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A musa difusa:

visões da oralidade nos


poemas homéricos
Coleção

As origens do pensamento ocidental


Direção
Gabriele Cornelli
Conselho Editorial:
André Leonardo Chevitarese
Delfim Leão
Fernando Santoro

A coleção Archai é espelho do trabalho do grupo Archai: as origens do pen-


samento ocidental, agora promovido a Cátedra UNESCO Archai. Há mais
de dez anos, desde 2001, o grupo Archai – desde 2011 Cátedra UNESCO
Archai – promove investigações, organiza seminários e publicações (entre
eles a revista Archai) com o intuito de estabelecer uma metodologia de tra-
balho e de constituir um espaço interdisciplinar de reflexão filosófica sobre as
origens do pensamento ocidental. A presente coleção – parte do selo editorial
Annablume Clássica – quer contribuir para a divulgação no Brasil de produções
editoriais que busquem compreender, a partir de uma perspectiva cultural mais
ampla, nossas origens. Nesse sentido, visando uma apreensão rigorosa do processo
de formação da filosofia, e, de modo mais amplo, do pensamento ocidental, as
obras que aqui são apresentadas procuram confrontar uma tradição excessiva-
mente presentista de contar a história do processo de formação da cultura oci-
dental. Notadamente daquela que pensa a filosofia como um saber “estanque”,
independente das condições de possibilidade históricas que permitiram a aparição
desse tipo de discurso. Enraizando o “nascimento da filosofia” na cultura antiga,
contrapondo-se às lições de uma historiografia filosófica racionalista que, ana-
cronicamente, projeta sobre o contexto grego valores e procedimentos de uma
razão instrumental estranha às múltiplas formas do logos antigo, a coleção Archai
pretende contribuir para o lançamento de um olhar novo sobre os primórdios do
pensamento ocidental, em busca de novos caminhos hermenêuticos de nossas
identidades intelectuais, éticas, artísticas e culturais.

Conheça os títulos desta coleção no final do livro.


A musa difusa:
visões da oralidade nos
poemas homéricos

André Malta
A MUSA DIFUSA:
VISÕES DA ORALIDADE NOS POEMAS HOMÉRICOS

annablume editor a

Projeto, Produção e Capa


Coletivo Gráfico Annablume

Revisão científica
?

Revisão técnica
?

Editor executivo
José Roberto Barreto Lins

A presente obra contou com o apoio da Cátedra UNESCO Archai:


as origens do pensamento ocidental - Universidade de Brasilia

1ª edição: abril de 2015

© André Malta

annablume clássica

Conselho editorial
Gabriele Cornelli
Luiz Armando Bagolin
Mário Henrique D´Agostino
Mônica Lucas

Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 554 . Pinheiros


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SUMÁRIO

Introdução 11
(a) a ‘‘questão homérica’’ 17
1. três precursores 21
2. villoison e o manuscrito de Veneza 39
3. wolf e a evolução do texto 45
4. a dissecação dos analistas 71
5. a retomada da unidade e o impasse 97
6. a crítica oralista no século xx 123
  notas 153
(b) a demonstração de parry 177
7. o epiteto tradicional 181
8. a fórmula significativa 197
  notas 223
posfácio: os clássicos pelas beiras 229

obras consultadas 245


Mais do que nunca, estou convencido da unidade e
indivisibilidade do poema, e não vive mais aquele, nem
nascerá, que esteja em condição de julgá-lo.
Eu, pelo menos, volto a encontrar-me a todo momento
num julgamento subjetivo. Assim aconteceu a outros
antes de nós e acontecerá a outros depois de nós.

Goethe,
falando sobre
a Ilíada em carta a Schiller
de 16 de maio de 1798

(trad. Claudia Cavalcanti;


W. Goethe & F. Schiller, Correspondência.
S. Paulo: Hedra, 2010, p. 201).
Esta publicação contou com o apoio da FAPESP
– Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo, processo 2014/00287-0
INTRODUÇÃO

O objetivo primeiro deste livro é apresentar didati-


camente as discussões principais sobre a questão
da oralidade na épica grega, com foco em dois nomes
fundamentais, o do alemão Friedrich August Wolf
(1759-1824) e o do norte-americano Milman Parry
(1902-1935). Na primeira parte, “A ‘Questão Homé-
rica’”, a intenção é traçar um painel histórico de como
Homero – sobretudo a partir do trabalho de Wolf, no
final do século XVIII – deixou de ser visto como escri-
tor para ser entendido como poeta de natureza diver-
sa. A segunda parte, “A Demonstração de Parry”, tem
por sua vez o propósito de descrever as descobertas
de Parry no plano concreto do estilo homérico, nas
primeiras décadas do século XX, e alguns de seus des-
dobramentos para a atividade da interpretação.
A originalidade do trabalho talvez fique por con-
ta da leitura mais extensamente informativa e crítica
das obras escolhidas para análise, vistas aqui em suas
articulações internas e nas relações que estabelecem
entre si. Apesar de não terem podido fazer parte deste
estudo, não se devem perder de vista pelo menos duas
consequências dessa ampla abordagem: vislumbrar
a oralidade, para além do estilo, como algo inscrito
dentro dos próprios poemas homéricos (nas represen-
tações poéticas ou no peso dado ao poder verbal dos
personagens-reis), e entender que o caráter repetitivo e
padronizado da Ilíada e da Odisseia, com suas alusões,
referências e mesmo silêncios, pode estar a serviço de
complexas variações e elaborações semânticas.
Não é demais dizer que muitos elementos carac-
terísticos do texto poético em geral e igualmente re-
levantes na épica grega, como a sonoridade, a visua-
lidade e o emprego de metáforas e símiles, não serão
abordados aqui, o mesmo valendo para o uso da pa-
rataxe e da digressão, recursos expressivos importan-
tes. Outros aspectos também serão ignorados, entre
os quais se encontram a mistura dialetal (própria do
grego homérico), as convenções narrativas artificiais e
os seus modos de apresentação. Portanto, este traba-
lho é menos uma abordagem do estilo homérico em
seus diversos âmbitos e mais uma apresentação dos
problemas abraçados pelos especialistas desde o século
XVIII, no sentido de fornecer ferramentas que sejam
úteis à nossa leitura da Ilíada e da Odisseia.
Vale ressaltar que, apesar da discussão muitas ve-
zes demorada, trata-se ainda assim de apresentar um
panorama geral (um roteiro que seja útil para um lei-
tor em língua portuguesa), sem qualquer pretensão de
uma análise completa: o mesmo número de páginas

12
poderia ter sido escrito abordando-se apenas os no-
mes deixados de fora, ou as inúmeras ramificações e
intersecções de uma quantidade de trabalhos que é,
verdadeiramente, assombrosa. Além do mais, o des-
conhecimento da língua alemã por parte do autor fez
com que obras de muitos estudiosos – principalmente
do século XIX – fossem referidas apenas indiretamen-
te. Sua consulta nas bibliotecas, de qualquer maneira,
seria difícil, porque em geral são textos esquecidos dos
“analistas”, pouco reeditados e quase nunca traduzidos
para línguas como o inglês, o francês ou o italiano. Es-
tou consciente dessa limitação, mas ela não me parece
roubar a este livro seu valor, uma vez que o propósito
aqui não é fazer a história da “análise homérica” (em
relação à qual o domínio do alemão seria absoluta-
mente indispensável), mas apenas apontar algumas
contribuições representativas que se situam entre os
pontos centrais – as obras de Wolf e Parry. Para os
que se ocupam da literatura clássica, será fácil perce-
ber como o que se vai apresentar aqui sobre Homero
configura o caso primeiro – e principal – de uma abor-
dagem sobre os problemas de autoria e composição de
textos que afetou, em graus e modos variados, prati-
camente todos os poetas e prosadores da antiguidade
estudados desde então.
Duas advertências finais se fazem necessárias. A
primeira diz respeito ao título dos trabalhos citados:
sendo a grande maioria deles em língua estrangeira,
sem versão para nosso idioma, por uma questão de
clareza procurei traduzi-los para o português, forne-
cendo sempre a informação básica sobre os nomes no

13
original. O outro aviso tem relação com as traduções
em geral: como, adotando o mesmo procedimento,
evitei citações em outras línguas, fiz eu próprio a ver-
são de inúmeros trechos, do grego, do latim e das lín-
guas modernas; portanto, em não havendo indicação
contrária, a responsabilidade por elas é inteiramente
minha.
Uma palavra sobre o posfácio, “Os clássicos pelas
beiras”: à medida que eu investigava o debate filológico
acerca de Homero nos últimos séculos – debate que,
de certa maneira, trazia em seu bojo todas as linhas-
-mestras que caracterizam até hoje os Estudos Clássi-
cos como área do saber –, ia se fortalecendo em mim a
vontade, que já vinha de antes, de entender como nós,
brasileiros e falantes do português sem tradição forte
na área, poderíamos e deveríamos nos situar, crítica e
criativamente, em relação a essa herança externa, rica e
incontornável, mas marcada por limitações históricas.
A inclusão desse quase-depoimento funciona, portan-
to, como contraponto reflexivo ao que foi exposto ao
longo do livro.
Quero expressar aqui meu agradecimento ao
CNPq pela concessão da Bolsa de Produtividade em
Pesquisa no triênio 2008-2011, que permitiu que me
dedicasse à redação deste trabalho. Também é preciso
agradecer a David Konstan, da Brown University, que
me acolheu em Providence (EUA) no ano acadêmi-
co de 2011-2012 e me franqueou acesso à Rockfeller
Library, onde pude completar – nos intervalos de mi-
nha pesquisa sobre a Odisseia – a coleta da bibliografia
específica. Agradeço ainda a Vicente de Arruda Sam-

14
paio pela localização e tradução para o português dos
poemas de Goethe sobre Wolf (citados em nota no
capítulo 5) e pela revisão dos títulos em alemão pre-
sentes ao longo do trabalho. Foi ele também que, em
2007, me trouxe da Alemanha uma cópia da tradução
para o inglês do trabalho de Wolf – ponto de partida
deste livro. Não posso deixar de registrar, por fim, os
nomes daqueles que leram este trabalho e contribuí-
ram com seus comentários: Adriane Duarte, Joaquim
Brasil Fontes, Pedro Paulo Funari e, especialmente,
Jaa Torrano.

15
(A) A “QUESTÃO HOMÉRICA”

H á muito já se deu a devida atenção ao fato de


que o sentido primeiro da palavra grega “mito”
(mûthos) é o de “fala”, isto é, “ato de vocalização”,
“emissão sonora verbal”. Esse sentido fica claro nas inú-
meras vezes em que o termo aparece na poesia homérica,
quase sempre em referência às também numerosas falas
dos personagens, àquilo que chamamos hoje de “discurso
direto”. No entanto, essa constatação permaneceu obscu-
recida pelo fato de essas “falas”, em Homero, terem sido
frequentemente encaradas tal qual encaramos as “falas”
dos personagens em uma obra como a Eneida, a Divina
Comédia, os Lusíadas ou mesmo um romance moderno:
manifestações verbais diretas que permanecem “mudas”,
porque tanto aquele que as cria quanto aquele que as
recebe estão ligados pelos atos gêmeos da escrita e da lei-
tura, nos quais cada voz particular faz-se ouvir apenas
no pensamento.
Homero, efetivamente, desde sua redescoberta no
Ocidente a partir do século XV (as primeiras edições são
de 1488-9),1 foi em geral visto como um escritor como
outros – pelo menos no modo de produção e recepção de
sua obra: alguém que compusera solitariamente, com
toda a sua força criativa, e segundo determinadas con-
venções, poemas que eram lidos pelos que se interessa-
vam por literatura, por suas qualidades literárias e pelo
universo que descrevia. Nesse contexto, os “atos de fala”
que, numericamente, ocupam mais da metade do total
de seus versos, jamais podiam ser tomados – junto com as
partes propriamente narrativas – como “vocalizações” de
fato, como elementos que faziam parte de outra realidade
poética, em que a escrita e a leitura não desempenha-
vam papel importante (ou mesmo não desempenhavam,
a princípio, papel algum) e a fruição do texto se dava
exclusivamente no plano acústico. Isso implicava não só
enxergar de um modo diferente o poeta Homero, mas
também reavaliar toda a sua poesia – seu modo de com-
posição e transmissão, sua inserção social, seu valor –, ou
seja, implicava enxergar os poemas homéricos e seu autor
a partir de uma perspectiva nova, que lhes concedia uma
condição, um tempo, necessariamente diversos daqueles
contemporâneos.
A história da reavaliação do mais importante poeta
da antiguidade é uma história da percepção de sua orali-
dade, uma história paulatina, descontínua, recheada de
acertos e equívocos, que mobilizou inúmeros especialistas
e se desenrolou à margem do grande público, trazendo
resultados que transformaram nossa maneira de ler (sim,
continuamos a ler) a Ilíada e a Odisseia. Ela é, sobretu-

18
do, fruto do olhar histórico, que se volta para trás e busca,
em cada objeto, sua origem e seu desenvolvimento, porque
tem consciência de que tudo se dá segundo um processo
de transformação no tempo e no espaço. É, portanto, no
século XVII e, com muita mais força, no século XVIII,
que Homero passa a ser visto como um “estrangeiro”, isto
é, como um poeta de outra época (diferente de Virgílio,
Dante e Camões), com suas características próprias, que
demandam uma visada crítica. E se é verdade que essa
abordagem nova levou a uma postulação quase que ime-
diata da origem oral da poesia homérica (ainda que vaga
e imprecisamente), é preciso dizer, contudo, que mais im-
portante do que do rótulo foi o debate sobre as implica-
ções dessa oralidade, não só em relação à imagem que se
tinha de Homero, mas também em relação ao modo de se
abordar sua poesia e sua época.
Em linhas gerais, pode-se afirmar que a discussão
atingiu seu ponto de maturação apenas numa segunda
etapa (na primeira metade do século XX), que abordare-
mos em profundidade mais à frente. Agora, a intenção é
apenas traçar as linhas principais desse movimento crítico
moderno, vigoroso e apaixonante, sobre o nascimento e a
formação das duas principais epopeias gregas, movimen-
to que se instalou no século XVIII, adquiriu sua feição
mais característica no século XIX e ficou conhecido como
“Questão Homérica”.2

19
1.

TRÊS PRECURSORES

A obra fundamental para se compreender os princi-


pais caminhos seguidos pelos estudos homéricos
nos últimos dois séculos foi escrita em latim, por um
acadêmico de língua alemã, Friedrich August Wolf, e
publicada em Halle quase no fim do século XVIII, em
1795. Seu título original, Prolegomena ad Homerum,
não dá a exata medida do seu conteúdo, que ambicio-
na ser bem mais do que simples prolegômenos (isto é,
prefácio ou introdução) a Homero.
Para se entender o livro de Wolf, no entanto, se-
ria preciso primeiro situá-lo dentro do contexto maior
das discussões em que a poesia homérica estava en-
volvida no século XVIII e apontar alguns dentre seus
vários precursores. Ainda que o alemão não receba
uma influência decisiva desses que vou mencionar
aqui, suas obras revelam que a ideia vaga de um cantor
iletrado que recitava seus poemas já estava difundida
no ambiente culto. Três nomes são fundamentais: o
do francês François Hédelin, abade de Aubignac, que
teve publicadas postumamente suas Conjecturas acadê-
micas ou dissertação sobre a Ilíada (1715); o do italia-
no Giambattista Vico, autor de Sobre a descoberta do
vero Homero (1730); e o do inglês Robert Wood, com
seu Ensaio sobre o gênio original de Homero (1769).3
A indicar o alcance da discussão, é interessante notar
que os três livros foram escritos em línguas diferentes;
dado mais relevante ainda é terem sido todos eles pos-
tos em vernáculo, o que, por si só, marca uma dife-
rença substancial em relação à abordagem científica do
trabalho de Wolf, como veremos mais adiante.
Desse grupo de antecessores, o texto do abade de
Aubignac é certamente o mais interessante, não só por
conta de seu desenvolvimento mais aturado e por an-
tecipar a visada analítica, mas também pelo fato de ter
feito parte da rixa literária que tomou conta da França
entre 1687 e 1716, batizada de “Querela dos Antigos
e Modernos”. A redação do livro, aparentemente, foi
concluída apenas em 1670, poucos anos antes de sua
morte (em 1673 ou 1676), mas é na época em que
vem a público, 45 anos depois de escrita, que Homero
de fato se encontrava no centro do debate entre os
que, de um lado, defendiam a superioridade literária
dos modernos (agora não mais liderados por Charles
Perrault, mas por Houdard de La Motte), e os que, no
lado oposto do front, se aferravam à autoridade dos
escritores antigos (capitaneados não mais por Boileau,
mas por Anne Dacier). A efervescência é testemunha-
da pela quantidade de publicações envolvendo a poe-
sia homérica (e a Ilíada em especial) nesse período,

22
com ataques e contra-ataques, com “discursos”, “dis-
sertações críticas”, “exames”, “apologias”, “defesas”,
traduções, versões aperfeiçoadas (!), criações para o
teatro etc.4 O abade – ele mesmo dramaturgo e tra-
tadista, propositor da famosa regra das três unidades
em sua obra A prática do teatro (de 1657) – era um
dos partidários da visão moderna então prevalecente, e
isso se evidencia no tratamento cartesiano dispensado
a Homero, cuja obra não resistia ao teste de fogo das
regras fundamentais da arte literária.
Seu argumento central era bastante simples, mas
extremamente audacioso para a época (o que talvez
explique o retardo na publicação, e essa ter acontecido
de modo anônimo):5 a análise detalhada das incon-
sistências – morais, estilísticas, narrativas etc. – en-
contradas na Ilíada, somada a algumas informações
históricas sobre a atividade rapsódica e a ausência de
escrita, indicavam claramente para o abade que a obra
não podia ser resultado do trabalho de um autor, mas
sim fruto de uma compilação de cantos, e que Home-
ro, portanto, nunca existiu. A heresia central consistia,
naturalmente, em suprimir a existência do grande Ho-
mero, em “matar” o homem que tinha produzido os
grandes monumentos da nossa literatura ocidental.6
Ciente da dimensão da empreitada, o abade inicia
sua obra pedindo permissão ao leitor para falar com
“inteira liberdade” sobre Homero, para que assim se
abandone a complacência em relação a esse “nome tão
venerável, e que talvez não tenha sido outra coisa se-
não um simples nome”, e sobressaia o uso da razão.7
Em seguida, na primeira parte do livro – mais cur-

23
ta, cujo título “Homero não existiu” trai o gosto pela
polêmica e a vontade de chocar –, o francês passa a
expor, apoiado em relatos tradicionais, os dados his-
tóricos que corroborariam essa sua visão: 1. a ausência
de informações concretas relativas à vida do poeta; 2.
a designação dos cantos da Ilíada e da Odisseia pelo
termo “rapsódias”, termo que originalmente indica
“recolha de cantos costurados entre si”;8 e 3. os teste-
munhos antigos, sobretudo o de Flávio Josefo (século
I d.C.), que no seu Contra Ápion (1.2) afirma que os
poemas homéricos foram transmitidos oralmente até
sua compilação tardia por escrito, o que explicaria suas
muitas inconsistências. A conjectura preliminar é de
que a Ilíada representa a junção de 40 poemas diferen-
tes (de mais ou menos 400 versos cada), surgidos de
maneira independente (mas que jamais poderiam ter
sido compostos por um homem só) e posteriormente
reunidos pelas atividades do tirano ateniense Pisístrato
e de seu filho Hiparco, “tendo chegado até nós nesse
mesmo estado”.9
É para sustentar essa sua hipótese que o abade vai
se voltar, na segunda parte (que corresponde ao grosso
do livro), para a análise da própria Ilíada: submeti-
da ao crivo cartesiano, ela se revelará uma narrativa
repleta de problemas, todos eles a apontar cabalmen-
te a impossibilidade de ser a construção acabada de
um único autor. A começar pelo “desenho”, a lista de
defeitos é evidente: o título não descreve convenien-
temente a ação; não existe um eixo principal; não se
narra o julgamento de Páris nem a tomada de Troia;
a invocação é limitada; o fim não é adequado; há ex-

24
cesso de narrativas incidentais etc. etc. É conduzido
pelas “regras da arte”, pela “razão natural”, pela “veros-
similhança” – ou seja, por aquilo que o poeta deve em
qualquer tempo fazer, segundo as suas concepções de
construção poética – que o autor vai apontado as “ex-
crescências” no que deveria ser um “corpo perfeito”.10
Para que se tenha ideia do enfoque, basta mencionar
a crítica que dirige à longa conversa entre Diomedes
e Glauco no Canto 6: para o abade, “um poeta sábio,
que trabalhasse por seu próprio gênio na fabricação de
uma grande obra, tomaria o cuidado de jamais fazer
seus heróis contarem histórias quando estão com ar-
mas nas mãos e prestes a arrancar vidas”.11 Na sequên-
cia, a mesma censura, com base no que é plausível ou
crível, vai se aplicar ao diálogo de Menelau com Eu-
forbo, no Canto 17, e ao de Aquiles com Eneias, no
Canto 20.
Mais adiante, ao falar das divindades no poema,
o autor nega que tenham função instrutiva ou alegó-
rica, e põe mais uma vez na conta da compilação a
presença de “coisas tão irracionais, tão distantes da
natureza”, coisas que “um poeta inteligente” jamais
teria feito.12 O mesmo se aplica aos heróis: julgados
“pelas regras do bom senso”, conclui-se que Aquiles
e Agamênon brigam por “motivo vil” e que não há a
“grande alma”;13 além do mais, a conduta “judiciosa”
manda que se mantenha sempre o herói principal “à
vista dos leitores”, “sobre o palco” – e manda ainda
(vale acrescentar) que ele e os demais não sejam apre-
sentados a toda hora em lágrimas, e sem serviçais para
lhes preparar a refeição!14

25
Finalmente, no trecho que encerra o trabalho en-
contramos a discussão específica sobre as “discordân-
cias diversas”;15 ela é importante porque se apoia nas
supostas contradições internas do poema – ainda sem
muita precisão – para defender o caráter compósito
da narrativa. Para o abade, mais uma vez, “um único
autor, ainda que pouco hábil, não teria cometido tais
contradições, que se podem chamar de erros de julga-
mento; pois, tendo em vista a obra inteira, ele teria ob-
servado a conveniência, sem destruir uma coisa com
outra”.16 Entre as incongruências citam-se o modo
como pinta certos personagens, como Páris (covarde
no Canto 3 e valente no Canto 11) ou Aquiles (aman-
te do butim no Canto 1 e indiferente aos presentes de
Agamênon no Canto 19); a presença de repetições des-
necessárias, como quando, no Canto 1, Aquiles repete
para a mãe a narrativa do início do poema; a mistura
do tom em geral elevado com o burlesco (presente no
diálogo de Zeus com Hera no Canto 1); a recorrência
dos epítetos, tão destacada “que se tornam insuportá-
veis”, sendo muitos deles aplicados indiferentemente a
vários heróis, com o agravante de que isso é feito “sem
qualquer conveniência, sem energia, sem aumentar a
força do sentido e a graça da expressão” – defeito que,
segundo o abade, só veio a aparecer porque a reunião
de dezenas de poemas independentes, baseados num
“bem comum”, tornou o que era belo “vicioso”.
Por esse breve apanhando, é possível notar como
a obra tocava, em fins do século XVII, naqueles pon-
tos que seriam fundamentais para o desenvolvimento
dos estudos homéricos: a importância de certas infor-

26
mações históricas sobre a oralidade e uma “recensão”
antiga dos poemas; o emprego de um racionalismo
extremo (e arbitrário) na leitura crítica; a tentativa de
decomposição da Ilíada e da Odisseia com base nas
suas supostas inconsistências; e, finalmente, a referên-
cia às repetições e ao uso dos epítetos – elementos que
vão reaparecer, sob a capa do cientificismo filológico,
no século XIX, livres de certo amadorismo do abade,17
e permanecerão no centro do debate no século XX.
Deve-se destacar que, no que diz respeito à ques-
tão da oralidade, o abade não é claro. Embora se
apoie, como vimos, em Flávio Josefo (que postulava
uma origem oral para a poesia homérica), e afirme que
a Ilíada se formou a partir de cantos costurados entre
si, seu texto dá a entender que não postula uma época
de produção poética exclusivamente mnemônica, em
que a escrita está ausente. Veja-se este trecho:

Uma vez que Homero não deixou absolu-


tamente por escrito as obras que levam seu
nome, deve-se concluir que ele jamais as
compôs, e, se ele jamais as compôs, deve-se
concluir que ele não existiu absolutamente.
Pois como é possível que ele tenha compos-
to essas poesias, sem jamais as ter posto por
escrito, e se possa ter conhecimento delas,
contendo mais de trinta mil versos? Seria
preciso que tivessem sido repetidas durante
toda a sua vida, e que as gentes não tivessem
feito outra coisa senão escutá-lo para poder
aprendê-las.18

27
A conclusão que se pode tirar desse raciocínio um
pouco frouxo19 é que, se Homero tivesse existido, teria
escrito seus poemas, sobretudo em se tratando de um
conjunto de versos tão extensos, que não poderiam ser
preservados exclusivamente pela memória.20 Duas as-
sociações chamam a atenção aí: a entre criação poética
(coerente) e escrita; e a entre extensão poética e escrita.
Como, nas Conjecturas acadêmicas, parte-se da ideia
dupla de que a Ilíada não tem unidade artística e é um
conglomerado de pequenos cantos, fica sim indicada
a oralidade da produção poética, mas ela não recebe
uma atenção própria e não se separa do letramento
– elemento que depois será fundamental. Já sobre a
intervenção de Pisístrato (ou de seu filho Hiparco) na
organização dos poemas, o abade não diz nada que já
não tenha aparecido no texto de autores que vieram an-
tes dele, e que se apoiaram nas mesmas fontes, embora
o francês não especifique se ela implica uma redação.21
O que mais chama a atenção no livro, sem dúvida,
é a proposição de que Homero não existiu. Por mais
equivocado que tenha sido o caminho pelo qual che-
gou a ela, o fato é que antecipa a ênfase que será poste-
riormente dada à tradição em detrimento da figura do
poeta-autor. Podemos medir o grau de perplexidade
que essa ideia causava em sua época pela reação dos
seus próprios camaradas “modernos”, que igualmente
rejeitaram, junto com os adversários “antigos”, tama-
nho absurdo, um verdadeiro paradoxo: uma obra que
não tem autor e é fruto do acaso.22
O fato é que, em perspectiva mais ampla, nessas
Conjecturas acadêmicas não percebemos ainda uma

28
visão propriamente histórica a respeito do poema; o
enfoque é essencialmente retórico, feito sob o prisma
das regras do bem escrever então vigentes na França
do Dezessete – unidade, verossimilhança, bom gosto
etc. –, à semelhança do que já preceituava Júlio Cé-
sar Escalígero (1484-1555) em sua Poética (1561), ao
louvar a arte de Virgílio em detrimento de Homero.23
Há certamente por trás do seu arrazoado uma ideia de
progresso, segundo a qual os “modernos” eram capazes
de produzir, a partir da imitação, e de uma perspectiva
superior, obras mais acabadas que as antigas, cuja au-
toridade não era total; mas essa é uma visão evolutiva
estática, que não consegue sair da obra para o contex-
to, e que aplica indiscriminadamente ao passado suas
regras (que, paradoxalmente, de lá vieram).
Essa determinação histórica, atenta à marcha do
homem, vai surgir com mais clareza no texto célebre
de Vico, Sobre a descoberta do vero Homero, que cor-
responde ao livro terceiro de sua Ciência Nova. Nele,
a reflexão sobre Homero vem atrelada a dois elemen-
tos principais: 1. a admissão de um estágio primitivo
da humanidade no seu processo de desenvolvimento
(favorecida pela comparação com os povos indígenas
das Américas, há pouco descobertas); 2. a atribuição
ao mito (que é o modo de pensar dessa época, essen-
cialmente poético) de um sentido histórico e sócio-
-cultural, e não mais normativo e alegórico. Aplicadas
a Homero, essas ideias resultam na visão de uma poe-
sia representativa de uma Idade Heroica do homem,
cujos costumes ela retrata em seu testemunho históri-
co. As fábulas, segundo Vico, têm um sentido verda-

29
deiro e refletem as propriedades de um povo inteiro.
São, portanto, os primeiros tempos da Grécia que a
poesia homérica nos mostra, e não lições filosóficas
escamoteadas.24
Mas a parte que mais interessa é a que vem a se-
guir, e corresponde à segunda metade da obra (que,
no total, não ultrapassa trinta páginas), quando Vico
aduz as “provas filosóficas” e as “provas filológicas”
relativas à descoberta do “verdadeiro” Homero. É
nesse ponto que ganha destaque o papel atribuído
à memória. Retomando o já citado passo de Flávio
Josefo, sobre a ausência de escrita na época do poeta
épico (e supondo que os poemas foram ordenados pe-
los Pisistrátidas num período já letrado),25 o filósofo
napolitano reflete sobre a necessidade de se recorrer,
nessas circunstâncias, ao metro e ao ritmo para garan-
tir a preservação das informações. Nesse contexto, os
rapsodos desempenham papel fundamental: eles eram
“homens do povo, que conservavam um a um, de me-
mória, os livros dos Poemas homéricos. Porque Home-
ro não deixou por escrito nenhum de seus poemas”.26
Entendendo também o termo “rapsodo” segundo sua
difundida etimologia – como “o costurador de cantos”
–, Vico imagina que, na Grécia Antiga, esses cantores
eram figuras pobres e itinerantes; mais do que isso:
que eram cegos, porque “é propriedade da natureza
humana que os cegos tenham um desempenho mara-
vilhoso no que diz respeito à memória”. Em apoio ao
que diz, cita a presença de Demódoco na Odisseia e a
possibilidade de o próprio nome “Homero” significar
“cego”.27

30
Não é essa, no entanto, a formulação mais debati-
da da obra. Vico guarda para o último capítulo, inti-
tulado justamente “A descoberta do vero Homero”, a
reflexão sobre o papel que se deve reservar ao Homero
histórico. Cito a tradução de Sonia Lacerda:

Todas essas coisas agora nos compelem a


afirmar que com Homero ocorreu justamen-
te como com a guerra troiana, a qual, con-
quanto tenha fornecido um afamado marco
dos tempos à história, os críticos mais preca-
vidos julgam que nunca se travou no mun-
do. E certamente, como da guerra troiana, se
de Homero não tivessem restado certos ves-
tígios tão grandes quais são os seus poemas,
diante de tantas dificuldades se diria que ele
foi um poeta de ideia, e não um homem
particular existente na natureza. Mas tais e
tantas dificuldades, junto com os poemas
que dele nos chegaram, parecem forçar-nos
a afirmá-lo pela metade: que este Homero
tenha sido uma ideia ou caráter heroico de
homens gregos, enquanto narradores, em
cantos, de sua história.28

Logo em seguida, veremos ainda a afirmação de


que “esses povos gregos foram este Homero”, e que a
representação tradicional de Homero não mais é do
que a reunião, numa figura só, do que era característi-
co dos rapsodos.29 Finalmente, ao tratar das diferenças
entre a Ilíada e a Odisseia, Vico abandona a visão ex-

31
posta por Longino (século I d.C.) no capítulo 13 de
seu tratado Do Sublime (de que a primeira correspon-
deria à fase madura do poeta, e a segunda, ao tempo
da velhice) para propor que cada epopeia testemunha
um período e um local diferentes no desenvolvimento
da Grécia Antiga. Com isso, tira-se de Homero uma
existência real e atribui-se a ele um valor simbólico,
num contexto de produção coletiva oral com forte
sentido histórico.30
Notamos, portanto, que, trabalhando com as
mesmas fontes históricas do abade, Vico propõe
leitura bem diversa, não só valorizando (com forte
idealização pré-romântica) o universo homérico, cuja
espontaneidade poética é sinal de vitalidade e retra-
to da infância humana, mas também dando efetivo
relevo ao uso da memória e à produção oral. Se ele
propõe, de outra maneira, também uma espécie de
“morte” do grande Homero, que surge como ideia ou
súmula de toda uma tradição primitiva (o verdadei-
ro Homero é... o povo), fica claro que o faz não em
decorrência de uma análise exclusivamente literária e
anacrônica, mas sim em função de uma tentativa de
posicionamento histórico-cultural – ou seja, o faz de
um modo realmente inovador, que confere à epopeia
grega estatuto diferenciado. Nesse contexto, a orali-
dade é índice de um outro momento da marcha da
humanidade, e por causa do enfoque filosófico do-
minante ela surge em Vico de modo ainda idealizado
e abstrato, sem uma compreensão de fato do que re-
presenta, com suas especificidades, para a leitura da
poesia homérica.

32
Se há algum avanço da perspectiva histórica no
trabalho de Robert Wood, Ensaio sobre o gênio origi-
nal de Homero e seus escritos, de 1769, ele consiste na
apresentação de um olhar a princípio menos teórico
e mais material, próprio de quem não era filósofo,
mas político, com gosto pelas viagens; como diz John
Myres, seu ensaio vinha levantar questão muito se-
melhante à de Vico, mas “de um modo tipicamente
inglês”.31 Está ali a mesma visão de um Homero his-
toriador (que, segundo Wood, “pintava” a realidade
à sua volta), que não aceitava mais a impostura da
alegoria; que pertencia a uma época primitiva e rude,
provavelmente anterior ao surgimento da escrita,
e guiada única e exclusivamente pela memória. No
entanto, ao contrário de Vico, o inglês se empenha
numa exposição extensa que comprove a realidade
da poesia homérica; não é por acaso que, como uma
espécie de apêndice da obra, venha sua “Visão com-
parativa entre o estado antigo e presente da Trôade”,
com mapas e ilustrações, a coroar seu pendor para a
topografia e pela análise in loco.
Como diz na advertência inicial ao leitor, ele se
propõe a

ler a Ilíada e a Odisseia nas regiões em que


Aquiles combateu, por onde Ulisses viajou, e
nas quais Homero cantou. (...) Portanto, se
se quer fazer justiça ao poeta, deve-se reali-
zar, o mais possível, uma aproximação com o
tempo e o local, com o “quando” e o “onde”,
escreveu.32

33
Pode-se afirmar, em outras palavras, que sua meta
consistia em manter um olho nos poemas (que deve-
riam estar sempre à mão) e outro na paisagem, para
que se confirmassem mutuamente.33 Os títulos dos
capítulos do livro deixam claro o tipo de enfoque ado-
tado: “A região de Homero”; “As viagens de Homero
e sua navegação”; “Os ventos de Homero”; “A geo-
grafia de Homero”; “Descrição de Faros e Alexandria”
(para discutir a precisão de uma informação contida
no Canto 4 da Odisseia); “A religião e a mitologia de
Homero”; “Os costumes de Homero” (em que se vale
da analogia com os povos mais “atrasados” do Oriente
Próximo para atestar a verdade do que dizia Homero);
“Homero enquanto historiador”; e “A cronologia de
Homero”.
Sobre a existência do poeta, sua posição é bastante
diferente da de Vico. Embora enfatize o papel da ora-
lidade e do canto, Wood, ao contrário do florentino,
acredita que Homero foi um poeta de carne e osso.
Se para o filósofo descobrir o verdadeiro Homero sig-
nificava torná-lo múltiplo e difuso, confundi-lo com
a tribo dos rapsodos e, em última instância, com o
próprio povo, para o inglês Homero era o “gênio” cuja
sensibilidade – sem a mediação tirânica da norma –
havia permitido um retrato tão contundente e preci-
so de um período recuado da Grécia Antiga. Nesse
contexto, a escrita, tomada como sinal de refinamen-
to e avanço, é vista como algo inexistente. A questão
propriamente dita (“Até que ponto o uso da escrita
era conhecido por Homero?”) é colocada apenas na
página 248 do livro, e vai ocupar o autor ao longo das

34
próximas 50, mas é importante que se diga que não
está no centro das atenções, restringindo-se ao último
capítulo, “A língua e a instrução de Homero”.
Wood aborda o tema com cautela, receando “o
espanto do leitor com a insinuação de que Homero
não sabia ler nem escrever”.34 Mas sua conclusão é
de que a adoção de um registro gráfico da fala “é re-
sultado de uma reflexão e de um pensamento muito
profundos”,35 ainda ausentes na selvagem época ho-
mérica. Para confirmar essa ausência, ele promove um
vasto inventário de evidências (que talvez seja o que
há de mais contundente e inovador no livro): o fato
de não haver nenhuma menção nos poemas à escrita;
o uso restrito, lento e complexo da anotação alfabé-
tica em sua fase inicial; a escassez de materiais, que
ficavam restritos à pedra e à madeira; o modo solene
como Homero se dirige às Musas, filhas da Memória;
a transmissão não escrita das leis nos primeiros tem-
pos; o testemunho de Flávio Josefo; e, finalmente, a
atribuição (principalmente a Pisístrato) de uma orde-
nação da Ilíada e da Odisseia, tomada como sinal da
introdução da escrita.36 Tudo isso faz Wood colocar o
poder da memória em primeiro plano – no que diz
respeito a Homero –, e a estipular o ano de 554 a C.
como período mais provável para a disseminação do
uso da escrita na Grécia Antiga.37
Em sua argumentação, Wood faz também um
levantamento das mais variadas ciências em Homero
(geografia, astronomia, medicina, pintura, anatomia,
arquitetura, arte militar), para chegar à conclusão de
que, na obra do poeta, elas ainda não surgem enquan-

35
to ciências de fato, o que está de pleno acordo com a
simplicidade de sua época –anterior à fixação das artes
e favorável à clareza, à originalidade e à verdade. O
arrazoado – fica claro – serve para encaminhar a cons-
tatação de que, em consonância com as outras artes,
também a da escrita deveria ser inexistente – mas nesse
ponto o inglês recua e afirma que ela, “embora conhe-
cida na Grécia durante a época em que o poeta viveu,
era muito pouco praticada”.38 Essa concessão decorre,
certamente, daquele receio de chocar o público a que
se endereçava a obra: Wood tinha clara consciência
de que sua proposta “podia parecer ofensiva ao Poe-
ta, uma vez que lhe roubava uma parte respeitável do
caráter, há muito reconhecida, e contradizia a opinião
preferida a respeito de sua instrução”; no entanto, ele
conseguia ver “algumas vantagens decorrentes desse
estado de iletramento que compensavam aquela per-
da”:39 Homero era o poeta da natureza avesso às regras,
e a imperfeição da arte, os modos rudes e a sociedade
iletrada eram as condições que melhor se ajustavam ao
seu caráter. Essa simplicidade se refletia, por fim, em
seu estilo não escrito, em que não têm lugar períodos
desenvolvidos e linguagem intricada, e “as repetições
de passagens inteiras (pelo que Homero é censurado)
eram não apenas mais naturais, mas também menos
perceptíveis e, portanto, menos ofensivas”.40
Temos aí então as reflexões centrais de Wood: em-
bora pertencente a uma época bárbara, anterior aos
refinamentos da cultura, Homero para ele é exato,
verdadeiro e original, e trabalhou (como o próprio
Wood...) como um “viajante curioso e observador”,41

36
coletando e ordenando vasto material; além do mais,
sua condição é a de um poeta oral, que, por não re-
correr ainda à arte da escrita, só tem potencializadas
suas qualidades. No trabalho do inglês, notamos efe-
tivamente uma atenção especial dada à oralidade, mas
a realidade é que o fato de trabalhar com essa ideia
de um Homero genial leva-o a não dar peso maior
à tradição (como o faz Vico),42 e acaba traindo um
olhar letrado e anacrônico, apesar das afirmações em
contrário.
No fim das contas, Wood parece trazer consigo o
mesmo espanto que imagina em seu leitor perante a
afirmação de que Homero não sabia ler nem escrever,
e isso fica indicado por sua insistência no uso do nome
“Homero” (evidente nos títulos dos capítulos), pelo
destaque à sua grandeza como autor e pela referência
frequente aos seus “escritos” e a sua atividade de “es-
critor”. Essa contradição fica clara, por exemplo, no
trecho citado acima, onde primeiro diz que “Homero
cantou” para, logo na sequência, dizer que “Homero
escreveu”. Trata-se, naturalmente, de um “ato falho”
decorrente de uma visão costumeira, muito arraiga-
da, justamente a que ele quer combater, e ela por si
só seria insuficiente para sustentar esta crítica. O que
parece sim indicar o acerto dessa percepção é a ideia
central com que trabalha e vai disseminada pelo li-
vro: de que deve haver uma cabeça diretora por trás
dos poemas (um pouco à maneira do abade, mas em
chave positiva, porque Wood, de modo fantasioso, va-
loriza a simplicidade como obra do gênio rude).43 Por
causa dessa ideia, sentimos que seu Homero, apesar

37
da descrição vívida dessa outra época selvagem, não
pertence a ela e fica reduzido a uma figura pitoresca
e superficial (como os orientais, especialmente os ára-
bes, em cujos modos Wood se baseia para fazer suas
analogias),44 cujo modo real de operar, como poeta,
permanece obscuro.
De qualquer modo, dos três trabalhos vistos aqui,
o de Wood foi o que teve maior repercussão:45 dele
foi publicada, em 1773, uma tradução para o alemão,
encomendada e prefaciada por Christian Gottlob
Heyne (1729-1812), mestre em Göttingen de Wolf
(que discute a obra do inglês em seu Prolegomena ad
Homerum). Com seu ensaio, Wood ajudou a deflagrar
as abordagens antropológica, sociológica e geográfica
de Homero – além de anunciar a arqueológica –, que
teriam larga voga no século XIX e fariam com que o
poeta deixasse de vez de pertencer exclusivamente ao
universo da poesia para surgir como testemunho privi-
legiado de um outro tempo. Para que isso acontecesse
por completo, contudo, era necessário ainda que se
fizesse uma abordagem do texto da Ilíada e da Odisseia
e se percebesse como sua própria constituição trazia
problemas que ajudavam a esclarecer o debate sobre
sua origem oral.

