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Construindo e Apagando Memórias no Mundo Romano.


Uma Análise Da Damnatio Memoriae De Geta

Resumo O objetivo deste artigo é analisar a Damnatio Memoriae


sofrida pelo Imperador Romano Geta, no III século d.C., percebendo
a importância política deste ato para o governo de seu irmão
Caracala.
Palavras-Chave: Império Romano; Memória; Poder.

Abstract The objective of this article is to analyse the Roman


Emperor Geta’s Damnatio Memorie, in the III century AD,
understand your political importance for the Caracala’s
government.
Keywords: Roman Empire; Memory; Power.

OS AUTORES ANTIGOS TINHAM


principal é provar como a política é em si
uma ação simbólica. Nos rituais teatrais
noção de que o ato de se exercer o poder
das realezas tradicionais, representação e
podia ser comparado a um forma de teatro.
realidade se encontram absolutamente
Dion Cássio, numa passagem de sua obra
vinculadas. Em meio a rituais, Geertz
História Romana, produzida no III século
analisa como o rei é transformado em
d.C., afirma: “(Governante): Vives como
ícone, imagem mestra, que, como
numa espécie de teatro, cujos espectadores
representação, não morre jamais. Como
são todos os habitantes do Império e não te
pessoa e como mito, o rei é uma imagem
será possível esconder nem o menor erro”
evidente do poder. Assim, o Imperador é
(Dion Cássio, LII, 34.2). Assim, era função
antes de mais nada o lugar da imaginação
do governante construir uma imagem
e de uma grande representação. Através
positiva para si, divulgá-la por intermédio
dos monumentos, dos retratos, das
de todos os meios possíveis e gerar uma
estátuas, dentre outros artifícios, os reis
memória, que se mantivesse viva com o
se esforçam para construir e perpetuar
passar do tempo. Para tanto, era necessário
uma determinada memória de seu
apagar imagens concorrentes, sempre que
governo. Memória esta que depende de
possível.
algumas lembranças e de diversos
Clifford Geertz tem sido um grande
esquecimentos (Schwarcz, 1998:25-33 e
estudioso deste “Estado Teatral”, tomando
517-523).
como exemplos as realezas de Bali e Java,
Todo sistema de poder é um
entre outras, em obras como Negara
dispositivo destinado a produzir efeitos,
(Geertz, 1991) e Nova Luz Sobre a
entre os quais os que se comparam às
Antropologia (Geertz, 2001). Sua idéia
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ilusões criadas pelas ilusões do teatro. O imagem de si para seus súditos; imagem
Príncipe deve se comportar como ator esta que deveria estar de acordo com os
político para conquistar e conservar o padrões culturais aceitos pela sua
poder. Sua imagem, as aparências que tem, sociedade, para que fosse compreendida
poderão assim corresponder aos que seus e mantida na memória. O soberano
súditos desejam encontrar nele (Balandier, precisava definir quais as mensagens a
1980:6). serem passadas, adequadas a um
E essas imagens dos soberanos são determinado contexto, e estabelecer
documentos importantes para se entender o quais os meios de comunicação mais
poder desenvolvido num determinado adequados para a difusão (Figueiredo,
momento histórico. Segundo Carlo 1994:32), tirando o máximo de eficiência
Ginzburg, a análise iconográfica é um com os recursos disponíveis.
instrumento importantíssimo para se fazer As palavras do poder não
uma reconstrução histórica circulam como as outras. Elas necessitam
(Ginzburg,1989:57). Para este autor, de uma comunicação calculada;
imagem é ao mesmo tempo presença e procuram efeitos precisos; não
sucedâneo de algo que não existe ou não desvendam senão uma parte da realidade,
está presente (Ginzburg, 2001:12). Da pois o poder também deve sua existência
mesma forma, representação é algo que faz à apropriação da informação, dos
às vezes de realidade representada e, conhecimentos exigidos para governar,
portanto, evoca a ausência; por outro, torna administrar, e para exercer seu domínio
visível a realidade representada e, portanto, (Balandier, 1980:13).
sugere a presença (Ginzburg, 2001:85). É o O soberano tem a obrigação de
caso, por exemplo, das estátuas que são governar de uma maneira exemplar. Se
espalhadas pelo Império, evocando ao não conseguir fazê-lo na prática, deve ao
mesmo tempo a presença e a ausência dos menos se aproximar da exemplaridade na
governantes nas cidades provinciais. imagem passada aos súditos. Nos
Michel Vovelle nos lembra que a imagem, regimes tradicionais, em que abundam os
no sentido mais amplo do termo, transmite símbolos, a transfiguração provocada
um testemunho privilegiado, tanto direto pelo poder e a encenação da hierarquia se
quanto oblíquo, massificado ou único. tornam evidentes. Tudo se relaciona ao
Muito mais do que uma ilustração, soberano, se simboliza e se dramatiza por
acompanhando e comentando, a imagem se ele. Ele está no centro da representação:
tornou parte integrante da elaboração de um palácio, cortesãos, festas, cerimônias,
discurso, que não pode prescindir dela tudo depende dele (Balandier, 1980:17).
(Vovelle, 1997:31). Destarte, as imagens não criam sozinhas
Como afirma Bordenave, o uso de a adesão e a confiança dos súditos, mas
imagens para a difusão de uma cultura elas contribuem imensamente para isso,
política, que muitos consideram um porque o soberano se reveste de símbolo
fenômeno moderno, é realmente muito de ordem e de unidade (Balandier,
antigo. A comunicação foi o canal pelo qual 1980:62-65).
os padrões de vida de uma determinada Segundo Mario Mazza, as
cultura foram transmitidos aos homens virtudes dos Imperadores romanos
(Bordenave, 1982:17 e 28). Por isso, para tinham um lugar essencial na criação de
Bordenave, cultura pode ser considerada uma “fé monárquica”, constituindo um
como um vasto sistema de códigos de dos veículos oficiais da propaganda. Elas
comunicação (Bordenave, 1982:54). E os ajudavam a justificar o governo de um só
homens na Antigüidade já sabiam articular e a sua proeminência sobre os outros
os símbolos existentes para criarem uma homens. A justificativa do poder

