Você está na página 1de 22

AUTO DE FÉ – TEATRO OU TEATRALIDADE?

A acção de vermos o futuro

no contexto do passado

tem um efeito transformador

sobre o presente.

(GRAINGER: vi)1

Teatralidade é um termo cujo significado não é, ainda, muito claro para a

maioria dos investigadores que se debruçam sobre a Teatrologia ou Estudos de Teatro.

Apesar de, aparentemente, ser um simples substantivo derivado do adjectivo teatral,

trata-se, de facto, de um conceito complexo. Para o senso comum, o termo teatralidade

é utilizado para referir algo que é exagerado ou “falso”. Mas, num contexto específico

referente à actividade “teatral”, a sua dimensão é mais abrangente e transversal a vários

domínios. Alguns criadores de métodos para o treino do actor (e.g. Stanislavsky ou Lee

Strasberg) usavam o termo para se referirem a actors que eram “caricaturais” ou

distantes do que era considerado “natural” ou “autêntico”. Neste contexto, teatralidade

tinha um significado pejorativo. Outros criadores (e.g. Meyerhold) usavam-no para se

referirem ao que era artísticamente construído na “cena”, repleto de signos que seriam

assumidos como símbolos. Neste contexto, teatralidade tinha um valor positivo.

Na minha dissertação de Mestrado (SCHIAPPA: 2004) referi-me à questão da

teatralidade como construção. Para além do sufixo idade e do facto de que podemos

utilizar o termo no contexto específico do teatro, bem como fora do mesmo,

compreendo a Teatralidade como um artifício para expor determinada situação

1
Tradução minha. Designada, adiante, apenas TM.
representando-a, i.e., apresentando-a de novo e difundindo-a após a mesma ter

acontecido.

Durante a investigação, de documentos do séc. XVIII, dos relatos e pareceres da

Intendência Geral da Polícia sobre as atividades teatrais em Portugal, verifiquei que os

Intendentes utilizavam o termo representação recorrentemente cada vez que iniciavam

um novo relato. Inferi que, também no séc. XVIII, o termo estava associado re-

apresentação de determinado evento.

Também na Narração da Inquisição de Goa, publicada pela primeira vez em

1687, Dellon relata que:

… mas respondendo-me ele que não podia resolver-se a largá-la, representei-lhe que isto obstaria

à operação; … (DELLON: 37)

Também neste contexto o conceito de representação sugere apresentação de

determinada possibilidade/situação por outro meio que não o acontecimento concreto.

Partamos então do princípio de que, o conceito de representação, refere,

sobretudo, construção – uma vez que apresenta algo que não é o objecto que refere e,

como tal, participa do conceito de teatralidade.

Teatralidade será, deste modo, um artifício de exposição que integra sempre

representação e, como tal, figuração de determinada realidade2.

Este artifício surge desde as civilizações mais antigas associado ao exercício do

Poder para modelar a conduta do indivíduo e da sociedade. É certo que alguns

investigadores e filósofos já referiram a intrínseca relação entre o “espectacular” e as

cerimónias e/ou rituais (e.g. Michel Foucault, Guy Debord, Erving Goffman, entre

vários outros) mas acredito que a teatralidade esteve presente em forma de Poder

secular.

2
Aqui no sentido de construção de um “real”.

2
A noção de teatralidade3 teve várias dimensões consoante os contextos em que

foi usada. No seu trabalho The apology of theatricality, redigido em 1908, Nicolai

Evreinov (dramaturgo e encenador Russo – 1879/1953), referindo-se à capacidade do

ser humano de jogar e imitar, afirmava que existe um instinto teatral inerente ao

Homem:

“O Homem tem um inesgotável instinto de vitalidade (…). Refiro-me ao instinto

de transfiguração, o instinto de opor, às imagens recebidas do exterior, as

imagens criadas aleatóriamente no interior: o instinto de transmutar as

aparências oferecidas pela natureza em algo diferente. Resumindo, um instinto

cuja essência é revelada no que eu chamaria teatralidade. (EVREINOV: p.

35.)4

Através desta formulação de Evreinov, percebemos também que, qualquer figuração é,

a priori, uma transformação, i.e., ao criar figuras o ser humano transfigura facto ou o

objecto/agente do mesmo. Infiro que, consequentemente, toda a representação é uma

transformação de determinado dado/facto e isso implica que também a teatralidade o

seja.

