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Distância e Conexão

Insularidade, relações culturais e sentido de lugar


no espaço da Macaronésia
Distância e Conexão
Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia
Autor
Eduardo Brito Henriques
Edição
IAC-Instituto Açoriano de Cultura
Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa
2009
Co-financiamento
Fundação para a Ciência e a Tecnologia
Apoio
Presidência do Governo dos Açores / Direcção Regional da Cultura
Capa
Angelina Caixeiro
Concepção gráfica
SerSilito - Maia
Depósito legal
304601/10
ISBN
978-989-8225-11-5
Eduardo Brito Henriques

Distância e Conexão
Insularidade, relações culturais e sentido de lugar
no espaço da Macaronésia

Instituto Açoriano de Cultura


Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa
2009
Aos meus filhos
Agradecimentos

Alguns amigos e colegas têm especiais créditos neste livro. Na acade-


mia, José Manuel Simões, João Sarmento, José Maria Semedo e Aquiles
Almada. Fora dela, Pedro J. Cota, com grande destaque. Também os
meus filhos, a Ana Teresa e os amigos com quem visitei as ilhas, em
férias que foram das melhores de sempre. Finalmente, creio que este
livro deve também bastante a Jorge Gaspar e a Raquel Soeiro de Brito,
mestres que influenciaram a forma como entendo a Geografia.

9
A Macaronésia no Atlântico

Fonte: Base cartográfica ESRI, trabalhada por Pedro Palma.


Nota de abertura:
insularidade e nissologia

Quem pretenda ter uma visão panorâmica sobre o espaço da Maca-


ronésia, a sua história e geografia, poderá eventualmente ser levado a
crer que encontra neste livro a resposta. Percebo que haja na aparência
desta obra algo de uma monografia, coisas que recordam a velha tradição
dos estudos corográficos, e que isso possa criar essa ilusão. A verdade,
porém, é que é de outra natureza este trabalho. Os estudos clássicos
produzidos pela Geografia Regional obedeciam a uma lógica diferente,
mais englobante, mais holística que a deste livro. Começavam quase
sempre por uma primeira abordagem analítica das várias dimensões
físicas e humanas da geografia – do relevo e do clima à vegetação, das
actividades económicas aos costumes – para chegarem finalmente a uma
síntese ou leitura de conjunto, sempre na tentativa de mostrarem que
tudo isso se relacionava e que resultava na formação de uma «totali-
dade» mais ou menos única em cada lugar ou região. Este livro não tem
essa ambição de ecletismo nem de síntese. O seu objectivo é, ao mesmo
tempo, mais circunscrito, e mais teórico: tudo quanto aqui pretendo é
apenas reflectir sobre o que é a insularidade e sobre o modo como ela
se expressa nas Ilhas Atlântidas.
Chego a este livro na sequência de um interesse já antigo que fui
desenvolvendo pelo estudo das percepções e representações do espaço
e dos lugares. As ilhas ocupam um lugar de destaque na imaginação
geográfica, são locais com uma poética especial, como dizia Gaston
Bachelard (1957), e isso explica que circulem na sociedade tantos pres-
supostos e ideias feitas a respeito da insularidade, que de vulgo não se
inquirem nem se contestam. Entre essas «certezas» que costumamos
aceitar como categóricas ou definitivas sobre as ilhas e a condição insular
estão ideias como as de isolamento e solidão, de separação e afastamento,

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Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

de fechamento e de aprisionamento, quer dizer, tudo coisas que de uma


forma ou de outra sugerem um autocentramento destes lugares sobre
si mesmos, um certo alheamento e autarcia, portanto, características
que em geral não podem ser tidas propriamente como formidáveis
(a respeito destes e de outros mitos que envolvem a insularidade, veja-se
Baldacchino, 2006, ou Lowenthal, 2007).
Todas estas ideias que normalmente se aceitam como válidas são
difundidas e reproduzidas quase de modo permanente nos mais diversos
meios de comunicação e formas de discurso, da literatura e da imprensa
escrita ao cinema e às televisões, das revistas de lifestyle aos guias
turísticos, em mensagens que circulam na forma de textos e difusas na
cultura visual. De cada vez que uma estrela do cinema, ou um escritor
consagrado, ou um multimilionário, se afasta para uma ilha ou constrói
um refúgio de férias nela, revigoram-se no pensamento colectivo todos
esses mitos de isolamento e exclusão associados à insularidade. Nem
mesmo o discurso político escapa a essas ditas «certezas». Também este
internalizou uma parte delas e, fazendo-o, oficializou-as. Na UE, con-
cretamente, isso é hoje muito visível. As ilhas, embora abarquem uma
grande variedade de situações, e em rigor não possam ser comparados
os estrangulamentos ou as necessidades de uma Maiorca ou de uma
Sicília aos que sofrem, por exemplo, as pequenas Hébridas, todas, umas
e outras, pelo simples e único facto de serem ilhas, tendem a ser vistas
como territórios «frágeis», quando não até «problemáticos». A atribuição
às ilhas de prerrogativas especiais e medidas de política específicas é
aliás a prova acabada do reconhecimento pelas instâncias comunitárias
de que estas padecem de problemas particulares. Um passo fundamental
nesse sentido foi dado em 1997, com a inscrição do estatuto de «região
ultraperiférica» no Tratado de Amesterdão (artigo 229, n.º 2), e com a
Declaração 30, a ele apensa, onde se reconhecia oficialmente a existência
de «handicaps estruturais» nas ilhas que «impedem o seu desenvolvimento
económico e social». Desde então, juntamente com as áreas de monta-
nha e as regiões remotas de baixa densidade demográfica, e muito por
pressão das próprias regiões insulares, que se souberam constituir como
um lobby audível junto das instâncias comunitárias1, as ilhas têm surgido

1
Entre essas organizações de lobby, cito, a título de exemplo, a Comissão das Ilhas da
Conferência das Regiões Marítimas Periféricas (CRMP), ou a Rede das Câmaras de
Comércio e Indústria Insulares da União Europeia (INSULEUR). A última, instituída

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Nota de abertura: insularidade e nissologia

sistematicamente associadas nos documentos oficiais a regiões com


«dificuldades particulares de desenvolvimento» (é assim que aparecem
descritas, por exemplo, na comunicação da Comissão de 2008 conhecida
por Livro Verde sobre a Coesão Territorial Europeia2), atribuindo-se o motivo
dessas dificuldades às suas «características geográficas específicas», o
que – subentende-se – quer dizer à própria insularidade.
É incontestável que as ilhas possuem problemas particulares que
decorrem da sua natureza. Pelo menos, as ilhas mais pequenas, uma
vez que nas maiores, em ilhas de certa dimensão e populosas, como
a Grã-Bretanha ou até a Zelândia, todas essas dificuldades surgem já
muito diluídas, ao ponto de quase não haver sequer cabimento a que
se fale da insularidade nos mesmos termos. Nessas outras primeiras
em que faz sentido falar-se de dificuldades próprias ou inerentes à sua
condição, podemos pensar, por exemplo, nos problemas que decorrem da
fragilidade especial dos ecossistemas insulares (biodiversidade reduzida,
elevada proporção de endemismos, recursos de água e alimento escassos,
etc.), ou da susceptibilidade particular que estes territórios têm face a
uma grande variedade de riscos (vulcões e sismos, por causa da sua
génese; erosão costeira, eventos climáticos extremos, poluição marítima,
etc., por causa da sua situação). Depois, à insularidade ligam-se ainda
outras dificuldades, de cariz humano, como os problemas que relevam
da «falta de escala», em que os economistas também insistem bastante,
e com razão. Entre os inconvenientes que isso produz estão problemas
ao nível da gestão do solo (demasiada pressão sobre o recurso terra e
competição entre diferentes usos) e do mercado de trabalho (falta de
mão-de-obra e mão-de-obra pouco qualificada), para além das dificul-
dades muitas vezes sentidas em mobilizar capitais e em canalizá-los
para investimentos produtivos, em prover infra-estruturas e serviços

em 2000, que agrega basicamente as câmaras de comércio das ilhas mediterrâneas,


tem em vista defender o interesse económico das referidas regiões (da perspectiva
das empresas e dos empresários), e, para maior eficácia, mantém um representante
permanente junto da Comissão Europeia. A Comissão das Ilhas da CRMP é mais
antiga (foi criada em 1981) e reúne representantes dos governos de 25 regiões insulares
da Europa (não apenas da UE); este organismo, que tem como objectivo assegurar a
cooperação entre as várias regiões participantes nele e manter as instituições europeias,
os estados-membros e o público em geral cientes e informados sobre os problemas
das ilhas, mantém também uma representação junto das instâncias comunitárias e
integra diversos órgãos consultivos destas.
2
COM (2008) 616 final, de 6.10.2008.

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Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

públicos (não há muitas vezes nas ilhas limiares mínimos de procura), e


dificuldades até em assegurar o simples abastecimento de água e energia,
o que de resto, historicamente, sempre foi um dos maiores obstáculos
à ocupação humana das ilhas3. Não obstante estes problemas, que são
reais e frequentes, afectando em maior ou menor intensidade todas as
regiões insulares, mas sobretudo as pequenas ilhas, é a outras coisas que
em regra se refere quem enuncia as dificuldades e os estrangulamentos
a que as ilhas estão sujeitas. O tema dominante nos discursos sobre a
insularidade costuma ser o das acessibilidades, criando-se com isso a
ideia de que as regiões insulares são por «natureza», ou por inerência,
periféricas e isoladas.
Nos últimos anos, muito por influência dos estudos pós-coloniais,
alguns autores começaram a questionar a verdade destas «certezas», e
mesmo a sua bondade e até utilidade para as próprias regiões insulares.
A teoria crítica pós-colonialista aplica-se na verdade a todos os espaços
e povos que conheceram a experiência do colonialismo, e logo também
às ilhas. A história das ilhas é uma história de territórios que, na maior
parte dos casos, se viram dominados por outros territórios maiores e
mais poderosos, a que o inglês, de modo muito expressivo, designa
genericamente de mainlands. O que a teoria crítica pós-colonialista fez, em
suma, foi abrir caminho a que se questionassem as várias representações
que a Modernidade ocidental, instituída ela mesma como uma espécie
de «mainland», criou a respeito dos diversos espaços e povos que lhe
eram exteriores ou marginais, e que ela por isso viu como «inferiores»,
sempre na tentativa de desmontar ideologicamente tais narrativas e
de, nesse exercício, «lançar as bases para a afirmação de novas políti-
cas de lugar», como diziam José Ramiro Pimenta et alli (2008, 12). No
estudo das ilhas em particular, a influência desta abordagem crítica
pós-colonialista traduziu-se na emergência da chamada nissologia, uma
nova geração de estudos, dominada por um novo paradigma, que tem
estado a questionar fortemente as teorias mais comuns sobre as ilhas
e os povos insulanos, geradas pelas mainlands, e que a essas narrativas
hegemónicas procura contrapor uma outra leitura da condição insular,
3
Este é o diagnóstico feito, por exemplo, em Planistat Europe & Bradley Dunbar Ass.
(2003). O mesmo estudo identifica, para o caso europeu, e no estado actual de desen-
volvimento, o limiar dos 5.000 habitantes como crítico, informando que abaixo desse
nível se agravam subitamente os problemas das ilhas que relevam das deseconomias
de escala e se torna periclitante a sobrevivência das sociedades humanas (ibid., 44).

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Nota de abertura: insularidade e nissologia

engendrada nas próprias ilhas, produzida portanto a partir de «baixo»


e de «dentro», na tentativa de com isso construir uma teoria alternativa
da insularidade4.
Um dos pontos em que a nissologia mais tem insistido é na necessidade
de superar a visão tradicional da insularidade, que sistematicamente tende
a ressaltar os pontos fracos das ilhas, as suas lacunas e fragilidades, e a
omitir os recursos e as potencialidades que estes locais também encerram
(cf. McCall, s.d., em linha; D’Arcy, 2001). Os autores congregados sob
o novo paradigma nissológico reclamam que essa postura tradicional é
uma forma simplista e estereotipada de analisar a realidade das ilhas,
enviesada pelo pressuposto da superioridade das mainlands em relação
aos pequenos espaços insulares. Para além desta não ser de todo uma
visão rigorosa ou exacta das ilhas, advogam, tem ainda a desvantagem
grave de reforçar dependências e de com isso poder funcionar como uma
força incapacitante do desenvolvimento das próprias regiões insulares.
No Pacífico, onde a abordagem nissológica emergiu primeiro e está
mais solidamente implantada, um dos aspectos que tem sido objecto
de maiores críticas é precisamente a ideia da ilha como metáfora do
local isolado (cf. D’Arcy, 2001; Hay, 2003; ou Matsuda, 2007). Este livro
pretende demonstrar que também no espaço do Atlântico, e olhando
particularmente para a Macaronésia, a ideia da ilha como local isolado é
profundamente equívoca, em nada ajudando a compreender a verdadeira
natureza dos espaços insulares. Aquilo que marca ou define o sentido
de lugar nas Ilhas Atlântidas não é o isolamento, nem a marginalidade
extrema que em princípio deveriam corresponder à «ultraperificidade»,
mas um estranho equilíbrio construído na ambiguidade da distância e
da conexão. É esta a tese do livro, e é isso que procurarei demonstrar nas
páginas que se seguem, depois de uma breve apresentação do espaço
da Macaronésia, necessária para que nos situemos.

4
Creio que a primeira referência à nissologia nestes termos, ou seja, como projecto
científico de ruptura de paradigma, apareceu pela primeira vez proposta em G.
McCall (1994).

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1. O espaço da Macaronésia

Posição e composição

Macaronésia é a designação que nas ciências naturais tomam as ilhas


da metade oriental do Atlântico Norte, situadas a latitudes médias-baixas,
ou seja, sob influência mais directa das massas de ar quente tropicais
e subtropicais. O termo, aparentemente da autoria de um naturalista
britânico da primeira metade do séc. XIX – Phillip Baker Webb – que
estudou a flora deste extenso domínio oceânico, é a forma grega para
«ilhas afortunadas»1, designação que remete para uma velha tradição
de histórias mais ou menos míticas sobre o imenso oceano que se abre
depois de Gibraltar e das terras que supostamente nele existiriam.
Referências a ilhas atlânticas fantásticas foram comuns na geosofia
grega e romana antigas e persistiram por bastante tempo ainda após a
Antiguidade, quer no pensamento cristão quer muçulmano2. A Atlântida,
a ilha-continente perdida de que Platão contou o infortúnio nos seus
diálogos, será talvez o mais célebre de todos esses espaços insulares
míticos3. As Ilhas Afortunadas (ou Abençoadas) possuem uma história
quase tão longa. Ao contrário da Atlântida, porém, de que se não sabe
na lenda o que é factual e o que é mítico, e de que apenas há referências
vagas, estas últimas possuem uma correspondência directa na realidade e

1
De makariôn, que significa «felicidade» (ou fortuna), e nesôi, que quer dizer «ilhas».
Este sufixo aparece na designação de numerosos grupos de arquipélagos, sobretudo
no hemisfério oriental (Indonésia, Melanésia, Micronésia, Polinésia, etc.).
2
A obra de W. H. Babcock (1922) é um clássico sobre este tema. Ainda sobre este
assunto, mas bastante mais acessível, temos P. Pereira (2004, 34 e sgg.) e P. Pereira
(2005, 175 e sgg.).
3
Uma apresentação bastante circunstanciada do mito da Atlântida, inclusive com
uma tradução dos fragmentos dos Diálogos de Platão que se lhe referem, pode ser
encontrada em P. Pereira (2005).

