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Auto de Fe Teatro Ou Teatralidade
Auto de Fe Teatro Ou Teatralidade
no contexto do passado
sobre o presente.
(GRAINGER: vi)1
é utilizado para referir algo que é exagerado ou “falso”. Mas, num contexto específico
domínios. Alguns criadores de métodos para o treino do actor (e.g. Stanislavsky ou Lee
referirem ao que era artísticamente construído na “cena”, repleto de signos que seriam
teatralidade como construção. Para além do sufixo idade e do facto de que podemos
1
Tradução minha. Designada, adiante, apenas TM.
representando-a, i.e., apresentando-a de novo e difundindo-a após a mesma ter
acontecido.
um novo relato. Inferi que, também no séc. XVIII, o termo estava associado re-
… mas respondendo-me ele que não podia resolver-se a largá-la, representei-lhe que isto obstaria
sobretudo, construção – uma vez que apresenta algo que não é o objecto que refere e,
cerimónias e/ou rituais (e.g. Michel Foucault, Guy Debord, Erving Goffman, entre
vários outros) mas acredito que a teatralidade esteve presente em forma de Poder
secular.
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Aqui no sentido de construção de um “real”.
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A noção de teatralidade3 teve várias dimensões consoante os contextos em que
foi usada. No seu trabalho The apology of theatricality, redigido em 1908, Nicolai
ser humano de jogar e imitar, afirmava que existe um instinto teatral inerente ao
Homem:
35.)4
a priori, uma transformação, i.e., ao criar figuras o ser humano transfigura facto ou o
seja.
qualquer pedagogia. Não me refiro à mimesis como teatralidade mas como elemento
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Quero lembrar que, a palavra Teatro deriva do Grego Antigo theatron (θέατρον) que significa "o sítio
onde se vê", enquanto a palavra Espectáculo procede do Latim spectaculum "um espectáculo" e de
spectare "ver, observar". Como todos sabemos, a cultura Grega precede a Latina (Romana) em vários
séculos. Para além disso, de acordo com Helga Finter, do lugar do espectador (theatron) deriva o teatro e
da sua actividade (theaomai – ver simultaneamente com os olhos e com a mente) surgiram os termos
teatro e teoria. Cfr. Helga Finter, 2003, “A teatralidade e o teatro; espectáculo do real ou realidade do
espectáculo? – Notas sobre a teatralidade e o teatro recente na Alemanha” , in Revista Teatro al Sur,
n.º25, Argentina, p. 1.
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TM
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representação. Mas a mimesis não integra necessariamente transfiguração. Pode apenas
original apenas o “corpo” que transmite esse comportamento e sem que veicule uma
Mousse afirma ainda, em 1969, que “não é o gesto que sublinha o pensamento
mas o gesto que conduz ao pensamento” (JOUSSE: p. 37.)5 Nesta afirmação reside o
que considero ser a grande diferença entre mimesis e teatralidade. A primeira expressa
apenas uma reprodução gestual que poderá ou não encerrar um comentário acerca do
comportamento físico que reproduz enquanto que, a segunda, veicula e/ou promove
conclui que:
mesmo quer que seja feito, o que está preparado para fazer para o obter e o que
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TM
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fará se tal não for levado a cabo. O Poder, de qualquer tipo, deve revestir-se de
meios efectivos para o seu exercício e terá efeitos diferentes consoante o modo
normas. No entanto, regra geral, é-nos mais fácil comportarmo-nos de certa forma
o mundo como “um palco”. Ambos se referiam à mesma coisa: o mundo, a Sociedade
como palco de figuras e acções construídas para serem vistas, recebidas e “aceites”.
da teatralidade, tornou-se claro para mim que, tal como infantilidade significa o que
ou reacção foi uma “infantilidade” mesmo que (e acima de tudo se) a pessoa que teve
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É, sobretudo, nesta afirmação de Goffman que reside a premissa a partir da qual irei desenvolver a
perspectiva da teatralidade associada ao auto-de-fé e às condições de dramatização e
transmissão/apresentação do mesmo.
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TM
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Muitas vezes a(s) reacção/reacções de quem assiste/recebe provoca(m) alteração/alterações no valor do
que é apresentado.
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infância e, a segunda, do teatro. Traços que todos identificamos. A deslocação dessas
ou de um Papa.
