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Antoninartaud PDF
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Ruy Garcia Marques
Vice-reitora
Maria Georgina Muniz Washington
EDITORA DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Conselho Editorial
Bernardo Esteves
Erick Felinto
Glaucio Marafon
Italo Moriconi (presidente)
Jane Russo
Maria Aparecida Ferreira de Andrade Salgueiro
Ivo Barbieri (membro honorário)
Lucia Bastos (membro honorário)
Ana Kiffer
Antonin Artaud
Rio de Janeiro
2016
Copyright 2016, Ana Kiffer.
Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou de parte do mesmo, em
quaisquer meios, sem autorização expressa da editora.
EdUERJ
Editora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC
A785 Kiffer, Ana.
Antonin Artaud / Ana Kiffer - Rio de Janeiro : EdUERJ, 2016.
266 p.
ISBN 978-85-7511-392-9
CDU 840-95
Nota da autora
Gilles Deleuze
Périclès et Verdi – la philosophie de François Châtelet
1
Tradução: “A potência é o pathos, isto é, a passividade, a receptividade, mas a
receptividade é, antes de tudo, a potência de receber os golpes, e de dar golpes:
uma estranha resistência”.
Sumário
Prefácio..........................................................................................15
Introdução.....................................................................................31
Capítulo 1: Fragmentações.............................................................57
Capítulo 3: Interjeições................................................................201
Referências...................................................................................253
Anexos.........................................................................................259
Sobre a autora..............................................................................265
Prefácio
Escrita ébria
1
Tradução: “[...] apenas Van Gogh se virava, o doutor Gachet lhe desligava
o interruptor do pensamento.” Edição brasileira: ARTAUD, Antonin. Van
Gogh: o suicida da sociedade. Trad. Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: José Olym-
pio, 2003, p. 54.
2
Tradução: “[...] Eu mesmo passei nove anos num asilo de alienados e nunca
sofri da obsessão do suicídio, mas sei que, a cada conversa que tinha com um
psiquiatra, de manhã, na hora da consulta, sentia vontade de me enforcar por
ver que não podia estrangulá-lo.” Edição brasileira: ARTAUD, Antonin. Van
Gogh: o suicida da sociedade. Trad. Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: José Olym-
pio, 2003, p. 60.
16 Antonin Artaud
3
Informa o dicionário: “exercice plus souvent oral qu’écrit qui consiste à faire
l’analyse détaillée d’un texte d’un point de vue sémantique et stylistique”. [Tra-
dução: “exercício mais frequentemente oral que escrito, que consiste em fazer a
análise detalhada de um texto de um ponto de vista semântico e estilístico”.]
4
A construção em abismo, segundo as palavras de Pierre Lafille, resulta “do hábi-
to, da necessidade gidiana de se contemplar trabalhando, de seguir seu próprio
devir, de viver e de criar em um jogo de imagens de si, semelhantes a si, mas de
ângulos diversos e de iluminações variadas”.
18 Antonin Artaud
5
Desde já seria revelador o fato de que, ao “poço de verdade” (discurso compli-
cado) deve-se contrapor o “abismo” (gouffre, discurso complexo). Observa Ana,
adiantando nosso raciocínio: “abismo – buraco vertical, assustador por sua pro-
fundeza e largura. Mas seu sentido inicial se mantém na associação constante
com a palavra ‘insondável’, que Artaud não deixou de utilizar [...]. Profundeza,
portanto, não atingível pela sonda. Abismo sem fundo da face: este, o inacessí-
vel plano da superfície”. Como complemento, veja-se o autorretrato de Artaud,
Escrita ébria 19
7
Cite-se Jacques Derrida, que cita Artaud: “Neste teatro, toda criação vem do
palco, encontra sua tradução e suas próprias origens em um impulso psíquico
secreto que é a palavra de antes dos vocábulos”.
Escrita ébria 21
8
Cite-se Maurice Blanchot: “Seria tentador aproximar o que dissemos de Artaud
do que dizem de Hölderlin, Mallarmé: que a inspiração é em primeiro lugar
esse ponto puro em que ela falta”. Quanto à especificidade do sopro, leia-se
Ana Kiffer: “Não seria somente a atividade fisiológica do sopro que oxigena o
corpo. O poeta vai buscar o momento em que a transmutação se concretiza. O
momento em que o ar se materializa em sopro. Em que o sopro resta, portanto,
como matéria do/no ar.”
9
Para uma leitura de outra perspectiva da questão apresentada, consulte-se o
capítulo 13 de Logique du sens, de Gilles Deleuze, no qual o filósofo estuda as
relações entre Lewis Carroll e Artaud a partir das traduções feitas pelo francês.
10
Segundo Evelyne Grossman, “les trumeaux seraient alors les mots des corps
écorchés, tronçonnés, morceaux de corps transfigurés en signes après l’opéra-
tion alchimique de réfection du corps humain”. [Tradução: os cotos seriam então
as palavras dos corpos esfolados, destroçados, pedaços de corpos transfigurados
em signos após a operação alquímica de refeição do corpo humano”.] Em refe-
rência a Van Gogh, diz ela: “Les trumeaux sont ces grumeaux de corps décom-
posés, fécalisés qui se lisent sur la toile dans les taches noires des corbeaux [...]”.
[Tradução: “Os cotos são estes grumos de corpos decompostos, fecalizados, legí-
veis sobre a tela nas manchas negras dos corvos”.]
22 Antonin Artaud
11
Tradução: “Quando escrevo / grito em geral uma nota / num traço. Mas isso
não basta / e procuro prolongar / a ação disto que / es crevi n’ / atmosfera. Então /
eu me levanto / procuro / consonâncias / adequações / sons / balanceamentos
do corpo / e membros / que façam ato”.
12
Não é necessário desenvolver a ideia que gira em torno do desenho como pos-
sível “explicação” do texto. Ana o diz de maneira lapidar: “Assim, a maioria
de seus grandes desenhos-escritos possuem um texto que os acompanha e os
comenta. Esses textos não buscam ‘explicar’ seus desenhos. Eles vêm inseri-los
no interior de uma prática […]”.
24 Antonin Artaud
13
Tradução: “Que é escrever-desenhar? É refazer um ‘corpo sem órgãos’, que é
dizer, uma multiplicidade molecular, explosiva e atômica (o inverso do ‘cadáver
anatômico’ do corpo orgânico), é inventar uma cenografia pictural, uma dança
corporal de signos sobre a página”.
14
Ana a escreve entre aspas, por razões óbvias.
Escrita ébria 25
Gérard de Nerval n’était pas fou (grifo meu), mais il fut accusé
de l’être a fin de jeter le discrédit sur certaines révélations
capitales qu’il s’appretaît à faire.
Non, Van Gogh n´était pas fou (grifo meu), mais ses peintures
étaient des feux grégeois, des bombes atomiques, dont l’angle
de vision, à côté de toutes les autres peintures qui sévissaient à
cette époque, eût été capable de déranger […].15
15
“Gérard de Nerval não era louco, porém disso foi acusado com o propósito de
levar ao descrédito certas revelações capitais que estava prestes a fazer.
[...] Não, Van Gogh não era louco, mas suas pinturas eram feux grégois, bombas
atômicas, cujo ângulo de visão, ao lado de todas as outras pinturas polêmicas
à época, foi capaz de abalar gravemente [...]”. Edição brasileira: ARTAUD,
Antonin. Van Gogh: o suicida da sociedade. Trad. Ferreira Gullar. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2003, pp. 28-9.
26 Antonin Artaud
16
Tradução: “Este mundo tem necessidade de cultivar cobaias para sua secular
coleção de esqueletos, / esqueletos de alienação. / E afirmo que a loucura é um
golpe arquitetado / e que sem a medicina ela não teria existido.” Edição brasilei-
ra: ARTAUD, Antonin. Van Gogh: o suicida da sociedade. Trad. Ferreira Gullar.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2003, pp. 16-7.
Escrita ébria 27
pelo (e não para o) lado de fora que se narra a vida, narrativa nô-
made que desarticula o vivido com vistas ao vivível. Ler Artaud
é − nos diz Ana Kiffer − compreender como se organiza o para-
doxo que me/nos leva a ver a própria vida pelo lado de fora, pela
narrativa que se escreve por entre as brechas do lugar de dentro
já em um lugar de fora, fazendo o discurso do corpo (por exem-
plo) escapar das amarras que o evidenciam à luz da medicina e
sintonizar seu sentido em um canal por onde já navegam outros
corpos possíveis. O vivido é o vivível.
Nesse sentido, seu discurso poético articula o lado de den-
tro do sofrimento limite e exacerbado do sujeito às viagens aven-
turosas do outro, a que ele tem acesso por experiência de leituras.
Suas referências passam a estruturar o lado de dentro da vida
pelo seu lado de fora, ou seja, pelo “pensamento alquímico me-
dieval, da cabala, do tarô, do teatro balinês e, sobretudo, pela sua
vivência dos ritos indígenas da serra Tarahumara no México”,
como nos informa Ana.
O texto viajante de Antonin Artaud pluraliza o indivíduo
dito francês em cidadão do mundo e, ao mesmo tempo, em ser
imortal. Todos os espaços são percorridos por ele, enquanto todos
os tempos se acoplam em um corpo presente em constante re/in-
venção de si próprio. A experiência da viagem (real ou simbólica,
se distinção for necessária)17 metamorfoseia o corpo de Artaud em
algo que é, ao mesmo tempo, relíquia de todas as eras passadas e
andor dos novos tempos. O texto viajante fragmenta e, por isso, se
confunde com o deslocamento do corpo de Artaud pela atualida-
de do espaço geográfico do planeta, ou a sua transmigração pelos
17
Os deslocamentos geográficos e históricos podem o ser graças ao fato de Ar-
taud ter sido espectador de quiosques ou pavilhões, que representam comuni-
dades diferentes em um único e fechado espaço urbano. Refiro-me às feiras ou
parques populares que Artaud visita, como o Vaterland, em Berlim, onde os
diversos países da Europa se fazem representar em quiosques, ou às Exposições
coloniais, como a de Marselha em 1922 ou a de Paris em 1931, que encantam
e transformam o homem de teatro.
28 Antonin Artaud
É pela barbaque 18
só por ela
que se exprime
o
aquilo que não se sabe.
Silviano Santiago
Rio de Janeiro, novembro 2014.
18
Em gíria francesa, barbaque é também usado para qualificar o corpo da prosti-
tuta. Proxeneta [ou o poeta]: marchand de barbaque.
Introdução
1
Nesta “Introdução”, o leitor encontrará algumas indicações de títulos ou de au-
tores quando nos referirmos a um texto ou obra. A ideia era realmente a de não
sobrecarregar essa entrada na discussão com notas e referências. O leitor ávido
poderá endereçar-se às “Referências” onde encontrará pelo nome do autor todas
as obras aqui aludidas.
34 Antonin Artaud
2
Artaud escreve no “Preâmbulo” para a edição de suas Obras completas: “Mais
que les mots enflés de ma vie s’enflent ensuite tout seuls de vivre dans le b a –
ba de l’écrit. C’est pour les analphabètes que j’écris” (1994a, p. 10). [Tradução:
“Mas que as palavras inchadas da minha vida se inchem em seguida sozinhas de
viver no be-a-bá do escrito. É para analfabetos que escrevo”.]
3
Seria preciso sublinhar que, quando empreendemos nossa longa pesquisa da
obra de Artaud, no período em que nos beneficiamos de um estágio doutoral
Ao redor 39
6
Refiro-me aqui ao livro dos desenhos de Artaud: Artaud – dessins et portraits
(1986a). E, mais recentemente, ao caderno microfilmado que foi editado por
Evelyne Grossman: 50 dessins pour asassiner la magie (2004b).
7
Também na edição empreendida por Evelyne Grossman, apesar da apresen-
tação em um só grande volume, a divisão dos textos respeita a periodicidade
cronológica dos escritos de Artaud.
42 Antonin Artaud
8
“Monsieur, Je regrette de ne pouvoir publier vos poèmes dans la Nouvelle Re-
vue Française. Mais, j’y ai pris assez d’intérêt pour désirer faire la connaissance
de leur auteur.”
Ao redor 43
9
“Je souffre d’une effroyable maladie de l’esprit. Ma pensée m’abandonne, à
tous les degrés. Depuis le fait simple de la pensée jusqu’au fait extérieur de sa
matérialisation dans les mots. […] je suis à la poursuite constante de mon être
intellectuel. […]. C’est tout le problème de ma pensée qui est en jeu. Il ne s’agit
pour moi de rien moins que de savoir si j’ai ou non le droit de continuer à
penser, en vers ou en prose.”
44 Antonin Artaud
10
“Et voilà, Monsieur, tout le problème: avoir en soi la réalité inséparable, et
la clarté matérielle d’un sentiment, l’avoir au point qu’il ne se peut pas qu’il
ne s’exprime [...]; et qu’au moment où l’âme s’apprête à organiser sa richesse,
ses découvertes [...], à cette inconsciente minute où la chose est sur le point
d’émaner, une volonté supérieur et méchante attaque l’âme comme un vitriol,
attaque la masse mot-et-image, attaque la masse du sentiment, et me laisse,
moi, pantelant comme à la porte même de la vie.”
Ao redor 45
11
“Proust a décrit les intermittences du cœur; il faudrait maintenant décrire les
intermittences de l’être.”
12
“Mais eux, leur âme n’est pas physiolologiquement atteinte, elle ne l’est pas
substantiellement, elle l’est dans tous les points où elle se joint avec autre chose,
elle ne l’est pas hors de la pensée; alors d’où vient le mal, est-ce vraiment l’air
de l’époque, un miracle flottant dans l’air […], ou la découverte d’un monde
nouveau, un élargissement véritable de la réalité? Il n’en reste pas moins qu’ils
ne souffrent pas et que je souffre, non pas seulement dans l’esprit, mais dans
la chair et dans mon âme de tous les jours. Cette inapplication à l’objet qui
caractérise toute la littérature, est chez moi une inapplication à la vie.”
46 Antonin Artaud
13
“Position de la chair” é um texto surrealista escrito por Artaud e publicado na
N.R.F. 147 em dezembro de 1925.
Ao redor 47
14
Referimo-nos ao texto já aludido aqui e intitulado “Para acabar com o julga-
mento de deus”.
48 Antonin Artaud
***
aqui um lugar intensivo que marca toda a obra de Artaud, seja ela
“em verso ou prosa”: lugar de erosão do pensamento. Trata-se de
“se refazer”. Seria menos a “cura da doença do espírito” e mais o
constante refazer-se. É a partir dessa erosão primeira que Artaud
buscará até o fim de sua vida refazer-se. Observa-se a incidência
já inicial do prefixo “re”, ou seja: fazer-se de novo, como traço que
depende de um perder-se de novo. Nesse sentido, trabalharemos
intensivamente sobre uma questão que se coloca desde o início
para Artaud: refazer-se da erosão do pensamento na construção de
uma escrita que a suporte.15 Certo, observa-se uma radicalização
dessa questão nos últimos anos de vida do poeta, assim como a
inclusão de novas perspectivas para realização ou “materialização”
dessa escrita-pensamento. Essa questão será analisada intensiva-
mente, não se caracterizando como inicial ou final, e sim como
uma constante marcada por inflexões diferenciadoras.
Uma grande inflexão foi o silêncio de Artaud, se não esquece-
mos de sua Correspondência com Jacques Rivière, onde já se pode ob-
servar que se tratava de “escrever isso ou não escrever nada” (1994a,
p. 29).16 Em 1936, o poeta parte rumo ao México, onde busca en-
contrar “as bases vivas de uma cultura cuja noção parece aqui se
desagregar” (1973, p. 157).17 A procura dessa noção viva de cultura
aparece na imagem do fogo, dos vulcões mexicanos, dos ritos vivos
da serra Tarahumara. Artaud retorna em 1937 a Paris e parte logo
em seguida para a Irlanda. Sobre sua estada na Irlanda, se sabe que
o poeta foi preso em Dublin – acusado de distúrbio da ordem pú-
blica – e deportado para uma França já ocupada pelo nazifascismo
europeu. Ali começa seu percurso por inúmeros asilos psiquiátricos
15
Apenas para sublinhar que a noção de suporte deve ser entendida no sentido
plástico e material com o qual Artaud não deixará de se debater.
16
“Mais la question pour moi est de savoir s’il vaut mieux écrire cela ou ne rien
écrire du tout.”
17
“C’est peut-être une idée baroque pour un Européen d’aller rechercher au
Mexique les bases vivantes d’une culture dont la notion semble s’effriter ici”.
50 Antonin Artaud
18
Abordaremos com maior atenção esse item no segundo capítulo.