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Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

podem ser facilmente identificadas. Plínio, o Velho, cita-as na sua Naturalis


Historiæ (c. 77 d.C.), o mais completo compêndio científico que a cultura
latina nos legou. Referindo-se quase de certeza às Canárias, situa-as
ao largo da província romana da Mauritânia (muito mais extensa que
o actual território com esse nome, dado que cobria todo o Magrebe) e
descreve-as como terras agraciadas pelos favores dos deuses, com um
clima ameno e grande abundância de plantas, aves e cães4.
Depois do período latino, as Ilhas Afortunadas mantiveram-se como
referência geográfica, embora na forma de um conhecimento cada vez
mais difuso. A redução do tráfego marítimo com o declínio do Império
Romano contribuiu para que a objectividade dos factos fosse cedendo
lugar à efabulação. Na Europa cristã, acabariam por ser incorporadas
num género literário novo de epopeias marítimas, com uma componente
hagiográfica forte, de inspiração céltica, que foi florescente na Irlanda
por finais do primeiro milénio5. Ficaram ligadas em especial à figura de
São Brandão e às aventurosas viagens que esse obscuro monge irlandês
teria empreendido no Atlântico em busca de uma «terra prometida». O
Navigatio Sancti Brendani, livro que conta a busca e a descoberta por este
monge das Ilhas Afortunadas, e que talvez tenha sido escrito inicialmente
pelos sécs. VIII ou IX6, foi uma obra que exerceu considerável influência
no pensamento medieval, sobretudo após o séc. X. Conhecem-se dela
um elevado número de cópias manuscritas em latim e traduções em
várias línguas europeias durante a Idade Média (cf. Nascimento, 1998), o
que sugere grande divulgação e pode explicar que as Ilhas Afortunadas
hajam conseguido manter uma presença constante nas representações
medievais do espaço geográfico, sempre extraordinárias na sua capaci-
dade de misturarem e confundirem fantasia e realidade.

4
Nat. Hist.: IV, 36 e VI, 37. Julga-se que seja a essa população canina (canis) que se
deve o nome do arquipélago das Canárias. Já os canários (Serinus canaria) são aves
endémicas da Macaronésia, cujo nome comum advém precisamente dessa origem
geográfica. A citada referência de Plínio, o Velho, às aves tem muito provavelmente
que ver com a presença destes pássaros de canto exuberante.
5
Pode conhecer-se mais sobre essa literatura – os immrama – e a forma como os espaços
insulares aparecem nela representados em C. Van Duzer (2006).
6
Seguimos aqui as datas de referência de Van Duzer (2006, 146). Mas há outras datas
que se referem por vezes; em P. Pereira (2005, 44), por exemplo, São Brandão é colo-
cado no séc. XI.

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1. O espaço da Macaronésia

Quer na cartografia cristã medieval quer nas obras dos grandes geó-
grafos árabes coevos, como Edrisi (séc. XII), as Ilhas Afortunadas parecem
coincidir sempre com as Canárias, ou com parte delas (cf. Babcock, 1922,
38 e sgg). Hoje o termo Macaronésia designa – como já disse – uma área
muito mais vasta. Estende-se para sul, mas também para norte e noroeste,
incluindo ao todo cinco arquipélagos: os Açores, a Madeira, as Canárias,
Cabo Verde, e ainda o minúsculo e despovoado arquipélago português
das Ilhas Selvagens, que integra a Região Autónoma da Madeira e
depende administrativamente do concelho do Funchal7. Corresponde
portanto ao que na Geografia portuguesa também se designa de Ilhas
Atlântidas, ou Atlânticas8, isto é, um extenso domínio geográfico que
em latitude vai dos 15º aos 40º N, sensivelmente, e em longitude dos 13º
aos 30º W. Ao todo inclui 29 ilhas, onde habitam um pouco mais de 2,6
milhões de pessoas, a que se juntam algumas dezenas de ilhéus, estes
últimos sem ou praticamente sem população permanente9.

7
Convém advertir que as Ilhas Selvagens nem sempre são classificadas como um
arquipélago autónomo. Muito embora encontremos essa opinião em «mestres» da
Geografia portuguesa, como O. Ribeiro (1990, 29) ou C. A. Medeiros (2005, 19), no
Programa Nacional de Política de Ordenamento do Território (PNPOT), aprovado
pela Lei n.º 58/2007, de 4 de Setembro, as Ilhas Selvagens aparecem referidas como
subgrupo do arquipélago da Madeira. Mostra-se com isto que o agrupamento das
ilhas em arquipélagos contém a sua dose de ambiguidade. Além de critérios mais
objectivos ou constantes, de ordem geométrica, que têm que ver com o jogo das dis-
tâncias entre pontos à superfície da terra, parecem pesar também nessas estratégias
de agrupamento critérios de ordem política ou administrativa.
8
Esta designação aparece abundantemente na obra de Orlando Ribeiro e nas dos seus
discípulos dos anos 50, mais até do que o termo Macaronésia (cf., e. g., Ribeiro, 1990).
9
Talvez não seja tão fácil quanto se pense saber quantas ilhas e ilhéus compõem a
Macaronésia. A dificuldade está na definição de «ilha», que não é taxativa. A tradi-
cional descrição da ilha como porção de terra rodeada por água está longe de ser
suficiente, como aliás muito bem mostra S. Royle (2006). Para o EUROSTAT, por
exemplo, as «ilhas» ligadas ao continente por pontes ou túneis não são incluídas nas
estatísticas dos territórios insulares (não são consideradas «ilhas», portanto). Depois,
há dificuldades que se prendem com a arbitrariedade dos limiares de dimensão e
de população. Normalmente considera-se que acima dos 2,175 milhões de km2 – a
superfície da Gronelândia – falamos não de ilhas, e sim de continentes, mas mesmo
isto não é aceite pacificamente por todos (há o problema da Austrália, cujo estatuto
levanta polémica). O caso é depois muito mais complicado quando se trata de definir
os limiares inferiores e de diferenciar «ilhas» de «ilhéus» (e mais ainda, quando se trata
de destrinçar entre estes últimos e simples «rochedos»). Os critérios não são uniformes
nem constantes. A distinção não passa apenas pela dimensão. Para a mesma ordem

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Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

O arquipélago de Cabo Verde, que constitui desde 1975 um estado


soberano, é o mais meridional. Situado diante das costas subdesérticas
que se estendem em redor da desembocadura do rio Senegal, embora
a mais de 450 km do continente, estende-se em latitude dos 14º 48’ aos
17º 12’ N, e em longitude dos 22º 39’ aos 25º20’ W. Compõem-no dez
ilhas, nove das quais habitadas, e cinco ilhéus maiores, que perfazem
no total uma superfície de 4.033 km2, onde viviam 434.625 pessoas à
data do recenseamento de 2000.
As ilhas de Cabo Verde ficam quase no limite do embasamento do
continente africano, na transição para as planícies abissais do Atlântico.
Essa posição determina a forte assimetria do relevo submarino. Enquanto
a leste as ilhas se levantam de um fundo marinho situado a uma pro-
fundidade média de -3.500 m, a ocidente o relevo mergulha na chamada
Bacia de Cabo Verde, descendo logo rapidamente para profundidades
próximas dos -5.000 m.
As dez ilhas de Cabo Verde despontam nas águas alinhadas num
semicírculo aberto para ocidente. O arco setentrional, mais exposto aos
alísios, forma o chamado grupo de Barlavento10, abrangendo as ilhas
de Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia (hoje despovoada), São Nico-
lau, Sal e Boavista. O arco meridional é designado tradicionalmente de
Sotavento11 e inclui, de oriente para ocidente, as ilhas de Maio, Santiago,
Fogo (onde se situa o ponto mais elevado do arquipélago, com 2.829
m) e Brava. Em bom rigor, porém, atendendo à disposição geográfica e
à forma do relevo submarino, talvez o mais adequado fosse identificar
três grupos, um norte-ocidental, de Santo Antão a São Nicolau, um

de tamanho, pode falar-se umas vezes de «ilha» e outras de «ilhéu» consoante o grau
de afastamento ao continente, ou ainda consoante o referido território se encontre ou
não povoado. Espaços insulares da mesma dimensão tanto podem ser considerados
«ilhas», se estiverem bem isolados no mar, como «ilhéus», se se situarem perto da
costa, ou próximo de uma ilha maior. Para superar esta ambiguidade, e no caso
europeu, o EUROSTAT convencionou que uma «ilha» tem de ter uma população
permanente de pelo menos 50 habitantes e distar no mínimo 1 km do continente.
Nesta contabilização das ilhas da Macaronésia assumimos outro critério: considerá-
mos como «ilhas» todos os territórios insulares com superfície superior ao da mais
pequena ilha habitada da Macaronésia – o Corvo (17,1 km2). Isso fez-nos excluir a
Selvagem Grande e a Pequena (obviamente), mas incluir a ilha desabitada de Santa
Luzia (Cabo Verde) e a Graciosa das Canárias, pertencente aos Ilhéus Chinijo.
10
Na linguagem da marinha, barlavento significa o lado de onde sopra o vento.
11
Por oposição a barlavento, sotavento é o lado abrigado ou contra o vento.

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1. O espaço da Macaronésia

segundo, oriental, abrangendo as ilhas de Sal, Boavista, Maio e Santiago,


e finalmente um grupo sul-ocidental, incluindo as duas restantes. As
ilhas do grupo norte-ocidental situam-se relativamente próximas entre
si e emergem de uma base comum definida pela isóbata dos -500 m,
pelo que na prática se pode dizer que correspondem aos topos visíveis
de uma mesma formação submarina. Situação algo semelhante ocorre
no grupo oriental, sendo que neste caso, entre algumas ilhas (Maio e
Boavista, mormente), as águas não vão além dos -50 m de profundidade
e há inúmeros bancos e baixios, com todos os perigos que isso representa
para a navegação.
Santiago é a maior ilha de Cabo Verde e a mais populosa. Nos seus
991 km2 residiam à data do último recenseamento 236.627 pessoas, ou seja,
mais de metade da população do país; são números que correspondiam
nesse ano de 2000 a uma densidade de 237 hab./km2, o que se situava
muito acima da média do arquipélago (107 hab./km2). É de resto nesta
ilha que fica a capital – Praia, principal aglomeração urbana do país e
a única a ultrapassar a fasquia dos 100.000 habitantes, em resultado de
uma «explosão» urbana recente alimentada por um êxodo rural forte
que tem trazido gente de toda a ilha de Santiago e mesmo do resto do
arquipélago12. Às outras ilhas do Sotavento, consideravelmente menores,
cabem populações bem mais diminutas, que no Fogo ainda ascendiam
aos 37.421 habitantes no censo de 2000, mas que na Brava e no Maio
não chegavam sequer aos 7.000.

12
Os números divulgados pela autoridade estatística cabo-verdiana (INE-CV) indicam
que a cidade da Praia terá aumentado, só entre 1990 e 2000, em mais de 30.000 habi-
tantes, o que correspondeu a um crescimento de 53%. Tendo como referência 1960,
há hoje na Praia 8 a 9 vezes mais gente. A maior parte desse crescimento urbano
fez-se de forma não programada, e até à margem de qualquer regulação. Bairros de
lata e grandes extensões de casas de auto-construção, semi-acabadas, proliferam nos
planaltos (as chamadas achadas) em redor do centro da cidade. As ruas estão muitas
vezes por asfaltar e não há nesses bairros abastecimento público de água nem sis-
tema de recolha de esgotos. Falta além disso um adequado tratamento dos espaços
públicos. É por isso que se diz por vezes que a Praia é a mais «africana» de todas
as cidades cabo-verdianas. Em Santiago, justamente por causa deste crescimento
urbano desordenado, os níveis de atendimento da população em electricidade e
água, e os indicadores de conforto da habitação, são ainda mais baixos que a média
do país, que já de si é baixa: em 2000, só 17,2% da população da ilha tinha acesso
a água da rede pública (24,8% no total de Cabo Verde), 33,3% a casa de banho com
retrete (38,7% no país) e 43,1% a electricidade (50% no país) – isto segundo dados
do INE-CV.

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Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

Tanto a segunda maior ilha do arquipélago como a segunda mais


populosa se encontram no Barlavento. Refiro-me às ilhas vizinhas de
Santo Antão e São Vicente. Santo Antão, a mais setentrional do arqui-
pélago de Cabo Verde, é a maior em superfície depois de Santiago. A
esta ilha, que atinge cerca de 40 km no seu maior comprimento por
aproximadamente 20 km de largura, corresponde um relevo bastante
acidentado, que em vários sítios ultrapassa os 1.800 m de altitude. A oro-
grafia e a sua exposição aos ventos fazem de Santo Antão uma das ilhas
menos secas de Cabo Verde. A população vive repartida por modestos
aglomerados rurais, de agricultores e pescadores, que as montanhas e
a pobre rede de acessibilidades mantêm em relativo isolamento entre
si. Já bem diferente é a situação da vizinha São Vicente, que, embora
consideravelmente menor (227 km2), tinha no último recenseamento mais
20.000 pessoas do que Santo Antão, e uma população essencialmente
urbana. Os seus 67.173 habitantes recenseados em 2000 estavam forte-
mente concentrados na cidade do Mindelo, a segunda do país. É aliás
essa acentuada urbanização que explica uma densidade populacional
na ilha quase três vezes superior à média de Cabo Verde.
O arquipélago das Canárias, que integra o reino de Espanha e corres-
ponde a uma das suas comunidades autónomas, com governo regional
próprio, situa-se cerca de 1.300 km a nordeste de Cabo Verde, diante das
costas de Marrocos e do Sara Ocidental. De todas as Ilhas Atlântidas,
as Canárias são as que mais próximo estão de uma massa continental,
distando Forteventura e Lançarote13 (as ilhas mais orientais) apenas uma
escassa centena de quilómetros da costa africana.
Compreendendo oito ilhas povoadas e vários pequenos ilhéus adja-
centes, que perfazem no total uma superfície emersa de 7.447 km2, as
Canárias estendem-se em latitude entre os 27º 37’ e os 29º 25’ N, e entre
os 13º 20’ e os 18º 10’ W de longitude. Formam portanto como que um
alinhamento perpendicular à costa africana, não tão claro no caso das
ilhas de Forteventura, Lançarote e dos Ilhéus Chinijos, que se dispõem
ainda na direcção nordeste-sudoeste, mas muito patente em todas as
restantes, que seguem já uma orientação segundo os paralelos. Forte-
ventura, Lançarote e os Chinijos, onde se situa a Graciosa das Canárias

13
Em Português, a tradição aconselha esta grafia em vez do uso de Fuerteventura e de
Lanzarote, como no castelhano original. Porém, tende a ser cada vez mais comum
ver as duas ilhas designadas também desta maneira.