Teatro ou, pelo menos, do que é recebido como Teatro. Consequentemente utilizarei o
“...é uma mistura de signos e de sensações que se edificam em cena [ ...], é essa
A fusão desta definição com a noção que o senso comum tem do teatral ou do
coreografia, guarda roupa, voz, fisicalidade, espaço designado. Mas a forma como estes
integra teatralidade, mas que não está sempre relacionado com o teatro apesar de o
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TM. Esta citação pode remeter de novo para a Arte mas gostava de deixar claro que Arte, no seu
primeiro significado, é tudo aquilo que é “transformado” pelo Homem. Também este tema será tratado
num capítulo mais adiante.
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Em termos genéricos, espectáculo refere-se a um acontecimento público,
uma exibição especialmente preparada ou organizada; algo para ser mostrado e visto10.
como espectáculo mas, também, como teatralidade, i.e., não apenas como uma
Espectáculo” pode reportar-se strictu sensu aos indivíduos que surgem na televisão,
reporta-se a todos quantos vivem numa sociedade e cujas vidas são amplamente
televisão, rotulado por Marshall McLuhan como the timid giant, é tão grande que, até a
mais pequena minoria de pessoas que não “consome” de todo este medium, é
indirectamente influenciada pela sua relação com aqueles que disfrutam do mesmo.
públicos nos quais indivíduos talentosos ou especializados podem construir uma carreira
e expressar as suas ideias sem censura. Pelo contrário, essas estações têm sido
pela, televisão mas trata-se, de facto, de um controle totalitário do discurso público, que
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Segundo alguns historiadores, o termo foi importado da prática Romana de produzir Circos, na célebre
filosofia da elite de Roma de “Pão e Circo” – panem et circenses – para manter a ordem pública devido à
incapacidade de resolução dos problemas sociais e económicos latentes e, a própria exposição dos heróis
era preparada para ser vista/recebida como acto “único”.
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resulta na contaminação de ideias, gostos, comportamentos, estilos de vida e opções
políticas. As imagens que são produzidas formam uma relação social concreta que, por
relação social que existe, que é mediatizada por imagens que são massivamente
produzidas pela televisão e pela imprensa. As pessoas veêm televisão como um objecto
de lazer mas também confiam na mesma para estarem a par das notícias, para “lições de
conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por
mesma é, actualmente, o espectáculo mais proeminente uma vez que veicula desde as
manifestações mais elaboradas até às produções mais minimalistas para além de ser o
principal veículo da “construção” dos valores sociais e da conduta, muitas das vezes
através da exibição do que é considerado o oposto do ideal. Podemos ter, a priori, uma
certa relutância em considerar quase tudo o que vemos e que sucedeu realmente, i.e.,
a este respeito, refiro o estudo de Helga Finter que, no seu texto sobre teatralidade e
da ideia de Debord da Televisão como espectáculo, cabe-me referir que existe sempre a
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hipótese de montagem/edição, ou seja, para parafrasear Erika-Fisher Lichte, de
definir espectáculo e/ou teatralidade como “acto único”. No entanto parece-me claro
que, cada momento, cada projecção, cada emissão televisiva, será também diferente das
anteriores uma vez que a recepção é também diferente e, no caso do “acto único” o
mesmo é a relação entre emissão e recepção. Neste ponto do meu estudo e considerando
a designação de Debord, parece-me pertinente citar Finter que conclui o seu estudo
referindo que:
das Sociedades, os rituais tiveram um papel crucial ou, pelo menos, muito importante,
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TM
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começar a falar. Já referi anteriormente a premissa de Jousse segundo a qual o
pensamento não é sublinhado pelo gesto, mas sim revelado por este.
executadas, sobretudo, pelo seu valor simbólico, que é prescrito por uma religião ou
pelas tradições de uma comunidade. O termo exclui, regra geral, acções que são
acaso, necessidade, etc. Podemos também dizer que um ritual pode ser executado em
levado a cabo por um único indivíduo, por um grupo, ou por uma comunidade inteira;
especialmente para o efeito; tanto em público como em privado e/ou, ainda, perante um
Devido à sua natureza simbólica, praticamente não existem limites para o género
de acções que podem ser incorporados num ritual. Os ritos das sociedades do passado e
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Apesar de, na religião, ser geralmente utilizado num contexto de adoração
executada numa igreja, a verdadeira relação entre qualquer doutrina religiosa e o(s)
seu(s) ritual/rituais pode variar entre religião organizada e espiritualidade não instituída.
