imbricação operada entre o autor


da carta e seus destinatários, no caso Senhora Jean Dubuffet e os
amigos que cercam Artaud nesse momento de saída do asilo de
Rodez. Essa imbricação aponta para um plano de contaminação
(tal qual nos referimos anteriormente) onde se dá a escrita criadora
do poeta. Seria contaminação entre bem e mal, infinito e finito,
que, aqui, através da carta, vai além desses planos (abstratos) para se
tecer em uma contaminação direta (concreta) entre corpos. Como
se, entrando em contato com o texto missivo do poeta – com o
combate que ele põe em cena – estariam também os leitores sendo
infectados e, dessa forma, tornando-se agentes ativos do mesmo
combate. Uma segunda observação a destacar seria a de como o
poeta precisa a demanda, a reivindicação e o combate sobre esse
plano de contaminação entre autor e leitor. Não se trata de um so-
corro em direção à vida atual, como disse: “vida de um poeta inter-
nado a quem foi devolvida liberdade, mas que, no entanto, carece
dos meios para, em liberdade, sobreviver”. Para compreendermos
tal recusa, encontramos a necessidade de questionar o sentido da
atualidade de seu combate. Em um primeiro plano, a atualidade
não se resume à realidade objetiva – aos óbvios danos causados por
seu internamento. A recusa de tal realidade/atualidade faz com que
suas cartas saiam do plano do apelo para assumirem o estatuto da
reivindicação. Ainda, como sabemos, a reivindicação de um com-
bate em Artaud vai se relacionar com a urgência, com o imediato e,
por conseguinte, com uma atualidade que não dirá respeito apenas
à realidade objetiva. Esta última, para o poeta, seria aquela que se
rende (e se vende) às amarras do tempo e do espaço. Aqui, torna-
-se interessante lembrar de sua viagem ao México, em 1936, e, em
específico, de uma de suas conferências dadas na universidade do
México nesse mesmo ano. Alerta-se para uma viagem que busca se
realizar a partir de um rompimento com o mundo dito “civilizado”,
viagem que busca alterar a linearidade da experiência espaço-tem-
poral e encontrar bases permanentemente vivas, e por isso mesmo
192 Antonin Artaud

atuais, que, no entanto, desapareciam da cultura moderna como


névoa de uma antiga e ultrapassada civilização. O que o poeta bus-
cou dizer em suas conferências viria apenas solidificar seu discurso
crítico contra a racionalidade moderna e seus preceitos – um deles,
sendo este da linearidade temporal:

Il y a une manière d’entrer dans le temps, sans se vendre aux


puissances du temps, […]. je pense qu’il faut lui demander
la force de cet antique secret. Là où le Mexique actuel copie
l’Europe, c’est pour moi la civilisation de l’Europe qui doit
demander au Mexique un secret97 (1973, pp. 181-3).

O atual não se restringe às potências do tempo (linear) ou


às próprias forças que se tecem em torno dos “segredos” de uma
cultura. Um tempo que rompe com a linearidade do progresso
para se inserir em uma pesquisa sobre as forças, suas direções e
coagulações – sua composição, seu segredo. Como já falamos,
há todo um percurso (em espiral) que desloca o poeta da busca
de um segredo no sentido antropológico ou religioso. Se nesse
momento ele se inclinava para uma tentativa de encontro (geo-
gráfico) com determinada cultura que parecia poder lhe oferecer
o segredo acerca de outros tempos, será, agora, na sua própria
travessia certamente contaminada por todas as terras ignotas per-
corridas onde o poeta vai buscar precisá-lo, assim como as forças
que nele agem. Aí, traçando um campo de forças que contami-
nam autor e leitor, é que o pacto se anuncia como insurreição,
reivindicação, revolução permanentes. A eficácia é resultado des-
se endereçamento que rompe a atualidade do linear e reivindica,
para além do “contra”, esse tempo de insurreição permanente,

97
Tradução: “Há uma maneira de entrar no tempo, sem se vender às potências do
tempo, [...]. acho que é preciso solicitar a ele a força deste antigo segredo. Ali
onde o México atual copia a Europa, é para mim a civilização da Europa que
deve solicitar ao México um segredo”.
“Lettres, lettre, l’être” 193

ou, como disse Artaud: “minhas obras presentes viverão eterna-


mente em se aperfeiçoando […]” (1987, p. 140, grifo meu).
A geografia, o enquadramento, o contínuo ou o tota-
lizado como indicadores espaciais, assim como a linearidade e
o sequencial como indicadores do tempo, estariam dilacerados
graças à reivindicação que os textos e a obra de Artaud lançam
aos seus leitores. Elemento significativo para pensarmos o uso
plástico e pictórico que o poeta fará da folha em branco, seja
escrita ou desenhada.
Mas sabemos que a eficácia buscada por Artaud estaria se
relacionando com outro elemento além desse que insere o atual
em um campo de forças permanentes, mas não lineares. Trata-
-se do plano de contaminação que vai retirar a carta do âmbito
da comunicação (objetivação da alma), assim como do convenci-
mento literário (agente na Correspondência). No interior do último
momento de sua obra – e em específico nesse livro –, as cartas se
oferecem como lugar de construção, de ligação e de reivindicação
da própria força que contamina. Elas estabelecem a ponte, como
disse o poeta. Ponte que permitirá a desestabilização dos preceitos
de tempo-espaço, autor-leitor, sujeito-objeto, vida-obra, louco-nor-
mal; anunciando, assim, a aparição de outra cena. Nesse sentido é
que ela traz para si os preceitos (e mesmo o de delírio) para poder
refazê-los, questioná-los, combatê-los e, a partir daí, lançar o leitor
no plano “abracadabrante” das interjeições.
Notemos todavia que é através da problematização dos
preceitos e do rompimento com os limites que lhes oferecem
estabilidade que poderíamos compreender a magnitude do com-
bate de Artaud e o esboço de um pensamento que aí se perfaz.
Desse modo é que ele teria influenciado Foucault (1972) na sua
interrogação sobre o subsolo da loucura e no questionamento da
não “naturalidade” de seus preceitos. Aí, também, onde encon-
tramos a formulação de Deleuze e Guattari, e em uma implica-
ção bem mais direta com a obra em questão: “Même si Artaud
194 Antonin Artaud

n’a pas réussi pour lui-même, il est certain que, par lui, quelque
chose a été réussi pour nous tous”98 (Deleuze e Guattari, 1980,
p. 202). A afirmação dos filósofos parece responder em precisão
à carta de Artaud à Senhora Jean Dubuffet escrita em setembro
de 1945. Lembrando, o poeta aí dizia que “a consciência dela se-
ria perdida se ele não pudesse chegar a defender definitivamente
a sua própria consciência”.
Dessa constatação poderíamos retirar algumas contribui-
ções relevantes: primeiro, que a possibilidade de ler Artaud vem
se tecendo no seio dos questionamentos acerca da centralidade da
categoria de sujeito, das separações racionalistas e dualistas entre
louco e normal, vida e obra, corpo e espírito, Deus e homem. Se-
gundo, que a força de contaminação exercida em seu projeto – e
no caso específico das cartas – visa imbricar autor e leitor em um
só e mesmo combate que desarruma a noção de atualidade retiran-
do-a de uma historicidade linear. Terceiro, que seu rompimento
vital e radical com a noção de linearidade estaria imbricado com o
rompimento da própria noção de espaço, aqui entendidos enquan-
to limites do corpo que o poeta reconstruirá na cena da escrita e
do desenho. É onde encontramos o refazer do corpo plástico e
poético. Onde se deita, ainda, a reivindicação radical de Artaud
para com a inutilidade dos órgãos – rompimento da própria ideia
de organização dos corpos. Sabendo que, através da ideia de orga-
nização se insere todo um domínio espaço-temporal.
A partir daí poderíamos nos aproximar dessa arquitetura
múltipla e multifacetada do homem que ele projeta-lança em
suas cartas e constrói no momento interjetivo99 de sua obra. As

98
Tradução: “Mesmo que Artaud não tenha conseguido para ele mesmo, é cer-
to que através dele algo foi conquistado para nós todos”. Edição Brasileira:
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.
Trad. Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely
Rolnik. São Paulo: 34, 1996, v. 3, p. 27. (Coleção TRANS).
99
Momento interjetivo tal qual pensamos na “Introdução” deste trabalho.
“Lettres, lettre, l’être” 195

cartas deveriam fornecer ao leitor o trampolim que lhe permitis-


se saltar da luta atroz, imemorial, “de um viajante do infinito ir-
ritado com a monstruosidade do mundo”, para encontrar no ho-
mem minúsculo, patético, sua própria força tornada visibilidade:
“De lui fournir, au milieu de cette lutte atroce, le tremplin d’une
vie pathétique peut-être, mais vécu par des hommes visibles”100
(1978a, p. 10, grifo meu).
Aqui introduz-se um novo elemento no interior de seu pro-
jeto/projeção das “Cartas”. Trata-se da força atribuída ao homem
quando este é visível. Esta proposição nos alertaria, ainda, para outra
pista acerca do que Artaud entenderia como presença do homem.
Qual visível é capaz de sustentar uma presença? Em uma leitura pri-
meira, levando em conta apenas o texto acima, poder-se-ia atribuir
ao visível o simples estatuto daquilo que se dá a ver. Ou, ainda: se
nosso acesso ao autor se restringisse aos seus primeiros textos, des-
tacando a Correspondência, poderíamos dizer que o debate se perfaz
na visibilidade do combate. Visibilidade aí entendida como o dar a
ver/ler para convencer o leitor. No entanto, se temos em conta a am-
plitude do retorno efetuado pelo poeta, em que ver e ler assumirão
novas perspectivas na prática mesma de uma escrita plástica, neces-
sitaríamos questionar o que ele pretende agindo sobre a visibilidade.
O salto entre o combate do infinito, a luta atroz, e os homens
visíveis: é aí que algo do visível se esboça. O salto – o deslocar de um
universo para outro – faz surgir no próprio ato de suspender outra
zona de visibilidade. No caso, trata-se de um salto do infinito para
o finito, do homem imortal para o homem mortal. Mas não esque-
çamos que o trampolim (as cartas) irão permitir ainda outro pulo
– dos homens visíveis para as abracabradantes interjeições. Funda-
mental notar que os homens só se fazem visíveis no/através do salto.
Conhecemos, com sua carta à Delanglade, como o plano de visibili-

Tradução: “De fornecer a ele, no meio desta luta atroz, o trampolim de uma
100

vida, patética talvez, mas vivida por homens visíveis”.


196 Antonin Artaud

dade operou a transposição de mundos aparentemente separados ou


invisíveis um ao outro. A partir daí, e em composição com elemen-
tos destacados até então, somos levados a indagar se o homem visível
não estaria para além daquele que se deixa ver, que se abre ao olhar e
exame do outro, lembrando a hipótese de Foucault sobre o exercício
da correspondência. Se as cartas não se afastariam da correspondên-
cia e, por conseguinte, de uma prática epistolar, para incidirem na
construção de um novo plano de visibilidade material – presença
do homem, que envolve o refazer do corpo (contra a organização
imposta, inclusive a organização orgânica) no exercício da escrita/
desenho. Seria a escrita traço antes de se tornar língua/linha, seriam
as forças que presidem as formas, como projetou Artaud em uma de
suas cartas em Suppôts et suppliciations: “le génie d’un dessin n’est
pas dans son art, mais dans l’action des forces qui ont présidé au
calcul des formes et des signes”101 (1978a, p. 57).
Aqui, portanto, deveríamos alertar para o fato de que estaria
agindo no projeto de Artaud, desde seu retorno, certa noção de
visível que se relaciona com uma mudança no plano de visibilidade
e não como uma mudança daquilo que se vê. É assim que as cartas
agiriam como campos ou planos possíveis de uma transformação
(deformação) da visibilidade do/sobre o homem, muito mais do
que simplesmente dariam a ver o homem que existe. Elas se ofere-
cem como trampolim, sua operação é permitir o salto, a conjuga-
ção da luta atroz, a vida imemorial, com “a vida, mesmo patética”.
É o salto que permitiria a mudança para algum outro plano que
transforma a própria visibilidade. Com essa hipótese nos parece
possível uma aproximação do último Artaud, em que as cartas
são exercício não de subjetivação – entendida como abertura ao
olhar do outro (visível) –, mas de crueldade. Lembremos o texto
significativo em que Artaud fala do “descolar da própria retina”,

Tradução: “o gênio de um desenho não está em sua arte, mas na ação de forças
101

que presidiram o cálculo das formas e dos signos”.


“Lettres, lettre, l’être” 197

de uma operação de precisão, de suspensão, “o golpe do bisturi”


que conjuga o exercício da crueldade como prática precisa de um
endereçar/lançar uma missiva/míssil entre autor e leitor. Foi a pro-
pósito do desenho La mort et l’ homme que ele escreveu:

je voudrais en le regardant de plus près qu’on y trouve cette espèce


de décollement de la rétine, cette sensation comme virtuelle d’un
décollement de la rétine que j’ai eue en détachant le squelette d’en
haut avec sa mise en place dans mon oeil102 (1985a, p. 182).

Explícito no texto o endereçamento cruel ao leitor/espec-


tador. Encontrar o ponto preciso onde se desloca a retina e trans-
forma-se não o domínio do visível, mas a própria condição de
visibilidade. A sensação virtual que presidiria a própria operação
efetuada no desenhar. É o desenhar mais do que o desenho, é essa
virtualidade que o poeta põe em cena para seu leitor. Eis onde se
inserem suas “Cartas”: trata-se de inventar uma vida que é, por sua
vez, parte crucial do combate posto em sua obra. Essa invenção
(nem mentirosa/poética, nem ficcional/romanesca, nem factual/
biográfica) da vida que clama pelo leitor, mais do que para con-
vencê-lo da sua existência. Instante no qual se descola das alturas
um esqueleto e o põe em cena no próprio olho. E, nesse colocar em
cena, não interessa nem o alto nem o olho, mas o salto que trans-
põe, que descola e cola um no outro. É essa operação de precisão
e crueldade que se perfaz no endereçamento, no arremessamento,
nas “forças que presidem às formas”. Aí onde as cartas de Suppôts
et suppliciations se oferecem como prenúncio da cena cruel interje-
tiva que o poeta reivindicará em sua obra.
No tocante à Correspondência com Jacques Rivière, poder-
-se-ia pensá-la como lugar primeiro de visibilidade do projeto

Tradução: “Eu gostaria que, ao olhá-lo de mais perto, se sentisse essa espécie de
102

deslocamento da retina, esta sensação como que virtual de deslocamento da retina


que eu tive ao destacar o esqueleto das alturas com sua inserção no meu olho”.
198 Antonin Artaud

de Artaud. Mas, aí, a visibilidade se relaciona com o se fazer


ver, com o se deixar olhar. De forma mais ampla, o lugar onde,
de certa maneira, Artaud debutou como escritor introduziu as
linhas do próprio devir ainda de maneira inesperada, insuspei-
tada. Entre o acaso inicial e a determinação implacável que se
encontra no seu último período de criação, há, como vimos, um
deslocamento (descolamento) inevitável que se materializa na
própria escrita. Se na Correspondência com Jacques Rivière esta-
mos diante de uma escrita que busca precisar seu alvo, que se
perfaz através do exame detalhado de suas próprias condições,
nas “Cartas” ela (escrita) torna-se o próprio alvo. Deixando de
ser um meio de expressão, a escrita é aqui a matéria primeira do
combate que o poeta exerce e projeta, lança, faz saltar às mãos
dos leitores. É nesse sentido também que as “Cartas” podem ser
incluídas no interior de um livro de poesias, onde claramente o
leitor se vê diante de uma desconstrução, deformação, descober-
ta e/ou invenção da própria linguagem. Elas visam à construção
de um novo corpo-escrito que é vivo e vital, no qual não se cre-
dita mais a antiga separação entre arte e vida, louco e normal e,
sobretudo, uma ligação causal entre as partes. Aqui, a ligação en-
tre esses termos se dará por meio do salto pretendido pelo poeta
nas suas construções poético e plásticas. É assim que – partindo
do salto, da suspensão – a ligação vai se tecer muito mais nos
campos de força, através dos vazios, dos intervalos, do sopro que
respira nos traços e infla as letras. A linguagem assume o estatuto
de corpo em suas funções vitais e, como os órgãos, torna-se alvo
a ser combatido, a ser, portanto, reconstruído pelo poeta.
Do nosso lado, tornou-se imprescindível manifestar essas
transformações no sentido de aprofundar as correlações efetua-
das entre a correspondência como processo de subjetivação do
discurso e as cartas como incisão de um corpo material que vai
romper com a ordem/organização, tanto do “convencimento li-
terário”, quanto da construção de um refúgio para o sujeito. Essa
“Lettres, lettre, l’être” 199

