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Árabes no Brasil por João Alves

O libanês de origem Michel Temer torna-se presidente do Brasil.” Em 1º de setembro de 2016,

a manchete do An-Nahar, jornal conservador de Beirute, não fez a menor alusão a Dilma

Rousseff, obrigada a ceder seu lugar àquele que até então era apenas o vice-presidente.

Pouco importa que sua destituição tenha se dado em meio a diversas irregularidades, a ponto

de ser considerada, por milhões de brasileiros, um golpe de Estado. No Líbano, preferem

exaltar o destino do filho de um casal de camponeses originários de Btaaboura, a 70

quilômetros ao norte da capital, que partiu de sua aldeia natal para tentar a sorte em São Paulo

em 1925. A rua principal do vilarejo de trezentas almas já havia sido rebatizada de “Rua Michel

Tamer [segundo ortografia local], vice-presidente do Brasil”. Bastou apenas uma pincelada de

tinta azul para o prefeito – um de seus primos – apagar o “vice” da placa, tanto em português

como em árabe.

Integração-modelo? É o que conta a história oficial ao sul do Rio Bravo. Aqui, os árabes que

chegaram a partir do fim do século XIX não são magrebinos: vêm majoritariamente do Levante.

São chamados, de acordo com sua origem e segundo a história local, “sírio-libaneses” na

Argentina e no Brasil, “libaneses” no México e Equador, “palestinos” em Honduras e Chile. Ou

simplesmente “turcos” em todos esses lugares, em referência ao Império Otomano, que

dominou a região na época. “Eles são relativamente pouco numerosos: 160 mil no Brasil ”,

precisa Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto.

Esse pesquisador coordena os estudos sobre o Oriente Médio na Universidade Federal

Fluminense, em Niterói. Ele mergulhou nos arquivos de imigração para quebrar a ideia de que

o gigante latino-americano contaria hoje com mais de 8 milhões de descendentes do Oriente

Médio. “No Brasil, os árabes representam o sétimo grupo de imigrantes em número, atrás dos

europeus; mas aqui, como em toda a América Latina, a imigração é fraca, de modo que o

impacto de cada uma dessas populações é relevante”, explica. Contrariamente a outros fluxos
migratórios, organizados por Estados com demanda por mão de obra, os que vieram do

Oriente Médio o fizeram espontaneamente, motivados pela crise econômica e pela ocupação

francesa e britânica. No Brasil, essa particularidade evitou que os recém-chegados fossem

enviados às fazendas de café, onde os trabalhadores eram tratados como escravos. A imensa

maioria se lançou no comércio popular dos grandes centros urbanos. A concentração de seus

negócios modelou as cidades. Em São Paulo, por exemplo, estão na Rua 25 de Março, em

pleno centro; no Rio de Janeiro, estão no Saara, acrônimo para Sociedade dos Amigos das

Adjacências. da Rua Alfândega.

“O que permanece na memória comum é que os imigrantes árabes eram miseráveis quando

chegaram à América Latina e que, todos cristãos, tiveram de fugir da perseguição religiosa.

Todos se tornaram vendedores ambulantes e, graças ao talento e aplicação ao trabalho,

montaram lojas antes de se lançarem na indústria e no setor bancário, permitindo que seus

filhos estudassem para se tornar advogados, médicos ou personalidades políticas de renome”,

resume Pinto. “Mas isso é um mito: na realidade, esses imigrantes eram de setores médios e

superiores em seu país de origem, tanto os que vieram de áreas urbanas quanto os de áreas

rurais.” Em seu país natal, os camponeses já estavam inseridos em uma economia monetária,

e os que vieram de cidades eram médicos, jornalistas, advogados ou acadêmicos.

Etnicamente, o árabe não é o europeu branco, destinado a melhorar a raça e elevar a cultura,

mas também não é o amarelo ou o negro. Os recém-chegados semearam ainda mais confusão

ao desembarcarem com passaporte da França, que ocupava então esses países. “Os turcos

não entravam em nenhuma das categorias do sistema de classificação racial utilizado pelas

elites; eles não eram nem proscritos nem desejados, encontrando-se em uma situação

ambígua”, analisa Pinto. Houve um reconhecimento de que modernizaram o comércio,

introduzindo a venda a crédito. Em contrapartida, também foram percebidos como

dissimulados e gananciosos, impuros por definição em sociedades majoritariamente rurais

onde os notáveis tinham pretensões aristocráticas. As diferenças culturais nutriram os delírios


xenófobos: asseguravam que os árabes eram canibais por comerem quibe cru, uma versão

libanesa do tartare.

Os recém-chegados tiveram de negociar sua integração. De aparência similar aos europeus,

começaram a apagar os traços que os diferenciavam, a começar pelo uso do árabe, em

particular nos anos 1930 e 1940, quando cresceram os nacionalismos. Pararam de transmitir a

seus filhos a língua de origem. Também se converteram, abandonando as variantes orientais

do cristianismo, percebidas pelos católicos latino-americanos como próximas ao islã, ou, no

caso dos muçulmanos, o islã propriamente dito.

O sucesso material e social, assim como certa aculturação, permitiu que fossem aceitos

mantendo sua identidade. “Alguns se consideram árabes por tradição familiar; outros, pela

participação em instituições árabes. Alguns, como escritores e atores, fazem de sua origem

uma fonte de inspiração. A única faceta intocada é a gastronomia, fortemente reivindicada, ao

contrário da língua, da religião e da roupa”, ana lisa Pinto.

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