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derivava da lei, da estrutura constitucional usando as expectativas dos governados


garantida pela plebe e pelo Senado (o (Balandier, 1997:110).
famoso ideal do senatus popolusque O soberano não segue a ordem
romanus), e da natureza que o soberano comum, está separado dela; essa
demonstrava ter, de ser diferente dos distância constitui e marca sua diferença,
outros. Só fazia sentido lhe prestar culto se que manifesta sua capacidade e
ele fosse diferente, se ele mostrasse ser legitimidade no exercício do poder. A
melhor do que os súditos e deter a anuência ascensão ao poder impõe separação,
divina (Mazza, 1986: 3-93). recolhimento, comporta um aprendizado
Não se atacava a monarquia como de obrigações que moldam a imagem do
forma de governo, mas sim a maneira como soberano (Balandier, 1997:71). Todo
alguns Imperadores, sem as qualidades poder requer uma representação, um
morais esperadas, exerciam o poder decorum, um cerimonial e suas pompas,
político. Por isso, devia-se apresentar o uma distância em relação aos súditos
soberano como a encarnação de todas as (Balandier, 1997:103).
virtudes. A posição do Príncipe era Segundo Balandier, a criação de
reconhecida não somente pela posse de uma imagens e símbolos é um trabalho do
titulatura legal, mas principalmente pela soberano e daqueles que o cercam. O que
detenção de poderes e qualidades. Neste será revelado ou oculto, explicado por
sentido, praticar as virtudes e divulgar esta imagens e símbolos ou apagado da
prática se transformavam em importantes memória, é uma criação, uma
ações propagandísticas, que ajudavam a dar organização (Balandier, 1997:62).
coesão ao sentimento público, a criar um A aquiescência ou o consenso
consensus universorum, propagando devem ser provocados. Não haveria
também a continuidade do sistema imperial efeitos de poder sem os meios que
e seus constantes valores, e a ligação do permitem obter um grande
Príncipe com os súditos e com os deuses, consentimento. A força legitimada não é
dosando o difícil equilíbrio entre a tradição suficiente. O recurso às dramatizações
e a renovação (Hidalgo de la Vega , sociais, ao imaginário, à eficácia
1995:19-25 e 108-125). simbólica completa a força
As imagens têm poder e, portanto, o necessariamente (Balandier, 1997:98). A
soberano tem a obrigação de utilizá-las representação transforma-se em máquina
como fundamentos de seu poder político de fabrico de respeito e de submissão,
(Balandier, 1997:13). A política é geradora num instrumento que produz
de efeitos de ordem e de segurança; deve constrangimento interiorizado, que é
impor-se não pela coerção ou explicação de necessário onde quer que falte o possível
sua conduta, mas através do espetacular e recurso a uma violência imediata
das imagens capazes de reforçar a adesão e (Chartier, 1990:22). A eficiência dos
de colocar as pessoas em movimento sistemas de segurança imperial
(Balandier, 1997:15). Para o Príncipe ser dependem necessariamente da economia
efetivamente superior, ele deve demonstrar de força. Em outras palavras, a força
por atos e imagens que está acima de todos deve ser mantida como componente
os outros homens por suas qualidades, inativa do poder, enquanto o soberano
governando segundo as regras da virtude, usa seu poder simbólico (Luttwak,
pois o poder de dominação deve estar nas 1997:266-267). Nenhum sistema político
mãos de um homem virtuoso. As pode se apoiar apenas sobre uma força
representações do poder implicam a física de coação, mas antes deve alcançar
afirmação da competência em governar, um consenso maior para permitir um
domínio duradouro. Ambos, coação e

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consenso, têm, portanto, de existir sob simbólica contribui diretamente para a