24
1. O espaço da Macaronésia

(a mais pequena ilha do arquipélago14, com cerca de 700 habitantes em


27 km2), estão tão próximos da costa africana que praticamente emergem
do rebordo da plataforma continental – o início da zona batial, área
que é sempre particularmente rica em recursos piscícolas15; essa é aliás
a razão por que não tem sido pacífica, nem está totalmente resolvida, a
definição das fronteiras marítimas das Canárias com Marrocos.
A génese das Canárias apresenta fortes semelhanças com a das ilhas
de Cabo Verde. Embora estas últimas tenham nascido alguns milhões
de anos mais cedo, em meados da Era Terciária, ambos os arquipéla-
gos parecem corresponder a «pontos quentes»16. As ilhas mais antigas
coincidem, quer num quer noutro caso, com as mais a oriente, o que é
consonante com a hipótese de um deslizamento da placa africana para
leste em resultado da abertura do oceano e, logo, da sua passagem
sobre esses ditos «pontos quentes»17. No caso das Canárias, pensa-se
que Forteventura e Lançarote terão tido a sua origem há mais de 20
milhões de anos, enquanto as ilhas ocidentais se supõe que sejam bem
mais jovens, talvez já do Quaternário (Villalba, 1999).

14
A Graciosa (Canárias) é muitas vezes considerada apenas um ilhéu. Vd. nota anterior,
onde se discute o conceito de ilha.
15
As plataformas continentais, que correspondem às margens submersas adjacentes aos
continentes até aos -200 m de profundidade, são os espaços do oceano mais ricos em
recursos piscícolas. Para além da luz solar penetrar nestas águas em profundidade,
beneficiam frequentemente de upwellings que trazem à superfície nutrientes acumulados
nos fundos marinhos. Estes dois factos concorrem para que haja abundante produção
de fitoplâncton e, com isso, recursos para as espécies pelágicas que alimentam as
populações humanas – para um aprofundamento desta matéria, consulte-se A. R.
Longhurst (1998).
16
A hipótese dos hot spots, ou «pontos quentes» (também, às vezes, chamadas «plumas
térmicas»), foi desenvolvida em complemento da teoria da tectónica de placas, para
suprir a incapacidade desta na explicação dos vulcões situados no meio das placas.
De acordo com esta teoria, há longe das margens das placas, pontualmente, locais
onde se atingem temperaturas excepcionalmente elevadas no manto, por razões
desconhecidas, o que provoca a fusão do material rochoso das camadas litosféricas
mais profundas. Sendo esse material menos denso que as rochas sólidas à volta,
tende a subir à superfície (donde a imagem do «penacho» ou da «pluma»), gerando
fenómenos vulcânicos.
17
O alinhamento este-oeste da Grã-Canária, Tenerife, Gomeira, Palma e Hierro, pra-
ticamente à mesma latitude, parece corroborar a hipótese de um «ponto quente».
Contudo, esta não é uma explicação suficiente para o que se passa nas Canárias. Os
fenómenos vulcânicos recentes nas ilhas mais orientais, nomeadamente em Lançarote,
escapam a esta lógica e têm gerado controvérsia – cf. F. García-Talavera (1999).

25
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

As Canárias reúnem vários recordes. No conjunto da região maca-


ronésia, este é o arquipélago mais populoso, com aproximadamente
1,7 milhões de habitantes, ou seja, mais de dois terços da população
das Atlântidas. Tenerife, a maior ilha canarina, é também, com os seus
2.034 km2, a maior dos cinco arquipélagos. Viviam nela 701.034 habi-
tantes à data do censo de 200118. Ao Tenerife pertence ainda a mais
alta montanha macaronésia – o pico vulcânico de Teide – que, com os
seus 3.718 m, constitui o ponto mais elevado de Espanha. De resto, é o
mesmo pico que coloca Tenerife entre as ilhas vulcânicas de maior alti-
tude em todo o mundo – conforme recorda Guillermo Morales (2001),
é a terceira, depois da principal ilha do Havai (pico de Mauna Kea) e
da ilha de Ross (Monte Erebus), na Antártida.
Duas outras ilhas que estão entre as de maior dimensão na Macaro-
nésia, muito à frente de qualquer das dos restantes arquipélagos, são
Forteventura (1.655 km2) e Grã-Canária (1.560 km2). Forteventura, apesar
da dimensão, é escassamente povoada, fruto de uma crónica carência
de água com que sempre teve de se confrontar ao longo da história. A
segunda, em contrapartida, é a ilha com maior número de habitantes
não só das Canárias mas da Macaronésia (730.622 pessoas em 2001); cor-
respondendo isto a uma média de 447 hab./km2, acaba por ser também
a mais densamente povoada das Ilhas Atlântidas. A Grã-Canária tem
ainda a particularidade de acolher a maior cidade da região macaroné-
sia – Las Palmas, cuja população ronda os 380.000 habitantes. Sendo a
sede do governo autonómico, partilha a capitalidade das Canárias com
a maior cidade do Tenerife – Santa Cruz (inicialmente, Santa Cruz de
Santiago), onde se encontra o parlamento regional. Las Palmas é uma
cidade moderna e agitada, com construção em altura e uma abundante
oferta de comércio e serviços, que se desenvolve num istmo e se estende
por isso ao longo de duas frentes de mar. Não podendo talvez ser apre-
ciada por possuir uma arquitectura especialmente elegante, tira partido
dessa situação privilegiada.
As Ilhas Canárias correspondem a uma das comunidades autónomas
mais pobres de Espanha. Os níveis de rendimento per capita situam-se
abaixo da média nacional e só superam os da Galiza e de Múrcia. Mas
o que isto significa deve ser visto com cuidado. Falamos de um dos

18
A fonte dos dados estatísticos que aqui se citam para as Ilhas Canárias é o Instituto
Canário de Estadística (ISTAC).

26
1. O espaço da Macaronésia

países com nível de vida mais elevado no mundo. Essa «pobreza» das
Canárias corresponde portanto a uma situação muito relativa e que
está perfeitamente dentro dos parâmetros europeus19. Mesmo as ilhas
canarinas ocidentais – Gomeira, Palma e Hierro20 – que são de menor
dimensão, mais pobres, e onde o relevo montanhoso e as costas agrestes
contribuíram para preservar nelas um cunho mais «selvagem» (ficaram
um pouco à margem da modernização induzida pela urbanização e
pelo turismo), estão numa situação que não se pode comparar à de
Cabo Verde21.
Uns 150 km a norte das Canárias e cerca de 300 km a sudeste da
Madeira encontramos o pequeno arquipélago português das Selvagens,
que administrativamente pertence à Região Autónoma da Madeira. É
composto por dois ilhéus maiores – a Selvagem Grande e a Selvagem
Pequena – distantes entre si pouco mais de uma dúzia de quilómetros,
e por uma dezena de ilhéus menores e rochedos adjacentes. A Selvagem
Grande, apenas habitada por vigilantes da natureza do governo madei-
rense que ali permanecem por turnos de três semanas, corresponde a um
ilhéu de 2,5 km2, levantado em escarpa sobre as águas do mar algumas
dezenas de metros, e que atinge a altitude máxima de 163 m. A Selva-
gem Pequena, muito menor (sensivelmente 1 km por 0,5 km) e mais
baixa (cota média de 10 m), não tem sequer presença humana regular.
O arquipélago da Madeira, que constitui no quadro da república
portuguesa uma região autónoma, com governo e parlamento regional
próprios, é formado por duas ilhas maiores – Madeira e Porto Santo –
localizadas entre os 32º 38’ e os 33º7’ N (ou seja, aproximadamente à

19
Segundo o EUROSTAT, o rendimento per capita das Canárias situava-se, em 2006, em
92,6% da média da UE.
20
Em português, deve preferir-se a designação de Gomeira a La Gomera, por existir
vocábulo toponímico consagrado pela tradição para esta ilha, e pode usar-se para
designar a ilha que em espanhol se chama de La Palma simplesmente Palma (é aliás
uma forma de evitar confusões com a cidade de Las Palmas). A ilha de Hierro, pelo
contrário, é normalmente designada como em espanhol.
21
O relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que todos
os anos hierarquiza os países em função do seu índice de desenvolvimento humano
(IDH), situava a Espanha no 16º lugar mundial em 2006. Cabo Verde encontrava-se
no 118º lugar. Se considerássemos o PIB per capita, Espanha apareceria como sendo
cerca de dez vezes mais rica do que Cabo Verde: enquanto Espanha tinha em 2006
um PIB per capita de 29.908 US$ (em PPC), em Cabo Verde o valor homólogo era de
apenas 2.833 US$.

27
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

latitude de Casablanca), e em longitude entre os 16º 16’ e os 17º 16’ W.


A estas duas ilhas maiores junta-se ainda um pequeno grupo de ilhéus
que constitui um «subarquipélago» a sul designado de Desertas. Só a
Madeira e Porto Santo são habitadas.
As ilhas deste arquipélago correspondem às secções visíveis de uma
cordilheira de montes submarinos, de orientação nordeste-sudoeste,
levantada sobre as planícies abissais do Atlântico (profundidades de
cerca de -5.000 m). Madeira e Porto Santo correspondem a dois socos
autónomos. Embora distem umas escassas quatro dezenas de quilóme-
tros, são separadas por águas profundas, que descem abaixo dos -2.500
m. Isso e o facto de nas duas ilhas se encontrarem materiais rochosos
de épocas bastante diferentes demonstra que não partilham a mesma
génese. Porto Santo, mais a nordeste, formou-se primeiro, em meados
do Miocénico. A Madeira é mais jovem, talvez de um pouco antes do
Pliocénico. Possui contudo vestígios de materiais eruptivos de diferen-
tes idades, o que aponta para uma história de períodos de vulcanismo
intenso intercalados por outros de acalmia. Mas mesmo tratando-se de
uma actividade vulcânica que chegou até datas mais recentes que em
Porto Santo, falamos de um vulcanismo que há muito se extinguiu: as
erupções mais recentes terão ocorrido no IV ou V milénio a.C. (Brum
Ferreira A., 2005, 141).
Porto Santo é uma pequena ilha de 42 km2, que em 2001 tinha 4.474
habitantes22. Em toda a Macaronésia é esta a que mais próximo se
encontra do continente europeu, embora ainda assim diste uns 900 km
da Península Ibérica e esteja mais próxima do continente africano que
da Europa. Quanto à Madeira, é a maior das ilhas portuguesas. Com os
seus 786 km2, supera ligeiramente em superfície a ilha de São Miguel,
nos Açores. No quadro da Macaronésia, contudo, fica bastante atrás das
ilhas canarinas mais orientais (de Lançarote a Tenerife), encontrando-se
num escalão de dimensão entre as ilhas cabo-verdianas de Santiago e
Santo Antão.
Mais relevante ainda é a posição da Madeira em termos de população.
A ilha, que tem uma das suas imagens fortes no povoamento humano
denso da vertente soalheira, com o casario subindo as encostas íngre-
mes, concentrava 240.537 habitantes em 2001 (as estimativas do INE

22
Os dados de população referentes às ilhas portuguesas provêm do Instituto Nacional
de Estatística (INE).

28
1. O espaço da Macaronésia

apontam para mais uns dois milhares em 2007), o que a coloca entre as
mais populosas ilhas macaronésias (a quarta, apenas atrás de Tenerife, da
Grã-Canária e de Santiago). É além disso uma população com padrões
de vida que estão entre os mais elevados da Macaronésia23. Toda a ilha
apresenta hoje modernas infra-estruturas de transporte rodoviário, uma
boa rede de equipamentos colectivos, e níveis de conforto das habita-
ções muito satisfatórios. A elegante cidade do Funchal, para além de
ser o principal aglomerado da ilha e a capital da região autónoma, é
um pólo urbano importante também no contexto das Ilhas Atlântidas:
a cidade propriamente dita concentra uns 100.000 habitantes, e mais de
120.000 pessoas vivem no conjunto da pequena área metropolitana que a
cidade comanda e que se estende, na forma de uma urbanização difusa,
maioritariamente de edifícios unifamiliares, aos municípios vizinhos de
Câmara de Lobos e Santa Cruz.
As ilhas dos Açores formam o último dos cinco arquipélagos maca-
ronésios. Falamos não só do mais setentrional, senão também do que
mais distante se encontra de qualquer massa continental. Situado entre
os 36º 55’ e os 39º 43’ N de latitude, e entre os 25º e os 31º 16’ W de
longitude, está praticamente a meio do Atlântico, a mais de 1.500 km
do continente europeu. Assim, contrariamente ao que sucede com os
outros arquipélagos macaronésios, todos em posição intraplaca e, logo,
associados a «pontos quentes», os Açores configuram uma outra rea-
lidade. A sua génese parece ter muito mais que ver com a da Islândia
ou com a de algumas ilhas do Atlântico Sul, como Tristão da Cunha e
Santa Helena, do que com a dos restantes arquipélagos macaronésios.
Como aquelas, os Açores encontram-se próximos do rift do Atlântico,
por onde o material das camadas interiores da Terra sobe à superfície e
onde se faz, desde há 180 milhões de anos, a abertura do oceano. Mas
o seu contexto geotectónico é ainda mais complexo que isso. Os Açores
situam-se também na fronteira entre as placas africana e eurasiática,
definindo assim o ponto de junção de três grandes unidades litoesféricas

23
A Região Autónoma da Madeira pode ficar um pouco aquém da Comunidade Autó-
noma das Canárias na maior parte dos indicadores sociais (por exemplo, número de
médicos por 1000 habitantes, taxa de cobertura por água de rede pública, taxa de
acesso à Internet, etc.), mas essas diferenças são, em todo o caso, sempre mínimas, de
um ou dois pontos percentuais. Já considerando o PIB per capita, a Madeira suplanta
as Canárias: em 2006, segundo o EUROSTAT, situava-se praticamente na média da
UE (97,7%), sendo portanto, em toda a Macaronésia, a região mais convergente.

29
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

da Terra. Daí a agitação do relevo submarino do mar dos Açores, em


que tão depressa temos elevações que quase assomam à superfície como
fossas que descem a grandes profundidades; e daí também a intensa
actividade sísmica e vulcânica a que as ilhas se encontram sujeitas24.
Os Açores, que, como a Madeira, constituem uma região autónoma
da república portuguesa, são formados por nove ilhas (com alguns
pequenos ilhéus adjacentes), repartidas por três subgrupos bem auto-
nomizados entre si, que totalizam 2.322 km2. Se ponderarmos a área
total dos Açores pelo número de ilhas, e se a isso juntarmos ainda as
distâncias entre elas, concluiremos que de todos os arquipélagos das
Atlântidas este é o mais fragmentado.
O grupo oriental é composto por duas ilhas – São Miguel e Santa
Maria – distantes entre si mais de meia centena de quilómetros. Santa
Maria, com 5.578 residentes em 2001, detém actualmente uma posição
periférica no contexto da Região Autónoma dos Açores. São Miguel,
estendida no sentido este-oeste por cerca de 60 km, e com uma super-
fície total de 745 km2, é a maior ilha do arquipélago e também a mais
populosa, tendo sido nela recenseados 131.609 habitantes em 2001. Ponta
Delgada é o principal centro urbano da ilha, e também a sede do governo
regional; mas é uma cidade que no quadro da Macaronésia não deixa de
ser de escala relativamente modesta (pouco mais de 40.000 habitantes).
O grupo central integra cinco ilhas de dimensões bastante variáveis,
indo desde os escassos 61 km2 da Graciosa aos 445 km2 do Pico, onde
se situa o ponto mais alto dos Açores (e de Portugal), com 2.351 m. É
neste grupo que se encontra a segunda ilha mais populosa do arqui-
pélago – Terceira (55.833 habitantes em 2001) – assim como o segundo
mais importante centro urbano açoriano – Angra do Heroísmo. A ilha do
Faial, muito mais modesta em dimensão e população (à volta de 15.000
habitantes, numa superfície de 173 km2), acolhe a cidade da Horta, pelo
que, tal como a Terceira, se destaca no conjunto do arquipélago pelo
seu grau de urbanização. O Faial possui ainda a particularidade de ter
registado, entre Setembro de 1957 e Junho de 1958, a última grande

24
Uma exposição sucinta da complexa situação geotectónica dos Açores e da polémica
científica de que ainda está envolta a sua compreensão, pode ser encontrada em A.
Brum Ferreira (2005, 121 e sg).

