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As políticas de “coesão social” e a estabilização do capitalismo em Portugal

(2007-2014)

Prof. Dr. Diego Martins Dória Paulo (UFF-Brasil)

Resumo

Em 2007, teve início a “Política de Coesão Europeia em Portugal”, plano de ação


que transcorreu até 2013 e foi tocado pela União Europeia, Governo Português e
instituições parceiras1. O objetivo declarado era atuar sobre os setores sociais mais
“vulneráveis”, com o fito de incluí-los na chamada economia de mercado. Em 2014, o
grupo envolvido no projeto lançou um “Referencial da Coesão Social”, ofício por meio
do qual se realizou uma avaliação da iniciativa2.

A hipótese que desenvolvo desde o doutoramento sugere que a noção de coesão


social deve ser entendida como feixe de orientações para a manutenção de relativa
estabilidade social. Conforme aqui é entendido, o princípio abriga uma síntese de técnicas
apreendidas pelas práticas de entidades que compartilham experiências de gestão do
conflito social. Tratar-se-ia, assim, de tecnologia política fundamental para o
aprofundamento capitalista, cuja utilidade viria da capacidade de condensar manobras
táticas de pacificação social provadas com sucesso na história.

O presente projeto propõe investigar a política de coesão durante a difícil


conjuntura política e econômica pela qual Portugal passa após o advento da Crise de 2008.
É nosso objetivo compreender, ainda, as avaliações feitas sobre o programa naquele texto
de 2014, a fim de perceber que instrumentos ali tentados foram considerados bem-
sucedidos.

Estado da arte

A análise da coesão social por este prisma é inédita. Apesar de ter procurado
intensamente interpretações similares, não localizei nenhum trabalho que a tenha
considerado como o fiz em minha tese de doutoramento. Na ocasião, defendi que o

1
Parte da documentação sobre o programa pode ser acessada on-line por aqui:
https://ec.europa.eu/regional_policy/sources/docgener/informat/country2009/pt_pt.pdf
2
Disponível aqui: http://www.seg-
social.pt/documents/10152/13341/Referencial+Coes%C3%A3o+Social_PORTAL/7ed6f9a2-97d8-4e96-
8c74-59047fefadae/7ed6f9a2-97d8-4e96-8c74-59047fefadae).
horizonte da “coesão social” expressaria o enfrentamento das tensões surgidas das
relações sociais de produção de tipo capitalista, com o fito de superar conflitos,
assegurando a reprodução do modo de produção pela acomodação das classes e frações
de classes sociais às hierarquias estruturantes daquela forma social. Não sem razão um
dos patronos da ideia é Emile Durkheim, cuja interpretação da solidariedade orgânica
contém um projeto de futuro, no qual a estabilidade política, econômica e social derivaria
do respeito à divisão social do trabalho e aos papeis sociais tradicionais, inclusive de
gênero e raça. A coesão social, deste ponto de vista, representa uma resposta à guerra de
classes, seja a tocada pelas classes dominantes e seus acólitos (como Herbert Spencer e
Friedrich Hayek), seja a levada a cabo por críticos do capitalismo, do patriarcado e do
racismo 3.

O debate se insere, assim, no campo de estudo sobre as formas de dominação e as


modalidades de construção hegemônica na contemporaneidade. Seu lastro teórico advém,
claro está, das contribuições de Antônio Gramsci. Principalmente sua compreensão do
Estado integral, composto pela sociedade política (ou Estado em seu sentido restrito, mais
corriqueiro) e a sociedade civil, arena das lutas travadas por meio de organizações,
associações, entidades4. Posto isso, o Estado integral pode ser compreendido como campo
de batalha entre atores e grupos sociais distintos, que tentam ocupar espaços em
instituições de poder para que, por meio delas, seus interesses setoriais sejam
maximizados. A proposta de compreender a coesão social desta forma inclui, portanto, a
sugestão de estudo das organizações que a defendem, a fim de desvelar a que interesses
sociais elas atendem.