Prosseguindo no elenco de pensadores que podem fundamentar esta aptidão

inata do Homem, é de referir também o trabalho de Marcel Jousse. Jousse é antropólogo

orientado para a compreensão do universo pré-lógico da mente humana derivado dos

phenomena culturais, considera a mimesis como tendo um papel fundamental em toda e

qualquer pedagogia. Não me refiro à mimesis como teatralidade mas como elemento

integrante da mesma, i.e., na sua tradução do grego clássico – μίμησις: imitação;

3
Quero lembrar que, a palavra Teatro deriva do Grego Antigo theatron (θέατρον) que significa "o sítio
onde se vê", enquanto a palavra Espectáculo procede do Latim spectaculum "um espectáculo" e de
spectare "ver, observar". Como todos sabemos, a cultura Grega precede a Latina (Romana) em vários
séculos. Para além disso, de acordo com Helga Finter, do lugar do espectador (theatron) deriva o teatro e
da sua actividade (theaomai – ver simultaneamente com os olhos e com a mente) surgiram os termos
teatro e teoria. Cfr. Helga Finter, 2003, “A teatralidade e o teatro; espectáculo do real ou realidade do
espectáculo? – Notas sobre a teatralidade e o teatro recente na Alemanha” , in Revista Teatro al Sur,
n.º25, Argentina, p. 1.
4
TM

3
representação. Mas a mimesis não integra necessariamente transfiguração. Pode apenas

proceder para uma reprodução de determinado comportamento diferindo da sua fonte

original apenas o “corpo” que transmite esse comportamento e sem que veicule uma

reflexão sobre o que está a representar.

Mousse afirma ainda, em 1969, que “não é o gesto que sublinha o pensamento

mas o gesto que conduz ao pensamento” (JOUSSE: p. 37.)5 Nesta afirmação reside o

que considero ser a grande diferença entre mimesis e teatralidade. A primeira expressa

apenas uma reprodução gestual que poderá ou não encerrar um comentário acerca do

comportamento físico que reproduz enquanto que, a segunda, veicula e/ou promove

sempre um pensamento a partir da exposição de um conjunto de comportamentos

articulados entre si.

O sociólogo Erving Goffman, no seu estudo The presentation of the self in

everyday life refere-se aos “papéis sociais” e às funções representativas que as

sociedades complexas criam. Ao centrar-se, sobretudo, nas relações profissionais,

Goffman torna claro o sentido essencial e subtil de representação das performances

profissionais. De acordo com o seu estudo, tais comportamentos da vida quotidiana

compreendem a teatralidade e a dramatização inerentes à vida social em si. Goffman

conclui que:

“As perspectivas política e dramatúrgica interseccionam-se claramente

em relação às capacidades de um indíduo para dirigir a actividade de outro.

Primeiro, se um indivíduo tem que dirigir outros, achará frequentemente útil

manter segredos estratégicos. Para além disso, se um indivíduo tenta dirigir a

actividade de outros utilizando exemplos, esclarecimento, persuasão, intercâmbio,

manipulação, autoridade, ameaça, penalização ou coerção, tornar-se-á necessário,

independentemente do seu estatuto hierárquico, manifestar efectivamente o que o

mesmo quer que seja feito, o que está preparado para fazer para o obter e o que

5
TM

4
fará se tal não for levado a cabo. O Poder, de qualquer tipo, deve revestir-se de

meios efectivos para o seu exercício e terá efeitos diferentes consoante o modo

como for dramatizado6.” (GOFFMAN: p. 241)7

Como podemos verificar, teatralidade é um conceito que inclui, não apenas o

jogo e a representação e, por conseguinte, artifício ou artefacto, mas, também, e o mais

importante de tudo, um valor de intercâmbio, uma transmissão, comunicação e,

inclusive, intercâmbio8 de considerações e de “visões” do Mundo. A nossa formação –

a formação da nossa persona – depende da assimilação de modelos, padrões, exemplos,

normas. No entanto, regra geral, é-nos mais fácil comportarmo-nos de certa forma

consoante os requisitos de cada situação. “Mostramos” o que é esperado de nós. O

sentido de oportunidade, mais ou menos espontâneo, activa essa capacidade humana de

“entrar na pele de outro”.

Calderon de la Barca escreveu El Gran Teatro del Mundo e Shakespeare definiu

o mundo como “um palco”. Ambos se referiam à mesma coisa: o mundo, a Sociedade

como palco de figuras e acções construídas para serem vistas, recebidas e “aceites”.