19
“dix ans que le langage est parti,/ qu’il est entré à la place/ ce tonnerre atmos-
phérique,/ cette foudre, / devant la pressuration aristocratique des êtres,/ de
tous les êtres nobles [...]”. Todos os textos relativos aos desenhos do poeta que
Ao redor 51
[…] digo então que a linguagem separada é um raio que fiz vir
agora no fato humano de respirar, o qual meus golpes de lápis
sobre o papel sancionam. E desde certo dia de outubro de 1939
nunca mais escrevi sem também desenhar (1995a, p. 56).20
21
Tais construções são nomeadas dessins-écrits. Importante lembrar que em fran-
cês dizemos trait d’union para hífen.
22
“Suppôts et Suppliciations est le dernière recueil des textes qu’il ait composé,
renouant avec une forme qui lui est propre, celle de l’Ombilic des limbes ou du
Pèse-Nerfs suivi des Fragments d’un Journal d’Enfer, ces livres dont il écrivait
qu’il les mettait en suspension dans la vie.”
Ao redor 53
23
“La première constitue une espèce de révision haletante de la culture, une abra-
cadabrante chevauchée du corps à travers tous les totems d’une culture rui-
née avant d’avoir pris corps. Dans la seconde, le corps souffrant qui entreprit
cette chevauchée se découvre: […]. Dans la troisième, il n’est plus question: de
culture, ni de vie, mais de cette espèce d’enfer incréé où le corps de l’homme
suffoque avant de commencer à respirer, […].”
54 Antonin Artaud
***
24
“Dans la seconde, le corps souffrant qui entreprit cette chevauchée se découvre:
et on voit bien qu’il s’agit d’un homme qui est un homme et non un esprit.”
Ao redor 55
1
“dix ans que le langage est parti, qu’il est entré à la place ce tonerre atmosphé-
rique, cette foudre.”
58 Antonin Artaud
2
Certo retorno às origens etimológicas das palavras, reivindicado por Artaud,
poderia também aqui indicar a junção crítica e crise. Aliás, é exatamente o que
o poeta clama para se compreender sua noção de crueldade já em seu primeiro
texto-carta, escrito em 1932, ele diz: “Et je revendique, ce faisant, le droit de
briser avec le sens usuel du langage, de rompre une bonne fois l’armature, de
faire sauter le carcan, d’en revenir enfin aux origines étymologiques de la langue
qui à travers des concepts abstraits évoquent toujours une notion concrète”
(1994b, p. 97). [Tradução: “E assim fazendo reivindico o direito de quebrar
com o sentido usual da linguagem, romper de uma vez por todas a armadura,
explodir a carcaça, voltar, enfim, às origens etimológicas da língua, que através
de conceitos abstratos evocam sempre uma noção concreta”]
3
Neste momento, nos interessa assinalar que essa não separação entre pensamen-
to e vida em Artaud seria uma reivindicação singular que muito se confundiu
com o “estudo do caso Artaud”. Assinalamos que neste livro procuraremos dis-
cutir tal questão. Por ora, vale dizer que tal reivindicação se insere para nós nisso
que Jacques Derrida conceituou como sendo da ordem da aventura: “Si Artaud
résiste absolument – et, croyons-nous, comme on ne l’avait jamais fait aupara-
Fragmentações 59
vant – aux exégèses cliniques et critiques – c’est par ce qui dans son aventure
(et par ce mot nous désignons une totalité antérieure à la séparation de la vie et
de l’oeuvre) est la protestation elle-même contre l’exemplification elle-même”
(1967, p. 261). [Tradução: “Se Artaud resiste totalmente – e, cremo-lo, como
ninguém mais o fizera antes – às exegeses clínicas ou críticas, é porque na sua
aventura (e com esta palavra designamos uma totalidade anterior à separação
da vida e da obra) é o próprio protesto contra a própria exemplificação”. Edição
brasileira: DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz
Marques Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho. 4 ed. São
Paulo: Perspectiva, 2004, p. 257. – (Estudos; 271 / dirigida por J. Guinsburg).]
60 Antonin Artaud
4
Tradução: “Pode-se inventar uma língua própria e fazer falar a língua pura com
um sentido extragramatical, mas esse sentido deve valer por si mesmo, isto é,
sobrevir do pavor”.
Fragmentações 61
5
“Et ce que le théâtre peut encore arracher à la parole, ce sont ses possibilités
d’expansion hors des mots, de développement dans l’espace, d’action dissocia-
trice et vibratoire sur la sensibilité. C’est ici qu’interviennent les intonations,
la prononciation particulière d’un mot. C’est ici qu’intervient, en dehors du
langage auditif des sons, le langage visuel des objets, des mouvements, des atti-
tudes, des gestes, mais à condition qu’on prolonge leur sens, leur physionomie,
leurs assemblages jusqu’aux signes, en faisant de ces signes une manière d’alpha-
bet.” [Tradução: “E aquilo que o teatro ainda pode extrair da palavra são suas
possibilidades de expansão fora das palavras, de desenvolvimento no espaço,
de ação dissociadora e vibratória sobre a sensibilidade. É aqui que intervêm as
entonações, a pronúncia particular de uma palavra. É aqui que intervêm, fora
da linguagem auditiva dos sons, a linguagem visual dos objetos, movimentos,
atitudes, gestos, mas com a condição de que se prolonguem seu sentido, sua fi-
sionomia, sua reunião, até chegar aos signos, fazendo desses signos uma espécie
de alfabeto”. Edição brasileira: ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Trad.
Teixeira Coelho. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 101-2.]
62 Antonin Artaud
6
“il ne s’agit pas dans cette Cruauté ni de sadisme ni de sang, du moins pas de fa-
çon exclusive./ Je ne cultive pas systématiquement l’horreur. Ce mot de cruauté
doit être pris dans un sens large, et non dans le sens matériel et rapace qui lui
est prêté habituellement. […]. / On peut trés bien imaginer une cruauté pure,
sans déchirement charnel. Et philosophiquement parlant d’ailleurs qu’est-ce
que la cruauté? Du point du vue de l’esprit cruauté signifie rigueur, application
et décision implacable, détermination irréversible, absolue. Le déterminisme
philosophique le plus courant est, du point du vue de notre existence, une des
images de la cruauté.”
Fragmentações 63
7
“La cruauté est avant tout lucide, c’est une sorte de direction rigide, la sou-
mission à la nécessité. Pas de cruauté sans conscience, sans une sorte de cons-
cience appliquée. c’est la conscience que donne à tout acte de vie sa couleur de
sang, sa nuance cruelle, uisqu’il est entendu que la vie c’est toujours la mort de
quelqu’um.”
64 Antonin Artaud
metafísica” (1994b, p. 87).8 Ou, ainda, como ele mesmo diz acerca
de sua tomada de consciência, em carta à Jean Paulhan: “Querido
amigo, a crueldade não foi acrescentada ao meu pensamento, nele
ela sempre existiu, mas me foi preciso disso tomar consciência”
(1994b, p. 98).9 Somos chamados pelo texto a tomar consciência.
O “Teatro da Crueldade” pretende chamar à consciência, e ain-
da aplicar a consciência. Como se recebêssemos um convite para
adentrar uma “filosofia prática”, uma imbricação crescente entre a
experiência do pensamento e a criação da vida.
Assim como é necessário sair da palavra para ser reenviado
a uma palavra, é necessário sair da consciência sistêmica dos con-
ceitos abstratos para se adentrar em uma “aplicação da consciên-
cia – noção concreta”. O concreto residiria no gesto mesmo de
perfurar o abstrato. Isso para o poeta é aplicar a consciência; que-
brar a carcaça da linguagem; reencontrar as palavras para além
dos muros ou das grades de sentido, representação e conceitos a
que estariam fadadas. O apelo ao leitor é também cruel, aplica-
ção da consciência, explosão da noção concreta sobre o solo mais
cotidiano do viver que assevera: “já se sabe que a vida é sempre a
morte de alguém”. Frase que ressoa e ecoa, em uma consciência
que vaza qualquer definição de psicologia da consciência. Seria
nesse apelo, por meio da tentação, que Artaud clamaria por uma
consciência do leitor diante da crueldade. Ora, essa participa-
ção aqui, nesse primeiro escrito sobre a crueldade, aparece como
visada crítica em um movimento em que importa tomar cons-
8
Artaud assim difere o que entende por metafísica nesse espaço da crueldade:
“La question d’ailleurs ne se pose pas de faire venir sur la scène et directement
des idées mátaphysiques, mais de créer des sortes de tentations, d’appels d’air
autour de ces idées”. [Tradução: “A questão não é fazer aparecer em cena, dire-
tamente, ideias metafísicas, mas criar espécies de tentações, de atmosferas pro-
pícias em torno dessas ideias”. Edição brasileira: ARTAUD, Antonin. O teatro
e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.
102-3.]
9
“Cher Ami, La Cruauté n’est pas surajoutée à ma pensée, elle y a toujours vécu:
mais il me fallait en prendre conscience.”
Fragmentações 65
10
“Cette séparation entre le théâtre d’analyse et le monde plastique nous appa-
raissant comme une stupidité. On ne sépare pas le corps de l’esprit, ni le sens de
l’intelligence, surtout dans un domaine où la fatigue sans cesse renouvelée des
organes a besoin de secousses brusques pour raviver notre entendement.”
11
A “crise vivida em seu próprio corpo” é a matéria, por excelência, de sua Corres-
pondência com Jacques Rivière, como já indicado.
66 Antonin Artaud
12
“[…] donc un spectacle qui ne craigne pas d’aller aussi loin qu’il faut dans
l’exploration de notre sensibilité nerveuse, avec des rythmes, des sons, des mots,
des résonances et des ramages, dont la qualité et les surprenants alliages font
partie d’une technique qui ne doit pas être divulguée.” [Tradução: “[...] portan-
to um espetáculo que não tema ir tão longe quanto for necessário na exploração
de nossa sensibilidade nervosa, com ritmos, sons, palavras, ressonâncias e rama-
gens, cuja qualidade e cujas ligações inesperadas participam de uma técnica que
não deve ser divulgada”.]
13
Tradução: “É preciso falar agora do lado unicamente material dessa linguagem.
[...] Seria inútil dizer que essa linguagem apela para a música, a pantomima
ou a mímica. [...] Rompe, enfim a sujeição intelectual à linguagem, dando o
sentido de uma intelectualidade nova e mais profunda [...]”. Edição brasileira:
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. 3 ed. São Pau-
lo: Martins Fontes, 2006, p. 103.
Fragmentações 67
sur nous et que la réalité agit sur nos rêves, nous pensons qu’on
peut identifier les images de la poésie à un rêve, qui sera efficace
dans la mésure où il sera jeté avec la violence qu’il faut. [...] D’où
cette appel à la cruauté et à la terreur, mais sur un plan vaste, et
dont l’ampleur sonde notre vitalité intégrale, nous mette en face
de toutes nos possibilités14 (1994b, pp. 83-4, grifo meu).
14
Tradução: “Em suma, acreditamos que há, no que se chama poesia, forças vivas,
[...]. Assim como nossos sonhos agem sobre nós e a realidade age sobre nossos
sonhos, pensamos que podemos identificar as imagens da poesia com um so-
nho, que será eficaz na medida em que será lançado com a violência necessária.
[...] Daí o apelo à crueldade e ao terror, mas num plano vasto, e cuja amplidão
sonda nossa vitalidade integral, nos coloca diante de todas as nossas possibilida-
des”. Edição brasileira: ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Tradução de
Teixeira Coelho. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 97.
15
Ver o texto “Atletismo afetivo”, no quarto volume das Obras completas (1994b,
pp. 125-33).
68 Antonin Artaud
Car on touche mieux les états du Bardo dans la vie que dans la
mort parce qu’on n’y a plus de conscience et que la conscience
de l’autre côté est mauvaise, étant celle qui n’a plus à faire au
corps particularisé mais à l’esprit universalisé […]. Or ces
bêtes ne sont pas dans la mort mais ce sont celles qui sont
dans la vie et qui du mort veulent se faire entendre afin de
lui prendre son restant de vie. […]. Ce qui veut dire que la
vie et la mort sont à reprendre sur d’autres bases et que c’est
le problème auquel je ne cesse en silence de m’attaquer depuis
que j’ai pensé au théâtre de la cruauté; il y a sur la terre trop de
crimes rituels, de yogis, de lamas, de messes, d’incantation, de
sacrifices sacrés, ou non sacrés mais toujours ritualisés, pour
qui les gens puissent vivre en paix16 (1978a, p. 123).
16
Tradução: “Pois os estados do Bardo são mais palpáveis na vida do que na
morte, porque nesta não há mais consciência, e a consciência do outro lado é
ruim, sendo uma que não tem mais a ver com o corpo particularizado, mas
com o espírito universalizado [...]. Ora, estas bestas não estão na morte, mas
são aquelas que estão na vida e que querem se fazer ouvir pelo morto a fim de
captar-lhe seu resto de vida. [...] O que quer dizer que a vida e a morte devem
ser retomadas sobre outras bases e que este é o problema ao qual eu não cesso
em silêncio de me atacar desde que comecei a pensar no teatro da crueldade;
há sobre a terra muito de crimes rituais, iogues, lamas, missas, encantação,
sacrifícios sagrados, ou não sagrados, mas sempre ritualizados, para que as
pessoas possam viver em paz”.
Fragmentações 69
17
Mesma questão reaparece em sua Correspondência com Jacques Rivière.
18
Tradução: “Conheceis alguma coisa mais / ultrajantemente fecal / que a história
de deus / e de seu ser: SATÃ, / a membrana do coração / a porca ignominiosa
/ do ilusório universal / que de suas tetas babosas / Jamais nos dissimulou /
senão o Nada? // Em face desta ideia de um universo pré-estabelecido, / até
agora o homem não chegou a estabelecer / sua superioridade sobre os impérios
da possibilidade.”
70 Antonin Artaud
19
Tradução: “a abjeção, para Artaud, não mais designa, como na ordem simbólica
ocidental, estas forças que vêm talhar as fronteiras dos corpos (a podridão, os
72 Antonin Artaud
excrementos, os fluxos, os escoamentos) [...]. Por uma reversão total dessa ló-
gica, o abjeto não é mais este objeto decaído, ejetado do sistema simbólico que
permite que ele se constitua como ‘próprio’; é, ao contrário, o sistema simbólico
inteiro que é considerado como abjeto”.
20
Tradução: “Pois se não há nada / não há nada / além desta ideia excremental /
de um ser que teria feito, por exemplo, as bestas. // E de onde vêm as bestas /
neste caso?”.
Fragmentações 73
de ce qu’une distinction
a pu s’établir entre
la vie organique embryonnaire pure
et la vie passionnelle
et concrète intégrale du corps humain.
Le corps humain est une pile électrique
chez qui on a chatré et refoulé les décharges22
(1996d, p. 108).
21
Ele diz em carta a Marthe Robert, maio 1946: “Or ces bêtes ne sont pas dans
la mort mais ce sont celles qui sont dans la vie […]. Et elles parlent pour leur
compte propre mais les rites imbéciles des lamas parachèvent leurs influences,
car les bêtes sont des mauvais esprits mais les prêtres des mauvaises bêtes”
(1986b). [Tradução: “Ora estas bestas não estão na morte, mas são aquelas que
estão na vida [...]. E elas falam por conta própria, mas os ritos imbecis dos lamas
perfazem suas influências, pois as bestas são espíritos ruins, mas os sacerdotes,
ruins bestas.]
22
Tradução: “Disto que o mundo das percepções corporais / não está em seu pla-
no / nem no ponto, // disto que há uma vida psíquica / e nenhuma vida orgânica
real, // disto que a simples ideia de uma vida orgânica pura / pode ser posta, //
disto que uma distinção / pôde instalar-se entre / a vida orgânica embrionária
pura / e a vida passional / e concreta integral do corpo humano. // O corpo
humano é uma pilha elétrica / em quem castraram e recalcaram as descargas”.
74 Antonin Artaud
23
Tradução: “de quem se orientaram para a vida sexual / as capacidades e os acentos
/ quando ele é feito / justamente para absorver / por seus deslocamentos voltaicos /
todas as disponibilidades errantes / do infinito do vazio, / dos furos de vazio / mais
e mais incomensuráveis / de uma possibilidade orgânica jamais preenchida”.
24
Seria interessante notar todo um diálogo possível entre a reivindicação de Ar-
taud pela reconstrução dos corpos, ou mesmo por um Corpo sem Órgãos e as
recentes discussões que configuram hoje os estudos de gênero.
76 Antonin Artaud
d’avant en arrière,
mais beaucoup plus d’arrière en arrière,
d’ailleurs, que d’arrière en avant,
et le problème de la raréfaction
des denrées alimentaires
n’aura plus à se résoudre,
parce qu’il n’aura plus lieu,
même, de se poser25
(1996d, p. 109).
Mais je veux dire plus simplement que le corps mutilé est cet
estomac de misère qui cherche toujours à se rassembler. Et que
le crime est de le faire monter dans les cimes, quand il aurait
mieux aimé être enterré rassemblé. Car la terre lui rend un
corps, elle le farcit, elle l’épaissit, alors que l’éther le dissémine
et l’oblige à d’étranges détentes, d’étranges retentes de ressort
pour parvenir à ressortir au jour26 (1978b, pp. 26-7).