38
2

VILLOISON E O
MANUSCRITO DE VENEZA

A s primeiras edições impressas da Ilíada e da Odis-


seia surgiram, respectivamente, em 1488 e 1489,
produzidas em Florença pelo grego Demetrius Chal-
condyles. Depois delas, muitas outras foram publica-
das nos séculos seguintes (como as de Aldo Manuzio,
em 1504 e 1517), mas nenhuma teve a repercussão e
o impacto daquela editada por um francês, Jean-Bap-
tiste Gaspard de Villoison, em 1788.
Villoison tivera notícia, em 1779, da existência de
um manuscrito precioso da Ilíada de Homero, perten-
cente à Biblioteca Marciana (ou de São Marcos), em
Veneza, e para lá se dirigiu, em 1781, para estudar o
material. Tratava-se de um códice (manuscrito enca-
dernado como livro) do século X d.C., de origem bi-
zantina, doado em 1468 pelo cardeal Bessarion, junto
com o restante de sua coleção, para a então República
Veneziana. As 316 folhas de pergaminho continham,
além do mais antigo texto completo da Ilíada, uma
enorme quantidade de comentários marginais – os
chamados “escólios” –, que remontavam à atividade
dos críticos alexandrinos, dos séculos III e II a.C. Não
eram reflexões copiadas diretamente desses estudos
originais (que se perderam), mas sim feitas por seus
seguidores,46 reflexões nos quais se destacava a figura
do maior editor de Homero em Alexandria, Aristar-
co de Samotrácia. O francês percebeu na descoberta
do manuscrito – que ficou conhecido como “Venetus
A” – a possibilidade de estabelecer, com base em suas
copiosas informações e na autoridade de Aristarco,
aquele que seria o texto original de Homero. Isso era
necessário porque os escólios apontavam para uma sé-
rie de variantes no poema, que Villoison relacionava à
oralidade tão discutida da poesia homérica. Diz ele na
sua introdução ao livro:

Esses escólios, nunca antes publicados,


lançam uma grande luz sobre a poesia de
Homero, iluminam passagens obscuras, ex-
plicam os ritos, os costumes, a mitologia e
a geografia dos antigos, e examinam as vá-
rias leituras de vários códices e edições, e as
emendas dos críticos. Pois está claro que o
texto homérico, que os rapsodos recitavam
de memória e todos cantavam em voz alta,
foi corrompido numa data bem remota, uma
vez que os diferentes rapsodos de diferentes
áreas da Grécia necessariamente suprimiam,
adicionavam e alteravam muita coisa. [Flá-
vio] Josefo assegura, logo no início do pri-

40
meiro livro do Contra Ápion, que Homero
não deixou seus poemas por escrito.47

Essa percepção de um texto (e de uma língua tam-


bém) em transformação ao longo do tempo se ajustava
bem ao novo olhar histórico e evolutivo, e poderia ser
determinante para o debate a respeito da historicidade
de Homero e seus poemas. É curioso notar que, jun-
to com a edição do Venetus A,48 Villoison faz vir um
estudo antropológico sobre o iletramento de ilhéus do
Egeu que tinha conhecido pessoalmente, o que nos
mostra como a abordagem de Wood estava longe de
ser algo isolado.49
No universo da língua alemã, a notícia da publi-
cação do manuscrito vinha se juntar a um ambiente
vigoroso. A crença em uma criação genial, isenta de
mecanismos pré-definidos, era componente impor-
tante do movimento denominado “Tempestade e
Ímpeto” (da segunda metade do século XVIII), que
prenunciava o espírito romântico e podia aproximar
Homero de Shakespeare, modelos daquela liberdade
criativa que se via no passado e se queria reproduzir,
mutatis mutandis, no presente.50
Esse passado correspondia não só à grande fonte
inspiradora do Ocidente – a Grécia –, mas também
às origens de cada uma das nações, origens que come-
çavam a ser cada vez mais valorizadas. Vale destacar a
importância dada nesse período à suposta produção
poética, de origem escocesa, do bardo Ossian, divul-
gada na íntegra por James Macpherson em 1765 e
logo traduzida do gaélico para o alemão.51 Símbolo da

41
oralidade e da simplicidade primitivas, ela teve grande
influência sobre Johann Gottfried Herder, autor do
clássico Ideias sobre a filosofia da história da humani-
dade (Ideen zur Philosophie der Geschichte der Mens-
chheit, 1784-1791), e é mencionada mais de uma vez
por Goethe – sob a influência justamente de Herder
– em seu Os sofrimentos do jovem Werther, de 1774.52
Lembre-se ainda que, sob a ascendência do mesmo
Herder e dentro do mesmo espírito, os irmãos Jacob e
Wilhelm Grimm publicariam, em 1812 e 1815, seus
Contos maravilhosos infantis e domésticos, coletânea de
histórias populares.53
A essas informações sumárias devem-se acrescen-
tar ainda, para melhor contextualização, outras três: o
trabalho em progresso de revisão da mitologia – nova-
mente, da grega em geral e da de cada nação em par-
ticular – e de suas interpretações, em que se destacava
o já citado Heyne, editor de Homero e Virgílio;54 o
tratamento histórico e antropológico que se dava ao
texto bíblico desde o século XVII, e que culminou no
trabalho modelar de Johann Gottlieb Eichhorn sobre
o Antigo Testamento entre os anos de 1780-1783;55 e,
finalmente, o surgimento de uma tradução de Home-
ro para o alemão que, não por acaso, tentava mime-
tizar o movimento do hexâmetro grego, a cargo de
Johann Heinrich Voss (a Odisseia saiu em 1781, e a
Ilíada, em 1793).
É nesse contexto que a publicação do Venetus A
foi saudada no ambiente acadêmico de língua ale-
mã, sendo resenhada em alguns periódicos. Friedrich
Wolf (1759-1824), formado no método histórico da

42
Universidade de Göttingen (como Eichhorn e Voss)
e professor da Universidade de Halle, deu a público,
em 1791, sua apreciação da obra: nela, assinalava a
importância da publicação, mas mitigava a importân-
cia dada por Villoison ao trabalho de Aristarco. Os
escólios não nos levariam ao texto original de Home-
ro. Para Wolf, eles antes serviram como “pretexto para
um longo ensaio no qual a história do texto homérico,
as origens e o desenvolvimento do estudo especiali-
zado no mundo antigo, e a história geral da cultura
grega apareciam indissociavelmente ligados”, como
diz Anthony Grafton.56 Em outras palavras, a aparição
do manuscrito deu ensejo a uma obra que punha em
prática o historicismo de um modo profundo e deta-
lhado. Ironicamente, a edição de Homero de Wolf,
baseada no Venetus A e publicada em quatro volumes
entre 1804 e 1807, se tornaria a base de todas as edi-
ções posteriores, formando uma espécie de “Vulgata”
de Homero e dando a falsa impressão de que se chega-
ra a um texto estável.57

43
3.

WOLF E A EVOLUÇÃO DO TEXTO

O s Prolegômenos a Homero de Wolf são uma obra


duplamente incompleta. Segundo a própria in-
dicação do autor feita no Capítulo 7, ela deveria se
dividir em duas partes: uma primeira dedicada à histó-
ria do desenvolvimento e da recepção crítica do texto,
das suas origens ao século XVIII, em seis fases; e uma
segunda voltada para a apresentação dos princípios da
crítica textual que pretendia pôr em prática em sua
edição da Ilíada e da Odisseia. Mas o fato é que Wolf
terminou o que seria o volume um dos Prolegomena
(segundo anotação sua) na metade da terceira fase de
sua história crítica, no século II a.C., sem nunca mais
retomá-la; e, da segunda parte, ficamos apenas com
dois capítulos, em estado rudimentar.58 A publicação
quase dez anos depois de sua edição dos poemas, à
qual a obra de 1795 serviria de introdução, não aju-
dou a esclarecer sua metodologia no trato com o tex-
to.59
Assim, podemos afirmar que seu livro se resume a
uma investigação do estado das narrativas homéricas
desde sua composição até o Período Helenístico, in-
vestigação rica e complexa, ainda que incompleta. Seu
vigor, como veremos, não reside exatamente nem na
descoberta de novas informações nem na proposta de
novas teorias, mas sim no modo como encara o texto
como um organismo em constante mutação, e no re-
levo que confere ao posicionamento crítico diante des-
te fato. A cautela e a ponderação; o avanço metódico
da argumentação, em diálogo com seus antecessores e
contemporâneos; o raciocínio sinuoso em linguagem
clara – todas essas qualidades serviram para conferir à
obra de Wolf uma posição inaugural nos estudos filo-
lógicos, mesmo não sendo inovador o seu conteúdo.60
Portanto, dessa perspectiva, não cabe (a meu ver)
a discussão sobre a paternidade da “Questão Homé-
rica” (levantada, em geral, por franceses e italianos):61
basta que se leia Wolf para se ter a exata noção da dis-
tância que separa, em termos de discussão crítica espe-
cializada e dinâmica histórica, seu livro dos de Wood,
Vico ou do abade; ou que se veja o modo como foi
capaz de fecundar as análises posteriores. Seu rigor fi-
lológico casava-se, paradoxalmente, com uma abertu-
ra de posicionamento, e a união desses dois elementos
funcionou como verdadeiro estopim.62 Como afirma
Frank Turner,

muito do conteúdo do ensaio não era es-


pecialmente original. As próprias notas de
rodapé de Wolf deixam isso claro. Ele não

46
explorou completamente nem respondeu
a muitas das questões que tinha levantado.
Mas, ao deixar sua contribuição de uma for-
ma um pouco truncada, permitiu a outros
que levassem adiante e redefinissem as ques-
tões que primeiro levantara.63

A tese de Wolf pode ser resumida de modo simples,


embora ele mesmo nunca faça tal apresentação sumária
do que quer defender: os poemas homéricos surgiram
como cantos menores, numa época em que não havia
escrita e a possibilidade de se criar obras muito exten-
sas (por volta de 950 a.C.), e foram assim transmitidos
por rapsodos ao longo de 400 anos, durante os quais
foram sofrendo expansões e alterações; no século VI,
graças à atuação de Pisístrato, eles foram compilados
e postos por escrito, ganhando assim unidade (espe-
cialmente a Odisseia), ainda que tenham continuado
a sofrer mudanças depois dessa data. Homero teria
sido o compositor da maior parte dos cantos originais.
O texto original, ou o texto de Homero, não pode
ser recuperado, apesar das esperanças suscitadas pelo
Venetus A. No entanto, com base nas novas informa-
ções, pode-se começar a investigar a história da evolu-
ção dos poemas, para, a partir disso, se formular um
método de recensão que os torne menos corrompidos.
Essa tese não é exposta de modo simplório, nem
apresentada logo de saída. Wolf começa o livro fa-
lando sobre os deveres que se impõem ao editor na
realização de uma “verdadeira recensão”, quando deve
investigar escrupulosamente a “natureza das fontes”,

47
fazendo-se uma colação (cotejamento) dos manuscri-
tos. No caso de Homero, continua ele, a “forma origi-
nal” se perdeu, cabendo examinar então até que ponto
as evidências à disposição poderiam permitir “polir
essas relíquias eternas e únicas do gênio grego”. Essa
recensão mais exata e precisa, a seu ver, não tinha sido
ainda realizada, e só com ela o poeta poderia ser pu-
blicado “numa forma perfeitamente pura e correta”.64
Villoison acabara de prestar “um magnífico serviço”
com a publicação, pela primeira vez, do manuscrito
de Veneza: seus escólios apresentavam um caráter de-
sigual, mas ainda assim constituíam um avanço:

Qualquer um é capaz de ver que, uma vez


aberto esse tesouro, ele trará, para a inter-
pretação correta de Homero, tanto crítica
quanto histórica, uma contribuição supe-
rior àquela que se tem a respeito dos outros
poetas sobre os quais os mesmo alexandrinos
trabalharam.65

Para Wolf, tratava-se, portanto, como diz na se-


quência, de “se obter um conhecimento mais profun-
do sobre as origens a partir das quais se desenvolveram
a emenda de manuscritos e a arte da crítica”. Tendo já
publicado, uma década atrás, edições escolares da Teo-
gonia, da Odisseia e da Ilíada (entre os anos de 1783
e 1785) – e antes uma edição do Banquete de Platão
(em 1782) –, ele se via agora forçado, diante das no-
vas descobertas, “a repetir boa parte da viagem que já
fizera”, uma vez que nenhum escritor ou poeta antigo

48
“possibilita um trabalho crítico no nível em que o faz
nosso amigo Homero”.66
Essas considerações preliminares, que fazem res-
saltar o enfoque de crítica histórica do texto,67 encer-
ram-se com a apresentação do seu plano de trabalho,
no já citado Capítulo 7, quando divide sua abordagem
em dois momentos: I. “história da crítica interna dos
poemas”; e II. “princípios sobre os quais se baseia a
emenda de Homero”. Como já se disse, essa segunda
parte, que seria como que a cúpula no seu edifício de
erudição, não foi redigida. Quanto à primeira, ela se
subdivide em seis etapas, do seguinte modo:68

1.  “das origens, isto é, da época da poesia refinada


dos jônios (cerca de 950 a.C.) até Pisístrato, o
tirano de Atenas, a quem os antigos atribuem
o arranjo dos dois poemas que até hoje vigora”
(capítulos 12-35);
2.  “de Pisístrato a Zenódoto, que foi o primeiro
dos gramáticos a abrir uma das mais famosas
trilhas da crítica homérica” (capítulos 36-43);
3.  “de Zenódoto a Ápion, que – de acordo com
Sêneca – era celebrado em toda a Grécia por
causa de sua arte de interpretar o poeta” (capí-
tulos 44-51);
4.  “de Ápion a Longino e seu aluno Porfírio, am-
bos tendo contribuído em certos aspectos para
o texto e a interpretação de Homero”;
5. “de Porfírio ao homem responsável pela pri-
meira edição, Demetrius Chalcondyles de Ate-
nas”; e

49
6. “estes três últimos séculos, durante os quais
Homero têm ocupado de modos diversos a
inteligência dos estudiosos e os ateliês dos im-
pressores”.

Fica clara a enorme ambição do projeto, verda-


deira tarefa hercúlea, que Wolf só poderia mesmo ter
deixado pela metade, sem que chegasse a concluir
a redação relativa à terceira etapa (“de Zenódoto a
Ápion”).69 Fica evidente também que, até esse ponto,
não se tocou num problema central, que confere ao
trabalho de edição crítica de Homero uma particu-
laridade ímpar, e impede a recuperação de sua forma
original: seu caráter oral.
Wolf aborda a questão logo no começo da pri-
meira parte (Capítulos 8 a 11), ao tratar de quatro
exemplos de “versos interpolados” na Ilíada e da pos-
sível “corrupção” dos poemas. Isso o leva à seguinte
formulação, uma das mais famosas do livro, que vale
citar na íntegra:

Mas e se a suspeita dos estudiosos for plau-


sível: a de que esses poemas [os homéricos]
e outros desse tempo não foram postos por
escrito, mas compostos a princípio de me-
mória pelos poetas e dados a público como
cantos, com a recitação dos rapsodos – cuja
arte peculiar consistia em aprendê-los – tor-
nando-os então mais amplamente acessíveis?
E se, por causa disso, muitas alterações fo-
ram necessariamente realizadas, acidental ou

50
intencionalmente, antes que fossem fixados
na forma escrita? E se, por essa razão, assim
que começaram a ser postos por escrito, fo-
ram apresentando muitas diferenças, e logo
adquiriram outras em consequência das con-
jecturas apressadas daqueles que competiam
em esforços para poli-los e corrigi-los, segun-
do as melhores leis da arte poética e segundo
seus próprios usos? E se, finalmente, for pos-
sível mostrar com argumentos e raciocínios
plausíveis que a sequência inteira dos dois
poemas, com sua continuidade, deve-se não
tanto ao gênio daquele a quem normalmente
é atribuída, e sim ao zelo de uma época mais
refinada e aos esforços coletivos de muitos, e
que portanto esses cantos a partir dos quais
a Ilíada e a Odisseia foram formadas não têm
todos eles um mesmo autor? Se for preciso,
então, aceitar uma visão diferente da ordiná-
ria a respeito disso tudo – o que significará
devolver a esses poemas seu lustro original e
genuína beleza?70

A maioria dessas questões serão atacadas pelo


estudioso ao abordar a primeira das suas seis etapas
históricas (“das origens até Pisístrato”), com a qual se
ocupará ao longo de 24 capítulos,71 o que corresponde
praticamente a metade do livro. Em seu tratamento
sobre as origens da escrita entre os gregos, o nome do
inglês Robert Wood aparece logo de saída, como o
de alguém que levantou a questão com uma “ousadia

51
brilhante” e ajudou a abrir caminho para que “dúvi-
das fossem suscitadas sobre se Homero, o maior dos
escritores, de fato empregou a arte da escrita”. Para
Wolf, no entanto, Wood pecou pela “falta de sutileza”
em seus argumentos históricos (“fracos e descabidos”),
que por isso não se tornam convincentes. Era preciso
“examinar a natureza dos monumentos antigos mais
profundamente e julgar cada acontecimento segundo
os costumes mentais e morais de cada época e lugar,
seguindo-se a mais rigorosa lei da história”, para que
dessa maneira se evitasse o método ainda vigente da-
queles que “leem Homero e Calímaco e Virgílio e
Nono e Milton com o mesmo espírito, e não se empe-
nham em suas leituras em ponderar sobre o que cada
época admite”.72
Na continuação, Wolf passa a investigar, com base
em Heródoto, a possibilidade de a escrita ter surgido
em tempo remoto, mas ainda assim aponta para a difi-
culdade de sua ampla disseminação e pleno domínio;
os suportes, até a introdução do papiro no século VI
a.C., eram de difícil uso, acolhendo apenas inscrições
públicas, e dificilmente haveria interesse em reduzir os
poemas a “caracteres mudos”. Segundo o estudioso,
foi apenas com a criação da prosa, “no período de Ta-
les, Sólon, Pisístrato”, quando a linguagem se libertou
do metro e do ritmo (auxílios da memória), que a téc-
nica da escrita alfabética se desenvolveu.73
Voltando-se então para o interior da poesia ho-
mérica, Wolf examina a famosa passagem do Canto
6 da Ilíada (v. 168-9) – em que supostamente have-
ria menção ao envio de uma “carta” – e afirma que

52
nem Eustácio (século XII d.C.) nem nenhum outro
comentador mais antigo via aí, ou em qualquer outro
passo da Ilíada e da Odisseia, uma menção a um regis-
tro escrito.74 Não encontramos, porém (continua ele),
nenhum pronunciamento sobre se Homero, ao con-
trário dos seus heróis, dominava essa arte. Para Wolf,
a passagem fundamental para esclarecer o ponto é
ainda a de Flávio Josefo (Contra Ápion, 1.2), também
mencionada, como vimos, pelo abade, por Vico, por
Wood e por Villoison. O filólogo alemão, no entanto,
é o único que a cita na íntegra. Por causa de sua im-
portância, apresento uma tradução para o português
feita diretamente do grego:

(...) tardiamente e a custo [os helenos] co-


nheceram a natureza da escrita (phúsin
grammáton). Alguns, querendo que esse uso,
da parte deles, seja antiquíssimo, dizem de
modo reverente que o aprenderam com os
fenícios e Cadmo. Mas não seria possível
apresentar, daquele tempo, nenhum regis-
tro escrito (anagraphén) preservado, seja nos
templos, seja nos monumentos públicos.
Porque mesmo sobre aqueles que, posterior-
mente, marcharam por tantos anos contra
Troia, há muita dificuldade e investigação
sobre se usavam a escrita (grámmasin). E
prevalece sim a verdade de que eles igno-
ravam o presente uso das letras (tôn gram-
máton). De modo geral, não se encontra o
reconhecimento, entre os helenos, de uma

53
escrita (grámma) mais antiga que a poesia de
Homero – e este também é, evidentemente,
posterior aos eventos de Troia. Dizem que
nem ele deixou por escrito (en grámmasin)
sua poesia, mas que, sendo ela preservada de
memória (diamnemoneuoménen), foi poste-
riormente reunida (suntethênai) a partir de
cantos, e que por isso ficaram nela muitas
dissonâncias (diaphonías).75

Na visão de Wolf, “esse é o único testemunho


claro, dotado de autoridade, sobre a questão”, e seu
peso é ainda maior “porque foi escrito contra o mais
preparado comentador homérico [Ápion], e nenhum
defensor antigo, de opinião diferente ou contrária, so-
breviveu”.76
Seu minucioso exame continua nos capítulos
seguintes, nos quais afirma, entre outras coisas, que
Homero não pode ser confundido com um Virgílio
(que omite a escrita na sua Eneida apenas para imitar
o modelo);77 que devemos deixar de lado estantes e
bibliotecas para nos transportarmos para uma épo-
ca em que a recitação era a regra, e aedos e rapsodos
(seus sucessores) eram muito admirados, formando
estes últimos uma classe especializada, não dedicada
à épica exclusivamente;78 que as falhas de memória,
junto com a vontade de embelezar, produziam as “dis-
sonâncias” de que já falava Flávio Josefo; e que o pró-
prio estilo homérico contribuía para o surgimento de
modificações, uma vez que “as sentenças e as palavras
estão interligadas com tamanha simplicidade de lin-

54
guagem e pensamento, e fluem em frases tão curtas,
que se tornava extremamente fácil alterar, subtrair e
adicionar, em qualquer ponto”.79
A conclusão a que Wolf chega, depois desse levan-
tamento a respeito do papel da oralidade nas origens
dos poemas homéricos, é que eles não poderiam ter a
extensão que têm sem o auxílio da escrita. Esse passo
é decisivo para sua argumentação, e ele mesmo tem
plena consciência disso. Veja-se o que afirma, no Ca-
pítulo 26:

Digamos de uma vez, com toda clareza, qual


é o caso. Parece decorrer necessariamente do
que foi dito anteriormente que obras tão ex-
tensas, e elaboradas numa sequência assim
sem quebras, não poderiam ter sido concebi-
das mentalmente, nem trabalhadas por um
poeta, sem um algum tipo de auxílio artifi-
cial para a memória.80

Wolf fica assim com um paradoxo – Homero não


conhecia a escrita e, no entanto, o fato de seus dois
poemas serem extremamente longos torna improvável
a ausência da escrita –, paradoxo que ele resolve ima-
ginando (apoiado, aqui e adiante, em analogias com
outras nações)81 que “os mais antigos poemas épicos
eram bastante breves”, o que facilitava não só sua
preservação, mas também sua divulgação e apresen-
tação em festivais.82 Muitos episódios, por exemplo,
da Odisseia, “parecem ter sido compostos por Homero
e cantados por um longo período sempre da mesma

55
maneira – separadamente e sem se dar atenção à forma
do todo”. Seria a escrita a responsável pela formação,
posteriormente, do conjunto: “Mais tarde, numa épo-
ca mais refinada e rica nas artes, notou-se, forçando-se
esses episódios a formarem um único e grandioso cor-
po contínuo, que através de algumas excisões, adições
e modificações eles poderiam se tornar (como se tor-
naram) um monumento novo, mais perfeito e esplên-
dido”.83 Com isso, simplesmente Wolf propõe a dis-
sociação entre Homero e seus épicos na forma atual.
Uma seção dedicada à análise da unidade dos poe-
mas e às suas “ligações imperfeitas” (para Wolf, mais
visíveis na Ilíada) vai ser o centro das atenções entre
os Capítulos 27 a 31, quando o abade de Aubignac
receberá rápida menção,84 e o filólogo alemão voltará
a dizer, com clareza:

Não tenho medo de ser acusado de tal teme-


ridade [de acreditar que as coisas nascem e se
desenvolvem por acidente e acaso, e não por
vontade de uma mente divina], uma vez que
fui levado pelos vestígios de uma moldura
artística, e por outras considerações demora-
das, a pensar que Homero não foi o criador
desses – por assim dizer – dois corpos, mas
sim que essa estrutura artística foi introduzi-
da por épocas posteriores.85

Que época seria essa em que os poemas ganharam


envergadura, graças ao auxílio da escrita? Mais uma
vez, Wolf é peremptório:

56
Não há necessidade de se apoiar em con-
jecturas. A História fala. Porque as vozes da
antiguidade e (...) o consenso da tradição
atestam que Pisístrato foi o primeiro a pôr os
poemas de Homero por escrito e na ordem em
que são lidos hoje.86

Nesse ponto, entre os Capítulos 32 e 34, Wolf


cita, em nota e no corpo do texto, “essas vozes da anti-
guidade” que reportariam uma intervenção tão decisi-
va para a história dos poemas. Eram fontes já bastante
conhecidas em sua época, mas abordadas nos Prolegô-
menos de modo apressado. Veja-se o caso da utilização,
nesse ponto, novamente do texto de Flávio Josefo, e
mais precisamente do trecho em que diz que a poe-
sia de Homero “foi posteriormente reunida a partir
de cantos”; para o filólogo alemão, a reunião foi feita
“evidentemente por Pisístrato”. Essa fonte – que ele,
sem nenhum pudor, faz falar onde silencia – vem se
juntar a outras, sem uma discussão ou contextualiza-
ção mínima, o que contradiz o método histórico tão
propalado pelo autor.
Podemos dizer que, de modo geral, esses tes-
temunhos a princípio falam simplesmente de um
movimento de organização ou ordenação da poesia
homérica ocorrido na Atenas do século VI a.C. Tra-
dicionalmente, eles são divididos em dois grupos: 1.
aqueles que dão conta de uma suposta edição de Ho-
mero a cargo do tirano Pisístrato, a hoje chamada
“Recensão (ou Redação) de Pisístrato”; e 2. aquelas
que falam de uma suposta ordem para a recitação em

57
sequência e por revezamento de Homero no festival
das Panateneias, a hoje chamada “Regra Panatenai-
ca”.
No primeiro grupo, temos os seguintes autores
e trechos, que apresento a seguir em tradução para o
português, em ordem cronológica:87

Cícero (I a.C.), Sobre o orador, 3.137: Quem


a tradição conta ter sido naqueles tempos
mais douto, ou com uma eloquência nas le-
tras mais instruída, que Pisístrato, ele que é
considerado o primeiro a ter disposto (pri-
mus disposuisse) os livros de Homero – an-
teriormente confusos (Homeri libros confusos
antea) – assim como os temos agora?

Pausânias (II d.C.), Descrição da Hélade,


7.26.13: (...) e dizem que Pisístrato, no mo-
mento em que coletava (éthroize) os versos
(épe) de Homero – despedaçados (diespas-
ména) e preservados, cada um num lugar, de
memória (mnemoneuómena) –, que então o
próprio Pisístrato ou um de seus companhei-
ros alterou por desconhecimento o nome [da
cidade de Donussa, que em (Il. 2, 573 apare-
ce como Donoessa].

Eliano (III d.C.), Vária história, 13.14: (...)


e bem depois Licurgo, o lacedemônio, foi
o primeiro a trazer (prôtos ekómise) reunida
(athróan), para a Hélade, a poesia (poíesin)

58
de Homero. Ele trouxe (égagen) da Jônia
esse material transportável (tò agógimon),
quando saiu de viagem. E posteriormente
Pisístrato, unindo-as (sunagagón), deu a pú-
blico (apéphene) a Ilíada e a Odisseia.

Essas fontes – mais de 500 anos posteriores aos


eventos de que falam – são tomadas como fato por
Wolf, ainda que nenhuma delas faça referência explí-
cita ao uso da escrita: o destaque fica para a reunião
do que estava disperso. É com base nelas que ele dá
como certa a fixação por escrito dos poemas homéricos
por Pisístrato,88 que – em sua visão – veio em segui-
da a uma organização da recitação por Sólon. Nesse
caso, três testemunhos são citados por Wolf, sem que
contudo recebam a mesma importância do grupo an-
terior. Na ordem temporal, são eles:89

Platão (IV a.C.), Hiparco, 228b: (...) e ele


[=Hiparco] foi o primeiro a trazer (prôtos
ekómisen) os versos (épe) de Homero para
esta terra [=Atenas] e a obrigar os rapsodos
a percorrê-los, nas Panateneias, por reveza-
mento (ex hupolépseos) e em sequência (ephe-
xês), conforme fazem ainda hoje.

Licurgo (o orador ateniense, IV a.C.), Con-


tra Leócrates, 102: (....) os vossos antepassa-
dos o acolheram como um poeta tão impor-
tante, que estabeleceram uma lei segundo
a qual, a cada quatro anos nas Panateneias,

59
dentre os poetas apenas os seus versos (épe)
deveriam ser recitados (rhapsoideîsthai).

Diógenes Laércio (III d.C.), Vidas e doutri-


nas dos filósofos ilustres, 1.57: Ele [=Sólon]
redigiu uma lei segundo a qual os poemas
de Homero (tà Homérou) deveriam ser reci-
tados (rhapsoideîsthai) por revezamento (ex
hupobolês): onde o primeiro parou, daí o se-
guinte deveria começar.

Desse segundo grupo, ele descarta as informações


do Hiparco, porque o objetivo do diálogo (apócrifo,
em sua opinião) seria apenas o de louvar o filho de
Pisístrato, e se fia na atribuição a Sólon, dando talvez
a entender que os “antepassados” do Contra Leócrates
seriam uma outra forma de se referir ao legislador ate-
niense. 90
É importante deixar claro que, para Wolf, Pisís-
trato simplesmente compilou os cantos (antes “con-
fusos”, “despedaçados”) que hoje formam as duas
grandes epopeias (que portanto não existiam como
unidades), não tendo atuado como um editor de fato,
ou seja, não tendo tido uma posição crítica em relação
ao texto (como a que vieram a ter os gramáticos ale-
xandrinos). Sua tarefa se resumiu a uma ordenação,
sem intenção de eliminar inconsistência e lacunas, e os
poemas continuaram em transformação, até a época
dos Ptolomeus.91
É nesse ponto (em Pisístrato) que termina a pri-
meira fase de sua história crítica do texto. Antes de

60
passar à etapa seguinte, porém, Wolf fala sobre as im-
plicações de sua proposta radical, segundo qual a Ilía-
da e a Odisseia, tais como as lemos hoje, não seriam
mais obra de Homero, mas resultado sobretudo das
intervenções posteriores – estas sim responsáveis pela
“concepção artística da estrutura” dos poemas, “que
não se pode negar”.92 Diz ele:

(...) eu ousei tirar de Homero parte do re-


nome por aquela habilidade artística que o
faz tão admirado por eles [seus estudiosos].
Não há dúvida de que apenas muito poucos
ficarão convencidos, mesmo se pressionados
pelo peso de todos os argumentos. Porque
nesses assuntos é preciso ter certa sensibili-
dade, a qual os argumentos por si não pro-
porcionam. Mas, quanto a mim, considero
impossível, ao contemplar o progresso dos
próprios gregos ou de outras raças, aceitar
aquela crença a que nos acostumamos: de
que essas duas obras são de um único gênio
e irromperam repentinamente da escuridão,
em todo o seu brilho, tal como hoje se apre-
sentam, já com o esplendor de suas partes e
as inúmeras virtudes do conjunto bem co-
nectado.93

Os dois períodos seguintes, de Pisístrato a Zenó-


doto, e de Zenódoto a Ápion, são abordados de modo
mais breve (mas não menos cerrado). O primeiro,
para Wolf, corresponde às origens da interpretação

61
entre os antigos, em que se destacavam os sofistas com
seus enfoques variados (Pródico, Protágoras, Hípias) e
nomes como os de Antímaco de Cólofon, responsável
por uma recensão de Homero na época de Sócrates,
Aristóteles e Filetas de Cós. Por causa da conservação
de memória dos cantos e dos vários deslizes na prepa-
ração dos primeiros textos, os “monumentos homéri-
cos (...) num certo sentido obrigaram a crítica filoló-
gica a existir”94 já nos séculos V e IV a.C., produzindo
as edições “do indivíduo” e “da cidade”, com base nas
quais os alexandrinos fizeram seu trabalho. Zenódo-
to de Éfeso, o primeiro deles, do início do século III
a.C., ao trabalhar com mais manuscritos, introduziu
um texto “mais consistente na forma”.95 Sua atividade
é minuciosamente examinada no longo Capítulo 43,
dos seus equívocos na supressão e suspeição de versos
(“ele trata a Ilíada como se fosse sua própria compo-
sição”) ao obstáculo representado pelos textos imper-
feitos, com erros introduzidos pelos copistas; de qual-
quer maneira, para Wolf ele é fundamental para que se
possa imaginar “a forma comum mais antiga do texto
homérico”, ainda que notemos “quão frágeis eram as
origens da arte de corrigir os vestígios do passado e da
arte gramatical em si”.96
O terceiro (e último) período abordado no livro
inicia-se com a discussão sobre Aristófanes de Bizân-
cio, sucessor de Zenódoto. Apesar de sua atuação não
apenas mais erudita (com investigações gramaticais e
a criação dos acentos e sinais de pontuação), mas tam-
bém mais ampla (tendo se dedicado ainda a Hesíodo,
Píndaro, Platão, Sófocles, Eurípides e Aristófanes, o

62
comediógrafo), seu método no trato com Homero –
diz Wolf – é tão obscuro quanto o de Zenódoto. Ao
contrário deste, no entanto, escreveu comentários à
edição dos poemas, e em suas lições “é fácil perceber
maior conhecimento e moderação”.97 Uma mudança
significativa só ocorreria com o trabalho de Aristarco
de Samotrácia (pupilo de Aristófanes), cujo “nome se
tornou de certo modo sinônimo da arte de explicar e
corrigir textos”, tendo sido endeusado por seus segui-
dores, “que declaravam preferir estar errados com ele a
estarem certos com os demais”.98
Wolf nota que, embora seus comentários a Ho-
mero, assim como os de Zenódoto, tenham se perdi-
do, a publicação do Venetus A vinha alterar conside-
ravelmente o nível de informação sobre o “príncipe
dos críticos” – o que de todo modo não nos ajuda,
em sua opinião, a determinar qual a novidade deci-
siva que trouxe consigo. Para o filólogo, seu texto foi
fundamental, e logo se transformou numa espécie de
“vulgata”, que por sua vez recebeu novas alterações, até
se produzir por volta dos séculos III e IV d.C. a vul-
gata atual. Além da divisão em 24 cantos, a introdu-
ção do travessão lateral (obelós) para indicar os versos
suspeitos foi feita, aparentemente, por ele, mas não
sabemos com que critérios e justificativas empregava
o sinal. O travessão também era utilizado por ele jun-
to com o asterisco, para indicar que se tratava de um
verso impropriamente repetido. Wolf considera que
uma das lições de Aristarco dessa natureza (os versos
de Il. 1, 366ss., que repetem anteriores) é equivocada,
“assim como muitas outras relacionadas a esse sinal”,

63
porque “a similaridade entre as passagens” podia dar
azo a uma “repetição inepta” – tópico que ele promete
discutir na (infelizmente, nunca publicada) segunda
parte do livro, “na qual terei que defender minhas
próprias omissões [de determinados versos]”.99 Final-
mente, uma rápida pincelada sobre o trabalho de Cra-
tes de Malo, contemporâneo e adversário de Aristarco,
com sua leitura filosofante e alegorizante de Homero,
encerra o livro.
De sua exposição desses dois períodos, ficam para
o leitor o enfoque sempre cético e a desconfiança em
relação à atividade desses primeiros críticos, tomados
não como possíveis estabelecedores de uma versão ori-
ginal ou mais próxima de Homero, mas antes como
elos de outra natureza dentro da mesma cadeia histó-
rica e do contínuo processo de transformação do tex-
to. Para Wolf, o juízo dos alexandrinos era em grande
medida “mais estético do que crítico”,100 embora pre-
valeça opinião contrária, “um erro comum em que to-
dos incorrem – o de pensar que os críticos antigos são
semelhantes aos atuais”.101 Daí ele afirmar que, para
um Aristarco, a tarefa de emendar o texto de Homero
consistia em “levar em consideração não o que cantou,
mas o que deveria ter cantado”.102
Esse ceticismo, que abre espaço para a avaliação
evolutiva em detrimento da busca pelo texto primei-
ro, é talvez o motor principal dos seus Prolegômenos;
é ele que dá sustentação à abordagem de Homero em
termos históricos, como fica evidente num das últimas
páginas, quando diz, mais uma vez, que “a História
fala”:

64
O Homero que temos nas mãos hoje não é
o que floresceu nas bocas dos gregos de sua
época, mas um Homero de várias maneiras
alterado, interpolado, corrigido e emendado,
desde os tempos de Sólon até os alexandri-
nos. Homens inteligentes e instruídos há
muito chegaram a essa conclusão servindo-se
de pequenas e variadas evidências, espalha-
das aqui e acolá. Mas agora as vozes de todas
as épocas, juntas, dão seu testemunho, e a
História fala.103

Esse olhar representa, no fim das contas, o que


há de mais interessante no livro: com ele, Wolf busca,
ao mesmo tempo, dar uma dimensão contextual aos
poemas e vê-los em seu processo de desenvolvimento,
fazendo-os sair de uma abordagem a-histórica, ou de
uma historicidade estática.
Não se pode negar, porém, que há por trás de sua
leitura um primitivismo latente, a idealização de uma
fase rude da humanidade, espontânea e livre das regras
da arte. David Monro, em sua crítica a Wolf, já assi-
nalava o parentesco com a obra de Robert Wood,104
ainda que ocorra, de uma para a outra, a inversão em
relação ao momento propício para a produção da grande
obra. Se para Wood o gênio Homero produzira oral-
mente, em sua totalidade, as duas grandes epopeias
gregas, e alcançara tão grandioso resultado justamente
porque trabalhara antes do estabelecimento de uma
arte mais refinada (ainda que sua concepção no fun-
do seja a de um escritor Homero projetado para os

65
tempos selvagens), para Wolf a Ilíada e a Odisseia são
frutos dessa época letrada e mais refinada, uma deriva-
ção dos cantos orais originais, o que implica reduzir a
importância de Homero como grande autor105 e dar à
escrita papel decisivo.
Como bem viu Monro, para Wolf, dentro desse
enfoque primitivista, “a estrutura artística dos poemas
homéricos é de fato a circunstância que depõe contra
a antiguidade de sua forma presente”.106 Em outras
palavras, tem-se a ideia pré-concebida de que o iletra-
mento puro não possibilitaria, nos dizeres do próprio
filólogo alemão, “o planejamento de uma história con-
tínua, que seja longa e variada em seus episódios”.107
O Homero oral, de que há vários testemunhos, não
se coaduna com a arte de suas epopeias, que é visível.
Por isso Homero deve se tornar o criador de cantos
menores, e a invenção do alfabeto, ser central no pro-
cesso. Para Wolf não são empecilhos nem o fato de
as “partes” (cantos) de Homero, tomadas de modo
independente, revelarem ainda enorme qualidade e
acabamento,108 nem o fato de uma fonte como a re-
lativa à “Regra Panatenaica” sugerir – ao falar de uma
apresentação “em sequência” – que, antes mesmo de
Pisístrato, já havia uma ordem dos poemas.109
Sobre a atuação do tirano (que teria fixado por
escrito os poemas), faltou, como já se disse, um olhar
mais crítico em relação aos relatos, que são tardios e
inconsistentes, e falam mais da própria época em que
foram produzidos do que daquela a que se referem.
Como diz Myres:

66
Wolf se apoiou nos tardios e lacunares depoi-
mentos sobre a atividade de Pisístrato, que
ele descreve, de forma bem imprecisa, como
algo endossado unanimemente pela antigui-
dade. O fato é que, mesmo que ela estivesse
mais bem atestada, ainda assim pouco diria
em relação ao estado anterior dos poemas.110

John Scott, quase 40 anos antes, sempre com seu


tom desabrido, fora ainda mais contundente:

Não se pode encontrar em Heródoto, Pla-


tão, Aristóteles, nem em qualquer escritor
ateniense antigo, uma referência que conecte
o tirano [Pisístrato] a Homero; e não há uma
alusão sequer a isso em toda a enorme quan-
tidade de informação atribuída aos estudio-
sos de Alexandria. A afirmação de Wolf de
que toda a antiguidade estava unida numa só
voz ao conferir a Pisístrato, de modo consis-
tente, a honra de coletar, arranjar e pôr por
escrito a poesia de Homero parece perigosa-
mente próxima de um engano intencional.111

No fim das contas, é uma visão “negativa” da ora-


lidade que perpassa o texto de Wolf112 – de algo limita-
do do ponto de vista da construção poética, e que pro-
duz a corrupção de um texto. Como no caso de seus
antecessores, salvo uma ou outra passagem, não há em
seu livro a percepção de como essa oralidade poderia
operar na criação dos versos. Se para Wolf a história

67
do texto de Homero responde por sua multiformida-
de (para empregarmos um termo bem mais recente),
essa multiformidade não tem origem no modo de ser
da oralidade homérica, mas nas vicissitudes da trans-
missão de poemas que, a princípio, eram formas fixas.
A multiformidade, em outras palavras, é sinal de que
houve uma deformação de um Homero primeiro, alvo
de inúmeras interpolações, correções e subtrações, e
hoje irrecuperável.
Por outro lado, deve-se louvar sua cautela em re-
lação aos critérios supostamente “críticos” dos alexan-
drinos, e sua evasividade em apresentar o que seriam
esses cantos menores de que se originaram a Ilíada e
a Odisseia, ou o modo como foram rejuntados. Como
diz Adam Parry,

A percepção que Wolf tinha das limitações


do seu próprio conhecimento e sua sensi-
bilidade para com a poesia homérica, com-
binadas com poderes superiores de lógica,
atuaram junto no sentido de impedi-lo de
cometer o erro de seus sucessores.113

Por aí vemos como a obra inspiradora da críti-


ca analista foi, ao contrário desta, pouco propensa ao
cientificismo subjetivo e dogmático do século XIX.
Recorrendo à analogia feita por Schelling entre o
trabalho de Wolf e a geologia,114 podemos dizer que
a análise dos fragmentos e da composição do “solo”
homérico Wolf deixou, inteligentemente, para os que
vieram depois dele. É essa abordagem, como sabemos,

68
que vai dominar amplamente os estudos de Home-
ro – primeiro no âmbito de língua alemã, e depois, a
partir de meados do Dezenove, estendendo-se às lín-
guas inglesa e francesa. Hegel podia se queixar, em sua
Estética (386), de que não era possível negar a Homero
seu “caráter de obra de arte”, mas a discussão, a partir
de Wolf, ganhara um grau de especialização inédito,
tornando o poeta alçada da nova ciência filológica,
liberta agora da teologia.115 Como diz Frank Turner
no tratamento dado à “Questão Homérica”, de uma
forma grandiloquente, mas verdadeira:

(...) [Wolf ] demonstrou o tipo de trabalho


e autoridade que poderiam nascer da nova
cultura acadêmica alemã. Com efeito, os
reformadores das universidades alemãs,
trabalhando sob a orientação de Humbol-
dt, utilizaram o livro de Wolf para mostrar
a relevância e o poder da ciência filológica,
ligando assim o tradicional estudo dos clás-
sicos ao novo e poderoso método. Poetas
contemporâneos podiam debater as visões
de Wolf e chegar a diferentes opiniões em
momentos diferentes, mas a opinião dos
poetas e dos homens de letras não era mais
decisiva. Raiara o dia do homerista profis-
sional.116

Na mesma linha, vale citar as palavras de Howard


Clarke, que resumem bem o peso da contribuição de
Wolf:

69
Ao enfatizar a lógica e a consistência em
lugar da moralidade e do significado, Wolf
proporcionou aos leitores de Homero uma
perspectiva dos poemas inteiramente nova, e
fundamentalmente genética. Ao lembrá-los
de que o que estavam lendo não era um es-
crito atemporal, mas um texto precariamen-
te reunido no tempo e transmitido através da
história, um texto que requeria um trabalho
constante de edição, ele profissionalizou o
estudo da poesia homérica, tirando-a dos di-
letantes e entregando-a aos acadêmicos (...).
Ao tentar traçar o gradual desenvolvimen-
to dos poemas tendo a história da Grécia
como pano de fundo, ele identificou todos
os problemas com que seus sucessores, ana-
listas ou unitaristas, iriam se confrontar pe-
los próximos 150 anos: o lugar de Homero
nessa evolução; as diferenças de estilo, tom
e conteúdo que indicavam a interferência
de outras mãos; as “ligações” textuais que
revelam adições e revisões; as contribuições
contrastantes de poetas e rapsodos, revisores
e editores; o intrigante papel desempenhado
pela escrita no que era predominantemente
uma arte oral; e a necessidade de recriar, em
bases filológicas, o processo de criação, de-
senvolvimento e transmissão dos poemas.117

70
4.