qualquer forma de relação e de associação manutenção da ordem política, pois os
(Luhman, 1980:29-31). símbolos integram o sistema de
Segundo Pierre Bourdieu, o poder expressão de uma época e as relações de
simbólico é o poder de fazer ver e fazer produção, circulação e consumo de bens
crer, de confirmar ou de transformar a visão simbólicos ajudam na ordenação das
de mundo e, deste modo, a ação sobre o relações sociais (Bourdieu, 1999:69, 99 e
mundo, portanto de modificar o próprio 354). Kaplan e Lasswell nos lembram
mundo. É o poder quase mágico que que o poder pode repousar sobre credos e
permite obter o equivalente daquilo que é lealdades tanto quanto sobre interesses,
obtido pela força física ou econômica, sem falar do hábito e da apatia. O poder
graças ao efeito específico de mobilização. acarreta apenas o controle efetivo sobre a
O poder simbólico é capaz de produzir política; os meios pelos quais o controle
efeitos reais sem dispêndio aparente de é tornado efetivo são muitos e variados
energia (Bourdieu, 1989:14-15). Os (Kaplan; Lasswell, 1979:112).
símbolos do poder (trajes, insígnias, entre Eliminar as imagens era eliminar
outros) são chamados de capital simbólico a possibilidade de relembrar o original
por Bourdieu, ou seja, outros instrumentos (Gregory, 1994:97). Por isso, a partir de
usados pelos poderosos para não tudo que dissemos acima, a damnatio
precisarem ficar sempre recorrendo à força. memoriae era um castigo tão temível no
Todavia, a recepção destes símbolos mundo romano. E foi imputado a
se converte numa questão complicada. Os Imperadores, como foi o caso de Geta,
atos simbólicos sempre supõem atos de num conflito de ações e imagens que
conhecimento e de reconhecimento, atos perdeu para seu irmão Caracala. Apagar
cognitivos por parte daqueles que são seus qualquer referência ao morto era como
destinatários. Para que uma troca simbólica deixar o seu cadáver insepulto, uma das
funcione, é preciso que ambas as partes piores coisas que poderia ocorrer com os
tenham categorias de percepção e de mortos, pois sua alma ficaria sem porto,
avaliação idênticas (Bourdieu, 1996:168). sem direção.
Porém, como atenta Roger Chartier, há Segundo filho de Septímio
uma enorme variabilidade e pluralidade de Severo com Júlia Domna, Públio
compreensões ou incompreensões das Septímio Geta nasceu em 189 d.C.,
representações propostas nas imagens e nos enquanto o pai, que havia governado a
textos antigos (Chartier, 1990:21). No caso Gália, esperava para assumir o Governo
específico dos primeiros Severos, restaram- da Sicília. Recebeu o mesmo nome do
nos algumas imagens produzidas por eles, avô e do tio paternos (Birley, 1971:125).
que podem ser estudadas por intermédio de Seu irmão mais velho, Lucio Bassiano,
documentos textuais, arqueológicos, alcunhado de Caracala, havia nascido
epigráficos e numismáticos. Em alguns apenas um ano antes. Foi feito César em
casos, sabemos a quem eram dirigidas as 198 d.C. e Augusto em 209 d.C. (Aurélio
mensagens destas imagens. Mas Victor, XX.19 e HA, Vida de Severo,
dificilmente conseguimos perceber como se XVIII.3) (Reece,1970:104). Este título
deu a recepção a estas mensagens. de Augusto, que lhe foi dado após as
Para Bourdieu, o processo de vitórias nas campanhas da Bretanha,
simbolização cumpre sua função essencial junto com o título de Britânico (Dion
de legitimar e justificar a unidade do Cássio, LXXVI.13.4), também dado a
sistema de poder, fornecendo-lhe o estoque seu pai e a seu irmão, lhe garantia a
de símbolos necessários à sua expressão. sucessão ao poder imperial,
Além disso, a manutenção da ordem compartilhada com Caracala. Tanto que,

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após a morte de Septímio em 211 d.C., os feito com Nigro e Albino. Caracala
dois irmãos passaram a dividir o comando primeiro matou o irmão e depois buscou
do Império, imitando-se o colegiado antes legitimar seu ato por meio da declaração
executado por Marco Aurélio e Lúcio Vero. de inimizade pública, usando para isso
Segundo Dion Cássio, Geta fazia seu apoio entre os Pretorianos e não entre
com que soldados e atletas o protegessem os senadores. Caracala acusava
dia e noite com medo de vir a ser publicamente Geta de ser desagradável
assassinado pelo irmão, com quem não se com a mãe e de querer matá-lo, usando
entendia, mas numa ocasião em que foi venenos (HA, Vida de Antonino
menos protegido visitar sua mãe em seu Caracala, II), fazendo, portanto, com que
quarto, alguns centuriões enviados por ele passasse perigo nas mãos do irmão
Caracala o mataram (Dion Cássio, (Herodiano, IV, 4.3).
LXXVIII,2.1) (em 27 de fevereiro de 212 No dia seguinte ao assassinato,
d.C.). O fato foi descrito por Dion de forma Caracala foi ao Senado e proferiu um
extremamente trágica. Enquanto era longo discurso, no qual teria justificado a
atingido por facas e espadas, Geta teria morte de Geta se comparando a Rômulo,
corrido para os braços da mãe e gritado: que também havia matado o seu irmão,
“(...) Mãe eu estou sendo assassinado”, Remo, por problemas no governo da
morrendo em seus braços e tingindo sua cidade (Herodiano, IV,5.1-7). Teria sido
roupa com o vermelho de seu sangue (Dion durante esta sessão do Senado que se
Cássio, LXXVIII, 2.3). De acordo com a teria discutido e aprovado a damnatio
Epitome de Caesaribus, Caracala teria sido memoriae de Geta. A damnatio
perseguido pelas Fúrias após o assassinato memoriae advinha de um senatus
do irmão, agindo como louco e tomando consulto, ou seja, de uma decisão tomada
decisões perigosas para a manutenção do pelos senadores. Poderia ser sugerida
Império (Epitome de Caesaribus, XXI,3). pelo Princeps, mas a palavra final neste
Caracala, após o assassinato de caso, tradicionalmente, dependia do
Geta, teria saído gritando pelo Palácio que Senado.
havia escapado de um grande perigo, Além disso, W. Den Boer
afirmando que o irmão conspirava contra defende que a damnatio memoriae
ele. Ele se refugiou no acampamento dos revestia-se de um caráter religioso além
Pretorianos e logo ofereceu um sacrifício, de político. Segundo este autor, a
dando graças por sua salvação. Prometeu damnatio memoriae de um Imperador, da
aos soldados a distribuição de duas mil e mesma forma como a consecratio, fazia-
quinhentas dracmas áticas para cada um e se por intermédio de uma fórmula solene.
lhes aumentou o soldo, mandando que Este ritual tinha por objetivo recusar a
pegassem o dinheiro imediatamente nos deificação e pronunciar a danação pela
templos e no tesouro (Herodiano, IV, 4.7). coletividade, sendo o Senado o
Depois disso, os Pretorianos o aclamaram responsável por tomar esta iniciativa. Tal
Imperador único e declararam Geta inimigo fórmula já era conhecida na época de
público (Eutrópio, VIII, 19.2; HA, Vida de Tibério, o primeiro Imperador a quem a
Antonino Caracala, I; Herodiano, IV, 4.6). consecratio foi recusada. Segundo
Ao ser declarado inimigo público Suetônio, na Vida dos Doze Césares,
postumamente, Caracala criava uma assim que Tibério morreu, muitos
inovação, pois normalmente se conseguia gritaram “Tibério, ao Tibre !”, enquanto
que o Senado proclamasse os rivais outros suplicaram à mãe Terra e aos
inimigos públicos antes deles serem deuses Manes que não o acolhessem à
suprimidos, para que se justificasse os atos sua sombra, mas que o mandassem para
tomados contra eles, como Septímio havia o meio dos ímpios (Suetônio, Vida de