25
Tradução: “Fazei dançar enfim a anatomia humana, / de alto a baixo e de baixo
a alto, / de trás pra frente e / da frente pra trás, / mas muito mais, aliás, de trás
pra trás, / que de trás pra frente, / e o problema da rarefação / dos gêneros ali-
mentícios / não será mais pra se resolver / pois não terá mais lugar, / sequer, de
se colocar”.
26
Tradução: “Mas quero dizer mais simplesmente que o corpo mutilado é este estô-
mago de miséria que busca sempre reintegrar-se. E que o crime é fazê-lo subir aos
cimos, quando ele teria preferido ser enterrado inteiro. Pois a terra dá-lhe um cor-
Fragmentações 77
27
Tradução: “Em O teatro e a peste (1933), ele parecia evocar esse espaço turbilhonante
do mito negro onde acabará por submergir na noite seu destino de vítima sacrificial”.
28
Tradução: “todas as perseguições e terrores sobrevêm da infância”.
80 Antonin Artaud
29
Tradução: “essas figuras monstruosas e devoradoras podem também assumir
formas mais sólidas e concretas, aquelas dos representantes de uma sociedade
da qual ele se sente expulso”.
30
Tradução: “Há, portanto, dois tipos de pluralismo. Um é filosofia da ambigui-
dade, experiência do ser múltiplo. E depois, esse outro estranho pluralismo,
sem pluralidade nem unidade, que a palavra-fragmento porta em si como a
provocação da linguagem”.
Fragmentações 81
Fome não seria a mesma coisa que alimento ou comida, que ape-
tite. O poeta diz em outro texto: “comme s’il y n’y avait pas des
gens qui mangent / sans aucune espèce d’appétit; / et qui ont faim.
// Car cela aussi / existe / d’avoir faim / sans appétit”31 (1996d,
p. 93). Do contrário, como mostrou Pasi, teríamos que nos co-
locar frente à fome como “pulsão vital que pode acionar um re-
nascimento, a nova obra, a realização da nova anatomia” (2000,
p. 185).32 E encontrar na sexualidade “la menace qui inverse la
tendence constructive de la faim en danger d’anéantissement où
se fait jour la phobie du toucher, du contact sexuel33” (Pasi, 2000,
p. 185). Quanto a nós, defenderíamos que a fome não se opõe à
sexualidade, apenas o apetite se caracterizou como sexual. E o se-
xual se caracterizou como sendo um só: orgânico, fálico, humano
(modelo Homem), heterocentrado: “Le corps humain a besoin de
manger, mais qui a jamais essayé autrement que sur le plan de la
vie sexuelle les capacités incommensurables des appétits?”34, in-
daga o poeta. Dessa forma, Artaud destina à fome um lugar dife-
renciado daquele que é dado ao apetite. Ele denuncia, ainda, uma
“produção” alimentar crítica ao discurso “salutar” e aí encontra-
-se uma equivalência simbólica entre comida e sexo e não uma
oposição simbólica entre fome e sexualidade: “Faites danser enfin
l’anatomie humaine, / […], / et le problème de la raréfaction ali-
mentaire / des denrées alimentaires / n’aura plus à se résoudre”35.
Produção de sexualidade ou rarefação de alimentos são equivalen-
31
Tradução: “como se não houvesse gente que come / sem apetite algum; / e que
tem fome. // Pois também isso/ existe: / ter fome / sem apetite”.
32
“La faim devient alors la pulsion vitale qui peut amorcer une renaissance, la
nouvelle oeuvre, la réalisation d’une nouvelle anatomie.”
33
Tradução: “a ameaça que inverte a tendência construtiva da fome em perigo de
aniquilamento, em que surge a fobia do toque, do contato sexual”.
34
Tradução: “O corpo humano precisa comer, mas quem alguma vez experimen-
tou de outra maneira, que não no plano da vida sexual, as capacidades inco-
mensuráveis dos apetites?”.
35
Tradução : Fazei dançar enfim a anatomia humana, / [...], / e o problema da
rarefação / dos gêneros alimentícios / não será mais pra se resolver”.
82 Antonin Artaud
36
Tradução: “é preciso conhecer o verdadeiro nada desfiado, o nada já sem órgãos”.
Fragmentações 83
37
“On a fait manger le corps humain, / on l’a fait boire, / pour s’éviter / de le faire
danser. // On lui a fait forniquer l’occulte / afin de se dispenser / de pressurer
/ et de supplicier la vie occulte. // Car il n’y a rien / comme la soi-disant vie
occulte / qui ait besoin d’être supplicié. / C’est là que dieu et son être ont pensé
fuir l’homme dement, / là, sur ce plan de plus en plus absent de la vie / occulte
/ où dieu a voulu faire croire à l’homme / que les choses pouvaient être vues et
saisies en / esprit, / […] / Mais le monde des démons est absent. Il ne rejoindra
jamais l’évidence. / Le meilleur moyen de s’en guérir / et de le détruire / est
d’achever de construire la réalité. / Car la réalité n’est pas achevée, / elle n’est pas
encore construite. De son achèvement dépendra / dans le monde de la vie éter-
nelle / le retour d’une éternelle santé. // Le théâtre de la cruauté […]” (1996d,
p. 109). [Tradução: “Fizeram o corpo humano comer, / fizeram-no beber, /
para evitar / fazê-lo dançar. // Fizeram-no fornicar com o oculto / a fim de se
dispensar / de espremer / e supliciar a vida oculta. // Pois não há nada / como
a pretensa vida oculta / que precise ser supliciado. / Foi para lá que deus e seu
ser cuidaram fugir ao homem demente, / lá, nesse plano mais e mais ausente da
vida / oculto / onde deus quis persuadir o homem / de que as coisas podiam ser
vistas e tocadas / em espírito, / [...] / Mas o mundo dos demônios está ausente.
Nunca mais se juntará à evidência. / O melhor meio de curar-se dele / e destruí-
-lo / é concluir a construção da realidade. / Pois a realidade não está concluída,
/ ela ainda não está construída. De seu acabamento dependerá / no mundo da
vida eterna / o retorno de uma saúde eterna. // O teatro da crueldade [...]”.
84 Antonin Artaud
38
Lembro aqui o caráter de inversão proposto por Evelyne Grossman no tocante
ao fenômeno da abjeção.
39
Tradução: “A fome não espera, /Acorrer ao mais aflito, / Dar de comer a todos.
/ O que resta? / Onde se abriga o problema? / Açúcar / Café / Trigo moenda /
Batatas refinaria / Outros legumes padaria / Vinho alimentação”.
40
Tradução: “não gosto dos poemas de nutrição, mas daqueles da fome”.
Fragmentações 85
41
Tradução: “Mas uma intervenção, já que uma intervenção é inevitável e neces-
sária, não poderia fazer-se, para ser ela mesma eficaz e decisiva, senão no sentido
de um certo número de necessidades naturais e farejando os acontecimentos
[...] Que a situação seja grave, angustiante, e, mais que angustiante, ameaçado-
ra, ninguém o negará, e talvez não dependa mais de nós o ela se tornar, de hoje
pra amanhã, catastrófica [...]. O estado não aloca empregos, mas as municipa-
lidades, desejosas de qualquer maneira a não deixar absolutamente morrer de
fome os trezentos mil desempregados da região parisiense, pegam dos fundos de
assistência apressadamente organizados uma soma de seis a oito francos por dia
para dar a cada desempregado, que, por pouco que tenha uma família, tem o
bastante para conservar com isso o tanto de forças necessárias para se ver lucida-
mente morrer de fome. Esta é a solução tal qual se pinta aos desprevenidos e aos
ignorantes. Mas esses elementos são insuficientes para erguer, diante dos olhos
86 Antonin Artaud
car “un angle par lequel mon drame particulier touche à la vie
genérale”42 (1978a, p. 220).
O poeta reafirma a necessidade de um teatro cruel como
“retorno de uma eterna saúde”, sendo essa a possibilidade de
“construir a própria realidade”: “Le meilleur moyen de s’en gué-
rir / et de le détruire/ est d’achever de construire la réalité. / Car
la réalité n’est pas achevée, / elle n’est pas encore construite. / De
son achèvement dépendra/ dans le monde de la vie éternelle/
le retour d’une éternelle santé”43 (1996d, p. 110). O teatro da
crueldade estaria ligando mundos diferentes, um mundo onde a
vida seria eterna e este outro onde caracterizamos a realidade. É
importante assinalar que a trajetória de Artaud está marcada por
essa concepção de um outro plano que não se resume à existên-
cia disso que chamamos realidade. Como assinalamos, em um
primeiro momento – marcado por seu encontro com o teatro
balinês na Exposição Colonial, de 1931 (1994b, pp. 51-66), em
Paris, sua pesquisa sobre Heliogábalo (1982b, 7-115), que resulta
em livro escrito em 1934, sua busca por uma cultura viva no Mé-
xico em 1936 e todos os seus estudos sobre a cabala e as religiões
orientais claramente presentes no livro As novas revelações do ser
(1982b, pp. 115-44), de 1937, assim como n’O teatro e seu duplo,
escrito a partir de 1931 e publicado em 1938 – Artaud parecia se
ligar à ideia de uma mística das origens, ou ainda, a construção
de um lugar primeiro, puro, originário, uno, que a cena teatral
deveria atualizar ou rerritualizar.
Mas, aqui, e em todo seu último período criador, ocorre
um deslocamento importantíssimo. Permanece a ideia de que os
corpos não se esgotam sobre o plano em que os concebemos; per-
manece, portanto, a necessidade de refazê-los. Permanece, ainda,
a ideia de um plano temporal do retorno, que nos aponta para
42
Tradução: “um ângulo pelo qual meu drama particular toca a vida geral”.
43
Ver nota 78.
88 Antonin Artaud
44
Tradução: “O teatro da crueldade / não é o símbolo de uma vida ausente, / de
uma assustadora incapacidade de se realizar na / sua vida de homem. / Ele é a
afirmação / de uma terrível / e, aliás, inelutável, necessidade”.
45
Tradução: “Apenas uma cultura unitária sugere a ele uma visão que torna pos-
sível a reconquista de uma ideia de totalidade”.
Fragmentações 89
46
Ver o texto “Pour en finir avec le jugement de dieu”, no 13o volume das Obras
completas (1996d, pp. 84-7).
90 Antonin Artaud
47
Assinalamos aqui a viagem ao México feita por Artaud em 1937, na trilha desse
novo homem.
48
Tradução: “Sobre as escarpas nunca visitadas / Do Cáucaso / Dos Cárpatos /
Do Himalaia / Dos Apeninos / Têm lugar dia a dia, / Noite e dia, / Há anos e
anos, / Terríveis ritos corporais / Em que a vida negra, / A vida jamais controla-
da e negra / Compraz-se em terríveis e repugnantes repastos”.
Fragmentações 91
49
“Não é preciso procurar em outros lugares / que não estas danças rituais negras
/ a origem de todos os eczemas, / de todas as zonas / de todas as epidemias, / de
todas as pestes / de que a medicina moderna, / a cada passo mais perdida, / se
mostra impotente para encontrar a cauterização”.
92 Antonin Artaud
Où sont-ils?
Au niveau où dans les profondeurs
de certaines tombes
en des endroits historiquement
sinon géographiquement insoupçonnés
[…]
Là, les vivants s’y donnent rendez-vous
avec les morts
[…]
Ce sont ces soulèvements
où la rencontre de deux mondes inouïs se peint
sans cesse50
(1996d, pp. 114-5)
50
Tradução: “Escutando a respiração ou o pulso de um doente, / dando ouvidos,
diante dos campos de concentração / desses corpos racionados pela miséria, /
às batidas de pés, de troncos e de sexos / do campo imenso e recalcado / por
certos terríveis micróbios / que são / outros corpos humanos. // Onde estão?
No nível onde as profundezas / de certas tumbas / e de sítios historicamente / se
não geograficamente insuspeitos / [...] / Ali os vivos vão se encontrar / com os
mortos / [...] / São esses levantes / Onde o encontro de dois mundos inauditos
se pinta / sem trégua”.
Fragmentações 93
Post-Scriptum
Qui suis-je?
D’où je viens?
Je suis Antonin Artaud
et que je le dise
comme je sais le dire
immédiatement
vous verrez mon corps actuel
voler en éclats
et se ramasser
sous dix milles aspects
notoires
un corps neuf
où vous ne pourrez
plus jamais
m’oublier51
(1996d, p. 118)
51
Tradução: Pos Scriptum / Quem sou eu? / De onde venho? / Eu sou Antonin Ar-
taud / e que eu o diga / como o sei dizer / imeditamente / você verá meu corpo
atual / voar em estilhaços / e se recompor / sob dez mil aspectos / notórios / um
corpo novo / onde você não poderá / jamais / me esquecer”.
94 Antonin Artaud
52
Lembramos aqui que essa via de abordagem nos foi aberta nas discussões
propostas pelo curso do Professor Gerard Dessons intitulado “Antonin Ar-
taud – fou du langage” na universidade de Paris 8 Saint Denis ano letivo de
1999-2000.
Fragmentações 95
dix ans que j’ai fait sauter une fois de plus le Moyen
Age,
[…]
Comment?
Par un coup
anti-logique
anti-philosophique,
anti-intelectuelle,
anti-dialectique
de la langue
par mon crayon noir appuyée
et c’est tout.53
(1995, p. 55)
je dis donc que le langage écarté c’est une foudre que je faisais
venir maintenant dans le / fait humain de respirer, laquelle mes
coups de crayon sur le papier sanctionnent. / Et depuis un cer-
53
Tradução: “Dez anos que a linguagem partiu, / no seu lugar entrou / esse trovão
atmosférico / esse raio, / diante da pressão aristocrática dos seres, / de todos os
seres nobres, / do cu, / cono, da piroca, / da lingueta, / da pingoleta, / pingolada,
/ pactolota / da transa tegumentar, / da película, / nobres raciais da erótica cor-
poral, / contra mim, simples virgem do corpo, / dez anos que fiz rebentar uma
vez mais a Idade Média, / [...] / Como? / Por um golpe / antilógico / antifilosó-
fico / anti-intelectual / antidialético / da língua / por meu lápis negro apoiado /
e isso é tudo”.
96 Antonin Artaud
tain jour d’octobre 1939 je n’ai jamais plus écrit sans non plus
dessiner54 (1995a, p. 56).
54
Tradução: “digo então que a linguagem separada é um raio que eu fazia vir
agora no / fato humano de respirar, o qual meus golpes de lápis sobre o papel
sancionam. / E desde certo dia de outubro de 1939 nunca mais escrevi sem
também desenhar”.
55
Alertamos para o fato de que Artaud, no texto sobre Van Gogh, vai incisiva-
mente criticar a força com a qual a sociedade se recusou a ouvir o pintor – recu-
sa que, para Artaud, se manifesta logicamente na orelha decepada de Van Gogh.
56
“Or ce que je dessine ce ne sont plus des thèmes d’Art transposés de l’imagi-
nation sur le papier, ce ne sont pas de figures affectives, ce sont des gestes, un
verbe, une grammaire, une arithmétique, une Kabbale et qui/ chie à l’autre,
qui chie sur l’autre” (1995a, p. 56). [Tradução: “Ora, o que eu desenho não
são mais temas da Arte transpostos da imaginação para o papel, não são mais
figuras afetivas, são gestos, um verbo, uma gramática, uma aritmética, uma
Cabala, e que / caga pro outro, que caga em cima do outro”.]
57
Tradução: “E isso quer dizer que é hora de o escritor fechar negócio, e abando-
nar a letra / escrita pela letra”.
Fragmentações 97
58
Tais textos encontram-se dispersos nos Cadernos ou então reunidos no catálogo
do Musée de Marseille aqui já citado. Eles serão indicados no decorrer desse
trabalho.
Fragmentações 99
59
Costuma-se atribuir o nome Grands dessins-écrits de Rodez ao trabalho plástico
efetuado por Artaud no período entre 1945 e a sua morte em 1948. A maioria
deles feitos com lápis e giz sobre papéis de 65,5 x 50,5 cm. O adjetivo – grande
– refere-se ao suporte utilizado em contraposição aos inúmeros desenhos que
participam de toda sua escrita sobre os “pequenos cadernos de escola” utilizados
por Artaud em Rodez e, posteriormente, em Ivry, Paris.
60
Os Cadernos estão nas Obras completas, do 15o ao 25o volume.
61
Frisamos que a edição linearizou a escrita e excluiu os pequenos desenhos que
constelam a feitura de todos os cadernos de Artaud. Hoje, na edição de 2004,
empreendida por Evelyne Grossman para Quarto Gallimard, encontram-se
muitas fotos em miniatura dos microfilmes dos cadernos de Artaud. Permi-
tindo ao leitor, se não uma edição (até certo ponto irrealizável) que espelha a
colocação na página de sua escrita e os desenhos de seus Cadernos, ao menos o
exemplo e contato com as fotos de algumas das páginas dos mesmos.