A DISSECAÇÃO DOS ANALISTAS

O s Capítulos 27 a 31 dos Prolegômenos a Homero


de Wolf são o que há de mais próximo do que
poderíamos classificar de “análise embrionária” (“aná-
lise” e “analista” devem ser sempre entendidos aqui
no seu sentido primeiro, relativo à “separação de um
todo em suas partes constitutivas”).118 Essa pequena
seção do livro se abre com a afirmação do autor de que
deixará para outros a tarefa de “examinar em detalhe”
aquelas “dificuldades apresentadas pela maravilhosa
beleza e forma escrita desses poemas épicos e também
pela organização de suas partes”.119 Mais à frente, o
filólogo falará do “número de junções obviamente mal
feitas”, com as quais se deparava em suas leituras cons-
tantes de Homero, e que não pertenciam ao “mesmo
molde do trabalho original, mas foram acrescentadas
a ele pelos esforços de um período posterior” – ainda
que ele mesmo reconheça que “os mais eruditos lei-
tores não sentiram, por muitos séculos, essas dificul-
dades”...120 Alguns versos do Canto 18 da Ilíada (v.
356-368) e outros do Canto 4 da Odisseia (v. 621-
624), além de considerações sobre a dupla morte de
um herói na planície de Troia, levam Wolf a afirmar
que “ambos os poemas contêm não apenas pequenas
partes (como mostrado anteriormente), mas seções
inteiras que não são de Homero, isto é, do homem
responsável pela porção maior e pela ordem dos cantos
mais antigos”.121 Mas o trecho mais interessante apa-
rece no final do Capítulo 31, quando discute, muito
rapidamente, a autenticidade das partes finais da Ilía-
da e da Odisseia, e propõe que se investigue, “com má-
xima atenção”, que “excepcionalidade existe nas frases
e palavras, e de que tipo ela é”; o que é “diferente e de
uma cor discrepante no pensamento e na expressão”;
e, finalmente, “que vestígios da imitação por um outro
poeta se infiltram na produção vinda de Homero, mas
de uma forma que ficam ausentes o nervo e o espírito
homéricos”.122
Essa análise, como vimos, provavelmente jamais
foi formulada em detalhes por Wolf, mesmo tendo
vivido por mais quase 30 anos (tinha 36 quando saiu
sua mais famosa obra). O segundo volume, que a daria
à luz, nunca foi publicado.123 Pode-se argumentar que
tal detalhamento não estaria de acordo com o movi-
mento geral – de abertura – próprio do livro, ou que
para Wolf interessava mais a abordagem histórica do
que a argumentação interna, a partir do texto. Mas
esta devia naturalmente se seguir ao trabalho feito, e
temos pelos menos um testemunho de que ela era bas-
tante aguardada; veja-se o que diz Johann Voss, cético

72
em relação à tese do colega, e à espera de uma com-
provação categórica:

(...) não sou tão fanático em meu credo a


ponto de fechar meus ouvidos para todos os
argumentos, mas esses argumentos, deixe-
-me dizer francamente, você agora os deve
a nós todos, argumentos tirados da estru-
tura interna dos poemas homéricos. Você
nos machucou, Sr. Wolf, em nossos afetos,
você nos afrontou, Sr. Wolf, nas nossas mais
delicadas sensibilidades. Mas ainda somos
apenas homens, prontos a ouvir, querendo
escutar e nos refrear. Enquanto isso, a situa-
ção não pode permanecer assim. Você tem a
obrigação, Sr. Wolf, em respeito a tão digno
assunto, de não reter as provas que certa-
mente possui – provas, preste atenção, pro-
vas conclusivas.124

Ainda que não a tenha praticado de fato, é incon-


testável que Wolf lançou em sua obra as sementes da
corrente analítica, ao propor a abordagem de Homero
como uma amarração de cantos transformados ao longo
do tempo. Sendo assim, estava deflagrada a corrida em
busca das marcas que atestassem essa evolução do tex-
to, das suas origens ao estado atual: eram as “dissonân-
cias” (diaphoníai) já apontadas, mas não explicadas,
por Flávio Josefo. A Ilíada e a Odisseia já não eram
mais as produções súbitas e inspiradas de um único
homem, mas organismos vivos – ou, melhor dizendo,

73
corpos antes vivos que eram agora postos, como cadá-
veres, sobre a mesa científica da dissecação para que,
cortados com bisturi e vistos em lente de aumento,
revelassem a história do seu desenvolvimento. Cada
estudioso se sentia livre para, a partir de sua leitura
muito particular dos poemas, neles encontrar, com
base em suas inconsistências (linguísticas, temporais,
narrativas, geográficas, morais etc.), o que era anterior
e o que era posterior, o quer era autêntico e o que
era acréscimo tardio – a famigerada “interpolação” –,
o que era de Homero e o que era de um imitador.
O vocabulário técnico, com as expressões que se con-
sagrariam entre os homeristas profissionais, já estava
todo em Wolf, e os que vieram depois dele sentiam o
enorme estímulo que uma grande descoberta produz.
No âmbito de língua alemã, três nomes – entre
outros – foram importantes na primeira metade do
século XIX: Gottfried Hermann, Karl Lachmann e
Gregor Nitzsch. Hermann (1772-1848), que lançou
as bases dos estudos métricos,125 foi um dos primei-
ros a ser influenciados por Wolf a “tentar o jogo do
desmembramento”.126 Em Orphica (1805), propunha
uma história do hexâmetro,127 e em 1806, ao publicar
sua edição dos Hinos Homéricos, mostrava interesse
em aplicar a crítica textual exposta nos Prolegômenos
aos dois grandes épicos gregos. Mas seus textos funda-
mentais, que juntos não chegavam a mais de cinquen-
ta páginas, só apareceriam muitos anos depois, ambos
escritos em latim: “Dissertação sobre as interpolações
de Homero” [De iterpolationibus Homeri dissertatio],
de 1832, e “Sobre as repetições em Homero” [De

74
iteratis apud Homerum], de 1840.128 A tese de Her-
mann consistia, basicamente, em propor a existência
de “núcleos” originais a partir dos quais teriam se de-
senvolvido a Ilíada e a Odisseia. Para ele, o primeiro
poema nada mais era do que uma “Cólera de Aqui-
les” desenvolvida, assim como o segundo tinha em
sua origem uma narrativa da “Volta de Odisseu”. Esse
desenvolvimento se deu, em ambos os casos, por meio
de interpolações – acréscimos sucessivos às histórias
primeiras –, e essas interpolações eram perceptíveis
sobretudo por causa das repetições, formuladas com
base num estoque tradicional em que os poetas iam
beber. Ao contrário de Wolf, Hermann imaginava que
Homero era o responsável por esse núcleo central (e
não por cantos dispersos), e que o planejamento do
conjunto das duas epopeias já estava embutido em sua
criação, não tendo sido resultado de uma interferên-
cia posterior. Com isso, ele confere maior capacidade
de construção artística a esse poeta primitivo, embora
não considere possível – mesmo com o exercício da
decomposição – recuperar o poema em seu “cerne”
inicial.129
Karl Lachmann (1793-1851) era 21 anos mais
moço que Hermann; além de classicista era germanis-
ta e se dedicara a estudar as vinte “baladas” que teriam
entrado na constituição da Canção dos Nibelungos,
poema sobre o qual se debruçou durante mais de duas
décadas (com três publicações entre 1816 e 1836) e
que supunha ter sido resultado de uma compilação no
começo do século XIII. A analogia com Homero – co-
nhecendo como conhecia a obra de Wolf – lhe parecia

75
pertinente. Seu livrinho Considerações sobre a Ilíada de
Homero [Betrachtungen über Homers Ilias] foi publica-
do em 1847, reunindo duas palestras proferidas em
Berlim em 1837 e 1841; nele defendia a ideia de que o
épico grego era formado por 18 canções, que sofreram
adições e transformações (pela ação de outros canto-
res e por causa do arranjo na época de Pisístrato) até
adquirirem sua forma final.130 Um exemplo: os versos
1-347 do Canto 1 da Ilíada corresponderiam a um
desses 18 cantos primitivos, com duas continuações
posteriores: versos 348-429/493-622 (mal adaptados
ao conjunto) e versos 430-492 (referentes à devolução
de Criseida).131 Dava-se assim uma formulação mais
precisa à teoria de Wolf. Em sua visão, no entanto,
não havia lugar para o poeta Homero: não é um ho-
mem específico que cria essas unidades primeiras (as
baladas), “mas a lenda, operando inconscientemente,
como na formação da língua”.132 Com Lachmann, a
evidência externa é posta de lado e a atenção se con-
centra toda nos problemas textuais.133 A busca pelos
cantos originais se dá novamente com base nas incon-
sistências e discrepâncias, que nos levam às formas
primeiras – essas sim livres de contradição, porque
pertencentes a uma época mais simples, em que não
há corrupção.134 Por trás de sua proposta, é possível
detectar, como apontou Martin Nilsson, “a ideia ro-
mântica de uma poesia popular e coletiva, que não
pode ser atribuída à interferência de um indivíduo em
particular, mas que cresce inconscientemente como
produto do espírito coletivo do povo”135 – o que faz
lembrar a formulação de Vico, um século antes.

76
Por fim, Gregor Nitzsch (1790-1861) foi aque-
le que, durante a mesma época, combateu com mais
veemência os pressupostos de Wolf, opondo-se assim
a Hermann e Lachmann. Em 1830, aos 40 anos de
idade, começou a publicar em latim, por partes, seus
“Meletemata” (“estudos”) sobre Homero, que conclui-
ria em 1837. Em 1852 ainda publicaria o seu A poe-
sia lendária dos gregos [Die Sagenpoesie der Griechen].
Três argumentos são fundamentais na sua visão: 1. as
formas finais tanto da Ilíada quanto da Odisseia in-
fluenciaram a composição dos poemas do chamado
“Ciclo Épico”, e portanto aqueles dois não podem ser
posteriores aos séculos VIII/VII a.C.; 2. o surgimen-
to da escrita data provavelmente da época de Home-
ro, e portanto esta não deve ser caracterizada como
primitiva; e 3. Homero não é o autor de cantos me-
nores orais, mas é quem se valeu desse material para
construir suas grandes narrativas. Portanto, contra-
riamente ao que postulava Wolf (e Lachmann), para
Nitzsch a construção dos épicos em sua forma atual
não é resultado da ação de Pisístrato em uma época
mais refinada: essa possibilidade é antecipada em dois
séculos, quando o próprio Homero já podia se valer
da escrita para construir, com base em cantos meno-
res, suas extensas epopeias.136 Com isso, Nitzsch é o
primeiro a conceder categoricamente – dentro de um
processo de formação – a Homero a responsabilidade
por um trabalho poético de grande envergadura, numa
proposição próxima daquela que seria defendida pela
maioria dos unitaristas no fim do século XIX e início
do XX.137

77
Na Inglaterra e na França, duas obras importantes
mostravam a influência da visada analítica. O historia-
dor inglês George Grote (1794-1871), nascido ainda
no século XVIII, um ano antes da publicação dos Pro-
legômenos de Wolf, publicou em 1846 os dois primei-
ros volumes de sua Uma história da Grécia [A history
of Greece], que concluiria dez anos depois, com 12 to-
mos!138 O Capítulo 21 do Volume 2 é inteiramente
dedicado, em suas mais de cem páginas, à investigação
sobre Homero, e serve de conclusão à parte inicial da
obra, que se debruça sobre a “Grécia lendária” (com
uma extensa discussão dos mitos), antes de passar para
a “Grécia histórica” (para o inglês, que seguia a visão
mais comum de seu tempo, Homero não trazia in-
formações históricas).139 Grote começa sua abordagem
repartindo a épica grega em duas “classes”, a homéri-
ca, narrativa e não didática, e a hesiódica, sapiencial e
mais próxima no tempo dos “gregos históricos”. Para
ele, a Ilíada e a Odisseia datam da segunda metade de
século IX e primeira do século VIII a.C., e Home-
ro, do qual nada se sabe, seria um “pai” inventado do
gênero. Grote, assim como fizera Wood, acredita na
criação oral dos poemas e na capacidade de memo-
rização de uma cultura iletrada. Para ele, os poemas
homéricos só começaram a ser postos por escrito por
volta da metade do século VII, e Pisístrato não teve,
no século posterior, nenhuma interferência decisiva na
sua forma final.
Quanto à história de formação dos poemas, Gro-
te mostra conhecimento dos estudos recentes em lín-
gua alemã e propõe uma espécie de combinação do

78
que vimos acima: de Nitzsch ele recupera a intenção
de recuar os poemas em sua forma final para séculos
VIII/VII a.C., construídos já então a partir de outras
canções tradicionais; de Lachmann, a dúvida sobre a
existência de Homero (sem contudo apostar numa
criação coletiva); e, finalmente, de Hermann, a su-
posição de um núcleo original, com planejamento do
todo, depois expandido. Como a unidade lhe parecia
fato incontestável na Odisseia, mais estruturada e com
poucas marcas de incoerência, é na Ilíada, “muito me-
nos coerente e uniforme”, que ele vai se concentrar
na parte final do capítulo, trabalhando com a ideia de
uma “Aquileida” primitiva formada pelos Cantos 1, 8
e 11-22, posteriormente expandida com o acréscimo
dos Cantos 2-7, 10 e 23-24 (para Grote, o Canto 9
é “inadequado”). Para sustentar essa hipótese, ele se
vale de argumentos como o de que o Zeus do Canto
4 (adição ao cerne primitivo) não é condizente com
aquele dos Cantos 1 e 8 (pertencentes à “Aquileida”
original). Adam Parry resume assim as motivações do
historiador para o desmembramento do poema:

Os Cantos 2 a 7 devem ser intrusivos porque


neles Aquiles não aparece, e eles não estão
conectados com a história de sua Cólera. O
Canto 9 é inconsistente com as passagens
dos Cantos 13 e 16, onde Aquiles parece não
saber que uma compensação já lhe tinha sido
oferecida. O Canto 10 tem um tom estra-
nho, e está também desconectado da Cólera,
o mesmo valendo para os Cantos 23 e 24.140

79
O caráter compósito da Ilíada, diante da estrutura
compacta da Odisseia, leva Grote a concluir que esta
deve ser obra de um só autor, e aquela, de muitos.141
Uma obra importante em língua francesa que
mostra a influência analítica é a História da literatu-
ra grega [Histoire de la littérature grecque], do prolífico
Maurice Croiset (1846-1935), cujo primeiro volume
saiu em 1887. Embora, como apontou John Myres,
os franceses tivessem apresentado, no geral, uma ten-
dência à visão unitarista,142 e ela de fato se verifique
nos comentários à Ilíada e a Odisseia de Alexis Pierron
(de 1869 e 1875), a obra de Croiset mostra a forte in-
fluência alemã, com a qual ele dialoga constantemente
(e também com Grote). Nesse volume inicial, dedica-
do inteiramente à épica, o autor faz uma abordagem
tripartida das duas narrativas homéricas, dedicando a
cada uma um capítulo de “análise”, outro sobre sua
“formação” e um último sobre o “gênio e arte” ne-
las encontráveis. Sobre a Ilíada, Croiset afirma, com
outro dogma, que “a crença dogmática e tradicional
numa unidade primitiva é incompatível com o estudo
atento e comparado das diversas partes do poema”.143
Para o francês, apenas um pequeno número de partes
do poema são primitivas, aquele cantos “ligados pela
ordem dos acontecimentos”, que ele reduz a Cantos
1 (“o mais antigo de todo o poema”), 11, 16 e 22.
Em seguida, foram acrescentados os episódios que não
são “nitidamente marcados pela necessidade mesma
do desenvolvimento dramático”, os Cantos 5, 6, 9 e
“talvez alguns outros trechos”. Os demais, diz Croiset,
“são quase com certeza de poetas diversos”, “acrescen-

80
tados mais tarde”.144 A posição é mais moderada em
relação à Odisseia, que para ele deve ser tratada sepa-
radamente, não havendo “contradição em admitir que
esta seja desde seu nascimento aquilo que aquela outra
[a Ilíada] só veio a ser tardiamente”. Isso, não impede,
no entanto, que Croiset, fale em “elemento primitivo”
e “continuação”, e possa mesmo apontar, na abertura
do poema, “muitos remanejamentos e adições”.145
O enfoque analista, no entanto, teve mesmo maior
repercussão no ambiente de língua inglesa, como se
pode notar na obra introdutória de Richard Jebb (Ho-
mer: an introduction to the Iliad and the Odyssey, de
1887), ou nos comentários de David Monro e Wal-
ter Leaf à Ilíada, saídos quase ao mesmo tempo, cada
um deles em dois volumes, nos anos de 1884/1888
e 1886/1888.146 O de Leaf (1852-1927) – banquei-
ro de profissão –, menos escolar e mais aprofundado,
recebeu sucessivas reedições (modificando-se bastante
na segunda, de 1900) e, ao contrário do de Monro,
era o que mostrava maior entusiasmo com a hipótese
analítica, discutida canto a canto.
Leaf, que foi muito influenciado pelo trabalho de
Karl Ameis e Carl Hentze,147 expõe nos seus “prole-
gômenos” do volume 1, sob o subtítulo “Análise da
Ilíada”, o eixo de sua abordagem:

(...) a Ilíada não foi composta por um único


poeta, mas corresponde ao desenvolvimento
por um longo período, (...) [ o qual] se deu
por acréscimos graduais, ou gradual cristali-
zação, em torno de um núcleo central, que

81
por sua vez era desde o princípio algo fixo
em meio a expansões posteriores de uma na-
tureza ora mais ora menos flutuante – em-
bora algumas delas com o tempo tenham
ganhado uma solidez quase igual àquela do
cerne original.148

Para Leaf, “as discrepâncias e contradições que


parecem depor contra a unidade de autoria são aque-
las que penetram fundo na estrutura do poema, e não
erros fortuitos de detalhe a que todos os autores estão
sujeitos”, e entre essas inconsistências a mais grave é a
relativa ao Canto 9, que é “completamente ignorado
nos Cantos 11 e 16”.149 Na sua “dissecação”, a Ilía-
da primitiva corresponde, “sem dúvida”, à “Cólera
de Aquiles”, apresentada nos Cantos 1, 11, 15, 16
e 20-22, “ou, melhor dizendo, em parte deles, por-
que não há nem um que não tenha recebido extensas
adições”.150 É interessante notar como, mais à fren-
te, Leaf cede à impressão de unidade deixada pelo
poema, e se manifesta quase como um “unitarista”
o faria:

É na história da Cólera que se deve encon-


trar a verdadeira unidade da Ilíada. Aí não
podemos hesitar em ver o trabalho de um
único poeta, talvez o maior em toda a his-
tória mundial. Até que ponto ele empregou
um material pré-existente em sua compo-
sição, está além do nosso poder de análise
dizer.151

82
Essa enorme atenção dada à Ilíada foi característi-
ca do nascente homerismo especializado, que tinha di-
ficuldade (como vimos em Grote, e já antes em Wolf )
de contestar a unidade da Odisseia, seja atribuindo-lhe
um cerne primitivo, seja decompondo-a em pequenos
cantos originais – apesar de alguns esforços de Her-
mann nesse sentido na sua obra de 1832.
Esse último bastião veio a cair definitivamente,
novamente em terras alemãs, com um discípulo de
Lachmann, Adolf Kirchhoff (1826-1908), nome fun-
damental para o desenvolvimento da linguística histó-
rica do grego, e responsável por dois livros dedicados
ao épico até então tido como menos problemático: A
Odisseia homérica e sua origem [Die homerische Odyssee
und ihre Entstehung], de 1859, e A composição da Odis-
seia [Die Komposition der Odyssee], de 1869. Kirchho-
ff propunha que a Odisseia tinha um cerne original,
dedicado às “Viagens de Odisseu”, contendo partes
dos Cantos 1 e 5, os Cantos 6-9 e partes dos Cantos
11 e 13. Numa segunda etapa foram adicionados o
restante do Canto 13, o Canto 14 e os Cantos 16-23
(até o verso 296); nesse momento também as aven-
turas de Odisseu entre os Cantos 9-12 ganharam sua
feição atual. Finalmente, tempos depois, um “arranja-
dor” ou “redator” inseriu a “Telemaqueia” e o Canto
15, concluiu o Canto 23 e rematou o poema com o
Canto 24.152 J. Davison analisa deste modo o método
adotado pelo alemão:

Os argumentos de Kirchhoff não são todos


subjetivos (ele se vale da discrepância entre

83
os manuscritos e apela para diferenças lin-
guísticas e de outra ordem entre as diversas
partes do texto); mas seu princípio crítico
fundamental consiste na equivalência entre
“antigo” e “bom”, e muitos de seus argumen-
tos dependem de sua crença de que há um
declínio na qualidade poética desde o alto
nível do poema original até a colcha de reta-
lhos sem arte da revisão tardia.153

Bem mais moço que Kirchhoff, e com uma erudi-


ção muito mais vasta, é Ulrich von Wilamowitz-Mol-
lendorff (1848-1931), o nome mais influente de toda
a filologia alemã, responsável, segundo um crítico de
língua inglesa, por “transformar toda a disciplina [dos
estudos clássicos] e trazê-la do século XIX para o XX”,
ao derrubar “as barreiras entre os vários departamen-
tos”.154 Seu primeiro trabalho importante sobre a épi-
ca data de 1884, Investigações homéricas [Homerische
Untersuchungen]. Nele, o estudioso procura primeiro
detalhar a composição histórica da Odisseia, e depois
falar sobre a transmissão da épica. Para ele, o poema
é o resultado de uma junção de três cantos anterio-
res, feita por um redator inepto por volta de 650 a.C.
(portanto, não por Pisístrato, em cuja recensão não
acredita). A decomposição se dá de modo sofisticado e
detalhado, e quase no fim da vida foi revista e simpli-
ficada por ele, em O retorno de Odisseu [Die Heimkehr
des Odysseus], de 1927. Sobre o livro mais antigo, diz
Davison em 1962:

84
Na primeira parte Wilamowitz distribuiu
suas censuras ao Redactor (Bearbeiter) e às
interpolações demonstrando uma confiança
impressionante, tanto nas evidências linguís-
ticas, históricas e textuais para a data de cer-
tas passagens, quanto no acerto de seu pró-
prio juízo a respeito do valor poético delas.
Mas, na segunda parte, ele tratou dos pro-
blemas relativos à evolução e transmissão dos
épicos gregos em geral com uma erudição
que faz de suas Investigações homéricas uma
das obras até hoje indispensáveis em qual-
quer biblioteca sobre Homero, e seu capítu-
lo final, intitulado “Retrospecto e Prospecto”
[Ruckblick und Ausblick], pode figurar como
uma afirmação clássica do problema homéri-
co tal como aparecia, em 1884, aos olhos do
mais brilhante dentre os jovens estudiosos
daquele tempo.155

Sobre a outra narrativa homérica, Wilamowitz ex-


pôs a mesma visão central – a de que se tratava de uma
“colcha de retalhos” – no trabalho A Ilíada e Homero
[Die Ilias und Homer], de 1916, espécie de súmula da
corrente analista e da visão positivista.156 O redator,
agora, podia ser um Homero histórico, a quem se con-
cedia maior habilidade. Martin Nilsson resume assim
a visão central exposta pelo filólogo alemão nesse livro:

(...) já existia uma florescente poesia voltada


para a produção de épicos que eram bastante

85
extensos, mas muito mais breves do que os
poemas homéricos. A língua e a técnica da
épica tinham atingido seu total desenvolvi-
mento, e essa poesia encontrara sua morada
na Jônia. Num certo momento um grande
gênio poético apareceu, que pode com acer-
to ser chamado de Homero (750 a.C.). Ele
concebeu o plano de um épico abrangen-
te. Em sua composição, tomou livremente
emprestado de épicos mais antigos, mas se
tratava de um grande poeta, original, cujo
poder criativo encontrou sua expressão cor-
respondente na criação artística, na imagina-
ção poética e na caracterização psicológica.
A Ilíada de Homero compreendia os Cantos
1-7 (até o v. 321) e 11-23, e mesmo nesses
certas mudanças foram feitas posteriormen-
te. A conclusão – a morte de Aquiles – se
perdeu e foi substituída por partes dos Can-
tos 23 e 24. Homero incorporou diversos
épicos menores, às vezes reformatando-os e
reelaborando-os, às vezes apenas adicionan-
do passagens que conectassem as diferentes
partes.157

O enfoque analista, embora combalido, não


abandonou a cena no século XX, como vimos com
Wilamowitz.158 Em língua inglesa, apareceram obras
importantes e influentes, como O surgimento da épica

86
grega [The rise of the Greek epic], de Gilbert Murray
(1907), que acreditava num processo de expurgação
e reforma dos poemas, análogo ao dos livros do An-
tigo Testamento;159 Evidência externa da interpolação
em Homero [The external evidence for interpolation in
Homer, 1925], de George Bolling, com a indicação
canto a canto dos versos acrescentados indevidamente
(Bolling depois tentou reconstruir a Ilíada ateniense
da época de Pisístrato, em 1950); e, bem mais adian-
te, já na segunda metade, dois livros de Denys Page,
A Odisseia homérica [The Homeric Odyssey, 1955], em
que expressava sua dívida para com Kirchhoff, e A
história e a Ilíada homérica [History and the Homeric
Iliad, 1959], que traz um apêndice intitulado – bem
ao gosto desse tipo de crítica – “Múltipla autoria na
Ilíada”.160 Em 1980, saía mais um livro sobre a pre-
sença de acréscimos indevidos nos poemas, Evidência
manuscrita da interpolação em Homer [The manuscript
evidence for interpolation in Homer], de M. Apthorp,
e ainda recentemente, em 2011, o trabalho de Mar-
tin West, A criação da Ilíada: perquirição e comentá-
rio analítico [The making of the Iliad: disquisition and
analytical commentary], em que defende a retomada
da visão oitocentista e a investigação das “desconti-
nuidades”. West – que em 1998/2000 havia feito sua
edição “Teubneriana” do poema, marcando os versos
interpolados, e depois discutido a maioria deles em
Estudos sobre o texto e a transmissão da Ilíada [Studies
in the text and transmission of the Iliad, 2001] – não
defende, como muitos dos analistas, a “múltipla au-
toria”, preferindo acreditar em alterações produzidas

87
por um mesmo autor, que, no entanto, para ele não é
o mesmo da Odisseia.
Na França, ainda que o já citado Maurice Croiset
fizesse um balanço sóbrio sobre a crítica dos épicos
gregos em seu artigo “A questão de Homero no come-
ço do século XX”, de 1907,161 a visada analítica conti-
nuava viva, como se pode ver nas prestigiadas edições
dos poemas dentro da coleção “Les Belles Lettres”.
O poema de Odisseu ficou a cargo de Victor Bérard,
que, além dos três volumes com o texto grego e a tra-
dução, publicou em outros três (entre 1924-1925) sua
Introdução à Odisseia, onde abordava as “interpolações
dos rapsodos”.162 Bem mais criterioso era o trabalho
de Paul Mazon, que tocou nos problemas relativos ao
outro épico na sua Introdução à Ilíada, publicada em
1942, alguns anos depois de saírem os quatro volumes
com sua edição do poema. Mazon realiza uma análi-
se detalhada, canto a canto, da narrativa, para depois
chegar aos resultados sobre o que seria o “poema pri-
mitivo” e o que seria sua “extensão”.163 Seu trabalho
foi influência importante para Robert Aubreton, au-
tor, entre nós, de uma Introdução a Homero, de 1953
(edição revista e aumentada em 1968), que adota mo-
deradamente a “decomposição”, preferindo preservar
a unidade diante da percepção de que “a filologia tem
exagerado muito”.164
Mas foi certamente entre os autores de língua ale-
mã que a “análise” teve vida longa, com nomes como
Erich Bethe – que propunha uma Ilíada original com
apenas 1.500 versos!165 – e seu Homero: poesia e lenda
[Homer: Dichtung und Sage; três volumes entre 1914

88
e 1927]; Georg Finsler e os livros Homero [Homer,
em dois volumes, 1913] e Poesia homérica [Die home-
rische Dichtung, 1915]; Eduard Schwartz, autor de
Sobre o nascimento da Ilíada [Zur Entstehung der Ilias,
1918] e A Odisseia [Die Odyssee, 1924];166 Peter von
der Mühll, que publicou um verbete influente sobre a
Odisseia na enciclopédia Pauly-Wissowa, em 1940, e
depois sua edição “Teubneriana” do poema, em 1945,
além do Comentário crítico à Ilíada [Kritisches Hypom-
nema zur Ilias], de 1952; e Reinhold Merkelbach, alu-
no de von der Mühll, que redigiu suas Investigações
sobre a Odisseia [Untersuchungen zur Odyssee, 1951].167
Ainda recentemente alguns livros publicados teste-
munhavam a força da tradição analítica alemã,168 que
Bernard Fenik, em 1974, diante do desenvolvimento
dos estudos homéricos, considerava – em suas formas
mais simples e antiquadas – “ultrapassadas e ingênuas
a ponto de mal merecerem nossa real atenção”.169
É difícil apresentar a diversidade de tantos enfo-
ques, diante do vigor do debate especializado a que se
chegara na virada do século XIX para o XX, movido
basicamente – como já se disse de forma sarcástica –
pela “convicção do mais recente analisador de que to-
das as análises anteriores estavam erradas”.170 Nunca
antes a poesia homérica tinha sido alvo de uma discus-
são tão acalorada. A corrente analista, como que num
passe de mágica, tinha transformado Homero num
mero (com o perdão do trocadilho) elemento a mais
no processo de formação da Ilíada e da Odisseia. Pre-
dominavam duas abordagens, que adquiriam feições
próprias segundo cada autor: a voltada para a pro-

89
posição de um núcleo original, menor em extensão,
modificado por meio de interpolações (e nesse caso
preserva-se certa unidade de concepção); e a voltada
para a defesa de um amálgama de canções, misturadas
com maior ou menor destreza (ficando aqui a coerên-
cia e coesão mais comprometidas). A essas duas linhas
centrais vem se juntar aquela que pende já para um
novo unitarismo, porque reconhece ao mesmo tempo
a existência de um processo de formação e a interfe-
rência final de um grande poeta (não necessariamente
o mesmo para a Ilíada e a Odisseia), que amarra com
felicidade o material disperso que encontrara.
Qualquer que seja a análise, ela inevitavelmen-
te se guia por três princípios: 1. uma vez que há um
desenvolvimento no tempo, devemos ser capazes de
separar o que é mais antigo do que é mais recente,
tendo-se em mente que o movimento – com base na
concepção de que primeiro há uma fase criativa, “aé-
dica”, seguida de uma repetitiva, “rapsódica” – é de
declínio (e, em havendo um “redator” final, em geral
ele é inepto);171 2. o processo de constituição resulta
em discrepâncias e inconsistências (no interior de cada
poema, e na passagem de um para o outro) que podem
ser de toda ordem, dependendo do estudioso: língua,
metro, vocabulário, sequência narrativa, moralidade,
modo como os deuses são retratados, uso dos símiles,
descrição dos armamentos, geografia etc.; e 3. as repe-
tições fornecem uma pista valiosa para se determinar
o que é primitivo/original e o que é tardio/imitação.
As repetições, em especial, representaram sempre uma
ferramenta importante no trabalho de estratificação

90
da poesia homérica, como se pode perceber desde as
primeiras investigações de Hermann. Devemos, aliás,
à “fúria de decomposição” do século XIX a elaboração
de materiais importantes no mapeamento até então
inédito de Homero, entre os quais se destacam – além
das inúmeras edições do texto grego e de seus escó-
lios – as “concordâncias” (volumes que registram as
diferentes ocorrências dentro de uma mesma obra ou
autor) da Ilíada e da Odisseia, ambas em inglês, a pri-
meira de 1875, a cargo de Guy Prendergast (A com-
plete concordance to the Iliad of Homer), e a segunda,
de 1880, levada a cabo por Henry Dunbar (A com-
plete concordance to the Odyssey and Hymns). Na Ale-
manha, um pouco depois, em 1885, saía o segundo e
último tomo do Léxico homérico [Lexicon homericum,
em latim], editado por Heinrich Ebeling, e no mes-
mo ano o Paralelismo em Homero ou índice de todas
as repetições homéricas [Parallel-Homer oder Index aller
Homersichen Iterati], de Karl Schmidt, a que vieram
fazer companhia, em 1891, o Índice homérico [Index
homericus], de Augustus Gehring, e outro dicionário
homérico (menos exaustivo, agora em alemão), de
Georg Autenrieth.172
Tudo isso servia para dar maior respaldo ao propó-
sito positivista da filologia, que se apoiava na autorida-
de proveniente do conhecimento especializado, único
detentor da aplicação do método histórico. Por isso
o homerista norte-americano Thomas Seymour podia
afirmar, em 1896, que “ninguém que tem direito a
uma opinião sobre o assunto [a ‘Questão Homérica’]
sustenta hoje a unidade dos poemas”.173 O resultado

91
era uma dessensibilização no trato com Homero, vis-
to por partes e pela infalível lente de aumento, sem
a devida apreensão do conjunto e do modo de fun-
cionamento dessa poesia composta oralmente e espa-
lhada no tempo, encarada em geral como produtora
de sucessivos textos fixos: se a comparação com outras
produções orais havia deixado para trás a suposição de
Wolf de que o poema ágrafo não podia ser extenso (re-
tomando a capacidade de memorização já destacada
por Wood), ainda assim não se conseguia entender a
mutação como algo inerente ao texto oral, mas apenas
como degeneração. O risco evidente era a distorção,
somada a uma arbitrariedade irrefreável, e a impressão
final (mais forte com o passar do tempo) de que a pre-
tensa inteligência científica do texto frequentemente
revelava-se obtusa.
Mas a condenação total e irrestrita dos analistas
seria igualmente um equívoco, porque eles foram
responsáveis por levantar questões e problemas fun-
damentais para a nossa compreensão da Ilíada e da
Odisseia. Como já se disse, as perguntas eram perti-
nentes, mas as repostas não acertavam o alvo. Numa
obra como a de John Scott, A unidade de Homero [The
unity of Homer, 1921], que mais parece um panfleto
de ataque à corrente analista, pode-se perceber bem
o erro de uma crítica apressada a esses predecessores
do Dezenove. Em meio a afirmações violentas – como
a de que “duas coisas são necessárias para tais inter-
polações [sugeridas pelos analistas]: primeiro, bardos
idiotas, e, depois, audiências idiotas”; ou de que “a alta
crítica [a analista, voltada para as fontes] cometeu sui-

92
cídio quando se cansou de ser um culto e aspirou a se
tornar uma ciência”174 –, em meio a essas afirmações
de Scott, fica clara sua incompreensão da posição his-
tórica desses estudiosos de Homero.
Bem mais sensata é a avaliação – já da perspectiva
oralista – de Albert Lord, feita em 1960:

As muitas teorias de autoria múltipla dos


poemas homéricos contribuíram mais para
os estudos de Homero do que qualquer ou-
tra visão. Não que elas estivessem certas. Mas
levaram a caminhos produtivos. (...)
O serviço prestado por esses estudiosos foi,
essencialmente, o de apontar as peculiari-
dades da língua e da estrutura dos poemas
homéricos, peculiaridades que hoje perce-
bemos que são próprias da poesia oral. As
inconsistências, a mistura de dialetos, os
arcaísmos, as repetições e os “estribilhos”
épicos, e até mesmo o modo de composição
por adição e expansão de temas, foram per-
cebidos e catalogados por esses estudiosos. O
questionamento sobre o uso da escrita os le-
vou a empregar o termo “oral”, e a experiên-
cia que tinham da épica folclórica parecia,
além do mais, justificar o uso desse termo.
Os elementos necessários para a cristalização
das respostas às suas perguntas estavam lá. É
um fenômeno curioso tanto da história inte-
lectual quanto do estudo especializado que
as grande mentes aí representadas, mentes

93
que podiam formular as mais engenhosas
especulações, tenham falhado em perceber
que deveria haver outro modo de compor
um poema além daquele com que estavam
familiarizados. Eles conheciam e citavam a
épica e a balada folclórica, eles estavam cien-
tes das variantes nesses gêneros, e no entanto
só conseguiam ver duas maneiras pelas quais
essas variantes poderiam surgir: por lapso de
memória ou alteração intencional.175

Também ponderada é a abordagem de Fenik nos


seus Estudos sobre a Odisseia [Studies in the Odyssey,
1974]. Aí os analistas de língua alemã são apresentados
como interlocutores respeitáveis, ainda que raramente
convincentes. Para o norte-americano, a “arrogância
e excentricidade” dos partidários da dissecação fez
com que houvesse um “desastroso desprezo, da parte
de muitos, pela riqueza de observações importantes e
questões pertinentes que seus trabalhos contêm”.176
No entanto, ao tratar, por exemplo, do problema que
as repetições em geral representavam para a corrente,
diz ele:

Assim como eles nunca apresentaram uma


razão clara para suspeitarem da repetição em
geral, também nunca propuseram uma jus-
tificativa teórica para, por um lado, admiti-
rem alguma repetição como sendo intrínseca
ao estilo épico, mas, por outro, rejeitarem a
possibilidade de que muitas outras repetições

94
pudessem representar um legítimo desenvol-
vimento dessa mesma tendência estilística.177

A solução não viria ainda com a reação unitarista,


que, apesar de se colocar em posição antagônica, par-
tia do mesmo “preconceito” letrado e era incapaz de
perceber a especificidade do estilo homérico.

95
5.

A RETOMADA DA
UNIDADE E O IMPASSE

A visão unitária de Homero era, até o século XVIII,


um dado concreto da tradição e da própria trans-
missão dos poemas. Com a notável exceção do abade
de Aubignac e sua repartição da Ilíada em cerca de 40
rapsódias, não havia a intenção explícita de se fracio-
nar os poemas em cantos menores, ainda que desde a
Poética de Escalígero (1561) já fossem notados “defei-
tos” e “incoerências”.178 No entanto, com o advento
da especialização, e com a corrente analista entrinchei-
rando-se nas cátedras universitárias, o unitarismo pas-
sou a ser visto como coisa ingênua, de quem não tinha
um conhecimento aprofundado dos problemas homé-
ricos. A perspectiva histórica obrigava o estudioso a in-
vestigar como diferentes camadas foram se sobrepon-
do no curso do tempo para dar origem às duas gran-
des epopeias; segundo John Scott, os analistas dessa
época estão de acordo quanto a “existirem, em ambos
os poemas, certas inconsistências e contradições, e es-
tas serem de uma natureza tal que torna impossíveis a
unidade de plano e a unidade de autoria”.179 A força
dessa abordagem era tão grande que o próprio Scott se
mostrava abismado com o fato de que, “diante da opi-
nião unânime dos grandes poetas e escritores de todas
as épocas [sobre a unidade], os argumentos desinte-
gradores de Wolf e seus sucessores tivessem alcançado
uma vitória tão completa e, no começo do século XX,
estivessem em campo praticamente sozinhos”.180
Uma figura respeitável como Goethe, que fora um
entusiasta de primeira hora de Wolf, a cujas aulas as-
sistia escondido por detrás das cortinas e com quem
manteve uma longa correspondência,181 podia procla-
mar um tempo depois, ao rever sua posição, que Ho-
mero era sim uma unidade, e o filólogo conterrâneo
seu, um “predador”, sem que sua opinião interferisse
no debate.182 O olhar comum se tornara pueril dian-
te do penetrante olhar científico. Era preciso que os
partidários da unidade se munissem de armas consis-
tentes, e falassem também eles ex cathedra, para que
fossem ouvidos e fizessem parte da discussão. Mais do
que isso: era necessário que incorporassem à sua vi-
são essa ideia incontestável do desenvolvimento dos
poemas, e as relações entre oralidade, escrita e auto-
ria, para que Homero deixasse de ser um poeta como
Virgílio.
Três fatores podem ser apontados como decisivos
para a retomada, em novos termos, da unidade de Ho-
mero. O primeiro deles diz respeito à completa falta
de consenso entre os analistas no final do século XIX,
resultado do subjetivismo das propostas, tão variadas

98
quanto era o número de seus defensores. Como afirma
Myres, era motivo de desconforto

a inabilidade de seus expoentes em chegar a


uma análise consensual (...) A metodologia
habitualmente empregada pelos críticos se-
paratistas repousava de fato sobre distinções
e estimativas altamente pessoais.183

Como se pôde perceber pela breve exposição fei-


ta acima – na determinação, por exemplo, de quais
seriam os cantos primitivos da Ilíada e da Odisseia –,
a arbitrariedade grassava livremente entre os adeptos
da análise, dando indícios de que o método não ti-
nha precisão e de que a máxima alexandrina de que se
deveria “esclarecer Homero a partir de Homero” (Hó-
meron ex Homérou saphenízein) não era seguida, o que
os aproximava – em termos de absoluta liberdade crí-
tica – dos antigos alegoristas. Além disso, os próprios
analistas não conseguiam dar uma resposta satisfatória
ao fato de que as duas grande narrativas eram, desde a
antiguidade, sentidas como coerentes e coesas, tendo
já sido tomadas como exemplos de unidade na teori-
zação da Poética de Aristóteles.
Junto com essa deficiência inerente ao método,
que lhe tirava a força, havia também um progressivo
declínio do historicismo, ou, melhor dizendo, uma
progressiva desvinculação entre texto e contexto. A
noção determinista de que havia uma relação direta
entre a obra e o ambiente em que fora produzida (com
a evolução tanto de uma quanto do outro) começava a

99
ser encarada com mais cautela, e passava-se a dar mais
atenção ao funcionamento interno da criação, e a seus
elementos propriamente literários. Esse movimento –
que desembocaria na chamada Nova Crítica – teve, é
verdade, poucos reflexos diretos nos estudos homéri-
cos, mas servia já para relativizar o domínio historicis-
ta e abrir espaço para outros enfoques.184
Na realidade, o terceiro e fundamental fator para a
arrancada unitária veio, ironicamente, de uma percep-
ção maior da realidade histórica dos elementos presen-
tes em Homero, propiciada pela arqueologia. Embora
se admitisse que sua poesia tivesse atravessado diferen-
tes estágios, desde uma época mais primitiva (em ge-
ral, idealizada) até uma outra mais refinada (em geral,
com a presença da escrita), e com isso ela ganhasse
uma dimensão histórica, voltada paras as condições
do seu desenvolvimento, ainda assim não se acredi-
tava que o mundo retratado nos poemas tivesse tido
uma existência concreta; eles eram um reflexo das cir-
cunstâncias em que surgiram, e não retrato da realida-
de, passada ou contemporânea. Segundo Alan Wace,
a atitude geral em relação às descrições, aos locais e
aos acontecimentos homéricos fora desde muito a de
que “eram sobretudo poéticos”.185 E foi justamente
um unitarista ingênuo e crédulo que, na esteira de Ro-
bert Wood, desenterrou um novo mundo para os lei-
tores da épica grega: o comerciante alemão Heinrich
Schliemann. Com suas escavações entre 1870 e 1890
(ano de sua morte) – especialmente em Hissarlik, sí-
tio turco onde se edificaram sucessivas Troias, e em
Micenas, no Peloponeso –, Schliemann possibilitou

100
que Homero fosse visto com novos olhos. Ainda que
tenha se enganado – no afã da descoberta – quanto à
correspondência temporal entre seus achados e os ele-
mentos homéricos, o impacto não foi menor: a partir
desse momento, não havia mais aquela separação feita
por Grote (e por muitos de seu tempo) entre a Grécia
lendária – a que pertenceria a Guerra de Troia – e a
Grécia histórica.186
Ao final de algumas décadas, os trabalhos de seu
discípulo Wilhelm Dorpfeld, seguidos depois pelos
do inglês Arthur Evans, em Creta (entre 1900-1905),
e do norte-americano Carl Blegen, novamente em
Troia, na década de 30, trouxeram pelo menos dois
elementos novos para a discussão de Homero: 1. sua
poesia retratava a chamada “civilização micênica”,
desaparecida depois de 1.200 a.C., e essa civilização
caracterizava-se, entre outras coisas, pela opulência e
vida palaciana; e 2. entre esses micênios já havia uma
escrita, um silabário que ficou conhecido como “Li-
near B”.
A associação da poesia homérica com o Período
Micênico (entre os séculos XVI e XII a.C.) revelou-se
uma verdadeira febre, e diversos autores se dedicaram
a mostrar, de diversas maneiras, o substrato material
daquilo que se retratava nos épicos – o que não sig-
nificava propor, necessariamente, um poeta Homero
micênico. Em 1907, Gilbert Murray podia afirmar
que “uma moda se instalou de modo violento a favor
da aceitação dos poemas como historicamente váli-
dos”.187 Uma das obras alemãs mais importantes da
segunda metade do século XIX foi o pioneiro A épica

101
homérica elucidada a partir dos monumentos [Das home-
rische Epos aus den Denkmaelern erlaeutert, 1884], de
Wolfgang Helbig, que “permaneceu por muito tempo
como o melhor livro de referência geral daquilo que se
pode com acerto chamar de arqueologia homérica”,188
embora Martin Nilsson aponte nele certo descuido na
distinção entre as épocas.189 O próprio Nilsson, sue-
co estudioso da mitologia e da religião gregas, foi um
defensor destacado da ideia de que “as circunstâncias
históricas compelem a que se busquem as origens dos
épicos gregos na gloriosa Épica Micênica”, como diz
no seu Homero e Micenas, de 1933.190
Como se sabe, com o passar dos anos essa visão foi
sendo aos poucos modificada: Moses Finley propôs no
seu famoso O Mundo de Odisseu [The world of Odys-
seus, 1954] que Homero retratava não a civilização
micênica, mas a “Idade das Trevas” (séculos XI a IX
a.C.); mais tarde Anthony Snodgrass se perguntava,
no artigo “Uma sociedade homérica histórica?” [“An
historical Homeric society?”, 1974], se não estaría-
mos diante de um amálgama histórico, sem que fosse
possível atribuir aos poemas o reflexo de um tempo
específico; e, finalmente, Ian Morris, no artigo “O
uso e o abuso de Homero” [“The use and abuse of
Homer”,1986], defendeu que as epopeias remetiam à
época do próprio poeta, o século VIII.191
Quanto à descoberta da escrita, ela teve, inicial-
mente, um significado mais simbólico e marginal,
ajudando a reforçar o suposto refinamento da época.
Não se sabia, a princípio, se o Linear B era de fato
uma forma antiga de notação do grego, e as inscrições