é a tentativa de fazer insurgir os corpos despedaçados na parciali-


dade que lhes convém. E aqui a parcialidade deveria se enunciar
no olhar que não se totaliza, mas também naquele que busca se
colocar ao lado, ocupando um “ponto de vista” – tal qual Artaud
formulou no texto sobre Saurat. É assim que ela poderá indicar
a diferença radical entre um relativismo da verdade e a verdade
do relativo. Essa é a sua tarefa que nos cabe aqui desdobrar, atra-
vessando o corpo-escrito e plástico despedaçado, que salta do
combate missivo para insurgir na matéria interjetiva.
Capítulo 3
Interjeições

Como apresentamos na introdução deste trabalho, por


interjeição entendemos, com Artaud, o momento em que sua
poesia se torce em direção ao “inferno não criado onde o corpo
do homem sufoca antes de começar a respirar” (1978a, p. 9). As-
sim, ele a apresenta em Suppôts et suppliciations. De nossa parte,
atentos ao percurso até agora efetuado, deveríamos desdobrar a
imagem poética acima evocada no intuito de encontrar o espaço
que a funda. Espaço que nos remeteria ao “não criado, ao antes
de começar a respirar”: espaço de “sufocação”! Momento último
de sua poesia que teria atravessado “os totens de uma cultura
arruinada antes de ter tomado corpo” (“Fragmentações”) e onde
o corpo do homem que sufoca já teria, ainda, criado sua própria
estatura – “descoberta de um corpo no momento em que o mes-
mo se lança em presença aos seus leitores” (“Cartas”). As “Inter-
jeições” se ofereceriam então como espaço dos e para os corpos.
E seria justamente seu caráter espacial que nos caberia agora de-
senvolver e desdobrar. A espacialidade poética é um traço a ser
convocado e de suma importância para todo o último período
da obra de Artaud. Como vimos alertando, ela é a prática inova-
dora de seus cadernos e de seus desenhos-escritos, ela é a plástica
que inaugura um novo estatuto no interior de sua obra e que, ao
mesmo tempo, concilia as reivindicações postas ao longo de sua
trajetória. Nessa direção, ela seria a realização possível para seu
202 Antonin Artaud

teatro cruel. E ainda: a aparição contundente de um poeta após


nove anos de clausura e que vem, em 1945 – imediatamente
após a imensa destruição provocada pela Segunda Guerra –, lan-
çar sua voz inovadora em uma busca de reconstrução de corpos
mutilados. Como diz o autor nas suas “Interjeições”: “reprenant
les morceaux de corps tombés pour les reclouer / l’un sur l’autre
toujours plus étroitement et de plus-près, / faisant ainsi un trou
en zig-zag et en haut-fond”1 (1978b, p. 84). Repregar pedaços
de corpos, devolver-lhes seus buracos, eis uma das manifestações
mais constantes na plástica artaudiana. Desse modo, é perceben-
do a imbricação entre a última parte de seu livro Suppôts et sup-
pliciations e seus desenhos-escritos que relevamos as interjeições
– em Artaud – ao estatuto de uma plástica-poética.
Frisar o caráter espacial das interjeições significaria, ain-
da, dar relevo ao sopro, à sufocação que se interpõe em tudo
aquilo que é gerado no instante da geração. Seria fazer resistir o
instante do nascimento, ampliá-lo, oferecendo-lhe estatuto in-
cômodo, localizado entre não mais existir e ainda não existir.
Sufocando assim a ordem linear dos processos de entendimento,
de sentido, resistindo aos significados, ao (gerado) conceptum, e
oferecendo-nos – além dessa fundamental sufocação – um ins-
tante fulgurante, o “raio fulminante” que vem traçar as últimas
páginas do poeta. Como ele mesmo disse, trata-se de olhar para
seus desenhos-escritos e encontrar “fetos, formas larvares, pon-
tos semeados sobre a página” contaminados/sufocados de um
fazer poético que se destina ao refazer constante – posto que o
espaço de sufocação resiste à vida tanto quanto à morte. Força
de resistência que vai dirigir sua obra – para além da desconstru-
ção, demolição e combate das formas instituídas – a um lugar

1
Tradução: “recolhendo os pedaços de corpos tombados para os repregar / um
sobre o outro, estreitando-os sempre mais e mais de perto, / fazendo assim um
buraco em zique-zague e em alto-fundo”.
Interjeições 203

de inquietude permanente, daí mesmo à vertente vital do mal


que lhe atinge, assim como àqueles que o leem. É assim que se
deveria frisar que o mal – em Artaud – é força vital. Ou como
ele escreveu: “Ce que je cherche n’est pas la douleur mais la force
dans l’écorchement, le manque, la faim, la maladie, la fatigue,
la nausée, le vertige, le désespoir et l’abandon de mes forces”2
(1984a, pp. 153-4). O mal é vital enquanto força. E em todas as
últimas criações do poeta trata-se, sobretudo, de se processar –
pictural e poeticamente – as forças. Força de vida se desenterran-
do da morte, “sur le corps du vieil Artaud / enterré/ puis deterré
/ par lui-même/ au dehors des éternités”3 (1978b, p. 42) que
vai contra o nascimento dado, a “procriação papai-mamãe” (“Or
je suis le père-mère, / ni père ni mère, / ni homme ni femme”4;
1978b, p. 60), para surgir de modo “sempiterno” no fazer que
desestabiliza o ser, doravante sem descanso.
No ponto em que a insurreição do corpo – “Je suis un
insurgé du corps, / je suis cet insurgé de corps”5 (1978b, p. 84) –
não é considerada somente enquanto revolta, ela pode se esboçar
em torno do surgimento. Aí encontramos suas “Interjeições” e
a aparição de uma prática que o acompanha em todo seu últi-
mo período criador: prática-plástica, que se oferece como espaço
possível para materialização, visualização e realização das forças
que atravessam os corpos. A insurreição é do corpo. E onde agem
as forças senão nos (ou sobre) os corpos? O projeto que parece se
esboçar a partir dos desenhos-escritos de Artaud seria, portanto,
tornar visíveis as forças. A linguagem – como vimos desde sua

2
Tradução: “O que eu procuro não é a dor, mas a força no esfolamento, na falta,
na fome, na doença, na fadiga, na náusea, na vertigem, no desespero e no aban-
dono de minhas forças”.
3
Tradução: “sobre o corpo do velho Artaud / enterrado e depois desenterrado /
por ele mesmo / externo às eternidades”.
4
Tradução: “Ora eu sou o pai-mãe, / nem pai nem mãe, / nem homem nem
mulher”.
5
Tradução: “Eu sou um insurgente do corpo, / eu sou este insurgido do corpo”.
204 Antonin Artaud

formulação para um teatro cruel – já se oferecia enquanto maté-


ria viva e atravessada por forças. É assim que, para o poeta, se de-
veria quebrar aquilo que nela é “osso, armadura, carcaça” e fazer
surgir a carne viva e tremulante. Operação que, a partir de 1945,
será conjugada sobre a folha de papel prenhe de um devir de cor-
pos ao mesmo tempo múltiplos e multifacetados. Operação que
não verá mais a folha em branco como sendo apenas da ordem
temporal, sequencial – tempo em branco a ser preenchido, uma
letra após a outra. Essa folha vai aparecer inserida também na
ordem espacial – como escrever, onde colocar na página, de que
escrita se trata? Seria a “poesia no espaço” desejada por Artaud
no teatro. Seria a letra desenhada, os corpos projetados – projetil
e prótese simultaneamente –, seriam os traços não lineares capa-
zes em um só “golpe” de se levantar contra a organização linear
imposta e, ao mesmo tempo, fazer surgir não uma outra ordem,
mas a desordem mesma, um espaço onde os corpos são possíveis:
“C’est ainsi qu’il faut accepter ces dessins dans la barbarie et le
désordre de leur graphisme” (1978b, p. 207).6 Mas não se de-
veria desconsiderar tampouco sua força de insurreição (revolta).
Trata-se dessa vida “desenterrada da morte”, e o poeta escreve,
em texto sobre Van Gogh, sentença que não deixou de condená-
-lo: “A pintura linear pura me tornou louco desde muito tempo”
(1996d, p. 25).7
Se ouvimos a dimensão dessa “sentença” ao longo da aven-
tura de Artaud, somos levados a fazer surgir sua plástica-poética
6
Tradução: “É assim que é preciso aceitar esses desenhos na barbárie e na desor-
dem de seus grafismos”.
7
“La peinture linéaire pure me rendait fou depuis longtemps lorsque j’ai rencon-
tré van Gogh qui peignait, non pas des lignes ou des formes, mais des choses de la
nature inerte comme en pleines convulsions.” (grifo meu). [Tradução: “Havia
muito tempo que a pintura linear pura me enlouquecia, até que encontrei Van
Gogh que pintava, não linhas ou formas, mas coisas da natureza inerte como
se estivessem em plena convulsão”. Edição brasileira: ARTAUD, Antonin. Van
Gogh: o suicida da sociedade. Trad. Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: José Olym-
pio, 2003, p. 45.]
Interjeições 205

enquanto reivindicação que agiria contra a linha e contra a for-


ma por meio do traço e da força, respectivamente. Levantada a
hipótese, nos caberia buscar desdobrá-la nos traços que agem
contra a linha, assim como nas forças que agem contra a forma.
Buscar, desse modo, encontrar as operações que se conjugam no
fazer plástico e poético: como o traço poderia agir contra a linha?
De que linha se trata? O que portam os traços? Quais a forças
que presidem às formas? E como as forças se tornam visíveis?
Seria deformando a forma? Para tanto, nos inclinaremos à ten-
tativa de desdobrar em um plano de amplitude a maneira que se
configura tal plástica-poética por meio do microespaço no qual
ela se perfaz prática: seus cadernos de escola. Ainda, nos debru-
çaremos sobre a perspectiva dos grandes desenhos-escritos, na
tentativa de fisgar a aparição do traço em Artaud. Desse modo,
nos resta tomar como objetos privilegiados desse capítulo parte
dos manuscritos microfilmados de seus cadernos, assim como
alguns de seus grandes desenhos-escritos, os textos que os acom-
panham e, de Suppôts et suppliciations, suas “Interjeições”. Ao
longo dessa trajetória, procuraremos percorrer outros escritos de
Artaud que se destinaram a pensar a matéria plástica, seja de um
pintor, de determinada corrente artística, ou do próprio corpus
por ele criado, no intuito de encontrarmos pontos cardeais dessa
mesma plástica no interior de sua obra, assim como no diálogo
que manteve com as vozes do entorno.

3.1. Plástica e poesia

Em 1929, Artaud escreve um prefácio para o livro Águas


fortes, de Jean de Bosschère (1980, pp. 223-7). Em um tem-
po ainda distante desse em que veremos surgir sua “nota febril”
(2004b), mas onde já se delineiam as bases fulminantes das suas
ideias, que posteriormente se farão “novos corpos de sensibilida-
de” (1980, pp. 223-4). Seu prefácio é duro e mesmo cruel: “Dire
206 Antonin Artaud

que j’aime complètement ces eaux-fortes de Jean de Bosschère,


je ne le dirai pas; elles ne sont pas assez obscures […]. Le peintre
n’a pas voulu ou n’a pas su garder son secret” (1980, p. 225).8
Razão que teria destinado ao texto tantos anos de silêncio. So-
mente em 1978, ele seria recuperado e desenterrado dos arquivos
de Bosschère em Bruxelas. Mas seu silêncio não pertence de todo
ao pintor, posto que, no pretendido prefácio, Artaud trespassaria
as telas de Bosschère para incisivamente perfurar os “maneiris-
mos” ou “fetichismos”9 em pintura. Esse é o artificialismo – alia-
do ao didatismo – que Artaud busca em um primeiro momento
criticar e posteriormente dele se separar por meio de suas cria-
ções poético-plásticas. Sua crítica a Bosschère recai sobre aquilo
que identifica como sendo a busca desesperada e “mental”10 para
se criar um estado seja de “azedume ou de angústia”. Ao estado
criado, querido, mental, Artaud contrapõe a imagem de “uma
chama verde que treme à ponta rasgada de um grito”. Imagem
que se oferece poeticamente como gesto dilacerador das forças.
Diante das forças, a ponta do pincel pode se rasgar em grito ou
a chama queimar fazendo tremer qualquer imagem. Mas aqui

8
Tradução: “Dizer que amo completamente essas águas-fortes de Jean de
Bosschère, eu não o direi: elas não são suficientemente obscuras […]. O pintor
não quis ou não soube guardar seu segredo.”
9
“Mais ces gens qui ne sont pas parvenus à se débarrasser du fétichisme de la
valeur, ces gens qui partis d’une caricature d’angoisse et d’authentique bou-
leversement s’obstinent à se conformer à la hiérarchie des attaches humaines,
Jean de Bosschère avec ses faiblesses, ses manies littéraires, ses préjugés moraux
même a beaucoup plus qu’eux le sens de la véritable liberté” (1980, p. 227).
[Tradução: “Mas essa gente que não conseguiu se desembaraçar do fetichismo
do valor, esta gente que partindo de uma caricatura de angústia e de autêntica
perturbação se obstina a conformar-se à hierarquia dos laços humanos, Jean
Bosschère, com suas fragilidades, suas manias literárias, seus preconceitos mo-
rais mesmo, tem muito mais que eles o senso da verdadeira liberdade”.]
10
“L’amertume désespérée des eaux-fortes de Jean de Bosschère est mentale, donc
voulue, elle n’est pas la flamme verte qui tremble à la pointe déchirée d’un cri”
(1980, p. 226). [Tradução: “O azedume desesperado das águas-fortes de Jean de
Bosschère é mental, logo voluntário; ele não é a chama verde que treme à ponta
raspada de um grito”.]
Interjeições 207

não importa qual imagem poderíamos criar a partir de sua frase.


São muitas. No entanto, o que se deveria destacar é o fato de que
as imagens possíveis de serem deduzidas a partir de sua poética
circulam em um campo de presença das forças. O que parece
importar ao poeta – aquilo que se torna o alvo de sua crítica já
aqui em 1929 – é que a imagem ou é força ou não é. É nessa
direção que podemos entender o que ele viria escrever em 1946
como sendo a necessidade de “desimaginar as imagens” (1986b,
p. 19).11 Só assim ele poderá contrapor ao estado mental (en-
quanto vontade, imaginação, razão, cérebro) um outro estado,
onde agem as forças.
Na primeira frase do texto de Águas-fortes ele define: “À
une maladie de la pensée correspond l’apparition d’une certaine
peinture”12 (1980, p. 223). Daí, resta ao poeta separar a auten-
ticidade ou não das aparições que se rendem a uma “doença do
pensamento” – resta-lhe, como já teríamos visto em sua corres-
pondência com Rivière, precisar a “doença do pensamento”. Sa-
bemos que, se Artaud fala ou escreve sobre qualquer outra figura
artística, ele o fará do ponto de vista daquele que sofre e assim
“tem o direito à palavra”, do ponto de vista daquele que vive a
doença do pensamento para além de um “contra” destinado a
recriar outras verdades e certezas.13 Como temos visto, os limites,