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Tibério Nero César, 186). Na obra de os bens de todos aqueles que em seu
Aurélio Victor, quando este autor descreve testamento deixavam algo para Geta
o que ocorreu após a morte de Galieno, (Dion Cássio, LXXVIII,12.4-6).
comenta-se que as pessoas também Portanto, percebe-se nestas medidas,
clamaram à mãe Terra que o mandassem atestadas por Dion, o tratamento habitual
para o meio dos ímpios (Aurélio Victor, reservado aos damnati.
XXXIII.31). Deste modo, para W. Den As informações são tão poucas
Boer, trata-se de uma fórmula ritual que se que na Vida de Antonino Geta, na
manteve com o passar do tempo, ou seja, História Augusta, o autor equivoca-se ao
uma imprecação à mão Terra para que se afirmar que Geta foi deificado, após
afastasse o condenado do convívio com os Caracala afirmar: “Que sejas divus,
bons mortos (Den Boer, 1978: 217-223). contanto que não estejas vivus” (HA,
Depois de sair do Senado, Caracala Vida de Antonino Geta, II.10). Na
mandou eliminar todos os amigos de Geta. própria História Augusta, na Vida de
Segundo Dion Cássio, ele teria mandando Antonino Caracala, esta informação é
matar vinte mil pessoas, entre libertos, negada, ao se afirmar que o cadáver de
soldados, senadores, homens e mulheres de Geta foi rapidamente queimado, para que
alguma forma ligados a Geta. Entre eles, não recebesse honras públicas (HA, Vida
teria perecido o jurisconsulto Papiniano de Antonino Caracala, II.3).
(Dion Cássio, LXXVIII,3.4). Herodiano Os romanos empregaram uma
também comenta estas mortes, ressaltando variedade de penalidades para limitar ou
que foram eliminados todos os cortesãos, destruir a memória de uma pessoa. Essas
procuradores e governadores provinciais penalidades eram especialmente
amigos de Geta e, inclusive, uma irmã de aplicadas aos homens definidos com
Cômodo, já bastante idosa, simplesmente inimigos de Roma, desde a República.
porque ela havia chorado junto com Júlia a Lembremo-nos de que Geta foi declarado
morte de Geta (Herodiano, IV,6.2-3). Esta inimigo público pelos Pretorianos, logo
eliminação de mulheres, especialmente da após o seu assassinato (Herodiano,
irmã de Cômodo e filha de Marco Aurélio, IV.5.1), como vimos anteriormente. Sob
por terem chorado por Geta, foi também o termo damnatio memoriae, reuniram-se
comentada na História Augusta (HA, Vida várias formas de sanções contra a
de Antonino Caracala, III.1; HA, Vida de memória. Harriet I. Flower apresenta, em
Antonino Geta, VII). Além disso, cita-se a seu artigo “Rethinking Damnatio
existência de um homem que teria sido Memoriae”, algumas destas sanções
assassinado a mando de Caracala porque foi mais comuns, aplicadas aos cidadãos
pego honrando uma imagem de Geta (HA, desde o período republicano (Flower,
Vida de Antonino Caracala, III.5). 1998:155-183). Vejamos como elas se
Os documentos textuais fazem aplicaram ao caso específico de Geta:
poucas referências à damnatio memoriae 1) As mulheres não podiam
em si. O mais completo relato sobre as lamentar o morto, como era costume nos
medidas que se seguiram à morte de Geta funerais aristocráticos. Por isso, a irmã
nos é fornecido pela obra de Dion Cássio. de Cômodo foi punida, como também
Nela, vê-se que Caracala mandou fundir as outras mulheres que choraram junto com
moedas que portavam a efígie de Geta, Júlia Domna. O lamento feminino era
martelar as imagens de pedra e apagar as uma importante honra para o homem
inscrições, proibiu que os poetas e autores morto e ressaltava a sua importância
de textos teatrais usassem o nome Geta em social e política na sua comunidade .
suas obras, aboliu a comemoração do 2) A família não poderia dispor
aniversário do irmão e foram confiscados da imago do morto, isto é, imagens