e reverência, os rituais podem conter uma função mais básica permitindo expressar,
grupo e de comunidade. Os seres humanos sempre utilizaram rituais para criarem laços
como Michael Silverstein consideram o ritual como uma acção (rito) social que visa
transformações possam, também, ser consideradas pessoais, elas derivam numa espécie
Regra geral, os momentos em que o Poder utiliza rituais incluem, não apenas os
ritualísticos na sua “natureza”, i.e., embebidos de teatralidade uma vez que acredito que
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todos estes casos encerram uma intenção de exposição ou “apresentação” traduzível
Poder secular são: os Circos Romanos, nos quais os criminosos – e não podemos
literalmente atirados aos leões e/ou gladiadores. Estes circos eram espectáculos
quais o Poder “mostrava” o castigo que, aqueles que vivessem “fora das normas”,
condenados pela Igreja Católica Apostólica Romana, levado a cabo após a Inquisição
ter decidido o tipo de pena a infligir, i.e., depois do julgamento; todas as paradas usadas
pelos regimes totalitários (i.e., ditaduras) para veicular determinada “imagem” de ordem
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A este respeito irei dedicar um capítulo vocacionado para a relação inequívoca entre rito e drama.
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De novo encontramos uma referência do âmbito teatral a um acontecimento que não é do contexto
específico do teatro, mas que é teatral. Mise-en-scéne é o procedimento do qual resulta a forma como se
vê determinada representação. Nesta reflexão, Mosse utiliza uma expressão de importância crucial para
este estudo porque remete para um dos traços caracterizadores da teatralidade: o pôr em cena.
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seus dinâmicos e viris movimentos, de novo simbolizar tanto a ordem e o
Neste momento temos a noção clara de que a relação entre Poder e Teatralidade
foi sempre (e ainda é) muito forte e arrisco afirmar que foi essencial para que o Poder
Trata-se, de facto, do objecto concreto que estou a aprofundar. Por esse motivo,
literalmente "acto de fé". No imaginário popular, passou a ser utilizado para referir a
procissão pública dos condenados e a leitura pública das sentenças. O ritual era
normalmente, a tortura e a fogueira. Mas nem uma nem outra tinham lugar durante o
auto-de fé, que era um ritual religioso. A tortura não era infligida depois de concluído o
julgamento. As execuções, por seu turno, eram levadas a cabo depois e separadas do
auto-de-fé.
“"Auto-da-fé"significa literalmente "acto da fé", o que quer dizer nesta época efeito
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Sacramentales, os autos da paixão ou os quadros vivos das cenas bíblicas incluídos nas
acusados, que conhecem seguramente o seu papel, mas que não são actores no sentido
literal do termo e não fazem ensaios: o espectáculo é definitivo e único para eles. Os
inquisidores, que acumulam este papel com o de encenadores. Trata-se, antes de mais, de
(BETTENCOURT: p. 201)
Se, por um lado, toda a cerimónia era uma apresentação pública de um processo
concreto de Portugal, ao modelo espanhol), por outro lado essa apresentação era
sofreu na carne para purgar os males do mundo. Essa representação, no entanto, era
feita com pessoas reais (no caso dos penitentes) e não com actores, i.e., agentes de uma
ficção. As “personagens” que existiam eram as dos Inquisidores e dos carrascos que
Mas vejamos exactamente como era a estrutura de um Auto de Fé, com base na
completamente diferente.