30
1. O espaço da Macaronésia

manifestação eruptiva dos Açores – o vulcão dos Capelinhos – que levou


à formação de uma nova península a ocidente da ilha25.
Finalmente, bem autonomizado no arquipélago (tanto que inicialmente,
nos primeiros séculos de colonização, chegou a ser considerado como
um arquipélago autónomo) há a considerar ainda um grupo ocidental
de duas pequenas ilhas habitadas – Flores e Corvo. Corvo é a ilha mais
setentrional dos Açores e da Macaronésia, e Flores a mais ocidental,
estando ambas já situadas sobre a placa norte-americana e, portanto,
em processo de afastamento do resto do arquipélago. Flores, com um
comprimento máximo de 17 km no sentido norte-sul por 12 km na direc-
ção este-oeste, acolhia 3.995 habitantes em 2001. Corvo, de dimensões
consideravelmente menores (apenas 17 km2), é a mais pequena das Ilhas
Atlântidas habitadas. Morfologicamente muito simples, corresponde a
um cone vulcânico de 21 km de perímetro na base que emerge do oceano
até uma altitude de 718 m, nele habitando uma comunidade de menos
de 500 habitantes, concentrada numa única vila.

Afinidades do quadro biofísico e diversidade de ambientes

Há razões para que os cinco arquipélagos que identificámos, dispersos


por uma área extensa de muitas centenas de milhares de quilómetros
quadrados, e por isso compreensivelmente sujeitos a condições de clima
diferenciadas, sejam integrados num mesmo grande domínio geográfico
– a Macaronésia. Alguns autores, como Orlando Ribeiro (1990), mais
sensíveis aos factores civilizacionais, são levados a considerar que as
afinidades destes arquipélagos se devem sobretudo a razões humanas,
nomeadamente o passado comum a todos de colonização ibérica. Creio
porém que não devemos ver só nisso as razões de semelhança. Todos
eles partilham também afinidades biofísicas que lhes conferem, como
observava Raquel Soeiro de Brito (1997, 77), um indesmentível «ar de
família».
Todas as Ilhas Atlântidas são, como já referi, de origem vulcânica. É
certo que nalgumas, mormente nas mais antigas (casos de Porto Santo,
25
Muito mais recentemente, entre 1998 e 2001, entrou em actividade um vulcão subma-
rino ao largo da ponta da Serreta, na costa noroeste da ilha Terceira. As manifestações
visíveis limitaram-se todavia à emissão de colunas de fumo e balões de lava a flutuar
à superfície das águas.

31
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

Santa Maria, Forteventura ou Maio), se encontram intercalações de


materiais sedimentares, como calcários, argilas e eolianitos26. Tais ocor-
rências geológicas são contudo raras, pontuais, ou então meras camadas
de revestimento superficiais. O que prevalece por toda a parte são os
materiais vulcânicos27. Basaltos, pedras-pomes, e às vezes até simples
cinzas, constituem o que de mais comum se encontra nestas ilhas, dos
Açores a Cabo Verde. A terra acaba assim por tomar em todas elas a
mesma paleta cromática típica dos terrenos vulcânicos, o que confere
uma certa unidade de paisagem a esta vasta região oceânica.
As formas de relevo das Ilhas Atlântidas, ainda mercê da sua origem
vulcânica comum, obedecem a um conjunto de modelos essenciais que
se repetem nos vários arquipélagos. Dentro da diversidade de ambientes
que isso cria, também esta repetição de um mesmo padrão de variantes
acaba por ser um outro traço de união no espaço da Macaronésia.
Basicamente, distinguem-se dois grandes grupos de ilhas: de um
lado, as mais jovens, ou cuja actividade vulcânica chegou até datas
mais recentes, que são as de maiores altitudes e que exibem formas de
relevo mais vigorosas; e depois, em clara oposição a estas, um outro
conjunto de ilhas baixas e mais aplanadas (as chamadas ilhas rasas em
Cabo Verde), por norma mais antigas, ou cuja actividade vulcânica foi
mais fraca e/ou cessou há mais tempo.
Porto Santo, Santa Maria, Forteventura, Sal e Maio são exemplos
deste segundo tipo de ilhas. Têm em comum o facto de não possuírem
já vestígios evidentes dos aparelhos vulcânicos originários, ou de estes
se encontrarem muito desmantelados. As provas dessa génese no mode-
lado actual do relevo reduzem-se aos restos de chaminés vulcânicas que
resistiram à erosão como relevos de dureza, ou então às «covas» das cal-
deiras que marcam a paisagem com os seus típicos rebordos circulares28.
Algo que marca a fisionomia destas ilhas mais baixas é a existência
de diferentes níveis de arrasamento produzidos pela abrasão marinha.
Esses sucessivos terraços são a prova das oscilações glacio-eustáticas a

26
Vários exemplos destas formações, com uma adequada explicação da sua origem,
são citados em A. Brum Ferreira (2005, 121-147).
27
Podem aprofundar-se os paralelismos vulcanológicos das ilhas macaronésias consul-
tando M. Báez e L. Sánchez-Pinto (1983).
28
Passado o período de maior actividade de um vulcão, com o recesso do magma às
profundidades, é comum a cúpula da câmara magmática colapsar. «Caldeira» é o
termo que se dá à cratera resultante desse abatimento.

32
1. O espaço da Macaronésia

que o nível do mar foi estando sujeito ao longo do Quaternário, numa


altura em que as ilhas se encontravam já formadas. Os mais altos, cuja
génese marinha está em muitos bem comprovada por fósseis, situam-se
acima dos 70 m (como se refere em Brum Ferreira A., 2005, e García-
Talavera, 1999).
Entre as ilhas que não se enquadram neste grupo e que apresentam
formas de relevo mais vigorosas, há a distinguir ainda as que possuem
uma estrutura simples, correspondendo a um único estratovulcão, e as
que revelam uma génese mais complexa, mostrando vários aparelhos
vulcânicos de diversas idades. As ilhas do Corvo, Gomeira ou Fogo
ilustram situações do primeiro tipo, com as suas formas cónicas relati-
vamente puras emergindo das águas. No outro extremo, temos o caso
de São Jorge, de contornos paralelipipédicos e maciços, que se ergue
em bloco do mar e é ilustrativo de um modelo de vulcanismo dife-
rente, mais de tipo linear ou fissural. Entre um e outro género de ilhas,
encontra-se a maioria, caracterizadas ou por um modelado em que se
percebe o predomínio de um vulcanismo de tipo central, embora com
vários focos (São Miguel, Terceira, Grã-Canária, Santiago), ou então pela
associação de formas de vulcanismo de tipo central e fissural (caso do
Pico, de Palma e de Tenerife).
Aos dois tipos essenciais de ilhas identificados – ilhas baixas e
aplanadas vs ilhas altas e de modelado mais fresco – correspondem
formas de litoral também contrastadas. As costas baixas e arenosas, com
extensas praias abertas ao mar, são raras nas Atlântidas. Bons areais, de
areia clara e fina, apenas se encontram nas ilhas mais antigas e onde os
vulcões se extinguiram há mais tempo, mas mesmo nestas estão longe
de constituir a única forma de litoral, ou sequer a mais comum. Praias
de areal dourado e macio, como as que se encontram em Forteventura,
Sal e Boavista, são praticamente inexistentes nas ilhas mais ocidentais
das Canárias e de Cabo Verde, e sobretudo nas ilhas portuguesas, onde
Porto Santo representa a única verdadeira excepção. Nas Ilhas Atlântidas,
como geralmente sucede nas de origem vulcânica, o que de mais comum
se encontra são os litorais rochosos, muitas vezes altos. Em muitas ilhas
(de São Jorge à Madeira, de Palma e Tenerife a Santo Antão) há extensos
troços de litoral com arribas grandiosas que caem a pique sobre o mar,
não raramente de altitudes de várias centenas de metros. O mais comum
porém é que por acção da erosão marinha, combinada com deslizamen-
tos após chuvadas mais intensa, ou por desmoronamentos gerados por

33
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

sismos, se formem na base dessas vertentes grandes escombreiras – as


fajãs29 – tradicionalmente aproveitadas pelas populações para exploração
agrícola, e até para a fundação de pequenos núcleos de povoamento.
As costas escondem muitas vezes perigos. Os basaltos e as escoadas
lávicas dão ao litoral formas dramáticas, tumultuosas. Grandes blocos
rochosos formam em largas extensões das costas uma muralha onde as
ondas vêm morrer com violência, e que tornam as ilhas pouco acessíveis.
Noutros troços, o que existe são estreitos cordões de praias de cascalho
de calibre grosseiro – nos Açores, chamadas calhaus – ou então lençóis de
lava solidificados que chegam ao mar e mergulham nele num retorcido
de nódulos e corcovas – os designados biscoitos. Os fundos são traiçoeiros,
cheios de baixios. As enseadas profundas e largas, proporcionadoras de
bom abrigo, são escassas; o que há são apenas pequenos boqueirões entre
promontórios (as ditas calhetas30), às vezes acolhendo pequenas praias
de areais cinzentos ou de seixos mais miúdos. Tal raridade fez com que
praticamente todas essas enseadas e calhetas tenham sido aproveitadas
na ocupação humana das ilhas, dando origem a núcleos de povoamento.
E o mesmo sucedeu regra geral com os pontos do litoral favorecidos
por plataformas capazes de serem usadas como cais naturais, a que nos
Açores e na Madeira se dão as expressivas designações de lajes.
As diferenças entre os dois referidos tipos de ilhas não se limitam à
forma do litoral. À oposição entre as ilhas «rasas», de um lado, e as ilhas
altas e de relevos mais jovens, por outro, correspondem dois ambientes
e duas paisagens bastante contrastados. E isto a despeito da situação
similar que esses dois géneros de ilhas possam ter face à circulação
geral da atmosfera. Esclarece Denise de Brum Ferreira (2005, 321) que
«em função da sua altitude, as ilhas podem ficar, ou não, totalmente

29
Nos Açores, na Madeira e em Cabo Verde, «fajã» é a designação popular dada a uma
superfície aplanada à beira-mar, formando um terraço que pode ser mais ou menos
inclinado, mas que invariavelmente fica entalado entre o mar e uma arriba de declive
acentuado. A geomorfologia adoptou o termo. Para além das fajãs de erosão, que são
as formadas por materiais de desabamentos, o termo é também por vezes empregue
para designar formas de relevo semelhantes mas originadas por derrames de lava.
A elevada fertilidade do solo das fajãs levou a que historicamente as populações
humanas tivessem privilegiado a ocupação e utilização destes locais, nomeadamente
para a agricultura. O acesso às fajãs a partir do interior das ilhas é por norma difícil,
e nalguns casos praticamente impossível, de modo que muitas são apenas acessíveis
pelo lado do mar, por barco.
30
Calheta provém de «cala», que pertence à sinonímia de «baía».

34
1. O espaço da Macaronésia

envolvidas pelo ar marítimo. São situações diversas que modificam


completamente o seu ambiente climático». Assim, as mais baixas, não
conseguindo interpor-se ao progresso das massas de ar carregadas de
humidade que circulam sobre o oceano, não chegam a beneficiar das
precipitações de relevo. As nuvens cruzam-nas sem que isso se traduza
em chuva; passam demasiado alto para que a terra se veja envolvida em
névoas e possa beneficiar da humidade, na forma de precipitação oculta.
Embora envoltas num ar marítimo com elevada humidade relativa,
estas ilhas são mais secas e o seu coberto vegetal traduz a adaptação a
tal facto numa vegetação herbácea e arbustiva baixa, normalmente rala,
onde predominam as espécies xerófitas.
Em franca oposição a este quadro temos, muitas vezes no mesmo
arquipélago, e até a poucos quilómetros de distância, ilhas mais húmidas
e verdejantes. Contrastes destes vêem-se muito bem, por exemplo, entre
a Madeira e Porto Santo, ou entre a Grã-Canária e Lançarote, ou ainda,
num contexto geral de maior secura, entre Santo Antão e São Vicente.
Nas ilhas cujo modelado é mais acidentado e em que se atingem altitu-
des superiores, geram-se perturbações mecânicas e termodinâmicas que
propiciam a ocorrência de nebulosidade e podem gerar precipitação,
mesmo em situações sinópticas de relativa estabilidade (cf. Brum Ferreira
D., 2005)31. Não é por isso raro que os cumes dessas ilhas mais monta-
nhosas se achem ocultos sob espessos «capacetes» de nuvens, ou que aí
chova. Muita dessa abundância de água proporcionada pelo vapor que se
liberta do mar é retido pelas florestas e turfeiras de altitude, alimentando
um sistema de pequenas lagoas e linhas de água que escorrem pelas
encostas declivosas e, nalguns casos, caem até sob a forma de cascatas.
As vertentes são sulcadas por barrancos profundos que comprovam a
existência de uma erosão ainda em estado inicial e muito activa. Durante
as estações chuvosas, isso pode redundar na ocorrência de episódios de
precipitação muito intensa geradores de torrentes violentas.
Por contraposição às ilhas baixas, acabamos por encontrar nestas
ilhas montanhosas um coberto vegetal diferente, além de muito mais
denso e variado. Apresentam igualmente uma maior diversidade de

31
O trabalho citado, onde são explicados os referidos mecanismos termodinâmicos,
reporta-se às ilhas portuguesas, mas os aspectos essenciais dos processos descritos
podem ser generalizados às Canárias (com mais prudência, também ao arquipélago
de Cabo Verde).