102
alfabéticas não estavam bem datadas. Só a partir da
década de 50, com a decifração do silabário e a fixação
do século VIII como época provável para a introdu-
ção do alfabeto (tomado aos fenícios),192 percebeu-se,
em primeiro lugar, que o Linear B tinha uso limitado,
burocrático (indicando, aliás, uma sociedade diferente
da descrita por Homero), e não teria sido capaz de
registrar os poemas homéricos; e, em segundo lugar,
que a escrita teria entrado apenas numa fase final da
produção dos poemas.
De qualquer maneira, num primeiro momento as
descobertas arqueológicas apontavam para a existência
de um ambiente aristocrático e requintado, distante
do mundo rude e popular a que se atrelara Homero.
Lá se iam, diz Frank Turner,

os antigos poetas populares que haviam


composto as baladas de Lachmann e seus
seguidores. Em seu lugar estavam bardos da
corte, que recitavam seus cantos para a rea-
leza num ambiente luxuoso. (...) Esse novo
contexto para a origem dos poemas também
os tornou produtos de uma época civilizada
– e não mais primitiva –, uma época civiliza-
da que tinha chegado ao fim com as invasões
dóricas.193

Para os unitaristas, esse novo contexto abria espa-


ço para que se explorasse novamente, e com roupa-
gem mais elaborada, a figura do gênio romântico, tão
importante, como vimos, para Robert Wood e para

103
nossa sensibilidade ainda hoje. Podia renascer agora
o poeta individual e criativo, cuja originalidade deixa
uma marca indelével na obra. Para empregar os dizeres
de um crítico literário brasileiro de meados do século
passado, o traço único “é a principal qualidade de um
poeta”, porque

o que se exige dele antes de tudo é a indi-


vidualidade irredutível, uma caracterização
rigorosamente particular. Um poeta deve
criar o seu próprio espaço, a sua maneira
inconfundível, o que quer dizer: uma obra
com tal fisionomia que não se possa trocar
por qualquer outra.194

A mesma questão, vista sob outra ótica, foi formu-


lada assim por um helenista italiano, ao abordar o que
chamou de “tabu humanístico-romântico-idealista”:

Uma obra literária complexa e bem-estrutu-


rada deve ter sido composta por um, e so-
mente um, autor, que deve ser um autor de
primeira ordem; a grande poesia não pode
ser senão obra de um grande poeta; o subli-
me é realizável apenas por um gênio criativo
individual.195

É dentro dessa perspectiva que os novos proposi-


tores da unidade defendem, basicamente, a existên-
cia de uma longa tradição épica oral – impossível de
ser ignorada, depois dos analistas – que sofre a pos-

104
terior interferência criativa do poeta Homero, capaz
de conferir ao material pré-existente um acabamento
e um salto de qualidade únicos. Era preciso enfatizar
o “grande artista” com sua “arte refinadíssima”, como
faz Giorgio Pasquali no extenso verbete “Homero”
da Enciclopédia Italiana (1935), ainda que a defesa
da unidade não impedisse, como acontecia com o
próprio italiano e com outros, que se falasse em “dis-
trações”, “contradições” e “interpolações”. Pasquali,
por exemplo, considerava espúrios os episódios do
“Catálogo das naus” e da “Doloneia”, e via uma clara
“evolução moral” da Ilíada para a Odisseia, o que o
levou a propor autorias diferentes para os dois poe-
mas.196
Algumas formulações de John Scott no já citado
A unidade de Homero resumem bem o espírito, como
quando diz, ao tratar dos símiles, que a habilidade de-
monstrada nas comparações é tal “que elas só podem
ter se originado no cérebro cheio de recursos de um
mesmo gênio criativo”, ou que esses dois épicos não
são simplesmente “tradições repetitivas já conhecidas,
mas também criações novas e originais”.197 Mas tal-
vez nenhuma passagem do livro explicite tão bem seu
ponto de vista quanto esta:

A tradição de fato criou, em certa medida,


Odisseu, mas não o Odisseu de Homero. O
Odisseu da tradição não vai além da perso-
nificação da inteligência e da crueldade. Não
há nada nesse Odisseu que faria seus com-
panheiros felicitá-lo nos jogos e desejar que

105
ele vencesse. O Odisseu de Homero é sua
própria criação.198

Anos depois, também nos EUA, Samuel Bassett


poderia afirmar, na mesma linha:

Todos os grandes criadores da literatura se


parecem neste ponto: pegam o velho e fa-
zem com ele o novo, em ideias e linguagem,
em incidentes, personagens e ações; e acres-
centam e inventam a partir de sua própria
imaginação. Devemos acreditar que Homero
não era exceção.199

O pioneirismo aqui também se deve aos filólogos


de língua alemã, entre os quais se destaca Carl Rothe,
autor de três obras fundamentais: A importância das
contradições para o discurso homérico [Die Bedeutung
der Widerspruche fur die homerische Sprache, 1894],
A Ilíada como poesia [Die Ilias als Dichtung, 1910]
e A Odisseia como poesia [Die Odyssee als Dichtung,
1914]. Rothe, cujo trabalho teve grande influência
sobre Scott, representa, na opinião de Bernard Fenik,
“a mais valiosa, inteligente e completa refutação dos
excessos analistas”, porque baseada “numa observação
atenta do texto e na comparação das passagens relacio-
nadas”.200 Além dele, outros nomes de peso são os de
Engelbert Drerup, que escreveu O Canto 5 da Ilíada
[Das fuenfte Buch der Ilias, 1913], O problema homéri-
co no presente e Poética homérica [Das Homerproblem in
der Gegenwart e Homerische Poetik, ambos de 1921],201

106
e dois alunos de Wilamowitz: Wolfgang Schadewaldt,
com os livros Estudos da Ilíada [Iliasstudien, 1938] –
que “deu ao unitarismo um novo nível de respeitabi-
lidade entre os que escreviam na Alemanha”202 – e Do
Mundo e da obra de Homero [Von Homers Welt und
Werk, 1944], em que contestava a antiga análise em fa-
vor da organicidade, ainda que com certas concessões
separatistas em relação à Odisseia;203 e Karl Reinhardt,
com sua obra póstuma A Ilíada e seu poeta [Die Ilias
und ihr Dichter, 1961].204
Em língua inglesa, Andrew Lang foi um unitarista
entusiasta de primeira hora da arqueologia homérica,
com títulos importantes de divulgação, como Homero
e a épica [Homer and the Epic, 1893], Homero e sua
época [Homer and his age, 1906] e O mundo de Homero
[The world of Homer, 1910], em que situava o poeta
no fim do Período Micênico.205 Já Thomas Allen par-
tiu para um estudo mais particularizado em O catálo-
go homérico das naus [The Homeric catalogue of ships,
1921], que retomava, entre outros, o estudo em ale-
mão de Benedikt Niese, O catálogo homérico das naus
elucidado como fonte histórica [Der homerische Schiffska-
talog als historische Quelle betrachtet, 1873]; Allen, que
situava Homero por volta de 900 a.C., escreveu ainda
o influente Homero: as origens e a transmissão [Homer:
the origins and the transmission, 1924]. Na abordagem
mais literária, além do já mencionado John Scott e seu
A unidade de Homero (1921), destacaram-se Alexan-
der Shewan, com A balada de Dólon [The lay of Dolon,
1911], uma negação contundente, apesar do título à
Lachmann, da antiga suspeição sobre o Canto 10 da

107
Ilíada, e seu posterior Ensaios homéricos [Homeric es-
says, 1935]; John Sheppard e A estruturação da Ilíada
[The pattern of the Iliad, 1922], descrição detalhada
do andamento da narrativa; Maurice Bowra, autor,
entre outros, do livro Tradição e Planejamento na Ilía-
da [Tradition and design in the Iliad, 1930]; e Cedric
Whitman, talvez o mais arrojado leitor do grupo, com
Homero e a tradição heroica [Homer and the heroic tra-
dition, 1958], em que defende uma estruturação “geo-
métrica” da Ilíada.
De todos, o trabalho de Bowra talvez revele de
modo mais nítido como funcionava nas primeiras dé-
cadas do século XX a filologia unitarista, que combi-
nava, como seu título sintetiza bem, as ideias de for-
mação e criação (não por caso retomadas, em termos
semelhantes, pelo título de Whitman).206 A tese cen-
tral do inglês, como diz logo no prefácio, é mostrar –
com base em constante comparação com outras narra-
tivas (inclusive a servo-croata, para a qual já chamava
a atenção) – que a Ilíada retrata a passagem “do épico
tradicional e primitivo para a condição de verdadeira
arte”, e que é a essa conjuntura que se deve “seu caráter
especial”.207 No primeiro capítulo, de onde tira o títu-
lo do livro, Bowra propõe que se deve tentar

distinguir, na Ilíada, os elementos que per-


tencem à tradicional arte épica daqueles que
parecem indicar a mão de um poeta criativo.
Uma tal investigação não assume que o poe-
ma seja o trabalho de um homem só, sem
qualquer outra contribuição, mas assume

108
sim que sua forma presente é produto de
uma só mente, que transforma o material
tradicional num todo artístico.208

Mais adiante, ele explicará que essa mente criativa


não fica subjugada pela convenção; vem à tona o “poe-
ta de gênio” de que falamos:

Todo poeta que faz jus a esse nome age de


maneira nova em relação a ela [a tradição],
mesmo que esteja preso às mais firmes regras
e convenções. Não importa quão rígida seja
a forma ou quão poderosa seja a regra: um
poeta de gênio pode ainda assim impor sua
personalidade e criar algo novo sem violar as
leis herdadas da composição artística.209

Para Bowra, a Ilíada deve muito à tradição, “mas


tem qualidades tais que tradição alguma pode pro-
porcionar”, o que significa dizer, em outras palavras,
que “só um grande poeta pode produzir um grande
poema”, ao qual imprime “sua própria personalidade”
e “propósito artístico”.210 A tradição pode fornecer re-
gras e procedimentos, diz ele mais à frente, ao tratar
da inovação de Homero no uso dos símiles, “mas não
provê a inspiração”.
Como entender então a atuação desse gênio dian-
te dos inúmeros problemas apontados pelos analis-
tas – repetições, contradições, desníveis etc.? Antes
de Bowra, John Scott já tinha enfrentado a questão.
Tratando especificamente das inconsistências, Scott

109
defende que elas são menos recorrentes do que dão a
entender os seus “caçadores”, e se explicam – as de fato
existentes – seja pela vontade do poeta de se “concen-
trar” em cada cena (como Carl Rothe já apontara),211
seja pela própria transmissão oral, que fracionava o
poema em recitações de menor extensão.212 No final
das contas, diz ele, elas são a prova de “gênio original”,
porque são os imitadores que se esforçam para não dei-
xar aparente nenhuma incoerência, algo a que o poeta
criativo não dá muita atenção!213
Em relação a essa mesma dificuldade, Bowra não
propõe algo muito diferente. Negando também o ex-
cesso de contradições apresentado pela lógica analis-
ta, ele aponta o fato geral de que “todos os autores
se contradizem”, arrolando exemplos de Dante, Vir-
gílio e Ariosto. Além desse fator, há que se considerar
também que “a poesia recitada difere da lida porque
requer uma atenção menos exata”.214 Finalmente, na
conclusão da discussão, recheada de exemplos, reapa-
rece a ideia de que “ao recitar sua história em seções,
como fazia, Homero se concentrava na passagem que
tinha diante de si e dava a ela sua total atenção”.215
Das repetições – “pedra fundamental da alta crí-
tica” (a dedicada às fontes), nos seus dizeres –, Bowra
fala que são marca de uma poesia mais antiga, que
“permaneceu numa época em que a composição já era
mais elaborada”. Originalmente, muitas delas tinham
a função de proporcionar um descanso aos ouvintes,
ainda que não se devesse descartar uma repetição com
base na “perfeição da expressão”, que não admite va-
riação. Mais uma vez, a suposta recitação por trechos

110
servia de argumento para se afirmar que os versos
recorrentes tinham menos chance de ser notados.216
Deve-se destacar nesse ponto, no entanto, a aborda-
gem pioneira feita por Bowra da repetição como re-
curso deliberado, empregado com o objetivo de criar
contrastes e paralelismos217 – algo que será a princípio
ridicularizado pelos oralistas, para sofrer reabilitação
posterior.
Ao contrário do livro de Scott, o de Bowra não
se concentra apenas na defesa da unidade. Nele en-
contramos também longos apanhados das origens da
épica, da língua e do hexâmetro, do pano de fundo
histórico e da época heroica, painéis em que ressal-
tam, de um lado, a ideia de um processo de formação,
e, de outro, a proposição do caráter real do que era
narrado, com Homero – que situa no século IX a.C.
(como Scott) –pertencendo a um ambiente de “cor-
te”, em sintonia com o passado micênico, que recupe-
ra e recria. Vale destacar ainda as páginas que dedica
à questão da escrita, quando adota uma posição que
se tornaria praticamente unânime entre os unitaristas
(e, a bem dizer, já vinha dos analistas). Embora não
afirme categoricamente que Homero tenha usado o
registro alfabético, Bowra imagina que a “arquitetura
e a forma”, a “organização e unidade” da Ilíada não
seriam provavelmente as que vemos hoje se o poeta
não soubesse escrever. Além do mais, diz ele (ante-
cipando em vários anos Albert Lord), a comparação
com a épica servo-croata mostra uma grande variação
dentro da transmissão oral, o que não se percebe, em
mesmo grau, na transmissão da Ilíada e da Odisseia,

111
favorecendo ainda mais a presença da escrita em sua
composição. De todo modo, diz Bowra, Homero “es-
creveu para seu próprio uso, e não para que seu poema
fosse lido”, porque “toda a arte da Ilíada indica que foi
feita para a recitação.”218
Diante dessa abordagem da Ilíada como mistura
de elementos mais antigos com outros mais recentes e
sofisticados, não causa espanto que o unitarista Bowra
dedique um capítulo inteiro a “Alguns elementos pri-
mitivos” do poema (para ele, notáveis nos catálogos
e nos epítetos, entre outros), e admita a presença de
“corrupções”, “interpolações” e “expansões”.219 Ele
não estava sozinho entre os colegas: no prefácio à sua
tradução (dentro da coleção Loeb) da Ilíada, de 1926,
Augustus Murray, junto com duras críticas endereça-
das aos analistas, admite de bom grado que no poema
há “sem dúvida empréstimos, e aqui e acolá evidentes
interpolações”.220
Feita essa rápida descrição, podemos perceber,
em Tradição e planejamento na Ilíada, os traços fun-
damentais do unitarismo então vigente (como vimos,
já lançado, sem muita repercussão, por Nitzsch na pri-
meira metade do século XIX): incorporação do olhar
evolutivo, com a admissão de estratos, agora não mais
discriminados; enorme peso dado ao autor, verdadei-
ro gênio criativo, que aparece no final do processo e
emprega a escrita; defesa rigorosa da unidade, que não
obstante convive com possíveis interpolações ou cor-
rupções; e respostas insuficientes aos problemas levan-
tados pelos críticos do século passado. No final das
contas, pode-se afirmar, diante dessas características,

112
que muitas vezes “a diferença entre wolfianos e uni-
taristas é de gradação”, para retomar a formulação do
analista Gilbert Murray, defensor fervoroso da Ilíada
como um “livro tradicional”.221 De um lado, temos
a corrente “avançada”, partidária da formação como
dado decisivo (mas não descartando a interferência
de um compilador ou redator), e de outro a corrente
“conservadora”, para a qual o traço fundamental (ad-
mitido o desenvolvimento prévio) é a originalidade.222
Daí o mesmo Murray afirmar em 1934, no prefácio
à quarta edição de seu já citado livro O surgimento da
épica grega, que era quase impossível encontrar um
unitarista “puro”, porque não se podia pensar num
Homero produzindo subitamente e espontaneamente
suas duas grandes obras.223 Em certos casos poderia
até haver dificuldade na classificação de um estudioso
como o alemão Dietrich Mülder, autor de A Ilíada
e suas fontes [Die Ilias und ihre Quellen, 1910], apre-
sentado como analista por Scott e unitarista por Da-
vison,224 ou W. Woodhouse e seu livro A composição
da Odisseia de Homero [The composition of Homer’s
Odyssey, 1930], chamado de “unitarista analítico” por
Nilsson.225
Isso em parte se deve ao fato de que os unitaristas –
dos quais Frederick Combellack podia dizer, em 1950,
que haviam alcançado “um alto grau de respeitabilida-
de”, conquistando a maioria no ambiente acadêmico
– tinham acabado por incorporar, de certa forma, a
análise em sua crítica.226 O mesmo Combellack apon-
ta com acuidade como a busca de muitos unitaristas
pelos elementos “originais” incorporados aos poemas

113
pelo “gênio” Homero nada mais era do que a repro-
dução do jogo analista da discriminação das fontes: a
identificação se tornava tanto mais falha quanto mais
específica pretendia ser. Se para os dissecadores o que
era mais antigo era melhor – sendo a incompetência a
marca da adição posterior –, para muitos unitaristas o
que era poeticamente bom se distinguia do ruim por
ser inovação homérica:227 no final, os métodos, ambos
voltados para a “caça às camadas”, se assemelhavam,
com propostas altamente subjetivas e, não raro, dia-
metralmente opostas.228 Como afirma Combellack,

A persistência com que esses unitaristas to-


mam, uma atrás da outra, características
refratárias [dos poemas] na busca por uma
pedra de toque (...) com que possam distin-
guir as invenções homéricas da herança tra-
dicional, junto com a firme recusa por parte
das provas em corroborar as cobranças que
lhes são dirigidas, faz lembrar, como muitos
outros aspectos do movimento unitarista,
os procedimentos dos analistas do século
XIX. Num movimento vazio sem fim, eles
se apoiam num recurso atrás do outro com
o intuito de conseguir separar os estratos
“antigos” dos “novos” no interior da poesia
homérica.229

Talvez o exemplo mais ilustrativo da aproxima-


ção de enfoques é o tratamento dispensado ao Can-
to 10 da Ilíada, a chamada “Doloneia”: sua vigoro-

114
sa rejeição, estabelecida quase sem contestação pelos
analistas, foi encampada pelos unitaristas com argu-
mentos... analistas: canto tardio, interpolado, espúrio.
Ainda que Alexander Shewan mostrasse, em 1911,
que os motivos para a condenação (linguísticos, nar-
rativos, temáticos) não se sustentavam, e defendesse o
gênio por trás da construção da Ilíada, a visão perdura,
recalcitrante, num comentário de viés oralista como o
de Bryan Hainsworth, saído em 1993.230 Caso passe-
mos para um comentário contemporâneo da Odisseia,
como o liderado por Alfred Heubeck na década de 80,
veremos as mesmas contradições. Heubeck define-se
como unitarista, mas acredita em discrepâncias tais
entre a Ilíada e a Odisseia (de língua, estilo, compo-
sição e estrutura) que o obrigam a postular autorias
diferentes.231

Se, em função das descobertas arqueológicas, os


analistas já começavam a representar, na década de 30,
uma minoria, isso não significava o fim da corrente
em sua forma autêntica, que, já se disse, permaneceu
viva. John Scott podia sim afirmar que as escavações
haviam “demolido completamente muitas das propa-
ladas provas dos desintegradores”, encorajando a po-
sição unitária,232 mas com essas palavras não atentava
para aquilo que as novas provas podiam representar
de estímulo, também, para os “caçadores de camadas”.
Alan Wace, com mais distanciamento, podia reconhe-
cer que o fôlego dado ao unitarismo não deixou de

115
animar, em medida bem menor, é verdade, a corrente
antagônica:

De fato têm surgido alguns estudiosos em-


penhados em empregar as evidências arqueo-
lógicas em favor de uma crítica disruptiva
de Homero, rejeitando algumas passagens
como sendo arqueologicamente impossíveis,
ou de datação recente, e portanto interpo-
ladas.233

À primeira vista, temos a impressão de um iden-


tidade natural entre as escavações do solo, que trazem
à luz diferentes camadas históricas, e o propósito “se-
paratista”, que buscava os sucessivos estratos tempo-
rais no texto. A realidade, contudo, é que os analistas
em geral mantiveram certa distância da arqueologia,
porque, como foi dito antes, estavam mais preocu-
pados em ver os poemas como produtos de certas si-
tuações históricas e do folclore popular, e não como
simples retratos de uma sequência de períodos. Entre
as poucas exceções estava o alemão Karl Robert, au-
tor da obra Estudos da Ilíada [Studien zur Ilias], de
1901. Robert analisou os vários tipos de armamentos
usados pelos heróis e, com base no confronto com as
evidências arqueológicas, propôs que os armamentos
micênicos (como o escudo maior, que dispensava ou-
tras proteções) pertenciam a uma fase anterior à dos
armamentos jônicos (como o escudo menor, a cou-
raça e as caneleiras). A partir daí, propôs uma “Ilíada
original de cerca de três mil versos, em dialeto eólico,

116
com armamento micênico, que se expandira em três
estágios principais”.234 Esse tipo de visão teve influên-
cia sobre o já mencionado Walter Leaf, a princípio
reticente, mas que depois a explorou na reedição de
seus comentários à Ilíada (o volume dois revisto saiu
em 1902), e também em dois livros posteriores, Troia:
um estudo da geografia homérica [Troy: a study in Ho-
meric geography, 1912] e Homero e a história [Homer
and history, 1915]. Ainda em 1950, data da publica-
ção do conhecido Homero e os monumentos [Homer
and the monuments], de Hilda Lorimer, esse enfoque
podia ser encontrado, resultando na defesa da “autoria
múltipla”, como acontecerá também no já citado A
história e a Ilíada homérica, de Denys Page, de 1959.
De todo modo, firmava-se ainda assim a impressão de
descompasso e declínio da crítica analista: o próprio
Leaf confessava a essa altura certa simpatia “pela rea-
ção unitarista” – embora discordando dela – “como
protesto contra as extravagâncias de uma teorização
descontrolada”.235
A entrada definitiva, porém, dos unitaristas no de-
bate não trouxe a tão esperada solução para a “Ques-
tão Homérica”, porque, nos dizeres do mesmo Leaf,
“o unitarismo não traz a unidade”... Eles davam, de
fato, a ênfase necessária à coesão e coerência dos poe-
mas de Homero, à sua inegável força enquanto con-
junto acabado (minimizando as discrepâncias), mas
trabalhavam com uma visão de autoria anacrônica,
dependente do uso da escrita, por mais que falassem
de poesia oral. Os analistas, por sua vez, haviam cha-
mado a atenção para o caráter compósito dos épicos

117
(destacando – e exagerando – suas inconsistências e
contradições), frutos de uma tradição em movimen-
to – de um processo de fusão, acúmulo, expansão –,
mas mantinham o propósito de determinar cientifi-
camente cada camada no tempo, e a ideia fixa de que
o texto sofre uma corrupção. As abordagens, como
vimos, eram muitas vezes menos antagônicas do que
pareciam, mas predominava um clima de rivalidade,
bem descrito por Martin Nilsson no calor da hora:

As visões e os métodos diferem entre si de


modo embaraçoso, de modo que o que é
escrito por um grupo de estudiosos de Ho-
mero parece quase não existir para outro,
empenhado em interpretar as mesmas obras
poéticas. Às vezes proclama-se a falência dos
estudos homéricos, e o desacordo entre os
resultados de diferentes estudiosos é tomado
como prova de que a solução dos problemas
está fora de alcance.236

A solução já havia sido indicada por Milman Parry


cinco anos antes da publicação do livro de Nilsson,
que cita uma única vez o trabalho do norte-america-
no, sem ter total consciência de seus desdobramentos.
Ela decorria de uma investigação detalhada do estilo
da poesia homérica, estilo que ia ao encontro da ora-
lidade homérica, tão comentada desde o século XVIII
– e vigorosamente defendida por Wolf –, mas efetiva-
mente pouco compreendida em seu modo de operar.
O fato é que tanto analistas quanto unitaristas traíam,

118
em suas posições, um olhar da cultura letrada, segun-
do a qual um texto é sempre fixo, e uma obra, original.
Como diz Joachim Latacz,

Nenhuma das duas facções percebia a falha


central da lógica que adotavam, isto é, que
ao mesmo tempo que admitiam uma gênese
oral dos épicos, em suas argumentações pres-
supunham a forma de um texto moderno,
junto com a abordagem moderna da produ-
ção de um texto (...); eles portanto aplicavam
(às vezes de uma maneira bastante subjetiva)
a obras antigas caracterizadas pela oralidade
padrões de lógica, estrutura, estética e origi-
nalidade derivados da poesia escrita.237

Ambos os grupos operavam, no fundo – para reto-


mar os termos de Albert Lord –, com “entidades rígi-
das”, “monolitos”, sem se dar conta de que não havia
hierarquia entre os textos, mas uma “substância pro-
teica e maleável”.238 Os analistas viram com acuidade
a presença de uma longa tradição e um repertório va-
riado, mas não conseguiram se libertar da imobilidade
da escrita e explicar adequadamente as inconsistências
narrativas e linguísticas, para não falar das repetições;
os unitaristas perceberam a importância da elaboração
poética, mas não conseguiram concatená-la devida-
mente ao papel da tradição por detrás do poeta: este
era ainda o “criador”.239

119
Depois de Parry, muitos estudiosos continuaram
a se definir como “unitaristas” e “analistas”, mas esses
rótulos já não faziam mais sentido.240 Ainda assim, é
preciso destacar neste panorama a presença da chama-
da neoanálise, que representava uma tentativa de su-
peração consciente da “falência da teoria separatista”,
por um lado, e das “concepções ingênuas dos antigos
unitaristas”, tentando extrair o melhor de cada um;
era assim, ao menos, que se posicionava o pai dessa
nova vertente e responsável por assim batizá-la – o
grego Johannes Kakridis, autor do livro Pesquisas ho-
méricas [Homeric researches], publicado em 1949, na
Suécia, por intercessão do citado Martin Nilsson.241
A intenção principal era preservar o desenho artístico
da Ilíada e da Odisseia – como queriam os partidários
da unidade –, conjugando com isso a investigação da
tradição épica que estava logo por detrás da criação
homérica, num movimento tipicamente analista de
busca pelas fontes. Daí a “nova análise”: o trabalho
voltado para o “encaixe” de partes de origens diver-
sas estava mantido, mas agora é a visão literária que
preside ao tratamento dado às contradições, e não
um olhar simplesmente “lógico”.242 Nos dizeres do
próprio Kakridis, essa análise trabalhava agora com “a
crença no gênio do poeta [Homero]”:

Assim, o propósito da neoanálise não é de-


sintegrar a épica homérica em inúmeras pe-
quenas partes e então se comprazer em ata-
car “aquele que remenda”, o “incapaz que faz
mal feito”, o “tolo compilador” e todos os

120
outros nomes que foram aplicados ao poeta
da Ilíada e da Odisseia. O propósito maior
da neoanálise é, mesmo quando busca dis-
tinguir as fontes e modelos de Homero, en-
tender melhor o próprio Homero, apreciar
a arte e a técnica da nossa Ilíada e da nossa
Odisseia tal como chegaram a nós. Dessa for-
ma, a teoria reconcilia as duas partes confli-
tantes, os separatistas e unitaristas.243

O método, no entanto, baseava-se na busca – ain-


da arbitrária – de antigos “protótipos”, mal adaptados
– sempre a dissonância... – aos novos contextos. Em
seu livro, a investigação do mito de Meleagro repre-
senta o verdadeiro “tour de force” da visada neoanalis-
ta, que pode ser resumida assim:

Se numa pesquisa deste tipo percebe-se


que um ou mais dos motivos de uma cena
é injustificável e, além do mais, se entram
em choque, em certa medida, com o plano
poético da cena, então podemos suspeitar
que por detrás da composição homérica se
esconde uma criação mais antiga, um protó-
tipo, cujos detalhes Homero não foi capaz de
assimilar ao novo ambiente. (...) Se ele tem
que remodelar uma composição mais antiga,
tomada de outro épico, ele naturalmente vai
tentar adaptar a cena a seu novo contexto e
subordiná-la a seu propósito poético. Nessas
circunstâncias, porém, será mais difícil para

121
ele ter êxito e então ficará sujeito a descui-
dar, aqui e ali, de elementos de uma tradi-
ção mais antiga que não podem se ajustar ao
novo ambiente.244

Como o próprio Kakridis reconhece, no entan-


to, o método só funciona onde “as marcas da remo-
delagem não foram completamente obliteradas”: só
por meio desses indícios podemos ser levados a ver a
dependência de Homero em relação a seus predeces-
sores. Mas a determinação dessas assimilações imper-
feitas, logo se vê, é uma continuação do exercício de
decomposição dos velhos analistas.
Em sua forma mais desenvolvida, a neoanálise
passou a trabalhar com a relação entre a Ilíada e as
epopeias perdidas do chamado “Ciclo Épico”, sem-
pre na tentativa de determinar como cenas, motivos
e temas originais foram reaproveitados, mais ou me-
nos imperfeitamente, na poesia homérica. Não sur-
preende que o enfoque tenha florescido em ambiente
de língua alemã, primeiro com H. Pestalozzi e seu A
Aquileida enquanto origem da Ilíada [Die Achilleis als
Quelle der Ilias, 1945], depois com o já citado Schade-
waldt e o artigo “Um olhar sobre a criação da Ilíada:
Ilíada e Memnonida” [“Einblick in die Erfindung der
Ilias: Ilias und Memnonis”], de 1951,245 e sobretudo
com Wolfgang Kullmann e seu As origens da Ilíada
[Die Quellen der Ilias, 1960] – e tampouco surpreen-
de que só mais recentemente tenha se aproveitado das
contribuições da crítica oralista, com nomes como o
do próprio Kullman e Jonathan Burgess.246

122
6.

A CRÍTICA ORALISTA NO
SÉCULO XX

O trabalho de Milman Parry, produzido entre 1925


e 1935, foi decisivo para definir os novos rumos
da “Questão Homérica”. Os detalhes de seu processo
de descoberta vou deixar, porém, para a segunda par-
te, quando pretendo descer aos problemas específicos
do estilo formular e suas implicações para a interpreta-
ção poética. Aqui, quero apenas esboçar como a crítica
oralista se estabeleceu na segunda metade do século
XX, com novas ideias sobre a oralidade em Homero e
sua relação com a escrita.
Vimos que, até o século XVII, a poesia homérica
era de modo geral vista como produto letrado, isto é,
como obra engendrada pela mente criativa de um poe-
ta segundo o modo escrito de composição. Homero,
em outras palavras, apesar de ter vivido em uma época
distante e – para a nova mentalidade – menos “evo-
luída”, operava do mesmo modo que Virgílio, Dante,
Milton ou Camões. As diferenças no seu estilo e no
caráter geral das suas narrativas se deviam não a um
tipo de poesia diferente, mas sim a um poeta especial,
marcado pela inventividade e maior liberdade em re-
lação às regras do bem-escrever. Essa situação (tam-
bém vimos) transformou-se a partir do século XVIII,
quando foi ganhando força a visão de que Homero
era na realidade um cantor dos seus poemas, e que essa
atividade implicava uma composição oral, que ignora
a escrita. Sua poesia associava-se agora a um primiti-
vismo idealizador, que queria separá-la do letramen-
to, para que assim surgisse mais autêntica e bela, ao
mesmo tempo que postulava uma interferência tardia
da escrita, a única capaz de lhe conferir uma extensão
ampla e uma estrutura complexa. A oralidade, enfim,
não podia ser pensada de forma autônoma: ela era
a escrita sem seus “defeitos”, mas também sem suas
“qualidades”.
Ainda, portanto, que a oralidade surgisse como
novidade importante, permanecia um quadro confuso
entre produção ágrafa e registro alfabético: se Homero
era um poeta oral, mas hoje somos capazes de ler seus
poemas graças a uma longa tradição de transmissão
escrita, de que forma esses dois modos de composição
interagiram para produzir a Ilíada e a Odisseia? Ana-
listas e unitaristas tentaram responder de diferentes
maneiras a essa questão, mas suas respostavam foram
sempre limitadas pelo fato de que, na grande maioria
dos casos, a oralidade era sempre uma abstração – ne-
nhum dos críticos conseguia traçar um quadro nítido
de como um cantor oral como Homero opera, quais
as características e circunstâncias da sua apresentação,

124
que marcas isso deixa no texto, quais as consequências
para nossa ideia de estabilidade de uma obra etc.
Foi o trabalho comparativo – presente, como vi-
mos, pelo menos desde Lachmann, que ligara Homero
à Canção dos Nibelungos – que possibilitou uma nova
compreensão das relações entre o texto oral e o escrito
na poesia homérica. Após a conclusão do seu douto-
rado, O epíteto tradicional em Homero, em 1928, Mil-
man Parry tomou consciência de que a distinção com
que trabalhava entre estilo individual e estilo tradi-
cional era na realidade uma distinção entre estilo oral
e estilo escrito (note-se já a presença, nos títulos dos
seus artigos fundamentais de 1930 e 1932, do termo
“oral”), e de que a analogia com os cantos sul-eslavos
– integrantes de uma tradição oral ainda viva na então
Iugoslávia – podia ajudar a iluminar o modo de com-
posição e transmissão da Ilíada e da Odisseia. Segundo
o próprio Parry, a indicação veio do linguista francês
Antoine Meillet, responsável por lhe apresentar na de-
fesa da tese o esloveno Matija Murko (à época profes-
sor da Universidade de Praga), que publicaria no ano
seguinte a obra A poesia popular épica na Iugoslávia no
começo do século XX [La poésie populaire épique en You-
goslavie au début du XXme siècle]. Como reconheceu
posteriormente o norte-americano, “foram os escritos
do professor Murko, mais do que os de qualquer ou-
tro, que nos anos seguintes me levaram ao estudo da
poesia oral e aos poemas heroicos dos sul-eslavos”.247
Murko fazia parte de uma tradição já longa de re-
colha e pesquisa dos cantos orais que eram entoados
principalmente nas áreas da Bósnia-Herzegovina e de

125
Montenegro, na língua servo-croata. A produção épi-
ca existia na região desde pelo menos o século XIII,
e passou a ganhar maior destaque no final do século
XVIII, com a valorização da poesia popular. Uma das
canções heroicas chegou a ser traduzida por Goethe
e publicada, em 1778, no As vozes dos povos em can-
ções [Stimmen der Völker in Liedern], de Johann Her-
der. Na esteira do entusiasmo romântico, o linguista
Vuk Karadzic fez uma reunião em 1814 e 1815 das
canções nacionais sérvias (as cristãs), fortalecendo a
comparação da épica sul-eslava com Ossian e Home-
ro. Portanto, quando Murko fez suas viagens a esses
locais, em 1909, 1912 e 1913, com a intenção de es-
tudar in loco essas produções, e depois publicou em
alemão os relatos das suas experiências, estava longe de
ser um pioneiro, e a analogia com a Ilíada e a Odisseia
já estava proposta, tendo sido inclusive levantada pelo
já citado homerista Engelbert Drerup.248
O trabalho de Murko, no entanto, padecia do
mesmo problema de outros que buscavam registrar
tradições poéticas vivas (tal como Karadzic antes de-
les), para fins de comparação: o material tinha que ser
anotado por escrito, sendo necessário, portanto, que
as canções fossem ditadas de modo pausado, ou que
o escriba fosse versado em estenografia e tomasse nota
do canto (às vezes, sem o conhecimento do cantor). É
verdade que Murko relata o emprego de um “aparto
fonológico” em suas viagens, que lhe fora oferecido
pela Academia Vienense, mas ele mesmo afirma logo a
seguir que a máquina só tinha capacidade “para frag-
mentos de menos de 30 versos”.249 Mesmo com essas

126
limitações, ele consegue fazer um trabalho de con-
fronto entre diferentes versões de um mesmo canto e
chegar a conclusões que antecipam as reflexões poste-
riores – influenciando, como vimos, um autor como
Maurice Bowra, em seu livro Tradição e planejamento
na Ilíada.
O componente tecnológico foi, assim, fundamen-
tal para diferenciar o trabalho de Parry dos demais.
Parry conseguiu obter de uma empresa norte-ameri-
cana um aparelho de gravação de voz que lhe permi-
tia registrar longas apresentações, em seus ambientes
originais e com todos os elementos envolvidos. Isso
conferia ao seu empreendimento um caráter de do-
cumentação inédito, e possibilitava a constituição de
um acervo inestimável para os estudos literários. Com
o gravador em mãos, ele se voltou para a coleta do
material, realizada durante duas viagens à região: a pri-
meira no verão de 1933, e a segunda, bem mais longa,
de junho de 1934 a setembro de 1935, em que con-
tou com dois assistentes: o jovem aluno Albert Lord,
recém-formado em Harvard, e o cantor local Nikola
Vujnovic, responsável por fazer a transcrição das gra-
vações. A atenção deles voltou-se sobretudo para a tra-
dição poética muçulmana, mais profissional e menos
influenciada pela escrita que a cristã, além de mais
capaz de produzir cantos longos (especialmente du-
rante o festival do Ramadã).250 Com isso, garantiam-se
condições mais favoráveis à comparação com a épica
homérica. De fato, segundo as palavras do próprio
Parry, a sensação, ao ouvir os sul-eslavos cantarem, era
“de estar ouvindo, de certa maneira, Homero”,251 e os

127
poetas iletrados Cor Huso, cego e renomado, já morto
àquela altura, e seu discípulo Avdo Mededovic, que
Parry conheceu pessoalmente e era capaz de recitar
épicos da extensão da Odisseia (O casamento de Smai-
lagic Meho chegou a 12.311 versos), pareciam-lhe os
mais acabados equivalentes do poeta grego.
A morte prematura de Parry, em dezembro de
1935, aos 33 anos, impediu que ele desse continui-
dade ao trabalho comparativo, que ficou a cargo
de Lord. Entretanto, podemos dizer que as linhas
principais da sua pesquisa já apontavam para uma
divisão rigorosa entre oralidade e escrita, que impli-
cava não só uma diferença de estilo e de abordagem
crítica, mas também cultural e mental. Isso é o que
se percebe da leitura do único artigo que publicou,
em vida, sobre a sua pesquisa na então Iugoslávia,
“Versos inteiramente formulares em cantos heroicos
gregos e sul-eslavos”, de 1933.252 Nesse texto, antes
de fazer a abordagem técnica e detalhada das linhas
estudadas (sua marca registrada), Parry redige uma
pequena introdução em que propõe o rótulo “oral”
como o mais adequado para classificar aquele tipo
de poesia que era chamada de “popular”, “primiti-
va”, “natural” ou “heroica”; além disso, ele expõe a
ideia de que “o uso da escrita representa um grande
acontecimento cultural”, citando a obra do francês
Marcel Jousse, O estilo oral rítmico e mnemotécnico
dos verbo-motores [Le Style oral rythmique et mnémo-
technique chez les Verbo-moteurs, 1925], para quem
a civilização letrada havia sido precedida por uma
civilização oral.253

128
Com base nesse enfoque de viés antropológico,
Parry defende que a oralidade implica um modo di-
verso de composição e de recepção – mais do que isso,
de que é possível fazer uma abordagem geral da poe-
sia oral, em oposição àquela que é escrita. Veja-se este
trecho, que integra o trabalho que estava em curso à
época de sua morte:

O objetivo desta coleção de textos orais [sul-


-eslavos] foi estabelecido não com a ideia de
contribuir com as já vastas coleções desse
tipo de poesia, mas sim de obter provas com
bases nas quais se poderia deduzir uma série
de generalidades aplicáveis a todas as poesias
orais; que permitiria, no caso da poesia em
que não há provas suficientes – externas aos
poemas – sobre a maneira segundo a qual fo-
ram compostos, dizer se essa poesia é ou não
oral, e como deve ser compreendida no caso
de ser oral.254

Chamam a atenção, portanto, a proposição gene-


ralizante, que opera com a dicotomia oral/escrito (e
vem se juntar a uma divisão mais profunda, de or-
dem mental e cultural), e a exigência de um padrão
específico para a avaliação da criação ágrafa – dois
eixos fundamentais no desenvolvimento dos estudos
orais. Em relação a Homero, elas se desdobravam nas
seguintes perguntas: sua poesia é de fato puramente
oral? Quais são os indícios desse modo de composi-
ção? Se há a interferência da escrita, como ela se deu,

129
e que transformações trouxe consigo? Como o crítico
deve se equipar para abordar uma poesia não escrita?
Parry não teve tempo para responder com calma a to-
das essas perguntas e seus desdobramentos, mas fica
claro que ele trabalhava com as seguintes hipóteses: a
poesia homérica era sim oral, porque a técnica formu-
lar por ele pesquisada “só poderia ser criada e utilizada
por poetas orais”; sua poesia deve ter sido ditada, para
assim ganhar a forma escrita; e era preciso trazer para
a leitura dessa épica “a percepção do estilo que é pró-
prio da canção oral”, sob pena de haver interpretações
equivocadas.255
O trabalho de Albert Lord, ao contrário do de
Parry, foi essencialmente de literatura comparada,
cadeira que ocupou na Universidade de Harvard de
1950 a 1983, dedicando-se muito mais à poesia servo-
-croata do que à homérica.256 Lord retornou à região
dos Bálcãs em 1937 e algumas outras vezes depois do
fim da Segunda Guerra, estendendo a pesquisa à Al-
bânia e à Bulgária, e podendo registrar muitos outros
cantos – inclusive do celebrado Avdo Mededovic, que
conseguiu ouvir novamente em 1951, dezesseis anos
depois do primeiro encontro. Com a análise desse ma-
terial defendeu seu doutorado em 1949, simultanea-
mente à preparação do volume primeiro das Canções
heroicas servo-croatas [Serbocroatian heroic songs], que
saiu em 1954 – um pouco depois do já comparativo e
importante Poesia Heroica [Heroic poetry] de Maurice
Bowra, de 1952.
Mas foi apenas em 1960 que Lord publicou sua
principal obra, O cantor de histórias [The singer of ta-

130
les], e em 1962, o capítulo “Homer and other epic poe-
try”,257 que tiveram grande influência sobre os estudos
sobre a oralidade (não apenas sul-eslava e homérica),
selando a abertura de “um campo comparativo de vas-
tas proporções”.258 Apesar das afirmações feitas em sua
abertura – “Esse é um livro sobre Homero. Ele é nosso
Cantor de Histórias” –, deve-se dizer que não se trata
propriamente de um estudo sobre a poesia homéri-
ca. Das duas partes em que se divide, “A teoria” e “A
aplicação”, Homero figura de fato na segunda apenas,
ocupando cerca de 60 num total de 300 páginas. É a
teorização, baseada no que viu na poesia servo-croata,
que corresponde à substância do livro. É aí que encon-
tramos as reflexões sobre treinamento e apresentação
do cantor, a análise do estilo marcado por fórmulas
que se repetem, o problema da existência de variantes
e a abordagem da relação entre escrita e tradição oral.
O capítulo sobre a performance foi o responsável
por estabelecer a ideia de que o cantor não era um
mero reprodutor de composições, mas um criador que
compunha no momento em que fazia sua apresenta-
ção, apoiando-se para tanto numa técnica especial, a
da dicção formular criada pela tradição, segundo a
qual não havia nem um modelo fixo de texto, a ser
rigorosamente respeitado, nem a possibilidade de uma
“improvisação” pura e simples. A esse ponto funda-
mental da obra – que determina a existência do que
Lord chama de “multiformidade”259 – vieram se juntar
outros dois, também pouco desenvolvidos por Parry:
a presença de “temas” como recurso importante dessa
criação em ato e o emprego do ditado.

131
Sobre os temas, Parry já havia sugerido, num ar-
tigo de 1932, que “na prática o poeta oral não se li-
mita de modo algum a tomar emprestado apenas a
fórmula; ele antes emprega também passagens inteiras
já ouvidas antes”.260 A questão volta a aparecer na sua
resenha ao livro de Walter Arend, de 1933, Cenas tí-
picas em Homero [Die typischen Scenen bei Homer],261 e
posteriormente em suas anotações de viagem, quando
já trabalha com a palavra “tema” para se referir aos
blocos de versos padronizados para descrever cenas
recorrentes das narrativas épicas.262 É seguindo seu
antigo mestre, como reconhece,263 que Lord mantém
a nomenclatura, propensa a criar confusão, já que
“tema” em literatura designa o assunto de uma obra, e
não estruturas repetidas. Como quer que seja, Lord faz
uma análise detalhada, com fartos exemplos e quadros
comparativos, do uso dos temas e suas variantes na
poesia servo-croata, ampliando o estudo de Parry so-
bre a fraseologia repetitiva e tradicional da poesia oral.
Foi a chamada “teoria do texto oral ditado”, no
entanto, já apresentada num artigo de 1953,264 que
teve repercussão maior, porque retomava a sempre
problemática questão da passagem da oralidade para
o registro escrito. Para Lord, segundo o que viu na
Iugoslávia, não era possível que o cantor proficiente na
sua arte dominasse também a escrita, porque os hábi-
tos mentais desta impunham o respeito a uma forma
estável e representavam o fim da criação na perfor-
mance; a esse respeito, vejam-se estas duas passagens:

132
Quando a escrita foi introduzida, os cantores
épicos, mesmo os mais brilhantes deles, não
perceberam suas “possibilidades” e não cor-
reram para se beneficiar dela. Talvez fossem
mais sábios do que nós, porque não se pode
escrever uma canção. Não se pode escravizar
Proteu; prendê-lo é o mesmo que destruí-lo.