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De manhã cedo, os prisioneiros era levados para um grande pátio e vestidos com
os hábitos para a procissão (os sambenitos). Na procissão, eram guiados pelos Frades
penitentes na sua generalidade, todos vestidos com túnicas compridas, negras, sem
conseguido, fragilmente, escapar à sentença de morte. Estes tinham pintadas, nas vestes
queimados na fogueira – neste caso, as chamas eram pintadas na direcção correcta, i.e.,
com a ponta para cima. Por fim, estavam os heresiarcas que, para além das chamas,
tinham o seu próprio busto pintado, rodeado por cães, serpentes e demónios, todos com
a boca aberta. Isto tornava evidente quer o carácter de acto simbólico, como o de
persuadia a abjurarem das heresias. Apenas os heréticos que não confessassem o erro
de que eram acusados sofriam a pena mais elevada: serem queimados na fogueira. A
confissão podia livrá-los desta pena, mas não de outras de ordem diversa.
que saía dos cárceres do Santo Ofício até ao local escolhido para o evento. Já no espaço
oração Deus qui corda fidelium finda a qual era pregado um sermão que misturava o
mesmo tempo que se exaltava a fé católica. Seguia-se uma leitura das sentenças, por
15
ordem decrescente de gravidade, sem o conhecimento dos acusados ou, sequer, a
possibilidade de se defenderem.
Devo referir que, antes deste Auto-de-Fé público, havia o chamado Auto-de Fé
privado que era feito à porta fechada sendo os acusados torturados de modo a
confessarem e abjurarem.
ligação intrínseca dos autos de fé aos relaxamentos ao braço secular, não obstante
acabaram por tornar a cerimónia uma das mais marcadas imagens da instituição. O
auto da fé, uma festa religiosa e, sobretudo, uma representação teatral da fé,
BRAGA, p.185)
Luís IX. O primeiro auto-de-fé espanhol teve lugar em Sevilha, em 1481. O primeiro
1821. A sua influência foi reduzida na segunda metade do séc. XVIII, durante o
de-fé eram executados, também, no México, Brasil e Perú e foram registados por vários
por ex., Bernal Díaz del Castillo. Também em Goa, após o estabelecimento da
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A próxima etapa será a articulação dos elementos que me permitirão abordar as execuções na fogueira
das penas máximas, numa cerimónia também ela repleta de significado, no referente à modelação do
indivíduo e da sociedade, estruturada de modo espectacular.
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A teatralidade está presente na maioria das acções humanas – apresenta um
i.e., objectiva um resultado posterior; uma “alteração”. Quase tudo o que fazemos, quer
significa que pensamos sempre considerando o que vai ser visto e se irá ser aceite ou
não. Este “espectador” projectado pode tornar-se real (uma pessoa concreta ou um
momento em que termina, existe um período que Victor Turner designou como
já não é o que era antes e ainda não é o que vai ser no final (mesmo que se dê, apenas,
uma alteração ligeira e subtil). No caso concreto do Auto-de Fé, era durante esse
período que acredito que algo semelhante à Κάθαρσις (kátharsis) acontecia. O público
temia pelas suas “almas” e pelos seus corpos uma vez que a possibilidade de serem
ou, pelo menos, alterados com a “imagem” dos condenados a serem queimados15. Mas
este último “espectáculo” era secular. Não era executado pela Igreja, apesar de ser
devido a esta última que tal ocorria. A sentença é o momento irreversível e, por essa
razão, o mais temível. A fogueira apenas concretizava o que já tinha acontecido durante
cerimónia secular. Este “segundo acto” podia não incluir hinos ou cânticos (ainda me
falta essa informação) mas incluía, seguramente, a coreografia dos guardas que levavam
15
Cabe-me aqui referir que o fogo também simbolizava o Inferno. Num capítulo vocacionado para a
simbologia dos elementos utlizados durante o Auto-de-Fé desenvolverei este aspecto.
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a vítima para o local da fogueira, os gritos da multidão (quer encorajando ou rebelando-
Pós-Liminal.
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6 – Imagens
1 – Um Auto-de-Fé
Gravura a cobre intitulada “Die Inquisition in Portugall” por Jean David Zunner retirada
Cartes Generales & Particulieres de la Geographie Ancienne & Moderne” por Alain
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2 – Sambenitos
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Bibliografia:
BETTENCOURT, Francisco
Debates
DELLON, Charles,
DEBORD, Guy
EVREINOV, Nicolai
FINTER, Helga
FISHER-LICHTE, Erika
GOFFMAN, Erving
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1959, The Presentation of Self in Everyday Life, New York: Doubleday
GRAÍNGER, Roger
JOUSSE, Marcel
PAVIS, Patrice
SCHIAPPA, Bruno
TURNER, Victor
1969, The Ritual Process, Structure and Anti-Structure, New York: Aldine de
Gruyter
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