Para além destas considerações e continuando a minha reflexão sobre a questão

da teatralidade, tornou-se claro para mim que, tal como infantilidade significa o que

participa da – ou está relacionado com a – infância, sem estar confinado

necessáriamente ao tempo e espaço da mesma – i.e., dizemos que determinada atitude

ou reacção foi uma “infantilidade” mesmo que (e acima de tudo se) a pessoa que teve

esse mesmo comportamento é já um adulto – também a teatralidade não está sujeita ao

tempo e espaço do teatro. A primeira apresenta/expõe os traços característicos da

6
É, sobretudo, nesta afirmação de Goffman que reside a premissa a partir da qual irei desenvolver a
perspectiva da teatralidade associada ao auto-de-fé e às condições de dramatização e
transmissão/apresentação do mesmo.
7
TM
8
Muitas vezes a(s) reacção/reacções de quem assiste/recebe provoca(m) alteração/alterações no valor do
que é apresentado.

5
infância e, a segunda, do teatro. Traços que todos identificamos. A deslocação dessas

características para outra situação ou realidade reforça a noção de infantil ou de teatral:

caso do comportamento dos idosos ou da exposição pública de um político, de um rei

ou de um Papa.

Teatralidade é, seguramente, um sinal de artifício mas pode ocorrer fora do

Teatro ou, pelo menos, do que é recebido como Teatro. Consequentemente utilizarei o

conceito de teatralidade mais no sentido atribuído por Patrice Pavis:

“...é uma mistura de signos e de sensações que se edificam em cena [ ...], é essa

espécie de percepção ecuménica dos artifícios sensoriais, gestos, tons, distancias,

substancias, luzes que submergem o texto sob a plenitude da sua linguagem

exterior”. (PAVIS: p. 358)9

A fusão desta definição com a noção que o senso comum tem do teatral ou do

teatro, resultou no híbrido que me parece justo para considerar Teatralidade,

simultâneamente, um conceito e uma estrutura.

Trata-se de uma estrutura por que é um sistema complexo de elementos

interrelacionados que constituem o espectáculo (Opsis, para Aristóteles) e que

participam da construção do efeito teatral: um roteiro de acções, música, luzes,

coreografia, guarda roupa, voz, fisicalidade, espaço designado. Mas a forma como estes

elementos se relacionam pode variar consoante as circunstâncias de produção do

espectáculo. E, neste ponto, é incontornável considerarmos este último conceito, que

integra teatralidade, mas que não está sempre relacionado com o teatro apesar de o

teatro estar sempre relacionado com o mesmo.

9
TM. Esta citação pode remeter de novo para a Arte mas gostava de deixar claro que Arte, no seu
primeiro significado, é tudo aquilo que é “transformado” pelo Homem. Também este tema será tratado
num capítulo mais adiante.

6
Em termos genéricos, espectáculo refere-se a um acontecimento público,

delimitado no tempo e no espaço, que é memorável pela aparência/imagem que cria;

uma exibição especialmente preparada ou organizada; algo para ser mostrado e visto10.

Para este estudo, no entanto, interessa sobretudo o significado deste conceito no

presente para podermos desenvolver a clarificação da ideia do Auto-de-Fé, não apenas

como espectáculo mas, também, como teatralidade, i.e., não apenas como uma

sequência visual de elementos articulados entre si, para regozijo e contemplação do

público mas como manifestação de pensamento e promoção de uma realidade.

Desde 1967 o significado do termo espectáculo alargou-se quando Guy Debord

publicou o seu trabalho A Sociedade do Espectáculo. O conceito de uma “Sociedade do

Espectáculo” pode reportar-se strictu sensu aos indivíduos que surgem na televisão,

particularmente aos apresentadores de programas e de telejornais. Mas, latu sensu,

reporta-se a todos quantos vivem numa sociedade e cujas vidas são amplamente

condicionadas pelo comportamento dos apresentadores de Televisão. O impacto da

televisão, rotulado por Marshall McLuhan como the timid giant, é tão grande que, até a

mais pequena minoria de pessoas que não “consome” de todo este medium, é

indirectamente influenciada pela sua relação com aqueles que disfrutam do mesmo.

Historicamente, nas sociedades capitalistas, as estações de televisão não são espaços

públicos nos quais indivíduos talentosos ou especializados podem construir uma carreira

e expressar as suas ideias sem censura. Pelo contrário, essas estações têm sido

propriedade de corporações poderosas ou controladas por directores nomeados por

políticos oficiais. A corrente de ideias que é propagada procede da, ou é “adocicada”

pela, televisão mas trata-se, de facto, de um controle totalitário do discurso público, que

10
Segundo alguns historiadores, o termo foi importado da prática Romana de produzir Circos, na célebre
filosofia da elite de Roma de “Pão e Circo” – panem et circenses – para manter a ordem pública devido à
incapacidade de resolução dos problemas sociais e económicos latentes e, a própria exposição dos heróis
era preparada para ser vista/recebida como acto “único”.