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(imagines, estátuas ou bustos) de Geta não pedindo a eliminação dessa memória


poderiam ser usadas em cerimônias tenha feito o Senado julgar tão
públicas, como a apoteose de alguém de sua rapidamente o caso. Tanto que as cinzas
família, por exemplo. de Geta não foram depositadas no
3) A propriedade era confiscada, Mausoléu dos Antoninos, onde estavam
isto é, tudo o que pertencesse a Geta as cinzas de seu pai, nem se construiu um
passaria para Caracala, inclusive o mando Mausoléu próprio para elas, preferindo-
único sobre o Império. Por isso, Caracala se guardá-las num monumento dedicado
pôde se adonar de todos os objetos de corte aos netos de Otávio Augusto, Caio e
do irmão e fazer o que bem entendesse com Lúcio César, como vimos anteriormente
seus escravos e libertos. Devido a isso (Dion Cássio, LXXVIII, 15.1)
também, todos os cidadãos que colocaram o (Babelon,1957:201).
nome de Geta em seus testamentos tiveram Sabe-se que, em alguns casos, a
seus bens confiscados, pois, de certa forma, decisão senatorial de se apagar a imagem
pertenciam a Geta. de um traidor não foi cumprida
4) A casa privada do morto podia plenamente. Por exemplo, Tácito, nos
ser demolida e usada como espaço público. Anais, cita que o Imperador Cláudio ao
Como Geta habitava o Palácio, e este visitar a casa de Sílio, um dos amantes de
mesclava espaços públicos com espaços Messalina, avistou logo no vestíbulo da
privados, não se demoliu a construção, pois casa o retrato do pai de Sílio,
ela já tinha uma função pública prévia. “conservado em desobediência a um
5) O nome do morto deveria ser senatus consulto” (Tácito, XI.35).
removido de todas as inscrições. Portanto, nem todos atendiam à decisão
6) Os retratos públicos e privados do Senado, visto que a desgraça post
deveriam ser destruídos. mortem era o reverso de todas as práticas
A damnatio memoriae era um de lembrança tradicionalmente cultivadas
procedimento conhecido de execração pelas famílias aristocráticas.
oficial e o reconhecemos principalmente Por isso, algumas imagens de
por estas duas medidas elencadas por Geta resistiram à destruição. Na História
último, isto é, a destruição das Augusta, conta-se que Caracala chorava
representações figuradas e do nome do ao ouvir o nome de Geta e ao ver suas
condenado de todos os monumentos. imagens e estátuas (HA, Vida de
Trata-se de penalidades impostas no Antonino Geta, VII), o que indica que
post-mortem e que atingiam somente a algumas representações de Geta
pessoa punida, resguardando sua família. realmente resistiram à danação de sua
Este aspecto é importante, porque ao se memória. Apesar do senatus consulto ser
decretar pelo Senado a damnatio memoriae público e aplicável a todas as partes do
de Geta não se questionava a domus divina Império, algumas moedas não foram
severiana, aplicando-se a desonra apenas a fundidas, possivelmente porque estavam
Geta e não a seus familiares. Eram entesouradas, e algumas estátuas, bustos
penalidades tradicionais e que se e pequenas imagens resistiram ao tempo
vinculavam principalmente a casos de e à ordem dada pelos senadores.
traição, por isso Caracala acusou Por exemplo, há vários pequenos
rapidamente o irmão de conspiração contra camafeus que retratam os membros da
um dos governantes, no caso ele próprio. domus divina severiana que resistiram à
No caso de Geta é também interessante decisão do Senado, talvez porque fossem
destacar que, como a conservação da peças privadas e de alto valor
memória era uma função da família, talvez econômico. Citemos alguns deles. Há um
o fato de um membro da domus estar pequeno camafeu, guardado no

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Metropolitan Museum of Art, em New moedas que sobraram. Tanto que R.