100 Antonin Artaud
62
Tradução: “Eu, por mim, não sei, / não há senão os seres pra acharem que sem-
pre sabem e serem atormentados / pela obsessão do saber e a presunção de seu
saber. / A ciência me ofusca / e às minhas relações com as coisas, / a consciência,
/ é escavar com uma afirmação negadora a petulância / de um saber passageiro,
/ inventar a negação de um saber”.
102 Antonin Artaud
63
Tradução: “E em oposição a esse modo de ver, modo que me parece bem oci-
dental, ou antes latino, isto é, obstinado, diria que na medida em que essa
linguagem parte da cena, onde extrai sua eficácia de sua criação espontânea em
cena, na medida em que se confronta diretamente com a cena sem passar pelas
palavras (e por que não imaginar uma peça composta diretamente em cena,
realizada em cena?), o teatro é a encenação, muito mais do que a peça escrita
ou falada. Pedir-me-ão, sem dúvida, que explique o que há de latino nesta visão
oposta à minha. O que existe de latino é esta necessidade de utilizar palavras
para expressar ideias que sejam claras. Para mim, no teatro, como em toda
parte, ideias claras são ideias mortas e acabadas”. Edição brasileira. ARTAUD,
Antonin. O teatro e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p. 40 (Coleção Tópicos).
104 Antonin Artaud
64
“C’est ce qui me frappe le plus dans van Gogh, le plus peintre de tous les
peintres et qui, sans aller plus loin que ce qu’on appelle et qui est la peinture, sans
sortir du tube, du pinceau, du cadrage du motif et de la toile pour récourir à
l’anedocte, au récit, au drame, à l’action imagée, […], est arrivé à passionner la
nature et les objets” (1996d, p. 28, grifo meu). [Tradução: “E é isto que mais
me toca em Van Gogh, o mais pintor de todos os pintores, e que, sem ir além
do que se chama pintura e que é pintura, sem deixar de lado o tubo, o pincel,
o enquadramento do assunto e da tela, para recorrer à anedota, à narrativa, ao
drama, à ação imaginada, [...], conseguia passionalizar a natureza e os objetos”.
Edição brasileira: ARTAUD, Antonin. Van Gogh: o suicida da sociedade. Tradu-
ção de Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003, p. 49.]
Fragmentações 105
65
Tradução: “Ele a ataca como a uma palavra latina. Sem ter medo da palavra:
uma coisa latina, esta sedimentação histórica de uma coisa consolidada com
uma palavra, não longe do sujeito e da substância, das ideias que sejam claras
de Descartes”.
66
Tradução: “Essa é a segunda ou terceira vez que falo aqui em metafísica. Ainda
há pouco, a respeito da psicologia, eu falava de ideias mortas e sinto que muitos
se veriam tentados a dizer-me que, se existe no mundo uma ideia inumana,
106 Antonin Artaud
uma ideia ineficaz e morta e que pouco diz, mesmo ao espírito, essa ideia é
exatamente a da metafísica”. Edição brasileira: ARTAUD, Antonin. O teatro e
seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 44.
(Coleção Tópicos).
67
“Or tirer les conséquences poétiques extrêmes des moyens de réalisation c’est en
faire de la métaphysique.”
68
Tradução: “Fazer a metafísica da linguagem articulada é fazer com que a lingua-
gem sirva para expressar aquilo que normalmente ela não expressa: é usá-la de
um modo novo, excepcional e incomum, é devolver-lhe suas possibilidades de
comoção física, é dividi-la e distribuí-la ativamente no espaço, é tomar as ento-
nações de uma maneira concreta absoluta e devolver-lhe o poder que teriam de
dilacerar e manifestar realmente alguma coisa, é voltar-se contra a linguagem e
suas fontes rasteiramente utilitárias, poder-se-ia dizer, alimentares, contra suas
origens de animal acuado, é, enfim, considerar a linguagem sob a forma do En-
Fragmentações 107
69
Tradução: “Isto que ele nomeia metafísica não corresponde, com efeito, àquilo
que a tradição filosófica ocidental entende pela mesma palavra. Essa tradição
introduz um dualismo radical no universo, já que ela distingue somente o físico
(sensível, visível, cientificamente dominável) daquilo que o ultrapassa e se situa
‘além’ (está aí um dos sentidos do prefixo grego meta-), [...] Artaud recusa esse
dualismo. Para ele, a metafísica ainda é, sem dúvida, o fundamento do físico,
mas ela não se torna por tal insensível e imaterial. Bem ao contrário: não há
metafísica que não seja o que aflora no físico, que transparece no visível. A me-
tafísica é uma física primeira, ou primordial. Ela se torna então o lugar de uma
busca possível: a sua manifestação é concebível, como união, ou melhor, como
unidade, do concreto e do abstrato, ou, caso se prefira, como prolongamento
ou ressonância recíproca de um no outro”.
Fragmentações 109
70
Tradução: “E há, neste ponto, uma revolução sempre por fazer, com a condição
de que o homem não se pense revolucionário somente no plano social, mas que
acredite dever ainda, e sobretudo, sê-lo no plano psíquico, fisiológico, anatômi-
co, funcional, circulatório, respiratório, dinâmico, atômico e elétrico”.
71
Tradução: “Estes desesperados que, com medo de serem parvos, se agarram ao
farrapo mais roto da vida. Que não querem considerar mais outra ação além
daquela capaz de mudar alguma coisa na ordem bruta da realidade! Conferem
ao problema da revolução a sua solução mais sistemática!”.
Fragmentações 111
72
Tradução: “O surrealismo não podia me devolver uma substância perdida, mas
ele me ensinou a não mais buscar no trabalho do pensamento uma continuida-
de que se me tornara impossível, e a saber me contentar com as larvas que meu
cérebro fazia rastejar diante de mim”.
112 Antonin Artaud
73
Tradução: “A eternidade repica a paciência. Enquanto espero, gasto meu freio.
Mas, acima de tudo, eu precisava me liberar. Bem determinar a minha solidão.
Eu posso sofrer só. Eu sei que o tempo me vinga”.
Fragmentações 113
Maloussi toumi
Tapapouts hermafrots.
Emajouts pamafrot
Toupi pissarot
Rapajouts erkampfti
Ce n’est pas le concassement du langage mais la pul-
vérisation
hasardeuse du corps par des ignares qui
Lokalu durgarane
Lokarane alenin tapenin
Anempfti
Dur geluze
Re geluze
Re geluze
74
Ver, por exemplo, “Entretien avec Michel Foucault” (Artaud, 1994b, pp. 41-95).
114 Antonin Artaud
Tagure
Rigolure tsipi
Nulle autre partouze d’esprit n’explique la constitution des
choses,
il n’y a pas de choses,
elles n’ont pas de constitution.
C’est la pétée des gaz érotiques de l’endroit où ça tombe
mort.
75
Tradução: Maloussi toumi / Tapapouts hermafrots. / Emajouts pamafrot / Toupi
pissarot / Rapajouts erkampfti / Isto não é o trituramento da linguagem mas a
pulverização / temerária do corpo pelos ignaros que / Lokalu durgarane / Loka-
rane alenin tapenin /Anempfti / Dur geluze / Re geluze / Tagure / Rigolure tsipi
/ Nenhuma outra suruba do espírito explica a constituição / das coisas, / não
há coisas, elas não têm constituição. / É a peidada dos gases eróticos do lugar
onde isso cai / morto. // Do corpo pelo corpo com o corpo desde o corpo e até
o corpo./ A vida, a alma só nascem depois. Elas não vão mais nascer. / Entre
o corpo e o corpo, nada há. / O corpo se faz atrás de si mesmo, não na frente,
/ por incisões de aditivos – gosto, / muito menos que o inerte nada, / que de
cem trens o ultrapassa”.
Fragmentações 115
76
Tradução: “Artaud naturalizado beatnik”.
77
Tradução: “A palavra soprada”.
78
Tradução: “Artaud homem de teatro”.
79
Tradução: “Os Cenci”.
80
Tradução: “Artaud em toda parte”.
81
Tradução: “Van gogh e Artaud – os gritos de poetas assassinados”.
116 Antonin Artaud
82
Tradução: “Artaud – o gênio louco”.
83
Todas essas informações são oriundas de pesquisas em fontes jornalísticas da épo-
ca, que realizamos em fevereiro de 1998 na Bibliothèque de L’Arsenal em Paris.
84
Tradução: “Sem-futuro, /Sem-infinito, / sem-eternidade/ sem-problema, /
sem-questão, / sem-solução / sem-cosmos, / sem-gênese, / sem-crença, / sem-
-fé, / sem-ideia, / sem-unidade”.
Fragmentações 117
Tous les gestes sont des défenses ou même des attaques, esqui-
ves, parades, anticipation d’un coup qu’on ne voit pas toujours
arriver, ou d’un ennemi qu’on arrive pas toujours à identifier:
d’où l’importance des postures du corps. Mais ces combats ex-
térieures, ces combats-contre trouvent leur justification dans
des combats-entre qui déterminent la composition des for-
ces dans les combattants. Il faut distinguer le combat contre
l’Autre, et le combat entre Soi85 (1993, p. 165).
85
Tradução: “Todos os gestos são defesas ou mesmo ataques, esquivas, paradas,
antecipações de um golpe que nem sempre se vê chegar, ou de um inimigo que
nem sempre se consegue identificar: daí a importância das posturas do corpo.
Mas esses combates exteriores, esses combates-contra encontram sua justifica-
118 Antonin Artaud
ção nos combates-entre que determinam a composição das forças nos comba-
tentes. É preciso distinguir o combate contra o Outro e o combate entre Si”.
86
A proposta se situa claramente no texto “Avant propos”, em Critique et Clinique.
Fragmentações 119
87
Tradução: “Quem ligou o sentido, ligou o pensamento, e quem ligou o sentido
ao pensamento, / ligou-os em função de uma ideação preventiva que tinha /
suas tabelas formais escritas, suas tabelas de significações / perceptivas inscritas
sobre as paredes de um cérebro invertido. / É que o cérebro é simplesmente
um duplo que libera / por projeção um som por um signo, um sentido por um
som, / um sentimento por um signo de ser, [...]. / E cada livro escrito será lido,
e não poderá mais dizer nada a / cérebros completamente decompostos, depois
de terem sido / arbitrariamente impostos e reimpostos. / [...] // Eu conheço um
estado fora do espírito, da consciência, do ser, / e que não tem mais palavras
nem letras, / mas onde se entra com gritos e golpes. // E não são mais sons ou
sentidos que saem, / não mais palavras, / mas CORPOS”.
Fragmentações 121
88
Tradução: “Os lobos do cérebro não são infinitos, tampouco o infinito, mas
ele dura”.
89
Tradução: “A tristeza hedionda do vazio, / do buraco onde não há nada, / ele
não sopra o nada, / não tem nada, / é em torno da toca, / no ponto onde as
palavras se retiram, / um buraco sem palavra, / sílaba sem sons”.
122 Antonin Artaud
90
Tradução: “A eletricidade é um corpo, um peso, / a piloada de uma face, / o ímã
empilhado de uma superfície repelida de fora de um golpe, / à orla desse golpe,
/ soco azul da minha mão verde de desespero e de / cólera, um dia que ante /
esse golpe / o buraco que eu vinha trazer às coisas / tragou minha mão / não
para escapar da pancada, / mas pra ser o senhor, / enfim”.
Fragmentações 123
91
Tradução: “os fundos do corpo / em sua face / não dão mais nada / porque a
face apreendeu o fora e o dentro, / mas silêncio”.
92
Tradução: O que o corpo é, é a emaciação da matéria por si mesma, / ganhada
por si mesma; / aquilo que não se ganhou na dor de si mesmo / tomba na hora
da morte / [...] / Pois nada pra bestializar um corpo como o gosto da felici-
dade eterna, a busca a todo custo da felicidade eterna, / e senhorita Lúcifer é
essa puta que nunca quis abandonar a felicidade eterna. // Mas agora a velha
prospecção cósmica de deus / não terá mais lugar. // A famosa dimensão total é
tornar-se, simples homem, / tão forte quanto todo o infinito”.
124 Antonin Artaud
Et abstrait,
enfin,
tu le seras,
ô homme,
homme,
tu le seras,
homme,
jusqu’au corps,
jusqu’à ce qu’enfin
le corps
s’avance,
jusqu’au point
où le corps
s’avance,
où il s’annonce comme un corps,
par delà le concret du corps,
dit concret
par l’intelligence
ou la science93
(1978b, p. 51).
93
Tradução: “E abstrato, enfim, / tu serás, / ó homem, / homem, / tu o serás, /
homem, / até ao corpo, / até que enfim / o corpo / se adiante / até o ponto /
onde o corpo / se adianta, / onde ele se anuncia como um corpo, / para além do
concreto do corpo, / dito concreto / pela inteligência / ou a ciência”.
94
“O homem e a sua dor”. Indicamos dois livros catálogos na seção “Referências”
deste livro, onde se encontram os desenhos aqui citados: tanto a edição do
Musée de Marseille quanto a Edição Gallimard organizada por Jacques Derrida
e Paule Thévenin.
Fragmentações 125
95
Tradução: “Não, nem mesmo a morte saberia detê-lo”.
Capítulo 2
“Lettres, lettre, l’être”
Voici le texte de la lettre que je reçus de Jean Paulhan alors son se-
crétaire, vers le mois de septembre 1923: / “Cher Monsieur, / voici
vos poèmes, auquels moi je trouve un grand charme. Il semble à
Jacques Rivière que ce charme ne soit ni assez ferme, ni encore
assez assuré.” / A la suite de cette lettre, je travaillai encore un mois
à écrire un poème verbalement, et non grammaticalement, réussi.
Puis j’y renonçai. La question n’étant pas pour moi de savoir ce
qui parviendrait à s’insinuer dans le cadre du langage écrit, / mais
dans la trame de mon âme en vie1 (1994a, p. 8).
1
Tradução: “Eis o texto da carta que recebi de Jean Paulhan, então seu secretário,
no mês de setembro de 1923: / ‘Prezado Senhor, / aí estão seus poemas, nos
128 Antonin Artaud
quais eu mesmo vejo um grande charme. Parece a Jacques Rivière que este char-
me não está nem firme o bastante, nem ainda suficientemente consolidado.’ /
Em seguida a esta carta, eu trabalhei ainda um mês na escrita de um poema ver-
balmente, e não gramaticalmente, bem sucedido. Depois, renunciei. Não sendo
para mim questão de saber o que viria a se insinuar na moldura da linguagem
escrita, / mas na trama de minha alma em vida”.
2
Tradução: “Eu não sou um crítico, como Brunetière ou Benjamin Crémieux,
para avaliar o tipo de trabalho que eu realizei escrevendo estas cartas, e se é ver-
dade que é toda a questão da inspiração poética e de seu verbo / (e de seu verbo
- o quê, então, seu verbo?, isto se chama, digamos, prosódia) / que eu retomei
neste escrito. / [...] / A inspiração não é senão um feto e o verbo também não é
senão um feto. Eu sei que quando quis escrever eu falhei com as palavras e isso
é tudo. E eu nunca soube de mais nada”.
“Lettres, lettre, l’être” 129
3
“L’homme qui pense se dépense à fond” (1994a, p. 35). [Tradução: “O homem
que pensa se esgota”.]
130 Antonin Artaud
4
Tradução: “Há portanto uma qualquer coisa que destrói meu pensamento.
Uma qualquer coisa que não me impede de ser o que eu poderia ser, mas que
me deixa, se assim posso dizer, em suspenso”.
5
Tradução: “Este livro, eu o ponho em suspensão na vida, eu quero que ele seja
mordido pelas coisas exteriores, e antes de tudo, por todos os sobressaltos em
cisalha, todos os piscares de olhos de meu eu por vir”.
6
Tradução: “Portanto, os poemas deste livro falhado são do teor daqueles que me
foram recusados por Jacques Rivière para a N.R.F. e a propósito dos quais eu
lhe escrevi as cartas que seguem”.
“Lettres, lettre, l’être” 131
7
“C’est la celèbre correspondance avec Jacques Rivière, un événement d’une
grande signification” (Blanchot, 1959, pp. 50-8). [Tradução: “É a célebre cor-
respondência com Jacques Rivière um acontecimento de grande significância”.
Edição brasileira: BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Tradução de Leyla
Perrone-Moisés. São Paulo: 2005, p. 47. (Coleção Tópicos).
8
Tradução: “Estamos, pois, na vizinhança de uma questão à qual parecem liga-
das a literatura e a arte em geral: se não há poema que não tenha por ‘assunto’,
tácito ou manifesto, sua realização como poema, e se o movimento do qual
provém a obra é aquilo com vistas a que a obra é por vezes realizada, por vezes
sacrificada”. Edição brasileira: BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad.
Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: 2005, p. 48. (Coleção Tópicos).