A investigação parte, ainda, de um quadro geral construído pelos estudos sobre o


capitalismo contemporâneo, destacando suas contradições internas e seus limites de
desenvolvimento. Tiro especial proveito, neste ponto, de três contribuições. A primeira,
é a de Virginia Fontes, de quem a análise sobre o que chama de capital-imperialismo
detalha as tensões que emergem no pós-guerra. Naquela conjuntura, a situação de caos
social europeu punha em risco o sistema econômico, ampliando a ameaça constante de
revolução não apenas pela desagregação decorrente da guerra, mas também pela
existência da URSS e pelo prestígio angariado por organizações socialistas e comunistas

3
PAULO, Diego Martins Dória. As contradições da democracia e o Instituto Fernando Henrique Cardoso.
Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em História Social. Universidade Federal Fluminense,
2020.
4
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, 6v.
durante o combate aos fascismos5. Já a segunda e a terceira contribuições vêm de autores
franceses. De Grégoire Chamayou, aproveito muito os estudos sobre a ofensiva
empresarial nos Estados Unidos dos anos 1970, ocasião em que se começa a gestar
soluções à “crise de hegemonia” aberta em nível mundial em meio a conflituosa década
dos anos 19606. De Dardot e Laval, incorporo os estudos sobre o chamado neoliberalismo,
destacando as transformações por ele impostas aos aparelhos públicos. À luz destas obras,
a noção de coesão social surge como um parâmetro capaz de condensar experiências
políticas de pacificação social bem-sucedidas.

Plano de investigação e métodos

Aqui se entende a coesão social como expressão da administração bem-sucedida


de conflitos. Não se trata, portanto, de manobras para superá-los pelo confronto da
estrutura social que os origina, mas da sua gestão dentro dos limites impostos pelo modo
de produção. Metodologicamente, a pesquisa proposta se desdobra na investigação das
formas de enfrentamento dos conflitos durante a execução do Plano de Coesão Social
pela União Europeia em Portugal, entre 2007 e 2013. O estudo da documentação a
respeito, disponível pela internet, é, portanto, fundamental.

Metodologia similar conduz a análise do documento publicado em 2014, contendo


um “Referencial da Coesão Social”. Trata-se de fonte acima mencionada, construída pela
União Europeia, pelo Governo de Portugal e por entidades parceiras. Nela, há avaliações
das experiências verificadas durante a implementação do programa. O trato deste
documento é importante por nos oferecer indícios de como aquele conjunto de manobras
foi interpretado pelas autoridades competentes. O procedimento de pesquisa, também
neste caso, consiste em destacar a avaliação a respeito das táticas de gestão de conflitos,
levadas a cabo durante os seis anos referidos.

Considerando os fundamentos teóricos desta proposta, é ponto incontornável


averiguar as entidades que se juntam à União Europeia na implementação do conjunto de
medidas coesivas. Para tanto, recorro à experiência de pesquisa com este tipo de objeto,
auferida durante os cinco anos de confecção da minha tese doutoral. Na ocasião,

5
FONTES, Virginia. Brasil e o capital-imperialismo. Teoria e história. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010.
6
CHAMAYOU, Grégoire. A sociedade ingovernável. Uma genealogia do liberalismo autoritário. São
Paulo: Ubu, 2020.
investiguei o Instituto Fernando Henrique Cardoso (IFHC) e suas conexões nacionais e
internacionais de 2004 a 2019. Demonstrei como a fundação - criada pelo ex-presidente
brasileiro, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso - integrava uma rede de trocas de
tecnologias políticas que contava ainda com organizações europeias, estadunidenses e
outras entidades latino-americanas. Constatei ter sido o IFHC um dos operadores da
noção de coesão social na América do Sul, contando para tanto com parceiros
importantes, como a Comissão Econômica para América Latina (Cepal) e aparelhos
espanhóis, como a Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o
Desenvolvimento (Aecid) 7. Defendi que o processo deveria ser entendido como projeção
política de interesses classistas, daí ser apoiado por grandes empresas transnacionais
espanholas (como a Telefónica e o Santander), todas donas de grande volume de
investimentos externo direto (IED) na região.

