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Breve apresentação do autor:

Julio Cortázar, escritor argentino, nasceu em Bruxelas, em 1914, pois seu pai era
diplomata na Bélgica. Na época da ditadura, acabou por autoexilar-se na Europa, tendo
conseguido um trabalho na Unesco. Com isso, ele ia e vinha da Argentina para a Europa,
tendo morrido em Paris, em 1984. Esteve algumas vezes em Cuba, pois era um entusiasta
dos primeiros tempos da revolução. Lá escreveu aquele excelente discurso que
possivelmente vocês leram no primeiro ano, no curso de IEL II, “Alguns aspectos do
conto”, traduzido em português e integrante do livro de ensaios Valise de cronópio.
Também no começo da revolução sandinista, esteve na Nicarágua. Era um viajante
interessado em várias culturas, inclusive esteve também no Brasil.
Percebe-se nele muitas influências da prosa moderna mais experimental, como de
V. Woolf, J. Joyce, J.L. Borges, assim como do surrealismo.
Começou a publicar em 1949, tendo escrito “Los Reyes”, um poema dramático, no
qual se refere ao mito de Teseu e ao Minotauro.
Mas o que o tornou famoso foram os contos, das diversas antologias, como
- 1951 Bestiario
- 1956 Final de jogo
- 1959 As armas secretas – deste livro, leremos “O perseguidor”, que irei comentar
na gravação. Outro conto muito interessante é “As babas do diabo”, que inspirou o filme
“Blow Up”, de Antonioni. Nele, explora-se a ambiguidade nas relações entre indivíduo e
realidade: o ângulo do contar muda tudo. O humor metafísico, a linguagem do absurdo, o
fantástico...para liberar a estranheza da condição humana. Um de seus temas centrais é a
viagem, relacionada à busca, no interior do homem, de sua identidade. Outro é a limitação
do conhecimento do narrador – sua dificuldade para narrar, a questão do foco e do ponto de
vista narrativos – as estratégias de aproximação em relação à matéria do real.
- 1962 Modelo para armar
E, principalmente, em
- 1963 Rayuela (O jogo da amarelinha) que, para alguns de seus críticos,
representa, para o espanhol, o que Ulisses de Joyce representa para o inglês. É um romance
interessantíssimo, que traz, no começo, instruções de leitura como se fosse um jogo. O livro
tem muitas possíveis leituras diferentes, o leitor pode alterar a ordem. Os sentidos são
plurais, inesgotáveis...
Seria em parte autobiográfico?
Escrito em primeira pessoa, traz um narrador chamado Oliveira, que é um escritor
argentino que empreende uma peregrinação interior, à procura da mulher amada. Paris, a
amada que desaparece, chamada Maga, o escritor Morelli, o Clube da serpente... e inúmeras
reflexões imaginosas integram esse romance extraordinário.
Outro livro que contribuiu para sua fama mais popular foi a coletânea de pequenos
textos chamada
- 1964 Histórias de cronópios e de famas. É um livro bastante irregular, mas não
consegui evitar o desejo de deixar para vocês dois dos textos breves, da primeira parte, que
se chama “Manual de instruções”. Ambos versam sobre relógios, algo que os jovens, creio
eu, não usam mais, principalmente estes de que tratam os textos, que são de corda.
Antigamente, a gente precisava dar corda no relógio todos os dias, se possível na mesma
hora. Mas, como há, nesses textos, uma reflexão sobre o tempo, achei que serviria ao nosso
curso. (Em tempo: há um erro de digitação no título do primeiro fragmento).
Neste livro, Cortázar popularizou essas personagens fantásticas, de estranhos
hábitos, os cronópios...
Continuando...
- 1966 Todos os fogos o fogo – traz um dos contos mais conhecidos de Cortázar, “A
autopista do sul”. Sobre ele, o dramaturgo Ariel Dorfman escreveu um artigo lindo, “Los
múltiples retornos de Julio Cortázar” no qual reflete sobre a apropriação indébita que a
fábrica de carros Renault fez, numa peça publicitária, do enredo do conto. Dorfman se
indigna com essa propaganda de automóveis que inverte o sentido dado por Cortázar ao
congestionamento, pois desde sempre Cortázar foi crítico da velocidade e da máquina, que
automatizam a vida e desumanizam as relações. Dorfman vê num muro de Buenos Aires,
grafitada, a frase “Volvé, Cortázar, que te cuesta?” que o faz recordar de um outro conto,
“Continuidade dos parques”, no qual uma personagem lê um livro de suspense enquanto o
assassino, personagem da história que lê, caminha ao seu encontro para matá-la. Dorfman
imagina, então, que o fantasma do escritor poderia voltar para impedir que traiam os seus
ideais.
- 1967 A volta ao dia em oitenta mundos – mistura de diário, caderno de colagens,
fotos, desenhos, reflexões, rascunhos
- 1970 Último Round
- 1972 Prosa do observatório (ensaios)
- 1974 Octaedro
- 1982 Os autonautas da cosmopista – é um tipo de diário de bordo, no qual
Cortázar vai contando e refletindo a respeito de uma viagem que ele e sua mulher fizeram a
bordo de um trailer (que batizaram de Fafnir, em homenagem ao dragão da saga dos
Nibelungos). Eles resolveram pegar uma estrada na França, que deve ter uma distância
mais ou menos como de São Paulo ao Rio de Janeiro, mas demoraram um mês para chegar
ao destino, parando em todos os lugares no caminho, conversando com as pessoas, se
desviando por atalhos vicinais. Assim como em “A autopista do sul”, há um desejo de
ralentar a velocidade, insurgir-se contra a mecanização da vida e sentir o tempo em outra
dimensão, na qual se pára de correr automaticamente. É um dos temas secretos do conto “O
perseguidor” – no caso, a relação entre o artista e o crítico (que não compreende
completamente a noção de tempo do artista).
- 1982 Fora de hora – há um conto terrível sobre os mecanismos escusos do poder,
“A escola de noite”
- 1993 publicação, no Brasil, de Valise de cronópio: ensaios sobre o conto, sobre
Poe, dentre outros.

Passo a resumir algumas ideias do livro O escorpião encalacrado:


Segundo Davi Arrigucci Jr., um aspecto a destacar na obra de Cortázar é a reflexão
crítica do autor sobre a arte e a literatura dentro dos textos, que se faz a partir da
autoconsciência do processo: o autor é um constante perseguidor, que se indaga e se revolta
em relação à realidade. Desconfia da fachada da narrativa e do próprio real de fachada, uma
vez que, segundo ele, “a verdade tem que ser invenção” e não cópia, pois está em oposição
e rebelião em relação à realidade. Sua escrita é problemática e questiona a si mesmo.
Utiliza recursos de paródia e ironia. Por isso, Arrigucci encarece, em Cortázar, o que
chamou de “poética da destruição” (o escorpião que morde a si mesmo para conservar-se
ainda mais escorpião).
Um personagem comum à sua literatura é o duplo, o escritor sósia, o crítico que
critica a si mesmo. Ele pode destruir os instrumentos de trabalho, ser rebelde ao ponto de
voltar-se contra si mesmo, em uma báscula entre construção e destruição, na qual se recusa
à acomodação fácil.
Haveria um tipo de surrealismo “realista” em sua escrita, como se o insólito
irrompesse no cotidiano e parecesse “normal”, enquanto, na verdade, é uma ruptura.
Sua literatura é uma “busca incessante” (erótica, metafísica, política) por “intervalos
fulgurantes” no mundo administrado, seguindo a “ordem do desejo”. Tal como o
perseguidor do conto homônimo, ele procura a liberdade e a possibilidade de improvisação,
como no jazz.

Alguns pontos comuns entre Borges e Cortázar são:


- a simbiose entre criação e crítica
- a oscilação entre realidade e ficção: uma poderia ser a outra
- a tematização da literatura em si mesma (indagação do processo, reflexão sobre a
escrita, denunciar as convenções da arte, a metalinguagem)
- nesse sentido, a arte dentro da arte: espelhos, duplos, labirintos
- as constantes rupturas, como se a morte da arte convencional também fosse arte,
sondando, portanto, os limites da literatura
- as perplexidades metafísicas
- as demonstrações de erudição (referências culturais explícitas)
- uma busca incessante por atingir uma expressão adequada do real, que escapa.

Porém, enquanto Borges é um narrador “olímpico”, superior, distanciado, Cortázar


tende a se colocar num ângulo interno, assumindo a perspectiva da personagem, utilizando
para isso o discurso indireto livre, o monólogo interior, o fluxo de consciência. Há, muitas
vezes, identificação entre a personagem e o narrador, em primeira pessoa. Borges costuma
ser um mestre das afirmações claras e seguras, que seguem uma ordem rigorosa, ainda que
levem ao caos. Já Cortázar busca o miolo da realidade, utilizando por vezes técnicas de
montagem e fragmentação para penetrar na interioridade das personagens.
Para resumir essas diferenças, Arrigucci reproduz duas citações de ambos os
autores:
“A literatura é a transposição mental do mundo” (Borges)
“A literatura é uma empresa de conquista verbal da realidade” (Cortázar)

Penso que a escrita de Cortázar tem afinidade com a constante reavaliação


de pressupostos característica da arte contemporânea, que faz da arte um laboratório muito
livre para a experimentação, como se ela fosse uma atividade produtora ou mediadora na
instauração de uma nova realidade. Por isso, sua escrita revela a crise, questionando seus
próprios procedimentos, indagando o processo, sempre em autorreflexão. É comum, em
seus contos, que Cortázar exponha o bastidor, quebrando o ilusionismo da representação.
Por vezes, há uma incompletude proposital em sua escrita, para que o leitor possa se
interrogar sobre os limites entre realidade e ficção.

Referências bibliográficas:

- Arrigucci Jr., D. O escorpião encalacrado. São Paulo: Perspectiva, 1973.


- Cortázar, J. As armas secretas. Trad. E. Nepomuceno. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1994.
- Cortázar, J. Histórias de cronópios e de famas. Trad. G. Rodriguez. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
- Cortázar, J. Valise de cronópio. Trad. D. Arrigucci Jr. e J. A. Barbosa. São Paulo:
Perspectiva, 1974.
- Josef, B. O espaço reconquistado. Petrópolis: Paz e terra, 1993.
- Passos, C.P. O outro modo de mirar. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

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