132 Antonin Artaud
9
Tradução: “É como se tivesse tocado, inadvertidamente e por um erro patético
que provoca seus gritos, o ponto em que pensar já é sempre não poder ainda
pensar. E um ‘impoder’, diz ele, que parece essencial ao pensamento, mas trans-
forma-o numa falta extremamente dolorosa”. Edição brasileira: BLANCHOT,
Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: 2005, p. 50.
(Coleção Tópicos).
“Lettres, lettre, l’être” 133
10
Tradução: “A inspiração não é senão um feto, e o verbo também não é senão
um feto [...] / Se as minhas frases soam como o francês ou como o papou, é
exatamente ao que não dou a mínima. / Mas se eu prego uma palavra como um
prego, eu quero que ela supure na frase como uma equinose de cem furos”.
11
“Car je ne puis pas espérer que le temps ou le travail remédieront à ces obscu-
rités ou à ces défaillances, voilà pourquoi je réclame avec tant d’insistance et
d’inquiétude, cette existence même avortée” (1994a, p. 25). [Tradução: “Por
134 Antonin Artaud
14
Tradução: “Ele sabe, com a profundidade que a experiência da dor lhe confere,
que pensar não é ter pensamentos, e que os pensamentos que tem fazem-no so-
mente sentir que ainda não começou a pensar”. Edição brasileira : BLANCHOT,
Maurice. O livro por vir. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: 2005,
p. 50. (Coleção Tópicos).
15
Tradução: “É preciso que o leitor acredite em uma verdadeira doença, não em
um fenômeno de época [...] / Uma doença que afeta a alma em sua realidade
mais profunda, e que infecta as suas manifestações. O veneno de ser. Uma real
paralisia. Uma doença que te rouba a palavra, a lembrança, que te desenraiza o
pensamento”.
136 Antonin Artaud
16
Tradução: “Por que mentir, por que buscar transpor ao plano literário uma
coisa que é o grito mesmo da vida, por que dar ares de ficção a isto que é feito
da substância inarraigável da alma, que é como a queixa da realidade? Sim, sua
ideia me apraz, me cumula de alegria, mas com a condição de que não se dê
àquele que nos lerá a impressão de que assiste a um trabalho fabricado. Nós
“Lettres, lettre, l’être” 137
temos o direito de mentir, mas não sobre a essência da coisa. Eu não faço ques-
tão de assinar as cartas com meu nome. Mas é absolutamente necessário que o
leitor pense que tem entre as mãos os elementos de um romance vivido. Seria
preciso publicar minhas cartas da primeira à última, e, para isso, remontar ao
mês de junho de 1923. É preciso que o leitor tenha em mãos todos os elemen-
tos do debate”.
17
Tradução: “Eu sou um homem que sofreu muito do espírito, e a este título eu
tenho o direito de falar”.
138 Antonin Artaud
18
Tradução: “Podemos pensar que o peso da publicação integral de seus escritos
está na origem de um desarranjo dos leitores, esmagados por uma massa inu-
mana que se lhes lança em bloco à figura. Boa ocasião, é verdade, para ‘refazer
o rosto humano’, como o propunha Artaud”.
19
Remeto aqui para os seminários ministrados por Evelyne Grossman em Pa-
ris VII, no ano letivo de 1999-2000, que versaram sobre o tema dos “Apa-
gamentos identitários nas escritas limites do século XX: Céline, Artaud,
Beckett, Michaux”.
“Lettres, lettre, l’être” 139
20
“Mais si j’enfonce un mot violent comme un clou je veux qu’il suppure dans la
phrase comme une ecchymose à cent trous.”
21
Tradução: “Artaud escrevia contra o vazio e para escapar a ele. Escreve agora
expondo-se a ele, tentando exprimi-lo e tirar dele uma expressão”. Edição brasi-
140 Antonin Artaud
leira : BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São
Paulo: 2005, p. 54. (Coleção Tópicos).
22
Tradução: “O tormento decorre de ele não poder se isentar de seu pensamento,
e a poesia permanece nele como a esperança de quitar essa dívida, que no entan-
to ela só pode estender muito além dos limites da existência”. Edição brasileira :
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:
2005, pp. 53-4. (Coleção Tópicos).
“Lettres, lettre, l’être” 141
do livro, assim como aquilo que diz Artaud sobre a questão entre
autor e leitor, nos indica a diferenciação precisa entre nome e as-
sinatura. Trata-se, portanto, de se nomear – processo de autoria
que Artaud vai experimentar em toda sua radicalidade.
Os anos 1920 poderiam ser considerados como o início
de todo esse processo que não se dará de forma linear. A questão
posta na correspondência alude já ao movimento de um devir
sob o signo de uma experiência de erosão. Desmoronar que co-
loca o devir em um horizonte cataclísmico. Como sabemos, Ar-
taud passa o entre guerras, até 1936, em território europeu, onde
se sucedem suas desavenças, em 1927, com o grupo surrealista
e todo o início dos 1930 dedicados principalmente às experiên-
cias teatrais. Tempos difíceis para a Europa, que se fazem sentir
nas dificuldades enfrentadas por Artaud23 para sobreviver de sua
arte. A falência do “velho mundo” é visível e palpável para o
escritor que busca, em 1936 – com sua viagem ao México –,
encontrar uma cultura desaparecida na Europa. Em 1937, já em
Paris, Artaud escreve um livro enigmático que retoma sob outro
plano as questões que o fizeram debutar na escrita da Correspon-
dência. São As novas revelações do ser,24 livro cujo autor assina “O
revelado”. Em início de junho 1937, durante o processo para pu-
blicação desse livro, em carta à Jean Paulhan,25 Artaud escrevia:
23
Nesse sentido, as “Cartas à Genica Athanasiou” (1969) são exemplares. O que
deveria ser uma correspondência amorosa transforma-se em uma manifestação
das crises vividas por Artaud, pelo teatro, pela literatura e pela Europa em geral.
24
Les nouvelles révélations de l’Être (1982b, pp. 115-44).
25
Jean Paulhan, que era, em 1924, o secretário de Jacques Rivière, seria agora o
diretor da Nouvelle Revue Française.
142 Antonin Artaud
le tour que j’ai fait était en spirale: il m’a mené plus haut26
(1982b, p. 180).
26
Tradução: “Caro amigo, / Nem mesmo as iniciais são necessárias. Lembre-se.
A correspondência com Rivière viera à luz com três estrelas, e de tudo o que
escrevi será talvez só o que ficará. Depois de treze anos passados, diriam que
eu retorno ao mesmo ponto, mas a volta que eu fiz foi em espiral: ela me levou
mais alto”.
27
Tradução: “É verdadeiramente um Desesperado que vos fala e que só conhece
a felicidade de estar no mundo agora que ele abandonou este mundo, e que
está absolutamente separado dele. / Mortos, os outros não estão separados.
Eles ainda giram em torno de seus cadáveres. / Eu não estou morto, mas estou
separado”.
28
“Parce que je prévois la Destruction totale par l’Eau, la Terre, le Feu, et par une
Étoile qui occupera la surface totale de l’Air où l’Esprit de l’Homme a baigné,
je prêche aussi la Destruction totale, mais Consciente et Révoltée” (1982b, p.
“Lettres, lettre, l’être” 143
“Cartas”, ele buscará refazer. Mais uma vez, valeria frisar a radi-
calidade da experiência de Artaud: lançando-se no vazio, levando
ao extremo as questões que o autorizariam ou não a pensar, bus-
cando “o que seria escrever em conformidade com seu nome”,31
Artaud necessariamente (logicamente)32 teria que se “separar” e,
por consequência, desaparecer; não somente sua assinatura, se-
não que o próprio autor/Artaud.
Decerto, como lembra ainda Jean Michel Rey, a catástrofe
anunciada permite a inevitável associação com a destruição mais
radical que a humanidade experimenta no século XX: a Segunda
Guerra Mundial, a bomba atômica e os campos de extermínio.
As alusões de Artaud, nesse livro enigmático e de certo modo
profético, recaem sobre a força mágica do fogo.33 Inspirado nas
tradições mais antigas (bíblicas e cabalísticas) Artaud passa, nes-
31
Como disse J.M. Rey: “j’entends les textes du moment du Rodez –, comme
l’amorce d’un tour de spirale qui, avec le temps, permet à son auteur de sortir de
la perspective de la séparation, c’est-à-dire d’écrire en conformité avec son nom,
qui l’autorise (au terme de l’époque de Rodez) à dire, en toute connaissance de
cause, moi, Antonin Artaud” (1991, p. 14). [Tradução: “eu entendo os textos do
momento de Rodez -, como o detonador de um movimento em espiral que, com
o tempo, permite a seu autor sair da perspectiva da separação, ou seja, escrever
em conformidade com seu nome, que o autoriza (nos termos da época de Rodez)
a dizer, com conhecimento total de causa, eu, Antonin Artaud”.]
32
A lógica é pensada por nós como sugerida por Artaud no texto sobre Van Gogh.
Lembramos mais uma vez que nesse texto ele faz alusão a uma sociedade que
teria se recusado a ouvir o pintor e, em consequência, afirma: “Quant à la
main cuite, c’est de l’héroïsme pur et simple,/ quant à l’oreille coupée, c’est de
la logique directe” (1996d, p. 19). [Tradução: “Quanto à mão assada, trata-se
de heroísmo puro e simples, / quanto à orelha cortada, é lógica direta”. Edição
brasileira: ARTAUD, Antonin. Van Gogh: o suicida da sociedade. Trad. Ferreira
Gullar. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003, p. 34.]
33
“Je veux dire que si les hommes allument l’incendie dehors, le feu ne s’arretera
plus ni dehors ni surtout dedans, puisque celui du dehors ne sert qu’à montrer
celui du dedans. Il a fallu toujours un grand effort humain pour faire sortir le
feu du dedans. Cette fois il suffira d’une étincelle” (1982b, p. 183). [Tradução:
“Quero dizer que se os homens acendem o incêndio lá fora, o fogo não se deterá
mais, nem fora nem muito menos dentro, já que o de fora serve apenas para
mostrar o de dentro. Um grande esforço humano foi desde sempre requerido
para fazer sair o fogo de dentro. Desta vez, bastará uma faísca”.]
“Lettres, lettre, l’être” 145
Mon destin est cruel pour un but encore plus cruel auquel je
sais qu’il me prépare. Et je serai BIENTÔT préparé. Votre
ami, / Antonin Artaud. // P.S.- J’ai décidé de ne pas signer le
Voyage au Pays de Tarahumaras. Mon nom doit disparaître36
(1982b, p. 178).
34
Tradução: “Deixar-se arder como ardi toda a vida e como ardo atualmente, é
adquirir também o poder de arder”.
35
Acrescentemos aqui referências à produção dos sorts artaudianos: cartas mági-
cas, onde o fogo é o elemento preponderante da construção plástica. O suporte
é queimado, colorido em tons derivados do fogo e a mensagem visa, por meio
de todos os elementos assim postos, proteger ou destruir o destinatário. Frisa-
-se: o destinador está também implicado nessa mesma lógica.
36
Tradução: “Meu destino é cruel para um fim ainda mais cruel para o qual eu
sei que ele me prepara. EM BREVE eu estarei preparado. Seu amigo, Antonin
Artaud. // P.S.: Eu decidi não assinar a Viagem ao país dos tarahumaras. Meu
nome deve desaparecer”.
146 Antonin Artaud
37
Entendemos por discurso místico a apropriação de discursos sistematizados
que pretendem justamente dar conta do oculto, do mágico, do desconhecido,
através de toda uma construção lógica devedora da racionalidade ocidental.
Tais discursos, em Artaud, versam – sobretudo – acerca do tarô, da cabala e do
catolicismo.
38
“C’est de Dublin aussi que partiront ces premières missives conjuratoires et
protectrices ou, au contraire, offensives et vindicatives qu’il appelle des sorts.
L’écriture n’y a plus pour seule fonction de transmettre un message, une pensée,
elle doit agir par elle-même et physiquement” (Artaud, 1986a, pp. 24-5). [Tra-
dução: “É também de Dublin que vão partir as primeiras missivas conjuratórias
e protetoras ou, ao contrário, ofensivas e vindicativas que ele chama de sorts. A
escrita não tem mais por única função a transmissão de uma mensagem, de um
pensamento, ela deve agir por ela mesma e fisicamente”.]
“Lettres, lettre, l’être” 147
2.2. Correspondências
39
Decerto “mal sucedido” refere-se ao escrito por Artaud em seu preâmbulo: tra-
ta-se de uma obra falhada. Mas também não devemos negligenciar o “rótulo”
primeiro imposto a sua poesia na recusa efetuada pelo editor Jacques Rivière.
Valeria ainda frisar que todo esse último período da obra de Artaud ainda se
oferece para ser descoberto e reconhecido.
“Lettres, lettre, l’être” 151
40
Aludimos ao trabalho já citado de Giorgia Bongiorno, que versa sobre a figura
das “filhas do coração” que percorrem os cadernos de Artaud (s.d.).
41
Hoje, essa parcialidade foi bastante revista na edição empreendida por Evelyne
Grossman, dos Cadernos de Ivry (2011).
42
Os livros correspondentes vão do 15o ao 25o volume.
152 Antonin Artaud
43
Em “L’écriture de soi”, Foucault diz: “Enfin, l’écriture des mouvements intéri-
eurs apparaît aussi selon le texte d’Athanase comme une arme dans le combat
spirituel: alors que le démon est une puissance qui trompe et qui fait qu’on
se trompe sur soi-même […], l’écriture constitue une épreuve et comme une
pierre de touche: en portant au jour les mouvements de la pensée, elle dissipe
l’ombre intérieure où se nouent les trames de l’ennemi” (Foucault, 1994c, pp.
415-30). [Tradução: “Enfim, a escritura dos movimentos interiores aparece
também, segundo o texto de Atanásio, como uma arma no combate espiritual:
enquanto o demônio é uma potência que engana e faz com que o sujeito se
engane a si mesmo [...], a escrita constitui uma experiência e uma espécie de
pedra de toque: revelando os movimentos do pensamento, ela dissipa a sombra
interior onde se tecem as tramas do inimigo”. Edição brasileira: FOUCAULT,
Michel. Ética, sexualidade e política. Org. Manoel Barros da Motta; trad. Elisa
Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitá-
ria, 2004, p. 145. (Ditos e Escritos, V).]
“Lettres, lettre, l’être” 153
un être affectif
et non un corps animal,
un corps animal:
et non un esprit animique44
(1983b, p. 157).
44
Tradução: “Apanha! eu, reconvoco sempre as minhas forças, / eu sou deus, / e
eu sufoco o ser, e os seres em mim, / um ser afetivo / e não um corpo animal, /
um corpo animal: / e não um espírito anímico”.
45
Tradução: “Como elemento de treinamento de si, a escrita tem, para utilizar
uma expressão que se encontra em Plutarco, uma função ethopoiética: ela é
a operadora da transformação da verdade em êthos.” Edição brasileira: FOU-
CAULT, Michel. Ética, sexualidade e política. Org. Manoel Barros da Motta;
trad. Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, p. 147. (Ditos e Escritos, V).
154 Antonin Artaud
46
“Les hupomnêmata, au sens technique, pouvaient être des livres de compte, des
registres publics, des carnets individuels servant d’aide-mémoire. Leur usage
comme livre de vie, guide de conduite semble être devenu chose courante dans
tout un public cultivé.” [Tradução: “Os hupomnêmata, no sentido técnico, po-
diam ser livros de contabilidade, registros públicos, cadernetas individuais que
servem de lembrete. Sua utilização como livro da vida, guia de conduta, pare-
ce ter se tornado comum a todo um público culto”. Edição brasileira: FOU-
CAULT, Michel. Ética, sexualidade e política. Org. Manoel Barros da Motta;
trad. Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, p. 147. (Ditos e Escritos, V).]
47
“Et il faut pour cela qu’ils ne soient pas simplement logés comme dans une
armoire aux souvenirs mais profondément implantés dans l’âme, “fichés en
elle” dit Sénèque, et qu’ils fassent ainsi partie de nous-mêmes: bref, que l’âme les
fasse non seulement siens, mais soi” (grifo meu). [Tradução: “E por isso é preciso
que eles não estejam simplesmente colocados em uma espécie de armário de
lembranças, mas profundamente implantados na alma, ‘nela arquivados’, diz
Sêneca, e que assim façam parte de nós mesmos: em suma, que a alma os faça
não somente seus, mas si mesmo”. Edição brasileira: FOUCAULT, Michel. Éti-
ca, sexualidade e política. Org. Manoel Barros da Motta; trad. Elisa Monteiro,
Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 148.
(Ditos e Escritos, V).]
“Lettres, lettre, l’être” 155
48
Tradução: “Dizer e escrever seja o que for para não perder a ideia, a fim de
lembrá-la para depois fazer sair a verdadeira carcaça, esqueleto de incarnação”.