11
“Le problème est de se situer dans l’au-delà de l’être et de sa notion réflectrice
de conscience. // […] // cogner, souffrir, se déchirer, se barder, ne pas penser, //
désimaginer les images, […]” (grifo meu). [Tradução: “O problema consiste em
se situar para além do ser e de sua noção refletora de consciência. // [...] // bater
na parede, sofrer, se rasgar, encalhar, não pensar, // desimaginar as imagens”.]
Lembramos que a parte inicial do poema foi aqui trabalhada no segundo ca-
pítulo, onde se impunha a necessidade de sair da consciência reflexiva em pro-
veito de uma consciência propulsiva. Da mesma maneira que se deveria sair da
imagem-imaginação em proveito de uma imagem-força.
12
Tradução: “A uma doença do pensamento corresponde a aparição de uma certa
pintura”.
13
Viemos insistindo que apesar das consonâncias e afinidades entre Artaud e as
vertentes de vanguarda – sobretudo a surrealista –, esse poeta vai retirar da
força de negação uma matéria vital cujo destino não se estabelece na imediata
208 Antonin Artaud

as falhas, as perdas, o “impoder” da linguagem e do pensamen-


to tornam-se as matérias que lhe permitem falar, escrever, criar.
Além disso, elas seriam as passagens entre o poeta e Abelardo,
Heliogábalo, Lewis Carroll, Van Gogh, Lautréamont, e outros.
Essa passagem que contamina e deixa contaminar o poeta e as
“personagens” que ele revisita e recria em seus textos. Rejeitando
o caráter de infecção – enquanto força que esburaca os corpos e
nele cria passagens, aberturas –, imobilizaríamos sua poética do
pensamento criada na tensão perfurante (na abertura, na passa-
gem) entre texto e leitor/destinatário, entre a perda da linguagem
e sua aparição, entre a produção do pensamento e sua constante
perda conceitual, entre a doença e sua cura. É assim que encon-
tramos o hermetismo14 de Artaud, ou como ele mesmo escreveu
nas “Interjeições”: “Il y a l’hermétisme où l’on n’entre pas parce
qu’il est fermé, / celui où l’on entre et qui vous enferme, / celui
qui vous invite à entrer pour ouvrir ce qui est fermé”15 (1978b,
p. 123, grifo meu). Assim também se perfaz seu prefácio a Jean
de Bosschère. Crítica tomada do ponto de vista de sua própria
crise, cuja matéria (que agora nos interessa) é a que vai anunciar
seu próprio devir criativo através de uma preocupação central
que, nesse momento, assim se enuncia: “Parmi ces eaux-fortes,
les plus étranges, les plus significatives aussi, sont de beaucoup
les plus ratées. Par la disharmonie profonde qu’elles établissent

formação de uma proposição, valores que viriam a formar uma escola ou um


conjunto de preceitos (doutrina) mas, ao contrário, da instabilidade inserida
doravante nesses domínios se requer um movimento constante de interrogação,
uma impossibilidade de se ver “formado” que destina ao pensamento (e a lin-
guagem) sua constante perda de si mesmo. A negação assume, além de sua força
afirmativa, uma força de invenção.
14
Traço tantas vezes convocado por seus leitores em face aos seus últimos textos,
oferecendo-lhes até mesmo o caráter de ilegibilidade, como bem observou Eve-
lyne Grossman em seu livro Artaud Joyce, le corps et le texte.
15
Tradução: “Há o hermetismo em que não se entra porque está fechado, / um
outro em que se entra e que te enclausura, / e aquele que te convida a entrar
para abrir o que está fechado”.
Interjeições 209

entre ce que les crétins appellent la pensée et la forme, et moi:


l’idée et le trait”16 (1980, p. 226).
Em uma primeira instância dever-se-ia lembrar que toda
crítica contundente de Artaud gesta uma ampla recusa aos per-
tencimentos escolares. Tal recusa já foi lida (principalmente no
fim dos anos 1960 e 1970) como sendo interdição de se pensar
(com) Artaud. Interdição que vetou à sua obra uma própria pro-
dução de pensamento. Interdição calcada na exigência de que só
podemos “experimentar” Artaud. Tratava-se, sobretudo, de um
Artaud homem de teatro – fazendo, muitas vezes, com que a re-
cepção de sua obra se limitasse aos primeiros textos do poeta, até
a década de 1930. Um dos destinos possíveis dessa recusa – que
se sobrepôs à recusa do poeta – é aquele que oferece à obra um
caráter de desconhecimento e/ou de esquecimento no interior
dos movimentos modernos das artes plásticas e da literatura. To-
davia não podemos esquecer que tais recusas se firmavam na rei-
vindicação de uma determinada época, onde os “preceitos” de li-
berdade e experimentação cumpriram seu papel fundamental de
alteração da ordem estabelecida. E ainda soma-se o fato de que,
nessa mesma época, a obra de Artaud mal começava a ganhar
um sopro de publicação. Além disso, sua recepção não deixaria
de impor dificuldade: dada sua multiplicidade de domínios, sua
extensão correlata à intensão, seu vasto espectro de transforma-
ções e contradições inerentes, sua força combativa constante que
resistiria implacavelmente às tentativas de inserções unívocas em
escolas literárias ou plásticas.
A partir dessas observações, duas direções merecem ser
destacadas na crítica contundente do poeta. Uma que se relacio-
na com o contexto artístico no qual se insere o prefácio escrito

16
Tradução: “As mais estranhas, também as mais significativas dentre estas águas-
-fortes são de longe as mais rateadas. Pela desarmonia profunda que elas estabe-
lecem entre isto que os cretinos chamam o pensamento e a forma, e eu: a ideia
e o traço”.
210 Antonin Artaud

em 1929. Outra que incide sobre sua própria obra, tomada a


partir de sua publicação em 1946. No entanto, haveria ainda o
encontro dessas duas direções. Assim relevamos desde já a pre-
sença de uma linha de força que se mantém em toda a trajetória
de Artaud. Trata-se, como temos visto, da pregnância (“as telas
mais significativas”) da ideia de tudo aquilo que é falhado, ratea-
do (“as mais rateadas”). É assim que, ao lado de sua crítica a Jean
de Bosschère, vemos reverberar o lugar ao qual ele viria destinar
toda a sua obra, quando da escrita de seu próprio prefácio em
1946 – “Je sais que quand j’ai voulu écrire j’ai raté mes mots et
c’est tout”17 (1994a, p. 9). Nesse ponto, não leríamos a crítica a
Bosschère como recusa (de suas águas-fortes), mas como afirma-
ção do universo pictural e poético possível em Artaud. Aqui já
deveríamos introduzir a pergunta inicial: o que portam os traços
para Artaud? Sua significância residiria no fato de que eles pode-
riam suportar a presença da força? Mas da força em sua constân-
cia dilacerante ou em sua intermitência abrupta, o trêmulo assim
como a incisão? O traço implica a imediata ação de traçar e,
como toda ação, arrasta em si a força. Naquilo que seria próprio
à matéria plástica, poder-se-ia dizer que o ratear é justamente o
que o traço pode portar e suportar. Ele o traz em si: lascas, racha-
duras, fendas, sulcos, nesgas, rugas, pregas, cortes. Essa, “a vida
pegajosa que se arrasta entre as linhas ou no corpo mesmo das
linhas” (1980, p. 226),18 como disse o poeta ainda nesse texto de
águas-fortes. Conhecendo os desenhos de Artaud, se pode ler, já
aqui, o anúncio de suas aparições plásticas, que não entregariam
senão a própria encenação mesma dessa vida pegajosa, percor-
rida tão só e simplesmente através de seus próprios traços. Só a
partir dessa constatação é que poderemos nos voltar em direção

17
Tradução: “Eu sei que quando quis escrever, eu falhei com as palavras e isso é
tudo”.
18
“mais en dehors de l’idée il y a cette sorte de vie glaireuse qui se traîne entre les
lignes ou dans le corps des lignes mêmes.”
Interjeições 211

aos “cretinos do pensamento e da forma” para, em seguida, bus-


carmos operar e desenvolver aquilo que o autor reivindica como
sendo “ideia e traço” nos seus próprios desenhos-escritos.
Seria, portanto, ao vislumbrar esse vasto espaço de ebuli-
ção que proporíamos introduzir a questão plástica e pictural em
Artaud: trabalhando na tensão que recusa o domínio da arte,
mas que, através dessa própria recusa, nele promove sua inser-
ção. É assim que suas críticas contundentes serão apresentadas
aqui como expressão de sua própria singularidade. Mais ainda:
como manifestação da problemática ou da questão própria à sua
obra: “Je n’ai pas de moi, mais il n’y a que moi et personne, /
pas de rencontre possible avec l’autre, / ce que je suis est sans
différenciation ni opposition possible. / c’est l’intrusion absolue
de mon corps, partout”19 (1978b, p. 76). É assim, também, que
suas possíveis consonâncias não deverão ser lidas como “rótu-
los” escolares, mas como campos de convergência de forças, que
retiram a obra do poeta do silêncio asilar, ou dos equívocos de
unicidade, orquestrando-a nas vozes contundentes e nas contro-
vérsias do século XX.
Desse modo, em sua crítica ao pensamento e à forma, não
se poderia negligenciar o espaço de ebulição e de controvérsias
potencializado com as vanguardas artísticas desde o primeiro de-
cênio do século XX. Apesar de conhecermos as inúmeras portas
de passagem e transformação no domínio das artes desde fins
do século XIX, as vanguardas do século XX “passaram ao ato” e
foram recebidas como uma verdadeira revolução. É assim que,
em sua crítica aos “cretinos” feita em 1929, não deixamos de
ouvir algumas das exigências formais impostas sobretudo pela
vanguarda abstracionista. Em 1913, Fernand Léger já apontava

19
Tradução: “Eu não tenho ‘eu’, mas não há senão ‘eu’ e persona, / nenhum en-
contro possível com o outro, / isto que sou é sem diferenciação nem oposição
possível. / é a intrusão por toda parte de meu corpo, absoluta”.
212 Antonin Artaud

“as três grandes quantidades plásticas: as Linhas, as Formas e as


Cores” (Riout, 2000, p. 53) que, nos anos 1920, tornar-se-iam
os elementos plásticos por excelência. Nesse sentido, poder-se-ia
identificar, na crítica do poeta ao pensamento e à forma, certo
manifesto contra aquilo que no abstracionismo corria o risco do
puro ornamento, de um espiritualismo desatado por completo
do corpo e/ou da matéria. Contra uma arte que deveria ser rece-
bida, codificada e processada pelo cérebro. Tal crítica, como vi-
mos no prefácio à Bosschère, é ampliada, do “cérebro” enquanto
locus da razão, para o “cérebro” enquanto locus “mental” – englo-
bando, por conseguinte, a razão e a emoção; o dever e a vontade;
o julgamento e o sentimento. E é assim que a posição crítica do
poeta se complexifica, vazando a vanguarda abstracionista e as
águas-fortes de Bosschère para se inserir em um campo de recusa
mais amplo. Campo esse que poderia ser localizado – no interior
das reivindicações de uma arte moderna – nas plásticas compro-
metidas com o formal, mas também naquelas que se relaciona-
riam com um fundo psicológico (poço de emoções e sentimen-
tos) a ser expresso, liberado ou representado. Além disso: sabe-se
que sua recusa vai incidir ainda sobre o vasto campo do discurso
crítico, formal e sistêmico sobre as artes em geral. Há em Artaud
a recusa de todo e qualquer academicismo (institucionalizações)
que, como apontou seu texto sobre Van Gogh, deve ser lembra-
da como vital na trajetória do poeta.
É nessa tensão – que recusa a razão e também a emoção
– que podemos discutir sobre as convergências e divergências
entre o poeta e algumas das vertentes reivindicativas postas pela
revolução moderna na arte. Como alertamos, suas relações de
divergência estariam calcadas na recusa de qualquer estado de
“supervisão” – seja este da razão ou do sentimento e da emoção.
Ou seja: operamos aqui com uma recusa de toda e qualquer me-
diação, como ele escreve em suas “Interjeições”:
Interjeições 213

Quand ma main brûle, elle brûle. / Il y a le fait que ma main


brûle, lequel déjà, si j’y pense, est, comme fait, très menacé,
/ avoir le sentiment que ma main brûle, c’est rentrer dans un
autre rayon, / si j’ai l’idée que ma main brûle, je ne suis déjà
plus dans ma main mais en état de supervision20 (1978b, p. 80,
grifo meu).

É assim que Artaud se distanciaria das mediações da razão


(e do cérebro) promovida – na modernidade – sobretudo pela da
arte abstrata, e também das mediações subjetivas propostas prin-
cipalmente através da vanguarda surrealista. No entanto, e antes
de desdobrarmos a reivindicação singular do poeta em torno do
“fato”, não podemos deixar de atentar e discutir sobre como se
insere seu gesto plástico no contexto dessas vanguardas citadas.
O primeiro traço a destacar aponta para o fato de que sua
plástica-poética – assim como também deseja a arte abstrata – vai
se apresentar em uma perspectiva que rasga a pregnância do nar-
rativo e/ou do figurativo. Como escreveu a partir de seus dese-
nhos: “pas un qui ne réponde à une activité physiologique réelle,
/ qui n’en soit, / non pas la traduction figurative / mais quel-
que chose comme le crible efficace, / sur le papier matérialisé”21
(1995, p. 60). Mas destaca-se para o poeta o fato de que tal rom-
pimento para com o figurativo não viria a se processar enquanto
abandono do corpo em proveito do intelecto, da razão ou “do
lado espiritual na pintura e nas artes” (Kandinsky, 1999) – em
resumo: o rompimento com o figurativo não se rende à forma

20
Tradução: “Quando minha mão queima, ela queima. / Há o fato de que a
minha mão queima, o qual é já, se o penso, como fato, seriamente ameaçado, /
ter o sentimento de que minha mão queima é entrar em um outro raio, / se eu
tenho a ideia de que a minha mão queima, não estou mais em minha mão, mas
em estado de supervisão”.
21
Tradução: “nenhum que não responda a uma atividade fisiológica real, / que
dela não seja / não a tradução figurativa / mas alguma coisa como o crivo eficaz,
/ sobre o papel materializado”.
214 Antonin Artaud

abstrata. O ponto crucial que separa Artaud dos preceitos de


uma arte do pensamento e da forma seria justamente sua insis-
tência sobre a corporalidade, sobre a materialidade – “resposta a
uma atividade fisiológica real”.
Mas a discussão ainda deveria se aprofundar, posto que o não
figurativo em Artaud encontra ressonância na busca de crivar os
corpos das forças que os atravessam, fazendo com que em sua plás-
tica nos encontremos sem a possibilidade de figurar/narrar corpos,
mas, ainda assim, diante deles. E seria aqui onde encontramos ou-
tro índice que o conjuga – e nem um ponto mais preciso e mais
profundo do que o anterior – com parte do pensamento abstrato:22
esses corpos não figurativos da plástica artaudiana são corpos-força,
o crivo é eficácia em fisgar, atravessar, perfurar com as forças os cor-
pos. Poder-se-ia dizer que as forças seriam a base de toda e qualquer
matéria. E mesmo quando se trata de abstração ou construção de
meios ideais. É assim que Paul Klee pôde afirmar que:

Certes, les moyens idéels ne sont pas dépourvus de matière,


sinon on ne pourrait pas écrire. Quand j’écris le mot vin avec
l’encre, celle-ci ne tien pas le rôle principal mais permet la
fixation durable de l’idée de vin. L’encre contribue ainsi à nous
assurer du vin en permanence. Écrire et dessiner sont identiques
en leur fond23 (1999, p. 58).

22
Deve-se ressaltar que tanto Paul Klee quanto W. Kandinsky se preocuparam
em não fazer da abstração uma arte de recusa do material e total pregnância
do puro “formal”. Ainda, no projeto pictural de Klee, as forças se tornariam a
valência visível por excelência.
23
Tradução: “Certo, os meios ideais não são desprovidos de matéria, caso contrá-
rio não se poderia escrever. Quando eu escrevo a palavra vinho com a tinta, esta
não cumpre o papel principal, mas permite a fixação durável da ideia de vinho.
A tinta contribui, desta forma, a nos assegurar do vinho em permanência. Es-
crever e desenhar são, em seu fundo, idênticos”.
Interjeições 215

Para Artaud, seria justamente a partir desse “fundo de


identidade” que ele poderia inaugurar sua plástica-poética ou
seus desenhos-escritos. O sublinhar da matéria, seu caráter de
fixação e duração, viria se localizar enquanto vetor de força que
atravessa os corpos. Assim, serviria menos à ideia e mais à pró-
pria possibilidade de materializar as forças que perpassam corpos
(sempre escritos ou desenhados). Dito de outra maneira: a fixa-
ção se manifestaria como força de impressão (tomada aqui en-
quanto “contato de um corpo com o outro”) e a duração como
manifestação de presença da força.
É sob esse aspecto que se pode observar como o traço vai
se manifestar para Artaud enquanto vetor de combate contra a
ideia de linha. A linha a ser combatida (dentro desse contexto
histórico) é a linha abstrata desencarnada e, mais além, a linha
que compõe a linearidade do discurso, seu logocentrismo. No
entanto, como estamos buscando inserir a voz do poeta no inte-
rior das turbulências provocadas nas vanguardas, dever-se-ia no-
tar o caráter de possibilidade – que se abre também a partir desse
mesmo contexto – de um perfazer plástico que não se renda aos
domínios do mental e que se desembarace das imposições do
mundo das representações. É assim que seus desenhos visam per-
fazer explosões de corpos ou, como ele disse, visam à construção
de “corpos animados”.24 Em um texto escrito em 1947 a propó-
sito dos sorts – criados no fim dos anos 1930 –, Artaud situa o
campo de possibilidades aberto pela arte moderna: “Je veux dire
qu’ignorant aussi bien le dessin que la nature je m’étais résolu à
sortir des formes, des lignes, des traits, des ombres, des couleurs,
des aspects qui, ainsi qu’on l’a fait dans la peinture moderne, ne
représentent rien”25 (1978b, p. 90).