35
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

paisagens e ambientes, com grandes contrastes às vezes a distâncias


de poucos quilómetros. São clássicas, por exemplo, as diferenciações
entre as encostas de barlavento e sotavento. Às encostas de barlavento
correspondem os lados húmidos, frescos e verdejantes das ilhas; às de
sotavento, as encostas mais secas e, em regra, mais quentes, pois coinci-
dem também normalmente com as vertentes soalheiras. Situações deste
género são muito visíveis na Madeira, em Tenerife, na Grã-Canária ou
em Santo Antão.
Outros contrastes observados neste grupo de ilhas são os que se fazem
sentir verticalmente, em altitude. Ao longo das encostas, aparecem a cotas
diferentes distintos tipos de vegetação32. No andar basal, mais próximo
do nível do mar, o coberto vegetal natural não difere muito do das ilhas
baixas. Para além de tufos de arbustos espinhosos e plantas rasteiras
carnudas, tolerantes à secura e à salinidade do ar, há árvores de espique.
À medida que se sobe para o anel de névoas que normalmente coroa estas
ilhas, o quadro altera-se. Se bem que com variações em função da latitude
e do grau de transformação introduzida na paisagem pelas populações
humanas, esse mato xerófito litoral vai gradualmente cedendo lugar a
uma formação vegetal cada vez mais densa e com predominância de
espécies lenhosas, até configurar um andar montanhês de floresta. Entre
os 400 e os 800 a 1.000 m – sensivelmente – essa floresta assume carac-
terísticas subtropicais; dos 1.000 aos 1.800 m, é possível que subsistam
ainda trechos de floresta, embora agora de coníferas33. Em todo o caso,
o mais comum é que a estes níveis, já muito acima do limite altitudinal

32
O esquema que a seguir se apresenta é essencialmente uma generalização do que se
observa no Pico Ruivo (Madeira) e na montanha do Pico (Açores), ambos descritos
em M. E. Moreira e C. S. Neto (2005, 465 e sgg.).
33
Os limites apontados para o andar florestal procuram conciliar os valores apresentados
em M. E. Moreira e C. S. Neto (2005), para os casos da Madeira e dos Açores, e de
F. García-Talavera (1999), para as Canárias, que obviamente não são os mesmos. No
que se refere especificamente ao andar da floresta subtropical, os valores de referência
citados correspondem aos limites altitudinais inferior e superior do anel de nuvens
e nevoeiros, que flutuam ao longo do ano e variam consoante os arquipélagos. Mas
nada disto se pode aplicar directamente às ilhas de Cabo Verde. Devido à secura,
nunca existiu neste arquipélago um verdadeiro andar florestal ecológico. Embora se
admita que a aridez extrema do andar basal tenha que ver em parte com o sobre-
pastoreio a que as ilhas foram sujeitas nos primeiros séculos de colonização, não é
crível que alguma vez tenham existido nestas ilhas formações florestais tão densas
como nas outras Ilhas Atlântidas, pelo menos nos tempos históricos.

36
1. O espaço da Macaronésia

superior dos nevoeiros, apareçam intercalados com as coníferas, ou em


vez delas, outros tipos de associações vegetais adaptadas à crescente
rudeza da altitude (baixas temperaturas, elevada secura do ar e vento).
Assim, pode ser que tenhamos primeiro um andar de mato com carac-
terísticas subalpinas, constituído de urzais e queirós. Depois, acima
dos 1.600 m nuns casos, noutros dos 1.800 ou mesmo um pouco mais,
consoante as ilhas, define-se um andar já francamente alpino, de prados
e musgos e turfeiras; e finalmente, a culminar, é possível que se assista
ao aparecimento de um deserto frio de grande altitude, como sucede
nos pontos mais elevados da Madeira, da ilha do Pico e de Tenerife.
A floresta original da Macaronésia constitui hoje uma raridade. A ocu-
pação humana fez regredir essa formação florestal espontânea, típica de
um ambiente temperado quente e húmido, aos locais menos acessíveis e
mais sujeitos aos nevoeiros atlânticos. A Madeira e as ilhas ocidentais das
Canárias (particularmente Gomeira) conservam nos barrancos das suas
encostas húmidas, ou no recôncavo de algumas caldeiras, os melhores
exemplos dessa floresta antiga, adaptada a temperaturas sempre amenas,
com fracas amplitudes térmicas anuais e diurnas, e humidade relativa
do ar elevada34. Composta por espécies de folha perene, predominam
no seu estrato arbóreo espécies do género Laurus (lauráceas), donde
o nome por que é cientificamente conhecida esta forma de associação
vegetal – laurissilva, ou «floresta de loureiros». Além destas, são espécies
raras como o vinhático (Persea indica), a tintureira (Frangula azorica) e
o til (Ocotea foetens) que formam o estrato lenhoso da laurissilva, onde
também aparecem as faias, os azevinhos e os zimbros (Moreira e Neto,
2005, 438 e sgg.). Um mato espesso, de urzes e sabugueiros, define o
estrato subarbóreo, que surge como associação dominante nas clareiras
e nas margens da floresta. Mas de todos os estratos da laurissilva talvez
o mais impressionante seja o herbáceo e muscinal, com a sua grande
profusão de fetos e líquenes que atapetam o solo e revestem os troncos
das árvores (ibid.). Belas plantas de flor como os gerânios e as orquídeas
também podem ser encontradas neste estrato.

34
Os testemunhos mais valiosos desta floresta endémica estão protegidos, como sucede
nos Parques Nacionais de Garajonay (Gomeira) e da Caldeira de Taburiente (Palma);
para um melhor conhecimento da laurissilva das Canárias e, em particular, do valor
ambiental e paisagístico destas duas referidas áreas protegidas (a primeira das quais
integra inclusive a lista do Património Natural da Humanidade da UNESCO desde
1986), cf. J. J. Bacallado (1999).

37
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

A laurissilva da Macaronésia constitui uma formação florestal única.


Na ambiência pode evocar a floresta do clima temperado húmido da
Nova Zelândia, com os seus fetos e os musgos pendentes dos troncos
das árvores, mas não há entre as duas afinidades florísticas. Acredita-se
que a laurissilva representa um resquício do tipo de coberto florestal que
teria sido dominante na bacia do Mediterrâneo durante o Terciário, antes
de terem ocorrido as glaciações e de se ter formado o Sara. Essa floresta
original que as mudanças climáticas do Quaternário fizeram desaparecer
da Europa meridional e do norte de África, pôde conservar-se nas Ilhas
Atlântidas, onde, graças ao efeito regulador do oceano sobre o clima,
nunca se terão feito sentir com a mesma severidade os rigores glaciares
nem a secura extrema desses períodos frios.
Apesar da laurissilva estar ausente de muitas ilhas e de não estar
sequer presente em todos os arquipélagos macaronésios, uma parte
não desprezável das espécies que a formam corresponde a endemismos
botânicos comuns a todos35. O mesmo sucede com muitas das espécies
que constituem o mato xerofítico litoral, ou das que surgem nos prados
e turfeiras de grande altitude. Este facto, além de conferir semelhança e
até unidade ao conjunto das Ilhas Atlântidas, explica que a Macaroné-
sia no seu todo, dos Açores a Cabo Verde, apareça autonomizada nas
classificações fitogeográficas (embora não em todas) como uma região
florística com individualidade própria e distinta das demais.
Apesar destas afinidades botânicas entre os arquipélagos macaro-
nésios, ou ainda das semelhanças genéticas e de relevo a que antes fiz
referência, nenhum observador pode deixar de constatar que existem
diferenças importantes de ambiente e de paisagem entre eles. Sobretudo
quando se olha para os dois arquipélagos que mais afastados estão entre
si – Açores e Cabo Verde. Aí, o que há de diferente não será talvez menos
do que o que se percebe de afim.
Qualquer estudo comparativo das Ilhas Atlântidas chegará neces-
sariamente a esta constatação. Tais diferenças de paisagem e ambiente
sempre se interpretaram por referência à posição geográfica (sobretudo
à latitude) e aos seus efeitos no clima, o que se percebe: «Numa faixa

35
O exótico dragoeiro (Dracaena drago), com os seus caules de espique formando um
gigantesco buquê, é talvez o mais acabado exemplo dessa originalidade florística
macaronésia. De aparência vistosa e invulgar, tem sido adoptado como um ícone
das Ilhas Atlântidas.

38
1. O espaço da Macaronésia

de 25º de latitude não é possível encontrar unidade de clima», concluía


Orlando Ribeiro (1990, 30). Uma tão extensa disposição em latitude per-
mite incluir desde ilhas com uma franca posição tropical (Cabo Verde) a
outras que ficam já no limite setentrional da subtropicalidade (Açores),
ou seja, na «fronteira» entre as áreas de estacionamento dos anticiclones,
com o seu ar mais seco e estável, e as latitudes altas por onde circulam
as depressões vindas de ocidente, geradoras de mau tempo.
Madeira e Canárias são, pela posição mais próxima que ocupam, os
arquipélagos que têm maiores afinidades de clima. São também os mais
tipicamente subtropicais. Os padrões de temperaturas e precipitações ao
longo do ano são bastante próximos dos do Mediterrâneo. Para além de
possuírem Verões quentes, onde mesmo durante a noite a temperatura
pouco desce, Madeira e Canárias beneficiam de Invernos muito suaves
em que por regra, sem exclusão da possibilidade de golpes de ar frio e
até de ocorrência de neve nas montanhas, ou da passagem de tempes-
tades geradoras de grandes chuvadas, é sempre possível desfrutar de
temperaturas aprazíveis, favoráveis à vida ao ar livre.
Claro que mesmo entre a Madeira e as Canárias há diferenças: situado
mais para sul, o arquipélago canarino tem tendência a ficar em situação
de abrigo anticiclónico ainda mais vezes que a Madeira. Isso traduz-se
em precipitações mais fracas. Ao mesmo tempo, apresenta temperaturas
médias ligeiramente superiores, também devido à sua posição mais baixa
em latitude. A menor distância deste arquipélago ao continente africano
torna-o igualmente susceptível aos ventos quentes vindos do Sara – o
irifi36 – que, com as suas areias em suspensão, mergulha às vezes por
vários dias as ilhas numa «bruma» seca e amarelada. Sem embargo de
tais diferenças, pode dizer-se em todo o caso que são globalmente muito
semelhantes os climas destes dois arquipélagos, e que são também aque-
les que melhor traduzem o «ambiente» da Macaronésia. É aliás por isto
que o maior número de endemismos desta região florística se encontra

36
Irifi é o termo que se usa para designar, nas costas marroquinas e mauritanas, um
vento muito quente e seco, vindo dos quadrantes entre leste e sul, que está associado
às tempestades de areia do Sara, e que é mais comum nos equinócios. O harmattan,
com o qual por vezes é confundido visto também ter uma trajectória continental e
transportar poeiras do Sara, é um vento de nordeste, que sopra a latitudes mais baixas
(normalmente a sul da Mauritânia), como esclarece o glossário de ventos incluído
em A. M. Gonçalves (2003, 51 e sgg.).

39
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

justamente na Madeira e nas Canárias, e que a laurissilva atinge aqui


o seu esplendor.
Por contraponto aos arquipélagos anteriores, que definem uma situação
climática «média» e por isso mais próxima do tipo-ideal macaronésio,
aos Açores e às ilhas de Cabo Verde correspondem duas faces extrema-
das das Ilhas Atlântidas, menos «puras» ou mais «mestiçadas», porque
já claramente de «fronteira». Os Açores são uma versão matizada pela
posição setentrional; representam uma Macaronésia mais fresca e húmida,
que prenuncia já as paisagens verdejantes das Ilhas Britânicas. Ao longo
do Inverno, embora nunca correndo o risco de temperaturas baixas,
estas ilhas ficam frequentemente sob acção das «caudas» das depres-
sões do Atlântico Norte na sua rota de migração entre a Terra Nova e
a Escandinávia, o que produz chuvas regulares e abundantes. Também
os Verões são mais instáveis que nos outros arquipélagos, nunca sendo
de excluir a hipótese de ocorrência de precipitações. Acresce a isso por
último o risco dos Açores poderem ser atingidos no fim do Verão pela
migração para nordeste dos ciclones tropicais gerados sobre o Golfo do
México, o que também representa uma certa originalidade no quadro
macaronésio (cf. Brum Ferreira D., 2005-b).
As ilhas de Cabo Verde representam o outro extremo: são a versão
árida e quente da Macaronésia. Pode dizer-se que constituem como que
uma continuidade face ao que se observa nas ilhas baixas e aplanadas
das Canárias, mais próximas do Sara. A paisagem evoca um pedaço
do Sael no meio do Atlântico, nas afinidades que apresenta com as do
Senegal ou do Mali, sensivelmente à mesma latitude; estão ausentes
de Cabo Verde as faias e as urzes que se encontram nas outras Ilhas
Atlântidas, e em lugar dessas espécies que fazem a ponte para a flora
da Europa temperada, aparecem os arbustos espinhosos próprios do
mundo africano.
A posição baixa em latitude determina também que se registem em
Cabo Verde temperaturas médias elevadas em todo o ano. O regime
pluviométrico é tipicamente tropical, com uma acentuada concentração
das chuvas num período curto, durante a estação mais quente (azáguas).
Tal facto constitui uma diferença significativa face às outras ilhas da
Macaronésia e decorre de os processos que determinam os estados de
tempo e a sua sucessão ao longo do ano serem aqui outros, bastante
diferentes. Durante a maior parte do tempo, as ilhas de Cabo Verde estão
sob influência dos alísios (brisas), que, vindos de nordeste, transportam

40
1. O espaço da Macaronésia

ar seco. A nebulosidade é por isso fraca. Em Janeiro e Fevereiro, esse


vento toma às vezes uma trajectória mais continental, a partir de este-
nordeste, e pode então chegar às ilhas trazendo consigo enormes quanti-
dades de pó fino do deserto africano, mergulhando-as numa espécie de
nevoeiro seco que dura dias, e às vezes até semanas consecutivas – é o
harmattan, a que em Cabo Verde se chama de brisa parda. Se o vento roda
demasiado, então as ilhas são atingidas directamente por um vento de
leste, soprado do interior de África, muito quente e seco. Os prejuízos
da lestada podem ser graves, ao ponto de colocar em risco os cultivos e
a sobrevivência alimentar das populações37.
A vida do arquipélago está dependente da ocorrência de chuvas,
que se limita a um período muito curto no ano e que não é certo. Tudo
depende se a faixa de nuvens espessas que ao longo do ano vai oscilando
sobre o equador, seguindo o movimento aparente do Sol, consegue subir
suficientemente para norte no Verão boreal e chegar à latitude do arqui-
pélago. Ou então, em alternativa, se se geram ciclones na proximidade
das ilhas, o que também pode suceder38. Não se pode todavia esperar
que esses episódios de precipitação brutais associados aos ciclones, com
chuvadas intensas mas concentradas no tempo, supram as necessidades
de água do arquipélago. Como às vezes, durante anos consecutivos, o
ar de monção não sobe o suficiente em latitude para chegar a banhar as
ilhas, geram-se em Cabo Verde períodos de seca prolongados e graves.
Veremos adiante que todas estas variações de ambiente acabaram por
modelar de forma diversa a vida humana e a história das várias ilhas
macaronésias.

37
A tragédia cíclica da lestada em Cabo Verde é o tema de um romance de Manuel
Lopes, de 1959, chamado os Flagelados do Vento de Leste, que ocupa um lugar de des-
taque na literatura nacional(ista) cabo-verdiana. A acção passa-se na ilha de Santo
Antão e conta, no registo moderno neo-realista dos autores que nos anos 40 e 50 se
congregaram em torno da revista literária Claridade, o drama, humano e social, da
população cabo-verdiana diante da chuva que não chega.
38
O mar a sul de Cabo Verde está relacionado com a formação dos grandes ciclones
do Atlântico Norte. É uma área fortemente ciclogenética, onde se geram depressões
que podem ser integradas na circulação atmosférica equatorial, de sentido este-oeste,
e alcançar o Golfo do México, onde, se isso suceder, chegarão já na forma de vio-
lentos furacões. Este fenómeno, que os meteorologistas conhecem desde há muito,
e que, para preverem eventuais calamidades, os leva a monitorizar com atenção as
depressões formadas nesta região, surge descrito em I. Amaral (1964, 67 e sg.).

41
2. Encontros e hibridismos
na colonização das ilhas

«Descobrimento» e inclusão no mundo

Querendo, é possível olhar para a Macaronésia e encontrar nestas


ilhas, nas suas paisagens e nos hábitos de quem as habita, sinais de uma
originalidade formada numa espécie de alheamento do que se passa nos
continentes, e em particular nos continentes próximos. Essa é a imagem
que se sentirá sempre inclinado a ver quem entender o isolamento como
uma dimensão ontológica da insularidade. Mas essa não é a imagem
que melhor serve a verdade destas ilhas. As diferenças e singularidades
que possamos eventualmente encontrar na cultura material, nos modos
de organização social e nas formas de ocupação do território, devem-se
muito mais ao facto de nelas se misturarem criativamente elementos
provindos de muitos lugares do que a um qualquer suposto fechamento
às influências de «fora», ou a uma «pureza» que possa ser vista como
prémio do isolamento. Acreditar que a descontinuidade física das ilhas
é sinónimo de isolamento e que a condição insular tem inerente esse
isolamento «purificador», significa imaginar as ilhas à parte do mundo,
numa espécie de exterioridade face ao fluir da história, o que é o con-
trário de tudo o que nelas sucedeu nos últimos 500 anos.
Não há certezas sobre quando os arquipélagos macaronésios foram
pisados pela primeira vez por humanos. Tudo quanto sabemos é que
antes da colonização moderna destas ilhas, iniciada no séc. XV, e à excep-
ção das Canárias, não havia nelas ocupação humana em permanência.
Inferir daí que se tratassem de locais nunca antes visitados, ou sequer
entrevistos, não é possível. Mesmo sabendo que a navegação ao largo
terá sido por princípio evitada na Antiguidade, preferindo-se a segu-
rança de uma rota com costa sempre no horizonte, não é improvável
que os fenícios se tivessem deparado nas suas viagens com a Madeira

43
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

e o Porto Santo ou com as Canárias, sobretudo sabendo que pelo séc.


VIII a.C. já detinham feitorias no espaço que veio a ser conhecido por
Mar das Éguas1. Também muito provável é que as Canárias, ou mesmo
as ilhas de Cabo Verde, possam ter sido encontradas pelos cartagineses,
que frequentavam as águas do Atlântico e fizeram pelo menos uma
grande expedição em busca de ouro ao Golfo da Guiné no séc. IV a.C,
em tempo de Hanão, o Grande. Assim, é possível que o facto de terem
permanecido despovoadas se deva a outra razão: talvez os navegadores
da Antiguidade não tenham simplesmente encontrado nestas ilhas moti-
vos para nelas estabelecerem feitorias, uma vez que não tinham riquezas
que se dissessem de especial valor para a época, e sobretudo por não
possuírem consumidores locais para os produtos que eles comerciavam.
As muitas referências mais ou menos enigmáticas a ilhas atlânticas
existentes nas cartas-portulano medievais, e que tanta especulação têm
gerado, podem ser vistas como prova de que estas ilhas talvez não fos-
sem afinal completamente desconhecidas do «Velho Mundo» antes da
sua «descoberta» oficial2. Mas mesmo que assim tenha sido e que não
houvesse total ignorância a seu respeito, é um facto que tais ilhas nunca
foram até ao séc. XIV mais do que presenças pressentidas no horizonte
e, portanto, existências sem relação directa com o que se passava no
mundo, na oikouménê – isto é, na Terra habitada.
O caso das Ilhas Canárias é um tudo-nada diferente. Contraria-
mente aos outros arquipélagos, as Canárias eram documentadamente
conhecidas desde a Antiguidade e encontravam-se habitadas aquando

1
«Mar das Éguas» é a designação medieval para a antecâmara atlântica do Mediter-
râneo, uma área um pouco mais ampla que o Golfo de Cádiz, enquadrada a norte
pela fachada meridional da Península Ibérica, a sul pela costa de Marrocos, e que a
oeste pode ser delimitada, grosso modo, pelo arquipélago da Madeira.
2
O argumento de que a Madeira e os Açores já seriam conhecidos na Europa antes da
sua «descoberta» pelos portugueses aparece invocado na obra já clássica de W. H.
Babcock (1922), partindo precisamente da evidência dada pela cartografia, e desde
então tem sido repetido em muitos outros estudos sobre o conhecimento do Atlântico
na Idade Média (caso de Cassidy, 1968). Relatos de descobertas «arqueológicas» (não
comprovadas), que tanto azo têm dado a polémicas, como a da intrigante estátua
equestre supostamente encontrada no Corvo, poderão constituir outros indícios
de uma presença humana prévia aos portugueses, que na maior parte dos casos é
associada aos fenícios, às vezes a víquingues, mas que até a chineses já foi atribuída
– estes e outros «enigmas» (tentados tratar tão cientificamente quanto possível) são
aflorados em P. Pereira (2005, 200 e sg.).

44
2. Encontros e hibridismos na colonização das ilhas

do início da colonização moderna3. Daí que se não possa de todo falar


de «descobrimento» a respeito deste arquipélago. Ao tempo da che-
gada dos espanhóis, vivia nas Canárias uma população aborígene – os
guanches – organizada em tribos, umas que habitavam em cavernas
e subsistiam do pastoreio de cabras e da recolecção de bagas e raízes,
e outras que já praticavam uma agricultura rudimentar de sequeiro à
base de gramíneas, residiam em povoados de casas de pedra circulares
(como os antigos iberos) e se organizavam em pequenos «reinos» (cf.
Fernández-Armesto, 1982). Comum a todos esses grupos era o facto de
desconhecerem o metal e as técnicas de navegação, razão por que se
mantinham num estado de forte isolamento, desconectados do mundo
e sem contacto sequer entre ilhas.
As origens deste povo de aparência «europeia»4 que em pleno séc.
XV, e praticamente na entrada do Mediterrâneo, desconhecia o têxtil,
cobria o corpo com peles de cabra e vivia mergulhado na Idade da
Pedra, permanecem misteriosas, assim como as razões pelas quais se
mantiveram nesse estádio ao longo dos tempos5. Tudo isso faz supor uma

3
Vd. Cap. 1, onde já referi este facto. Alguns historiadores «africanistas» defendem
que as ilhas de Cabo Verde também teriam conhecido presença humana prévia à
chegada de portugueses (é crível, mas não nos parece que isto esteja plena ou sequer
suficientemente documentado), argumentando que as ilhas seriam frequentadas por
lebus, felupes, e outros homens da foz do Senegal, que aqui vinham à pesca e em
busca do sal – cf., e. g., E. Silva Andrade (1997).
4
Não é pacífico que a sua aparência fosse na verdade «europeia» – quer dizer, gente
de pele e olhos claros – muito embora essa seja a ideia mais veiculada. F. Fernández-
Armesto (1982) diz que não há documentação histórica que permita assegurar qual
seria o aspecto físico do povo guanche; a maior parte dos cronistas, segundo explica,
é omisso em relação a estas questões, o que talvez indicie que não haveria nada de
«exótico» na sua aparência, mas não esconde que há também fontes que aludem à
«pele escura» destes homens e mulheres. O que isso significaria em concreto não se
sabe (população negra? gente de pele tisnada pelo sol?).
5
Muitas teorias foram aventadas depois do séc. XIX por naturalistas, antropólogos
e historiadores a este respeito. A hipótese de que os guanches seriam um ramo dos
homens de Cro-Magnon que teria migrado da Europa para África, e depois para as
Canárias, durante o último período glaciar, é uma delas; segundo esta tese, tratar-
se-iam de «parentes» afastados dos primeiros povos da Península Ibérica, restos de
uma «raça atlântica» de que também teriam feito parte os iberos e os bascos. Outra
hipótese, cara aos antropólogos alemães do séc. XIX, e aos germanófilos em geral, era
a de que se tratariam de descendentes dos vândalos que desceram até ao norte de
África aquando da queda do Império Romano (daí as referências, algo mistificadas,
ao cabelo louro e aos olhos azuis dos guanches), e que o isolamento insular teria

45
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

história de interrupção longa de relações com o resto da humanidade,


mas desconhece-se quão antigo, absoluto e continuado foi esse seu isola-
mento. Sabe-se apenas que a partir de finais do séc. XIII, com a afirmação
das potências comerciais do Mediterrâneo ocidental e a tentativa destas
dilatarem a sua área de influência e de abrirem novas rotas para poente
(a nascente esbarravam no domínio de outras potências) se assistiu a
uma primeira «irradiação mediterrânea para o oceano»6, com efeitos no
aumento do trânsito de embarcações no Mar das Éguas – sobretudo de
genoveses, maiorquinos e aragoneses, a princípio – e que a isso se terá
devido o reatar das ligações das Canárias ao resto do mundo7.
Já foi observado, embora sem se avançar muito nos motivos, que o
«facto de os Canarinos não estarem islamizados testemunha bem como
os muçulmanos viravam costas ao Atlântico» (Riley, 1998, 142). Não
quer isto dizer que antes das incursões cristãs nunca tivesse havido
investidas episódicas de marinheiros da Berbéria sobre as referidas ilhas;
houve-as certamente, mas nada disso se aproximou jamais de qualquer
esforço firme com vista à sua ocupação. Mesmo a fixação (precária) em
1312 do genovês Lançarote (ou Lanzerotto) Malocello na ilha que viria
a ser conhecida pelo seu nome, ou a decisão do Papa Clemente VI de
conferir o senhorio das Canárias a D. Luis de La Cerda em 1344, como
contrapartida da cristianização dos indígenas, embora mostrem já um
certo desejo de trazer as Canárias para o «convívio do mundo», foram
iniciativas repletas de hesitações, experiências mais ou menos avulsas e

feito regredir para um estádio primitivo. A terceira hipótese – hoje a mais aceite, até
porque se encontrada sustentada pela etnolinguística – é a que vê os guanches sim-
plesmente como um grupo insular dos povos berberes; fica todavia por saber como
terão chegado às Canárias (de barco? a pé, por exemplo no último período glaciar?),
ou quem os conduziu até lá e para que fim (fenícios? cartagineses? romanos?), umas
vez que parece pouco crível que no passado tivessem dominado as técnicas de nave-
gação e delas se houvessem esquecido. Para um conhecimento rápido destas várias
teses, pode consultar-se o estudo clássico de H. Wendt (1960).
6
A expressão, que aliás se celebrizou, é o título de um capítulo de V. Magalhães Godi-
nho (1962).
7
Os marinheiros terão descoberto então que podiam usar estas ilhas para se abastece-
rem de carne e de leite de cabra (um animal que os guanches tinham domesticado),
e depois também para aí capturarem escravos, o que decerto motivou incursões cada
vez mais frequentes. Aliás, sabe-se que havia escravos guanches a serem traficados
nos portos portugueses pelo menos desde o segundo quartel do séc. XIV, ou seja,
quase um século antes da tomada de Ceuta e do «descobrimento» da Madeira –
cf. I. L. de S. e Silva (2006).

46
2. Encontros e hibridismos na colonização das ilhas

sem continuidade. Como esclarece Eduardo Aznar (1986, 196), não era
ainda em rigor uma colonização que se tentava nesses tempos anteriores
ao séc. XV, mas tão-só uma mera «penetração» ou «pré-colonização»,
dado que nenhum projecto claro e firme de substituição das estruturas
aborígenes por novas formas de organização societal e económica e de
ocupação do território parece ter sido tentado implementar.
É o século de quatrocentos que vem alterar esse estado de coisas.
Diante da ausência de uma soberania clara de qualquer potência sobre
as Canárias, dois cavaleiros franco-normandos – João de Bethéncourt e
Gadifer de La Salle – lançam em 1402 uma expedição decidida a subju-
gar as ilhas, empresa que a início se faz sem qualquer vínculo político,
numa base privada, um pouco na velha tradição cavaleiresca, mas
que depois acabou por ter o respaldo da coroa castelhana, passando a
realizar-se sob o seu patrocínio8. A reacção dos guanches a esse avanço
revelar-se-ia todavia muito mais dura do que os invasores imaginavam.
Os aborígenes resistiram tanto quanto puderam e as lutas pela conquista
do arquipélago prolongaram-se por quase todo o séc. XV, envolvendo
espanhóis e portugueses9. Apenas em 1495, com a conquista definitiva

8
Em 1403, as ilhas de Lançarote, Forteventura e Hierro já se encontram sob suserania
do monarca castelhano, e em 1404 é instituído naquela primeira ilha um bispado. De
qualquer modo, aznar (1986, 200), distingue duas fases no processo quatrocentista
de colonização das Canárias, um que designa de «normando», até 1418, e outro de
«castelhano-andaluz», a partir daquele ano. A primeira etapa caracterizou-se por uma
administração exercida pelo barão francês com grande grau de autonomia em relação
ao monarca castelhano, na tradição do modelo feudal que foi comum além-Pirinéus
mas não na Península; Béthencourt chegou a arrogar-se o direito ao uso do título de
Rei das Canárias, invocando a bula que havia instituído o principado das Ilhas da
Fortuna, oferecido a La Cerda. A segunda fase pode ser descrita como o período de
«normalização» da soberania do monarca castelhano sobre o território.
9
As primeiras pretensões da coroa portuguesa sobre as Canárias remontam ao reinado
de D. Afonso IV, que terá organizado uma ou duas expedições ao arquipélago pelos
anos 30 do séc. XIV. Porém, «o arquipélago só irá ser motivo de rivalidade, quando
os verdadeiros rumos da expansão sobre o norte e costa ocidental de África, se
começarem a delinear, contexto dentro do qual ocupa uma posição estratégica entre
Marrocos e a Guiné», segundo refere I. L. de S. e Silva (2006, 97). É por isso que iremos
encontrar o Infante D. Henrique tão fortemente envolvido na disputa das Canárias
a partir de 1415 ou 1416, enviando, por diversas ocasiões, frotas ao arquipélago. É
célebre a que organizou em 1424 para conquistar a Grã-Canária, envolvendo 2.500
homens sob comando de D. Fernando de Castro, e que fracassou. Depois da morte
de João de Bethéncourt, comprou ao seu sobrinho os direitos que este herdara sobre

47
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

de Tenerife, os castelhanos conseguiriam finalmente dominar todo o


arquipélago10.
Seria o mesmo século a resgatar igualmente as outras ilhas macaro-
nésias das lonjuras do Atlântico e a trazê-las para a oikouménê. Como
já referi, é possível (para não dizer quase seguro) que esses encontros
não hajam sido mais do que redescobertas, uma vez que há indícios
fortes de contactos medievais anteriores com estas ilhas11. Para efeitos
práticos, porém, é como se ninguém antes as tivesse encontrado, dado
que nenhuma consequência importante havia resultado desses encontros
iniciais. Assim, no caso da Madeira, admite-se 1419 como data para esse
«descobrimento» do arquipélago por João Gonçalves Zarco e Tristão
Vaz Teixeira, começando a respectiva colonização logo uma escassa
meia dúzia de anos depois; 1427 é o ano de referência para o começo
do «desvendamento» dos Açores, processo lento que se presume ter
começado com a chegada de Diogo de Silves à ilha de Santa Maria, e
que apenas se concluiria um quarto de século depois com o desembarque
dos Teive nas Flores e Corvo. Quanto a Cabo Verde, remontam a 1460 as
primeiras referências portuguesas às ilhas, devendo-se a sua descoberta
a Diogo Gomes de Sintra (ou ao italiano António da Noli, ou aos dois).
Não é certamente por acaso que em simultâneo com o esforço de
conquista das Canárias e com o começo da investida portuguesa sobre
o norte de África (1415 com a tomada de Ceuta), se assiste em poucas
décadas a este multiplicar de anúncios de «descobrimentos» de ilhas no
Atlântico. Muito provavelmente, tudo isto se relacionou. Na verdade,
os «descobrimentos» vinham na sequência do acentuar da actividade
náutica e do tráfego marítimo nestas paragens, ligado à tal «irradiação
mediterrânea para o oceano». Por outro lado, podemos encarar esse

as ilhas. Portugal só viria a abdicar dos interesses sobre o arquipélago em 1479, com
o Tratado de Alcáçovas.
10
João de Bethéncourt e os seus homens apenas conquistaram as ilhas de Forteventura
e Lançarote, mais áridas (e por isso, certamente, menos povoadas), e de Hierro, a
mais pequena. O resto do arquipélago teve uma conquista muito mais complexa e
demorada. Em Gomeira, como se tratou de uma ocupação negociada, foi apesar de
tudo um processo pacífico. Nas outras ilhas envolveu batalhas que só se resolveram
no último quartel do século: na Grã-Canária, a campanha que definitivamente levaria
à derrota indígena decorreu entre 1478 e 1483; a ilha de Palma só foi tomada em 1493
e Tenerife dois anos depois, sob comando de D. Alonso Fernandéz de Lugo.
11
Também V. Magalhães Godinho (1962) alude a muitas dessas viagens prévias à che-
gada dos portugueses.

48
2. Encontros e hibridismos na colonização das ilhas

avanço de Portugal e Castela no «Mediterrâneo atlântico»12 e sobre a


Berbéria como o prosseguimento «natural» do movimento de conquista
cristã da Ibéria, que, estando prestes a findar-se no espaço peninsular,
tenderia a ser continuado agora além-mar13. É com efeito muito possí-
vel que a experiência histórica da Conquista tenha ajudado a formar
e a amadurecer entre portugueses e castelhanos uma ideia nova de
expansão territorial, e que à luz desta mentalidade os arquipélagos da
Macaronésia tenham assumido um novo valor. Por esta ou outra razão,
certo é que as Ilhas Atlântidas deixaram de ser nesta época os tais vultos
vagos e efabulados a que antes nos referimos, cuja existência a par do
mundo se aceitava com relativa indiferença, para passarem a ser vistos
como «espaços brancos» dentro do mundo, ou seja, vazios a preencher,
territórios a resgatar e a ocupar, começando com isto uma história de
integração e de solidarização destas ilhas com o resto do mundo que
não mais cessaria.
Este movimento de inclusão das Ilhas Atlântidas na oikouménê foi um
processo de relevância histórica muito maior do que se pode supor à
primeira vista. Não esteve em causa apenas a dilatação do espaço dos
dois países ibéricos e a aquisição por eles de uma escala ultramarina.
O movimento expansionista ibérico, de que o avanço sobre a Maca-
ronésia constituiu o primeiro momento, foi o começo de um longo e
complexo processo, muito mais amplo, que levaria à formação daquilo
que Immanuel Wallerstein (1974) designou de «sistema-mundo», isto
é, a integração progressiva de todo o globo numa lógica de funciona-
mento articulado, baseado num sistema de dependências mútuas entre
os lugares situados à sua superfície, uns afirmando-se como «centros»,
outros como «periferias». Mais: seria também a abertura de um capítulo
novo na história das relações da Europa com o resto do mundo, mar-
cado pelo signo do colonialismo, com implicações não só económicas

12
A expressão, tomada da historiografia francesa, é usada por C. G. Riley (1998, 139)
para designar um espaço marítimo intermédio depois do Mediterrâneo correspon-
dente aos «limites da primeira zona de navegação oceânica no Atlântico», e que
compreende justamente o mar da Macaronésia.
13
Esta ideia do expansionismo ibérico como prolongamento ultramarino das conquistas
territoriais iniciadas no espaço peninsular foi uma tese que começou por ser defen-
dida pela historiografia anglo-saxónica nos anos 60, e que hoje é amplamente aceite,
segundo diz C. G. Riley (1998).

49
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

e políticas, mas no próprio modo de europeus se verem a si mesmos e


de imaginarem o «outro».
O lugar central que o espaço da Macaronésia ocupou na montagem
deste sistema de relações ficou muito bem evidenciado por Vitorino
Magalhães Godinho (1981-83). Mostrou este autor claramente que as Ilhas
Atlântidas tiveram um papel crucial em todo esse processo, garantindo
o apoio logístico ao «desbravamento» dos mares numa primeira fase,
e depois, numa segunda fase, assegurando a própria consistência do
império, ao ajudarem no estabelecimento de carreiras regulares entre a
Península e os entrepostos que esta possuía no Atlântico e no Índico.
Noutros termos: para além de terem funcionado como stepping-stones
para o avanço das nações ibéricas sobre os oceanos, foram locais de
amarração dos fluxos que passaram a cruzar os mares, assegurando o
funcionamento articulado de todos esses espaços.
Parece-me muito sintomático desse papel de stepping-stone que as
expedições para o achamento de novos territórios, aliás como o esforço
para a sua colonização, tenham sido muitas vezes lançadas e conduzidas,
não a partir da «metrópole» – a Península – mas sim dos estabelecimen-
tos humanos que foram sendo fundados nas próprias ilhas. Cristóvão
Colombo, que viveu em Porto Santo, aproveitou a ilha de Gomeira para
se munir e ganhar fôlego antes do «salto» decisivo que o conduziria à
América. João Gonçalves Zarco utilizou a Madeira por diversas vezes
como base de expedições (caso da que lançou em direcção à Guiné em
1445). Foi do Faial que em 1452 zarpou a campanha de Diogo de Teive
em busca da lendária ilha das Sete Cidades, de que viria a resultar o
achamento das Flores e Corvo. Também cruciais para o avanço portu-
guês em direcção ao Atlântico Sul, e depois para o estabelecimento das
carreiras comerciais regulares da Mina e da Índia, foram as ilhas de Cabo
Verde, que, sendo utilizadas como escalas, permitiram continuar a prática
multissecular de navegação «saltitando de arquipélago em arquipélago»
(Riley, 1998, 152), embora agora aplicada a distâncias de outra magnitude.
Mas a função de stepping-stone encerrava, além desta componente mais
prática e operativa de apoio logístico, uma outra dimensão, mental ou
espiritual, que talvez não seja de desconsiderar: como notou John R.
Gillis (2004), imaginar o mundo salpicado de ilhas era (e é) uma forma
de apaziguar a angústia diante do mar imenso; sem estas, que para a
mentalidade tardo-medieval dos Descobrimentos acabavam por se como

50
2. Encontros e hibridismos na colonização das ilhas

«pontes» imaginárias através dos oceanos, talvez a decisão de avançar


nos mares não tivesse podido ser simplesmente tomada.
O que estou a defender é, em resumo, a ideia de que a ocupação da
Macaronésia representou não só um facto crucial para o sucesso desse
projecto político e económico maior que foi a expansão marítima dos
povos ibéricos, senão também para a própria estruturação do «sistema-
mundo». É muito mais do que a pequena dimensão destas ilhas em
princípio deixaria supor. E é algo que a nós nos deve interessar espe-
cialmente porquanto significa que elas se vão situar, logo desde o prin-
cípio da sua ocupação moderna, não numa situação de exterioridade ou
marginalidade face às redes de relações em que assentava esse sistema
geoeconómico em formação, mas num forte entrosamento com elas. As
opções seguidas na ocupação das ilhas não foram tomadas numa lógica
de desligamento do mundo ou de autarcia, pensando apenas naquilo
que seriam as condições ou «vocações naturais» de cada uma delas,
mas sim equacionando também (e muito) o que se passava «fora», nas
ilhas vizinhas, nos arquipélagos mais próximos, nos dois espaços reinóis
a que pertenciam, no Mediterrâneo, na Europa, e mesmo no resto do
mundo. – Conexão e complementaridade parecem constituir, em suma,
dois conceitos chave para se perceber o percurso seguido na história da
Macaronésia; não é possível entender o destino que tiveram estas ilhas
sem pensarmos nas relações que desde muito cedo as uniram umas
às outras, e todas ao «exterior», ou sem olharmos à sua integração em
espaços geoeconómicos e geopolíticos de escala mais alargada.

O «ciclo açucareiro» e a integração regional dos espaços insulares

A precoce especialização da Madeira e das Canárias na produção de


açúcar é um elucidativo exemplo desse «estar-em-relação» que, como
defendi, caracteriza as Ilhas Atlântidas desde o início da sua colonização
moderna. Merece por isso que nos demoremos um pouco mais neste
tema14.
Toda essa interessantíssima história que é a da cultura do açúcar atra-
vés dos tempos não é mais do que a da procura de um prazer físico, ou

14
Socorro-me aqui bastante da excelente síntese da história do açúcar que pode ser
encontrada em J. H. Galloway (1989).

51
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

um apetite – o do doce. É, neste sentido, a evidência de que a história


e a geografia são conduzidas por seres humanos «incarnados», e que
essa dimensão corpórea ou carnal da existência humana pesa. Durante
muito tempo, a satisfação desse desejo foi-se fazendo diferenciadamente
à superfície da Terra, usando o que a natureza oferecia em cada lugar,
na forma de frutos, de seivas de plantas, ou através da colheita de mel.
Os índios da América, por exemplo, tinham aprendido a colher a seiva
do ácer, que era endémico nas latitudes médias da América do Norte,
e a produzir com ela um xarope melífluo. Já na Europa, não havia pra-
ticamente senão o mel para ser usado como adoçante até ao dealbar do
segundo milénio da nossa era, uma vez que não havia cultivo da cana
sacarina e se desconheciam os segredos da produção do açúcar15.
A cana-de-açúcar, a partir de cujo caule esmagado se extrai o suco
que depois de refinado origina o açúcar, é uma espécie tropical endé-
mica na Indonésia, que exige temperatura e humidade elevadas para
se desenvolver16. Foi nessa região que a referida planta se domesticou
inicialmente. Durante séculos, o seu cultivo permaneceu confinado ao
espaço malaio-indonésio. A propagação fez-se depois através da Ásia
das monções, quer em direcção ao Indostão, onde por volta do séc. IV
a.C. a civilização indo-ariana aperfeiçoou as técnicas de cultivo e de
transformação da cana para produção do açúcar, quer em direcção ao
Mar da China, onde o cultivo da planta acabou por chegar também ainda
antes da nossa era e se difundiu o uso do seu produto final17.

15
A plantação da cana-de-açúcar faz-se por estaca, demorando cerca de um ano a ano
e meio até que a cana virgem amadureça e fique em condições de poder ser colhida.
Depois da colheita, que consiste em cortar os caules rente ao solo, despindo-os das
folhas e plumas, voltam a rebentar novos caules. Quanto às canas cortadas, são
transportadas para um moinho (ou lagar) a fim de serem esmagadas, podendo este
ser movido tanto pela força humana, como por animais, ou até por energia hidráu-
lica. O suco que com isso se produz é seguidamente coado, dando origem aos ditos
«meles de açúcar». A fase final do processo de refinação consiste na concentração e
cristalização desse suco purificado, o que se faz induzindo a evaporação do xarope
através de cozedura.
16
Uma obra clássica e ainda hoje fundamental para conhecer os grandes focos de
domesticação de plantas no mundo e a sua difusão é C. O. Sauer (1952). Estou a
segui-la aqui e voltarei a ela outras vezes ao longo deste capítulo.
17
Foi aliás por isso que as cozinhas indochinesa e chinesa se tornaram tão sábias no
explorar das contradições agridoces.

52
2. Encontros e hibridismos na colonização das ilhas

A propagação para Ocidente foi mais lenta. Terá havido na Antiguidade


um primeiro contacto do mundo helénico com o açúcar por intermédio
do império persa e das campanhas orientais de Alexandre, o Grande, e
sabe-se que circulou no Império Romano, mas sempre de forma restrita,
como produto importado. A introdução da planta na área de influência
europeia veio a ocorrer somente umas largas centenas de anos mais tarde.
Caberia aos árabes a introdução dessa cultura no Ocidente, como aliás
sucedeu com tantas outras novidades orientais, desde a bússola ao papel.
Tendo conseguido dominar em simultâneo o Índico e o Mediterrâneo,
os árabes puderam pôr a funcionar articuladamente esses dois mares, e
isso permitiu-lhes serem os grandes intermediários do encontro do Oci-
dente com o Oriente. Por outro lado, graças aos inovadores sistemas de
irrigação que haviam desenvolvido em adaptação ao mundo desértico,
puderam desobrigar a cana-de-açúcar da sua dependência climática do
domínio das monções, levando-a para regiões bastante mais secas do
que aquelas de donde ela era originária, do Mar Vermelho e do Egipto
à Síria, à Sicília, e à Península Ibérica (Galloway, 1989).
Compreende-se que uma vez reintroduzido no conhecimento dos
europeus, o açúcar se haja tornado em pouco tempo num produto alta-
mente apetecido. Sucedeu isso sobretudo a partir do séc. XI, à medida
que as Cruzadas foram reactivando as ligações no espaço do antigo
Império Romano, quer as de sentido meridiano, quer entre o Ocidente
e o Levante. Não dispondo de condições naturais para o crescimento
da cana-de-açúcar, a Europa cristã média e setentrional não teve então
outra hipótese senão vir abastecer-se deste precioso «sal» ao Mediter-
râneo. O reino muçulmano de Granada, por exemplo, seria até ao séc.
XV um dos principais centros produtores de açúcar no Mediterrâneo
ocidental, cabendo-lhe o abastecimento dos portos de Barcelona e
Génova, e até mesmo de algumas cidades flamengas, a partir de onde
o açúcar era redistribuído pelo norte da Europa (cf. Fábregas Garcia,
2000)18. Nalgumas das ilhas entretanto subtraídas ao domínio islâmico,
os novos poderes cristãos não tardaram a instituir sistemas próximos

18
Como nesta obra se mostra, do reino de Granada não se exportava apenas açúcar já
refinado, senão também «meles» por cozer, que depois eram refinados nos portos de
destino. Génova e Bruges, por exemplo, foram cidades onde, apesar de não haver
produção de cana, havia capitalistas com capacidade para investir em refinarias,
razão pela qual se desenvolveu uma indústria próspera de cozedura dos «meles de
açúcar» importados do Mediterrâneo.