49
Tradução: “Eu: este recuo / que não se exprime nunca / por atitudes morais
destacadas do corpo / mas sempre atitudes físicas / em e com o corpo, // recuar
na caca descendo, / abstrata, / é recuar não em consciência / mas com todo o
corpo / pois o corpo é que é a consciência / e ela sem ele não é”.
156 Antonin Artaud
50
Tradução: “E é preciso compreender esse corpo não como corpo de doutrina,
mas segunda a metáfora da digestão, tão frequentemente evocada – como o
próprio corpo daquele que, transcrevendo suas leituras, delas se apropriou e fez
sua a verdade delas: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida em forças e em
sangue (in vires, in sanguinem)”. Edição brasileira: FOUCAULT, Michel. Ética,
sexualidade e política. Org. Manoel Barros da Motta; trad. Elisa Monteiro e Inês
Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 152. (Ditos
e Escritos, V).
“Lettres, lettre, l’être” 157
51
Vale aqui citar trecho do prefácio de Artaud à edição dessa tradução, publicado
por L’Arbalète, em 1989: “Mes cahiers écrits à Rodez pendant mes trois ans
d’internement, et montrés à tout le monde, écrits dans une ignorance complète
de Lewis Carroll que j’avais jamais lu, sont pleins d’exclamations, d’interjec-
tions, d’abois, des cris, sur l’antinomie entre vivre et être: / agir et penser, /
matière et âme, / corps et esprit. / D’ailleurs ce petit poème on pourra le com-
parer avec celui de Lewis Carroll dans le texte anglais et on se rendra compte
qu’il m’appartient en propre et n’est pas du tout la version française d’un texte
anglais”. [Tradução: “Meus cadernos escritos em Rodez durante meus três anos
de internação, e mostrados a todo mundo, escritos em uma ignorância com-
pleta de Lewis Caroll, que eu nunca tinha lido, são cheios de exclamações, de
interjeições, de latidos, de gritos, sobre a antinomia entre viver e ser: / agir
e pensar, / matéria e alma, / corpo e espírito. / Além do mais, este pequeno
poema, quem quiser compará-lo com aquele de Lewis Carroll no texto inglês,
se dará conta de que ele me pertence propriamente, e não é absolutamente a
versão francesa de um texto inglês”.]
52
Tradução: “Quanto ao ser, ele é o que não sai do ser para entrar na crítica e no
julgamento”.
158 Antonin Artaud
Les mots ne veulent rien dire: ils doivent vivre, / le langage n’est
pas une convention, / il marche sur la dialectique discursive en
la damnant et passe, / donc c’est bien ma vie ici / et mes oeuvres
présents vivront éternellement en se perfectionnant. […].
L’alphabet est une caille rôtie. / Car il faut que l’on comprenne que
tout ceci n’est pas une doctrine / mais un fait53 (1987, pp. 140-1).
53
Tradução: “As palavras não querem dizer nada: elas devem viver, / a linguagem
não é uma convenção, / ela marcha sobre a dialética discursiva, danando-a, e
passa, / portanto, é bem minha vida o que está aqui / e minhas obras presentes
viverão eternamente se aperfeiçoando. [...] o alfabeto é uma codorna assada. /
Pois é preciso compreender que nada disso tudo é uma doutrina / mas um fato”.
“Lettres, lettre, l’être” 159
56
“La letrre rend le scripteur présent à celui auquel il s’adresse. Et présent non pas
simplement par les informations qu’il lui donne sur sa vie, […], présent d’une
sorte de présence immédiate et quasi physique.” [Tradução: “A carta torna o
escritor ‘presente’ para aquele a quem ele a envia. E presente não simplesmente
pelas informações que ele lhe dá sobre sua vida, [...]; presente com uma espécie
de presença imediata e quase física”. Edição brasileira: FOUCAULT, Michel.
Ética, sexualidade e política. Org. Manoel Barros da Motta; trad. Elisa Monteiro
e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 156.
(Ditos e Escritos, V).
“Lettres, lettre, l’être” 161
57
Tradução: “Mas como é que você se sai tão bem quando tenta definir o seu
mal? Deve-se supor que a angústia lhe empresta essa força e essa lucidez que lhe
faltam quando não é você mesmo que está em causa? Ou seria a proximidade
do objeto que você se esforça por compreender que lhe permite uma apreensão
tão acertada? Em todo caso, você chega, na análise de seu espírito, a resultados
completos, notáveis”.
162 Antonin Artaud
58
“C’est à Rodez qu’Antonin Artaud se remet vraiment à écrire. La lettre n’est
plus seulement, comme à Ville-Évrard, l’appel qu’il lance à ses amis pour faire
entendre sa détresse et pour demander qu’il soit mis fin à son horrible situation,
elle redevient, comme à l’époque de la Correspondence avec Jacques Rivière,
oeuvre d’écrivain […].” [Tradução: “É em Rodez que Artaud se põe de novo,
realmente, a escrever. A carta não é mais apenas, como em Ville-Évrard, o apelo
que ele lança a seus amigos para fazê-los ouvir seu sofrimento e para pedir que
se ponha fim à sua horrível situação; ela se torna de novo, como à época da
Correspondência com Jacques Rivière, obra de escritor [...]”.]
59
Seria interessante aludir aqui à sua prática de mis-en-page do texto presente des-
de seu retorno criativo em Rodez. O poeta passa a utilizar as margens da página
164 Antonin Artaud
61
Tradução: “que uma transposição infernal de uma tela sublime foi feita, mas,
creio, sem que você mesmo o soubesse”.
62
Tradução: “Pois se esta tela faz mal à vista para um coração que possui o sentido
do Divino, há algo notável nela, é que esta pintura, que poderia ser erótica, não
faz pensar no erótico, mas no Divino”.
166 Antonin Artaud
64
Ver, por exemplo, texto escrito pelo padre de Rodez, Henri Julien, na época em
que o poeta ali se encontrava, intitulado “J’étais donc l’aumonier” (1977) [“Eu
era então o capitão”]. Nesse artigo é possível ler que a fé de Artaud era percebida
pelo próprio padre como sendo da ordem de um delírio religioso. Poder-se-ia
dizer, nesse sentido, que o “panóptico” psiquiátrico deixa poucas alternativas a
quem por ele passa.
“Lettres, lettre, l’être” 169
O mal que afligia Artaud não foi por ele mesmo nunca ne-
gado (como podemos ver na sua correspondência com Rivière). No
entanto, o que escapa às construções sistemáticas seria menos o mal
e sempre o mal como força vital. É nesse sentido que a discussão
em torno ao delírio ou à loucura de Artaud mostra-se inoperante
quando aquilo que interessa é ler e pensar a partir de seus textos,
desenhos, enfim, da sua obra. Por outro lado, buscar decifrar como
é a composição dessas forças com a construção de seu pensamento
poético me parece a tarefa crucial, mesmo que para tanto sejamos le-
vados à incompreensão de muitos fenômenos e à impossibilidade de
um suporte teórico que possa compreender as inscrições de Artaud
no campo simbólico – campo este que estaria, a princípio, diante
delas, doutrinária e categoricamente restrito e fechado.
Ainda nesse sentido, encontramos uma leitura interessan-
te, feita pelo filósofo Jacob Rogozinski (1998), sobre a questão
religiosa em Artaud. O interessante reside justamente no fato de
que as teorias sistemáticas65 acerca da loucura não possibilitam
um acesso eficaz em face dos textos do poeta. Ainda interessan-
te é o fato de que os textos inspirados por uma leitura e com-
preensão do “delírio psicótico” – de que Rogozinski participa
– acabam situando o questionamento de determinada obra no
interior de um campo conceitual alheio e servem, dessa maneira,
muito mais aos possíveis avanços da própria teoria utilizada do
que à compreensão da obra em questão. Nessa perspectiva, o
texto do filósofo é exemplar e muito fecundo. Para nós, interessa
discutir de que maneira a obra de Artaud continua escapando aos
campos de saber doutrinários. Ainda: pretendo mostrar como
iremos abandonar a perspectiva da loucura e do delírio assim
vistos, e de que maneira podemos nos aproximar da própria ma-
65
Óbvio notar que a grande teoria que teria se destinado à compreensão dos fe-
nômenos psicóticos na modernidade seria a psicanálise de Freud e seus leitores
posteriores, sobretudo, Jacques Lacan.
170 Antonin Artaud
j’ai laissé dieu pour refaire un autre corps / j’ai franchi dieu pour
achever tout mon corps”68 (1984b, p. 151). É interessante notar
que essa citação de Artaud data de 1946, momento posterior ao
que se considerou como sendo o de seu “delírio religioso”.
Sublinhemos agora essa convergência acerca da transposi-
ção, da travessia, do atravessar. Ora, o que nos foi possível ob-
servar é que essa questão já se colocava no próprio discurso que
se pretendia aderido a Deus, no momento mesmo em que o po-
eta “atravessava” ou “transpunha” certa figura de Deus. Pontuar
essa fenda aberta no instante que se considera como sendo de
colagem de Artaud a Deus é apenas a primeira indagação so-
bre o quão pouco fecundo seria pensar nessa travessia mantendo
como paradigma a centralidade da noção de sujeito. O que, no
caso, renderia ao poeta o estatuto de uma estrutura psicótica e
degenerescente. Ainda relevante: para desdobrar tal hipótese de
uma entrada no delírio psicótico deve-se operar com a noção de
rejeição – verwerfung (Freud, 1976) – do nome do Pai, como
se falhasse, no universo simbólico do sujeito, esse significante
paterno que funcionaria como barreira protetora frente ao Real
inominável do nascimento, da morte, da identidade sexual e da
procriação (Freud, 1976, p. 116). A psicose seria, portanto, essa
tentativa de responder às questões últimas – trágicas – como se
elas pertencessem a um sujeito. O problemático nessa interpre-
tação reside principalmente na crença em um núcleo subjetivo,
que assim se torna fixo (segundo Artaud: terminado, morto) – é
a crença inabalável acerca do próprio conceito de sujeito.
É assim que em seu artigo Rogonzinski terá que encontrar
– a partir dessa ideia pré-concebida de funcionamento subjeti-
vo – uma correspondência “factual” da falência do significante
paterno. Ora, exatamente nesse ponto é onde a crítica opera uma
68
Tradução: “Partido do corpo, abandonei Deus para refazer um outro corpo / eu
transpus deus para levar todo meu corpo a cabo”.
172 Antonin Artaud
69
Por mais paradoxal que pareça, a transposição refere-se aqui à correlação “ins-
tituída” entre um saber prévio e aquilo que não sabemos: a matéria textual
criadora e aberta. É assim que tal transposição só poderá operar de forma fixa:
através de uma suposição anterior (a doutrina) que decorre em uma suposição
posterior (a vida subjetiva de determinado escritor). Ora, a vida subjetiva, como
temos visto – e em um alargamento e transgressão dessa noção mesma – são os
textos do poeta, que nessa operação crítica passam silenciosos pelas mãos das
doutrinas.
“Lettres, lettre, l’être” 173
70
Em texto recente (“Manifiesto Contrassexual”), a autora Beatriz Preciado fala
como o próprio conceito de différance, construído pelo pensamento de Jacques
Derrida, deveria ser visto como “dildo”, elemento protético, ao mesmo tempo
material e simbólico, que faz funcionar as máquinas diferenciadoras, no caso do
gênero, no seio das culturas. Dessa referência importa-nos agora frisar a força
com que muitos estudos contemporâneos vêm operando na identificação dos
campos doutrinários (saberes instituídos) com esse exército fálico que delimita,
mas também encerra a força movente no seio das culturas.
174 Antonin Artaud
Cristo aos nossos corpos: “J’ai fait venir parfois, à côté des têtes
humaines, des objets, des arbres ou des animaux parce que je ne
suis pas encore sûr des limites auxquelles le corps du moi humain
peut s’arrêter”71 (Artaud, 1998, p. 207, grifo meu).
No entanto, parece que a operação transgressora se dá so-
bre o próprio limite. Não se trata de ultrapassar uma fronteira
onde estaria garantida a chegada noutro território – daí tam-
bém a inoperância em considerar a presença de Deus em Artaud
como sendo uma “fase” de sua psicose e posterior “cura” dos
fenômenos delirantes. Trata-se mais de cindir o próprio limite,
de escavá-lo, operação escatológica sobre o próprio escatológi-
co. É assim que o atravessar se mostra como a operação de seu
pensamento, uma travessia em aberto e não linear posta nos seus
textos, corpo-escrito também atravessado, este construído pelo
poeta na sua obra abortada.
Se nos parece importante passar, de maneira mais deta-
lhada, por essa discursividade religiosa em Artaud, é fundamen-
talmente para que possamos nos aproximar do universo que vai
ser explorado a seguir, no qual, para o poeta, as figuras de Deus
permanecerão em combate com a máquina poético-plástica por
ele criada. Ora, o que pretendemos aprofundar com a carta à
Delanglade é que tal combate aí mesmo já se enunciava; retirado
o verniz de um poeta obviamente humilhado (humilde), servo,
aprisionado, vê-se irromper o gérmen da escrita que doravante
existirá – onde os contrários se penetram indicando um mais
além do que a simples contradicção, atravessado da contra-dic-
ção que vai posteriormente inflar a letra do poeta e o levar assim
a desdobrá-la em um fazer poético ainda aqui inesperado.
71
Tradução: “Por vezes fiz surgirem, ao lado das cabeças humanas, objetos, ár-
vores ou animais, porque eu ainda não estou certo dos limites nos quais o
corpo do eu humano pode se deter”.
“Lettres, lettre, l’être” 175
72
Tradução: “Visto que o Infinito é, por toda parte, a Sublimação definitiva dos
Justos aos quais você pertence. E que o Mal não é senão o Recuo do Indetermi-
nado diante de Deus”.
73
Tradução: “Suprimir o Mal é se desviar da página onde se acreditara ter lido sua
realidade”.
176 Antonin Artaud
74
Tradução: “E isto de que se desvia ou que se vira do lado onde Deus não está
nunca deu lugar a muito barulho nem a muito movimento na Natureza, pois
se a sua Natureza a si foi feita para viver no ponto onde aquilo que não é nada
passa àquilo que é tudo, ela não pode, em reverso, ficar do lado onde não se
passa nada”.
75
Tradução: “O grave / é que nós sabemos / que após a ordem / deste mundo / há
uma outra // Qual é? / Nós não sabemos. // O número e a ordem de suposições
possíveis / nesse domínio / é justamente / o infinito! // E o que é o infinito? //
“Lettres, lettre, l’être” 177
A rigor nós não sabemos! // É uma palavra / de que nos servimos / para indicar
/ a abertura”.
76
Tradução: “Em geral, a alma de um pintor está na tela, mas a sua sentimos estar
sempre ante. Você viu passarem coisas e você as pintou, mas você sempre se
guardou de se pôr lá dentro”.
77
Tradução: “O rosto humano é uma força vazia, um campo de morte. [...] O que
quer dizer que o rosto humano não encontrou ainda a sua face, e cabe ao pintor
lhe dar uma [...]”.
178 Antonin Artaud
78
Desenvolveremos no próximo capítulo essas relações que aqui foram apenas
indicadas.
79
Tradução: “Tem um guache seu – e do ponto de vista pictural puro, que em si
não existe, ele é, para mim, de longe o melhor –, que é, esse guache, um apavo-
rante sacrilégio”.
80
Envio aqui para a reflexão acerca do dizer mal e do maldizer desenvolvido por
Evelyne Grossman no artigo “Antonin Artaud et la figure du poete maudit
(maudire/maldire: supplicier la langue)” (2000).
“Lettres, lettre, l’être” 179
81
Tradução: “Desenho para olhar de través”.
180 Antonin Artaud
depuis les siècles des siècles d’être par dieu confectionné. / C’est
que ce n’est pas dieu qui fait l’homme mais un homme lui-
même enterré / et l’homme sorti de cet homme de lui-même
s’achève après82 (1996c, p. 124).
82
Tradução: “E daí vem o mal que o ser se prepare no absoluto enquanto o
homem de braços cortados, matéria de mutilação, espera desde os séculos dos
séculos ser por deus confeccionado. / É que não é deus que faz o homem, mas
um homem ele-mesmo enterrado / e o homem saído deste homem de si mes-
mo se perfaz depois”.
83
“J’ai voulu que toute cette affre et essoufflement de la conscience du chercheur
au milieu et au tour de son idée prennent pour une fois sens, qu’ils soient reçus et
fassent partie de l’oeuvre faite, […].” [Tradução: “Eu quis que toda essa angús-
tia e sufocamento da consciência do explorador no meio e em torno à sua ideia
façam, por uma vez, sentido, que sejam recebidas e façam parte da obra feita”.]
“Lettres, lettre, l’être” 181
84
Tradução: “Deus é Todo-Potente, ele pode tudo, ele tem para ele a
Eternidade e o infinito e ele se vê diante desse fato hediondo – de que as coisas
em Verdade são injustas, e que não lhe é possível fazer que elas não o sejam
aqui embaixo, nem mesmo um pouco mais acima. Pois a injustiça que está no
fundo de tudo não começa na terra, mas ela já se mostra no ponto em que se
entreabre a Eternidade”.