24
“Parce que je n’ai cessé à Rodez de fabriquer des corps animés” (Artaud, 2002a).
[Tradução: “Porque eu não me cansei de fabricar, em Rodez, corpos animados”.]
25
Tradução: “Quero dizer que, ignorando tanto o desenho quanto a natureza, eu
me tinha resolvido a sair das formas, das linhas, dos traços, das sombras, das co-
216 Antonin Artaud

Diríamos que a aliança que anima os corpos é a aliança


com as forças. Se, para os abstratos, as forças serviriam à fixação
da forma (da ideia), para Artaud elas se abrem como potências
demolidoras do dado fixo. Assim, não capturadas pela forma, as
forças se manifestariam em seu gesto pictural por meio de um
crivo. Gesto que vai se relacionar com a precisão, com aquilo que
para ele se perfez como noção de crueldade. Não seria a precisão
da linha nem da forma, relacionando-se mais com a precisão de
um gesto que perfura e até mesmo o suporte, como vimos nas
figuras dos sorts. Nesse texto e contexto das Águas-Fortes, poder-
-se-ia dizer que a força se manifesta destituindo a preocupação
mental – “artificial” – para ir de encontro à “ideia que se insinua
pegajosa no corpo das linhas”.
Em 1947, por ocasião de uma exposição dos seus dese-
nhos e retratos na Galerie Pierre Loeb em Paris, Artaud escreve
texto plaqueta e diz: “C’est ainsi qu’il faut accepter ces dessins
dans la barbarie et le désordre de leur graphisme qui ne s’est ja-
mais préoccupé de l’art mais de la sincérité et de la spontanéité
du trait”26 (1994c, p. 207). Em meu trabalho, não deixei de re-
correr algumas vezes à significância dessa declaração. No pre-
sente contexto, ela auxilia a discussão em torno do mental. Em
uma primeira instância, jogando-nos na estranheza, pois como
falar de espontaneidade e sinceridade sem ser capturado pelas
representações do mental? Em primeiro lugar, valeria frisar que
a espontaneidade para o poeta refere-se exclusivamente ao traço:
“espontaneidade do traço”! Mas, então, como adentrar nesse do-
mínio do traço? O traço pode ser espontâneo? Começaremos por
excluir aqueles domínios do mental. É precisamente aqui onde

res, dos aspectos que, assim como se fez na pintura moderna, não representam
nada”.
26
Tradução: “E assim é preciso aceitar estes desenhos na barbárie e na desordem
de seu grafismo, que jamais se preocupou com a arte, mas com a sinceridade e a
espontaneidade do traço”.
Interjeições 217

Artaud se diferencia de uma plástica e de uma poética surrealista.


Lembramos que, em 1929 – por ocasião da escrita do prefácio
à Bosschère –, Artaud já havia se desligado do grupo surrealista.
Além disso, no seu retorno à cena artística parisiense – a partir de
1946 –, ele não deixaria de rever e repensar traços importantes
que o separavam dos surrealistas já na década de 1920.
Nesse sentido, começaríamos por indagar: como se dife-
rencia a espontaneidade para Artaud do automatismo surrealista?
Em uma primeira instância, insistimos: a espontaneidade não se
enuncia aqui como nada que se assemelhe a um reduto automá-
tico de um inconsciente subjetivo. A espontaneidade pertence
ao próprio traço, por mais bizarro que isso nos pareça. Só assim
é que a ideia de traço em Artaud (quando da aparição de seus
desenhos) não vai contemplar a busca de novos meios (técnicos
ou expressivos), nem qualquer “preocupação com a arte”. São
movimentos conjuntos: a recusa de um núcleo sujeito e a recusa
dos meios artísticos. É precisamente por meio dessa recusa que
o poeta precisa a espontaneidade: desligando-se de uma inter-
venção que busca “conquistar com a razão o irracional” (1975)
e vice-versa, como seria a aliança entre a crítica e a paranoia para
Salvador Dalí; mas também se desligando de um tratamento
posterior ao gesto pictural, o que inseriria a invenção e o acaso
(muitas vezes inerente ao processo criador) em um regime de
determinações discursivas, sejam estas de um discurso sobre a
arte ou sobre o sujeito. Ora, a conjunção dessas duas recusas é
exatamente aquela que viria a ser explorada na plástica surrealis-
ta: a busca de novos meios (técnicos ou expressivos) para obter os
benefícios fornecidos pela escrita automática e a sistematização
discursiva dos surrealistas pautada em uma interpretação do in-
consciente freudiano. Nesse domínio, destacaríamos as interven-
ções plásticas e discursivas de Salvador Dalí que, munido de seu
método paranoico-crítico, recorre às técnicas ilusionistas para
218 Antonin Artaud

traduzir imagens oníricas ou, ainda, as pinturas-colagens como


meio direto de tradução do automático.
Mas as diferenciações entre a plástica-poética de Artaud
e a dos surrealistas podem nos parecer mais fortes nos próprios
textos do poeta, escritos em Rodez em 1946. Em um texto es-
pecífico, Artaud aborda o tema da matéria pictural nos quadros
surrealistas. Comparando-o ao seu corpus plástico-poético, duas
ideias fundamentais serão postas em tensão: a cavidade (le creux)
– a ser entendida em Artaud como força do vazio, “impoder”,
como figura que surge de seu gesto cruel e perfurador, tal qual
vimos tratando; e, a colocação em relevo (mis en relief), a ser
entendida enquanto ereção de valores, objetos nomeados e re-
presentados pela pintura surrealista.
Artaud escreve: “Les tableaux surréalistes sont ultra-clairs,
[...]. On remarquera que les peintres surréalistes n’aiment pas en
général la peinture vague et qu’on trouve toujours dans toutes leurs
toiles des objets admirablement mis en relief et dessinés”27 (1985a,
p. 263, grifo meu). De encontro ao destino habitual oferecido
ao campo do visível – esse fundado pelo contraste entre o ra-
cionalmente claro e o obscuro –, Artaud privilegia a função de
relevo. Seria ela, então, que tornaria visíveis os objetos “admira-
velmente” ou “perfeitamente desenhados” nas telas surrealistas.
Seu texto segue indicando a negra claridade dessas telas:

Ainsi donc les tableaux surréalistes sont clairs. Quand on n’a


pas peur de leurs lumières sinistres. Et je veux bien qu’il y
ait dans les tableaux surréalistes des choses blanches, mais en
général les tableaux surréalistes sont noirs. […]. Tout ce qui

27
Tradução: “Os quadros surrealistas são ultraclaros, [...]. Notar-se-á que os pin-
tores surrealistas não amam em geral a pintura vaga e que em todas as suas telas
se encontram sempre objetos admiravelmente postos em relevo e desenhados”.
Interjeições 219

n’a pas un côté inquiétant, insolite ou ténébreux ne fut jamais


authentiquement surréaliste, en effet28 (1985a, p. 264).

O poeta nos remete aqui ao estado de insurreição de uma


natureza recalcada que fornece aos quadros surrealistas sua in-
quietante clareza/transparência (clarté). É assim que Artaud su-
gere um princípio fundamental dos surrealistas, que consistiria
na luta para pintar – revelando e relevando – uma outra natu-
reza, recalcada na sociedade e nela apresentada como sombra.
Tal sombra deveria substituir – tomar o lugar de – a cena real, o
vivente ou o animado. O princípio surrealista, segundo Artaud,
tomaria, desse modo, partido da sombra como contrapeso do
animado. Negro recalcado da luz do dia, natureza esquecida pela
sociedade.
Em carta escrita em abril de 1947 a Hans Hartung, Artaud
declara: “Et puis Mr. Archtung, je dessine. / Je veux dire que je ne
dessine pas mais qu’à côté de ce que j’écris, je fais de figures qui
ne sont pas des mots, mais de barres non des ombres”29 (2002b,
p. 46, anexo 6). Nos atendo, momentaneamente, menos às “fi-
guras” que constelam os cadernos de escola de Artaud, e mais em
sua insistência em se diferençar da arte do desenho, de seus efei-
tos de sombra e claridade, perceberíamos quão distante estaria
sua plástica-poética das novas técnicas de pintura e colagem sur-
realistas. Por certo, o estatuto de sombra que Artaud nega às suas
figuras também estaria indicando que elas não se comportam
como sombra de sua escrita. Elas não são palavras, mas tampou-

28
Tradução: “Assim é, portanto, que os quadros surrealistas são claros. Quando
não se tem medo de suas luzes sinistras. E me agrada que haja nos quadros
surrealistas coisas brancas, mas em geral os quadros surrealistas são negros. [...].
Tudo que não tem um lado inquietante, insólito ou tenebroso não foi jamais
surrealista, com efeito”.
29
Tradução: “E depois, Mr. Archtung, eu desenho. / Quero dizer que eu não
desenho, mas que ao lado do que escrevo, eu faço figuras que não são palavras,
mas barras, não sombras”.
220 Antonin Artaud

co se comportam como fundo – ilustração – do texto. Ou ainda,


em outro texto escrito em 1946 sobre seus desenhos, ele indi-
ca: “comme des ombres au fond d’un creux qui ne seraient pas
seulement son ombre mais un être vivant de plus et qui jouent
alors d’ombre en ombre par-dessus la tête du creux”30 (1985a, p.
267). A sombra é outro ser e não seu contrapeso. A sombra é ela
também um “corpo animado” que surge da cavidade ou, como
temos visto, dessa relação ativa entre os corpos e os vazios.
Sobre seus desenhos, ele escreve ainda:

Je veux dire qu’il y a dans mes dessins une espèce de morale


musique que j’ai faite en vivant mes traits non avec la main seu-
lement, mais avec le raclement du souffle de ma trachée-artère,
et des dents de ma mastication. – Et ce ne sont pas des choses
qui se voient au microscope, mais ce ne sont pas non plus des
choses qui se voient si on veut s’obstiner à les voir sur la chape
de cet angle nature31 (1985a, p. 267).

Há aqui uma visibilidade aliada aos traços enquanto ve-


tores de forças. O corpo que desenha não se restringe às mãos.
Outra, a transformação da anatomia corporal que se impõe no
ato de desenhar igualmente se impõe ao olhar humano sobre
seus desenhos. Lembremos que Artaud nos falou de uma trans-
formação do olhar por meio de um “descolamento da retina”,
sublinhando, desse modo, um transtornar da lógica do visível e
do invisível. Ora, se poderia assinalar que a lógica das telas sur-

30
Tradução: “como sombras no fundo de uma cavidade, que não seriam apenas
sua sombra, mas um corpo animado a mais, e que se movem, então, de sombra
em sombra por cima da cabeça da cavidade”.
31
Tradução: “Quero dizer que há em meus desenhos uma espécie de moral musical
que eu fiz vivendo os meus traços não apenas com a mão, mas também com a
raspagem do sopro em minha traqueia-artéria, e dentes de minha mastigação. – E
não são coisas que se veem no microscópio, mas tampouco são coisas que se veem
quando se quer obstinadamente vê-las sobre a chapa deste ângulo natural”.
Interjeições 221

realistas, tal qual Artaud a percebe, seria uma lógica que cambia
o visível mas não a visibilidade. Seria preciso compreender com
Artaud que a visibilidade não é somente uma qualidade do vi-
sível, mas, anteriormente, condição ou campo de possibilidade
de transformação da arquitetura dos corpos. No tocante à prá-
tica dos desenhos, esse comportamento nos indica que o corpo,
o olho, a retina, não se pautam nos paradigmas fisiológicos, e
alteram a lógica mesma do organismo orgânico ou da “chapa
natureza”, como disse o poeta. Mas, tampouco, Artaud iria in-
serir sua “retina descolada” no quadro das filosofias do espírito
– olho signo de vidência, vínculo entre o mundo visível e o invi-
sível, o natural e o sobrenatural, o concreto e o abstrato, o corpo
e o espírito. Ao contrário, o “descolamento da retina” é índice
de dilaceramento com um corpo presa do dualismo. Por meio
dos seus desenhos-escritos, ele nos introduz nesse dilaceramento
da própria organização dos corpos, em que não se trata mais
de substituir uma lógica por outra (a do consciente cedendo à
do inconsciente surrealista), mas de perfurar a lógica que nos
envolve devolvendo-lhe sua própria arbitrariedade. Doravante,
sua ruptura para com a espacialidade dos corpos viria necessa-
riamente romper com a lógica temporal linear. As telas surrealis-
tas nos apresentariam também outra ordem temporal que não a
da linearidade. Essa ordem do inconsciente – tomada enquanto
automatismo pelo surrealismo – não viria a se “descolar” da es-
truturação orgânica pautada pelas representações nos “objetos
postos em relevo e bem desenhados”. Mesmo se a estranheza é
inquietante, estamos ainda na ordem dos objetos nomeáveis.32

32
Antonin Artaud, no seu texto Les tableaux surréalistes [Os quadros surrealistas],
cita diversos pintores surrealistas, entre eles: Masson, Dalí, Giacometti, Picasso.
Observamos a impossibilidade em situar – no que diz respeito à questão do “re-
levo” – esses diferentes pintores sobre o mesmo plano. No entanto, nos parece
que a reflexão de Artaud continuaria permitindo elucidar alguns pontos da pin-
tura de Salvador Dalí e se esboçaria deveras discutível para os outros pintores
por ele citados.
222 Antonin Artaud

No projeto plástico de Artaud vemos, ao contrário disso,


uma luta que ele opera com as malversações do corpo no do-
mínio do visível. É um combate contra o corpo dividido pelo
espírito e esvaziado pelo organismo – combate contra o corpo/
objeto, contra a possibilidade, portanto, de representá-lo, con-
tra a sobredeterminação de uma “forma” corpo. Assim ele nos
deixou sua luta: “c’est que cette lutte dans son essence ne cesse
pas d’être signifiée concrètement par des lignes et par des points.
/ Ces points sont semés sur la page. / Ces lignes sont ce qu’on
pourrait appeler des lignes interstitielles”33 (1985a, p. 267).
A ideia de uma linha intersticial poderia nos conduzir na
reflexão acerca da ruptura espaço-temporal operada em seus de-
senhos-escritos, assim como na problematização da própria ideia
de linha para o poeta. Ou seja: na precisão de qual linha é recu-
sada por sua plástica e no que ele entende por linha intersticial.
Frisamos que o tempo rompido é esse da linearidade da vida tan-
to quanto esse da estruturação orgânica do corpo. Como efeito
dessa ruptura, encontramos a significância não mais nos objetos
nomeados, mas nos traços de um corpo semeado nos interstícios
da linha. Essas linhas ainda aparecem assim: “Interstitielles elles
sont, étant comme en suspens dans le / mouvement qu’elles ac-
compagnent, / mouvement qui bouscule le souffle”34 (1985a,
p. 267). Suspensão e sopro: elementos fundamentais da plástica
poética de Artaud.
O sopro é o movimento da linha ou dos pontos semeados.
Se poderia dizer que em torno do sopro são muitas as metáforas
temporais possíveis e que não deixaram de inspirar os escritores
ao longo dos tempos. Por exemplo, o sopro enquanto instante

33
Tradução: “é que esta luta, em sua essência, não cessa de ser significada concre-
tamente por linhas e por pontos. / Estes pontos são semeados sobre a página. /
Estas linhas são o que poderíamos chamar de linhas intersticiais”.
34
Tradução: “Intersticiais elas são, estando como suspensas no / movimento que
acompanham, / movimento que sacode o sopro”.
Interjeições 223

do esvaecer do tempo ou o sopro ausência, suspiro do passado.


Seria preciso sublinhar que em Artaud o sopro ganha – para além
do tempo – uma amplitude espacial justamente na presença das
linhas intersticiais. Como se, por meio de seus cadernos dese-
nhados e escritos, acedêssemos a certa espacialização do tempo.
Trata-se de romper com a linha da escrita e da leitura. O tem-
po ganha direções inusitadas que não somente essa da esquerda
para a direita, como aliás nos exigem como gesto e modo de ler
muitas das páginas de seus cadernos. A partir de seus desenhos-
-escritos, o tempo espacializado recorre ao sopro e às linhas in-
tersticiais nos gestos ou movimentos que semeiam a página. As
linhas intersticiais fissuram o tempo e escavam o espaço. Elas
nos aparecem, desse modo, como espaço do tempo que conduz
a musicalidade35 plástica de Artaud: “Je crois qu’il reste alors non
dans l’espace mais dans le temps, à ce point de l’espace du temps
où un souffle de derrière le coeur tient l’existence et la suspend”36
(1985a, p. 182). A suspensão é aliada do sopro. São os interstí-
cios que se abrem. Neles deveriam surgir as forças geradoras de
sua plástica: “eu quero dizer da emoção geradora do desenho”
(1985a, p. 110).
A “espontaneidade do traço” – afastada de um reduto au-
tomático – iria se conciliar com a tentativa insistente de crivar
os corpos – devolver-lhes os vácuos, as passagens. É nesse vácuo
(nessa sutil passagem ou nas linhas intersticiais) que o traço vai
agir: ele porta a força geradora em suas nuanças de quebra, de

35
Em nosso trabalho – por motivos de recorte da questão – estamos tratando a
musicalidade na sua íntima relação com a poética de Artaud. Mas não deixa-
mos de indicar que Artaud em muito expandiu suas relações com o domínio
da música. Suas performances teatrais, já na década de 1930, exploravam sons,
ruídos, percussões que posteriormente inspiraram a poesia letrista ou mesmo a
música concreta. Para tanto, ver, por exemplo, Marc Chalosse (2002, p. 246).
36
Tradução: “Eu penso que ele jaz, então, não no espaço, mas no tempo, neste
ponto do espaço do tempo onde um sopro detrás do coração toma a existência
e a suspende”.
224 Antonin Artaud

corte, de falha. O traço respira enquanto a linha silencia. Dele


ouvimos o balançar do corpo (o alquebrar de sua própria arqui-
tetura formal), a mão que treme, o sopro que infla.

3.1.1. Letra e corpo

É assim que diante dos cadernos de Artaud nos encontra-


remos face à reunião de composições, face ao manancial prático
e plástico, ao compêndio de gestos e, ainda, à performance da
nova escrita que, posteriormente, vai adentrar os suportes de seus
grandes desenhos-escritos. O sopro e as linhas intersticiais, assim
como o corte e o raio fulminante – geradores de “novos corpos
de sensibilidade” – nos alertam para a força musical presente
nas manifestações de Artaud. Como lembra Derrida: “Il promet
quelque chose d’essentiel à ce qu’Artaud entends toujours par la
peinture: affaire de sonorité, de timbre, d’intonation, de tonner-
re et de détonation, de rythme, de vibration, l’extrême tension
d’une polyphonie”37 (1986, p. 62). É aí também onde se localiza
toda a sua última poesia. De nossa parte, relevamos que as ideias/
gestos de corte e sopro se manifestariam como as grandes aliadas
na sua plástica-poética de traços polifônicos.
Quanto ao sopro, Artaud escreveria: “Or je connais la va-
leur plastique / objective du souffle, / le souffle c’est quelque /
chose dans l’air / ce n’est pas de l’air / remué / seulement”38
(2004b). Não seria somente a atividade fisiológica do sopro que
oxigena o corpo. O poeta vai buscar o momento em que a trans-
mutação se concretiza. O momento em que o ar se materializa
em sopro. Em que o sopro resta, portanto, como matéria do/no

37
Tradução: “Alguma coisa de essencial promete no que Artaud entende ainda
por pintura: questão de sonoridade, de timbre, de entonação, de trovão e de
detonação, de ritmo, de vibração, a extrema tensão de uma polifonia”.
38
Tradução: “Ora, eu conheço o valor plástico / objetivo do sopro, / o sopro é
alguma / coisa no ar / não é o ar / revolvido / somente”.
Interjeições 225

ar. Inúmeros dos seus desenhos nos cadernos39 figuram caixas


vazias. Elas se apresentam muitas vezes através de uma perspec-
tiva que dá ao traço – além, óbvio, da visão de profundidade –
um caráter de movimento, de desdobramento, de deslizamento,
de respiração. Ainda, em seu desenho “A morte e o homem”,
encontram-se – além do traço reto e da página vazia – essas duas
caixas sob mãos delineadas em vermelho, como se tocando as
caixas essas mãos tocassem um circuito elétrico. Artaud escreve:

Ce dessin est une sensation qui a passé en moi/ comme on dit


dans certaines légendes que la mort passe. / Et j’ai voulu saisir
au vol et dessiner absolument nue. / Le mouvement de la mort
réduit à ses os essentiels / sans plus. / Un homme qui tombait
dans le vide et en tombant a volé à un autre homme les boîtes
de souffle de ses poumons […]. / Il faut regarder ce dessin
encore une fois après l’avoir vu déjà une fois40 (2004b, p. 149).

Aí estão as caixas de Artaud: recipientes do sopro, lugar


possível para a transmutação do ar na matéria do sopro e, ainda,
para que o sopro persista como matéria dentro do ar. Blocos
áridos e aéreos41 ao mesmo tempo:

39
Os cadernos de Artaud estão repletos desses pequenos desenhos que figuram
tais caixas ou artefatos pontiagudos, pregos, ou, ainda, formas coníferas e tubu-
lares. São, portanto, figuras do sopro, do corte e da perfuração que perfazem os
gestos por excelência de sua plástica.
40
Tradução: “Este desenho é uma sensação que passou em mim / como se diz
em certas lendas que a morte passa. / E eu quis apanhá-la no voo e desenhá-la
absolutamente nua. / O movimento da morte reduzido a seus ossos essenciais
/ sem mais. Um homem que tombava no vazio e caindo roubou de um outro
homem as caixas de sopro de seus pulmões [...]. É preciso olhar este desenho
uma vez mais, depois de tê-lo visto já uma vez”.
41
No texto, Artaud escreveria ainda: “et comme des corps de / sensibilité / nou-
veaux / ces dessins / sont là / qui les commentent, / les aèrent / les éclairent”
(2004b, grifo meu). [Tradução: “e como corpos de / sensibilidade / novos / estes
desenhos / são aí / quem os comenta, / areja / e esclarece”.]
226 Antonin Artaud

Je dis / que voilà dix ans qu’avec mon souffle / je souffle des for-
mes dures, / compactes / opaques, / effrénées, / sans voussure, /
dans le limbes de mon corps non fait / et qui de ce fait se trouve fait
/ et que je trouve chaque fois les 10 000 êtres pour me critiquer,
/ pour obturer la tentative de l’orée d’un infini percé. // Tels
sont en tout cas les dessins dont je constelle tous mes cahiers42
(2004b, p. 58, grifo meu).

Não se pode esquecer que se trata, para Artaud – desde


seu retorno –, de se refazer um corpo. Para tanto, ele vai levar
suas ideias ao encontro das forças que as geram, ele vai interrogar
a linguagem por meio de uma escrita que é sempre matéria. O
rompimento para com uma escrita linear – sugerida pelas linhas
intersticiais e pelo valor dado ao sopro – recorreria, ainda, a outro
comportamento que vem somar-se a este. Trata-se de devolver à
linguagem um estatuto material. É assim que em seus cadernos a
letra pode se tornar figura. Daí, também, todos os seus últimos
escritos buscarem destituir certa noção de texto para encontrar
a possibilidade material da linguagem – tal qual ele vislumbra-
va para o teatro da crueldade. O que Artaud busca destituir do
texto seria seu relevo psicológico prenhe de interioridades, para
justamente apresentar um trabalho que perfura as superfícies,
incluindo os suportes materiais do texto, ou seja: papel, letra,
posição na página, tinta, pigmentos, traço, musicalidade, sopro.
A superfície perfurada é dentro e fora, côncavo e convexo ao
mesmo tempo. E assim, o gesto que perfura o texto é o mesmo
que faz manifestar a escrita com seus traços trêmulos, papel en-
rugado, que porta doravante as marcas do próprio gesto que a faz
42
Tradução: “Eu digo / que aí vão dez anos que com meu sopro / sopro formas
duras, / compactas, / opacas, / desenfreadas, / sem curvatura, / no limbo de
meu corpo não feito / e que por este fato se acha feito / e que eu encontro a
cada vez 10 mil sujeitos pra me criticar, / pra obturar a tentativa da borda de
um infinito perfurado. // Tais são, em todo caso, os desenhos de que eu constelo
todos os meus cadernos”.
Interjeições 227

surgir: “là où le dessin / point par point / n’est que la restitution


d’un forage, / de l’avance d’une perforeuse”43 (2004b, p. 56).
As máquinas perfurantes são figuras insistentes de seu uni-
verso plástico. Elas seriam o artefato necessário para fazer “sal-
tar a carcaça da linguagem”, tal qual ele projetava em seu teatro
cruel: artefatos de reconstrução dos corpos. Tal reconstrução (ou
refeitura) parte dos orifícios, das cavidades, das aberturas, dos
vazios – pontos de infecção, de apropriação do mal como força
de vida. Perfurar, golpear e cortar seriam os gestos cruéis que se
destacariam em sua plástica-poética: “Comment? / Par un coup
/ anti-logique / anti-philosophique, / anti-intelectuel, / anti-dia-
lectique, / de la langue / par mon crayon noir appuyée / et c’est
tout”44 (2004b, p. 55).
Sublinhando a aliança entre: primeiro, as ideias que per-
fazem sua plástica por meio dos textos que acompanham seus
desenhos; e segundo, o próprio olhar para a plasticidade dos seus
cadernos e dos grandes desenhos-escritos, encontramos o traço
em sua possibilidade de agir contra a linha. Ele vai portar o golpe
da língua contra a própria língua. Para adentrarmos nesse uni-
verso, destacaremos em primeira instância o lugar que as glosso-
lalias vêm ocupar na plástica-poética de Artaud. Elas se apresen-
tam como cortes no interior das palavras, no ritmo do poema,
imprecação contra a língua feita a partir de sua própria matéria.
É o desmembramento da língua oferecendo autonomia à letra.
Portanto, para que possamos tornar visível a projeção das glos-
solalias no interior de uma plástica e de uma poética, deveremos
destacar a função da letra – tendo como base o procedimento
que a isola no interior de um sistema linguístico no qual pre-
domina o sentido ou o significado. Relevado tal procedimento,

43
Tradução: “ali onde o desenho / ponto por ponto / não é mais que a restituição
de uma brocagem, / do avanço de uma perfuradora”.
44
Tradução: “Como? / Por um golpe / antilógico / antifilosófico / anti-intelectual
/ antidialético / da língua / por meu lápis negro apoiada / e isso é tudo”.
228 Antonin Artaud

indicamos que a letra, assim isolada, vai assumir dois estatutos


relevantes na poética e na plástica de Artaud.
O primeiro deles: força de proferição que é encantação e
imprecação poética, as cordas vocais e a língua (física) assumem
o primeiro plano – o que, assim como em seus desenhos, nos
leva a pensar que também sua poesia não é feita só com a mão
que escreve:

Quand j’écris, / j’écris en général/ une note d’un/ trait.45 /


Mais cela ne / me suffit pas / et je cherche à prolonger / l’action
de ce que j’écris dans / l’atmosphère. / Alors / je me lève / je
cherche / des consonances, / des adéquations / de sons / des
balancements du corps / et des membres / qui fassent acte46
(2004b, s. p.).

São as letras, assim isoladas, que nas glossolalias se reúnem


em uma ordem de adequação e consonância que as transforma
em ato.47 A abertura de “Pour en finir avec le jugement de dieu”,
texto escrito para ser apresentado em uma emissão radiofônica
na Rádio Difusão Francesa (e que foi censurado), se inicia com
uma breve frase e uma sequência de glossolalias: “Il faut que tout
45
Ressaltemos a palavra trait e o traço que a percorre do primeiro T ao último T
(anexo 12).
46
Tradução: “Quando escrevo / escrevo em geral uma nota / num traço. Mas isso
não basta / e procuro prolongar / a ação disto que es/ crevi n’/ atmosfera. Então
eu/ me levanto / procuro / consonâncias, / adequações / de sons / balanceamen-
tos do corpo / e membros / que façam ato”.
47
Paule Thévenin (1993) se debruçou sobre as glossolalias da última poesia de Ar-
taud em um trabalho exaustivo que contemplou uma vasta pesquisa linguística
e de textos religiosos no intuito de oferecer aos leitores combinações contun-
dentes que demonstrariam a não casualidade do gesto poético de Artaud. Aqui,
relevo outro recorte para as glossolalias. Elas aparecem inseridas nesse contex-
to de uma plástica-poética onde a letra torna-se elemento fundamental para a
construção de uma materialidade da linguagem e para com o rompimento de
uma organização linear da língua e orgânica dos corpos. É nesse sentido que as
glossolalias de Artaud participariam dessa reivindicação mais ampla de perfazer
“explosões de corpos” ou “corpos sem órgãos”.
Interjeições 229

soit rangé / à un poil près / dans un ordre / fulminant. / Kré puc


te / Kré puk te / Pek li le / Kre pek ti le / e Kruk/ Pte”48 (1996d,
p. 70). Destaca-se o destino de proferição pensado para a apre-
sentação do texto: a sonoridade que se constrói da combinação
efetuada pelo poeta – ela chama o corte (“Kré”, “Kruk”) e, ainda,
a força que se concentra na caixa torácica para proferirmos – e
aqui no sentido físico de projetar, lançar para fora, cuspir – as
combinações “puk te”, “pek ti le”.
Em carta à Paule Thévenin, depois de censurada sua apre-
sentação, Artaud diria: “Il y en a qui mangent trop et d’autres
qui comme moi ne peuvent plus manger sans cracher”49 (1996d,
p. 147). Esse é o efeito buscado pelo poeta em sua combinação
de letras: corte e sopro (que cospe para fora) se apresentando em
uma ordem fulminante (“à un poil près”). Nessa mesma ocasião,
Artaud declararia em carta ao diretor da Radio Difusão, Sr. Wla-
dimir Porché: “Je voulais une oeuvre neuve […], une oeuvre où
l’on sent tout le système nerveux éclairé comme au photopho-
re avec des vibrations, des consonances qui invitent l’homme À
SORTIR AVEC son corps”50 (1996d, p. 131). Se as glossolalias
devolvem à língua seu corpo, tal corpo, no entanto, deveria des-
membrar/perfurar/cortar a organização orgânica da linguagem;
esta, para o poeta, serviria justamente à desapropriação da ma-
téria em proveito dos sentidos e significados imateriais. Desse
modo, a letra se apresenta, se manifesta em sua poesia, como
corpo da língua.
Um segundo movimento, que também se destacaria por
meio do procedimento que isola a letra, protegendo-a do mas-

48
Tradução: “Importa que tudo se arranje / por um fio / numa ordem / fulminan-
te. / Kré puc te / Kré puk te / Pek li le / Kre pek ti le / e Kruk / Pte”.
49
Tradução: “Uns há que comem demais e outros, como eu, que não podem mais
comer sem cuspir”.
50
Tradução: “Eu queria uma obra nova [...], uma obra em que se sente todo o
sistema nervoso iluminado, como ao fotóforo, com vibrações, consonâncias
que convidam o homem A SAIR COM seu corpo”.
230 Antonin Artaud

sacre de sentido, para devolver à língua um corpo, vai se revelar


sobretudo por meio da plasticidade de seus cadernos e de seus
desenhos-escritos. O segundo ponto é: plasticamente, isolar a le-
tra é torná-la figura. A letra é desenhada e vem assumir um esta-
tuto de corpo. Elas tornam-se membros mutilados, osso-letra em
destaque no desenho L’ être et ses foetus51 – letra feto do ser (lettre
e l’ être em francês, respectivamente). Desenho onde se vê uma
espécie de cova, corpos se decompondo da carne por meio de tra-
ços finos, quase imperceptíveis, que fazem proliferar membros,
ossos em escala de repetição encenando um jogo entre elemen-
tos linguísticos e anatômicos:52 o osso, o um e a letra “i”, assim
como a letra “o”, o sol, “o” também de Ar-TÔ.53 No desenho
L’Immaculée conception aparece o mesmo osso, a tíbia, o um e a
letra “i”, que se tornam o pescoço cortado da cabeça assim como
do corpo. Os traços dos raios de sol no desenho L’ être et ses foetus
passam pelo interior do círculo do canhão, à direita na página.
A letra “o”, sol, Ar-TÔ é agora roda de canhão e figura tubular
que engendra o corpo (na parte central do desenho). Em outro
desenho, intitulado Poupou-Rabou, o canhão aparece no alto da
página à direita, envolvido pelos raios de sol. De uma parte, sol:
ele ilumina a cena. De outra parte, canhão: ele elimina a cena.
No caderno de número 230,54 de fevereiro de 1947, encontra-
mos na página de número 13 duas letras “f” em traço forte de lápis
preto ocupando o lugar central, assim como a maior parte da pági-
na, e caindo sobre o poema que segue transcrito: “C’est ma manière
de tout / emmerder. Pas un corps / qui ne parte de ma / langue et de