7
resulta na contaminação de ideias, gostos, comportamentos, estilos de vida e opções

políticas. As imagens que são produzidas formam uma relação social concreta que, por

sua vez, é mediatizada por outras imagens. A Sociedade do Espectáculo reporta-se à

relação social que existe, que é mediatizada por imagens que são massivamente

produzidas pela televisão e pela imprensa. As pessoas veêm televisão como um objecto

de lazer mas também confiam na mesma para estarem a par das notícias, para “lições de

vida” e exemplos das normas e valores da sociedade.

Expondo um ponto de vista que poderíamos definer como Marxista, Debord

define espectáculo como um acontecimento que:

“…apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da

sociedade, e como instrumento de unificação. (…) O espectáculo não é um

conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por

imagens. (…) Não se pode opor abstractamente o espectáculo e a actividade social

efectiva: (…) a realidade surge no espectáculo, e o espectáculo é real.

(DEBORD: pp. 10 - 12.)

O que se depreende das considerações de Debord sobre a televisão é que a

mesma é, actualmente, o espectáculo mais proeminente uma vez que veicula desde as

manifestações mais elaboradas até às produções mais minimalistas para além de ser o

principal veículo da “construção” dos valores sociais e da conduta, muitas das vezes

através da exibição do que é considerado o oposto do ideal. Podemos ter, a priori, uma

certa relutância em considerar quase tudo o que vemos e que sucedeu realmente, i.e.,

aparentemente sem construção direccionada para o espectacular, como espectáculo mas,

a este respeito, refiro o estudo de Helga Finter que, no seu texto sobre teatralidade e

teatro, oferece os exemplos da destruição do World Trade Center (11/09/2001) e da

invasão de um teatro, por terroristas,em Moscovo como “espectáculos do real”. Partindo

da ideia de Debord da Televisão como espectáculo, cabe-me referir que existe sempre a

8
hipótese de montagem/edição, ou seja, para parafrasear Erika-Fisher Lichte, de

“engenharia” do que é mostrado/exibido. Estas questões levantam o problema de se

definir espectáculo e/ou teatralidade como “acto único”. No entanto parece-me claro

que, cada momento, cada projecção, cada emissão televisiva, será também diferente das

anteriores uma vez que a recepção é também diferente e, no caso do “acto único” o

mesmo é a relação entre emissão e recepção. Neste ponto do meu estudo e considerando

a designação de Debord, parece-me pertinente citar Finter que conclui o seu estudo

referindo que:

“Existe (…) uma diferença entre espectáculo e teatro ou performance. O

espectáculo é-nos dado como “natureza”, como “realidade” e, ao mesmo tempo,

torna-se irreal enquanto imagem susceptível de se repetir a si própria

infinitamente.” (FINTER: p.7)11

São estas as premissas que me levaram a inferir que Teatralidade é, em

simultâneo, um conceito e uma estrutura concreta que é usada no Teatro e em

acontecimentos teatrais mas também em manifestações do Poder instituído, criadas para

instaurar a ordem e impor condutas e convenções. Essas manifestações seriam e são

produzidas para a obtenção de determinado(s) efeito(s) e incluiam/incluem os elementos

que formam a estrutura da teatralidade que já referi (v. p. 5).

Vários estudos levados a cabo por antropólogos de renome demonstraram a

relação intrínseca existente entre rituais e/ou cerimónias – praticados/as no seio de

religiões ou como forma de organização social – e Teatralidade. No curso da História

das Sociedades, os rituais tiveram um papel crucial ou, pelo menos, muito importante,

no que respeita à organização das comunidades.

De acordo com os estudos de Victor Turner, Elizabeth Tolbert e, mais

recentemente, James MacLynn Wilce, o Homem começou a “ritualizar” antes de

11
TM

9
começar a falar. Já referi anteriormente a premissa de Jousse segundo a qual o

pensamento não é sublinhado pelo gesto, mas sim revelado por este.

O Ritual pode ser definido como um conjunto de acções organizadas (ritos),

executadas, sobretudo, pelo seu valor simbólico, que é prescrito por uma religião ou

pelas tradições de uma comunidade. O termo exclui, regra geral, acções que são

escolhidas arbitrariamente pelos seus executantes, ou ditadas meramente pela lógica,

acaso, necessidade, etc. Podemos também dizer que um ritual pode ser executado em

ocasiões específicas, ou na intimidade de vários indivíduos ou comunidades. Pode ser

levado a cabo por um único indivíduo, por um grupo, ou por uma comunidade inteira;

pode acontecer em espaços arbitrariamente escolhidos ou noutros reservados

especialmente para o efeito; tanto em público como em privado e/ou, ainda, perante um

público específico. Um ritual pode ser restrito a um subgrupo de uma comunidade e

pode permitir ou sublinhar a passagem entre condições religiosas ou sociais.

Devido à sua natureza simbólica, praticamente não existem limites para o género

de acções que podem ser incorporados num ritual. Os ritos das sociedades do passado e

do presente envolveram e envolvem gestos específicos, palavras específicas, elocução

de textos fixados, execução de música específica e especial, canções, danças,

procissões, manipulação de objectos determinados, uso de vestuário específico,

consumo de comida específica, bebidas ou drogas, etc. Os rituais religiosos incluíam,

também, sacrifício de animais, de seres humanos, suicídio ritual e homicídio ritual.

Numa religião, os rituais podem incluir a concordância com obrigações

religiosas ou ideais, satisfação de necessidades espirituais ou emocionais dos

praticantes, fortalecimento de laços sociais, demonstração de respeito ou submissão,

estabelecendo afiliação, obtenção de aceitação social ou aprovação para determinado

evento - ou, por vezes, apenas o prazer do ritual em si.

10
Apesar de, na religião, ser geralmente utilizado num contexto de adoração

executada numa igreja, a verdadeira relação entre qualquer doutrina religiosa e o(s)

seu(s) ritual/rituais pode variar entre religião organizada e espiritualidade não instituída.

Como ferramenta social, em simultâneo com as dimensões pessoais de adoração

e reverência, os rituais podem conter uma função mais básica permitindo expressar,

fixar e reinforçar os valores e credos partilhados pela mesma sociedade. Os rituais

sociais formam uma parte da cultura humana. As descobertas comprovadas (e

irrefutáveis) da existência mais remota dos rituais fúnebres datam do Paleolítico.

Os rituais são, também, uma ferramenta importante na criação de um sentido de

grupo e de comunidade. Os seres humanos sempre utilizaram rituais para criarem laços

sociais e para “nutrirem” relações interpessoais.

Antropólogos como Emile Durkheim e Victor Turner e teóricos contemporâneos

como Michael Silverstein consideram o ritual como uma acção (rito) social que visa

transformações específicas concebidas, geralmente, em termos cósmicos. Embora essas

transformações possam, também, ser consideradas pessoais, elas derivam numa espécie

de evento cósmico: o próprio expande-se para a “eternidade”.

Regra geral, os momentos em que o Poder utiliza rituais incluem, não apenas os

vários ritos de adoração e os sacramentos de religiões e cultos organizados, mas,

também, os ritos de passagem de certas sociedades, ritos de expiação e purificação,

coroações, tomadas de posse presidenciais, casamentos e funerais, eventos desportivos e

outros. Várias actividades, que são ostensivamente executadas para concretizar

propósitos (execução da pena de morte e simpósios científicos) são carregadas com

acções simbólicas, prescritas por regulamentos ou tradição e, portanto, parcialmente

ritualísticos na sua “natureza”, i.e., embebidos de teatralidade uma vez que acredito que

11
todos estes casos encerram uma intenção de exposição ou “apresentação” traduzível

numa intenção de comentar ou instruir em determinada direcção..12

Alguns exemplos concretos da presença de teatralidade em demonstrações do

Poder secular são: os Circos Romanos, nos quais os criminosos – e não podemos

esquecer que os cristãos estavam no patamar dos criminosos/marginais – eram

literalmente atirados aos leões e/ou gladiadores. Estes circos eram espectáculos

executados a horas e dias específicos, com lugares organizados hierarquicamente e nos

quais o Poder “mostrava” o castigo que, aqueles que vivessem “fora das normas”,

sofreriam; o Auto-de-Fé, um ritual de penitência pública dos heréticos e apóstatas

condenados pela Igreja Católica Apostólica Romana, levado a cabo após a Inquisição

ter decidido o tipo de pena a infligir, i.e., depois do julgamento; todas as paradas usadas

pelos regimes totalitários (i.e., ditaduras) para veicular determinada “imagem” de ordem

e disciplina. Por exemplo, as paradas fascistas que apresentavam imagens concretas do

“homem novo” e da raça pura:

“Se o fascismo trabalhou, no fundamental, com uma estética pré-

existente, teve de inovar na forma como se apresentou. A liturgia fascista

institucionalizou uma estreita relação entre estética e política, ultrapassando

largamente os exemplos isolados do passado, (…). Utilizou a estética do corpo

humano, da cor e da forma para nacionalizar as massas, formando e controlando os

comícios populares que eram parte essencial da política fascista. Já fizemos

referência à estética do corpo humano, supondo-se que os jovens (e mesmo os não

tão jovens) que marchavam e saudavam eram os ideais representantes do

movimento e da nação. A mise en scéne13 dessas reuniões, o cenário construído ou

escolhido para a sua realização, representavam um espectáculo carregado de

grandeza e de beleza, permitindo às massas reunidas e disciplinadas, através dos

12
A este respeito irei dedicar um capítulo vocacionado para a relação inequívoca entre rito e drama.
13
De novo encontramos uma referência do âmbito teatral a um acontecimento que não é do contexto
específico do teatro, mas que é teatral. Mise-en-scéne é o procedimento do qual resulta a forma como se
vê determinada representação. Nesta reflexão, Mosse utiliza uma expressão de importância crucial para
este estudo porque remete para um dos traços caracterizadores da teatralidade: o pôr em cena.