182 Antonin Artaud
85
Tradução: “Pois aquele que a pintou é um Duplo e ele representa, em relação
a você mesmo, tudo aquilo que você não quer e de que você até aqui tentou se
livrar pintando”.
86
Tradução: “O criado é imediatamente o Malogro porque o Infinito com o Tem-
po se rebaixa e se compromete com o finito”.
“Lettres, lettre, l’être” 183
87
Tradução: “É o guache que representa uma espécie de quarto ardente com qua-
tro mulheres que são na verdade quatro demônios nos quatro cantos de um
grande tapete grená, [...]. Esse demônio é uma coisa central, como a ignóbil
Deusa Razão que a Revolução Francesa fizera erguer nas Igrejas, por puro culto
da Pornografia”.
88
Tradução: “porque o Mal não é uma batalha abstrata da consciência com suas
abstrações. Tudo que é imponderável tem um corpo e as abstrações também
184 Antonin Artaud
Le Double qui l’a faite est un corps et c’est celui dans lequel
vous vous trouvez vous-même, mais ce n’est pas vous, et c’est
n’est pas votre corps, pas plus que celui dans lequel je suis
n’est le mien. Le corps où nous sommes n’est qu’un produit
d’emprunt où nous sentons vivre avant nous la conscience de
tout le monde89 (1996c, pp. 51-2).
90
Tradução: “Nenhum outro monstro, nenhum outro deus, nenhum outro me-
canismo do desconhecimento que não o entre nós (homens minusculados) e a
Humanidade. Como mudar a Humanidade em nós-os-homens?”
186 Antonin Artaud
poeta. Apenas uma das cartas teria sido escrita a partir da en-
comenda de um editor, que lhe pedia um texto sobre o amor,
para a revista belga Variétés. E, ainda em Suppôts et suppliciations,
na primeira parte – “Fragmentations” – encontra-se um texto
crítico, que também se apresenta como carta, intitulado “Lettre
sur Lautréamont”. É assim que valeria, agora, destacar como as
cartas assumem nesse período o estatuto de construção mesma
de sua obra, encontrando um desejo expresso de publicação e se
oferecendo como meio eficaz de projeção das questões levanta-
das pelo poeta.
Como sabemos, a Correspondência com Jacques Rivière foi
definitiva para que o poeta encontrasse nas cartas essa eficácia
primeira. Aí ela se relacionava sobretudo com o acontecimento
da publicação (no sentido oferecido por seu editor que atribuía à
Correspondência o valor de texto “bem-sucedido” em relação aos
poemas “malsucedidos” de Artaud), e ainda com o processo de
nomeação e autoria a que nos referimos anteriormente – onde a
incidência da eficácia recairia em convencer os leitores de que o
debate/combate se tratava de um “romance vivido”. Nesse pon-
to, nos faltaria desenvolver um pouco mais a amplitude proje-
tiva que as cartas assumirão nesse último período. Isso porque
observa-se uma direção, antes insuspeitada, que lhes oferecerá
um lugar privilegiado para localizar a posição do poeta ante o seu
próprio projeto criador.
É claro que não se pode negligenciar o evento de sua
Correspondência inicial, no qual o acaso da publicação teria
contribuído para as inclinações futuras, no sentido de poten-
cializar tal meio de expressão. Mas, aqui, as cartas assumem
uma direção que, se foi oferecida no acontecimento da publi-
cação com Rivière, dele se afastará para imprimir um traço
que participa desse projeto de construir corpos possíveis para
operar a transformação desejada desde O teatro e seu duplo. É
assim que, entre o acaso da publicação primeira de sua Cor-
“Lettres, lettre, l’être” 187
91
Tradução: “vê-se bem tratar-se de um homem que é um homem e não um
espírito”.
92
Tradução: “É assim que entre as fragmentações do início e as abracadabran-
tes interjeições do final, eu quis estabelecer a ponte de uma correspondência
verdadeira, / trocada entre alguns seres vivos, a fim de permitir ao leitor que
materialize verdadeiramente o debate”.
188 Antonin Artaud
93
“C’est ainsi que le drame des interjections s’éclaire et qu’il passe, du plan du
délire où l’universelle paresse d’esprit serait tentée de le cloîtrer, à celui d’une
lutte vivante, aqueuse, purulente d’un homme […].”
94
Tradução: “de que serviriam os escritos se não fosse para fazer arrebentarem em
tempo certos gordos abscessos”.
“Lettres, lettre, l’être” 189
95
Tradução: “Mas ontem eu encontrei com horror uma última lembrança de mi-
nha vida em Jerusalém há dois mil anos. Eu sei que eu me chamava M. Artaud,
que todo mundo me tomava por um inocente [...], me acusava de haver vozes,
de declamar e cantar alto, [...]”.
190 Antonin Artaud
96
Tradução: “E acontece que a sua consciência de ser se perderá se eu não posso
chegar a defender definitivamente a minha. Esta não pode sucumbir, mas eu não
posso defender a consciência dos meus amigos baseado na duração e integridade
da minha, se os meus amigos não se decidem a entender que há urgência em me
prestar socorro, não no sentido da vida atual, como a um poeta internado a quem
foi devolvida a vida e a liberdade, mas que, no entanto, carece dos meios para, em
liberdade, sobreviver [...], mas em um sentido contra a vida atual, isto é, como a
um grande viajante do infinito irritado com a monstruosidade desta terra”.
“Lettres, lettre, l’être” 191
97
Tradução: “Há uma maneira de entrar no tempo, sem se vender às potências do
tempo, [...]. acho que é preciso solicitar a ele a força deste antigo segredo. Ali
onde o México atual copia a Europa, é para mim a civilização da Europa que
deve solicitar ao México um segredo”.
“Lettres, lettre, l’être” 193
n’a pas réussi pour lui-même, il est certain que, par lui, quelque
chose a été réussi pour nous tous”98 (Deleuze e Guattari, 1980,
p. 202). A afirmação dos filósofos parece responder em precisão
à carta de Artaud à Senhora Jean Dubuffet escrita em setembro
de 1945. Lembrando, o poeta aí dizia que “a consciência dela se-
ria perdida se ele não pudesse chegar a defender definitivamente
a sua própria consciência”.
Dessa constatação poderíamos retirar algumas contribui-
ções relevantes: primeiro, que a possibilidade de ler Artaud vem
se tecendo no seio dos questionamentos acerca da centralidade da
categoria de sujeito, das separações racionalistas e dualistas entre
louco e normal, vida e obra, corpo e espírito, Deus e homem. Se-
gundo, que a força de contaminação exercida em seu projeto – e
no caso específico das cartas – visa imbricar autor e leitor em um
só e mesmo combate que desarruma a noção de atualidade retiran-
do-a de uma historicidade linear. Terceiro, que seu rompimento
vital e radical com a noção de linearidade estaria imbricado com o
rompimento da própria noção de espaço, aqui entendidos enquan-
to limites do corpo que o poeta reconstruirá na cena da escrita e
do desenho. É onde encontramos o refazer do corpo plástico e
poético. Onde se deita, ainda, a reivindicação radical de Artaud
para com a inutilidade dos órgãos – rompimento da própria ideia
de organização dos corpos. Sabendo que, através da ideia de orga-
nização se insere todo um domínio espaço-temporal.
A partir daí poderíamos nos aproximar dessa arquitetura
múltipla e multifacetada do homem que ele projeta-lança em
suas cartas e constrói no momento interjetivo99 de sua obra. As
98
Tradução: “Mesmo que Artaud não tenha conseguido para ele mesmo, é cer-
to que através dele algo foi conquistado para nós todos”. Edição Brasileira:
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.
Trad. Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely
Rolnik. São Paulo: 34, 1996, v. 3, p. 27. (Coleção TRANS).
99
Momento interjetivo tal qual pensamos na “Introdução” deste trabalho.
“Lettres, lettre, l’être” 195
Tradução: “De fornecer a ele, no meio desta luta atroz, o trampolim de uma
100
Tradução: “o gênio de um desenho não está em sua arte, mas na ação de forças
101
Tradução: “Eu gostaria que, ao olhá-lo de mais perto, se sentisse essa espécie de
102
1
Tradução: “recolhendo os pedaços de corpos tombados para os repregar / um
sobre o outro, estreitando-os sempre mais e mais de perto, / fazendo assim um
buraco em zique-zague e em alto-fundo”.
Interjeições 203
2
Tradução: “O que eu procuro não é a dor, mas a força no esfolamento, na falta,
na fome, na doença, na fadiga, na náusea, na vertigem, no desespero e no aban-
dono de minhas forças”.
3
Tradução: “sobre o corpo do velho Artaud / enterrado e depois desenterrado /
por ele mesmo / externo às eternidades”.
4
Tradução: “Ora eu sou o pai-mãe, / nem pai nem mãe, / nem homem nem
mulher”.
5
Tradução: “Eu sou um insurgente do corpo, / eu sou este insurgido do corpo”.
204 Antonin Artaud
8
Tradução: “Dizer que amo completamente essas águas-fortes de Jean de
Bosschère, eu não o direi: elas não são suficientemente obscuras […]. O pintor
não quis ou não soube guardar seu segredo.”
9
“Mais ces gens qui ne sont pas parvenus à se débarrasser du fétichisme de la
valeur, ces gens qui partis d’une caricature d’angoisse et d’authentique bou-
leversement s’obstinent à se conformer à la hiérarchie des attaches humaines,
Jean de Bosschère avec ses faiblesses, ses manies littéraires, ses préjugés moraux
même a beaucoup plus qu’eux le sens de la véritable liberté” (1980, p. 227).
[Tradução: “Mas essa gente que não conseguiu se desembaraçar do fetichismo
do valor, esta gente que partindo de uma caricatura de angústia e de autêntica
perturbação se obstina a conformar-se à hierarquia dos laços humanos, Jean
Bosschère, com suas fragilidades, suas manias literárias, seus preconceitos mo-
rais mesmo, tem muito mais que eles o senso da verdadeira liberdade”.]
10
“L’amertume désespérée des eaux-fortes de Jean de Bosschère est mentale, donc
voulue, elle n’est pas la flamme verte qui tremble à la pointe déchirée d’un cri”
(1980, p. 226). [Tradução: “O azedume desesperado das águas-fortes de Jean de
Bosschère é mental, logo voluntário; ele não é a chama verde que treme à ponta
raspada de um grito”.]
Interjeições 207
11
“Le problème est de se situer dans l’au-delà de l’être et de sa notion réflectrice
de conscience. // […] // cogner, souffrir, se déchirer, se barder, ne pas penser, //
désimaginer les images, […]” (grifo meu). [Tradução: “O problema consiste em
se situar para além do ser e de sua noção refletora de consciência. // [...] // bater
na parede, sofrer, se rasgar, encalhar, não pensar, // desimaginar as imagens”.]
Lembramos que a parte inicial do poema foi aqui trabalhada no segundo ca-
pítulo, onde se impunha a necessidade de sair da consciência reflexiva em pro-
veito de uma consciência propulsiva. Da mesma maneira que se deveria sair da
imagem-imaginação em proveito de uma imagem-força.
12
Tradução: “A uma doença do pensamento corresponde a aparição de uma certa
pintura”.
13
Viemos insistindo que apesar das consonâncias e afinidades entre Artaud e as
vertentes de vanguarda – sobretudo a surrealista –, esse poeta vai retirar da
força de negação uma matéria vital cujo destino não se estabelece na imediata
208 Antonin Artaud
16
Tradução: “As mais estranhas, também as mais significativas dentre estas águas-
-fortes são de longe as mais rateadas. Pela desarmonia profunda que elas estabe-
lecem entre isto que os cretinos chamam o pensamento e a forma, e eu: a ideia
e o traço”.
210 Antonin Artaud
17
Tradução: “Eu sei que quando quis escrever, eu falhei com as palavras e isso é
tudo”.
18
“mais en dehors de l’idée il y a cette sorte de vie glaireuse qui se traîne entre les
lignes ou dans le corps des lignes mêmes.”
Interjeições 211
19
Tradução: “Eu não tenho ‘eu’, mas não há senão ‘eu’ e persona, / nenhum en-
contro possível com o outro, / isto que sou é sem diferenciação nem oposição
possível. / é a intrusão por toda parte de meu corpo, absoluta”.
212 Antonin Artaud
20
Tradução: “Quando minha mão queima, ela queima. / Há o fato de que a
minha mão queima, o qual é já, se o penso, como fato, seriamente ameaçado, /
ter o sentimento de que minha mão queima é entrar em um outro raio, / se eu
tenho a ideia de que a minha mão queima, não estou mais em minha mão, mas
em estado de supervisão”.
21
Tradução: “nenhum que não responda a uma atividade fisiológica real, / que
dela não seja / não a tradução figurativa / mas alguma coisa como o crivo eficaz,
/ sobre o papel materializado”.
214 Antonin Artaud
22
Deve-se ressaltar que tanto Paul Klee quanto W. Kandinsky se preocuparam
em não fazer da abstração uma arte de recusa do material e total pregnância
do puro “formal”. Ainda, no projeto pictural de Klee, as forças se tornariam a
valência visível por excelência.
23
Tradução: “Certo, os meios ideais não são desprovidos de matéria, caso contrá-
rio não se poderia escrever. Quando eu escrevo a palavra vinho com a tinta, esta
não cumpre o papel principal, mas permite a fixação durável da ideia de vinho.
A tinta contribui, desta forma, a nos assegurar do vinho em permanência. Es-
crever e desenhar são, em seu fundo, idênticos”.
Interjeições 215
24
“Parce que je n’ai cessé à Rodez de fabriquer des corps animés” (Artaud, 2002a).
[Tradução: “Porque eu não me cansei de fabricar, em Rodez, corpos animados”.]
25
Tradução: “Quero dizer que, ignorando tanto o desenho quanto a natureza, eu
me tinha resolvido a sair das formas, das linhas, dos traços, das sombras, das co-
216 Antonin Artaud
res, dos aspectos que, assim como se fez na pintura moderna, não representam
nada”.
26
Tradução: “E assim é preciso aceitar estes desenhos na barbárie e na desordem
de seu grafismo, que jamais se preocupou com a arte, mas com a sinceridade e a
espontaneidade do traço”.
Interjeições 217
27
Tradução: “Os quadros surrealistas são ultraclaros, [...]. Notar-se-á que os pin-
tores surrealistas não amam em geral a pintura vaga e que em todas as suas telas
se encontram sempre objetos admiravelmente postos em relevo e desenhados”.
Interjeições 219
28
Tradução: “Assim é, portanto, que os quadros surrealistas são claros. Quando
não se tem medo de suas luzes sinistras. E me agrada que haja nos quadros
surrealistas coisas brancas, mas em geral os quadros surrealistas são negros. [...].
Tudo que não tem um lado inquietante, insólito ou tenebroso não foi jamais
surrealista, com efeito”.
29
Tradução: “E depois, Mr. Archtung, eu desenho. / Quero dizer que eu não
desenho, mas que ao lado do que escrevo, eu faço figuras que não são palavras,
mas barras, não sombras”.
220 Antonin Artaud
30
Tradução: “como sombras no fundo de uma cavidade, que não seriam apenas
sua sombra, mas um corpo animado a mais, e que se movem, então, de sombra
em sombra por cima da cabeça da cavidade”.
31
Tradução: “Quero dizer que há em meus desenhos uma espécie de moral musical
que eu fiz vivendo os meus traços não apenas com a mão, mas também com a
raspagem do sopro em minha traqueia-artéria, e dentes de minha mastigação. – E
não são coisas que se veem no microscópio, mas tampouco são coisas que se veem
quando se quer obstinadamente vê-las sobre a chapa deste ângulo natural”.
Interjeições 221
realistas, tal qual Artaud a percebe, seria uma lógica que cambia
o visível mas não a visibilidade. Seria preciso compreender com
Artaud que a visibilidade não é somente uma qualidade do vi-
sível, mas, anteriormente, condição ou campo de possibilidade
de transformação da arquitetura dos corpos. No tocante à prá-
tica dos desenhos, esse comportamento nos indica que o corpo,
o olho, a retina, não se pautam nos paradigmas fisiológicos, e
alteram a lógica mesma do organismo orgânico ou da “chapa
natureza”, como disse o poeta. Mas, tampouco, Artaud iria in-
serir sua “retina descolada” no quadro das filosofias do espírito
– olho signo de vidência, vínculo entre o mundo visível e o invi-
sível, o natural e o sobrenatural, o concreto e o abstrato, o corpo
e o espírito. Ao contrário, o “descolamento da retina” é índice
de dilaceramento com um corpo presa do dualismo. Por meio
dos seus desenhos-escritos, ele nos introduz nesse dilaceramento
da própria organização dos corpos, em que não se trata mais
de substituir uma lógica por outra (a do consciente cedendo à
do inconsciente surrealista), mas de perfurar a lógica que nos
envolve devolvendo-lhe sua própria arbitrariedade. Doravante,
sua ruptura para com a espacialidade dos corpos viria necessa-
riamente romper com a lógica temporal linear. As telas surrealis-
tas nos apresentariam também outra ordem temporal que não a
da linearidade. Essa ordem do inconsciente – tomada enquanto
automatismo pelo surrealismo – não viria a se “descolar” da es-
truturação orgânica pautada pelas representações nos “objetos
postos em relevo e bem desenhados”. Mesmo se a estranheza é
inquietante, estamos ainda na ordem dos objetos nomeáveis.32
32
Antonin Artaud, no seu texto Les tableaux surréalistes [Os quadros surrealistas],
cita diversos pintores surrealistas, entre eles: Masson, Dalí, Giacometti, Picasso.