51
Tradução: “O ser e seus fetos”
52
Especificamente nesse caso, a leitura associativa entre os elementos linguísticos
e anatômicos foi alertada no seminário ministrado pelo professor Jean François
Chévrier, na École des Beaux Arts de Paris, no período de 1999-2000.
53
Assim como ele inscrevia/escrevia seu nome em muitos textos desse período.
54
Tal numeração é a referência empregada pela Biblioteca Nacional Francesa para
os cadernos microfilmados de Artaud. Os dados que seguem no corpo do texto
foram adquiridos em nossas pesquisas junto a esses microfilmes.
Interjeições 231

mes gencives / écartelées”55. Ora, mais uma vez a letra é corpo: ela
sai (no sentido de pertencer) da gengiva e da língua despedaçadas. E
mais: ela parte da gengiva e da língua despedaçando-as, como um
corpo entrando em choque com outros corpos.
Diríamos, ainda, que os desenhos-escritos de Artaud sur-
gem no interior dessa lógica associativa e fragmentária, como
um deslocar de figuras e traços – corpo e letra – que jogam, se
prolongam, se multiplicam, se interferem. Senão, como pensar a
associação mesma entre desenho e escrita? No entanto, abrir-se
ao fragmento é contar com a perda, com o risco do não verifi-
cável, como alerta Didi-Huberman em suas pesquisas sobre o
visível e o legível:

Comment ce que nous appelons la région du visuel serait-


elle vérifiable au sens strict du terme, au sens “scientifique”,
puisque elle-même n’est pas un objet de savoir ou un acte de
savoir, un thème ou un concept, mais seulement une efficacité
sur les regards?56 (1990, pp. 29-30)

Em nossa leitura de Artaud, estaríamos frisando, entre ou-


tras, a resistência ao saber que atravessa sua experiência do pen-
samento. Situando-nos, portanto, nessa zona de risco, onde não
se pretende evocar Artaud à maneira de Artaud, mas, tampouco,
imputar-lhe um saber que teria sido – ao longo de sua obra –
posto em questão, desmembrado, fragmentado ou escavado atra-
vés desse trabalho artesanal/manual57 do pensar/criar:

55
Tradução: “É minha maneira de tudo / emerdar. Nenhum corpo / que não
parta da minha / língua e das minhas gengivas / esquartejadas”.
56
Tradução: “Como isto que nós chamamos a região do visual poderia ser verifi-
cável, no sentido estrito do termo, no sentido ‘científico’, visto que ela mesma
não é um objeto de saber ou um ato de saber, um tema ou um conceito, mas
tão-somente uma eficácia sobre os olhares?”
57
A propósito de um de seus desenhos, ele escreve: “Méritée par rapport à toutes
les forces qui dans le temps et l’espace s’opposent au travail manuel, et non
232 Antonin Artaud

Ce dessin58 comme tous mes autres dessins n’est pas celui d’un
homme qui ne sait pas dessiner, mais celui d’un homme qui a
abandonné le principe du dessin et qui veut dessiner à son âge, le
mien, comme s’il n’avait rien appris par principe, par loi ou par
art, mais uniquement par expérience du travail59 (1984b, p. 340).

Alertemos, ainda, para o fato de que a prática (o trabalho)


de uma escrita desenhada (uma letra corpo) – visando à cons-
trução desses novos corpos de sensibilidade; trazendo para a pá-
gina os traços portadores “da emoção geradora do desenho”, da
“língua e gengiva despedaçadas”, do “balançar do corpo” ou do
“limpar a garganta do sopro da artéria” – se perfez tendo como
suporte cadernos de escola. Artaud escrevia sobre esses pequenos
cadernos destinados a aprender a escrever, às aulas de caligrafia
– suportes tanto de uma “consciência da criança” quanto da-
quela do “analfabeto da língua”: “La page est salie et manquée,
le papier froissé, les personnages dessinés par la conscience d’un
enfant”60 (1984b, p. 124).
A consonância entre (a) uma poética polifônica – que res-
titui à letra sua força de proferição, sua presença corpórea; (b)
uma plástica escritural – que altera a lógica linear e torna mate-
rial a escrita; e (c) a presença do suporte – destinado ao contato
primeiro e material com a própria linguagem – como participan-

seulement manuel mais nerveux et physique de la création” (1984b, p. 340).


[Tradução: “Merecimento em face a todas as forças que no tempo e no espaço
se opõem ao trabalho manual, e não somente manual, mas também nervoso e
psíquico da criação”.]
58
Não se sabe a qual desenho Artaud se refere nesse texto, como indica nota da
editora (1984b, p. 534).
59
Tradução: “Este desenho, como todos os meus outros desenhos, não é o de-
senho de um homem que não sabe desenhar, mas sim o de um homem que
abandonou o princípio do desenho e que quer desenhar em sua idade, a minha,
como se ele não tivesse aprendido nada por princípio, por lei ou por outra arte,
mas unicamente pela experiência do trabalho”.
60
Tradução: “A página é suja e falhada, o papel, amarrotado, as personagens,
desenhadas pela consciência de uma criança”.
Interjeições 233

te da prática dos desenhos, nos leva a considerar que Artaud se lê,


literalmente, ao pé da letra: “Et ça veut dire qu’il est temps pour
un écrivain fermer boutique, et de quitter la lettre écrite pour
la lettre”61 (1984b, p. 60). A letra escrita teria restado prepon-
derantemente ao lado da linearidade. Artaud procuraria a letra
como traço, letra escritural e não escrita, se poderia dizer: uma
espécie de letra-verbo.

3.2. Expressão e pressão

Por meio do isolamento da letra vimos surgir essas figuras-


-corpos de Artaud. A prática do isolamento como condição do
tornar figura aparece na pintura de Francis Bacon tal qual vista
por Gilles Deleuze (1996, pp. 9-11) – a “lógica da sensação”
que se afasta da emoção, o “figural” que se desvincula do figura-
tivo, o corpo não representado porém vivido. O isolamento da
figura seria, como alerta o filósofo, retirá-la do plano ilustrativo,
romper com o caráter narrativo. Ainda: duas vias se apresentam
como plasticamente possíveis para romper com o figurativo –
por meio da forma pura e abstrata ou por meio do que Deleuze
nomeia como sendo o “figural” (prática da extração ou do iso-
lamento da figura, impossibilitando a passagem de uma figura
a outra, passagem que é sempre da ordem da narrativa). Nesse
mesmo ensaio, o filósofo nos alerta para as consonâncias entre
Bacon e Artaud: “on peut croire que Bacon rencontre Artaud sur
beaucoup des points: la Figure c’est précisément le corps sans or-
ganes (défaire l’organisme au profit du corps, le visage au profit
de la tête)”62 (Deleuze, 1996, p. 33). Artaud teria ainda escrito:

61
Tradução: “E isso quer dizer que é hora de o escritor fechar negócio, e abando-
nar a letra / escrita pela letra”.
62
Tradução: “Bacon se aproxima de Artaud em muitos pontos: a Figura é o corpo
sem órgãos (desfazer o organismo em proveito do corpo, o rosto em proveito da
cabeça)”. Edição brasileira: DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensa-
234 Antonin Artaud

“Le visage humain est une force vide, un champ de mort. / La


vieille revendication révolutionnaire d’une forme qui n’a jamais
correspondu à son corps, / qui partait pour être autre chose que
le corps”63 (1984b, p. 206).
Decerto, aí se insere a afirmação de Deleuze do rosto que
se desfaz em proveito do corpo. A reivindicação de Artaud seria,
ainda, a de encontrar a face – dar-lhe corpo – no interior desse
campo de morte que é o rosto: “Ce qui veut dire que le visage
humain n’a pas encore trouvé sa face/ et que c’est au peintre à la
lui donner”64 (1984b, p. 206).
Atentos à reivindicação do poeta e inspirados65 pelo diálo-
go proposto pelo filósofo, caminharíamos em direção à letra-ver-
bo de Artaud tendo como horizonte a reflexão de Deleuze acerca
de um corpo vivido mas não representado e que, apesar disso, se
perfaz no campo da visibilidade. A letra-verbo indicia uma dis-
cussão a propósito da encarna-ação. Ela nos conduz na reflexão
acerca da forma e da força, ou, como gostaríamos de sugerir: da
expressão e da pressão, respectivamente. No tocante à plástica-
-poética de Artaud, ela incidiria de maneira mais precisa sobre a
sequência de retratos desenhados pelo poeta a partir de junho de
1946 até sua morte em 1948. Pois, como introduzi acima, o ros-
to representaria – no interior da história da arte e da cultura oci-
dental e latina – o ícone expressivo por excelência. Ainda: ícone

ção. Equipe de tradução: Roberto Machado (coord.) et al. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2007, p. 52. (Coleção Estéticas).
63
Tradução: “O rosto humano é uma força vazia, um campo de morte. / A velha
reivindicação revolucionária de uma forma que nunca correspondeu a seu cor-
po, / que partia a ser outra coisa que não o corpo”.
64
Tradução: “O que quer dizer que o rosto humano não encontrou ainda a sua
face, e cabe ao pintor lhe dar uma [...]”.
65
Valeria delimitar que não se trata aqui de traçar a via das possíveis consonâncias
entre Bacon e Artaud, tampouco se trata de promover uma leitura “deleuziana”
aplicada aos desenhos do poeta. Interessa-nos ressaltar algumas das consonân-
cias apenas indicadas no ensaio de Gilles Deleuze, na medida em que elas apro-
fundam a discussão do que tratei aqui.
Interjeições 235

mental, desprovido, portanto, de corpo – “que teria partido para


ser outra coisa que não o corpo”. Ou, na formulação de Deleuze,
onde se diferencia cabeça (tête) e rosto (visage). Tal diferenciação
opera sobre o mesmo plano levantado por Artaud – aquele onde
o rosto teria se separado do corpo. Para o filósofo, trata-se de re-
tornar à reivindicação do poeta, assim como à reivindicação que
se impõe na pintura de Bacon, no intuito de encontrar os traços
animais da cabeça, seu espírito corpo, o sopro vital capaz de de-
formar o próprio corpo orgânico do homem (Deleuze, 1996,
pp. 19-20). Para Artaud, trata-se de um combate para devolver
o rosto ao corpo. Para encontrar a sua face. Desfazendo-se, ne-
cessariamente, das organizações impostas sobre o rosto – linhas
desencarnadas, espíritos maléficos que o poeta busca combater
com a força do traço. Seria, como vimos, uma operação que visa
encarnar a letra. Tal operação vai se efetuar como plástica privi-
legiada do traço e da força combatendo a linha e a forma morta:
“Je ne suis pas inclus dans le système vampire, / […] et puis sans
anatomie et avec de la force”66 (Artaud, 1988, p. 272).
É a presença desse combate que nos interessaria manifestar
e discutir. Não se tratando, por conseguinte, de uma análise dos
retratos67 desenhados por Artaud mas, e sobretudo, de fisgá-los
enquanto aparição privilegiada da combinação entre o traço e a
força contra a linha e a forma. Combinação que, como temos
visto, participa de uma reivindicação mais ampla que desfaz as
experiências calcadas em uma lógica de sentido para restituir-
-lhes as sensações, como diria Deleuze, ou, ainda, como diria
Artaud, para criar “novos corpos de sensibilidade”: “Le visage
humain est provisoirement, / je dis provisoirement, / tout ce

66
Tradução: “Eu não estou incluso no sistema vampiro, [...] e, logo, sem anato-
mia e com força”.
67
Alertamos que nosso trabalho visa aprofundar as relações entre a plástica e a
poética e não um estudo aprofundado e específico sobre os desenhos e retratos
feitos por Artaud.
236 Antonin Artaud

qui reste de la revendication, / de la revendication révolutionaire


d’un corps qui n’est pas et ne fut jamais conforme à ce visage”68
(Artaud, 1984b, p. 188).
Em Artaud, o rosto é uma força vazia, um campo de morte
(“le visage humain est une force vide, un champ de mort”), onde
os traços dos retratos viriam se inscrever. Espaço de cruzamento
entre o branco do papel e os buracos vazios do rosto humano.
A preocupação inicial porta, com efeito, sobre um rosto ainda
crânio, radiografia da morte, cavidades do rosto, aí onde se en-
contram as forças vazias que o poeta busca traçar em vida. A face
surge do rosto morto. Os traços partem das cavidades:

[...] que le visage humain n’a pas encore trouvé sa face et que
c’est au peintre à la lui donner. Mais ce qui veut dire que la face
humaine telle qu’elle est se cherche encore avec deux yeux, un
nez, une bouche et les deux cavités auriculaires qui répondent
aux trous des orbites comme les quatre ouvertures du caveau de
la prochaine mort69 (1984b, p. 206).

As cavidades seriam os lugares, por excelência, de prolife-


ração do campo de morte (que é o rosto), lugar onde o rosto se
desfaz em proveito do corpo. Elas insinuam três direções, que
já aparecem no texto emblemático “O rosto humano” – texto
que inaugura sua nova prática de retratos. Primeira direção: não
se dá corpo (ou face) ao rosto, simplesmente negando-lhe sua

68
Tradução: “O rosto humano é provisoriamente, / digo provisoriamente, / tudo
o que resta da reivindicação, / da reivindicação revolucionária de um corpo que
não é nem nunca foi conforme a esse rosto”.
69
Tradução: “[...] que o rosto humano ainda não encontrou sua face e que cabe
ao pintor dar-lhe uma. Mas isto quer dizer que a face humana tal qual é ainda
se encontra com dois olhos, um nariz, uma boca e as duas cavidades auriculares
que correspondem aos buracos das órbitas como as quatro aberturas da cova da
morte próxima”.
Interjeições 237

arquitetura,70 ou seja; a face se encontraria ainda a partir dos


olhos, boca, nariz e ouvidos. Segunda: no entanto, “tal qual ele
é, o rosto ainda não encontrou sua face”, fato que dirige seus
retratos para um campo que se desvincula de qualquer dogmatis-
mo acadêmico: “C’est ainsi qu’il est absurde de reprocher d’être
académique à un peintre qui à l’heure qu’il est s’obstine encore
à reproduire les traits du visage humain tels qu’ils sont; car tels
qu’ils sont ils non pas encore trouvé la forme qu’ils indiquent et
désignent”71 (1984b, p. 206). Não acadêmico, mas ainda assim
se atendo ao que é o rosto. Procedimento que aponta para uma
terceira via, não menos complexa. Terceira: o rosto que ainda
não encontrou sua face não é, para Artaud, o rosto escondido nas
profundezas da emoção. Decerto, há a crítica ao “rosto opaco do
acadêmico”, este que não só não teria atravessado as cavidades,
mas que teria, sobretudo, buscado tamponá-las por meio de uma
pintura espessa, ou, como observou o poeta: “Les portraits de
Holbein ou d’Ingres sont des murs épais”72 (p. 206). No entan-
to, deve-se notar ainda que as cavidades, para Artaud, não são
profundezas a serem expressas ou reveladas, não se trata de retra-
tar as emoções escondidas pela história da arte ou dos indivíduos
reprimidos pela sociedade, não se trata da face enquanto campo
de expressão dos sentimentos. As operações e os gestos plásticos
que buscam um fundo são diferentes daqueles que simplesmente
não encontram o fundo:

Ça veut dire que le cerveau doit tomber, / l’homme que nous


sommes n’a pas été fait pour vivre avec un cerveau, / […]. / il

70
É assim também que não se encontra nada de cubista nos retratos de Artaud.
71
Tradução: “E assim é absurdo repreender por acadêmico um pintor que a esta
altura se obstine ainda em reproduzir os traços do rosto humano tais quais são;
pois tais quais são eles ainda não encontraram a forma que eles indicam e desig-
nam”.
72
Tradução: “Os retratos de Holbein ou de Ingres são muros espessos”
238 Antonin Artaud

n’a pas été fait non plus pour vivre avec les nerfs d’une sensi-
bilité et d’une vitalité limitées, quand sa sensibilité et sa vie //
sont sans fin // et sans fond // comme la vie, / à vie // et pour la
perpétuité73 (1994c, p. 61).

Sem fundo são as cavidades para Artaud. O gesto plástico


é perfurante e não aquele que perfura para trazer à superfície.
As cavidades se localizam na face. A face é superfície (a surfa-
ce), superfície inacessível, ou, como escreveu nas “Interjeições”
de Suppôts et suppliciations: “le gouffre insondable de la face, de
l’inacessible plan de surface”74 (1978b, p. 147).
Dessas três direções se deduz uma operação fundamental
que é gesto poético e plástico em Artaud: há o indício de alguma
semelhança que se mantém apesar do rompimento com o figura-
tivo/narrativo – não se trata de inventar uma outra forma para o
rosto, mas de encontrar a sua própria face. Tal encontro se opera
no plano da superfície – as cavidades da face estão sobre esse
mesmo e inacessível plano (surface) – não se tratando, portanto,
de revelar profundezas. Tais cavidades se oferecem como abismo
do corpo e como corpo do abismo e, ainda: “le gouffre insonda-
ble de la face, de l’inacessible plan de surface par où se montre le
corps du gouffre, le gouffre en corps, ce gouffre le corps, le gouffre
corps”75 (1978, p. 147, grifo meu).
A palavra gouffre é, na origem, golfo; do grego kolpos; e
indica uma bacia largamente aberta pelo mar que avança no in-

73
Tradução: “Isto quer dizer que o cérebro deve cair, / o homem que somos não
foi feito para viver com um cérebro, / [...] / ele tampouco foi feito para viver
com os nervos de uma sensibilidade e de uma vitalidade limitadas, quando a
sua sensibilidade e a sua vida // são sem fim // e sem fundo // como a vida, / por
toda a vida // e pela perpetuidade”.
74
Tradução: “o abismo insondável da face, do inacessível plano de superfície”.
75
Tradução: “o abismo insondável da face, do inacessível plano de superfície por
onde se mostra o corpo do abismo, o abismo em corpo, este abismo o corpo, o
abismo corpo”.
Interjeições 239

terior da terra. Daí seu deslocamento de significado que vem


aproximá-la da palavra “abismo” – buraco vertical, assustador
por sua profundeza e largura. Mas seu sentido inicial se mantém
na associação constante com a palavra “insondável”, que Artaud
não deixou de utilizar no seu poema. Profundeza, portanto, não
atingível pela sonda.76 Abismo sem fundo da face: este, o inaces-
sível plano da superfície.
No poema acima, através da disseminação e da repetição
das palavras gouffre e “corpo” somos levados ao equívoco que
permite desestabilizar os sentidos instituídos, trazendo o abismo
insondável para o inacessível plano da face ou da superfície. O
poema também é gerador de equívocos entre som e sentido –
“le gouffre en corps” e “le gouffre encore”. Ora, esse “ainda”
(“encore”) – não escrito, mas ouvido – dissemina em múltiplas
direções o abismo e o corpo, impossibilitando-nos de fixá-los em
um sentido a ser expresso, fazendo do equívoco a possibilidade
constante de que ele reapareça, sua insistência, seu fato, sua re-
petição. Aqui é onde reencontramos a semelhança que persiste
nos retratos de Artaud, apesar de neles estarmos diante de rostos
nada acadêmicos, tampouco figurativos.77 A semelhança em Ar-
taud é esta que se atém à insistência do fato, sua crueldade.
Para Deleuze, o fato é justamente aquele que vai se opor à
representação. É assim que a violência – que teria causado medo
a Mania Oïfer no retrato citado na nota anterior – não seria da
ordem do horror, de onde se derivam significados e narrativas,
senão que violência da própria sensação que é seca como o é
a crueldade ou a fome para Artaud. Aliás, o poeta diria ainda:

76
A palavra “sonda” vem do nórdico antigo sund – estreito, braço do mar da qual
se origina sundgyrd – percha para sondar a profundidade da água.
77
Em maio de 1947, Artaud faz o retrato de Mania Oïfer e ela lhe diz: “Antonin
Artaud, il me fait peur ce dessin”. Artaud lhe responde: “Bon, je vous ferai en
sylphide élisabéthaine” (1984b, p. 188). [Tradução: “Antonin Artaud, este de-
senho me dá medo / Bem, vou te fazer de sílfide elisabetana”.]
240 Antonin Artaud

“Pauvre, sec et serf doit être le dessin”78 (1984b, p. 131). O


abismo insondável da face chegaria a ser sugerido pelo gesto cruel
que, perfurando as superfícies, acaba por disseminá-lo, deixando
aparecer seco apenas o fato, o fato de sua insistência. Não haveria
nada além desse fato, sem fundo. O gesto cruel é seco e preciso,
são pequenos cortes insistentes, repetidos. Não se trata de narrar
horrores mas de transcorrer, atravessar, disseminar, multiplicar o
crivo eficaz por onde passam as forças, sempre cruéis:

Mes portraits sont ceux que j’ai voulu représenter, / eux-mêmes


voulurent être, / c’est leur destinée que j’ai voulu représenter
sans me préoccuper d’autre chose que d’une certaine barbarie,
oui, d’une certaine CRUAUTÉ hors d’école, mais qui saurait le
retrouver au milieu de l’espèce?79 (1984b, p. 131).

Em seu texto sobre Van Gogh, também somos levados ao


encontro com o plano da superfície – crueldade ou fato. A dis-
tinção que o poeta traça entre a pintura de Gauguin e essa de
Van Gogh elucida, ainda mais, o que vimos buscando sugerir.
Para Artaud, Gauguin vai buscar pintar o mito, o símbolo. Tal
busca se baseia em uma operação que visa “ampliar” as coisas
da vida para alcançar o mito. Em Van Gogh, ao contrário, seria
no lugar das coisas da vida – no terra à terra – que se poderia
“deduzir” o mito (1996d, p. 29). Ora, a operação é de diminui-
ção e não de acréscimo, ela chama o corte, a crueldade, para se
confrontar com o fato, ou ainda: “Il n’y a pas de fantômes dans
les tableaux de / Van Gogh, pas de visions, pas d’hallucinations.
// C’est la vérité torride d’un soleil de deux heures de l’après-

78
Tradução: “Pobre, seco e servo o desenho deve ser”.
79
Tradução: “Meus retratos são aqueles que eu quis representar, / eles mesmos
quiseram ser, / seu destino é o que eu quis representar sem me preocupar com
outra coisa além de uma certa barbárie, sim, de uma certa CRUELDADE sem
escola, mas quem a poderia encontrar no meio da espécie?”
Interjeições 241

-midi”80 (1996d, p. 43). O gesto cruel, que deduz o fato, nos


obriga um outro retorno para com as coisas da vida: instante em
que as forças metamorfoseiam a própria natureza; para Artaud,
instante interjetivo dos novos corpos de sensibilidade como ele
não deixou de ver e se inspirar em Van Gogh:

je dirais que Van Gogh est peintre parce qu’il a recollecté la


nature, qu’il l’a comme retranspiré et fait suer, qu’il a fait gicler
en faisceaux sur ses toiles, en gerbes comme monumentales de
couleurs, le séculaire concassement d’éléments, l’épouvantable
préssion élementaire d’apostrophes, de stries, de virgules, de barres
dont on ne peut plus croire après lui que les aspects naturels ne
soient faits81 (1996d, p. 42, grifo meu).

Impossível não lermos aqui a “pressão elementar” que opera


nos desenhos-escritos de Artaud – corpos da colheita que refazem
a natureza. O Van Gogh de Artaud é prenhe dessa “artesania”
cruel – são os “golpes de pincel” (1996d, p. 45),82 “a cor agarrada
tal qual é prensada para fora do tubo com a impressão, uma após a
outra, dos pelos do pincel na cor” (p. 50)83 – que se agarra ao fazer
corpóreo de cada trabalho e aos corpos mesmos dos artefatos. Van
Gogh não ultrapassou, segundo Artaud, os meios da pura pintura.

80
Tradução: “Não há fantasmas nos quadros de Van Gogh, não há visões, nada de
alucinações. // É a verdade tórrida de um sol de duas da tarde”. Edição brasilei-
ra: ARTAUD, Antonin. Van Gogh: o suicida da sociedade. Trad. Ferreira Gullar.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2003, p. 66.
81
Tradução: “[...] direi que Van Gogh é pintor porque ele reciclou a natureza,
porque ele como que a retranspirou e a fez suar, porque ele fez jorrar em fei-
xes sobre suas telas, em braçadas monumentais de cores, a secular trituração
dos elementos, a assombrosa pressão elementar de apóstrofes, estrias, vírgulas,
barras, de que não se pode duvidar, depois dele, que os aspectos naturais sejam
feitos”.
82
“[…] chaque coup de pinceau de Van Gogh sur la toile est pire qu’un évene-
ment.”
83
“[…] avec la couleur saisie comme telle que pressée hors du tube, // avec l’em-
preinte, comme l’un après l’autre, des poils du pinceau dans la couleur.”
242 Antonin Artaud

Artaud também não viria ultrapassar os meios da pura escritura.


A pureza aqui não significa senão aquilo que é singular – os cor-
pos que se oferecem ao exercício artesanal de cada ofício. Desse
modo, agir com os corpos, reunir e colher novos corpos – “empi-
lhar corpos” (p. 34) – é fazer surgir o golpe sobre a inércia, surgir
“a carne hostil”, como diria o poeta. Campo de forças furiosas que
se apresentam coaguladas, imobilizadas nas telas. Mas diante delas
se indagaria: “Trumeaux de l’inerte ces ponts, ces tournesols, ces
ifs, […] / Elles ne bougent plus. // Elles sont figées. // Mais qui
pourrait les rêver plus dures sous le coup de tranchoir à vif qui en a
descellé l’impénétrable tressaillement?”84 (1996d, p. 35).
Sobressalto, estremecer impenetrável da carne, que se des-
prega nos golpes cruéis do açougueiro-pintor de acontecimentos.
Forças coaguladas ou invisíveis que se perfazem, também, nas
superfícies perfuradas dos desenhos-escritos de Artaud. Corpo
do abismo e abismos dos corpos disseminados a cada salto que
faz seu lápis empunhado, traçando esse campo de forças defor-
mantes, sim, mas que nos fazem olhar “descolados de nossas re-
tinas” para o surgimento de outras naturezas.
Seriam justamente as forças que – agindo no plano da su-
perfície – deformariam o rosto em proveito do corpo ou da face.
As relações da força com a forma são, desse modo, fundamentais
para se tentar manifestar a tensão que Artaud empreende entre o
figurativo e o não figurativo, a semelhança e a dissemelhança, a
forma e a deformação. Para nós interessa menos buscar elucidar
ou conceituar a deformação ou a desfiguração, e mais buscar pre-
cisá-la enquanto gesto que retira a plástica-poética de Artaud do

84
Tradução: “Relevos de inerte estas pontes, estes girassóis, estes teixos [...] / Não
se movem mais. // Estão imobilizados. // Mas quem os poderia imaginar mais
duros sob o golpe de trincho na carne viva que lhe terá violado o impenetrável
sobressalto?” Edição brasileira: ARTAUD, Antonin. Van Gogh: o suicida da so-
ciedade. Trad. Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003, p. 57.
Interjeições 243

plano da expressão para remetê-la ao plano da pressão. A pressão


se exerce mais uma vez sobre um plano de superfície.
Como temos visto, ela é máquina perfurante, é prego
pontiagudo, é sopro enquanto matéria no ar cujo peso se ma-
nifesta e pressiona, é corte – faca – é golpe no confronto entre
corpos. Ainda nos retratos, se deveria notar a maneira intensiva
em que se apresenta a relação deformante, ou o combate força-
-forma. Essa relação se manifesta até mesmo na pressão manual
que apaga o contorno dos lábios, como, por exemplo, no Retrato
de Colette Allendy (anexo 1), feito em agosto de 1947. Como
vimos insistindo, é o trabalho manual que importa à escritura
de Artaud. Se precisamos ainda mais a força manual a partir de
uma perspectiva plástica, somos levados a indagar e aprofundar
as relações entre o traço e a mancha.

3.2.1. O traço e a mancha

Procurar desdobrar a perspectiva manual da plástica ar-


taudiana significaria, antes de tudo, relevar que por manual não
se entende somente uma operação efetuada pelas mãos. Lem-
bremos o caráter escritural que assume a poesia de Artaud, na
qual importa tanto o traço que faz da letra figura quanto a com-
binação dessas mesmas letras para perfazerem um ato poético
na proferição, na encantação e na alteração da ordem linear da
leitura e da escrita. Ora, plasticamente, portanto, os traços que
perfazem seus desenhos-escritos e retratos se submetem à mesma
operação complexa que faz do manual um exercício dos corpos
mais do que dos membros ou dos órgãos. Assim, a definição
clássica na pintura – que separa linha e cor do traço e mancha
para separar as interferências entre os domínios visuais e manuais
respectivamente – não viria a aglutinar o gesto poético e plástico
de Artaud, que opera na subversão mesma dessas separações.
244 Antonin Artaud

Mais uma vez, Deleuze viria também observar a mesma


questão na pintura de Bacon, que o levaria a considerar um ter-
ceiro plano, que não se resumiria ao ótico, tampouco ao tátil, e
que o filósofo intitula haptique. Para ele, esse plano anuncia o
nascimento da “figura” ou do “fato pictural” que, vindo da mão,
constitui um terceiro olho ou “une vision haptique de l’oeil.
[…] comme si la dualité du tactile et de l’optique était dépassée
visuellement”85 (Deleuze, 1996, pp. 99-103). Em Artaud, nós
relevaremos uma sequência de quatro desenhos que vem dar ori-
gem à nova prática dos retratos feitos pelo poeta, com intuito de
desdobrar as relações entre traço e mancha em uma perspectiva
que rompe com o dualismo entre olho e mão, mas, e principal-
mente, com o dualismo entre rosto e corpo, tal qual o vimos
esboçar na sua busca pela face do homem. É assim que estaria
importando percorrer algo que sugerimos como sendo da ordem
de um surgimento dos traços (traits) fundamentais ao perfazer
posterior dos retratos (por-traits). A preocupação continuaria,
desse modo, insistindo sobre a tensão entre a forma e a força ou
entre a expressão e a pressão, respectivamente. Em nossa leitura,
por conseguinte, levantaríamos a hipótese de que a mancha assu-
miria o lugar desse plano haptique, como sugeriu Deleuze – um
terceiro lugar de passagem entre olho e mão no tocante à prática
dos retratos ou, como observamos em Artaud: passagem entre o
contorno abstrato e o traço do retrato –, deformação da forma
(rosto) na impressão da força (face).
Sobre as manchas na plástica de Artaud, assim se poderia
resumir: há a presença de pontos negros – que podem se apre-
sentar como pequenos círculos esvaziados no interior ou, ao con-
trário, cheios do negro – que percorre a maioria de seus grandes

85
Tradução: “uma visão háptica do olho [...]. É como se a dualidade do táctil e
do ótico fosse ultrapassada visualmente”. Edição brasileira: DELEUZE, Gilles.
Francis Bacon: lógica da sensação. Equipe de tradução: Roberto Machado (co-
ord.) et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 162. (Coleção Estéticas).
Interjeições 245

desenhos-escritos. Eles aparecem como golpes de lápis, como se


fossem pregados sobre a página, como cabeças de pregos ou, por
vezes, como carne pregada. Mas, ainda, observamos, em uma
sequência específica de quatro grandes desenhos feitos em Ro-
dez, em maio de 1946, a presença capital desses pontos, que
assumem o estatuto de verdadeiras manchas sobre a cena pictu-
ral. A textura sugere uma pele infectada. Artaud fazia alusão aos
“pontos semeados” sobre a página. Nós diríamos: pontos semi-
nais enquanto semente e gérmen. Eles vêm assumir um valor de
enigma – primeiro, pela repetição até a proliferação sugerida;
segundo, pelo deslocamento que vem dar-lhes o primeiro plano
no desenho intitulado Les corps de terre86 (anexo 2). Este inaugu-
ra a sequência dos quatro desenhos e é seguido por La balayette87
(anexo 3), depois La tête bleue88 (anexo 4) e, finalmente, pelo
primeiro autorretrato de Antonin Artaud (anexo 5). Todos feitos
em maio de 1946, sabendo que em junho do mesmo ano Artaud
retorna a Paris e dedica sua plástica, exclusivamente, à feitura de
retratos e autorretratos até sua morte, em 1948.
O desenho Os corpos da terra evoca, ao mesmo tempo, o
nascimento e a morte. À direita, no alto da página, aparecem es-
sas figuras minúsculas, de traços finos, que viriam a ser as mesmas
do desenho já citado A morte e o homem. São traços reduzidos aos
“ossos essenciais” (cuja simplicidade também evoca a tal “cons-
ciência da criança” de que nos falou o autor), trazendo como
que a sensação da morte que passa (que nos rouba). A figura à
esquerda é formada por duas mãos e uma cabeça-crânio (uma
das mãos, abaixo, figura o dedo indicador que parece empurrar
ou sustentar o próprio crânio em um ponto frágil de equilíbrio,
e, outra, acima, em que se ligando à boca do crânio parece se es-

86
Tradução: “Os corpos da terra”.
87
Tradução: “A vassoura”
88
Tradução: “A cabeça azul”
246 Antonin Artaud

forçar para subir – quase saindo do enquadramento da página).


Todo o desenho aparece como manifestação dessa figura “semi-
nal”, onde os pontos/manchas assumiriam o primeiro plano da
visão. No centro inferior da página, encontram-se, ainda, duas
outras mãos, uma cheia de manchas negras de onde parecem sair
os pequenos corpos da morte. A outra mão, de manchas verme-
lhas, espalmada, como se ela oferecesse ou anunciasse a cena do
próprio desenho. Não podemos deixar de alertar para todo um
repertório religioso que porta a iconografia das mãos. Elas assu-
mem o gestual que incorpora o texto religioso ao ato pictural.
A mão da Anunciação, o dedo de Deus, o toque de Cristo que
opera os milagres.89
Como motor sugestivo, encontramos ainda na leitura de
Deleuze a alusão à pintura antiga como prática liberadora da
figura, na qual, como bem lembrou, “se poderia tomar ao pé da
letra a ideia de que Deus não devia ser representado” (1996, p.
14).90 Ainda mais sugestiva me parece a leitura de Didi-Huber-
man sobre os afrescos de Fra Angelico (1995). Como dissemos
anteriormente, Didi-Huberman vai buscar operar com uma ló-
gica associativa de leitura das imagens, ou ainda, de forma mais
precisa, os trabalhos do autor buscariam “interrogar o tom de
certeza que reina na história da arte” (1995, p. 10). Para tanto,
ele vai buscar incidir justamente sobre os componentes de perda
89
Lembremos aqui do texto de Jacques Derrida (1990). Embora seu estudo não
incida de forma mais precisa sobre a questão que nos interessa, ele indicia –
através da hipótese de uma cegueira do desenho – todo um repertório de “me-
mória do traço” que vem tensionar o campo tátil e o ótico. Ainda: o autor per-
corre telas religiosas que retratam a cegueira e o milagre de recuperação da visão
fazendo alusão, justamente, à iconografia das mãos que rompem a separação
dos sentidos – manifestando-se tanto na ordem tátil quanto ótica e ao mesmo
tempo.
90
“Et c’est déjà cela que la peinture chrétienne a trouvé dans le sentiment reli-
gieux: un athéisme pictural, où l’on pouvait prendre à la lettre l’idée que Dieu
ne devait pas être représenté.” [Tradução: “E isto já é o que a pintura cristã en-
controu no sentimento religioso: um ateísmo pictural, em que se podia tomar
ao pé da letra a ideia de que Deus não devia ser representado”.]
Interjeições 247

do pensamento – o impensável e o impensado. Ponto que, como


sabemos, nos aproxima de traços significativos que atravessam a
obra de Artaud.
Mas, ainda em um plano inicial, não deveríamos deixar de
notar alguns traços significativos na obra de Fra Angelico91 e que
vêm conjugar com todo um repertório mágico, antigo, de um re-
ligioso ligado aos segredos da vida, ao poético da vida que, como
vimos, é determinante em Artaud. Em primeiro lugar, destaca-se
um dominicano que decepcionou muito o estilismo dos Quatro-
centos na secura e aridez de seu universo pictural: “La déception
dont nous parlons n’a pas d’autre source, évidement, que l’aridité
particulière dans laquelle Fra Angelico a saisi – […] saisi au vol,
comme on dit – le monde visible de sa fiction”92 (Didi-Huber-
man, 1995, p. 24). Angelico estaria mais próximo das fontes la-
tinas e medievais do que do brilho renascentista. Toda a questão
da Encarnação estaria, no seu universo religioso, próxima aos
mistérios do corpo tal qual via São Tomás de Aquino. É assim
que Fra Angelico pode figurar os estigmas do corpo de Cristo,
“posto que para São Tomás tais cicatrizes não evocam a corrup-
ção nem o defeito, senão que a beleza especial, a beleza mesmo
da virtude da humildade” (1995, p. 38). Como alerta Didi-Hu-
berman, as figuras que surgem em seus afrescos não se limitam
às “figuras” da língua italiana “vulgar”, mas remetem para a fi-
gurae, no sentido medieval de signos picturais concebidos para

91
Ver, por exemplo, texto de Artaud “Le pays des Rois-Mages” (1979b, pp. 63-6).
Ele escreve: “Ce n’est pas par esprit religieux que les Piero della Francesca, les
Lucas de Leyde, les Fra Angelico, les Piero di Cosimo, les Mantegna ont peint
tant de Nativités. C’est par une préoccupation traditionnelle de l’Essentiel, par
une recherche des secrets de vie” [Tradução: “Não é por espírito religioso que os
Piero della Francesca, os Lucas de Leyde, os Fra Angelico, os Piero de Cosimo,
os Mantegna pintaram tantas Natividades. É por uma preocupação tradicional
com o Essencial, por uma exploração dos segredos da vida”.]
92
Tradução: “A decepção de que falamos não tem, evidentemente, outra origem
senão a aridez particular na qual Fra Angelico capturou – [...] em pleno voo,
como se diz – o mundo visível de sua ficção”.
248 Antonin Artaud

representar os mistérios dos corpos (p. 16). Ora, como sabemos,


Artaud não teria deixado de se apaixonar pela biblioteca medie-
val, pelo conhecimento das culturas antigas, seu universo “má-
gico” que faria com que as questões escatológicas percorressem,
por excelência, todo seu percurso criador. Claro que não estamos
sugerindo uma associação entre Artaud e Fra Angelico pautada
pela lógica da influência, herança ou dívida. Mas, afirmamos
sim que o universo pictural (assim como o literário, ou mesmo
o filosófico) pode desarrumar a cronologia, ou, inspirados pela
leitura contemporânea de Didi-Huberman, diríamos com ele
que “la peinture dérange l’histoire chronologique parce qu’elle
est toujours un jeu complexe, retors, d’anachronismes. Fra Ange-
lico a été moderne par bien des égards”93 (p. 24). É assim que esse
universo – apesar de muito distante do de Artaud – não deixaria
de ressoar sobre a insistência do poeta em encenar os estigmas
sobre o corpo, reinventando o sofrimento de Cristo ou, ainda,
sua insistência em saisir au vol a aridez própria à crueldade.
Importa-nos aqui a abertura desse olhar desconcertado so-
bre as imagens, a fluidez e a parcialidade das associações e a busca
de uma consistência que compõe com a incerteza. Importa-nos,
sobretudo, o que poderia ser próprio aos indícios que portam as
manchas, esses pontos de inflexão e de passagem, tal qual vere-
mos nos desenhos de Artaud e que foi percorrido pelo teórico
– assumindo outra direção – frente aos afrescos de Fra Angelico.
Para tanto, vamos ver como o autor indica a presença das man-
chas vermelhas nos afrescos de Fra Angelico no convento de São
Marco em Florença:

Bref, en regardant ces petites taches rouges selon le comment de


leur présence dans la fresque, on est amené à une équivoque sur

93
Tradução: “a pintura desarruma a história cronológica porque ela é sempre um
jogo complexo, sorrateiro, de anacronismos. Fra Angelico foi moderno em mui-
tos aspectos”.
Interjeições 249

la question de savoir ce que, mimétiquement, elles représentent.


[…] leur manière de signifier – entre la fleur et le stigmate,
donc créant surtout la pensée d’un rapport – n’a plus rien à faire
avec la manière dont l’histoire, elle, délivre sa très reconnaissa-
ble signification94 (Didi-Huberman, 1995, p. 38).

É o pensamento de uma relação que permite ao autor, por


um lado, questionar o estatuto de fixidez dos significados ofere-
cidos pela história e, por outro lado, instaurar – a partir das man-
chas – um pensamento que tem a valência no seu próprio “trân-
sito”, na passagem e no movimento. Assim sendo, as manchas
assumem o estatuto de signa translata, no qual prevalece o valor
do deslocamento, da associação contra a identificação e a defini-
ção. Essa é a base de um pensamento próprio às imagens, como
gostaria o autor. Nós acrescentaríamos – e isso se deve sobretudo
às diferenças radicais entre o contexto mimético que se estabelece
sobretudo entre o texto religioso e o gesto pictural e o contexto
moderno de ruptura para com os ditames da representação – que
tais signos-trânsitos teriam valor de deslocamento, sob condição
de não se fixarem no “signo” inevitavelmente enclausurado por
uma lógica binária. É assim que para nós importa frisar o olhar
sobre uma sequência de quatro desenhos. A sequência já importa
enquanto deslocamento. Para nós, importa, sobretudo, interro-
gar as manchas nos desenhos e retratos de Artaud tendo como
horizonte esse universo do “corpo de Cristo estigmatizado de
sofrimento ou de singelas flores”. Interessa-nos guardar a ideia
das manchas como lugar do equívoco, da passagem.

94
Tradução: “Em suma, ao olhar essas pequenas manchas vermelhas segundo o
como de sua presença no afresco, somos conduzidos a um equívoco sobre a
questão de saber o que, mimeticamente, elas representam. [...] a sua maneira de
significar – entre a flor e o estigma, logo criando, sobretudo, o pensamento de
uma relação – não tem mais nada a ver com a maneira pela qual a história, ela,
fornece sua bem reconhecida significação”.
250 Antonin Artaud

As manchas que se apresentaram no desenho Os corpos


da terra irão se recolocar, porém, diferentemente, no desenho
A vassoura. Aqui, uma cabeça-crânio – no alto à esquerda. Mas,
diferentemente da anterior, essa cabeça parece pertencer ao ar
e não mais à terra. As manchas se confundem com as próprias
cavidades da cabeça. Somente algumas zonas se revelam no de-
senho, e todas elas através da presença capital das manchas. Há
a zona da cabeça-crânio, a zona de um seio que se insinua na
parte estomacal do corpo (se consideramos que o crânio tem um
corpo) e uma zona inferior que sugere um pé. No entanto, essas
três zonas surgem evanescendo no contexto do desenho. Posto
que tanto seu título quanto a figura que se destaca são essa espé-
cie de vassoura que se localiza no centro, só alguns centímetros
para a direita da página. A conjunção dessas zonas nos indica um
deslocamento da cabeça-crânio – a interferência de membros do
corpo, assim como a sugestão do movimento aéreo do próprio
varrer, parecem destituir o crânio em proveito da cabeça. Mas
seria ainda uma cabeça-morte. No desenho seguinte, a cabeça as-
sume a cena principal. Trata-se de A cabeça azul: aqui, já aparece
uma outra zona de superfície – a da face. Essa zona, mais uma
vez, é semeada de manchas negras. As cavidades são proeminen-
tes mas, no entanto, elas recobrem uma superfície viva – a boca,
os olhos e o nariz respiram.
É por meio dessa sequência que Artaud chega a desenhar
seu primeiro autorretrato em 11 de maio de 1946. Sua cabeça –
que ocupa a parte central do desenho – parece surgir de outras
cabeças menores que ocupam a parte inferior da página. Um
relatório, feito pelo Doutor Dequeker no asilo de Rodez, indica:

J’ai assisté pendant plusieurs jours au forage d’une telle image,


au martellement sauvage d’une forme qui n’était pas la sienne.
[…] il avait dessiné les contours abstraits d’un visage, et dans
cette matière à peine esquissée où il avait planté les taches noires
Interjeições 251

des futures apparitions, sans miroir reflétant, j’ai le vu créer son


double, comme dans un creuset, au prix d’une torture et d’une
cruauté sans nom95 (1984b, p. 158, grifo meu).

Sublinhemos apenas que o surgir de seu autorretrato não


teria se operado a partir do olhar que se veria refletido no espe-
lho. Artaud se desenha sem espelho. Índice primeiro que reco-
loca a função ótica em outro plano. Tal plano, sugerimos, seria
esse que faz a relação entre o “contorno abstrato” e o “plantar das
manchas negras”. Plantar, lembremos, que é semear e também
o que se faz com a terra. A importância da sequência se faz ver
aqui no deslocamento das manchas negras, como gostaríamos de
sugerir: pontos de inflexão e passagem do abstrato (da linha e do
contorno) ao traço do retrato. Mas, ainda, elas seriam os estig-
mas do corpo de onde é possível fazer surgir a face. Pressionar,
deformar, talhar o rosto e fazer insurgir a corporeidade, a “carne
hostil”, que é superfície da face.
Como sugere o desenho Os corpos da terra, as manchas
negras são pontos de passagem entre a vida e a morte, pontos que
suspendem a vida da morte e nos enviam para essa sempiterna
reivindicação de se refazer um corpo. Buracos onde morte e vida
se confundem e já não se trata mais de uma nem de outra, forma
tubular do corpo-canhão de Artaud. É a “anatomia em movi-
mento” ou a “dança da anatomia” que pode visar refazer um
corpo. A dança-combate traz para a cena os estigmas de Cristo,
a “mão do macaco” – do homem que “imita” Deus, como es-

95
Tradução: “Eu assisti ao longo de vários dias à perfuração de uma tal imagem,
ao martelamento selvagem de uma forma que não era a sua [...] ele havia de-
senhado os contornos abstratos de um rosto, e nesta matéria apenas esboçada
onde ele havia plantado as manchas negras das aparições futuras, sem espelho
refletindo, eu o vi criar seu duplo, como em um crisol, ao preço de uma tortura
e de uma crueldade sem nome”.
252 Antonin Artaud

creve em texto emblemático, também em 1946, intitulado Main


d’ouvrier et main de singe96:

Qui qu’a gagné une main d’homme / sur l’ombre de ta main


inné, / l’ouvrier ou le chipanzé? / Moi je crois que c’est l’ouvrier,
/ dieu? / dieu? /. […]. / Oui ton crime fut bien perpétré, /
contre qui te cava la terre, / pour y fourrager sa suée, / avec ta
vieille main crotté97 (1988, p. 365).

Combate contra a imitação ou a semelhança entre o ho-


mem e Deus. Cena infectada. As manchas trazem o risco dessa
passagem e não deixam de manifestar os “piolhos do espírito”,
corpos infectados pelas cavidades e orifícios, ou ainda: “C’est
par là, dit l’esprit, que je te tiens, / tu est oblig[é] de former
corps/ et je te mange”98 (1988, p. 228). A luta entre a “mão do
operário” e a “mão do macaco” (aquele que imita) não deixa de
ocupar a cena de Os corpos da terra – desenho onde as manchas
se instauram na plástica do poeta – manchas que são também
os traços da terra sobre o corpo que trabalha, “mão de operário”
que desenha. É o sublevar dos “corpos da terra” que indicia o
movimento combate de onde se gera sua poesia e plástica. Luta
que opera a passagem entre morte e vida e que a imagem da terra
reúne, enquanto meio de vida e lugar dos mortos, nascimento e
decomposição, semente e gérmen.

96
Tradução: “Mão de operário e mão de macaco”.
97
Tradução: “Quem é que ganhou uma mão de homem / sobre a sombra de tua
mão inata, / o operário ou o chimpanzé? / Creio eu que foi o operário, / deus? /
deus? / . [...]. / Sim, teu crime foi bem perpetrado, / contra quem para ti cavou
a terra, / para forragear ali seu suor, / com tua velha mão imunda”.
98
Tradução: “É por aí, diz o espírito, que eu te prendo, / tu és obrigado a formar
corpos / e eu te como”.
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Anexos
Anexo 1:

Retrato de Colette Allendy – 25 de agosto de 1947


Lápis e lápis rosa sobre papel – 65X50cm
Museu Nacional de Arte Moderna – Centro Georges Pompidou Paris
Anexo 2:

Ao Corpos da Terra – 3 de maio 1946


Lápis e lápis de cor sobre papel cartão – 65,5 X 50,5cm
Museu Nacional de Arte Moderna – Centro Georges Pompidou Paris
Anexo 3:

A Vassoura – Maio 1946


Lápis sobre papel – 67X50cm
Coleção Particular
Anexo 4:

A Cabeça Azul – Maio 1946


63X48cm
Museu Nacional de Arte Moderna – Centro Georges Pompidou Paris
Anexo 5:

Autorretrato – 11 maio 1946


Lápis sobre papel – 63X49cm
Coleção Particular
Sobre a Autora:

Ana Kiffer é professora do Programa de Pós-graduação


em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio des-
de 2005. Foi Jovem Cientista do Estado/FAPERJ. Coordenou
convênios internacionais com a Argentina e com a França, país
onde realizou parte de seu doutoramento sobre a obra de Anto-
nin Artaud. É bolsista de produtividade do CNPq. Seu campo
de pesquisa situa-se nos estudos das relações entre o corpo e a
escrita no âmbito estético e político. E seu horizonte de debate
vem buscando encetar a relação constante entre a produção ar-
tística e a produção de subjetividade no mundo contemporâneo,
assim como os sucessivos atravessamentos entre os campos da
reflexão e da criação de novas formas de sensibilidade.
Formato 14 x 21
Tipologia: Garamond (texto) Lucida Sans (títulos)
Papel: Pólen soft 80 g/m2 (miolo)
Couché matte 90 g/m2 (caderno de imagens)
Supremo 250 g/m2 (capa)
CTP, impressão e acabamento: GlobalPrint Editora Gráfica Ltda.

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