O procedimento aqui proposto é o mesmo. Além da União Europeia, identifiquei


três organizações vinculadas aquele programa de promoção da coesão social. São elas a
Rede Social, organização devotada ao combate à pobreza e à exclusão social 8; o Instituto
de Segurança Social (ISS)9; e o Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE)10.
Tratam-se de duas iniciativas privadas – a primeira e a terceira – e de uma autarquia
pública, responsável por gerir programas de segurança social no país. O envolvimento
das três no projeto pode ajudar a compreender a interface entre grupos privados e o Estado
português, auxiliando na determinação material das políticas de seguridade social
previstas pelo programa de promoção da coesão. Neste ponto, o estudo das fontes de
financiamento daqueles aparelhos privados é um imperativo, posto ser o procedimento
que ajuda a pesquisa a fechar seu circuito, ligando interesses de classe ao modo específico
de sua expressão na sociedade política.

Como conjuntura de desenvolvimento do objeto desta proposta de pesquisa, é


fundamental revisar a literatura sobre os efeitos da assim chamada crise de 2008 em
Portugal. Aqui é importante ressaltar o modo como compreendemos esse processo. Do

7
O projeto redundou no livro O desafio latino-americano – a coesão social na democracia, publicado pelo
IFHC e parceiros em 2008, durante, portanto, o período de execução do plano que se pretende investigar.
8
Ver: CASTRO, José Luís; GONÇALVES, Alda Teixeira. A Rede Social e o Desenvolvimento Local.
Revista: Cidades – comunidades e territórios. Junho de 2002, nº 4, pp. 71-82.
9
Autarquia responsável por gestão da segurança social em Portugal.
10
Cujo objetivo autoproclamado é a “investigação e prestação de serviços que procura combinar a avaliação
de programas e políticas públicas com a fundamentação técnica de intervenções de natureza económica e
social”. Ver: http://www.iese.pt/?t=sobre-nos&p=2
nosso ponto de vista, trata-se de mais uma crise de superprodução de capital, como Marx
definiu as crises do capitalismo 11. O “sistema financeiro”, portanto, foi tão somente uma
caixa de ressonância, e não seu princípio causador12. De sorte que em 2007 e antes disso
já se viviam turbulências que irromperiam mais fortemente com o estouro da crise.

O desenvolvimento da pesquisa assim sintetizado permite interpretar o Plano de


Coesão Social pela União Europeia em Portugal (2007-2013) como uma resposta àquelas
condições sociais potencialmente conflituosas. Também deste ponto de vista é possível
compreender o documento de avaliação do programa, lançado em 2014, como importante
fonte explicativa das lições que os atores sociais envolvidos na implementação do
programa tiraram de seu planejamento e execução. Portugal, assim, teria sido importante
laboratório de teste daquelas manobras de pacificação que se inscrevem na rubrica da
coesão social. A experiência ali colhida integraria, ainda, o manancial de táticas de
estabilização do capitalismo que circula pelos nós da rede associativa a que fiz referência
em minha tese de doutoramento.

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11
MARX, Karl. O capital. O processo global da produção capitalista. Livro 3. São Paulo: Boitempo, 2017.
12
Como quer o ponto de vista hegemônico sobre o assunto. Ver: Emanuel A actual crise económica e a
sua origem na esfera financeira. Revista Dirigir, nº 105, 2009.
CASTRO, José Luís; GONÇALVES, Alda Teixeira. A Rede Social e o Desenvolvimento
Local. Revista: Cidades – comunidades e territórios. Junho de 2002, nº 4, pp. 71-82.

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