Os cantores que aceitam a ideia de um tex-


to fixo se desviam dos processos da tradição
oral. Isso significa a morte da tradição oral e
o surgimento de uma geração de “cantores”
que são mais reprodutores do que re-criado-
res.265

Lord não aceita que Homero tenha sido um poeta


“de transição”, ao mesmo tempo oral e letrado, como
alguns estudiosos sugeriam. Sobre essa possibilidade
de ser um cantor que escreveu seus poemas, combi-
nando as duas técnicas, ele diz:

Acredito que a resposta [a essa questão] deve


ser negativa, porque as duas técnicas são,
segundo proponho, contraditórias e mutua-
mente excludentes. Uma vez perdida a técni-
ca oral, ela nunca mais é recuperada. A téc-
nica da escrita, por sua vez, não é compatível
com a oral, e as duas não podem se combinar
para formar uma terceira técnica, “de tran-
sição”. (...) Não é possível que uma pessoa
seja ao mesmo tempo um poeta oral e letrado,

133
em qualquer momento de sua carreira. Es-
sas duas coisas, por sua própria natureza, são
mutuamente excludentes.266

Mais adiante, Lord vai afirmar, mais uma vez,


que o texto homérico não representa esse estágio de
transição: seu compositor era um poeta oral – e não
uma “personalidade cindida, com metade de seu en-
tendimento e de sua técnica presa à tradição, e a outra
metade presa a um Parnaso de métodos literários” –,
e as provas disso podiam ser encontradas nos próprios
poemas.267
Diante disso, e uma vez tendo visto que era pos-
sível tomar nota do canto enquanto o poeta recitava,
Lord retoma aquilo que já havia proposto no artigo
de 1953 (reafirmado o que Parry já sugerira antes
dele): as duas epopeias gregas seriam textos orais di-
tados, frutos da atividade conjunta de um escriba e
um cantor iletrado na segunda metade do século VIII
a.C. Para retomar sua bela metáfora, temos então um
“Proteu fotografado”, porque se registrava assim uma
performance que, como qualquer performance, jamais
poderia ser repetida:

Dessa maneira se faz um texto a partir das


palavras de uma canção. Era o registro de
uma performance especial – uma perfor-
mance solicitada sob circunstâncias inco-
muns. Tal tem sido a experiência de muitos
cantores em muitas terras, desde o primeiro
texto registrado, creio eu, até a época pre-

134
sente. E o que foi dito a respeito de outras
performances pode ser dito dessa também;
porque, embora posta por escrito, ela era
oral. O cantor que a ditou era seu “autor” e
ela refletia um momento singular na tradi-
ção. Ela era única.268

Lord reconhece que essa circunstância incomum


afeta a apresentação, por causa do ritmo pausado e da
ausência de acompanhamento instrumental. Porém,
conforme pôde constatar com Avdo Mededovic, o
mecanismo do ditado, se por um lado não trazia van-
tagens para o cantor na criação de cada verso, por ou-
tro representava grande estímulo para a produção de
canções mais longas e elaboradas, em razão da ausên-
cia de pressões externas, como são as reações da plateia
e a limitação do tempo de recitação.269
A conclusão é que essa “fotografia” não é o retrato
de uma performance de fato, algo possível só recente-
mente, com o surgimento das máquinas fonográficas,
e que o texto ditado representa portanto uma apre-
sentação de “segundo grau”, com resultados variados:

Nas mãos de um bom cantor e de um es-


criba competente, esse método produz um
texto mais longo e melhor do que aquele da
performance de fato (...). Parece-me que é
aí que devemos situar mais logicamente os
poemas homéricos. Eles são textos orais dita-
dos. No interior desse tipo de texto podemos
diferenciar aqueles feitos com habilidade dos

135
feitos de modo inepto. Os primeiros terão
versos regulares e completude narrativa. Os
segundos terão muitas irregularidades nos
versos e a estrutura geral será apocopada.270

Nesse ponto, Lord retoma a discussão sobre a exis-


tência de um poeta oral letrado. Ainda que admita que
textos orais sejam assim produzidos – isto é, pela pena
do próprio cantor – e dê a eles o nome de “textos orais
autógrafos” (correspondendo a um terceiro grau), o
estudioso norte-americano afirma que, pela sua expe-
riência, tais poemas são inferiores aos ditados, o que
impede uma analogia com os grandes épicos homéri-
cos:

Ao se colocar uma caneta nas mãos de Ho-


mero, corre-se o risco de fazer dele um mau
poeta. O cantor não apenas tem um méto-
do de composição perfeitamente satisfatório
com a já bastante desenvolvida técnica oral,
como é efetivamente atrapalhado e restrin-
gido pela escrita. (...) Não posso aceitar Ho-
mero como alguém semiletrado, o que quer
que isso signifique. Sua habilidade requer
que seja ou o melhor dos poetas orais ou o
melhor dos poetas literários, não um híbri-
do indefinível. Qualquer um que esteja de
fato familiarizado com textos “semiletrados”
resistiria fortemente, acredito eu, a toda e
qualquer pressão no sentido de situar Ho-
mero nessa categoria.271

136
Finalmente, Lord tenta fornecer um motivo para
que os poemas homéricos fossem postos por escrito.
Segundo sua visão, a iniciativa não poderia partir de
Homero nem de seus ouvintes: para eles, não havia o
risco de esse material se perder, nem a necessidade de
um auxílio mnemônico, menos ainda a visão de que
determinada versão representava a forma acabada de
uma narrativa. A sugestão é de que o registro da épica
veio em decorrência da observação ou da notícia dessa
prática no Oriente.272
O tópico da relação entre oralidade e escrita nos
mostra, em especial, como Lord (mesmo reconhe-
cendo logo de saída a grande diferença qualitativa
entre Homero e os servo-croatas: “entre os cantores
dos tempos modernos não há nenhum igual a Home-
ro”)273 – como Lord aplicou com grande liberdade a
comparação com a poesia sul-eslava, reforçando pela
generalização aquele “fosso” entre oralidade – com
sua marcas textuais específicas – e escrita, além da exi-
gência de um modo diverso de abordagem da criação
iletrada. Daí afirmações como a de que “a técnica for-
mular nas poesias grega e sul-eslava são de modo geral
idênticas e operam com os mesmos princípios” e de
que “essa é, segundo se sabe agora, a prova mais certa
da composição oral”, o que implica “deixar de aplicar
a ela os clichês de uma outra crítica”.274 A formularida-
de estudada por Parry era índice garantido da oralida-
de, e se contrapunha ao que era quase que uma forma
de pensamento diferente: a escrita. O texto ditado in-
troduzia esta salvaguardando aquela. O resultado foi
a formação de uma espécie de “credo oralista”, que o

137
estilo simples, claro e nada acadêmico de Lord ajudou
(à sua revelia) a propagar. É bom lembrar que a tese de
Parry fora escrita em francês, e as outras publicações
em sua língua haviam saído apenas em periódicos es-
pecializados. Até a edição em livro, em inglês, de toda
a sua produção, em 1971, foi a obra de Lord que se
impôs como principal referência, com suas teses prin-
cipais só sendo revistas e modificadas em dois livros da
década de 90, um deles póstumo.275
Paralelamente ao trabalho de Lord, o helenista
James Notopoulos desenvolvia, na Inglaterra, estu-
dos em que não só estendia a comparação à moderna
poesia heroica de Creta e demonstrava o caráter oral
dos “Hinos homéricos” (com taxas de formularidade
de 80% a 90%, mesmo nível de Homero e Hesío-
do),276 mas em que, sobretudo, buscava determinar
a especificidade da literatura oral, comportando-se,
assim como Lord, com “uma lealdade quase fanática
ao mestre [Parry]”.277 Merecem destaque dois artigos
publicados num curto espaço de tempo, em que bus-
cava estabelecer os princípios de uma crítica oralista:
“Parataxe em Homero: uma nova abordagem da críti-
ca literária em Homero” [“Parataxis in Homer: a new
approach to Homeric literary criticism”], de 1949, e
“Continuidade e interconexão na composição oral ho-
mérica” [“Continuity and interconnexion in Homeric
oral composition”], de 1951. O modo como abre o
primeiro artigo resume a visão defendida:

Este artigo coloca a seguinte questão: os mes-


mos princípios da crítica literária se aplicam

138
tanto à literatura escrita quanto à oral? A res-
posta é “não”. Platão e Aristóteles são os pais
do conceito de unidade orgânica (...). Mas
em vista da natureza oral da poesia homérica
esse critério é válido? Uma investigação da li-
teratura até a metade do século V a.C. revela
vários graus de unidade envolvidos, e indica
que o tipo predominante é o de uma unida-
de flexível, paratática e inorgânica, tal como
se observa nos poemas homéricos. (...) Este
artigo serve de prolegômeno à formulação
dessa poética não aristotélica, por meio de
uma tentativa de se compreender as bases da
parataxe na literatura oral, cuja incompreen-
são levou no passado a uma crítica procustia-
na de Homero.278

Notopoulos, apoiando-se em estudos anterio-


res (principalmente no de B. van Groningen sobre a
composição paratática na literatura grega, de 1937),
defende que a ausência de articulação cerrada caracte-
riza não apenas o estilo e a sintaxe da poesia homérica,
mas também o pensamento, apresentando-se princi-
palmente como um “estado da mente”, podendo ser
percebida também na cerâmica e na arquitetura grega.
Na literatura, o resultado disso é que o poeta – con-
centrando-se no momento – está sempre mais preocu-
pado com as partes do que com o todo, mais com os
elementos particulares do que com a integridade do
conjunto. A “frouxidão” oral justificava muitas das in-
consistências homéricas (como já notara Lord). Diz ele:

139
O domínio imperioso da premência do ver-
so e do episódio formata em larga medida o
estilo paratático bem como o conteúdo da
épica oral. A preparação do poeta vai das
fórmulas nome-epíteto a esquemas inteiros.
Essa técnica resulta inevitavelmente numa
léxis eiroméne, num estilo costurado e aditi-
vo, e no emprego paratático desse material.
(...) O poeta, por causa dessa técnica verbal,
tende a se tornar episódico em seu modo de
pensar.279

No artigo de dois anos depois, Notopoulos faz


uma abordagem voltada para a apresentação do poe-
ma oral, e a “mentalidade paratática” entre como um
dos elementos de destaque nesse contexto da impro-
visação. A preocupação agora, no entanto, é com os
“mecanismos unificadores”, que amarram as diver-
sas partes do canto e são característicos da parataxe.
Três são discutidos – a antecipação, a retrospecção e
a composição anelar –, todos eles apoiados na estraté-
gia básica da repetição. Notopoulos claramente deixa
de lado aqui a proposição mais generalizante em favor
de uma análise do texto e suas formas de articulação,
ainda que a exigência de uma crítica própria não seja
abandonada.
Outra obra do período que revela forte influên-
cia de Parry e Lord – explorando a suposta diferença
mental entre uma cultura oral e outra letrada – é Pre-
fácio a Platão [Preface to Plato], de Eric Havelock, de
1963. Segundo a tese central aí defendida, o projeto

140
platônico consistia em suplantar, por meio de uma
mentalidade racional e letrada, a sedutora “imitação”
(a mímesis teatral) da poesia homérica, verdadeira “en-
ciclopédia tribal” que se mantinha através da memória
e do ritmo. O livro, bem escrito e de leitura agradável,
é repleto de passagens peremptórias, como esta:

(...) assim como a poesia, enquanto reinou


suprema, constituía o principal obstáculo à
concretização da prosa efetiva, havia igual-
mente uma disposição mental a que, por
comodidade, rotularemos de disposição
mental “poética”, ou “homérica”, ou “oral”,
que constituía o principal obstáculo ao ra-
cionalismo científico, ao uso da análise, à
classificação da experiência, ao seu rearranjo
na sequência de causa e efeito. Aí está por
que a disposição mental poética constitui
para Platão o arqui-inimigo e é fácil perce-
ber por que ele considerava seu inimigo tão
poderoso. Ele está entrando na arena contra
séculos de exercitação da experiência rítmica
memorizada.

A natureza dicotômica e estanque dessa tese agô-


nica (verso x prosa, oral x escrito, concreto x racional,
Homero x Platão) não impediu que tivesse boa acolhi-
da, e capítulos como “A disposição mental homérica”
e “A psicologia da declamação poética” ainda são lidos
de forma proveitosa, numa obra que, a despeito do
título, serve de introdução mais a Homero do que a

141
Platão. Havelock abordou por outro ângulo a mesma
questão em 1982, defendendo explicitamente o que já
estava embutido no livro anterior: a ideia de que a in-
trodução da escrita representou uma “revolução” cul-
tural na Grécia. Ele não estava só: Marshall McLuhan,
teórico canadense da comunicação, fizera em 1962,
com seu A galáxia de Gutenberg, uma abordagem am-
pla – com enorme repercussão – sobre os efeitos da
escrita e da tipografia sobre o pensamento humano.
Os trabalhos de Notopoulos e Havelock repre-
sentavam apenas algumas das maneiras pelas quais os
estudos da oralidade iam sendo alargados e expandi-
dos. Ficava evidente a vontade, por parte de muitos,
de comprovar as possibilidades da comparação como
método produtivo, além da insistência numa cisão en-
tre oral e escrito e na investigação da marcas textuais
que atestassem uma oralidade inequívoca, a pedir uma
crítica também específica. As críticas não demoraram
a vir.
O helenista inglês Geoffrey Kirk escreveu, em
1962, uma obra que lidava em profundidade não ape-
nas com os problemas tradicionais da crítica homéri-
ca, mas também com a teoria Parry-Lord: As canções
de Homero [The songs of Homer].280 A parte que mais
nos interessa aqui é a primeira, “A épica oral”. Nela
Kirk defende que há quatro estágios no ciclo de vida
de uma tradição oral: o originário, com cantos mais
simples (muito anterior a Homero); o criativo, com
poemas mais refinados (a essa época pertenceriam
a Ilíada e a Odisseia); o reprodutivo (voltado mais à
memorização do que a novas criações); e, finalmen-

142
te, o degenerativo, marcado pela figura do recitador
profissional. Com base nessa periodização, Kirk afir-
ma que a analogia com a poesia servo-croata não é
totalmente válida, porque ela pertenceria – tal qual foi
documentada por Parry e Lord – ao estágio reprodu-
tivo, “com pouca ou nenhuma composição de canções
virtualmente novas”.281 O inglês não deixa de reconhe-
cer as “inquestionáveis” semelhanças, como o caráter
oral e heroico dos cantos, a presença dos epítetos e a
repetição de versos e temas, além da possibilidade de
se vislumbrar como opera o cantor oral ao construir
suas canções. No entanto, ele aponta para “o efeito de
monotonia e falta de imaginação” da poesia sul-eslava,
muito mais limitada do que a homérica, resultado
provável do fato de que estaríamos diante de técnicas
diferenciadas. Segundo Kirk, em Homero a estrutu-
ra rítmica e formular mais complexa seria responsável
pela maior extensão e menor fluidez dos épicos (algo
já sugerido por Parry),282 em comparação com os can-
tos servo-croatas.283 Em relação ao “texto oral ditado”
proposto por Lord, Kirk também prega cautela no uso
da analogia:

(...) não há nenhuma prova concreta de que


o ditado foi empregado pelos poetas homéri-
cos; é improvável que a escrita e a técnica de
confecção de livros pudessem conviver com
algo dessa escala nesse período; e, segundo
penso, não há prova ou implicação de que
um ditado fosse necessário para a composi-
ção dos poemas monumentais.284

143
O tópico do texto ditado voltou a ser abordado,
nessa mesma década, por Adam Parry, filho de Mil-
man, no artigo “Temos a Ilíada de Homero?” [“Have
we Homer’s Iliad?”], de 1966, no qual reage tanto à
visão de Lord (de um cantor necessariamente iletrado)
quanto à “oralidade pura” de Kirk. Para Parry, a analo-
gia moderna não pode nos dizer nada sobre o impacto
causado pela introdução da escrita na Grécia, porque
as condições daquela época não encontram uma per-
feita correspondência no mundo moderno.285 Diante
da ausência de uma comparação válida, ele propõe que
“a Ilíada tenha sido escrita na época de sua composi-
ção”. Segundo Parry,

Lord insistiu no ditado como única forma


de isso ter acontecido por causa de sua noção
equivocada (segundo penso) da impossibili-
dade de um bardo que soubesse escrever. (...)
[Mas] Parece difícil não ver no uso da escrita
o meio e a ocasião para a composição, no es-
tilo da improvisação, de poemas que devem
ter transcendido sua própria tradição em
profundidade e extensão, exatamente como
a tradição mesma superou todas as subse-
quentes tradições de canto heroico.286

Como se vê, as críticas à corrente oral voltavam às


antigas concepções, do grande gênio que reinventa a
tradição recorrendo ao alfabeto. O recuo também se
deu na discussão sobre o estabelecimento de critérios
específicos na abordagem da épica grega, como se vê

144
num artigo importante de 1970, de Bryan Hainswor-
th, “A crítica de um Homero oral” [“The criticism of
an oral Homer”]. Hainsworth ataca o estabelecimento
de uma “lei oral” que “elimina alternativas” e impe-
de a presença da “palavra apropriada, da alusão irô-
nica, da ênfase significativa”. Na sua visão, Homero
apresenta de fato um caráter fortemente episódico, de
concentração nas partes, que requer um tratamento
especial por parte do intérprete, mas junto com isso se
percebe a “arquitetura maior” dos poemas, qualidade
compatível com “os cânones da crítica ortodoxa” e que
o coloca numa situação especial.287 A posição seria rea-
firmada muitos anos depois por Richard Janko, para
quem “o método tradicional e o método oralista de ler
Homero são plenamente compatíveis e, na realidade,
indispensáveis”.288
Trabalhos desenvolvidos fora da área dos estudos
clássicos – mas sob o impulso da teoria Parry-Lord –
também ajudaram nesse movimento de revisionismo,
como é o caso de Poesia oral [Oral poetry], da antropó-
loga Ruth Finnegan, de 1977, e A letra e a voz [La let-
tre et le voix], do medievalista Paul Zumthor, de 1987.
Finnegan está basicamente interessada em combater
a generalização, estabelecida a partir dos estudos na
antiga Iugoslávia, entre composição oral e composi-
ção escrita. A partir de um material vasto, que abran-
ge várias tradições poéticas, ela defende que há graus
diferentes de letramento e formas variadas de combi-
nação entre oral e escrito, que formam um amplo es-
pectro e impedem que se pense no cantor oral apenas
como um homem iletrado que cria seu canto durante

145
a performance, como queria Lord; em muitos casos, a
composição pode ser previamente preparada e total-
mente memorizada – além de prescindir das “marcas”
supostamente indefectíveis da oralidade. Ainda que
distorça e apresente de modo superficial o trabalho de
Parry,289 Finnegan traz uma relativização saudável para
a discussão.290 O mesmo se pode dizer da obra de Zu-
mthor, francês especializado em literatura medieval.
Seu objetivo consiste em ir além do texto no estudo da
“vocalidade” (termo que prefere a “oralidade”), “fun-
ção da voz” que vai muito além dos sinais que deixa
por escrito.291 Não é que deixe de investigar esses si-
nais: os capítulos sobre o “formulismo”, a “movência”,
a sintaxe, estão lá, mas Zumthor está mais preocupado
em explorar em detalhes a situação de performance, o
papel dos intérpretes, a relação da fala com a escrita,
o que – enfim – a atuação oral representa enquanto
experiência sensorial, e esse enfoque produz passagens
interessantíssimas para o estudioso de Homero.
Foi, no entanto, a partir da década de 80 que se
estabeleceram os dois nomes com maior influência nos
recentes estudos homéricos, Gregory Nagy e John Foley,
ambos discípulos de Albert Lord. Nagy é um helenista
prolífico, com inúmeros livros publicados sobre a poe-
sia homérica (entre outros temas). Nesse âmbito, suas
maiores contribuições podem ser divididas em duas
frentes principais, ligadas entre si: uma voltada para a
relação entre oralidade e escrita na transmissão e fixação
do texto (que supera a teoria do texto oral ditado); e
a outra centrada num modo de editar os poemas que
leve em conta seu caráter oral. No primeiro caso, ele

146
estabeleceu a hipótese – inverificável, mas bastante ra-
zoável – de que a Ilíada e a Odisseia teriam passado por
cinco diferentes períodos, que vão apresentando cada
vez menos fluidez textual. Segundo a exposição que faz
em Poesia como performance: Homero e além [Poetry as
performance: Homer and beyond], de 1996, teríamos:292

1. do segundo milênio a.C. à metade do século


VIII a.C.: um período mais fluido, sem texto
escrito;
2. da metade do século VIII a.C à metade do sé-
culo VI a.C.: um período mais formativo ou
“pan-helênico”, ainda sem texto escrito;
3. da metade do século VI a.C. ao século IV a.C.:
um período de definição, centralizado em Ate-
nas, com possíveis “transcritos”;
4. do século IV a.C. à metade do século II a.C.:
um período de padronização, com “transcri-
tos” ou mesmo “escritos”; e
5. do século II a.C. em diante: um período relati-
vamente mais rígido, com “escrituras”.293

Por essa terminologia, o “transcrito” é apenas uma


anotação auxiliar ou um registro da performance, que
não a substitui; o “escrito”, um pré-requisito para a
performance; e a “escritura”, o texto escrito que já
existe sem a necessidade da performance.294 Nas pala-
vras do próprio Nagy,

(...) esse esquema de cinco períodos na


transmissão homérica coloca em jogo, pre-

147
cipuamente, a dimensão da performance,
em particular as tradições dos rapsodos, e
secundariamente a dimensão do texto en-
quanto um derivado da performance, com
cada período, um após o outro, refletindo
um conceito progressivamente mais estreito
de textualidade, do “transcrito” para o “escri-
to” e depois a “escritura”.295

Em sua teoria, Nagy destaca o que chama de “im-


pacto ateniense” no terceiro período, que correspon-
deria precisamente a uma reforma na performance
– apresentada pela tradição como tendo sido levada
a cabo por Sólon, Pisístrato ou seu filho Hiparco (con-
forme visto no capítulo sobre Wolf ), e determinante
para uma maior cristalização dos textos.
Esse quadro teórico está, por sua vez, diretamente
associado à segunda frente de seus estudos, que con-
siste em pensar uma edição eletrônica de Homero em
que todas as variantes, dentro de um mesmo período
e de período para período, estejam atestadas, porque –
sendo reflexos de performances – apresentam-se como
igualmente legítimas:

(...) o objetivo final de propor esse esquema


[dos cinco períodos] é estabelecer as bases
para uma eventual edição multitexto de Ho-
mero, em relação à qual se deve esperar não
só que registre variantes, mas também que
as relacione, onde possível, a diferentes pe-
ríodos na história da transmissão textual.296

148
Vê-se, na obra de Nagy, além da base linguística e
do gosto pela sistematização teórica, a influência mui-
ta clara de Lord na vontade de privilegiar o tópico da
multiformidade produzida pela performance (em de-
trimento da busca do autor Homero), características
que o fazem deixar de lado uma investigação direta
do texto homérico: não há mais a necessidade de uma
reconstrução histórica.297 A proposta de uma “edição
multitexto” das epopeias, em que as variantes apare-
çam em pé de igualdade, talvez seja algo impossível
de se apresentar, mesmo eletronicamente, e pode ser
uma excessiva abstração da própria performance, que,
naturalmente, se resolvia sempre por um único texto.
De todo modo, a ideia dialoga com os princípios da
“Questão Homérica”, quando Wolf, diante das varia-
ções manuscritas, tentava buscar (conforme vimos)
um Homero menos “corrompido”, e sintetiza os avan-
ços trazidos pela crítica oral no século XX.
Se sobre Nagy a influência de Lord se dá mais em
termos da teorização geral, em Foley a ascendência se
percebe pela ênfase dada ao trabalho comparativo e
antropológico. Não por acaso, foi ele o responsável
por levar adiante as pesquisas sobre a poesia servo-
-croata.298 Foley defende basicamente um revisionismo
da teoria Parry-Lord, não só afastando-se da “Grande
Divisão” Oral x Escrito (em favor de um “espectro de
formas” ou “paleta variada”) e privilegiando o “idio-
ma” tradicional expressivo (em detrimento de marcas
textuais pré-definidas),299 mas, sobretudo, destacando
a importância da recepção e do que chamou de “re-
ferencialidade tradicional”. Sobre a recepção, diz ele:

149
Como então devemos ler por detrás dos sig-
nos tradicionais de Homero? Uma resposta
efetiva a esse formidável desafio depende de
reconhecermos que composição e recepção
são duas faces da mesma moeda, e que isso
por sua vez leva necessariamente ao enfoque
da dinâmica especial da linguagem ou modo
de falar de Homero (e de sua tradição). Ao
perseguir essa meta não devemos ter a ilusão
de que podemos assumir o papel da audiên-
cia original para a leitura desses e de outros
poemas, e na realidade tal meta talvez nem
seja desejável, uma vez que buscamos ler a
poesia homérica em e para nossa época, bem
como nos seus termos próprios.300

No entanto, Foley não descarta a necessidade de


adotarmos minimamente a perspectiva de quem esta-
va imerso na tradição, para assim podermos recuperar
as “ressonâncias” de uma arte que produz um cruza-
mento constante de referências:

O cerne da nossa investigação depende as-


sim da natureza da referencialidade nas obras
orais e tradicionais como um todo, e nos
textos homéricos em particular. (...) a arte
da poesia tradicional é uma arte imanente,
um processo de composição e recepção no
qual uma parte simples e concreta representa
uma realidade complexa e intangível. Pars
pro toto, a parte representando o todo (...)301

150
*

Nos últimos 50 anos, talvez a mais consisten-


te aplicação da crítica oralista à leitura aprofundada
e abrangente de Homero tenha sido aquela feita por
Bernard Fenik, que soube mostrar com sensibilidade
como o sistema formular tradicional estava a serviço,
na Ilíada e na Odisseia, de uma criação artística.302 Fe-
nik já publicara, em 1968, o livro Cenas típicas de ba-
talha na Ilíada [Typical battle scenes in the Iliad], mas
é na introdução à segunda parte do seu Estudos sobre a
Odisseia [Studies in the Odyssey], de 1974, que apare-
cem suas mais importantes reflexões. Aí ele reconhe-
ce que os oralistas “nos ensinaram a ler Homero com
novos olhos”, explicando e chamando a atenção para
várias características suas, compartilhadas por outras
poesias heroicas e mal-compreendidas pelo nosso en-
foque letrado. No entanto, diz ele, essas descobertas
foram de modo geral utilizadas “de maneira negativa”,
e “limites severos foram estabelecidos para as reações
subjetivas do leitor”.303 Para Fenik, era preciso que as
novas descobertas propiciassem uma leitura da poesia
homérica centrada não apenas nos mecanismos estri-
tos do estilo oral, mas também no uso que se faz deles
para a construção de seus inúmeros episódios, com
seus significados específicos.304 Em outras palavras,
tratava-se de abandonar o simples estudo da dicção e
o enfoque comparativo, com seus resultados abstratos
e dogmáticos, e ir para o texto e suas articulações se-
mânticas produtivas:

151
A poesia oral desde há muito diz: “Esta pas-
sagem não pode ser interpretada dessa e dessa
maneira, porque os resultados de nossas des-
cobertas tornam uma tal interpretação bas-
tante improvável”. É quase como começar a
dizer: “Esta passagem deve ser interpretada
da seguinte maneira, ela quer dizer o seguin-
te, porque as descobertas e os resultados dos
estudos da poesia oral sugerem fortemente
que o poeta estava compondo e pensando
segundo tais e tais princípios”. [Mas] A nova
escola não deve apenas fornecer diretrizes ge-
rais e estabelecer limites negativos; ela deve,
se é realmente frutuosa como parece, ser
capaz também de fornecer as bases de uma
interpretação positiva de determinadas pas-
sagens.305

Fenik acreditava que os paralelos com outras poe-


sias orais, embora tivessem seu valor, não serviam de
critério firme para a avaliação de Homero, porque a
qualidade e a sofisticação de sua poesia eram um caso
único. Isso o levou a se apoiar, num livro posterior, na
ideia então corrente de que Homero era um poeta per-
tencente a um período de transição da oralidade para
a escrita, alguém que transcendia a tradição anterior.
É interessante notar que esse livro, Homero e a Can-
ção dos Nibelungos [Homer and the Nibelungenlied], de
1986, consiste num trabalho comparativo que, de cer-
to modo, retoma a aproximação feita por Lachmann
na primeira metade do século XIX. A diferença radical

152
entre as duas abordagens, no entanto, fica evidente: se
o alemão buscava decompor a Ilíada em suas dezoito
canções primitivas, sem se dar conta do funcionamen-
to do modo de composição oral, o norte-americano,
por sua vez, pode agora se concentrar nas técnicas nar-
rativas, sem se preocupar com o problema da gênese.
A assunção de uma origem oral é a mesma, mas as
implicações disso para a abordagem são diametral-
mente opostas: Lachmann quer saber da formação do
poema, do seu caráter popular e coletivo; Fenik, dos
efeitos poéticos produzidos pela estruturação repetiti-
va, conduzida conscientemente pelas mãos do poeta.

NOTAS

1 Ainda assim, Homero recebeu pouca atenção até final do século


XVI, por causa do pouco conhecimento do grego antigo e a au-
sência de traduções para as línguas vernáculas. Ver John Myres,
Homer and his critics. London: Routledge & Kegan Paul, 1958,
p. 37-39, e Howard Clarke, Homer’s readers: a historical introduc-
tion to the Iliad and the Odyssey. Newark: University of Delaware
Press, 1981, p. 56-57.
2 Sigo aqui Joachim Latacz, que considera a “Questão Homérica”
um problema do especialista moderno que se reparte nas seguin-
tes questões principais: sobre a gênese; sobre a(s) autoria(s); e
sobre o(s) modo(s) de composição da Ilíada e da Odisseia. Ver seu
verbete “Homeric Question” em Brill’s New Pauly: encyclopaedia
of the ancient world – Classical Tradition. 5 vols. Leiden: Brill,
2006, vol. 2, p. 968.
3 Adam Parry menciona também esses três nomes, mas os discute
de maneira mais breve. Ver sua introdução em A. Parry (ed.),
The making of Homeric verse: the collected papers of Milman Parry.
Oxford: Oxford University Press, 1971, p. xii e seguintes.
4 Ver a edição crítica de Victor Magnien, de 1925 (Paris: Librairie
Hachette), e sua introdução, especialmente p. xviii e seguintes.

153
Sobre o abade, ver também H. Clarke, Homer’s readers: a histori-
cal introduction to the Iliad and the Odyssey, p. 150-155. Sobre
Dacier e La Motte, ver Noémi Hepp, Homère en France au XVII-
me siècle. Paris: Librairie C. Klincksieck, 1968, p. 629-688, e H.
Clarke, Homer’s readers: a historical introduction to the Iliad and
the Odyssey, p. 122-125.
 5 É J. Davison que atribui a demora na publicação a um possível
choque com o teor da obra. Ver seu “The Homeric Question” em
Alan Wace & Frank Stubbings, A companion to Homer. London:
Macmillan, p. 243. Mesmo sem a indicação, a autoria nunca foi
posta em dúvida. Ver V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjec-
tures académiques ou dissertation sur l’Iliade, p. xii e seguintes. Ver
ainda Giovanni Cerri, “Introduzione: breve storia della critica e
nuove prospettive” em A. Ercolani, Omero. Roma: Carocci Edi-
tore, 2006, p. 13-14.
  6 É interessante notar que o ano de 1715 marca também o início
da publicação da tradução da Ilíada por Alexander Pope, na qual
o poeta inglês ataca a visão francesa “moderna”, de exaltação da
arte virgiliana, em favor da força criadora – e por isso às vezes
imperfeita – de Homero.
  7 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou
dissertation sur l’Iliade p. 1-4. Não é porque Aristóteles elogia o
poeta em sua Poética que devemos segui-lo (diz o abade): suas
verdades não são infalíveis (ver p. 10-12).
  8 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou
dissertation sur l’Iliade, p. 33.
  9 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou
dissertation sur l’Iliade, p. 45-46; ver também p. 61.
10 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou
dissertation sur l’Iliade, p. 67.
11 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou
dissertation sur l’Iliade, p. 72.
12 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou
dissertation sur l’Iliade, p. 89.
13 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou
dissertation sur l’Iliade, p. 93-94.
14 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou
dissertation sur l’Iliade, p. 97 e p. 103-4.
15 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou
dissertation sur l’Iliade, p. 123-144.

154
16 P. 124.
17 O abade parecia não conhecer bem o grego, e se confunde em de-
terminados momentos. Ver V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac:
Conjectures académiques ou dissertation sur l’Iliade, p. xl, xli e 128-
129.
18 V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac: Conjectures académiques ou
dissertation sur l’Iliade, p. 40-1.
19 Segundo U. Wilamowitz, em seu julgamento sumário da obra
do abade, trata-se de “escritos extremamente confusos, que não
tiveram impacto algum sobre as opiniões de seu tempo”. Ver seu
History of classical scholarship. Translated by Alan Harry, with
introduction and notes by Hugh Lloyd-Jones. Baltimore: Johns
Hopkins University Press, 1982 (edição original: Geschichte der
Philologie, 1921, reeditada em 1998), p. 64.
20 Ver o que diz Luigi Ferreri em seu La Questione Omerica dal
Cinquecento al Settecento. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura,
2007, p. 152-3.
21 Para um detalhamento dos nomes, ver o citado livro de Luigi
Ferreri, que toma a Questão Homérica como sendo, basicamen-
te, o “problema da redação de Pisístrato” (p. 1), e a investiga
desde o século XVI até o XVIII, de modo exaustivo, incluindo
autores em geral ignorados. Ver também Rudolf Pfeiffer, History
of classical scholarship from 1300 to 1850. Oxford: The Claren-
don Press, 1976, especialmente parte I, II e III. Contemporâneo
do abade, o inglês Richard Bentley (1662-1742), por exemplo,
dizia que “esses cantos soltos [a Ilíada e a Odisseia] não foram
recolhidos na forma de poemas épicos até a época de Pisístrato,
mais de 500 anos depois” (citado no livro de Pfeiffer, p. 158).
22 L. Ferreri, La Questione Omerica dal Cinquecento al Settecento, p.
145 e seguintes.
23 Ver H. Clarke, Homer’s readers: a historical introduction to the
Iliad and the Odyssey, p. 117-118.
24 Sobre a importância de Vico, diz Wilamowitz: “na medida em
que o movimento Romântico provocou uma mudança de ênfase
– do indivíduo para o povo, da criação consciente para a marcha
impessoal da evolução, das mais altas realizações da cultura para
seus humildes primórdios –, foi Vico seu precursor, e graças a ele
religião e mito vêm a ser entendidos adequadamente pela primei-
ra vez”; ver seu History of classical scholarship, p. 100. Ver ainda

155
Giovanni Cerri, “Introduzione: breve storia della critica e nuove
prospettive” em A. Ercolani, Omero, p. 15-16.
25 Flávio Josefo é mencionado nas p. 71 e 85, e os Pisitrátidas, na p.
87. Utilizo a edição de Paolo Cristofolini, Giambattista Vico: La
discoverta del vero Omero, seguita dal Giudizio sopra Dante. Pisa:
Edizioni ETS, 2006.
26 P. Cristofolini (ed.), Giambattista Vico: La discoverta del vero
Omero, p. 71-79 e 85-7.
27 P. Cristofolini (ed.), Giambattista Vico: La discoverta del vero
Omero, p. 95.
28 P. Cristofolini (ed.), Giambattista Vico: La discoverta del vero
Omero, p. 97, e Sonia Lacerda, Metamorfoses de Homero: história
e antropologia na crítica setecentista da épica. Brasília: Editora da
UNB, 2003, p. 283.
29 P. Cristofolini (ed.), Giambattista Vico: La discoverta del vero
Omero, p. 99.
30 Ver discussão de Sonia Lacerda em Metamorfoses de Homero, p.
290-294.
31 Ver J. Myres, Homer and his critics, p. 59. Em seu livro encon-
tramos uma discussão aprofundada sobre Wood (p. 59-66). Para
uma ótima abordagem de uma obra importante, que prenuncia
em certa medida a de Wood – An enquiry into the life and wri-
tings of Homer (1763), de Thomas Blackwell –, ver a Parte II,
“Homero, personagem histórico” do livro de Sonia Lacerda, As
metamorfoses de Homero, p. 157-231.
32 Cito a partir da edição de 1775: Ver Robert Wood, An essay on
the original genius and writings of Homer. London: H. Hughs,
1775, p. v e ix.
33 Ver o que diz em seu livro na p. xiv.
34 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p.
248.
35 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p.
249.
36 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p.
278-279.
37 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p.
258.
38 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p.
276.

156
39 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p.
279.
40 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p.
281.
41 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p.
34.
42 Embora faça referência à “tradição oral”, na p. 259.
43 Wood faz menção à Querela (sem citar a obra do abade, que pro-
vavelmente desconhecia) quando trata dos costumes de Homero:
“Os nossos polidos vizinhos franceses parecem ficar muito ofen-
didos com certos retratos da simplicidade primitiva, tão distante
dos modos refinados da sociedade moderna, nos quais estão à
frente; e a isso podemos parcialmente atribuir o tratamento duro
que nosso Poeta recebeu da parte deles em fins do século passado
e início deste. Embora eu deva observar que, se nessa época en-
controu inimigos injustos e nada generosos, encontrou também
alguns amigos calorosos e respeitáveis”. Ver R. Wood, An essay on
the original genius and writings of Homer, p. 144 e nota “e”.
44 R. Wood, An essay on the original genius and writings of Homer, p.
143-180.
45 Sobre sua importância, ver U. Wilamowitz, History of classical
scholarship, p. 82.
46 São eles Aristonico (I a.C.), Didimo (I a.C.), Nicanor (I d.C.) e
Herodiano (II d.C.). No códice, ao final da maioria dos cantos,
informa-se que o comentário marginal deriva das obras desses
quatro (daí a alcunha “Comentário dos Quatro Homens”).
47 Citado por Anthony Grafton na sua introdução à edição norte-
-americana do livro de Wolf. Ver Anthony Grafton, Glenn Most
& James Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer. Prince-
ton: Princeton University Press, 1985, p. 7-8. O texto original é
em latim. Como no caso de Wolf, faço aqui a tradução a partir
da versão para o inglês a cargo dos três editores.
48 Villoison publicou não só o texto da Ilíada do Venetus A, com
seus escólios, mas também os escólios – considerados menos im-
portantes – de outro manuscrito da biblioteca de Veneza (cha-
mado “Venetus B”), que também trazia o poema na íntegra. Para
mais detalhes sobre o Venetus A e sua história, ver Casey Dué
(ed.), Recapturing an Homeric legacy: images and insights from the
Venetus A manuscript of the Iliad. Washington: Center for Hel-
lenic Studies, 2009.

157
49 Ver A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena
to Homer, p. 12.
50 Ver em português os livros de Pedro Süssekind, Shakespeare: o gê-
nio original (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008), e de Már-
cio Suzuki, O gênio romântico (São Paulo, Iluminuras, 1998).
51 Ver L. Ferreri, La Questione Omerica dal Cinquecento al Settecen-
to, p. 208-10.
52 Ver J. Myres, Homer and his critics, p. 78-83.
53 Veja-se a mais recente edição brasileira, com tradução de Christi-
ne Röhrig e apresentação de Marcus Mazzari (2 vols. São Paulo:
CosacNaify, 2011).
54 Ver o que diz U. Wilamowitz, History of classical scholarship, p.
102. Heyne foi muito influenciado por Johann Winckelmann,
autor de uma História da arte antiga (Geschichte der Kunst des
Alterthums, 1764) e, segundo Pefeiffer, o “iniciador do neo-he-
lenismo” (ver History of classical scholarship from 1300 to 1850,
p. 167-172). Sobre Winckelmann, ver os ensaios de Márcio Se-
ligmann-Silva, “‘Como um raio fixo’. Goethe e Winckelmann: o
Classicismo e suas aporias” e “A formação da Alemanha a partir
da Grécia: Winckelmann e F. Schlegel”, ambos em O local da
diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução (São
Paulo: Editora 34, 2005).
55 Sobre a influência decisiva sobre Wolf, ver A. Grafton, G. Most
& J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to Homer, p. 18-26.
56 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 17.
57 Ver Casey Dué (ed.), Recapturing an Homeric legacy: images and
insights from the Venetus A manuscript of the Iliad, p. 28.
58 O título original do projeto era Homeri opera omnia ex recensione
F.A. Wolfii, com o subtítulo Prolegomena ad Homerum siue de
operum Homericorum prisca et genuina forma variisque mutationi-
bus et propabili ratione emendandi. Ver o que diz Hermann Funke
no verbete “F. A. Wolf ” em Ward Briggs & William Calder III
(ed.), Classical scholarship: a biographical encyclopedia. New York:
Garland Publishing, 1990, p. 523-528. O livro de Wolf teve uma
segunda edição em 1876, a cargo de I. Bekker, e uma terceira em
1884, por R. Peppmüller (reimpressa em 1963). Além da tradu-
ção para o inglês que utilizo aqui, há uma versão de H. Muchau
para o alemão, de 1908.

158
59 Ver A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegome-
na to Homer, p. 57-58, com as notas dos editores, e p. 219. Ver
também J. Myres, Homer and his critics, p. 75.
60 Como diz J. Latacz, “(...) embora os componentes individuais
fossem bem conhecidos, seu sistema era inteiramente novo, não
apenas no conteúdo, mas também na metodologia”; ver seu “Ho-
meric Question” em Brill’s New Pauly: encyclopaedia of the ancient
world – Classical Tradition, vol. 2, p. 972.
61 Luigi Ferreri insiste nesse tópico da paternidade; ver La Questione
Omerica dal Cinquecento al Settecento, p. 287-290. Dentro do
espírito polêmico e nacionalista, ver também Victor Bérard, Un
mensonge de la science allemande. Paris: Librairie Hachette, 1917.
62 Notado por Milman Parry; ver A. Parry (ed.), The making of Ho-
meric verse, p. xvi, n. 2.
63 Ver Frank Turner, com o capítulo “The Homeric Question” em
Ian Morris & Barry Powell, A new companion to Homer. Leiden:
Brill, 1999, p. 125.
64 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 43-49.
65 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 51.
66 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 53. Ver também o que diz John Sandys, A short history
of classical scholarship, from the sixth century b.C. to the present day.
Cambridge: Cambridge University Press, 1915, p. 306-307, que
chama atenção para o fato de que aquelas edições de Homero
haviam por essa época se esgotado.
67 Segundo R. Pfeiffer, “nenhuma palavra é mais enfatizada nos
Prolegomena do que a frequentemente repetida ‘historia’ [em la-
tim]” e “o permanente valor de seu trabalho residia no espírito
crítico e na investigação histórica, com a conexão essencial entre
ambos”; ver seu History of classical scholarship from 1300 to 1850,
p. 174 e 175.
68 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 57-58. A indicação da correspondência entre as etapas
e os capítulos dos livros é de minha autoria.
69 A redação é interrompida logo após falar brevemente sobre a ati-
vidade de Crates de Malo, contemporâneo de Aristarco (início
do século II a.C).

159
70 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 69-70.
71 Do Capítulo 12 ao 35.
72 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 71-74.
73 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 75-91.
74 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena
to Homer, p. 92-93. Os versos dizem o seguinte, na tradução de
Frederico Lourenço (repare-se na tradução tendenciosa do verbo
grápho, que pode ter aí apenas o sentido de “registrar”, e não o de
“escrever”): “Mandou-o para a Lícia; e deu-lhe para levar sinais
ominosos,/ escrevendo muitos e mortíferos numa tabuinha de
aba dupla”. Wolf volta à carga nas p. 95-100, discutindo também
Il. 7, 175-176, onde se lê (também na tradução de Frederico
Lourenço): “Assim falou; e cada um marcou a sua sorte e deita-
ram-nas/ para dentro do elmo do Atrida Agamênon”.
75 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 94, nota 38. No trecho imediatamente anterior, Flávio
Josefo fala da tradição preservada por escrito entre egípcios, cal-
deus e fenícios, contrapondo-os aos gregos, que eram vítimas de
“dez mil” destruições, perdendo a memória das ações passadas e
começando sempre de novo. O trecho alude claramente à conhe-
cida passagem do início do Timeu de Platão, em que se narra o
diálogo entre Sólon e um egípcio (20e-26e).
76 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 94-95.
77 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 103.
78 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 104-110.
79 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 111.
80 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 114.
81 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. p. 145 e nota “a”.
82 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 115.

160
83 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 122.
84 Ver notas à página 117 e 124. Sobre se Wolf de fato teve acesso
a essa obra, ver discussão de V. Magnien (ed.), Abbé d’Aubignac:
Conjectures académiques ou dissertation sur l’Iliade.
85 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 131.
86 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 137 (grifo original).
87 Apresentados por Wolf nas p. 137-8, nota 5, onde cita ainda
outras fontes, como Libânio, o Suda, Eustácio e as “vidas” de
Homero, todas elas derivadas dessa mesma tradição de atribuição
a Pisístrato.
88 Wolf cita ainda um extenso escólio à obra de Dionísio Trácio
(II d.C.), Gramáticos gregos (3.29.17-30.17), segundo o qual aci-
dentes naturais destruíram e desmembraram os poemas, e que
Pisístrato se propôs a dar recompensas para os que lhe trouxes-
sem versos de Homero. Reunidos os versos, o tirano montou
uma comissão de 72 gramáticos para ordenar os poemas, tendo
se destacado na tarefa Aristarco e Zenódoto! A citação é só por
“diversão”, diz Wolf, por causa dos dados fantasiosos e anacrô-
nicos. No entanto, em sua visão, quem sabe “a diferença entre
fábula e história” reconhece “a história por detrás da fábula”. Ver
A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 140-141.
89 Apresentados por Wolf, respectivamente, nas p. 143, nota 15; p.
144, nota 16; e p. 135, nota 4.
90 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. p. 144.
91 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 142.
92 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 127.
93 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 148. Henry Browne chama atenção para o fato de que
o próprio Wolf lidava mal com esse “rebaixamento” de Homero:
“Ele [Wolf ] ficou tão conhecido como o destruidor da antiga
crença em Homero que é difícil perceber como evitou causar
estragos a esse venerável nome. Na realidade, toda a sua mente

161
se revoltou contra as conclusões que os fatos, tais quais se apre-
sentavam, o obrigavam a aceitar”; ver H. Browne, Handbook of
Homeric study. London: Longmans, Green & Co, 1905, p. 145.
Browne chega a citar (na p. 146) um trecho do prefácio de Wolf
a sua edição da Ilíada, onde este diz que, diante do “colorido
uno” dos poemas, “dificilmente alguém poderia sentir mais ódio
e indignação contra mim do que eu mesmo sinto”.
 94 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 155.
 95 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 167.
 96 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 173-181.
 97 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 182-186.
 98 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to,
p. 188.
 99 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 216.
100 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 158.
101 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 190.
102 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 204.
103 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 209.
104 D. Monro (ed.), Homer: Iliad. 2 vols. Oxford: The Clarendon
Press, 1884/1888, vol. 1, p. xxiv e xxv.
105 Ver F. Turner, “The Homeric Question” em I. Morris & B. Pow-
ell (ed.), A new companion to Homer, p. 128-131.
106 D. Monro (ed.), Homer: Iliad, vol. 1, p. xxiii.
107 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 123.
108 Problemas apontados por D. Monro, Homer: Iliad, p. xxv.
109 Como viu J. Myres, Homer and his critics, p. 87-8, e também
John Scott, The unity of Homer. New York: Biblo & Tannen,
1921, p. 65.
110 J. Myres, Homer and his critics, p. 87.
111 J. Scott, The unity of Homer, p. 57.

162
112 A expressão é de Giovanni Cerri, “Introduzione: breve storia
della critica e nuove prospettive” em A. Ercolani, Omero, p. 18.
113 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. xviii.
114 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 27.
115 J. Latacz, “Homeric Question” em Brill’s New Pauly: encyclopae-
dia of the ancient world – Classical Tradition, vol. 2, p. 977.
116 F. Turner, “The Homeric Question” em I. Morris & B. Powell
(ed.), A new companion to Homer, p. 131.
117 H. Clarke, Homer’s readers: a historical introduction to the Iliad
and the Odyssey, p. 161.
118 Alguns autores usam para os analistas também o termo “sepa-
ratistas” ou “separatistas modernos” (por exemplo, M. Nilsson
e J. Scott). É bom esclarecer que os “separatistas” (khorízontes)
antigos não faziam a “análise” das epopeias, mas simplesmen-
te propunham autores diferentes para a Ilíada e a Odisseia, que
eram assim “separadas” uma da outra.
119 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 117.
120 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 127.
121 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 128-9 e 132.
122 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 134.
123 A carreira de Wolf em Halle foi interrompida, em outubro de
1806, com a invasão francesa à cidade e o fechamento da uni-
versidade. Ele permaneceu os dezessete anos seguinte em Berlim,
sem produzir muito; ver John Sandys, A short history of classical
scholarship, from the sixth century b.C. to the present day, p. 309-
310.
124 Citado por J. Scott, The unity of Homer, p. 75.
125 Ver E. Schmidt, “Gottfried Hermann” em Ward Briggs & Wil-
liam Calder III (ed.), Classical scholarship: a biographical encyclo-
pedia, p. 160-175.
126 A expressão é de Wilamowitz (History of classical scholarship, p.
110).
127 Ver R. Pfeiffer, History of classical scholarship from 1300 to 1850,
p. 179. Hermann notou, por exemplo, que o hexâmetro homéri-

163
co evita que uma palavra termine no “quarto troqueu”, para que
assim não se gere uma possível pausa, que abalaria o andamento
rítmico do verso. Essa “regra” ficou conhecida como “ponte de
Hermann”.
128 Os textos menores de Hermann saíram reunidos recentemente
em Godofredi Hermanni opuscula. 8 vols. Cambridge: Cambrid-
ge University Press, 2010. O sobre as interpolações em Homero
encontra-se no vol. 5, e o sobre as repetições, no vol. 8. A seu
respeito, ver ainda John Sandys, A short history of classical scholar-
ship, from the sixth century b.C. to the present day, p. 321-323.
129 D. Monro (ed.), Homer: Iliad, vol. 1, p. xxviii e xxix, J. Myres,
Homer and his critics, p. 89-90, e F. Turner, “The Homeric Ques-
tion” em I. Morris & B. Powell (ed.), A new companion to Homer,
p. 134.
130 Ver o que fala dele Wolfhart Unte no verbete “Karl Lachamnn”
em Ward Briggs & William Calder III (ed.), Classical scholarship:
a biographical encyclopedia, p. 248-259.
131 Citado pelo também analista W. Leaf (ed.), Homer: the Iliad. 2
vols. Cambridge: Cambridge University Press, 2010, vol. 1, p.
1-2, com as justificativas basicamente se referindo a inconsistên-
cias na sequência narrativa.
132 Citado por Monro, p. xxx. Ver também J. Myres, Homer and his
critics, p. 91.
133 O empenho que Lachmann demonstrou em relação à crítica tex-
tual, com o cotejamento de manuscritos e a remoção de supostos
erros e interpolações (ele ainda publicou uma edição do Novo
Testamento, em grego e latim, e se dedicou largamente aos autores
latinos, com destaque para Lucrécio), fez surgir a expressão “o
método Lachmann”; ver a esse respeito Sebastiano Timpanaro,
The Genesis of Lachmann’s method. Translated by Glenn Most.
Chicago: The University of Chicago Press, 2005 (edição original
italiana: 1963). Wilamowitz (History of classical scholarship, p.
132) fala do efeito “paralisante” de sua personalidade. Sobre ele,
ver também John Sandys, A short history of classical scholarship,
from the sixth century b.C. to the present day, p. 335-336.
134 D. Monro (ed.), Homer: Iliad, vol. 1, p. xxx-xxxii, J. Myres,
Homer and his critics, p. 90-1, M. Nilsson, Homer and Mycenae,
p. 12, e F. Turner, “The Homeric Question” em I. Morris & B.
Powell (ed.), A new companion to Homer, p. 131-3.

164
135 M. Nilsson, Homer and Mycenae. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 1933, p. 12.
136 D. Monro (ed.), Homer: Iliad, vol. 1, p. xxxiii-xxxiv, e F. Turner,
“The Homeric Question” em I. Morris & B. Powell (ed.), A new
companion to Homer, p. 133-4.
137 Sobre Nitzsch, ver ainda H. Browne, Handbook of Homeric study,
p. 148-151.
138 A obra monumental seria traduzida na íntegra, não muito tempo
depois, para o francês e o alemão. Os 12 volumes foram recen-
temente reeditados (G. Grote, A history of Greece. Cambridge:
Cambridge University Press, 2009-2010). O volume 2 saiu em
2010. Para um ferfil de Grote, ver John Vaio, “George Grote” em
Ward Briggs & William Calder III (ed.), Classical scholarship: a
biographical encyclopedia, p. 119-126.
139 G. Grote, A history of Greece, vol. 2, p. 159-277.
140 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. xvii.
141 Sobre Grote, ver ainda H. Browne, Handbook of Homeric study,
p. 150-152.
142 J. Myres, Homer and his critics, p. 199.
143 M. Croiset, Histoire de la litterature grecque. Paris: Librairie Tho-
rin & Fils, 1896, p. 165
144 M. Croiset, Histoire de la litterature grecque, p. 103 e 163-163.
145 M. Croiset, Histoire de la litterature grecque, p. 260-1.
146 Monro cita George Grote em D. Monro (ed.), Homer: Iliad, vol.
1, p. 328 e 339.
147 O comentário Ameis-Hentze da Ilíada (Homers Ilias) saiu entre
1868 e 1886; o da Odisseia (Homers Odyssee) saiu antes, entre
1856 e 1868. Ambos os comentários receberem, depois, a contri-
buição de Paul Cauer, sendo reeditados entre 1905-1922 (Ilíada)
e 1908-1920 (Odisseia).
148 W. Leaf (ed.), Homer: the Iliad, vol. 1, p. xxi.
149 W. Leaf (ed.), Homer: the Iliad, vol. 1, p. xxi.
150 W. Leaf (ed.), Homer: the Iliad, vol. 1, p. xxi e xxii.
151 W. Leaf (ed.), Homer: the Iliad, vol. 1, p. xxii e xxiii.
152 Ver M. Nilsson, Homer and Mycenae, p. 13; J. Davison, “The
Homeric Question” em Alan Wace & Frank Stubbings, A com-
panion to Homer, p. 250 (de onde retirei a explicação detalhada);
J. Myres, Homer and his critics, p. 93; e F. Turner, “The Homeric
Question” em I. Morris & B. Powell (ed.), A new companion to

165
Homer, p. 137. Ver também Alfred Heubeck em A. Heubeck
et alii, A commentary on Homer’s Odyssey. 3 vols. Oxford: The
Clarendon Press (1988-1993), vol. 1, p. 4-5. Para uma tabela
com a hipótese de Kirchhoff sobre as diferentes redações, ver H.
Browne, Handbook of Homeric study, p. 163.
153 J. Davison, “The Homeric Question” em Alan Wace & Frank
Stubbings, A companion to Homer, p. 250.
154 Robert Fowler, “Ulrich von Wilamowitz-Moellendorf ” em
Ward Briggs & William Calder III (ed.), Classical scholarship: a
biographical encyclopedia, p. 489-522 (citação: p. 489). Fowler o
chama de “maior helenista dos tempos modernos” e no verbete
adota um tom predominantemente apologético. Sobre Wilamo-
witz, ver também a introdução de Hugh Lloyd-Jones para a tra-
dução de History of classical scholarship, p. v-xxxii, especialmente
p. xiv-xvii, e H. Clarke, Homer’s readers: a historical introduction
to the Iliad and the Odyssey, p. 164-165.
155 J. Davison, “The Homeric Question” em Alan Wace & Frank
Stubbings, A companion to Homer, p. 252.
156 Note-se como, quando redige sua história da filologia, em 1921
(portanto, já no final de sua carreira), Wilamowitz a abre assim:
“(...) a tarefa da filologia é trazer esse mundo morto [a civilização
greco-romana] de volta à vida através do poder da ciência”; ver
seu History of classical scholarship, p. 1. Ver o que diz R. Fowler,
“Ulrich von Wilamowitz-Moellendorf ” em Ward Briggs & Wil-
liam Calder III (ed.), Classical scholarship: a biographical encyclo-
pedia, p. 505.
157 M. Nilsson, Homer and Mycenae, p. 17. Ver também M. Bowra,
Tradition and design in the Iliad. Oxford: The Clarendon Press,
1930, p. 104-5.
158 Para um excelente apanhado dos problemas levantados pelos
analistas, canto a canto, ver H. Clarke, Homer’s readers: a histori-
cal introduction to the Iliad and the Odyssey, p. 166-182 (Ilíada) e
183-203 (Odisseia).
159 Ver G. Murray, The rise of the Greek epic. New York: Oxford Uni-
versity Press, 1907, p. 144. O germe dessa visão já estava no seu
A history of Ancient Greek literature, de 1897; ver Robert Fowler,
“Gilbert Murray” em Ward Briggs & William Calder III (ed.),
Classical scholarship: a biographical encyclopedia, p. 321-334, e
também Giovanni Cerri, “Introduzione: breve storia della critica
e nuove prospettive” em A. Ercolani, Omero, p. 24-25.

166
160 Ver o que diz Roger Dawe, “D.L.Page” em Ward Briggs & Wil-
liam Calder III (ed.), Classical scholarship: a biographical encyclo-
pedia, p. 353-360.
161 “(...) não se pode dizer que chegamos enfim a uma solução con-
sensual, ou que estamos perto de chegar”; M. Croiset, “La ques-
tion homérique au début du XXme siècle” em Revue des deux
mondes 41 (1907): 600-625, p. 601.
162 V. Bérard, Introduction a l’ Odyssée. 3 vols. Paris: Les Belles
Lettres, 1924-1925, vol. 1, p. 343-380. Antes, em 1903, Bérard
já publicara uma investigação em dois volumes sobre as origens
da Odisseia (obra comentada, aliás, por Croiset no artigo citado
na nota acima): Les phéniciens et l’Odyssée. Paris: Librairie Ar-
mand Colin, 1902/1903.
163 P. Mazon, Introduction a l’ Iliade. Paris: Les Belles Lettres, 1942,
p. 137-257.
164 R. Aubreton, Introdução a Homero. São Paulo: Difusão Europeia
do Livro/Editora da Universidade de São Paulo, 1968, p. 61.
Em relação à “Questão Homérica”, ver especialmente p. 29-64 e
331-349.
165 M. Nilsson, Homer and Mycenae, p. 16, e Scott, The unity of
Homer, p.80.
166 Sobre Bethe e Schwartz, ver H. Clarke, Homer’s readers: a histori-
cal introduction to the Iliad and the Odyssey, p. 163-164.
167 Sobre os trabalhos de Merkelbach e von der Mühll, ver F. Com-
bellack, “Contemporary Homeric scholarship – I”, The classi-
cal weekly 49/2 (1955): 17-26, p. 21-24, onde faz também uma
apreciação da contribuição de Mazon.
168 É o caso das obras de Herbert Bannert e Peter Roth, publicadas,
respectivamente, em 1988 e 1989, ambas voltadas para um enfo-
que datado das repetições homéricas. Ver a resenha de Malcolm
Willcock em The classical review 40/2 (1990): 207-210.
169 B. Fenik, Studies in the Odyssey. Wiesbaden: Franz Steiner Verlag,
1974, p. 134, nota 5. Ver também p. 141. Segundo F. Combella-
ck, à medida que ia se enfraquecendo, a teoria analítica adotava
um tom “defensivo e quase apologético”; ver seu “Contempora-
ry Homeric scholarship – I”, p. 27.
170 F. Combellack, “Contemporary Homeric scholarship – I”, p. 24.
171 Ver o que diz a respeito dessa premissa analítica C. Pavese, “The
rhapsodic epic poems as oral and independent poems”, Harvard
studies in classical philology 98 (1998): 63-90, p. 65.

167
172 A força dessa tradição alemã daria origem, no século XX, ao mo-
numental léxico iniciado por Bruno Snell, Lexikon des fruehgrie-
chischen Epos, cujo primeiro tomo saiu em 1955, e o vigésimo
quinto – e último –, em 2010.
173 Citado por J. Scott, The unity of Homer, p. 78-79.
174 J. Scott, The unity of Homer, p. 67 e 102.
175 A. Lord, The singer of tales. Cambridge (Mass.): Harvard Univer-
sity Press, 1960, p. 10-1.
176 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 142.
177 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 134.
178 Ver o que diz A. Grafton em R. Lamberton (ed.), Homer’s ancient
readers: the hermeneutics of Greek epic’s earliest exegetes. Princeton:
Princeton University Press, 1992, p. 161-162.
179 J. Scott, The unity of Homer, p. 137.
180 J. Scott, The unity of Homer, p. 78.
181 A. Grafton, G. Most & J. Zetzel (ed.), F.A. Wolf: Prolegomena to
Homer, p. 3. Ver também John Sandys, A short history of classical
scholarship, from the sixth century b.C. to the present day, p. 307.
182 Citado por J. Scott, The unity of Homer, p. 73-4. Ver ainda
John Sandys, A short history of classical scholarship, from the sixth
century b.C. to the present day, p. 311-313, J. Latacz, “Homeric
Question” em Brill’s New Pauly: encyclopaedia of the ancient world
– Classical Tradition, vol. 2, p. 979-982, e H. Clarke, Homer’s
readers: a historical introduction to the Iliad and the Odyssey, p.
158-159. Para se ter uma ideia da mudança de posição de Goe-
the, ver W. Goethe & F. Schiller, Correspondência. Tradução de
Claudia Cavalcanti; São Paulo: Hedra, 2010, especialmente as
cartas de 19 e 28 de abril de 1797, e 12 e 16 de maio de 1798
(mais críticas), época em que planejava redigir uma “Aquileida”
e já havia publicado o épico em 12 cantos Hermann e Doroteia.
Em 1797, Goethe e Schiller compuseram a “xênia”, ou dístico
epigramático, “O Homero wolfiano”, com a seguinte apreciação:
“Com impiedosa crítica tiraste a vida do poeta,/ mas imortal,
graças a ti, vive o rejuvenescido poema.” Já de 1821 é o poema
“Homero novamente Homero”: “Através de vossa sutil ciência/
nos livrastes de qualquer reverência/ e admitimos com toda co-
ragem:/ a Ilíada não passa de colagem. // Mas nossa recusa a
ninguém difama,/ pois é a juventude que nos inflama:/ pensar
que ele é um todo preferimos,/ como um todo alegremente o

168
sentimos.” (As traduções do alemão são de Vicente de Arruda
Sampaio.)
183 J. Myres, Homer and his critics, p. 216-7.
184 Ver o que diz Cedric Whitman, Homer and the heroic tradition.
New York: W.W. Norton&Company, 1958, p. viii.
185 A. Wace, “The history of Homeric archeology” em Alan Wace &
Frank Stubbings, A companion to Homer, p. 325.
186 Ver a seu respeito o verbete redigido por David Traill em Ward
Briggs & William Calder III (ed.), Classical scholarship: a bio-
graphical encyclopedia, p. 424-446.
187 G. Murray, The rise of the Greek epic, p. 195.
188 J. Myres, Homer and his critics, p. 150.
189 M. Nilsson, Homer and Mycenae, p. 19-20.
190 M. Nilsson, Homer and Mycenae, p. 206. Essa mesma visão pre-
domina no A companion to Homer editado por A. Wace e F. Stub-
bings em 1962.
191 A. Snodgrass, “An historical Homeric society?”, Journal of Hel-
lenic studies 94 (1974): 114-125; I. Morris, “The use and abuse
of Homer”, Classical antiquity 5 (1986): 81-138.
192 A decifração foi feita por J. Chadwick e M. Ventris e publicada
em 1954. As duas inscrições mais antigas em escrita alfabética,
datadas do século VIII a.C., são as do vaso de Dípilon, desco-
berto em Atenas em 1871, e a da chamada Taça de Nestor, com
inscrição em hexâmetros, encontrada na ilha italiana de Ísquia,
em 1954.
193 F. Turner, “The Homeric Question” em I. Morris & B. Powell
(ed.), A new companion to Homer, p. 139.
194 Álvaro Lins, Os mortos de sobrecasaca. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1963, p. 58.
195 G. Cerri, “Teoria dell’ oralità e analisi stratigrafica del texto ome-
rico: Il concetto di ‘poema tradizionale’”, Quaderni Urbinati de
cultura classica 70/1 (2002): 7-34, p. 19.
196 Para uma obra unitarista de um discípulo de Pasquali, ver o li-
vro em que Benedetto Marzullo discute as questões relativas a
Homero a partir do Canto 6 da Odisseia: Il problema omerico.
Milano: Riccardo Ricciardi Editore, 1952 (2ª. ed.: 1970).
197 J. Scott, The unity of Homer, p. 127 e 133.
198 J. Scott, The unity of Homer, p. 197.
199 S. Bassett, The poetry of Homer. Lanham: Lexington Books,
1938 (2a. ed.: 2003), p. 18-19.

169
200 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 133, nota 1.
201 Drerup é o propositor da divisão da recitação em partes, 18 para
a Ilíada e 15 para a Odisseia; ver A. Ercolani, Omero, p. 153.
202 F. Combellack, “Contemporary Homeric scholarship – II”, The
classical weekly 49/3 (1955): 29-44, p. 29.
203 Ver H. Clarke, Homer’s readers: a historical introduction to the
Iliad and the Odyssey, p. 182-186 e 282.
204 Schadewaldt também traduziu para o alemão a Odisseia (1958)
e a Ilíada (1975). Sobre ele, ver H. Flashar, “Wolfgang Schade-
waldt” em Ward Briggs & William Calder III (ed.), Classical
scholarship: a biographical encyclopedia, p. 419-423. Para uma
apresentação do trabalho de Reinhardt, ver o capítulo “Karl Re-
inhardt” em Hugh Lloyd-Jones, Blood for the ghosts: classical infl-
luences in the nineteenth and twentieth centuries. London: Duck-
worth, 1982, p. 238-250.
205 F. Turner, “The Homeric Question” em I. Morris & B. Powell
(ed.), A new companion to Homer, p. 140.
206 Lloyd-Jones fala do “frescor e vivacidade” do livro, que o tornam
leitura agradável ainda hoje; ver “Maurice Bowra” em H. Lloyd-
-Jones, Blood for the ghosts: classical inflluences in the nineteenth
and twentieth centuries, p. 271-286 (citação: p. 276).
207 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. vii e viii. Ver tam-
bém reafirmação dessa ideia à p. 67.
208 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 1.
209 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 9.
210 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 43, 46 e 48.
211 J. Scott, The unity of Homer, p. 153-4.
212 J. Scott, The unity of Homer, p. 155-6.
213 J. Scott, The unity of Homer, p. 140.
214 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 98-9.
215 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 113.
216 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 87, 88, 90 e 95.
J. Scott já havia dedicado um artigo, de 1911 (“Repeated ver-
ses in Homer”, The American journal of philology 32/3 (1911):
313-321), a mostrar que as repetições – não dentro de cada po-
ema, mas entre eles – se devem não a uma questão de imitação
(da Ilíada pela Odisseia), mas ao uso de uma tradição poética
comum.
217 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 92-3 e 96.

170
218 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 50-2. O uso do
verbo “escrever” (write) tendo Homero como sujeito é frequente
na obra.
219 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 51 e 251.
220 A. Murray, Homer: The Iliad. 2 vols. Cambridge (Mass.): Har-
vard University Press, vol. 1, p. xii.
221 G. Murray, The rise of the Greek epic, p. xiii.
222 A classificação é de G. Murray, The rise of the Greek epic, p. vii,
xvii e xxi.
223 G. Murray, The rise of the Greek epic, p. vii.
224 J. Scott, The unity of Homer, p. 76-81, e J. Davison, “The Ho-
meric Question” em Alan Wace & Frank Stubbings, A compan-
ion to Homer, p. 254. J. Myres, em Homer and his critics, p. 210-
4, explica que Mülder, discípulo de Kirchhoff e Wilamowitz,
buscou “fazer o método analítico voltar-se contra si mesmo”,
embora nunca o tenha abandonado totalmente.
225 M. Nilsson, Homer and Mycenae, p. 14.
226 F. Combellack, “Contemporary Unitarians and Homeric origi-
nality”, American journal of philology 71/4 (1950): 337-364, p.
337-338.
227 F. Combellack, “Contemporary Unitarians and Homeric origi-
nality”, p. 341 e 353-354.
228 F. Combellack, “Contemporary Unitarians and Homeric origi-
nality”, p. 355-356.
229 F. Combellack, “Contemporary Unitarians and Homeric origi-
nality”, p. 359.
230 Ver Casey Dué & Mary Abbott, Iliad 10 and the poetics of am-
bush. Washington: Center for Hellenic Studies, 2010, p. 8-9 e
23, que desfazem, com seus comentários esclarecedores, esse lon-
go equívoco.
231 A. Heubeck et alii, A commentary on Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 7.
232 J. Scott, The unity of Homer, p. 135.
233 A. Wace, “The history of Homeric archeology” em Alan Wace &
Frank Stubbings, A companion to Homer, p. 329.
234 J. Davison, “The Homeric Question” em Alan Wace & Frank
Stubbings, A companion to Homer, p. 253; J. Myres, Homer and
his critics, p. 200-1; e M. Nilsson, Homer and Mycenae, p. 20.
235 W. Leaf, Homer and history. London: Macmillan, 1915, p. 3.

171
236 M. Nilsson, Homer and Mycenae, p. 1-2. Para um resumo das
posições, ver também p. 7-8.
237 J. Latacz, “Homeric Question” em Brill’s New Pauly: encyclopae-
dia of the ancient world – Classical Tradition, vol. 2, p. 973.
238 A. Lord, The singer of tales, p. 151.
239 Para uma comparação sucinta, ver F. Combellack, “Contempo-
rary Homeric scholarship – I”, p. 20.
240 Segundo Adam Parry, a “controvérsia unitarista-analista” se tor-
nou “obsoleta”; ver A. Parry (ed.), The making of Homeric verse,
p. li. Veja-se também o que diz o próprio Milman Parry sobre a
limitação das correntes (The making of Homeric verse, p. 268).
241 J. Kakridis, Homeric researches. Lund: C.W.K. Gleerup, 1949.
Para o uso da nova designação, “neoanálise”, “neoanalista” e
“novo tipo de análise”, ver “Introdução”, p. 2, 7, 8 e 9. A obra
original, em grego moderno, era de 1944, mas os textos já vinha
sendo trabalhados desde a década de 30.
242 J. Kakridis, Homeric researches, p. 2-7.
243 J. Kakridis, Homeric researches, p. 8 (grifo original).
244 J. Kakridis, Homeric researches, p. 8-9 (grifo original).
245 Depois incorporado ao já citado livro Von Homers Welt und Werk.
246 W. Kullmann, “Oral poetry theory and neoanalyses in Homeric
research”, Greek, Roman & Byzantine studies 25 (1984): 307-323;
J. Burgess, The tradition of the Trojan War in Homer and the Epic
Cycle (2001) e The death and afterlife of Achilles (2009). Para um
apanhado da neoanálise até a década de 90, ver M. Willcock,
“Neoanalysis” em B. Powell & I. Morris (eds.), A new companion
to Homer, p. 174-189.
247 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 339.
248 Ver informações na abertura do artigo de 1928 Murko, “The
singers and their epic songs”, publicado em Oral tradition 5/1
(1990): 107-130.
249 M.Murko, “The singers and their epic songs”, p. 118.
250 Para as diferenças entre a tradição cristã e a muçulmana, ver John
Foley, “Traditional history in Southslavic oral epic” em David
Konstan & Kurt Raaflaub (ed.), Epic and history. West Sussex:
Wiley-Blackwell, 2010, p. 347-361.
251 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 378.
252 “Whole formulaic verses in Greek and Southslavic heroic song”
em A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 376-390.

172
253 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 377-8. O livro
de Jousse é citado também na p. 270 como “valiosa tentativa
de estabelecer as bases psicológicas do estilo poético oral”. Sobre
Jousse, ver o artigo de Edgard Sienaert, “Marcel Jousse: the oral
style and the anthropology of gesture”, Oral tradition 5/1 (1990):
91-106, especialmente p. 93. O antropólogo Lucien Lévy-Bruhl,
com seus estudos sobre a “mentalidade primitiva”, foi influên-
cia importante sobre Jousse; ver Thérèse de Vet, “Parry in Paris:
strcuturalism, historical linguistics, and oral theory”, Classical
antiquity 24/1 (2005): 257-284, p. 272.
254 M. Parry, “Cor Huso: a study of Southslavic song – extracts” em
A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 440 (grifo origi-
nal).
255 Ver A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, respectivamente
p. 322, 450-1 e 418.
256 Parece-me equivocado afirmar que o trabalho de Parry também
era de natureza comparativa, como diz G. Nagy no prefácio da
segunda edição, de 2000, p. xvii. Talvez ele pudesse se encami-
nhar nessa direção, mas o fato é que a parte mais importante de
sua obra é voltada para a análise estilística de Homero, e não para
a atividade da comparação.
257 The singer of tales. Cambridge (Mass.): Harvard University Press,
1960; “Homer and other epic poetry” em Alan Wace & Frank
Stubbings, A companion to Homer, p. 179-214.
258 John Foley, Homer’s traditional art. University Park: Pennsylvania
State University Press, 1999, p. 37.
259 Ver por exemplo A. Lord, The singer of tales, p. 133.
260 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 334.
261 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 404-7.
262 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 446.
263 A. Lord, The singer of tales, p. 68.
264 A. Lord, “Homer’s Originality: Oral Dictated Texts,” Transac-
tions of the American philological association 94 (1953): 124-134.
265 A. Lord, The singer of tales, p. 124 e 137.
266 A. Lord, The singer of tales, p. 129.
267 A. Lord, The singer of tales, p. p. 134, 141 e 147.
268 A. Lord, The singer of tales, p. 124.
269 A. Lord, The singer of tales, p. 128.
270 A. Lord, The singer of tales, p. 149.

173
271 A. Lord, The singer of tales, p. 149.
272 A. Lord, The singer of tales, p. 152-7.
273 A. Lord, The singer of tales, p. v.
274 A. Lord, The singer of tales, p. 144 e 65.
275 Ver artigo de R. Janko, “The Homeric poems as oral dictated
texts”, The classical quarterly 48/1 (1998): 1-13, p. 2-3. Num
deles, The singer resumes the tales, de 1995, Lord admite uma
fase “transicional” na passagem da cultura ágrafa para a letrada,
mas, como indica Giovanni Cerri, trata-se mais “de tentativa de
‘salvar’ a velha teoria do que um reformulação substancial”; ver
seu “Teoria dell’ oralità e analisi stratigrafica del texto omerico: Il
concetto di ‘poema tradizionale’”, p. 20, nota 22.
276 Ver, respectivamente, os artigos “Homer and heroic Cretan po-
etry”, Transactions of the American Philological Association 73/3
(1952): 225-250, e “The Homeric Hymns as oral poetry”, Amer-
ican journal of philology 83/4 (1962): 337-368.
277 É o que diz James Holoka em “Homer, oral poetry, and com-
parative literature: major trends and controversies in twentieth
century criticism” em J. Latacz (ed.), Zweinhundert Jahre Homer-
Forschung. Stuttgart: B. G. Teubner, 1991, p. 466.
278 J. Notopoulos, “Parataxis in Homer: a new approach to Homeric
literary criticism” em Irene De Jong (ed.), Homer: critical assess-
ments. 4 vols. New York: Routledge, 1999, vol. 4, p. 94. Ver o
que diz dele E.J. Bakker, “Introduction: Homer and oral poetry
research”, em Irene De Jong (ed.), Homer: critical assessments,
vol. 1, p. 170.
279 J. Notopoulos, “Parataxis in Homer: a new approach to Homeric
literary criticism” em Irene De Jong (ed.), Homer: critical assess-
ments, vol. 4, p. 104.
280 Cito-a a partir de sua versão reduzida, G. Kirk, Homer and the
epic. A shortened version of The songs of Homer. Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1965.
281 G. Kirk, Homer and the epic. A shortened version of The songs of
Homer, p. 27-9.
282 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 445.
283 G. Kirk, Homer and the epic. A shortened version of The songs of
Homer, p. 19-27.
284 G. Kirk, Homer and the epic. A shortened version of The songs of
Homer, p. 30.

174
285 A. Parry, “Have we Homer’s Iliad?” em John Wright (ed.), Essays
on the Iliad. p. 25.
286 A. Parry, “Have we Homer’s Iliad?” em John Wright (ed.), Essays
on the Iliad. p. 27.
287 Ver B. Hainsworth, “The criticism of an oral Homer” em John
Wright (ed.), Essays on the Iliad. Bloomington: Indiana Univer-
sity Press, 1978, especialmente p. 30 e 40.
288 Ver R. Janko, “The Homeric poems as oral dictated texts”, p. 11.
289 Ver o que diz Minna Skafte-Jensen, The Homeric Question and
the oral-formulaic theory. Copenhagen: Museum Tusculanum
Press, 1980, p. 25.
290 Ver, além do livro, seu artigo “The how of literature”, Oral tradi-
tion 20/2 (2005): 164-187.
291 P. Zumthor, A letra e a voz: a “literatura” medieval. Trad. de
Amália Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. S. Paulo: Cia. das Letras,
1993, p.21 e 191-3, nas quais critica a teoria Parry-Lord.
292 A teoria reaparece em artigos e outros livros, mas preferimos ci-
tar esse, não só porque é onde surge pela primeira vez, mas pela
apresentação mais direta.
293 G. Nagy, Poetry as performance: Homer and beyond. Cambridge:
Cambridge University Press, 1996, p. 109-110.
294 G. Nagy, Poetry as performance: Homer and beyond, p. 112.
295 G. Nagy, Poetry as performance: Homer and beyond, p. 113.
296 G. Nagy, Poetry as performance: Homer and beyond, p. 113. Goi-
vanni Cerri levanta a possibilidade de uma dívida não reconhe-
cida, da parte de Nagy, em relação à obra de Bruno Gentili, que
já propunha, em seu clássico Poesia e pubblico nella Grecia antica:
da Omero al V secolo (1984), a necessidade de uma “edótica do
texto oral”, que resultasse numa apresentação “aberta” e de “lei-
tura ativa” (4ª. ed.: 2006; ver p. 343-344); ver G. Cerri, “Teoria
dell’ oralità e analisi stratigrafica del texto omerico: Il concetto di
‘poema tradizionale’”, p. 20-21 e nota 24.
297 Ver o que diz a esse respeito Giovanni Cerri, “Introduzione: bre-
ve storia della critica e nuove prospettive” em A. Ercolani, Ome-
ro, p. 22.
298 Foley, que faleceu em 2012, ainda criou, em 1986, uma revis-
ta eletrônica importante, Poesia Oral [Oral poetry], que reúne as
mais variadas investigações nesse campo.
299 J. Foley, Homer’s traditional art, p. 16-7.

175
300 J. Foley, Homer’s traditional art, p. 18.
301 J. Foley, Homer’s traditional art, p. 18.
302 Mark Edwards também tem contribuído com uma série de ar-
tigos sobre construção típica em Homero, como “Introduções
aos discursos homéricos” [“Homeric speech introductions”],
de 1970, “Convenção e individualidade no Canto 1 da Ilíada”
[“Convention and individuality in Iliad 1”], de 1980, e “Home-
ro e a tradição oral: a cena-típica” [“Homer and oral tradition:
the type-scene”], de 1992; ver, respectivamente, em Harvard
studies in classical philology 74 (1970): 1-36; Harvard studies in
classical philology 84 (1980): 1-28; e Oral tradition 7/2 (1992):
284-330. Ver ainda seu capítulo “Homeric style and ‘oral poet-
ics’” em B. Powell & I. Morris (eds.), A new companion to Homer,
p. 261-283, e os artigos “Homer and Oral Tradition: the formula
– Part I” (1986), Oral tradition 1: 171-230, e “Homer and Oral
Tradition: the formula – Part II” (1988), Oral tradition 3: 11-60.
303 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 136-138.
304 Giovanni Cerri já chamou atenção para o fato de que, numa
comparação com os estudos de Dante – igualmente abrangentes
e rigorosos –, os de Homero pecam pela falta de uma “verdadeira
interpretação”, para a qual os estudos técnicos deveriam servir
de preparação; ver sua “Introduzione: breve storia della critica e
nuove prospettive” em A. Ercolani, Omero, p. 27.
305 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 139.

176
(B) A DEMONSTRAÇÃO DE PARRY

É curioso notar que o trabalho com maior impacto


sobre os estudos da poesia homérica tenha se
dedicado a um problema localizado da dicção épi-
ca, a repetição da locução epíteto + nome (próprio ou
comum). Ainda que Milman Parry depois tenha leva-
do suas reflexões para o campo externo da comparação e
da antropologia, e só a partir daí a teoria oral tenha se
disseminado, o fato é que a parte mais representativa, o
cerne de sua obra, continua sendo O epíteto tradicional
em Homero, sua tese de 1928, na qual submete deter-
minado aspecto do estilo homérico a um levantamento
minucioso, para assim chegar a conclusões gerais de im-
portância capital. Os artigos que escreveu posteriormente,
as viagens que realizou para pesquisar a oralidade servo-
-croata, em 1933 e 1934-35 – todos esses passos seguintes,
até sua morte abrupta em 1935, serviram apenas para
iluminar e reforçar os apontamentos iniciais contidos em
seu doutorado.306
O seu enfoque era, de certo modo, inédito. Quando
Parry começou a se dedicar aos estudos da poesia homé-
rica, no início da década de 20, a refrega entre analistas
e unitaristas continuava bem viva, mas ganhava (como
vimos) nova feição, com estes últimos passando a se impor
sobre os antigos partidários da dissecação. Isso não signifi-
cava, no entanto, uma posição radicalmente diferente: se
na superfície ambas as correntes se contrapunham – uma
enfatizando a criação múltipla no tempo e a outra a ati-
vidade unificadora do gênio –, no fundo partilhavam do
mesmo preconceito letrado, segundo o qual existe sempre
um texto original, que opera conforme os parâmetros da
criação escrita. Mais do que isso, os dois lados não par-
tiam de um exame minucioso da dicção de Homero para
chegar a suas conclusões: o movimento, ao contrário do
desejável, era de fora para dentro.
Essa forma de abordagem teve pouca influência
direta sobre Parry – e é interessante perceber como ele
não perde tempo com a típica discussão de época, algo
inescapável para a maioria dos homeristas de então. Das
duas correntes, no entanto, a analista foi a mais decisiva
em suas formulações: foram os estudos sobre a língua e o
hexâmetro homéricos, desenvolvidos sobretudo em língua
alemã no século XIX e início do XX, animados pela lin-
guística histórica e orientados pela dissecação, que indica-
ram a Parry o caminho a seguir para entender certo nível
de significado na épica de Homero.
As reflexões sobre o progresso das línguas humanas
não eram, naturalmente, novidade: no século XVIII já
tinham surgido representantes ilustres, como Jean-Jacques
Rousseau, com seu póstumo Ensaio sobre a origem das

178
línguas [Essai sur l’origine des langues], de 1781, e o
alemão Johann Herder, com seu Tratado sobre a origem
da linguagem [Abhandlung über den Ursprung der
Sprache], de 1772; o próprio Vico, citado anteriormen-
te aqui, tomou a evolução da linguagem como elemento
central em sua Ciência Nova, na primeira metade desse
mesmo século. O século XIX, por sua vez, vira surgir a
linguística comparativa e os estudos do indo-europeu, que
atestavam a vontade de se investigar a “vida” das línguas
clássicas e estabelecer analogias e raízes comuns entre elas.
No âmbito específico do grego antigo, o inglês Richard
Bentley, que viveu na virada do século XVII para o XVIII
(1662-1742), conseguira dar uma dimensão diacrôni-
ca ao idioma ao chamar a atenção para a presença de
um som original – correspondente a um “u” semiconso-
nantal, e chamado “vau” (do fenício) ou digama, com
representação gráfica pela letra “F” –, que foi deixando,
progressivamente de ser pronunciado, mas é perceptível
em Homero ao se escandir seus versos.307
No entanto, os quatro nomes fundamentais para
Parry são os de estudiosos de Homero: Heinrich Düntzer,
August Fick, Kurt Witte e Karl Meister. Düntzer, com
suas Pesquisas homéricas [Homerische Abhandlun-
gen], de 1872, já mostrara que a escolha dos epítetos em
Homero (entre outros elementos) era determinada pela
extensão métrica, e não pelo sentido; Fick, por sua vez,
para justificar a mistura dialetal, tentara defender, de
uma perspectiva histórica, a passagem de um Homero eó-
lico para um Homero jônico (sua Ilíada eólica saiu em
1886, e sua Odisseia, três anos antes); num verbete de
1913 para a enciclopédia Pauly-Wissowa, Witte, por

179
sua vez, descartara essa transição, afirmando que “a lín-
gua dos poemas homéricos é uma criação do verso épico”;
e, em 1921, Meister já falava, no título de seu livro, Die
homerische Kunstsprache, sobre a “língua artificial ho-
mérica”.308
Ao mesmo tempo, depois do mapeamento exaustivo
das repetições homéricas feito pelos analistas do Dezeno-
ve, com suas concordâncias e índices, sempre com o in-
tuito de determinar o que era original e o que era cópia,
o caráter “formular” da tradição épica – mesmo que in-
compreendido – já estava bem assente, com o termo “fór-
mula” tendo sido empregado, por exemplo, pelo linguista
francês Antoine Meillet (1866-1936) em seu As origens
indo-europeias dos metros gregos [Les origines indo-
-européennes des mètres grecs], de 1923.
É nesse contexto de investigação linguística que Parry
insere seu trabalho, mas dando a ele outra perspectiva,
que privilegia o olhar sincrônico e analógico, o que revela
uma influência – ainda que indireta – do estruturalismo
de Ferdinand de Saussure (1857-1913) (é bom lembrar
que Parry permaneceu por quatro anos na França, onde
realizou seu doutoramento, e que Meillet, seguidor de
Saussure, estava na sua banca).309 Por outro lado, junto
com isso havia ainda a permanência de um romantismo
primitivista, que queria aplicar a Homero o famigerado
método histórico, para assim conseguir descobrir o signifi-
cado de um estilo que era diverso do nosso: é precisamente
com esse espírito que Parry cita Ernest Renan, filólogo e
filósofo, no início de sua tese (ele mesmo, depois, faria
uma palestra sobre “O método histórico na crítica lite-
rária”).310

180
7.

O EPÍTETO TRADICIONAL

Q uando Milman Parry concluiu em 1923 sua dis-


sertação de mestrado pela Universidade da Ca-
lifórnia, sob a orientação de George Calhoun, com o
título Um estudo comparativo da dicção como um dos
elementos de estilo na épica grega arcaica [A comparative
study of diction as one of the elements of style in Early
Greek epic poetry], ficou patente sua percepção aguda
do texto homérico. Como afirma Adam Parry, nota-se
imediatamente

que o impulso inicial de seu trabalho não


eram os insights e as teorias sugestivas de es-
tudiosos anteriores, mas o texto de Homero
em si. (...)
É a partir de uma percepção estética da
qualidade do verso homérico que toda a
dissertação se desenvolve. Aquilo de que
Parry fala mais tarde como sendo o “método
histórico”, isto é, a tentativa de explicar
o produto específico de uma época pelas
condições únicas de vida nessa mesma época,
é algo necessário a esse desenvolvimento.
Mas o dado primeiro é a experiência que o
leitor tem do estilo do poema.311

De fato, o trabalho não cita nenhuma bibliografia.


Trata-se, na realidade, de um texto de apenas quinze
páginas, preocupado em apontar “limites de forma” na
épica homérica, a necessidade de nela se seguir “certas
linhas muito bem definidas”; em outras palavras, o
objetivo era mostrar “sua tradicional, quase formular
qualidade, seu uso regular, de um modo determinado,
de certas palavras e frases”, o que fazia com que essa
épica “diferisse diametralmente da poesia moderna,
que dá tanto valor à individualidade e ao estilo úni-
co”.312 O leitor nota, durante a leitura, a presença –
ainda sem demonstração rigorosa – dos elementos que
depois se tornariam peças-chave: tabulação de dados,
comparação com outros autores, a ênfase dada à tradi-
ção, e a busca do significado da linguagem tradicional,
ou, para empregar suas palavras, “os méritos desse tipo
de arte”.313 Parry já fala abertamente em “adjetivos
ornamentais”, “uso ditado pela conveniência métrica”,
desconectado da situação narrativa, “moldura do he-
xâmetro” – e até mesmo em “poesia oral”, ideia que só
seria claramente desenvolvida, como sabemos, depois
de sua tese de doutorado.314 Por trás da abordagem,
ressaltam dois elementos que depois desapareceriam
em seu tratamento de Homero: de um lado, a ênfase

182
dada ao caráter estético (como apontado acima por
seu filho), a partir do paralelismo com a escultura,
também convencional e tradicional, e, de outro, o uso
recorrente da noção de raça; os dois aparecem combi-
nados neste trecho:

As palavras que eram escolhidas para preen-


cher [o hexâmetro] eram aquelas que ge-
rações de poetas e audiências tinham sele-
cionado como capazes de produzir o mais
alto efeito artístico, como as mais belas e
apropriadas ao assunto. O fato de que todo
poeta épico as empregasse não é motivo para
menoscabo: nesse caso a raça era o artista, e
o artista satisfazia uma necessidade artística,
e fazia dessa necessidade uma oportunidade
para uma beleza extraordinária.315

Quando se passa para seu doutorado, percebe-se


imediatamente que a questão ganhou outra dimen-
são: “Saber que o estilo de Homero é tradicional não
é suficiente: devemos saber, ainda, que palavras, que
expressões, que partes da dicção, lhe dão sua feição
própria”, diz ele no prefácio.316 Parry agora está cla-
ramente emprenhado em demonstrar aquilo que já
havia intuído em seu mestrado. As formas artificiais
produzidas pelo hexâmetro homérico (com sua mis-
tura de dialetos e morfologia sui generis) – estudadas
a fundo pelos filólogos do século anterior – deram a
ele a pista necessária para resolver o problema de estilo
com que se deparava:

183
Estabelecer na Ilíada e na Odisseia a existên-
cia de uma língua artificial é provar que o
estilo homérico, na medida em que faz uso
de elementos dessa língua, é tradicional.
Pois a feição própria dessa língua revela que
é uma obra que está além da capacidade de
um homem só, ou mesmo de uma só geração
de poetas; sabemos, consequentemente, que
estamos na presença de um elemento estilís-
tico que é produto de uma tradição.317

É esse mesmo método que Parry quer aplicar


agora à dicção épica, para “descobrir por que Home-
ro escolhe certas palavras, certas formas, certas cons-
truções para expressar seu pensamento”. Antecipan-
do suas conclusões, ele afirma, na “Introdução”, que
essa tradicionalidade fica comprovada quando se
percebe a presença de um sistema, “caracterizado,
simultaneamente, por uma grande extensão e por
uma grande simplicidade”.318 Com isso, temos uma
estrutura complexa e dinâmica, cuja elaboração só
pode ser efetuada de forma demorada, ao longo do
tempo.
Segundo Parry, o reconhecimento, em sua época,
de que Homero trabalhava com fórmulas derivadas de
um repositório comum a que todos os poetas épicos
podiam recorrer – como defendiam Rothe, Shewan e
Scott, rebatendo os analistas, preocupados em encon-
trar o que era original e o que era secundário –, esse
reconhecimento consistia numa “conclusão puramen-
te negativa”, porque não vinha acompanhado de uma

184
análise exaustiva dessa característica.319 É essa lacuna
que Parry quer preencher, com

uma compreensão completa do fato de que


essa dicção, na medida em que é feita de
fórmulas, está inteiramente condicionada
pela influência do metro. Sabemos que o ele-
mento não jônico em Homero só pode ser
explicado pela influência do hexâmetro; da
mesma forma, a dicção formular, da qual o
elemento não jônico é parte, foi criada pela
vontade dos bardos de terem à mão palavras
e expressões que pudessem facilmente entrar
no verso heroico. Os poetas épicos molda-
ram e preservaram no decurso de gerações
uma técnica complexa de fórmulas, uma
técnica elaborada em seus mínimos detalhes
com um duplo propósito, de expressar ideias
apropriadas à épica de maneira adequada, e
atenuar as dificuldades da versificação.320

Ainda na “Introdução”, Parry começa a fornecer


exemplos do funcionamento das fórmulas, com os
quais quer apontar, preliminarmente, “a imensa com-
plexidade do problema do estilo tradicional”, que faz
uso de uma técnica com “um grau de desenvolvimen-
to que nunca estaremos em posição de compreender
perfeitamente”.321 Diante disso, o estudioso afirma
que pretende restringir sua análise ao uso do epíte-
to, entendido, em Homero, como um qualificativo de
um substantivo próprio ou comum, podendo no en-

185
tanto ser esse qualificativo um outro substantivo (por
exemplo, “rei”, basileús) ou uma expressão composta
(por exemplo, “bom de grito”, boèn agathós).322 Para
Parry, há duas vantagens nessa escolha: as estruturas
com epíteto são mais simples e seus resultados po-
dem ser estendidos, por analogia, a outras partes do
discurso, permitindo que se determine até onde vai a
formularidade em Homero; e – o que, na sua visão, é
ainda mais relevante – o epíteto traz para o primeiro
plano uma questão semântica: a distinção entre aquele
que chama de “particularizado”, porque diretamente
ligado à ação imediata, e aquele denominado “orna-
mental” (ou “fixo”), porque sem relação com a frase
ou passagem em que ocorre. As consequências disso
não escaparam a Parry:

(...) essa distinção semântica nos conduz a


um juízo mais certeiro acerca do caráter tra-
dicional do estilo homérico como um todo
(...). A razão disso é que, ao sermos força-
dos a reconhecer o caráter do epíteto fixo em
Homero, caráter que o distingue de qual-
quer epíteto presente na obra de um poeta
que emprega o estilo individual, vemo-nos
às voltas com uma concepção de estilo intei-
ramente nova. Somos forçados a criar uma
estética do estilo tradicional.323

A passagem, como se vê, estabelece a divisão estri-


ta entre estilo individual e estilo tradicional, tão cara
a Parry e a seus sucessores. Essa divisão, por sua vez,

186
pode induzir à “falsa impressão” – diz Parry – de que,
no emprego do epíteto num estilo tradicional, estamos
diante de um “processo mecânico”, em que o peso da
conveniência métrica simplesmente anula o elemen-
to de subjetividade. Esse equívoco decorre do fato de
que, pelo epíteto, “mais talvez do que por qualquer
outro aspecto do estilo, julgamos o gênio de um autor,
sua originalidade, a riqueza de seu pensamento”.324 É
precisamente por essa razão que ele surge para Parry
como elemento ideal – não para que Homero tenha
sua “honra” diminuída, mas para que seu estilo seja
abordado segundo seus próprios termos.
Nos dois capítulos seguintes à “Introdução”, Parry
vai se dedicar a uma comprovação exaustiva (num total
de quase 100 páginas) do sistema formular homérico:
ele começa por mostrar a diferença no seu uso do epí-
teto em comparação com as Argonáuticas de Apolônio
de Rodes e a Eneida de Virgílio (nos quais há também
utilidade métrica, mas não um sistema); passa pela
apresentação dos epítetos (de nomes de deuses e he-
róis, principalmente, e ainda de povos e países, naus,
cavalos, raça humana, escudos), revelando o uso exten-
sivo e simples/econômico (isto é, com poucas sobre-
posições métricas), e fazendo a distinção entre epíteto
fixo genérico (como “divino”, dîos, aplicável a vários
heróis) e epíteto fixo distintivo (como “puro”, phoîbos,
aplicável apenas a Apolo), esta última categoria mais
frequente em relação aos deuses; e toca, finalmente, na
questão fundamental da analogia, “talvez o fator mais
importante a ser dominado por nós, se queremos che-
gar a uma compreensão de fato da dicção homérica”.325

187
É a analogia que responde pela criação de novas
expressões, por meio da modificação simples e fácil
– quando não está envolvida (adverte Parry) uma
complexidade de ideias – de expressões já existentes.
É a ela que se deve o surgimento de fórmulas equiva-
lentes, as quais, embora a princípio pareçam invalidar
o princípio da economia e funcionalidade (já que o
cantor teria à disposição duas formas metricamente
iguais para dizer a mesma ideia), acabam antes por
atestá-lo.326 Como diz o norte-americano, no último
capítulo da tese, em que trata unicamente dessas so-
breposições:

Uma grande quantidade de fórmulas subs-


tantivo-epíteto equivalentes derivam na-
turalmente daquela operação de analogia
que, como já vimos, é o fator dominante
no desenvolvimento da dicção homérica do
começo ao fim. Foi pela associação mental
de diferentes grupos de palavras que os bar-
dos elaboraram toda a sua técnica de dicção,
criando uma palavra, forma ou expressão to-
mando como modelo uma palavra, forma ou
expressão já existentes, compondo uma frase
ou período tomando como modelo outra
frase ou período. Essa operação de analogia,
cujo poder está atestado em cada artifício
da dicção épica, é forte demais para se in-
terromper depois de ter criado uma fórmula
metricamente única.327

188
É importante destacar que, ao logo da demons-
tração, apoiada em tabelas, quadros e muitos números,
Parry manifesta mais de uma vez, como já manifestara
na “Introdução”, a impossibilidade de se fazer um
levantamento total da dicção formular. Para ele, tentar
mostrar todas as maneiras pelas quais as fórmulas
de uma certa categoria são empregadas levaria a um
“labirinto sem fim de investigação”,328 porque

a dicção homérica, mesmo no âmbito das


fórmulas substantivo-epíteto, continua sen-
do algo tão complexo, a ponto de colocar
uma análise definitiva de sua técnica além de
nossas forças.329

Segundo Parry, nosso acesso a um número re-


duzido de versos (já que grande parte da épica arcai-
ca se perdeu) impõe um limite severo ao estudo da
técnica formular, de tal forma que nem a escassez de
uma fórmula prova que ela não é tradicional, nem a
ausência de repetição indica que não se trata de uma
fórmula.330 Além disso, diz ele, à medida que ideias
mais complexas vão sendo enunciadas, torna-se maior
o desafio da comprovação de sua formularidade.331
De todo modo, em sua “tese menor”, As fórmulas e
a métrica de Homero, apresentada juntamente com O
epíteto tradicional, e na qual trata de irregularidades do
metro épico, Parry é capaz de dizer, mesmo admitindo
que não se pode afirmar categoricamente que a dicção
homérica é toda formular:

189
(...) devemos renunciar à pretensão de uma
análise completa da dicção homérica. Pode-
mos dizer que uma larga porção dessa dicção
é tradicional e formular, e que toda ela talvez
o seja também. No estágio atual de conheci-
mento, uma conclusão mais categórica nos
é negada.332

Se a demonstração corresponde ao núcleo “duro”


da tese, é no entanto seu Capítulo 4, “O significa-
do do epíteto na poesia épica”, de leitura mais fácil
e prazerosa, que traz as principais consequências para
a abordagem de Homero, porque aí Parry reafirma a
distinção fundamental entre dicção tradicional e estilo
individual (ainda não desenvolvida na oposição entre
oral e escrito). Diz ele:

No nosso estudo dos vários recursos que os


epítetos fixos tornam possíveis, a facilidade
de versificação que proporcionam ao poeta
apareceu como único fator a determinar seu
uso. Alguns dentre aqueles que conhecem
bem Homero ficarão descontentes com este
procedimento. Para eles parecerá inconcebí-
vel que o poeta não tenha se guiado em me-
dida alguma, em sua escolha do epíteto fixo,
pelo efeito que poderia produzir em seu con-
texto particular. Nem quererão eles admitir
que o poeta não escolheu o conjunto de epí-
tetos aplicáveis a um dado herói por razões
relativas ao seu caráter ou papel no poema.333

190
Parry toma como exemplo as linhas iniciais tanto
da Ilíada quanto da Odisseia para mostrar o equívoco
de aplicarmos nossa sensibilidade à épica antiga. Esse
problema de leitura, como ele aponta, já era discutido
pelos alexandrinos, especialmente Aristarco: nos casos
em que o epíteto não recebe um emprego particulari-
zado, comum, contextualizado (prós ti, na expressão
dos gramáticos), mas é utilizado de maneira ilógica ou
inapropriada (akaíros), a explicação consistia em ale-
gar que o uso era ornamental (kósmou khárin), relativo
não à circunstância, mas a uma condição geral ou na-
tural, ou mesmo irônico. Aparentemente, a posição de
Aristarco nesses casos não resultava em condenação ou
correção do texto (como fazia seu antecessor, Zenó-
doto), o que torna sua atividade crítica digna de lou-
vor, diz Parry. No entanto, ele não explicava adequa-
damente porque Homero usava, sistematicamente, o
epíteto de uma forma que nenhum poeta alexandrino
o teria feito, nem qual a razão do emprego do epíteto
fixo não apenas em situações a princípio inapropria-
das, mas também naquelas em que ele não entra em
choque com o contexto direto.334
Foi o analista Heinrich Düntzer quem mostrou,
no ensaio “Sobre a interpretação dos epítetos fixos em
Homero”, contido no já citado Pesquisas homéricas, de
1872, que os epítetos fixos atendiam a necessidades
métricas e não tinham qualquer relação semântica
com a frase, o que representou, segundo Parry, “o mais
importante passo desde Aristarco” para a compreensão
do problema. Düntzer, porém, fez um levantamento
pequeno, sem tomar consciência da extensão do sis-

191
tema formular e do processo de criação por analogia,
o que facilitou os ataques a sua visão, centrados prin-
cipalmente na presença de forma equivalentes, que o
próprio autor de língua alemã reconhecia como sendo
incompatíveis com sua teoria.335
A contribuição de Parry, como vimos, foi preci-
samente demonstrar a existência de um sistema com-
plexo, no qual a presença do epíteto com caráter pu-
ramente ornamental explicava-se pelo fato de ser uma
criação da tradição:

Os usos ilógicos do epíteto e seu emprego


segundo o valor métrico são apenas provas
de que o epíteto fixo não pode ser particu-
larizado. Mas as razões que determinam sua
natureza ornamental devem ser buscadas em
outra parte: o epíteto fixo é ornamental porque
é tradicional.336

Em que consiste esse caráter ornamental? De


acordo com Parry, o epíteto nesses casos confere “um
elemento de nobreza e grandeza, mas não mais que
isso”,337 adornando desse modo o verso, o poema e
toda a poesia heroica.338 Tal como os nossos poetas
podem empregar a rima apenas com vistas a facilitar
a versificação – afirma Parry, numa analogia livre –,
assim também os aedos adotavam os adjetivos fixos
em favor da rapidez e do embelezamento do estilo ho-
mérico, sem se preocupar com a “palavra justa”.339 As
implicações disso são muito claras: não se pode derivar
um sentido especial do emprego desses epítetos. Parry

192
não deixa espaço para a leitura mais subjetiva, como é
possível perceber em três diferentes passagens do mes-
mo capítulo:

Somos assim levados a concluir que nenhu-


ma fórmula substantivo-epíteto que com
certeza faça parte de um sistema tradicional
de fórmulas substantivo-epíteto pode conter
um epíteto cujo significado seja particulari-
zado. E essa conclusão deve ser categórica,
não deve admitir nenhuma exceção.340

Aqueles que tentam encontrar em Homero


a profundidade e a finesse que admiram na
arte contemporânea terminam por denegrir
o habitual para louvar o excepcional.

A verdade é que as provas já apresentadas


não permitem qualquer exceção. Elas todas
dão testemunho de uma indiferença tão for-
te e tão habitual por parte da audiência em
relação a qualquer possível significado parti-
cularizado, que não há como ser contornada,
por mais perfeitamente que a ideia do epíte-
to se ajuste ao sentido da frase.341

Depois de tudo que aprendemos a respeito


do sentido ornamental do epíteto homérico,
devemos reconhecer o princípio segundo o
qual um epíteto usado numa dada fórmula
substantivo-epíteto não poder ser ora orna-

193
mental, ora particularizado: ele deve ser sem-
pre ou uma coisa ou outra.342

Apesar do tom peremptório, Parry faz, ao longo


do capítulo, uma discussão pormenorizada dos pro-
blemas concernentes ao sentido do epíteto, chaman-
do atenção, inclusive, para as expressões cujo caráter
ornamental não pode ser determinado com certeza,
pela falta de exemplos suficientes.343 De todo modo,
permanece como herança sua a visão de que há um
“esvaziamento” (da nossa perspectiva) na utilização
de tais adjetivos, que jamais podem ser minimamente
transformados segundo o contexto.
Num artigo publicado no mesmo ano de 1928,
em inglês, intitulado “A glosa homérica: um estudo de
semântica lexical” [The Homeric gloss: a study in word-
-sense], Parry investiga a presença de arcaísmos na Ilía-
da e na Odisseia, termos estranhos ou obsoletos (que
os antigos chamavam de “glosa”) que aparecem, na
maioria das vezes, na função de epítetos – por exem-
plo, os qualificativos aplicados a Hermes diáktoros e
argeiphóntes, de debatida explicação. A argumentação
específica a respeito desse problema permite que ele
retome, no fim, suas conclusões gerais sobre o valor do
adjetivo fixo. Vale a pena citar na íntegra a passagem,
porque resume de maneira feliz seu pensamento:

O sentido característico do epíteto orna-


mental difere profundamente daquele das
palavras que levam adiante o movimento
do poema; porque o epíteto ornamental não

194
tem uma existência independente. Ele for-
ma uma coisa só com seu substantivo, com
o qual se fundiu através do uso repetido, e a
fórmula substantivo-epíteto resultante cons-
titui uma unidade de pensamento que dife-
re daquela do simples substantivo somente
por ter, acrescida, uma qualidade de nobreza
épica. O significado, portanto, do epíteto
fixo tem uma importância reduzida: ele é
empregado pelo poeta sem que este lhe dê
atenção, e percebido da mesma maneira pelo
que o ouve; trata-se de uma palavra familiar
em que a mente não precisa se deter, uma
vez que sua ideia não tem nenhum impacto
sobre a ideia da frase. É essa circunstância
da indiferença, por parte de quem ouve, em
relação à significação do epíteto que explica
como o poeta frequentemente o usa de modo
irracional (phaeinèn... selénen, “brilhante...
lua”, Il. 8, 555, amúmonos Aigísthoio, “iliba-
do Egisto”, Od. 1, 29); como ele se permite
usá-lo sem variação sob certas circunstâncias
(o hemistíquio do tipo tòn d’ emeíbet’ épeita,
“e respondeu-lhe em seguida”, em 251 de
254 casos, é completado por uma fórmula
substantivo-epíteto que preenche o resto do
verso); como pode usá-lo de modo despro-
porcional com certos substantivos em certos
casos gramaticais (Odisseu é dîos, “divino”,
99 vezes no nominativo, e apenas uma vez
num caso oblíquo); como o poeta pode usar

195
repetidamente epítetos de conotação vaga
(daíphron, “experiente”, megáthumos, “mag-
nânimo”); e, finalmente, no caso do presente
problema, como pode empregar na função
de epítetos palavras que são compreendidas
apenas por associações mais ou menos dis-
tantes com outros termos, e às quais ele é
frequentemente forçado a atribuir um signi-
ficado bastante remoto em relação ao fluxo
central do seu pensamento.344

Nos anos seguintes, o trabalho de Parry se de-


senvolveu de modo rápido, encaminhando-se em di-
reção aos estudos da oralidade e à comparação. Ou-
tros tópicos vieram a ser abordados por ele (como o
uso do digama, o cavalgamento, as metáforas, o es-
tilo oral, a poesia servo-croata), e depois retomados
e desdobrados por seus seguidores, como vimos em
capítulo anterior. Contudo, o valor do epíteto e sua
(im)possibilidade de significação – junto com o uso
de outras construções recorrentes – tornaram-se um
ponto central no debate sobre o modo como devemos
estabelecer a recepção de Homero. A abordagem do
norte-americano, centrada exclusivamente no texto,
deixava de ver que outros fatores poderiam tornar a
fórmula funcional, em determinadas circunstâncias,
também significativa.

196
8.

A FÓRMULA SIGNIFICATIVA

O estudo da fórmula não foi esgotado por Mil-


man Parry. A despeito de seus discípulos diretos
(como Albert Lord e James Notopoulos) não terem
se voltado para essa questão, ela permaneceu como
um ponto importante, que merecia uma investigação
que aprofundasse ainda mais o esforço já hercúleo do
norte-americano. Os trabalhos mais relevantes, con-
tudo, só começaram a aparecer na década de 60, com
os livros de Arie Hoekstra, Modificações homéricas de
protótipos formulares [Homeric modifications of formu-
laic prototypes], de 1965, e Bryan Hainsworth, A fle-
xibilidade da fórmula homérica [The flexibility of the
Homeric formula], de 1968.
Na mesma época, surgiram também dois arti-
gos importantes de Joseph Russo, “Um olhar mais
atento para as fórmulas homéricas” [“A closer look
at Homeric formulas”], de 1963, e “A fórmula es-
trutural em Homero” [“The structural formula in
Homeric verse”], de 1966.345 Em 1974, Michael
Nagler publicaria seu Espontaneidade e tradição:
um estudo da arte oral de Homero [Spontaneity and
tradition: a study in the oral art of Homer], em que
propunha uma formulação afim à da gramática ge-
rativa, e em 1987 Edzard Visser, autor de língua
alemã, o seu A técnica de versificação homérica [Ho-
merische Versifikationstechnik].346 Sobre a extensão
da formularidade em Homero, houve tentativas de
quantificação por amostragem, como as feitas su-
perficialmente pelo próprio Lord e por Notopou-
los, ambos chegando a uma percentagem superior
a 90%. Mais recentemente, Margalit Finkelberg,
no artigo “Teoria oral e os limites da dicção for-
mular” [“Oral theory and the limits of formulaic
diction”], propôs uma revisão desse tipo de enfoque
e uma redução no alcance da dicção padronizada.347
Não vou me deter aqui nesses estudos, em geral
muito técnicos, que ampliaram e detalharam as po-
sições de Parry, sem invalidá-las em sua formulação
geral. Meu objetivo é apenas apresentar rapidamente
os reflexos da abordagem da fórmula no campo se-
mântico e interpretativo (item, a bem dizer, não total-
mente desprezado por aqueles estudos). E, nesse senti-
do, talvez o maior exemplo de uma leitura inadequada
de Homero, porque subjetiva e hipersensível, seja o
comentário feito pelo crítico de arte vitoriano John
Ruskin ao debruçar-se sobre o uso do epíteto neste
passo do Canto 3 da Ilíada, que menciona a morte dos
irmãos de Helena, Cástor e Pólux:

198
Assim disse [Helena], e a eles retinha a terra
que dá vida (phusízoos),
na Lacedemônia, lá, em sua cara terra pátria.
(Il. 3, 243-4)

Discorrendo sobre o choque aí entre o qualifi-


cativo de “terra” e o contexto de sepultamento, diz
Ruskin, no terceiro volume de Pintores modernos, obra
da metade do século XIX:

Note-se, aqui, a elevada verdade poética le-


vada ao extremo. O poeta tem que falar da
terra com tristeza, mas ele não vai deixar essa
tristeza afetar ou alterar o que pensa a seu
respeito. Não; embora Cástor e Pólux este-
jam mortos, ainda assim a terra é nossa mãe,
que dá frutos, que dá vida.348

No próprio século XIX, muito antes do estabele-


cimento de uma teoria da formularidade, Ruskin já
tinha sido alvo dos ataques de Matthew Arnold, que
o censurava pela hiperleitura do que era elemento se-
cundário em Homero. Parry, em seu doutorado, cita
essa “interpretação extravagante” de Ruskin, sobre a
qual diz, no momento em que compara a experiência
da audiência original da épica com a de um estudante
que vai se familiarizando com a dicção homérica:

Poucos estudantes vão ler esse epíteto pen-


sando no significado que Ruskin se esfor-
çou por lhe dar – mesmo na morte, a terra

199
é sempre nossa mãe –, e isso continuará a
valer mesmo que estejam cruzando com a
expressão pela primeira vez (ela ocorre, efe-
tivamente, apenas duas vezes no nosso texto
de Homero). A verdade em relação a essa
questão é que é praticamente impossível atri-
buir tal significado a ela. Para encontrá-lo,
Ruskin precisou de toda a sua bem sabida
afeição pelo pungente em poesia, além de
uma concepção falsa da história das ideias,
que o levou a atribuir ao poeta um modo de
pensar que lhe devia ser alheio.349

Parry reconhecia, no entanto, que esse tipo de


crítica era ainda vigente em sua época. De fato, se
tomarmos o já citado livro de Maurice Bowra, Tra-
dição e planejamento da Ilíada, de 1930, veremos que
esse subjetivismo era empregado por um leitor arguto
de Homero. Bowra, aparentemente, não tinha toma-
do conhecimento dos estudos de Parry. No Capítulo
4, dedicado a “Alguns elementos primitivos” – en-
tre os quais inclui os epítetos –, Bowra admite que
muitas vezes eles “contradizem as condições descri-
tas no contexto”, mas que, ainda assim, Homero os
considerava “tão convenientes que recorria a eles sem
pensar muito no seu sentido”.350 Em outros casos, no
entanto, diz o helenista inglês, há “alguma atenção
ao contexto”, como no citado passo do Canto 3 da
Ilíada, em que o uso do qualificativo é visto como
“admirável”:

200
É certo que alguns pensaram que o epíteto
é equivocado. Por que falar da terra como a
“que dá vida” quando ele é encarada como
um túmulo? E, no entanto, o efeito é puro
páthos. A terra, que engendra, é também
uma sepultura. O pensamento é simples e
antigo, e perfeitamente justo.351

Que Bowra via na linguagem formular um ma-


nejo artístico fica evidente no capítulo seguinte, “Re-
petições e contradições”, em que defende que muitas
repetições são deliberadas e estão a serviço da criação
de paralelismos e contrastes:

Com seus versos e epítetos recorrentes, ele [o


poeta] pode não apenas descansar, mas tam-
bém preparar uma atmosfera. Com suas pas-
sagens recorrentes, ele pode dar um colorido
emocional aqui e outro acolá, e através da
lembrança de uma cena anterior indicar, im-
plicitamente, um contraste. Com seus temas
recorrentes ele emprega seu material de mui-
tos modos, e dá a uma história antiga nova
vida, com novas e diferentes formas. Sua arte
é superior à dos épicos primitivos, em que
a repetição tende a ser cansativa. Também
aqui Homero tomou as fórmulas primitivas
da escrita épica e lhes conferiu novos usos.352

Temos aí o olhar unitarista, que privilegia, como


vimos, a intervenção do gênio Homero, com quem a

201
épica dá uma salto de qualidade, e que não consegue
se desligar da escrita. Não por acaso, foram os unita-
ristas que a princípio ofereceram maior resistência às
descobertas de Parry, justamente porque, ao destacar a
presença de um mecanismo tradicional, elas pareciam
anular essa possibilidade de criação artística conscien-
te. Como apontou Frederick Combellack, essa atitude
hostil foi bem descrita por Theodore Wade-Gery em
seu livro (com título claramente unitarista) O poeta da
Ilíada, de 1952:

O mais importante assalto realizado con-


tra a criatividade de Homero nos anos re-
centes é o trabalho de Milman Parry, que
pode ser chamado de “Darwin dos estudos
homéricos”. Tal como Darwin pareceu a
muitos ter removido o dedo de deus da
criação do mundo e do homem, assim
também Milman Parry pareceu a alguns
ter removido o poeta criativo da Ilíada e
da Odisseia.353

A reação, na verdade, começara bem antes. Num


artigo de 1933, “Repetições homéricas” [“Homeric
repetitions”], George Calhoun (que havia orientado
Parry em seu mestrado) defende a visão apresentada
por seu ex-aluno, mas insiste que as repetições, não
de um verso, mas de um grupo de linhas, “são mais
complexas”, e que apenas elas estão “mais sujeitas a
um emprego consciente e deliberado”. Para ele, seria
errado concluir que certas fórmulas recorrentes “são

202
usadas de uma maneira puramente mecânica, segundo
um sistema rígido de composição, ou que o poeta não
buscava variação quando assim o queria”.354 O artigo
seria depois citado, com aprovação, por Samuel Bas-
sett no já mencionado A poesia de Homero [The poe-
try of Homer], publicado postumamente em 1938.355
Na esteira de John Scott, Bassett considerava a poesia
homérica um “documento literário superlativo”, cujas
“qualidades (...) lhe foram conferidas por um só poe-
ta superior”; portanto, ainda que reconhecesse o valor
das descobertas de Parry, considerava suas conclusões
sobre o estilo tradicional “amplamente negativas”,
faltando a elas a contrapartida do “aspecto positivo”,
com as “provas de originalidade”.356
Outro que concordava com a abordagem geral de
Parry, mas ressaltava a “ênfase dada pelo contexto”, era
o inglês John Sheppard. Sheppard fora citado junto
com Ruskin na tese de Parry como exemplo de leitor
equivocado dos epítetos em Homero, pois queria em
seu livro de 1922, A estruturação da Ilíada [The pattern
of the Iliad], que o adjetivo diíphilos, “caro a Zeus”,
ganhasse sentido especial em seus dois empregos no
Canto 1 do poema (v. 74 e 86).357 Num artigo pu-
blicado em 1935, com o título “Aquiles caro a Zeus”
[“Zeus-loved Achilles”], Sheppard reage à crítica: ad-
mite que o qualificativo é metricamente conveniente
e faz parte de um estoque tradicional, mas não abre
mão de ser também “vívido e significativo” em certos
contextos, como o que estava em questão. A certa al-
tura, ele afirma:

203
Está na moda hoje em dia dizer que Home-
ro não procurava, como o poeta moderno,
a mot juste. Ele tinha à mão um estoque de
fórmulas tradicionais e populares, um pou-
co desgastadas em seu significado por conta
da familiaridade, mas pensadas para confe-
rir lustro ao estilo e fazer os versos avançar
corretamente. Ele as empregava, segundo a
conveniência métrica, como um ornamento,
com quase nenhuma atenção para sua rele-
vância ou sentido. Às vezes talvez ele agisse
assim. Mas também é verdade – e, para a
compreensão do poema, mais importante –
que tais fórmulas são frequentemente usadas
como parte de séries ascendentes ou descen-
dentes, numa estruturação que, através da
repetição, da variação e do acúmulo, enfatiza
o significado direto das palavras.358

De modo geral, pode-se afirmar que, no âmbito


dos estudos orais, prevaleceu a ortodoxia parryana,
que tratava com desdém abordagens como a de She-
ppard. É verdade que o próprio Parry admitia certa
interferência do contexto, capaz de realçar o valor de
uma fórmula. No primeiro de seus dois longos artigos
com o título “Estudos sobre a técnica épica de criação
do verso oral” [“Studies in the epic technique of oral-
-verse making”], ele faz a seguinte formulação:

(...) a intensidade, onde aparece, provém


em geral da ideia expressa pela passagem, e

204
não de uma determinada expressão. Muito
frequentemente, durante a leitura, a ideia
expressa por algum grupo de palavras vai
se destacar, mas em geral é a maneira com
que são empregadas que responde por isso.
O verso que Homero emprega em Il. 1, 33
não parece merecer atenção na leitura, “As-
sim disse, e o ancião teve medo, e obedeceu”,
mas quando reaparece na cena entre Príamo
e Aquiles (Il. 24, 571), torna-se um dos ver-
sos homéricos realmente patéticos.359

É verdade também que, se a princípio Parry


considerava as fórmulas de dizer, de idêntica extensão
métrica, “E respondeu-lhe em seguida...” (tòn d’ emeí-
bet’ épeita...)/“E por sua vez lhe disse...” (tòn d’ aûte
proséeipe...), como expressões de ideias básicas diferen-
tes, “E lhe disse....”/ “E lhe respondeu...”, e portanto
não equivalentes,360 depois reconheceu que o uso dife-
renciado se baseava numa necessidade de variação,361
abrindo brecha assim para escolhas mais livres e cons-
cientes.
Não se pode deixar de mencionar ainda a tentati-
va – tímida, é verdade – de James Notopoulos de ver,
num artigo de 1951, a “repetição associativa” como
mecanismo importante da poesia tradicional, e por-
tanto a fórmula como “instrumento artístico de inter-
conexão”, apoiando-se, para tanto, nos apontamentos
anteriores de Calhoun e Sheppard.362 Digno de nota
é também o livro de Cedric Whitman, Homero e a
tradição heroica [Homer and the heroic tradition], de

205
1958, em que a fórmula é tratada como algo que vai
muito além da funcionalidade e ornamentação. Ve-
jam-se estes comentários:

Um outro exemplo do uso de uma fórmula


comum de um modo incomum pode ser en-
contrado na “Patrocleia”, onde Pátroclo, ao
tentar escalar os muros de Troia, confronta
Apolo, e corre contra ele, “igual a nume” (v.
705). (...)

(...) No esquema de Homero, ao invés de se


desgastarem, as fórmulas vão ganhando peso
simbólico, como bolas de neve a rolar. Aqui-
les é frequentemente comparado a um leão,
mas quando ele abandona sua cabana “qual
um leão”, após ameaçar Príamo (Il. 24, 572),
a imagem reflete, em particular, a visão que
o rei indefeso tem dele. Nesse momento, ela
não pode permanecer como um mero orna-
mento épico.363

Talvez a mais bela e claramente significativa


repetição de um motivo em toda a Ilíada seja
a da “nascente de água escura”, que ocorre no
começo tanto do Canto 9 (v. 14-15) quanto
do Canto 16 (v. 3-4). Quando aparece pri-
meiro, é Agamênon que chora como uma
nascente de água escura, ao proclamar seu
fracasso e propor que abandonem a guerra.
Suas palavras são idênticas, mas numa for-

206
ma abreviada, àquelas com que tinha feito
a mesma proposta no Canto 2, mas então
ilusoriamente, com ele mesmo enganado
por Zeus. Agora é Pátroclo que chora como
a nascente escura na presença de Aquiles, e
a imagem, com o peso das associações ante-
riores e as implicações futuras, faz mais do
que unir os dois cantos. Ela reflete também
os sentimentos divididos de Aquiles, sua
percepção da dor, à qual a cólera deu agora
lugar.364

A visão de Whitman vem resumida por estas pa-


lavras, no início do Capítulo 11, em que enfatiza o
papel do grande cantor e sua construção “geométrica”:

(...) devemos ter sempre em mente a adver-


tência de Parry de não buscarmos “falsos sig-
nificados sutis nas repetições, como se pensa-
das para evocar uma cena anterior em que as
mesmas palavras foram usadas”. E, no entan-
to, embora tais ecos estivessem presentes nos
esforços de todos os cantores, um dos traços
da excelência de Homero parece ter sido o
dom para controlar esses ecos mais do que o
fizeram os outros poetas orais. Porque os ele-
mentos fixos do estilo oral são fixos apenas
em si mesmos, e fora de contexto. Dentro
do contexto, eles inevitavelmente mudam de
cor e tom (...).365

207
A leitura de Whitman, tributária dos novos ru-
mos e da Nova Crítica, por mais sensível que seja, é
ainda errática. No final da década de 60 e início da
de 70, teríamos as contribuições de Anne Amory,
que polemiza com Albert Lord;366 do já citado Joseph
Russo, com seu artigo “Homero contra sua tradição”
[“Homer against his tradition”],367 de 1968; e de W.
Whallon, com o livro Fórmula, personagem e contexto
[Formula, character, and context], de 1969.
Enfoques mais sistemáticos a esse respeito surgi-
riam mais ou menos na mesma época, com destaque
para três nomes: Charles Segal, Adam Parry e Norman
Austin. Segal, num livrinho de 1971, O tema da muti-
lação do cadáver na Ilíada [The theme of the mutilation
of the corpse in the Iliad], buscava, ao analisar certos as-
pectos do movimento narrativo entre os Cantos 16 e 24
do poema, demonstrar como o poeta “manipula suas
fórmulas para produzir efeitos especiais, e como con-
trastes e paralelismos entre cenas análogas ampliam o
alcance e a significação da ação”.368 No capítulo intro-
dutório, dedicado à discussão dos conceitos de “tema”
e “fórmula”, Segal explica que “os paralelismos entre
as situações narrativas evocam eles mesmos as repeti-
ções formulares; e, inversamente, as repetições possi-
bilitam que os paralelismos (ou divergências) entre as
situações se esclareçam e desenvolvam”, e acrescenta:

O poeta “pensa” em termos de suas fórmu-


las, e qualquer fórmula tem o potencial de
evocar cenas similares em que fórmulas si-
milares ocorreram. Na prática, porém, esse

208
potencial se realiza apenas em um número
limitado de casos, pois muitos paralelismos
envolvem fórmulas triviais ou comuns de-
mais para serem notadas, ou personagens
menores e situações relativamente pouco
importantes, que têm pouco impacto sobre
as linhas principais da ação.369

A partir dessa ponderação, Segal tenta estabelecer


três critérios gerais para que determinada repetição
seja considerada relevante:

(1) o uso de fórmulas que não ocorram com


muita frequência, a ponto de tornar um caso
particular de repetição imperceptível ou des-
provido de significado (embora se deva re-
conhecer aqui que mesmo fórmulas bastante
comuns podem ser empregadas de maneiras
inesperadas, e poeticamente significativas);
(2) o envolvimento de personagens impor-
tantes; e (3) uma situação narrativa de alta
voltagem emocional ou intenso páthos, ou (o
que dá no mesmo) alguma crise nos destinos
de figuras importantes ou da comunidade
como um todo.370

Na leitura temática que faz do terço final da Ilía-


da, Segal explora de maneira brilhante esses efeitos de
associação, deixando claro que esses critérios gerais
não são absolutos, e que a interpretação, no fim das
contas, depende do modo como se lê o texto.

209
Já a reflexão de Adam Parry, contida num artigo,
“Linguagem e caracterização em Homero” [“Language
and characterization in Homer”], publicado postuma-
mente, em 1972, tem valor especial, porque estabelece
um diálogo do filho com o pai, Milman. Adam não
demonstra nenhum tipo de acanhamento em rever a
posição paterna; logo no início, ele se pergunta sobre
a poesia homérica:

As frases fixas de que é largamente feita têm


um sentido dependente das palavras indivi-
duas que constituem seus ingredientes? Ou o
estilo formular impede esse tipo de sentido,
de tal modo que essa frases são, operacional-
mente, equivalentes a simples palavras? Tais
questões têm resposta difícil, mas são vitais,
porque as respostas a elas vão determinar todo
o modo em que essa poesia será lida; elas vão
determinar o sentido dessa própria poesia.

A maneira tradicional de lidar com a questão


é apresentada logo seguir:

(...) o próprio Milman Parry e muitos de seus


sucessores deram sua resposta: as palavras no
interior dessas expressões que podem, pelo
seu uso repetido, serem vistas como frases
fixas, ou fórmulas, não têm um sentido par-
ticular. Elas são partes inseparáveis do con-
junto da frase, e a atenção não deve recair
sobre elas.371

210
Tomando então como exemplo o verso 7 do Can-
to 1 da Ilíada, “...o Atrida senhor de homens e o di-
vino Aquiles”, Adam rebate a visão do pai de que “se-
nhor de homens” (ánax andrôn) e “divino” (dîos) não
têm, aí, um sentido contextual:

(...) qualquer um, penso eu, não importa


quantas vezes tenha lido Homero, vai ter a
sensação, ao começar o poema e chegar ao
verso 7 – que encerra de modo grandioso
o primeiro período e a invocação –, de que
Agamênon e Aquiles estão sendo bem des-
critos. Ele vai, apesar da rigidez dessa escola
dos estudos modernos, pensar um pouco a
respeito de ánax andrôn e dîos. Ele já fica-
rá ciente aqui em alguma medida do con-
traste entre os dois, de que tanto depende
o confronto: Agamênon, homem do poder
político e figura pública, (...) com muito da
insegurança que o aspirante à mais alta posi-
ção pública pode ter; e Aquiles, cujos valores
são mais puramente heroicos e individuais,
e que se tornam crescentemente pessoais e
privados à medida que a história avança.372

Mais adiante, ele acrescenta:

O importante é vermos que epítetos como


os do verso 7 do Canto 1, embora conve-
nientes metricamente e embora repetidos
com frequência, podem ter o tipo de sentido

211
que naturalmente atribuímos a eles, podem
ajudar a definir os personagens e a contar a
história (...).373

Adam Parry fornece ainda um outro exemplo ilus-


trativo, agora relativo ao epíteto pepnuménos, “ponde-
rado”, um epíteto genérico, utilizado para Antenor,
Meríones, Eurípilo, Polidamante e Antíloco:

No Canto 23 da Ilíada, Antíloco se deixa le-


var pelo desejo juvenil de vitória na corrida de
carros, e força Menelau a conter seus cavalos,
privando-o de seu prêmio. Nos versos 570-
85, Menelau profere um discurso furioso,
de indignação contra Antíloco, que se inicia
assim, “Antíloco, anteriormente ponderado
(pepnuméne), o que fizeste?”, verso em que
não se pode pôr em dúvida a clara afirmação
“anteriormente ponderado”. Em resposta,
Antíloco pede desculpas por sua indiscrição
juvenil, e entrega o prêmio a Menelau. Esse
discurso é introduzido por “E por sua vez
Antíloco ponderado (pepnuménos) retrucou-
-lhe:”, onde novamente está fora de dúvi-
da que, a despeito da posição inteiramente
formular do adjetivo, estamos sendo infor-
mados de que Antíloco, no final das contas,
está se mostrando um homem sensato.374

Dois anos depois da contribuição de Parry filho,


Norman Austin, no primeiro capítulo de seu livro so-

212
bre a Odisseia, A arte do arco na lua nova [Archery at
the dark of the moon], de 1974, veio propor também,
ao longo de 70 páginas, um revisionismo da posição
de Parry sobre o significado contextual das fórmulas.
Para Austin, a apreciação do epíteto feita por Ruskin
– alvo da derrisão oralista – podia não ser, no final das
contas, inválida: Parry demonstrara sim a complexi-
dade do sistema formular, “mas seu sistema ignorou
o contexto e, portanto, falhou em notar o quão fre-
quentemente este dita o emprego de uma fórmula em
vez de outra”.375 Fazendo um levantamento detalhado
da dicção formular na Odisseia, Austin aponta para a
riqueza e variedade das expressões – por exemplo, para
introduzir Odisseu como falante –, concluindo que a
conveniência métrica estava longe de ser o princípio
dominante nas escolhas feitas pelo cantor. Voltando
então a Ruskin, ele diz:

É uma falácia pretender que o sistema de


Parry tornou obsoletos comentários como
os de Ruskin sobre o páthos irônico da frase
homérica “terra que dá vida” em Il. 3, 243.
Na verdade, a frase é um hapax [aparece
uma só vez] na Ilíada, embora reapareça na
Odisseia, onde é empregada igualmente em
referência a Cástor e Pólux. Mas ainda que
houvesse dez repetições, a análise de Parry
não pode nem recomendar nem proibir a
interpretação de Ruskin. Se Homero pode
evocar a Aurora em tão variadas formas poé-
ticas, ou controlar sua linguagem de modo

213
que os pretendentes nunca digam polúmetis
Odusseús [“multiastuto Odisseu”], não é de
modo algum implausível que ele pudesse es-
tabelecer um contraste entre os irmãos mor-
tos de Helena e a terra que dá vida, que os
retinha.376

Na mesma linha de leitura, e contemporâneo de-


les, vale mencionar o trabalho de Harald Patzer, Ar-
tifício poético e o trabalho artesanal do poeta na épica
homérica [Dichterische Kunst und poetisches Handwerk
im homerischen Epos], de 1972 (um dos primeiros es-
pecialista de língua alemã a levar em consideração o
trabalho de Parry); e, da década seguinte, os livros de
Paolo Vivante, Epítetos em Homero [Epithets in Ho-
mer], de 1982, e A frase tradicional em Homero [The
traditional phrase in Homer], de Richard Sacks, de
1987. Em língua italiana temos o enfoque franca-
mente literário – e crítico a Parry – de Vincenzo Di
Benedetto em No laboratório de Homero [Nel labora-
torio di Omero], de 1994. Também são interessantes
os enfoques mais sucintos sobre a questão feitos por
Irene De Jong, no artigo “Narratologia e poesia oral:
o caso de Homero” [“Narratology and oral poetry: the
case of Homer”], de 1991, e por Rainer Friedrich, em
“Homero como Flaubert: a ‘phrase juste’ na dicção
homérica” [“Flaubertian Homer: the ‘phrase juste’ in
Homeric diction”], de 2002 377 – depois Friedrich pu-
blicaria o livro Economia formular em Homero: a poéti-

214
ca das brechas [Formular economy in Homer: the poetics
of the breaches], de 2007.
Essas abordagens todas tiravam de cena o dogma-
tismo oralista original, mas ficavam impossibilitadas
de oferecer um método consistente de leitura. Con-
vém citar, a esse respeito, a conclusão de Frederick
Combellack em seu artigo de 1959, após expor as li-
mitações daqueles que tentavam enxergar um signifi-
cado especial do epíteto segundo o contexto:

(...) não quero que me vejam como alguém


a defender que podemos estar certos de que
Homero jamais empregou um epíteto com
uma intenção artística deliberada, ou a reba-
ter a teoria geral de que ele às vezes emprega
sua linguagem formular com uma maravi-
lhosa habilidade. Pelo contrário: gostaria de
acreditar que essa teoria geral está correta.
Mas, correta ou não, a teoria geral não tem
utilidade alguma para a abordagem de casos
individuais e específicos como os que con-
sideramos aqui, porque a teoria geral não
contém em si qualquer princípio que nos
permita ir em frente e defender, com uma
confiança minimamente justificável, que
certa passagem que muito admiramos de
fato apresenta essa maravilhosa habilidade.378

A questão permanece em aberto porque não há,


efetivamente, um parâmetro universal que possa ser
aplicado ao nível semântico da repetição formular.

215
Não concordo, assim, com Anthony Edwards quando
afirma que é “insustentável” a visão “de que o poe-
ta, ou poetas, que compuseram os poemas homéricos
usavam fórmulas e temas às vezes mecanicamente (=
composição oral), às vezes intencionalmente e com
premeditação”, simplesmente pelo fato de que, em sua
abordagem, “uma análise convincente das repetições
deve tratá-las todas como sendo de um mesmo tipo,
e não as diferenciar com base numa leitura ad hoc”.379
Talvez tenhamos que aceitar que se trata sempre,
em última análise, de uma interpretação subjetiva e
móvel, aberta a diferentes recepções, o que não quer
dizer que seja totalmente arbitrária: ela deve levar em
conta o valor mais geral da formularidade apontado
por Parry, e buscar o eco significativo apenas nos mo-
mentos em que isso vem respaldado por uma com-
preensão mais ampla, de conjunto, seja das passagens
discutidas, seja do próprio poema. Esses parâmetros, se
não tornarão decerto a leitura infalível (algo que não
existe), a deixarão, ao menos, mais bem embasada, e
com maior plausibilidade.

Vemos por esse arco temporal que os trabalhos so-


bre Homero trouxeram grandes avanços na percepção
da oralidade, embora estivessem longe de esclarecer
por completo as questões ou mesmo de estabelecer
um consenso geral. Se, por um lado, todas as reflexões
sumariamente apresentadas aqui não podem mais ser
ignoradas na abordagem dos poemas – sob pena de o

216
estudioso dar a impressão de ingenuidade, passadismo
ou simples má vontade –, por outro é certo que, por
mais que tenham revolucionado os estudos homéri-
cos, elas não esgotaram as possibilidades de enfoque.
Há uma série de outros elementos que são determi-
nantes para o intérprete, oriundos do mesmo método
histórico surgido no século XVIII, quando a alegoria
foi descartada como chave de leitura e abriu-se es-
paço para os estudos da antropologia, da sociologia
e teologia homéricas, para não falar das abordagens
estruturalistas e narrativas do século XX. Todas essas
outras aproximações, cada uma delas com suas espe-
cificidades e problemas, nos mostram que a oralidade
entra como mais um componente na complexa tarefa
de explicarmos Homero.
Como quer que seja, não resta nenhuma dúvida,
hoje, de que a poesia homérica é de matriz oral, isto é,
está ligada à composição durante a recitação para um
público ouvinte. A chamada teoria Parry-Lord, nesse
sentido, não é uma proposição especulativa, que sim-
plesmente formula algumas hipóteses sem comprova-
ção, mas sim um conhecimento sistematizado, com
base não só no trabalho comparativo, mas também – e
principalmente – na demonstração feita a partir dos
próprios poemas. O conjunto de elementos levantados
pela “Questão Homérica” nos dois últimos séculos,
desde as variantes textuais com que se debatia Wolf
(indicativas das possibilidades de expansão e retração
narrativa), passando pelas repetições, fórmulas e temas
(facilitadores da criação imediata), até os testemunhos
históricos sobre a inserção tardia da escrita na Grécia

217
Antiga – todos eles apontam para uma composição
oral que opera com parâmetros diversos daqueles de
uma cultura letrada.
Não bastassem esses argumentos incontestáveis, a
comunicação oral (da boca para o ouvido) é só o que
vemos no interior dos poemas homéricos, nos quais a
escrita está ausente como tecnologia de comunicação.
A passagem do Canto 6 da Ilíada, em que o narra-
dor fala de sémata lugrá, “sinais ominosos”, registrados
numa tabuinha, não altera – se abordada de modo
isento – o quadro. Aparentemente, trata-se de um có-
digo restrito a dois interlocutores, de uma comunica-
ção pictórica isolada, não inserida num sistema gráfico
mais abrangente. Mas, ainda que admitíssemos a pre-
sença aí de uma escrita primitiva, o que Homero nos
mostra é que ela é absolutamente marginal e irrelevan-
te no conjunto da sociedade que apresenta; em outras
palavras, se ele conhecia a escrita (silábica, iconográ-
fica ou alfabética), ela lhe parecia tão insignificante
e incapaz de competir com a palavra falada, que só
merece uma única menção – e muito rápida – em 27
mil versos. Trabalhar com a suposição de que se trata
de uma simples convenção (que impede que heróis e
deuses recorram à escrita) é ignorar a oralidade que
domina não só a Ilíada e a Odisseia, mas toda a poe-
sia arcaica grega, povoada de cantores; essa suposição
nos obrigaria a estender a convenção a outros gêneros
poéticos, criando um quadro bem mais complicado
do que simplesmente admitir que toda essa poesia
foi criada numa cultura oral, que assim se manteve
por séculos, mesmo após a introdução do alfabeto. A

218
convenção – um poeta letrado falando em “canto” e
criando um universo de pura oralidade – é bem pos-
terior a esse período e só poderia ser anacronicamente
atribuída a ele.
A qualidade ímpar dos dois grandes épicos gregos
– uma sofisticação e profundidade que outros docu-
mentos reunidos pelo trabalho comparativo não con-
seguiram igualar – não me parece que seja argumento
suficiente para que se defenda uma interferência da
escrita na sua composição. É mais fácil imaginar que
as circunstâncias históricas, culturais e poéticas da
Grécia Antiga são as responsáveis por esses produtos
inigualáveis. A bem da verdade, a rica tradição gre-
ga não gerava apenas grande obras: como toda tradi-
ção, seus resultados eram variados (do poema pífio à
grande elaboração, o espectro é sempre amplo), e as
referências que temos a outras epopeias gregas oriun-
das da mesma fonte, além dos próprios épicos de
Hesíodo, nos indicam que a Ilíada e a Odisseia são
casos incomparáveis mesmo no interior da tradição
em que surgiram. Isso, naturalmente, não nos obriga,
mais uma vez, a pensar na figura de um cantor/poeta
genial, que supera toda a produção precedente e
impõe, com dois poemas grandiosos, sua nova marca.
Pensar assim representaria invalidar a própria tradição,
porque se há grande cantores – e sempre há – eles só
existem em função da tradição, a serviço dela e de seu
enriquecimento. O grande poema, a grande obra, é
sempre uma exceção, mas num ambiente tradicional
como o dos poemas homéricos é mais razoável deixar
de lado a concepção romântica do autor original e

219
pensar que o grande acerto é um produto gradual,
fruto da cooperação de sucessivos cantores por um
vasto e indeterminado período.
No entanto, apesar dessa oralidade dominante e
do peso da tradição, nós lemos Homero; para nós, não
se trata, toda vez que entramos em contato com ele,
de um texto puramente oral, mas sim de um texto oral
lido. Além do mais, não se trata do texto de Homero,
porque a tradição performática produzia textos suces-
sivos; nossa chamada “vulgata” surgiu com Wolf no
início do século XIX e deve vir entre aspas porque é
absolutamente artificial. Isso acarreta pelo menos três
consequências importantes: 1. não podemos trazer os
componentes expressivos da performance para a nossa
análise, porque eles são extratextuais; 2. interpretamos
um forma final virtual (talvez jamais recitada) tanto
da Ilíada quanto da Odisseia, poemas que, em outras
feições, poderiam produzir significados diferentes dos
atuais; e 3. nossa crítica, ainda que deva levar em con-
ta as marcas orais dos poemas, vai inevitavelmente se
valer das ferramentas de análise do texto literário a que
estamos habituados.
Quanto ao item 2, deve-se dizer que nossos poe-
mas, a Ilíada e a Odisseia, com 15.693 e 12.110 ver-
sos, respectivamente, correspondem a formas narrati-
vas bastante desenvolvidas (como o comparativismo
atesta), e que esse desenvolvimento é característico
do grande texto oral. Portanto, ainda que trabalhe-
mos com poemas cujo formato final foi construído
pela nossa tradição textual, eles são certamente repre-
sentativos da qualidade épica grega e a interpretação

220
deles nessas condições é absolutamente válida. Sobre
os itens 1 e 3, acho que é possível propor, de modo
geral, a seguinte abordagem: em primeiro lugar, não
negligenciar por completo o dado extratextual, por-
que, usado com moderação, em certos momentos ele
pode contribuir – por mais hipotético que seja – para
a interpretação. Em segundo lugar, não cair na velha
posição dogmática oralista de que determinadas mar-
cas estipulam apenas determinados sentidos (em geral
restritos), e de que sua leitura se rege por leis diferen-
tes daquelas aplicáveis ao texto escrito: é preciso sim
estar muito atento ao que é próprio da mecânica oral,
mas, por outro lado, toda construção dramática verbal
(escrita ou não) emprega os mesmo recursos – articu-
lação narrativa, caracterização dos personagens, confi-
guração temporal etc. –, e descrevê-los e entendê-los
é atividade de qualquer crítico. É inevitável que isso
produza um cruzamento de poéticas em certa medida
anacrônico, mas seria ingênuo pensar que poderíamos
nos aproximar de Homero como os gregos antigos o
faziam. Nosso olhar de Homero vai estar sempre de-
terminado por nosso tempo e lugar, por nossos inte-
resses e preocupações, e essa contaminação deve ser
vista de modo enriquecedor – afinal, na própria an-
tiguidade Homero foi visto de diferentes maneiras,
segundo diferentes épocas e perspectivas.380
Quanto à espinhosa questão da fixação de Home-
ro por escrito, não há outra saída senão aceitar nosso
total desconhecimento, hoje, sobre como e quando
isso se deu. O fato é que, assim como a qualidade dos
poemas não pressupõe a interferência da escrita, sua

221
estabilidade maior (na comparação com outras poe-
sias orais) não implica necessariamente a fixação ou
memorização de um texto: ela parece decorrer, por
um lado, da natural manutenção de desenvolvimen-
tos dramáticos cujos contornos iam se mostrando ex-
celentes, e, por outro, da própria estrutura complexa
do hexâmetro (como queria Parry e depois dele Kirk),
propensa a desestimular modificações dentro do verso.
Negar essa transformação sob a ação de uma nova tec-
nologia não significa fechar os olhos para uma interfe-
rência da escrita que é concreta, uma vez que o registro
gráfico, convencional e artificial, não corresponde à
voz, com suas entonações, ênfases, reticências, pausas,
teatralizações etc. Basta olhar para os versos de Ho-
mero em grego para se perceber, por exemplo, como
a escrita emprega artifícios próprios para “traduzir” os
característicos alongamentos das sílabas: musicalmen-
te, trata-se de um procedimento rítmico natural, mas
seu resultado, no papel, é o surgimento de formas es-
tranhas. Portanto, não se pode negar que esse contato
dá outra cara àquilo que era apenas desempenho oral,
mas isso, porém, não constitui uma alteração substan-
cial e decisiva.
O que talvez a “Questão Homérica” nos ensine
de forma mais contundente, em sua longa abordagem
da oralidade, é que mais importante do que elucubrar
sobre a história, a gênese, o desenvolvimento, a au-
toria e a fixação dos poemas é concentrar-se em seus
textos. Nesse sentido, o trabalho de Milman Parry é
exemplar, porque foi o estudo atento do Homero que
temos hoje diante dos olhos que o levou a comprovar

222
a presença de uma determinada tecnologia de co-
municação – o que não quer dizer que devemos ficar
atentos apenas (ou principalmente) a essa tecnologia,
porque a criação é mais importante do que o modo
de criar. Importa, assim, atentar mais para os efeitos e
significados dessa criação do que para seus modos de
produção, ou para as intenções de um criador. Como
já disse Giovanni Cerri, “a crítica homérica não pode
ficar exclusivamente reduzida nem à diacronia das in-
dagações genéticas nem à sincronia das análises for-
mulares e temáticas”, porque “seu objetivo primeiro
permanece sendo a compreensão sempre mais profun-
da dos próprios poemas”.381

NOTAS

306 Para um apanhado do trabalho de Parry, ver James Holoka,


“Homer, oral poetry, and comparative literature: major trends
and controversies in twentieth century criticism” em J. Latacz
(ed.), Zweinhundert Jahre Homer-Forschung, p. 456-463. Ver
também o que diz Charles Beye, “Milman Parry” em Ward Briggs
& William Calder III (ed.), Classical scholarship: a biographical
encyclopedia, 361-366. Beye insiste que a morte por arma de fogo
num hotel da Califórnia foi acidental, e não suicídio.
307 Sobre Bentley, ver R. Pfeiffer, History of classical scholarship from
1300 to 1850, cap. XI (p. 143-158). Pfeiffer fala de sua época
como aquela em que surge “novo refinamento do espírito, uma
absoluta confiança no poder da razão para se analisar e criticar a
tradição, e se encontrar a ordem legítima nas criações da mente
humana” (p. 145). Segundo Pefeiffer, enquanto crítico formu-
lador de conjecturas, Bentley “não encontra paralelo na história
dos estudos clássicos” (p. 155), e a importância de sua descoberta
foi enorme: “pela primeira vez um passo fora dado para além do
texto tal qual fixado pelos gramáticos alexandrinos e seus segui-
dores” (p. 157). F. A. Wolf escreveu em 1816 um artigo sobre

223
Bentley, a quem admirava, mas considerava a reinserção do diga-
ma “senil ludíbrio” (ver Pfeiffer, p. 148, nota 8, e p. 157).
308 Ver J. Latacz, “Homeric Question” em Brill’s New Pauly: encyclo-
paedia of the ancient world – Classical Tradition, vol. 2, p. 974,
onde chama a atenção para a importância das descobertas relati-
vas aos epítetos feitas já na primeira metade do século XIX por
Gottfried Hermann, ao estudar o hexâmetro.
309 Ver o que diz E.J. Bakker, “Introduction: Homer and oral po-
etry research”, em Irene De Jong (ed.), Homer: critical assess-
ments, vol. 1, p. 166, e também Thérèse de Vet, “Parry in Paris:
strcuturalism, historical linguistics, and oral theory”, p. 257-284.
Lembra-se ainda que é de 1928 o clássico – escrito em russo – de
Vladimir Propp, Morfologia do conto popular.
310 Ver A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 408-13.
311 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. xxii e xxiv.
312 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 421-422.
313 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 424.
314 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 429.
315 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 428.
316 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 4.
317 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 6.
318 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 6.
319 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 8.
320 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 9.
321 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 20.
322 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 20, nota 1.
323 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 21.
324 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 23.
325 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 68.
326 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 68 e 175.
327 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 176.
328 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 45.
329 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 74.
330 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, respectivamente, p.
103, 44 e 218.
331 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 105-6, e também
p. 246 e 314.
332 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 221.
333 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 118.

224
334 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 120-4.
335 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 124-5.
336 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 126 (grifo origi-
nal).
337 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 127.
338 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 137.
339 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 133.
340 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 130 (grifo origi-
nal).
341 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 141.
342 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 156 (grifo origi-
nal).
343 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 155-65.
344 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 249.
345 O primeiro, em Transactions of the American philological associa-
tion 94: 235-247, e o segundo, em Yale Classical Studies 20: 219-
240.
346 Uma versão condensada, publicada em 1988, com o título “For-
mulae or single words? Toward a new theory on Homeric verse-
making”, está em I. De Jong (ed.), Homer: critical assessments,
vol. 1, p. 364-382.
347 Oral tradition 19/2 (2004): 236-252. Veja-se ainda a distinção
feita por C. Pavese entre “densidade formular” e “porcentagem
formular”; em termos de “densidade”, que seria o critério mais
importante, ele chega a perto de 60% tanto para a Ilíada quan-
to para a Odisseia; ver seu “The rhapsodic epic poems as oral
and independent poems”, Harvard studies in classical philology 98
(1998): 63-90, p. 66-68.
348 Cito a partir do excelente artigo de Frederick Combellack, “Mil-
man Parry and Homeric artistry”, em Comparative literature
11/3 (1959): 193-208, p. 197, onde toda a questão é muito bem
exposta.
349 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 125, nota 2, e p.
129.
350 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 82.
351 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 83-4.
352 M. Bowra, Tradition and design in the Iliad, p. 96. Ver também
p. 92. Décadas depois, Bowra mantém basicamente a mesma po-
sição, mesmo já familiarizado com a obra de Parry. Ver seu livro

225
Heroic poetry, de 1952, e seu capítulo “Style” em Alan Wace &
Frank Stubbings, A companion to Homer, de 1962.
353 Citado a partir do artigo de F. Combellack, “Milman Parry and
Homeric artistry”, p. 194-5.
354 G. Calhoun, “Homeric repetitions”, University of California pub-
lications in classical philology 12 (1933): 1-26, p. 9 e 12.
355 S. Bassett, The poetry of Homer, p. 115; ver também p. 160-164.
356 S. Bassett, The poetry of Homer, p. 4 e 16 (a discussão sobre Parry
ocupa as páginas 14 a 20).
357 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 126.
358 J. Sheppard, “Zeus-loved Achilles” em Journal of Hellenic studies
55/2 (1935): 113-123, p. 114.
359 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 306.
360 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 10-4.
361 A. Parry (ed.), The making of Homeric verse, p. 380.
362 Ver seu artigo “Continuity and interconnexion in Homeric oral
composition”, em Transactions of the American Philological As-
sociation 82: 81-101, p. 96.
363 C. Whitman, Homer and the heroic tradition, p. 114-5.
364 C. Whitman, Homer and the heroic tradition, p. 279.
365 C. Whitman, Homer and the heroic tradition, p. 249.
366 Vejam-se artigos “The gates of horn and ivory”, Yale classical
studies 20 (1966): 3-57; “Homer as artist”, Classical quarterly 31
(1971): 1-15, e o livro póstumo Blameless Aigisthos: a study of
“amúmon” and other Homeric epithets. Leiden: Brill, 1973. Para
discussão com Lord, ver James Holoka em “Homer, oral poetry,
and comparative literature: major trends and controversies in
twentieth century criticism” em J. Latacz (ed.), Zweinhundert
Jahre Homer-Forschung, p. 470-473.
367 Arion 7: 275-295. Mais recentemente, em 1997, Joseph Russo
contribuiu com o texto “The formula” em B. Powell & I. Morris
(eds.), A new companion to Homer, p. 238-260.
368 C. Segal, The theme of the mutilation of the corpse in the Iliad.
Leiden: Brill, 1971, p. ix.
369 C. Segal, The theme of the mutilation of the corpse in the Iliad,
p. 6.
370 C. Segal, The theme of the mutilation of the corpse in the Iliad,
p. 6.

226
371 A. Parry, “Language and characterization in Homer” em The lan-
guage of Achilles and other papers. Oxford: The Clarendon Press,
1989, p. 302.
372 A. Parry, “Language and characterization in Homer” em The lan-
guage of Achilles and other papers, p. 303-4.
373 A. Parry, “Language and characterization in Homer” em The lan-
guage of Achilles and other papers, p. 305-6.
374 A. Parry, “Language and characterization in Homer” em The lan-
guage of Achilles and other papers, p. 308.
375 N. Austin, Archery at the dark of the moon: poetic problems in
Homer’s Odyssey. Berkeley: University of California Press, 1975,
p. 13 e 25.
376 N. Austin, Archery at the dark of the moon: poetic problems in
Homer’s Odyssey, p. 68.
377 Poetics Today 12 (1991): 405-423, e Arion 10/2 (2002): 1-13.
378 F. Combellack, “Milman Parry and Homeric artistry”, p. 207.
379 A. Edwards, Achilles in the Odyssey: ideologies of heroism in Ho-
meric epic. Königstein: Anton Hain, 1985, p. 3, nota 3.
380 Ver a discussão lúcida de James Holoka, que encerra seu artigo
“Homer, oral poetry, and comparative literature: major trends
and controversies in twentieth century criticism” em J. Latacz
(ed.), Zweinhundert Jahre Homer-Forschung, p. 476-481.
381 G. Cerri, “Teoria dell’ oralità e analisi stratigrafica del texto ome-
rico: Il concetto di ‘poema tradizionale’”, p. 29.

227
POSFÁCIO:

OS CLÁSSICOS PELAS BEIRAS

Condenado a ser exato,


quem dera poder ser vago
Paulo Leminski,
“Mais ou menos em ponto”

Q uem se envolve com os Estudos Clássicos no


Brasil logo constata que nossa tradição é míni-
ma, para não dizer inexistente. Vivemos um círculo
vicioso: não temos uma produção forte e contínua,
que se autoalimenta, porque importamos as visões
de fora, e precisamos importar as visões de fora por-
que não temos uma produção forte e contínua. Não
se trata de defender, simplesmente, um nacionalismo
ingênuo, de pleitear uma criação genuína, livre de es-
trangeirismos. Essa postura – se é que factível – repre-
sentaria um tiro no pé: na área da filologia clássica,
a produção mais que centenária de alemães, ingleses,
franceses, italianos e americanos é tão importante, por
sua abrangência e profundidade, que abrir mão dela
significaria matar qualquer abordagem crítica de ina-
nição. Sem recorrer a ela, qualquer autor, por maiores
que sejam sua sensibilidade e compreensão do texto
antigo, corre o risco de mergulhar no vazio. Por outro
lado, a adoção irrestrita do modelo externo, como se
a forma com que os estudiosos do Hemisfério Nor-
te leem as obras gregas e latinas fosse única e ideal, é
sinal da nossa incapacidade de pensar minimamente
por conta própria, incorporando à abordagem um ân-
gulo nosso, que a torne também interessante, mas de
outra maneira.
Há uma dura ironia na adoção dessa segunda
postura, que tem largamente predominado entre nós:
escreve-se em português mimetizando-se aquilo que
se lê em inglês, francês, alemão, italiano, com o intui-
to de fazer parte do debate deles, mas somos alvo da
mais completa indiferença e ignorância externa (ou,
quando não, de um paternalismo constrangedor), sen-
do sumariamente excluídos da discussão antes mesmo
de fazermos parte dela. Escrever em inglês – a língua
franca do conhecimento – é uma saída possível: o tra-
balho será lido (será?) pela comunidade acadêmica in-
ternacional. Mas o preço a ser pago por esse ingresso
no sumo círculo da filologia é o esquecimento por par-
te de estudantes e estudiosos em geral em português,
para os quais a obra em língua estrangeira passa a ter
menos interesse e visibilidade. Não sou contra que se
escreva em inglês (ou francês, ou alemão), mas des-
confio da postura em que o idioma é apenas o índice

230
mais visível de uma vontade de “ser igual” e ingressar
num “círculo superior”.
Sei que o risco da generalização é grande. Há inú-
meras contribuições valiosas por parte dos que vieram
antes de nós, e com as gerações mais recentes elas
só vêm crescendo, em quantidade e variedade. São
muitos a produzir na área de grego e latim no Bra-
sil – traduções, ensaios, artigos especializados, livros
acadêmicos e de divulgação –, não apenas em letras,
mas em história, arqueologia, filosofia, antropologia
etc. Não seria possível mencionar aqui os nomes de
todos. Cada um tem a sua formação, seu enfoque, seus
interesses, e dificilmente se reconheceria nesse quadro
geral; os “estudos clássicos” são, efetivamente, um uni-
verso heterogêneo. Mas o que quero sublinhar aqui
é tão-somente a visão, que recebi de Jaa Torrano, de
que estudar os clássicos no Brasil, e em português, não
pode ser tomado apenas como um simples acaso, um
acidente facilmente contornável através de um movi-
mento de internacionalização; no entanto, de modo
geral, é um movimento assim (muito mais complexo
do que eu seria capaz de descrever aqui) que tem pre-
valecido.
Na minha visão, precisamos manifestar “a diferen-
ça que acusa a reação própria”, para usar a expressão
de uma figura fundamental, José Cavalcante de Souza.
Na introdução que redigiu para sua tradução do Ban-
quete, da década de 60, Cavalcante reconhece a “falta
de disciplina e de tradição (...) nesse setor [os Estudos
Clássicos] da nossa atividade intelectual”, mas insiste
em falar sobre “o que seria uma reação especial nos-

231
sa a um texto helênico, que conhecemos geralmente
através da sensibilidade e da elucubração do francês,
do inglês, do alemão”. Diante das “possibilidades
de expressão (...) ofuscadas e ameaçadas no tradutor
brasileiro de textos gregos e latinos pelo prestígio das
grandes línguas modernas da cultura ocidental”, ele
comenta:

Nossa língua tem necessariamente uma ma-


leabilidade especial, uma peculiar distribui-
ção do vocabulário, uma maneira própria
de utilizar as imagens e de proceder às abs-
trações, e todos esses aspectos da sua capa-
cidade expressiva podem ser poderosamente
estimulados pelo verdadeiro desafio que as
qualidades de um texto grego muitas vezes
representam para uma tradução. (...) Fazer
com que se manifestasse nesta tradução jus-
tamente a diferença que acusa a reação pró-
pria e o caráter de nossa língua, eis o objetivo
sempre presente do tradutor.

As palavras valem para a atividade tradutória, mas


podemos extrapolar o contexto e tomá-las em sentido
mais amplo: devemos investir numa expressão singu-
lar nossa. Mais uma vez, não se trata de ser contra a in-
ternacionalização em si, nem de fechar os olhos para o
que vem de fora: se somos capazes de criar o germe de
algo que podemos dizer que é nosso, isso só é possível
por causa da base riquíssima que os estudos filológicos
nos deram. Sem ela, não teríamos de onde partir. Sem

232
as edições críticas, sem os comentários, sem as mais
variadas análises e explicações, estudar qualquer poeta
ou prosador da antiguidade seria impraticável. Nun-
ca pudemos abrir mão delas, e não torço aqui para
que um dia possamos: não se deve jamais levantar a
bandeira a favor do fechamento ao que vem de fora.
Mas o fato é que cada uma dessas contribuições traz
a marca de um olhar específico – da França, da Ale-
manha, da Inglaterra, dos EUA, da Itália –, não sendo
elas uma massa indistinta (havendo, ainda, diferentes
correntes dentro dos próprios países). A posição que
essas contribuições ocupam depende, em grande par-
te, do aporte próprio que trazem para o debate, segun-
do cada tradição.
Nós, aqui, queremos eleger o modelo ideal – ini-
cialmente, por causa da “missão” que fundou a USP,
o francês, com seu pendor “filosófico”, e mais recen-
temente a filologia dura anglo-americana, com seu
pragmatismo. Temos a ilusão de que recriaremos aqui
as mesmas condições, para que os estudos clássicos flo-
resçam segundo o padrão. Mas a verdade é que não só
estamos atados a uma língua “inculta e bela” que nin-
guém lê, mas a um ambiente que muitas vezes sabota
a adoção daquilo que é responsável pela qualidade da
produção externa: o debate efetivamente crítico. Que-
remos ser como eles são, mas cultivamos um corpo-
rativismo cuja lei máxima é não interferir de maneira
alguma na esfera alheia. Palestras são dadas, mas o de-
bate é magro, quase pró-forma; livros são publicados,
mas as resenhas (quando existem) são burocráticas,
descritivas; bancas e grupos são formados, mas inves-

233
timos menos do que poderíamos na troca de ideias.
Ou seja, aquilo que entre os filólogos que admiramos
é discussão viva e parte essencial de sua própria produ-
ção torna-se aqui um mecanismo estranho, que deve
ser mantido à distância e sob controle, para não ferir
suscetibilidades. A crítica ao trabalho de um colega
corre o risco de ser tomada pessoalmente, como se as
objeções o diminuíssem aos olhos dos outros, quando
deveria ser sinal de respeito e consideração pela pro-
dução alheia.
O resultado é que quase não nos lemos e não nos
citamos (embora, é verdade, a situação esteja paula-
tinamente se alterando). E, não obstante, todos que-
remos que nossos artigos e livros tenham o reconhe-
cimento que achamos que merecem. Mas como ser
levado em consideração, quando o que se faz é sim-
plesmente desconsiderar o trabalho alheio? Como in-
sistir que meu trabalho deve ser lido em português,
quando o que minha bibliografia mostra é que esses
trabalhos merecem pouca ou nenhuma atenção? Mos-
tramos aos nossos alunos que temos sim nossa própria
produção, mas só a produção de cada um de nós é
relevante. Cria-se, no fim, um verdadeiro arquipéla-
go de pesquisadores e obras: fazemos parte do mesmo
conjunto, mas na prática tendemos a nos ignorar.
Um dos indícios mais penosos desse ambiente
vem da publicação de livros. Eles são editados, mas
não são comentados. Mesmo obras importantes, de
autores estrangeiros que admiramos, se traduzidas, são
ignoradas. Exagerando, é como se o que sai na nossa
língua fosse menor, com menos valor. É verdade que

234
o desdém se dá, em parte, por causa da própria quali-
dade: o valor das obras é muito irregular; as traduções,
se entregues a não especialistas (e, às vezes, mesmo a
especialistas), derrapam ao lidar com o universo clássi-
co; as próprias editoras, pela falta de tradição, não têm
condições mínimas de decidir sobre o nível do que
estão publicando. Mas isso tudo não é desculpa para
que desprezemos essa produção – no fim das contas,
vítima dos defeitos que nossas próprias obras também
podem trazer.
Se passamos aos periódicos especializados, vemos
que há uma proliferação de títulos (com a publicação
de textos interessantes e variadíssimos), mas, infeliz-
mente, na proporção inversa de sua divulgação – mes-
mo sendo ainda pequena a área de Estudos Clássicos
no Brasil. Ou seja: a produção se amplia e é documen-
tada, mas falta ainda, a meu ver, um movimento que
faça esses textos circularem entre os estudiosos, para
que eles se tornem, efetivamente, elos e fontes de estí-
mulo para a reflexão.
O magro universo das resenhas também ajuda a
escancarar nossa postura: trabalhos fundamentais fo-
ram produzidos no Brasil nos últimos 40, 50 anos,
mas pode-se contar nos dedos das mãos quantas rese-
nhas realmente críticas foram escritas a respeito deles.
É curioso ver como, quando essas abordagens críticas
acontecem, muitas vezes recebem uma reação passio-
nal, em que a exposição de problemas transforma-se
em ofensas; outras vezes, o autor resenhado trata com
desdém as críticas, considerando-se “incompreendi-
do”. É normal que, com nossa falta de tradição, es-

235
sas resenhas não tenham espaço nos grandes jornais:
o profissional da área não é capaz em geral de aferir
a importância ou qualidade de um livro lançado; e,
quando encarrega alguém da tarefa (algum especialis-
ta), a escolha – tanto do resenhista quanto da obra
a ser resenhada – se dá segundo relações e interesses
poucos objetivos.
No entanto, a despeito desse e de outros proble-
mas, é preciso tentar ver o que há de interessante na
nossa formulação, sem tachá-la de amadora e preteri-
-la em nome da “verdadeira” filologia clássica. Talvez
o que a leitura de grandes medalhões da área mais nos
ensine é que a pretensa exatidão, o almejado cientifi-
cismo da nossa disciplina, com a reunião espantosa
de informações e ferramentas, não raro conduz a uma
posição que é, em certa medida, ingênua. Eles pavi-
mentaram sim o caminho para nós, mas isso não é
tudo. Há uma margem imprecisa, vaga e obscura nos
textos que estudamos – que são literários – que pre-
cisamos abordar mais com sensibilidade do que com
a implacável lucidez que vem de fora. Essa impressão
consolida-se em mim quando consulto os comentários
minuciosos – e de erudição acachapante – que grandes
filólogos produziram nos últimos cem anos: o mate-
rial reunido é de tirar o fôlego, o que torna a consul-
ta dessas obras indispensável. Ao mesmo tempo, em
várias passagens sinto que o autor (estou pensando,
por exemplo, nos apontamentos de Kenneth Dover
às Nuvens de Aristófanes, ou nos de Denys Page ao
Agamênon de Ésquilo) deixa de fora questões poéticas,
detalhes de interpretação e sensibilidade, conexões su-

236
gestivas, que são tão importantes para o entendimento
da obra quanto aquelas exaustivamente expostas.
O que quero dizer, em outras palavras, é que a
busca por exatidão e luz científica pode ser, para nós,
uma grande armadilha, da qual devemos estar cons-
cientes. Há uma fala de Georges Dumézil que, me
parece, ilustra bem isso: ao ser indagado, em sua en-
trevista a Didier Eribon de 1986, sobre o que pensava
do trabalho do amigo Claude Lévi-Strauss, Dumézil
fez a seguinte distinção: ele próprio seria “filólogo”,
em contraposição ao colega do Collège de France, que
via como “filósofo” associado à poesia, porque desvin-
culado do campo rigoroso dos fatos. Essa afirmação,
lida hoje, põe em evidência exatamente a ingenuidade
de se imaginar que há, muita claramente, um caminho
acadêmico mais preciso, mais embasado. Sim, a obra
monumental de Lévi-Strauss é uma construção inte-
lectual imaginativa, com o estabelecimento de premis-
sas e relações que podem parecer muitas vezes arbitrá-
rias, mas a filologia indo-europeia de Dumézil é mais
“real” do que a filosofia do seu colega? Ela também
não é uma construção sofisticada? No fim das contas,
imagino que o mais prudente é que o filólogo “duro”
reconheça que sua abordagem é fruto de uma época,
de um olhar, de uma elaboração teórico-discursiva – e
sujeita, portanto, às mesmas limitações.
Depois de um ano fazendo meu pós-doutorado
na Universidade de Brown, de agosto de 2011 a julho
de 2012, fiquei com a impressão de que a filologia
nos EUA (e provavelmente na Europa) encontra-se
num impasse: o peso da longa tradição (em que quase

237
tudo, da perspectiva deles, parece já ter sido mapeado
e estudado), somado a um excesso de erudição e cien-
tificismo, parecem indicar um esgotamento das pos-
sibilidades. As palavras do inglês Hugh Lloyd-Jones
sobre Karl Reinhardt, tiradas do livro Blood for ghosts:
classical influences in the nineteenth and twentieth cen-
turies, de 1982, parecem valer mais do que nunca:

Em nosso tempo, os estudiosos clássicos


frequentemente dizem uns aos outros que
deveriam parar de se concentrar excessiva-
mente no trabalho técnico e se dedicar mais
à interpretação literária das obras. Mas tem
sido mais fácil falar do que pôr isso em prá-
tica.

A queixa é antiga: Milman Parry, numa comuni-


cação de maio de 1934, “The historical method in li-
terary criticism”, já chamava a atenção para os limites
da abordagem restrita e encastelada.
O mesmo Lloyd-Jones tem consciência de que a
empreitada não é fácil: é preciso combinar trabalho
duro com sensibilidade, alguma base sólida e não im-
pressionista com a interpretação mais solta. Mas o fato
é que, como ele diz na introdução ao mesmo livro, o
“hard work”, ainda que etapa absolutamente necessá-
ria, corre o risco de – existindo por si – se tornar algo
“vazio” e “estéril”:

A erudição existe para pessoas, e não as pes-


soas para a erudição; nós estudamos a An-

238
tiguidade a fim de usá-la segundo nossos
interesses. Uma obra de arte ou literária é
sim um documento histórico, que precisa
ser estudado em seu contexto; mas é um do-
cumento que foi criado com determinado
interesse, e seu significado histórico e social
só pode ser adequadamente apreciado se
tivermos em mente seu propósito e caráter
artístico.

Mas o fato é que os Estudos Clássicos não conse-


guem se libertar de seu nascedouro positivista (e seu
binômio crítica textual/reconstrução histórica), visto,
muitas vezes de forma inconsciente, como seu lastro.
Como diz John Peradotto, no artigo “Modern theore-
tical approaches to Homer”, há na área basicamente
duas grandes correntes, uma que “se volta para o pas-
sado e se preocupa com fontes, origens, considerações
históricas”, e a outra que “olha para frente e enfatiza o
contexto e a situação do leitor moderno”. A primeira,
diz Peradotto citando a classificação de outro especia-
lista, é “centrípeta” (“concebe o texto em termos de
uma intenção original que se situa em seu centro”), e
a segunda, “centrífuga” (“vê a vida do texto como algo
que se dá em sua circunferência, que está constante-
mente se expandindo, abarcado novas possibilidades
de sentido”). Diante desses dois caminhos (que se re-
partem, cada um, em muitos outros), ele não hesita
em dizer que “estamos condicionados a pensar a filo-
logia clássica como algo que se define mais por uma
leitura retrógrada ou centrípeta do que pela outra [a

239
centrífuga]”. É uma maneira simplificada de dizer o
que diz de modo contundente Antoine Campagnon
no seu livro O demônio da teoria, sobretudo no capí-
tulo “O autor”, que deveria ser leitura obrigatória para
qualquer filólogo.
Acredito que a nossa posição periférica, de estu-
diosos clássicos brasileiros, nos permite explorar essa
limitação que, de diferentes maneiras, é vivida pelas
fortes tradições da Europa e dos EUA. A margem nos
exclui, mas também nos dá a chance de ver tanto o
que americanos e europeus veem quanto o que não
veem (em parte porque, para eles, a filologia conti-
nuar a ser feita como vem sendo feita é quase tão na-
tural quanto o ar que respiram). Na realidade, a dura
constatação sentida por um estagiário no exterior de
que, para eles, só eles mesmos existem e nós somos
apenas um ruído distante e incompreensível – que
tratam com desdém ou com a simpatia que se dis-
pensa ao pitoresco –, nos dá uma grande vantagem,
porque, a despeito de outras limitações, essa, do olhar
dominante, de uma tradição já sufocante, nós não te-
mos. Simplesmente reproduzir o que eles fazem é, por
um certo ângulo, confirmar essa inexistência. Extrair
da experiência deles o que é interessante e fundamen-
tal – como o debate aberto e contínuo –, somando a
ela o que talvez só nossa periférica condição permita
(e que, portanto, é para eles incompreensível), é uma
possibilidade – entre outras, é bom frisar – instigante,
ainda que os resultados sejam imprevisíveis, porque
dependem do movimento de muitos, por um tempo
extenso.

240
Podemos fazer comentário filológico e edição crí-
tica (e fazermos bem), mas não seremos menores se
não fizermos – ou se fizermos de um modo talvez não
aceitável para eles. Nossa erudição pode também ser
outra, menos explícita e mensurável. Ela pode traba-
lhar com uma indeterminação maior, ciente de que,
a par da riqueza, há algo de mecânico e inibidor no
tipo de abordagem que importamos. Europeus e ame-
ricanos têm, em geral, uma necessidade de objetivida-
de científica que às vezes pode acabar por tolher uma
compreensão mais profunda e, nos piores casos, levar
à posição de que tanto querem se afastar com sua ciên-
cia. Se o classicismo deles é abrangente (implicando
necessariamente a conjugação de Grécia e Roma) e
se baseia num conhecimento quase sobre-humano de
autores e obras, por que o nosso não pode ser menos
totalizante, mais restrito e interpretativo?
É verdade que alguns desafios são comuns a
todos os filólogos, no mundo inteiro. São desafios
antigos: investir na construção de uma narrativa
clara e minimamente acessível, livre de tecnicismos
e afim à natureza da área das humanidades; apostar
mais no diálogo seletivo, sem a pretensão de um
mapeamento exaustivo das notas em profusão, que
confundem; buscar sempre que possível a visão mais
geral e panorâmica, e não deixar de ancorá-la às ques-
tões contemporâneas. É verdade também que estou
sendo de novo reducionista, porque o próprio Lloyd-
Jones, junto com inúmeros outros – mesmo dentro
da tradição mais “dura” – buscaram justamente
caminhos alternativos e ensaísticos, uns mais, outros
menos conscientes do esgotamento do enfoque
técnico-científico. Os resultados são muitas vezes
excelentes, mas suspeito que dificilmente o autor será
de fato respeitado apenas por isso – é preciso que ele
revele em seus estudos a tradicional base formativa...
A impressão final que tenho é de que eles não
conseguem, efetivamente, encontrar atalhos; por que
então nós, livres desse peso, não exploramos, além das
costumeiras, outras sendas?
Sempre de olho nas possibilidades que vêm dos
grandes centros, podemos ainda acrescentar outras,
advindas de outras partes, de outros campos. Te-
mos aqui, por exemplo, uma tradição importante
de crítica literária (ensaística e interpretativa), com
autores de peso, desde o século XIX. Essa material
pode servir como fonte de inspiração e orientação
para a análise das obras clássicas, dando assim um
feitio próprio à nossa abordagem. Pode-se ainda bus-
car mais o diálogo com trabalhos produzidos fora do
eixo dominante EUA-Inglaterra-Alemanha (além de
França, Suíça e Itália, deve-se pensar em Espanha,
Holanda, Portugal, Argentina e a própria Grécia,
entre outros), ou o diálogo com vertentes de análi-
se presentes nesses e em outros países em geral não
contempladas pelos Estudos Clássicos – como, por
exemplo, o trabalho desenvolvido pelo norte-ameri-
cano Robert Alter com a narrativa da Bíblia hebrai-
ca. Em outras palavras, devemos sim reconhecer a
autoridade de uma tradição que é forte e produtiva,
mas não precisamos nos submeter a ela, sem propor
críticas e alternativas.

242
Outro dado característico do nosso ambiente
acadêmico é a atenção dispensada à tradução criativa
dos textos poéticos (e também em prosa) e, mais
recentemente, ao estudo das traduções. Surgida, me
parece, por conta da grande influência exercida pelos
concretistas nos últimos 30 anos (veja-se, na área de
clássicas, a conexão estreita entre Haroldo de Campos
e Trajano Vieira), essa prática já é uma realidade entre
latinistas e helenistas – ainda que a dependência ex-
terna nos faça relutar em acolhê-la devidamente como
algo legítimo (ou nos permita a acolhida, contanto
que enquadrada pela tendência mais recente deles de
valorizar a Recepção). A meu ver, dois nomes são fun-
damentais nesse movimento: o de Jaa Torrano, com
suas traduções do grego, publicadas a partir da déca-
da de 80, e o de João Angelo Oliva Neto, com suas
traduções do latim e do grego, a partir da década de
90. Os muitos pesquisadores que hoje se dedicam nas
universidades a verter poeticamente gregos e latinos
(e a produzir reflexões a respeito) dependem, direta
ou indiretamente, desses dois nomes, e esse trabalho
conjunto, à medida que se intensifica e adensa, mostra
que talvez tenhamos algo próprio com que contribuir.
Não acredito, contudo, em originalidade absoluta;
tradução em verso feita por um acadêmico ou – como
já apontei – estudo mais interpretativo/ensaístico pro-
duzido por um especialista: há exemplos disso em ou-
tras línguas, nos séculos XIX e XX. Mas talvez não nas
condições e na forma como pode haver hoje no Brasil,
de modo minimamente singular. Claro que reconheço
que reflexos de um turbante de bananas não seriam

243
particularmente úteis à cabeça de um pesquisador de
física nuclear ou de letras clássicas que tivesse nascido
no Brasil. Apenas sei que este fato “Brasil” só pode
liberar energias criativas que façam proliferar pesqui-
sadores de tais disciplinas (ou inventores de disciplinas
novas) se não se intimidar diante de si mesmo.

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Você também pode gostar