York, datado do período das guerras civis Cappelli conseguiu fazer um quadro
contra Clódio Albino, no qual aparecem de mostrando as transformações físicas de
perfil os quatro elementos da domus divina: Geta, da infância à maturidade, por meio
Septímio, atrás dele Júlia, olhando para de um estudo numismático (criança,
Caracala e Geta. A mesma imagem se adolescente, jovem e adulto com barba)
repete num camafeu de pasta de vidro que (Cappelli, 1963:96).
está no museu Nacional Romano. Há Restaram-nas algumas moedas
também um camafeu no qual se fez cunhadas com a efígie de Geta no
representar a imagem dos três Augustos, anverso. Nas moedas cunhadas em Roma
que hoje integra o acervo do Museu de 198 a 200 d.C. (aureos e denários),
Ermitage. Outra variação desta imagem percebemos duas características
pode ser encontrada num camafeu de marcantes: a divulgação do título de
sardônica, no qual aparecem Geta e César nos anversos e a preocupação em
Caracala de perfil, um olhando para o demonstrar o fim das guerras civis, pela
outro, ambos laureados e com barba, que utilização das legendas Felicitas
faz parte do acervo do Cabinet des Temporum (BMC, V, n.144 a 146 – nas
Médailles, em Paris. quais a Felicidade aparece segurando
Segundo Sheldon Nodelman, pode- uma cornucópia numa mão e um caduceu
se classificar as imagens que restaram de na outra ou apertando a mão de Geta) e
Geta em três tipos. No primeiro tipo, ele Spes Publica (BMC, V, n.149 e 150 –
aparece com um rosto infantil, e foram nas quais a Esperança aparece segurando
imagens produzidas de 198 d. C., quando uma guirlanda de flores), nos reversos.
ele se tornou César, até 204 d. C. A partir Já as moedas cunhadas em Roma
daí, num segundo tipo, ele aparece nas de 200 a 202 d.C. apresentam
imagens como um jovem, de 205 d. C. até características diferentes. Aparecem nas
207 d. C. De 208 d. C. até 211 d. C., suas legendas referências ao título de Príncipe
imagens de terceiro tipo apresentam uma da Juventude dado a Geta (BMC, V,
pequena barba, indicando sua idade adulta e n.228 a 239 – aureos e denários cunhados
seu posto de Augusto (Nodelman, s.d.). em Roma – no reverso aparece a imagem
Do primeiro tipo, há, por exemplo, de Geta com o paludamentum, segurando
uma pequena cabeça de estátua que faz troféus militares), mostrando a ligação do
parte do acervo do Museu de Munich e um título com a atuação nas batalhas, e uma
busto no Museu Nacional Massimo alle preocupação em demonstrar de forma
Terme, em Roma (Grant, 1996:54 e tradicional, como vimos, uma imagem de
Bendinelli, 1932:24). Do segundo tipo, por concórdia entre ele e Caracala, e
exemplo, existe outra cabeça de estátua que tranqüilidade na sucessão imperial, por
está no Museu de Arte e de História de intermédio de legendas como Aeternit
Genebra (Nodelman, s/d) e uma estátua (ate) Imperi(i) (BMC, V, n. 214 e 215 –
heróica no Museu Nacional Massimo alle denários); Concordiae Aeternae (BMC,
Terme, em Roma, na qual Geta aparece V, n.217 B – aureo); Felicitas Publica
despido, com um manto longo jogado nas (BMC, V, n.220 e 221 – denários) e
costas. Do terceiro tipo, por exemplo, há Felicitas AVGG. (BMC, V, n.218 e 219 –
um busto de Geta, encontrado em Roma, denários – no reverso aparece a imagem
que está no Palazzo Altemps, no qual ele da Felicidade segurando uma cornucópia
aparece com uma pequena barba, indicando e um caduceu, que representam a
a sua maturidade. abundância e a tranqüilidade no interior
Porém, as melhores imagens de do Império); Securit (ate) Imperii (BMC,
Geta são aquelas apresentadas pelas v, n.240 a 243 – denários); Tempor(a)

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Felicitas (BMC, V, n.246 - denário); Vict BMC, V, n. 797 D e 800 A – sestércio e


(oria) Aetern (a) (BMC, V, n.247 e 248- as). Entre 203 e 208 d.C., aparece a
denários); e Castor (BMC, V, n.216 e 217 legenda Saecularia Sacra, cuja imagem é
– denários e n.797 e799 – sestércio e as), a de Geta e Caracala velados e togados
mediante a qual se associam as imagens de fazendo sacrifícios em frente a um
Geta e Caracala a Castor e Pólux. templo, talvez devido à ocorrência dos
Nas moedas cunhadas de 203 a 208 jogos Seculares em 204 d.C. (BMC, V,
d.C., em Roma, mais uma vez há a n.836 e 840 B – as e sestércio).
preocupação em se divulgar uma imagem A partir de 209 d.C. e até 212
de tranqüilidade no Império. Aparecem d.C. aparecem, em Roma, moedas que
novamente as legendas Felicitas AVGG. divulgavam o título de Augusto, que
(BMC, V, n.438 e 439 - denários) e Felicia Geta acabara de ganhar. Em algumas
Tempora (BMC, V, n.452 - denário), além moedas, bastante conhecidas (aureos de
de novas legendas para as moedas de Geta, 209 d.C. e de 210 d. C.), Caracala e Geta
como Laetitia Temporum (Tempos Alegres) de pé apertam suas mãos e na legenda do
(BMC, V, n.452 B - denário); Pacator reverso se lê Concordiae AVGG. (por
Orbis (BMC, V, n.457 B - aureo) e exemplo: BMC, V, n.17 C – aureo),
Restitutor Vrbis (BMC, V, n.464 - denário). buscando-se mais vez, divulgar a
Interessante notar que neste período de imagem tradicional de concórdia entre os
cunhagens apareceram as primeiras irmãos e um voto de que isso realmente
imagens de Septímio ladeado pelos dois ocorresse.
filhos, sendo Caracala já Augusto e Geta Em 211 d.C., aparecem em Roma
ainda César (por exemplo: BMC, V, n.451 moedas com a legenda Fid (es)
B - denário). Exerc(itus), com a imagem da Fides e
Nas moedas cunhadas em Roma em uma águia legionária, enfatizando a
209 d.C., quando Geta se tornou Augusto, atuação militar de Geta na Bretanha
ressalta-se novamente a imagem de (BMC, V, n.116 e 117 - denários). Por
Septímio entre os dois filhos (BMC, V, isso, neste mesmo período, aparecem
n.591 B - aureo), mas com uma simbologia moedas com os irmãos coroados por
ainda mais forte, pois os dois se tornaram Vitórias (com a legenda Concordiae
herdeiros do pai, e a legenda que se repete AVGG., BMC, V, n.178 B - sestércio),
no reverso de várias moedas é Pontif (ex) sacrificando juntos sobre um altar
Co(n)s(ul) II (BMC, V, n.591 A a D – (mesma legenda, BMC, V, n.178 A -
denários e aureos), ressaltando-se o sestércio), e duas Vitórias submetendo
Consulado dividido com Caracala e dois cativos (cuja legenda é Victoriae
integrando ainda mais os dois irmãos à vida Brittannicae, BMC, V, n.180 A e B -
pública romana. sestércios).
Nas moedas de menor valor, como Nas moedas de menor valor,
ases e dupôndios, essas imagens e essas como ases, dupôndios e sestércios, é
legendas se repetem. Contudo, apareceram interessante notar que, em quase em
também, entre 200 e 202 d.C., imagens de todos os reversos, aparecem imagens de
Caracala junto com Geta segurando o globo Geta, Caracala e Septímio em trajes
terrestre (a legenda é Victoriae militares, festejando as conquistas na
Augustorum, BMC, V, n.798 D - sestércio) Bretanha (por exemplo: BMC, V, n.213 a
ou tendo a Vitória entre eles (a legenda 220). Uma das moedas mais interessantes
também é Victoriae Augustorum, BMC, V, é aquela na qual aparecem Septímio,
n.801 - as). Há também as imagens de Geta Caracala e Geta juntos, fazendo uma
como Liber Pater e Caracala como adlocutio para as tropas (BMC, V, n.220
Hércules (a legenda é Di (i) Patrii S C, - as). Não é à toa também que a