Observamos a impossibilidade em situar – no que diz respeito à questão do “re-
levo” – esses diferentes pintores sobre o mesmo plano. No entanto, nos parece
que a reflexão de Artaud continuaria permitindo elucidar alguns pontos da pin-
tura de Salvador Dalí e se esboçaria deveras discutível para os outros pintores
por ele citados.
222 Antonin Artaud
33
Tradução: “é que esta luta, em sua essência, não cessa de ser significada concre-
tamente por linhas e por pontos. / Estes pontos são semeados sobre a página. /
Estas linhas são o que poderíamos chamar de linhas intersticiais”.
34
Tradução: “Intersticiais elas são, estando como suspensas no / movimento que
acompanham, / movimento que sacode o sopro”.
Interjeições 223
35
Em nosso trabalho – por motivos de recorte da questão – estamos tratando a
musicalidade na sua íntima relação com a poética de Artaud. Mas não deixa-
mos de indicar que Artaud em muito expandiu suas relações com o domínio
da música. Suas performances teatrais, já na década de 1930, exploravam sons,
ruídos, percussões que posteriormente inspiraram a poesia letrista ou mesmo a
música concreta. Para tanto, ver, por exemplo, Marc Chalosse (2002, p. 246).
36
Tradução: “Eu penso que ele jaz, então, não no espaço, mas no tempo, neste
ponto do espaço do tempo onde um sopro detrás do coração toma a existência
e a suspende”.
224 Antonin Artaud
37
Tradução: “Alguma coisa de essencial promete no que Artaud entende ainda
por pintura: questão de sonoridade, de timbre, de entonação, de trovão e de
detonação, de ritmo, de vibração, a extrema tensão de uma polifonia”.
38
Tradução: “Ora, eu conheço o valor plástico / objetivo do sopro, / o sopro é
alguma / coisa no ar / não é o ar / revolvido / somente”.
Interjeições 225
39
Os cadernos de Artaud estão repletos desses pequenos desenhos que figuram
tais caixas ou artefatos pontiagudos, pregos, ou, ainda, formas coníferas e tubu-
lares. São, portanto, figuras do sopro, do corte e da perfuração que perfazem os
gestos por excelência de sua plástica.
40
Tradução: “Este desenho é uma sensação que passou em mim / como se diz
em certas lendas que a morte passa. / E eu quis apanhá-la no voo e desenhá-la
absolutamente nua. / O movimento da morte reduzido a seus ossos essenciais
/ sem mais. Um homem que tombava no vazio e caindo roubou de um outro
homem as caixas de sopro de seus pulmões [...]. É preciso olhar este desenho
uma vez mais, depois de tê-lo visto já uma vez”.
41
No texto, Artaud escreveria ainda: “et comme des corps de / sensibilité / nou-
veaux / ces dessins / sont là / qui les commentent, / les aèrent / les éclairent”
(2004b, grifo meu). [Tradução: “e como corpos de / sensibilidade / novos / estes
desenhos / são aí / quem os comenta, / areja / e esclarece”.]
226 Antonin Artaud
Je dis / que voilà dix ans qu’avec mon souffle / je souffle des for-
mes dures, / compactes / opaques, / effrénées, / sans voussure, /
dans le limbes de mon corps non fait / et qui de ce fait se trouve fait
/ et que je trouve chaque fois les 10 000 êtres pour me critiquer,
/ pour obturer la tentative de l’orée d’un infini percé. // Tels
sont en tout cas les dessins dont je constelle tous mes cahiers42
(2004b, p. 58, grifo meu).
43
Tradução: “ali onde o desenho / ponto por ponto / não é mais que a restituição
de uma brocagem, / do avanço de uma perfuradora”.
44
Tradução: “Como? / Por um golpe / antilógico / antifilosófico / anti-intelectual
/ antidialético / da língua / por meu lápis negro apoiada / e isso é tudo”.
228 Antonin Artaud
48
Tradução: “Importa que tudo se arranje / por um fio / numa ordem / fulminan-
te. / Kré puc te / Kré puk te / Pek li le / Kre pek ti le / e Kruk / Pte”.
49
Tradução: “Uns há que comem demais e outros, como eu, que não podem mais
comer sem cuspir”.
50
Tradução: “Eu queria uma obra nova [...], uma obra em que se sente todo o
sistema nervoso iluminado, como ao fotóforo, com vibrações, consonâncias
que convidam o homem A SAIR COM seu corpo”.
230 Antonin Artaud
51
Tradução: “O ser e seus fetos”
52
Especificamente nesse caso, a leitura associativa entre os elementos linguísticos
e anatômicos foi alertada no seminário ministrado pelo professor Jean François
Chévrier, na École des Beaux Arts de Paris, no período de 1999-2000.
53
Assim como ele inscrevia/escrevia seu nome em muitos textos desse período.
54
Tal numeração é a referência empregada pela Biblioteca Nacional Francesa para
os cadernos microfilmados de Artaud. Os dados que seguem no corpo do texto
foram adquiridos em nossas pesquisas junto a esses microfilmes.
Interjeições 231
mes gencives / écartelées”55. Ora, mais uma vez a letra é corpo: ela
sai (no sentido de pertencer) da gengiva e da língua despedaçadas. E
mais: ela parte da gengiva e da língua despedaçando-as, como um
corpo entrando em choque com outros corpos.
Diríamos, ainda, que os desenhos-escritos de Artaud sur-
gem no interior dessa lógica associativa e fragmentária, como
um deslocar de figuras e traços – corpo e letra – que jogam, se
prolongam, se multiplicam, se interferem. Senão, como pensar a
associação mesma entre desenho e escrita? No entanto, abrir-se
ao fragmento é contar com a perda, com o risco do não verifi-
cável, como alerta Didi-Huberman em suas pesquisas sobre o
visível e o legível:
55
Tradução: “É minha maneira de tudo / emerdar. Nenhum corpo / que não
parta da minha / língua e das minhas gengivas / esquartejadas”.
56
Tradução: “Como isto que nós chamamos a região do visual poderia ser verifi-
cável, no sentido estrito do termo, no sentido ‘científico’, visto que ela mesma
não é um objeto de saber ou um ato de saber, um tema ou um conceito, mas
tão-somente uma eficácia sobre os olhares?”
57
A propósito de um de seus desenhos, ele escreve: “Méritée par rapport à toutes
les forces qui dans le temps et l’espace s’opposent au travail manuel, et non
232 Antonin Artaud
Ce dessin58 comme tous mes autres dessins n’est pas celui d’un
homme qui ne sait pas dessiner, mais celui d’un homme qui a
abandonné le principe du dessin et qui veut dessiner à son âge, le
mien, comme s’il n’avait rien appris par principe, par loi ou par
art, mais uniquement par expérience du travail59 (1984b, p. 340).
61
Tradução: “E isso quer dizer que é hora de o escritor fechar negócio, e abando-
nar a letra / escrita pela letra”.
62
Tradução: “Bacon se aproxima de Artaud em muitos pontos: a Figura é o corpo
sem órgãos (desfazer o organismo em proveito do corpo, o rosto em proveito da
cabeça)”. Edição brasileira: DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensa-
234 Antonin Artaud
ção. Equipe de tradução: Roberto Machado (coord.) et al. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2007, p. 52. (Coleção Estéticas).
63
Tradução: “O rosto humano é uma força vazia, um campo de morte. / A velha
reivindicação revolucionária de uma forma que nunca correspondeu a seu cor-
po, / que partia a ser outra coisa que não o corpo”.
64
Tradução: “O que quer dizer que o rosto humano não encontrou ainda a sua
face, e cabe ao pintor lhe dar uma [...]”.
65
Valeria delimitar que não se trata aqui de traçar a via das possíveis consonâncias
entre Bacon e Artaud, tampouco se trata de promover uma leitura “deleuziana”
aplicada aos desenhos do poeta. Interessa-nos ressaltar algumas das consonân-
cias apenas indicadas no ensaio de Gilles Deleuze, na medida em que elas apro-
fundam a discussão do que tratei aqui.
Interjeições 235
66
Tradução: “Eu não estou incluso no sistema vampiro, [...] e, logo, sem anato-
mia e com força”.
67
Alertamos que nosso trabalho visa aprofundar as relações entre a plástica e a
poética e não um estudo aprofundado e específico sobre os desenhos e retratos
feitos por Artaud.
236 Antonin Artaud
[...] que le visage humain n’a pas encore trouvé sa face et que
c’est au peintre à la lui donner. Mais ce qui veut dire que la face
humaine telle qu’elle est se cherche encore avec deux yeux, un
nez, une bouche et les deux cavités auriculaires qui répondent
aux trous des orbites comme les quatre ouvertures du caveau de
la prochaine mort69 (1984b, p. 206).
68
Tradução: “O rosto humano é provisoriamente, / digo provisoriamente, / tudo
o que resta da reivindicação, / da reivindicação revolucionária de um corpo que
não é nem nunca foi conforme a esse rosto”.
69
Tradução: “[...] que o rosto humano ainda não encontrou sua face e que cabe
ao pintor dar-lhe uma. Mas isto quer dizer que a face humana tal qual é ainda
se encontra com dois olhos, um nariz, uma boca e as duas cavidades auriculares
que correspondem aos buracos das órbitas como as quatro aberturas da cova da
morte próxima”.
Interjeições 237
70
É assim também que não se encontra nada de cubista nos retratos de Artaud.
71
Tradução: “E assim é absurdo repreender por acadêmico um pintor que a esta
altura se obstine ainda em reproduzir os traços do rosto humano tais quais são;
pois tais quais são eles ainda não encontraram a forma que eles indicam e desig-
nam”.
72
Tradução: “Os retratos de Holbein ou de Ingres são muros espessos”
238 Antonin Artaud
n’a pas été fait non plus pour vivre avec les nerfs d’une sensi-
bilité et d’une vitalité limitées, quand sa sensibilité et sa vie //
sont sans fin // et sans fond // comme la vie, / à vie // et pour la
perpétuité73 (1994c, p. 61).
73
Tradução: “Isto quer dizer que o cérebro deve cair, / o homem que somos não
foi feito para viver com um cérebro, / [...] / ele tampouco foi feito para viver
com os nervos de uma sensibilidade e de uma vitalidade limitadas, quando a
sua sensibilidade e a sua vida // são sem fim // e sem fundo // como a vida, / por
toda a vida // e pela perpetuidade”.
74
Tradução: “o abismo insondável da face, do inacessível plano de superfície”.
75
Tradução: “o abismo insondável da face, do inacessível plano de superfície por
onde se mostra o corpo do abismo, o abismo em corpo, este abismo o corpo, o
abismo corpo”.
Interjeições 239
76
A palavra “sonda” vem do nórdico antigo sund – estreito, braço do mar da qual
se origina sundgyrd – percha para sondar a profundidade da água.
77
Em maio de 1947, Artaud faz o retrato de Mania Oïfer e ela lhe diz: “Antonin
Artaud, il me fait peur ce dessin”. Artaud lhe responde: “Bon, je vous ferai en
sylphide élisabéthaine” (1984b, p. 188). [Tradução: “Antonin Artaud, este de-
senho me dá medo / Bem, vou te fazer de sílfide elisabetana”.]
240 Antonin Artaud
78
Tradução: “Pobre, seco e servo o desenho deve ser”.
79
Tradução: “Meus retratos são aqueles que eu quis representar, / eles mesmos
quiseram ser, / seu destino é o que eu quis representar sem me preocupar com
outra coisa além de uma certa barbárie, sim, de uma certa CRUELDADE sem
escola, mas quem a poderia encontrar no meio da espécie?”
Interjeições 241
80
Tradução: “Não há fantasmas nos quadros de Van Gogh, não há visões, nada de
alucinações. // É a verdade tórrida de um sol de duas da tarde”. Edição brasilei-
ra: ARTAUD, Antonin. Van Gogh: o suicida da sociedade. Trad. Ferreira Gullar.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2003, p. 66.
81
Tradução: “[...] direi que Van Gogh é pintor porque ele reciclou a natureza,
porque ele como que a retranspirou e a fez suar, porque ele fez jorrar em fei-
xes sobre suas telas, em braçadas monumentais de cores, a secular trituração
dos elementos, a assombrosa pressão elementar de apóstrofes, estrias, vírgulas,
barras, de que não se pode duvidar, depois dele, que os aspectos naturais sejam
feitos”.
82
“[…] chaque coup de pinceau de Van Gogh sur la toile est pire qu’un évene-
ment.”
83
“[…] avec la couleur saisie comme telle que pressée hors du tube, // avec l’em-
preinte, comme l’un après l’autre, des poils du pinceau dans la couleur.”
242 Antonin Artaud
84
Tradução: “Relevos de inerte estas pontes, estes girassóis, estes teixos [...] / Não
se movem mais. // Estão imobilizados. // Mas quem os poderia imaginar mais
duros sob o golpe de trincho na carne viva que lhe terá violado o impenetrável
sobressalto?” Edição brasileira: ARTAUD, Antonin. Van Gogh: o suicida da so-
ciedade. Trad. Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003, p. 57.
Interjeições 243
85
Tradução: “uma visão háptica do olho [...]. É como se a dualidade do táctil e
do ótico fosse ultrapassada visualmente”. Edição brasileira: DELEUZE, Gilles.
Francis Bacon: lógica da sensação. Equipe de tradução: Roberto Machado (co-
ord.) et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 162. (Coleção Estéticas).
Interjeições 245
86
Tradução: “Os corpos da terra”.
87
Tradução: “A vassoura”
88
Tradução: “A cabeça azul”
246 Antonin Artaud
91
Ver, por exemplo, texto de Artaud “Le pays des Rois-Mages” (1979b, pp. 63-6).
Ele escreve: “Ce n’est pas par esprit religieux que les Piero della Francesca, les
Lucas de Leyde, les Fra Angelico, les Piero di Cosimo, les Mantegna ont peint
tant de Nativités. C’est par une préoccupation traditionnelle de l’Essentiel, par
une recherche des secrets de vie” [Tradução: “Não é por espírito religioso que os
Piero della Francesca, os Lucas de Leyde, os Fra Angelico, os Piero de Cosimo,
os Mantegna pintaram tantas Natividades. É por uma preocupação tradicional
com o Essencial, por uma exploração dos segredos da vida”.]
92
Tradução: “A decepção de que falamos não tem, evidentemente, outra origem
senão a aridez particular na qual Fra Angelico capturou – [...] em pleno voo,
como se diz – o mundo visível de sua ficção”.
248 Antonin Artaud
93
Tradução: “a pintura desarruma a história cronológica porque ela é sempre um
jogo complexo, sorrateiro, de anacronismos. Fra Angelico foi moderno em mui-
tos aspectos”.
Interjeições 249
94
Tradução: “Em suma, ao olhar essas pequenas manchas vermelhas segundo o
como de sua presença no afresco, somos conduzidos a um equívoco sobre a
questão de saber o que, mimeticamente, elas representam. [...] a sua maneira de
significar – entre a flor e o estigma, logo criando, sobretudo, o pensamento de
uma relação – não tem mais nada a ver com a maneira pela qual a história, ela,
fornece sua bem reconhecida significação”.
250 Antonin Artaud
95
Tradução: “Eu assisti ao longo de vários dias à perfuração de uma tal imagem,
ao martelamento selvagem de uma forma que não era a sua [...] ele havia de-
senhado os contornos abstratos de um rosto, e nesta matéria apenas esboçada
onde ele havia plantado as manchas negras das aparições futuras, sem espelho
refletindo, eu o vi criar seu duplo, como em um crisol, ao preço de uma tortura
e de uma crueldade sem nome”.
252 Antonin Artaud
96
Tradução: “Mão de operário e mão de macaco”.
97
Tradução: “Quem é que ganhou uma mão de homem / sobre a sombra de tua
mão inata, / o operário ou o chimpanzé? / Creio eu que foi o operário, / deus? /
deus? / . [...]. / Sim, teu crime foi bem perpetrado, / contra quem para ti cavou
a terra, / para forragear ali seu suor, / com tua velha mão imunda”.
98
Tradução: “É por aí, diz o espírito, que eu te prendo, / tu és obrigado a formar
corpos / e eu te como”.
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Anexos
Anexo 1: