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COLUNA

MARTA
ARRETCHE
(/colunistas/autor/Marta-
Arretche)

Precisamos falar
sobre a classe
média
19 de dez de 2019

TEMAS

POLÍTICA (/TEMA/POLÍTICA)

ECONOMIA (/TEMA/ECONOMIA)

BRASIL (/TEMA/BRASIL)

O conceito de classe média pode sinalizar


uma definição sociológica mais ampla ou
mera estatística. Mas é urgente pensar a
condição das pessoas incluídas nessa
categoria

É estável um arranjo político (qualquer que seja)


sem o apoio da classe média?

Sem chance, responderiam muitos cientistas


políticos, sem titubear: a estabilidade da
democracia depende da existência de uma ampla
classe média. Melhor posicionadas que os mais
pobres, as classes médias possuem recursos
políticos para vigiar (e também derrubar) os
governos.
Assume ser verdadeiro esse mecanismo a
interpretação que postula que,
contemporaneamente, as ameaças à democracia
viriam do apoio das classes médias ao populismo
autoritário de direita. As vitórias eleitorais de
Donald Trump e Boris Johnson derivariam das
ameaças concretas à segurança econômica
experimentada no pós-Segunda Guerra por essa
parcela dos eleitores. Ao perder empregos e renda
para os prósperos (e menos remunerados)
trabalhadores asiáticos, a classe média das
democracias avançadas seria presa fácil à
mobilização do medo e a promessas de difícil
realização.

Das manifestações de junho de 2013 no Brasil ao


Chile de Sebastián Piñera, passando por Hong
Kong e a França de Macron, atribui-se às classes
médias o poder de desestabilizar governos. Os mais
saudáveis indicadores de prosperidade econômica
não seriam suficientes para impedir as
manifestações de descontentamento.

Um clássico da literatura sobre proteção social,


“The three worlds of welfare capitalism”, de Gösta
Esping-Andersen, publicado em 1990, demonstrou
que a estabilidade desses sistemas dependeria do
suporte das classes médias. Estas votam contra o
modelo americano, que privilegia a atenção
focalizada nos pobres, porque se percebem
pagando duas vezes: para os outros ao pagar
impostos e para si mesmas ao comprar serviços
privados. A estabilidade do modelo social-
democrata, por sua vez, viria de sua capacidade de
garantir serviços de qualidade à classe média, que
paga impostos para receber serviços universais de
volta.

Se tudo isso é verdade — e


há pesquisa empírica
sólida dando suporte a
SE A ESTABILIDADE
essas interpretações —,
DE QUALQUER
seria bem, bem prudente
PROJETO POLÍTICO
para qualquer projeto
DEPENDE DO
político que se pretenda
APOIO DA CLASSE
estável não ignorar os
MÉDIA, ENTÃO
anseios das classes
POLÍTICAS QUE
médias.
PROTEJAM APENAS
O fato, contudo, é que o OS MAIS POBRES
conceito de classe média é NÃO TRARÃO
bem, bem impreciso. Pode
variar de um estilo de vida ESTABILIDADE
em que empregos estáveis, POLÍTICA AO
rendas elevadas, BRASIL
propriedade de imóvel e
carro e consumo de bens
culturais estão
combinados na vida de
um estrato social, até uma categoria econômica
bem simples: a parte da população que está situada
no meio da escala de distribuição contínua da
renda.

A distinção está longe de ser trivial. A primeira


definição é sociológica: pretende descrever uma
camada da população cujos hábitos e crenças
derivam da condição de estar protegida contra a
insegurança econômica. A segunda é meramente
estatística: os indivíduos de uma população estão
ordenados do mais pobre para o mais rico. A classe
média é intermediária, isto é, tem mais renda que
os mais pobres e menos renda que os mais ricos.
Simples assim. Essa condição meramente
posicional nada diz, entretanto, sobre sua condição
de vida.

Vejamos, por exemplo, o caso brasileiro. O gráfico


abaixo apresenta a escala contínua da distribuição
da renda, ordenada dos domicílios mais pobres
para os mais ricos, no ano de 2018. Os valores
indicam a renda domiciliar per capita de cada
vintil (que corresponde ao ponto de corte do todo
em 20 parcelas de igual tamanho populacional). Os
números incluem todas as rendas obtidas pelos
domicílios: além dos ganhos no mercado de
trabalho, incluem os gastos governamentais, tais
como Bolsa Família, as aposentadorias, o seguro-
desemprego, aluguéis, aplicações financeiras etc.
! RENDA DOMICILIAR MENSAL PER CAPITA,

Por incrível que possa parecer, sabemos, com base


nos trabalhos de Pedro Herculano de Souza e
Marcelo Medeiros, que a renda do topo do
vigésimo mais rico deve ser lida com extrema
cautela, pois a fonte deste dado – a PNAD
Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios Contínua) – não capta adequadamente
a renda dos muito ricos. A subestimação desses
valores seria importante se estivéssemos tratando
de desigualdade. Ao subestimar as rendas dos mais
ricos estaríamos, como bem mostraram estes
autores, também subestimando os níveis de
desigualdade.

Entretanto, para além da desigualdade, deveria ser


objeto de nossas preocupações a condição
econômica das categorias (que bem frouxamente)
chamamos de classes médias no Brasil. A não ser
que se possa demonstrar que uma renda domiciliar
per capita de cerca de R$ 2 mil reais — o que
posiciona um domicílio entre os 20% mais ricos —
protege uma família contra a insegurança
econômica, parece cristalino que a classe média no
Brasil não corresponde àquela à qual se referem
nossos colegas que estudam as economias
desenvolvidas.
De qualquer modo, a condição específica da classe
média brasileira não a torna potencialmente
menos explosiva. Se a estabilidade de qualquer
projeto político depende do apoio da classe média,
então políticas focalizadas, que protejam apenas os
mais pobres, não trarão estabilidade política ao
Brasil. O desafio de nossa estratégia de redução
das desigualdades requer pensar nos 80% mais
pobres.

Marta Arretche é professora titular do


Departamento de Ciência Política da USP e
diretora do Centro de Estudos da Metrópole. Foi
editora da “Brazilian Political Science Review”
(2012-2018) e pró-reitora adjunta de pesquisa da
USP (2016-7). É graduada em ciências sociais
pela UFRGS, fez mestrado em ciência política e
doutorado em ciências sociais pela Unicamp, e
pós-doutorado no Departamento de Ciência
Política do Massachussets Institute of Technology,
nos EUA. Foi visiting fellow do Departament of
Political and Social Sciences, do Instituto
Universitário Europeu, em Florença. Escreve
mensalmente às sextas-feiras.

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