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divindade que mais aparece representada mais tarde reconstruído. No mesmo arco,
neste período é Marte (BMC, V, n.220 B, um outro relevo apresenta Septímio
223 a 226). Nas moedas de 211 e 212 d.C., apertando a mão de Caracala, observado
nos anversos, aparece inclusive o título de por Geta. Mais uma vez o rosto de Geta
Britânico, dado a Geta pelo Senado (por foi destruído (Birley, 1971: 193). No
exemplo: BMC, V, n.268 e 277 B). Arco dos Argentarii, construído em
Dentre as moedas cunhadas fora de Roma em 204 d.C., no relevo em que
Roma que nos sobraram, há peças cunhadas aparecem Septímio e Júlia fazendo um
em Laodicea (nove moedas de 198 a 200 sacrifício, a figura que observa o ato foi
d.C.; sete moedas de 200 a 202 d.C.; e completamente apagada. Acredita-se que
dezenove moedas de 202 d.C.). Nas de 198 era Geta ou Plautila, esposa de Caracala,
a 200 d.C., as legendas principais são que também sofreu uma damnatio
Felicitas Temporum e Spei Perpetuae, com memoriae (Birley, 1971:209 e Charles-
representações da Felicidade e da Picard, 1962:1253), após ser afastada da
Esperança (BMC, V, n.682 a 690 – corte e exilada.
denários e aureos). Nas moedas cunhadas De igual maneira, as inscrições
entre 200 e 202 d.C., aparecem as imagens foram alteradas. Em Roma, podem ser
de Minerva e da Pietas, repetindo imagens encontrados dois exemplos bastante
e legendas também usadas na capital conhecidos. No Arco dos Argentarii, a
(BMC, V, n.719 e 720 – denários). Nas dedicatória dos cambistas e comerciantes
moedas de 202 d.C., a maioria absoluta das para toda família severiana foi
imagens se refere a Marte e Minerva completamente modificada para apagar
(legendas Marti Victori e Minerva Victrix as referências a Geta e a Plautila, esposa
ou Minerva Sancta, BMC, V, n.742 a 753 – de Caracala. No que concerne a Geta,
denários e aureos). Assim, ressaltam-se onde se lia : ET. P. SEPTIMIO. GETA.
imagens de deuses ligados às tarefas NOBILISSIMO. CAES. ET. , referência
bélicas, de estratégia e de combate, para posta entre os nomes de Caracala (Marco
relembrar as vitórias conquistadas nas duas Aurélio Antonino) e Júlia Domna foi
campanhas travadas contra os Partos. apagada e no espaço foi aumentada a
Todavia, a maior parte das imagens titulatura de Caracala, colocando-se:
públicas foram destruídas. Vejamos alguns COS. III. P.P. PROCOS. FORTISSIMO.
exemplos. Conhece-se uma pintura feita em FELICISSIMOQUE. PRINCIPI. ET.
madeira (30,5 cm de diâmetro) e (CIL, VI, n.1035) (Pallottino,1946:31-
encontrada no Egito, que atualmente faz 42).
parte do acervo do Museu de Berlim, na Já no Arco do Forum Romano,
qual encontravam-se representados os dedicado pelo Senado em 203 d.C. a
quatro membros da família imperial, sendo Septímio Severo e sua família, em
que os meninos eram ainda muito jovens e retribuição às vitórias conquistadas sobre
foram representados num tamanho bem os Partos, houve mais uma vez a
menor do que o dos pais. Todavia, o retrato ampliação do título de Caracala para
de Geta foi apagado após a sua damnatio apagar a indicação do nome de Geta.
memoriae (Babelon, 1957: 80; Birley, Onde se lia: ET. P. SEPTIMIO. GETA.
1971:128; Seltman, 1939:157). NOBILISSIMO. CAESARI., passou-se a
Da mesma forma, num dos relevos ler: P. P. OPTIMIS. FORTISSIMISQUE.
do Arco de Leptis Magna (203 d.C.), no PRINCIPIBUS (CIL, VI, n.1033) (Delli,
qual Septímio aparece numa quadriga 1992:29-30; Hill, 1978: 59; Picard,
ladeado pelos dois filhos, numa 1962:7-14; Brilliant, 1967).
representação de adventus, o rosto de Geta Esta situação também ocorreu nas
foi martelado (Birley, 1971:145) e muito províncias. Por exemplo, numa inscrição