12
seus dinâmicos e viris movimentos, de novo simbolizar tanto a ordem e o

progresso como a sua reconciliação.” (MOSSE: pp. 10, 11)

Neste momento temos a noção clara de que a relação entre Poder e Teatralidade

foi sempre (e ainda é) muito forte e arrisco afirmar que foi essencial para que o Poder

alcançasse todo e qualquer objectivo que se propusesse.

Mas passemos ao caso específico do Auto-de Fé. Vejamos quais as suas

características e o que encerra a sua “encenação”. Já fiz anteriormente uma breve

referência ao Auto-de-Fé como um dos exemplos do uso de teatralidade pelo Poder.

Trata-se, de facto, do objecto concreto que estou a aprofundar. Por esse motivo,

irei descrevê-lo de uma forma mais detalhada.

Auto de fé, no espanhol medieval (bem como no português), significa,

literalmente "acto de fé". No imaginário popular, passou a ser utilizado para referir a

acção, propriamente dita, de queimar os heréticos.

Um auto-de-fé envolvia, concretamente, uma missa católica, orações, uma

procissão pública dos condenados e a leitura pública das sentenças. O ritual era

executado em praças públicas ou esplanadas e durava várias horas com a presença de

autoridades civis e eclesiásticas. Várias representações artísticas do auto-de-fé retratam,

normalmente, a tortura e a fogueira. Mas nem uma nem outra tinham lugar durante o

auto-de fé, que era um ritual religioso. A tortura não era infligida depois de concluído o

julgamento. As execuções, por seu turno, eram levadas a cabo depois e separadas do

auto-de-fé.

O historiador português, Francisco Bettencourt, também utiliza o conceito de

mise en scéne, para se referir a esta cerimónia, e diz o seguinte:

“"Auto-da-fé"significa literalmente "acto da fé", o que quer dizer nesta época efeito

moral e representação (teatral) da fé. Esta representação, que é possível situar no

conjunto das manifestações de teatro religioso da Península Ibérica – v.g. os Autos

13
Sacramentales, os autos da paixão ou os quadros vivos das cenas bíblicas incluídos nas

procissões do Corpo Christi –, tem a particularidade de ser produzida com verdadeiros

acusados, que conhecem seguramente o seu papel, mas que não são actores no sentido

literal do termo e não fazem ensaios: o espectáculo é definitivo e único para eles. Os

únicos «actores» permanentes que representam nos autos-da-fé são os próprios

inquisidores, que acumulam este papel com o de encenadores. Trata-se, antes de mais, de

uma apresentação pública da abjuração, da reconciliação e do castigo, que segue regras

precisas decorrentes de um modelo comum às Inquisições hispânicas, com uma dimensão

teatral evidente, concretizada no palco, na cenografia e na distribuição dos papéis.”

(BETTENCOURT: p. 201)

Neste ponto e partindo desta afirmação de Bettencourt surgem dois conceitos

distintos apesar de complementares em acções teatrais: apresentação e representação.

Se, por um lado, toda a cerimónia era uma apresentação pública de um processo

de julgamento, confissão e penitência, obedecendo a um modelo específico (no caso

concreto de Portugal, ao modelo espanhol), por outro lado essa apresentação era

recebida como a representação do sofrimento de Jesus Cristo na Terra. Do que ele

sofreu na carne para purgar os males do mundo. Essa representação, no entanto, era

feita com pessoas reais (no caso dos penitentes) e não com actores, i.e., agentes de uma

ficção. As “personagens” que existiam eram as dos Inquisidores e dos carrascos que

“representavam” a sua função. As suas personae não eram ficção, no sentido de

invenção mas, e paradoxalmente, naquele momento, o comportamento das mesmas era

construído para o efeito pretendido e que era, exactamente, o de purgar o público

através da penitência dos heréticos.

Mas vejamos exactamente como era a estrutura de um Auto de Fé, com base na

documentação existente sobre os primeiros e assente no pressuposto de que a evolução

do mesmo não teria sido nunca radical a ponto de se transformar em algo

completamente diferente.