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encontrada na Numídia, mandada fazer riscado com tinta vermelha ou lavado


pelos membros da III legião Augusta, com água. Em compensação, em cento e
estacionada por lá, em honra de Septímio, um dos papiros, o nome de Geta
de Júlia Domna e de seus dois filhos, onde permaneceu. Para explicar tal fato,
deveria estar o nome de Geta encontra-se aventam-se três hipóteses, todas
novamente um prolongamento do título de devidamente comprovadas pelo autor:
Caracala: ET. M. AURELI. ANTONINI. repetia-se o nome de Geta no documento
AVG. FELICIS. PAR. BRIT. GER. MAX. e só se apagava a primeira referência,
AVG. (CIL, VIII, n.2527), titulatura que esquecendo-se de rasurar as demais;
Caracala tinha em 212 d.C. e não em 198 alguns papiros estudados foram
d.C., quando a inscrição foi feita (Williams, encontrados no lixo, portanto, nem se
1902:266). lembrou deles ao se apagar o nome de
Em 200 d.C., Septímio Severo Geta; e outros papiros eram cópias não
mandou reconstruir uma ponte sobre o rio oficiais guardadas nas casas dos
Chabina, que ligava a Capadócia à cidade sacerdotes e estes não tinham
de Comagena (Williams, 1902: 266). funcionários suficientes para mandar
Tratava-se de uma ponte erguida sobre executar a damnatio memoriae em seus
quatro colunas. Cada coluna foi dedicada a papéis pessoais, mas só naqueles
um membro da família imperial. Cada pilar guardados nos arquivos dos templos. Há
contava com uma imagem e uma inscrição. também casos nos quais, quando
Na coluna dedicada a Geta, a inscrição e a aparecem desenhos nos papiros com os
imagem foram apagadas (CIL, III, n.6714). retratos de Septímio e de seus dois filhos,
E nas obras feitas durante o governo de o rosto de Geta foi suprimido (Mertens,
Caracala, nem se falava de Geta. Por 1960:541-552).
exemplo, no Arco de Cuicul, na África, Portanto, vemos como, em
mandado fazer pelos decuriões da cidade, pequenas ou grandes peças, buscou-se
em 216 d.C., só aparecem referências ao apagar as referências à memória de Geta.
divino Septímio, a Caracala e à Júlia Contudo, alguns documentos, pelos mais
Domna (CIL, VIII, n.8321) (Williams, diversos motivos, escaparam e nos
1902:292). permitem ainda hoje falarmos do
Quando esteve no Egito, entre 199 e Imperador Geta e estudarmos as suas
200 d.C., Septímio Severo tomou várias imagens. Lembremos que a arte do
decisões judiciais e legislativas. Os papiros silêncio, e de silenciar, é parte da arte
que sobraram com seus mandata e responsa política (Balandier, 1980:13). A memória
foram reunidos numa obra chamada é um meio fundamental da vida social,
Apokrimata e guardados em Alexandria. A . uma das dimensões da ação coletiva e
Schiller, que estudou detidamente a obra, um veículo de poder. Poder, por
comenta que quando aparecia o nome de exemplo, de transmitir ou perenizar uma
Geta, como César, este foi apagado dos memória de si; poder de criar, refazer ou
papiros (Schiller, 1954: 45). O mesmo fato destruir identidades sociais, de dar
é ressaltado por Paul Mertens, que estudou sentido, corpo e eficácia aos atos
os papiros achados na cidade de coletivos. O ato de memória é um ato de
Oxyrhynchus, que teria sido inclusive poder e o campo da memória, o espaço
visitada pela família imperial (Mertens, onde atuam seus lugares, é um campo de
1960:54). Estes papiros contém recibos de conflitos (Guarinello, 1994:189). Como
tributos enviados para Roma pelos afirma Jacques Le Goff, tornarem-se
sacerdotes da cidade. Em trinta e nove senhores da memória e do esquecimento
deles, o nome de Geta foi apagado de é uma das grandes preocupações das
diversas maneiras: o nome era raspado, classes, dos grupos, dos indivíduos que

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dominaram e dominam as sociedades sido desde sempre construídas imagens


históricas. Os esquecimentos e os silêncios materiais para auxiliar a retenção e a
da História são reveladores desses transmissão de recordações, postas em
mecanismos de manipulação da memória espaços próprios, em palácios ou teatros
coletiva (Le Goff, 1994:426). de memórias, na expressão usada por
O poder político apodera-se das Peter Burke (Burke, 1992:236-241). A
palavras. As palavras e os silêncios são uma arte cerimonial romana tendia para o
parte da substância a que recorre o poder. espetacular e para obliterar uma
Visam tanto (ou mais) o efeito quanto a recordação, isto é, para garantir um
informação; buscam a influência sobre os esquecimento, era necessário destruir
governados. O poder político mostra-se imagens e símbolos postos em lugares
pela linguagem que usa, pela qual tenta públicos (Elsner, 1998:28 e 55-57).
obter o consentimento dos súditos. Age por Destarte, a ausência da imagem ou a sua
imagens, símbolos e palavras. A linguagem substituição de forma nem sempre
do poder estabelece uma comunicação perfeita, como vimos, fez com que a
muitas vezes restrita, implica o segredo, memória permanecesse viva, nem que
exprime-se, por vezes, pelo silêncio. O fosse como a recordação de uma
poder deve também a sua existência à ausência que se fazia sentir de forma
apropriação da informação para exercer incômoda. Desta forma, a damnatio
uma dominação (Balandier, 1997:100-102). memoriae de Geta fez com que
É possível determinar-se aquilo que é surgissem espaços nos quais o silêncio
memorável e como será recordado. Têm gritava e que pediam uma interpretação.

Ana Teresa Marques Gonçalves


Professora Dra.de História Antiga da UFG
anteresa@zaz.com.br

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