14
De manhã cedo, os prisioneiros era levados para um grande pátio e vestidos com

os hábitos para a procissão (os sambenitos). Na procissão, eram guiados pelos Frades

Dominicanos que ostentavam a bandeira da Inquisição. Estes eram seguidos pelos

penitentes na sua generalidade, todos vestidos com túnicas compridas, negras, sem

mangas, descalços e segurando uma vela. Seguiam-se os penitentes que tinham

conseguido, fragilmente, escapar à sentença de morte. Estes tinham pintadas, nas vestes

negras, chamas invertidas que simbolizavam o facto de terem sido, única e

exclusivamente, salvos do fogo. Seguiam-se os relapsos cujo destino era serem

queimados na fogueira – neste caso, as chamas eram pintadas na direcção correcta, i.e.,

com a ponta para cima. Por fim, estavam os heresiarcas que, para além das chamas,

tinham o seu próprio busto pintado, rodeado por cães, serpentes e demónios, todos com

a boca aberta. Isto tornava evidente quer o carácter de acto simbólico, como o de

espectáculo público, do auto-de fé.

Os prisioneiros que estavam condenados a serem queimados eram

acompanhados por um familiar – um membro da Inquisição – e por um jesuíta que os

persuadia a abjurarem das heresias. Apenas os heréticos que não confessassem o erro

de que eram acusados sofriam a pena mais elevada: serem queimados na fogueira. A

confissão podia livrá-los desta pena, mas não de outras de ordem diversa.

Em termos de roteiro de acções, o Auto-de-Fé era iniciado com uma procissão

que saía dos cárceres do Santo Ofício até ao local escolhido para o evento. Já no espaço

designado, iniciava-se um cântico (regra geral o Te Deum Laudamus; seguia-se a

oração Deus qui corda fidelium finda a qual era pregado um sermão que misturava o

latim com o vernáculo. No final do sermão as heresias eram nomeadas e condenadas ao

mesmo tempo que se exaltava a fé católica. Seguia-se uma leitura das sentenças, por

15
ordem decrescente de gravidade, sem o conhecimento dos acusados ou, sequer, a

possibilidade de se defenderem.

Devo referir que, antes deste Auto-de-Fé público, havia o chamado Auto-de Fé

privado que era feito à porta fechada sendo os acusados torturados de modo a

confessarem e abjurarem.

Acerca de todo este espectáculo, Isabel Drumond Braga refere:

“O aparato e exuberância dos autos, a teatralidade de todos os actos e a

ligação intrínseca dos autos de fé aos relaxamentos ao braço secular, não obstante

as queimas serem realizadas em locais diferentes e num momento posterior,

acabaram por tornar a cerimónia uma das mais marcadas imagens da instituição. O

auto da fé, uma festa religiosa e, sobretudo, uma representação teatral da fé,

tornaram-se, em última instância, o rito maior da Inquisição.” (DRUMOND

BRAGA, p.185)

O primeiro auto-de-fé, registado, teve lugar em Paris em 1242, no reinado de

Luís IX. O primeiro auto-de-fé espanhol teve lugar em Sevilha, em 1481. O primeiro

auto-de fé português teve lugar em 1540.

A Inquisição portuguesa foi estabelecida em 1536 e durou, oficialmente, até

1821. A sua influência foi reduzida na segunda metade do séc. XVIII, durante o

governo do Marquês de Pombal, mas foi reforçada no reinado de D. Maria I. Os autos-

de-fé eram executados, também, no México, Brasil e Perú e foram registados por vários

historiadores contemporâneos vocacionados para o período dos Descobrimentos como,

por ex., Bernal Díaz del Castillo. Também em Goa, após o estabelecimento da

Inquisição em 1562, se praticaram autos-de-fé.14

14
A próxima etapa será a articulação dos elementos que me permitirão abordar as execuções na fogueira
das penas máximas, numa cerimónia também ela repleta de significado, no referente à modelação do
indivíduo e da sociedade, estruturada de modo espectacular.

16
A teatralidade está presente na maioria das acções humanas – apresenta um

conjunto de características estruturais de uma acção – e visa sempre uma consequência,

i.e., objectiva um resultado posterior; uma “alteração”. Quase tudo o que fazemos, quer

em grupo ou isoladamente, é suposto ter um determinado efeito ou resultado. Isto

significa que pensamos sempre considerando o que vai ser visto e se irá ser aceite ou

não. Este “espectador” projectado pode tornar-se real (uma pessoa concreta ou um

grupo de pessoas) ou invisível, ie., divino (e.g. Deus).

Durante a performance, i.e., entre o momento em que esta começa até o

momento em que termina, existe um período que Victor Turner designou como

liminalidade ou liminaridade. Este período compreende a transformação – o espectador

já não é o que era antes e ainda não é o que vai ser no final (mesmo que se dê, apenas,

uma alteração ligeira e subtil). No caso concreto do Auto-de Fé, era durante esse

período que acredito que algo semelhante à Κάθαρσις (kátharsis) acontecia. O público

temia pelas suas “almas” e pelos seus corpos uma vez que a possibilidade de serem

queimados numa fogueira, enquanto máxima e derradeira pena, os horrorizava. Mesmo

que o espectáculo de violência e morte os atraísse, acredito que ficariam horrorizados

ou, pelo menos, alterados com a “imagem” dos condenados a serem queimados15. Mas

este último “espectáculo” era secular. Não era executado pela Igreja, apesar de ser

devido a esta última que tal ocorria. A sentença é o momento irreversível e, por essa

razão, o mais temível. A fogueira apenas concretizava o que já tinha acontecido durante

o auto-de fé (a proclamação dos condenados com hinos, cânticos e salmos). Já existia

uma dimensão teatral na cerimónia católica e, um segundo e último acto seguia-se na

cerimónia secular. Este “segundo acto” podia não incluir hinos ou cânticos (ainda me

falta essa informação) mas incluía, seguramente, a coreografia dos guardas que levavam

15
Cabe-me aqui referir que o fogo também simbolizava o Inferno. Num capítulo vocacionado para a
simbologia dos elementos utlizados durante o Auto-de-Fé desenvolverei este aspecto.

17
a vítima para o local da fogueira, os gritos da multidão (quer encorajando ou rebelando-

se), os tambores e os efeitos vocais do anùncio da execução da pena.

No capítulo seguinte irei estruturar o Auto-de-Fé com o modelo da tríade de

Roger Garinger/Victor Turner: Momento Pré-Liminal; Momento Liminal; Momento

Pós-Liminal.

18
6 – Imagens

1 – Um Auto-de-Fé

Gravura a cobre intitulada “Die Inquisition in Portugall” por Jean David Zunner retirada

da obra “Description de L’Univers, Contenant les Differents Systemes de Monde, Les

Cartes Generales & Particulieres de la Geographie Ancienne & Moderne” por Alain

Manesson Mallet, Frankfurt, 1685

19
2 – Sambenitos

Autor: Paulo Sant’Ana

20
Bibliografia:

BETTENCOURT, Francisco

1996, História das Inquisições – Portugal, Espanha e Itália, Lisboa: Temas e

Debates

BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond,

2006, “Representação, Poder e Espectáculo: o Auto da Fé”, Turres Veteras VIII.

História das Festas, coordenação de Carlos Guardado da Silva, Lisboa, Torres

Vedras, Edições Colibri, Câmara Municipal de Torres Vedras, Instituto

Alexandre Herculano, pp. 177-185.

DELLON, Charles,

1996, Narração da Inquisição de Goa, trad. e nts. de Miguel Vicente de

Abreu, 2ª ed., Lisboa: Antígona

DEBORD, Guy

1991, A Sociedade do Espectáculo, Lisboa: Mobilis in Mobile

EVREINOV, Nicolai

S/D, El teatro y la vida, Buenos Aires: Leviatã

FINTER, Helga

2003, “A teatralidade e o teatro; espectáculo do real ou realidade do

espectáculo? – Notas sobre a teatralidade e o teatro recente na Alemanha” , in

Revista Teatro al Sur, n.º25, Argentina

FISHER-LICHTE, Erika

2005, Theatre, Sacrifice, Ritual: Exploring Forms of Political Theatre,

London and New York: Routledge

GOFFMAN, Erving

21
1959, The Presentation of Self in Everyday Life, New York: Doubleday

Anchor Books Doubleday & Company, Inc.

GRAÍNGER, Roger

2009, The Drama of the Rite, Eastbourne: Sussex Academic Press

JOUSSE, Marcel

1969, L’Anthropologie du geste, Paris: Resma

MOSSE, George L.; BRAUN, Emily; BEN-GHIAT, Ruth

1999, A Estética do Fascismo, Lisboa: Edições João Sá da Costa

PAVIS, Patrice

1996, Dictionnaire du Théâtre, préface de Anne Ubersfeld, Édition revue et

corrigée, Paris: Dunod

SCHIAPPA, Bruno

2004, Fernando Arrabal : o paradoxo da teatralidade, orient. de Mª João

Brilhante, Tese mestr. , Estudos de Teatro, , Lisboa: Fac. de Letras

TURNER, Victor

1969, The Ritual Process, Structure and Anti-Structure, New York: Aldine de

Gruyter

22

Você também pode gostar