53
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

do que viriam a ser as «economias de plantação» de forma a diminuir


o monopólio muçulmano no comércio de açúcar. Sucedeu isso na Sicí-
lia, onde no séc. XII, depois de tomada pelos normandos e de passado
o governo da ilha para o lado cristão, se desenvolveu uma economia
pujante baseada na exportação de dois produtos orientais largamente
valorizados no mercado europeu: a seda e o açúcar. Sucedeu isso depois
de novo, e com mais vigor ainda, no Chipre, quando, em finais desse
mesmo século, durante a Cruzada comandada por Ricardo, Coração de
Leão, a ilha saiu da esfera de influência bizantina para se tornar numa
lança cristã latina cravada no Mediterrâneo oriental. Sob a dinastia dos
Lusignan que então se fundou, o Chipre tornou-se num dos maiores
centros de produção açucareira de todo o Mediterrâneo, consagrando-
-se ao seu cultivo largas extensões da ilha praticamente em regime de
monocultura, sobretudo na vertente voltada a sul, em redor de Limassol,
onde também se fundaram diversas refinarias.
Não admira que a cultura do açúcar tenha sido encarada por tudo
isto como uma prioridade logo desde o início do domínio das Ilhas
Atlântidas pelas coroas ibéricas. No fundo, tratava-se de reproduzir
um modelo de desenvolvimento que se tornara comum no Mediterrâ-
neo sempre que estava em causa o avanço das potências cristãs sobre
novos territórios, em especial ilhas (como nos citados casos da Sicília e
do Chipre). Onde esse processo se viu mais facilitado foi na Madeira e
nas Canárias, graças às condições de clima, que eram propícias à cana
sacarina, e sobretudo na Madeira, onde não foi necessário lutar contra
uma resistência indígena. Daí que uns escassos quarenta anos após o
«descobrimento» da ilha já tenhamos o Infante D. Henrique em contacto
com venezianos para introduzir o açúcar madeirense nos circuitos de
comercialização europeus (como se diz em Romero Magalhães, 1998, 298);
ou que em finais desse século o produto dos canaviais e dos engenhos
açucareiros da ilha estivesse disperso por numerosos portos em toda a
Europa, da Flandres a Constantinopla, incluindo em praças importantes
no comércio açucareiro, como Génova e Veneza (ibid., 300).
A difusão da cultura da cana-de-açúcar nas Canárias fez-se a partir
da Madeira e deu-se com atraso de alguns decénios em relação a esse
foco pioneiro. Embora tentado nas ilhas que se colonizaram primeiro,
este cultivo só se disseminou em larga escala após a conquista da Grã-
Canária, Palma e de Tenerife, ou seja, já no séc. XVI. Para além destas
ilhas reunirem condições para o crescimento da cana bastante melhores

54
2. Encontros e hibridismos na colonização das ilhas

que Forteventura e Lançarote, onde faltava água, é compreensível que


numa primeira fase tenha sido dada prioridade à produção de cereal,
até pela necessidade de assegurar a subsistência dos colonos que come-
çavam a estabelecer-se no arquipélago e de garantir o abastecimento
das praças no norte de África. Mas mesmo ocorrendo mais tarde, essa
introdução do cultivo da cana-de-açúcar nas Canárias acabou por ter
efeitos semelhantes aos que já antes produzira na ilha da Madeira. A
plantação dos canaviais implicou a queima e o desbaste das florestas e
dos matos que de início cobriam as ilhas, e o arroteamento de terrenos,
alterando ecossistemas e paisagem. No caso específico das Canárias,
significou outra mudança ainda, incomparavelmente mais brutal: sig-
nificou que os aborígenes fossem desapossados das suas terras, da sua
cultura, e mesmo do domínio sobre si mesmos, quer dizer, da posse dos
seus corpos e do exercício da sua vontade, por via de uma subjugação
massiva ao trabalho escravo19.
Nem nos Açores nem em Cabo Verde a indústria açucareira logrou
sucesso comparável ao da Madeira ou das Canárias. Fizeram-se plantações
e ainda hoje são visíveis canaviais nesses arquipélagos (sobretudo em
Cabo Verde), mas as produções nunca atingiram neles valores relevantes.
Nos Açores, faltava calor; nas ilhas de Cabo Verde, água. Não obstante,
também estes dois arquipélagos deram à sua maneira contributos para
que um centro de produção açucareira se pudesse afirmar nas Ilhas
Atlântidas, como aliás mostrou Vitorino Magalhães Godinho (1981-
83, mormente vol. IV, III parte, cap. 6). Toda a transformação da cana
sacarina é, desde a colheita dos caules até à cristalização dos «meles de

19
A história da colonização espanhola das Canárias cai claramente no que se designa
de «etnocídio», porquanto significou um rápido e quase total desmantelamento da
cultura aborígene às mãos da potência colonizadora. Porque se estava em face de
uma população numericamente muito inferior e sem os recursos culturais de que
dispunham, por exemplo, os quíchuas da América andina, os efeitos da colonização
sobre o desaparecimento da cultura canarina indígena foram muito mais drásticos.
Isto porém não deve ser confundido com genocídio. A população guanche não foi
dizimada. Uma parte terá sido dispersa através do tráfego esclavagista. A outra foi
integrada na nova sociedade que se formou nas ilhas, processo que terá começado
pela sua subjugação ao exercício dos trabalhos mais pesados, nomeadamente como
escravos, mas que a prazo acabou por conhecer também os seus casos bem sucedidos
de mobilidade social. É por isso que há notícias de guanches livres desempenhando
funções de alcaides e outras em Tenerife nos inícios do séc. XVII, como se dá conta
em F. García-Talavera (s.d., em linha).

55
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

açúcar», um processo que requer grande quantidade de mão-de-obra.


Essa é aliás a razão por que a implantação desta cultura surge sempre
tão associada ao sistema esclavagista. Ora, na Madeira não havia essa
disponibilidade de trabalho. Foi por isso necessário importar gente; e
essa gente veio da Europa (obviamente), mas veio também das Canárias,
na forma de escravos guanches, e, em muito maior quantidade do que
normalmente se julga, de África, passando neste caso quase sempre por
um estágio de «ladinização» em Cabo Verde20.
O contributo dos Açores foi outro. Os cereais, se ainda hoje constituem
a base da alimentação, eram-no muito mais decisivamente nos sécs. XV
e XVI. Da sorte de um bom ano de sementeira dependia a demografia
e até a paz social. Muitas das guerras e revoltas ocorridas na Europa
durante a Idade Média surgiram em sequência de crises frumentícias.
Daí a importância que sempre se atribuiu às «terras de pão». Portugal,
que nunca fora rico nesse tipo de produção, viu subitamente abrirem-
se-lhe hipóteses novas com o «descobrimento» das Atlântidas. Os solos
vulcânicos eram propícios ao cultivo do trigo e da cevada. A ilha da
Madeira chegou por isso a ser excedentária em grãos de trigo numa
primeira etapa da sua colonização, contribuindo quer para o abasteci-
mento da «metrópole», quer das praças de Marrocos, onde o problema do
fornecimento em cereal era uma questão militar sensível (cf. Magalhães
Godinho, 1981-83, vol. III, III parte, cap. 1). Porém, devido à superior
cotação que o açúcar tinha no mercado e à aptidão da ilha para esse
cultivo, depressa os terrenos passaram a ser preferencialmente destina-
dos à cana sacarina. De uma situação de excedente passou-se para uma
situação de défice. O trigo tornar-se-ia em pouco tempo insuficiente para
o próprio mercado insular, começando a ser preciso ir buscá-lo a outros
locais. Foi nesse contexto que os Açores assumiram o papel de forne-

20
Qualquer entreposto esclavagista, de que as ilhas de Cabo Verde foram um exemplo,
tinha sempre associada essa função de «ladinização». Na linguagem e na lógica do
esclavagismo, distinguiam-se os escravos boçais dos escravos ladinos. O boçal era
o escravo recém-capturado que ainda não havia sido disciplinado nem preparado
para o trabalho. O ladino era o escravo já familiarizado com a língua dos senhores,
já eventualmente cristianizado, com noções mínimas dos hábitos sociais «civiliza-
dos», e que estava disciplinado para o trabalho. Antes de chegarem ao seu destino
final, os escravos passavam por um período que podia ser mais ou menos longo em
entrepostos esclavagistas para perderem essa «boçalidade» que se suponha «natural».
O escravo ladino tinha obviamente um valor comercial muito superior ao do boçal.

56
2. Encontros e hibridismos na colonização das ilhas

cedor da Madeira, desenvolvendo essa cultura. A produção cerealífera


nos Açores pode ser vista assim como complementar da especialização
açucareira na Madeira, e é a confirmação da ideia de que terá havido
desde muito cedo um funcionamento interdependente e articulado dos
vários arquipélagos macaronésios.

Extraversão das economias, confluências e cruzamentos de gentes

A especialização açucareira da Madeira e das Canárias a que alu-


dimos é a prova de que houve nesses dois arquipélagos uma patente
orientação exportadora logo desde os começos da sua ocupação, nos
sécs. XV e XVI. São duas economias fortemente extravertidas essas que
neles se formam. Era para o «mundo» – para a Península, para Bruges
e Antuérpia, Rochela e Ruão, Génova e Veneza – que se canalizava o
produto das suas plantações. E ao mesmo tempo, era também de «fora»,
desses lugares, que vinham «industriais» e «especialistas» interessados
em aplicar capitais e experiências no cultivo da cana e na refinação do
açúcar, o que muito ajudou a guindar a economia dos dois arquipélagos21.
Ao sucesso da produção açucareira destas ilhas associar-se-ia por fim,
embora a prazo, a crise de outras regiões produtoras, algumas distantes
e à primeira vista sem relação directa com este novo mundo atlântico
em construção, no que também mostra essa forte interdependência das
ilhas com o espaço «exterior». Por causa do crescimento mais fácil e
pujante da cana-de-açúcar no ambiente subtropical da Madeira e das
Canárias, não tardou muito a que os açúcares mediterrâneos começassem
a perder competitividade nas grandes praças europeias e que disso se
ressentissem as regiões que os produziam. Sucedeu isso por exemplo
no longínquo Levante, justamente no outro extremo da Cristandade: o
início da agonia e o esboroar final da indústria sacarina cipriota, com
todas as metamorfoses que isso produziu na paisagem local, é algo que
deve ser visto como consequência da nova concorrência exercida por

21
São numerosos os italianos (genoveses, venezianos, sicilianos) que vamos encontrar
envolvidos no povoamento inicial dos arquipélagos da Madeira e das Canárias, quase
todos com ligações ao negócio do açúcar. Um dos genros de Tristão Vaz Teixeira era
genovês. Bartolomeu Perestrelo era ele próprio filho de um comerciante genovês
e aparentemente sogro de um outro – nada mais, nada menos do que Cristóvão
Colombo, que terá casado com uma filha sua de nome Filipa.

57
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

estes primeiros focos açucareiros, e pelos outros que depois se haviam


de afirmar em África e na América.
Dificilmente poderia haver sinal mais contrário à ideia de um isola-
mento insular do que a afirmação desta vocação exportadora nas Ilhas
Atlântidas. Dela veio a resultar uma tradição de intensa abertura ao
«exterior» e forte dependência de factores externos, que seria doravante
decisiva na história dos arquipélagos e colocaria as suas economias a
pulsarem aos ritmos das sístoles e diástoles do mercado internacional.
O «ciclo do açúcar» foi apenas o primeiro que viveram as Canárias e
a Madeira22. Outros se lhe seguiram. A partir do séc. XVII, houve o do
vinho. A partir do último quartel do séc. XIX, na sequência da devasta-
ção das vinhas pelas pragas de oídio e filoxera, reapareceu, por algum
tempo, a produção de açúcar, e afirmou-se sobretudo um novo «ciclo da
banana», com o qual as ilhas viram confirmada ainda mais a sua feição
tropical23. Entre estes dois, pode falar-se ainda, para as Canárias, no
«ciclo das cochonilhas»24. Todos eles foram, mutatis mutantis, períodos

22
O declínio do «ciclo açucareiro» começa na Madeira e nas Canárias em finais do
séc. XVI, com a crescente concorrência dos novos centros açucareiros da Baía e do
Caribe, onde, contrariamente ao que aqui sucedia, a cana conseguia crescer sem
rega e se conseguiam obter por isso produções muito mais abundantes e menos
custosas. Embora nunca chegando a ser inteiramente erradicado das ilhas, o cultivo
da cana-de-açúcar regrediu então bastante, passando a manter-se apenas numa base
camponesa, destinada ao mercado insular e a alimentar uma pequena fileira indus-
trial associada ao açúcar, como a confeitaria e a destilação. É por isso aliás que as
aguardentes de cana – como o grogue cabo-verdiano, o ponche madeirense e o rum
canarino – continuam a ser produções típicas das ilhas macaronésias (à excepção dos
Açores), largamente consumidas pelas suas populações e com um lugar importante
nas sociabilidades populares e nas festividades. A indústria de destilarias de rum nas
Canárias é a que permanece mais próspera, sendo mesmo afamada fora das ilhas.
23
As bananeiras são originárias da Indonésia e das Filipinas e foram introduzidas na
Macaronésia no séc. XVI. Desde então, nunca terá deixado de ser cultivada numa
base doméstica, com vista ao consumo familiar. No séc. XIX, com o crescimento das
classes médias urbanas na Europa e a difusão dos barcos a vapor, que vieram encur-
tar as distâncias-tempo e facilitar a importação de produtos alimentares exóticos, a
exportação da banana começou a ganhar importância, primeiro nas Canárias, e mais
tarde também na Madeira.
24
A cochonilha (Dactylopius coccus) é um pequeno insecto da família das cigarras ori-
ginário da América Central, do qual se extrai um pigmento – o carmim – que teve
grande procura durante o boom da indústria têxtil nos tempos da Revolução Industrial,
e até ao desenvolvimento dos pigmentos artificiais. A cochonilha, que prefere climas
quentes e se alimenta sobretudo de cactos e de outras plantas carnudas, mas que pode

58
2. Encontros e hibridismos na colonização das ilhas

de certa prosperidade económica, cada qual dominado pela exportação


de um diferente produto, com a sua fase inicial de expansão, depois
apogeu, e finalmente declínio.
Cada um destes ciclos implicou um refazer da paisagem, e até mesmo
das sociedades insulares. Significou uma certa reocupação e reorgani-
zação do espaço e veio gerar as suas próprias elites, as suas redes de
sociabilidade e as suas relações de classe. A vitivinicultura da Madeira
e das Canárias remonta às origens da ocupação das ilhas, mas viveu o
seu período de maior fulgor nos sécs. XVII e XVIII, quando o vinho foi
descoberto como produto de exportação alternativo ao açúcar. Muitos
dos terrenos que antes haviam estado dedicados ao canavial nas ilhas da
Madeira, Grã-Canária, Tenerife e Palma (mas também, em menor escala,
nas outras), foram ocupados por cepas trazidas da Península Ibérica, e
mesmo de ilhas distantes do Mediterrâneo oriental, como de Creta, de
onde D. Henrique, o Navegador, terá mandado trazer os primeiros pés de
malvasia. Milhares de tonéis foram exportados ao longo desses séculos
para o Mar do Norte e para o Báltico, onde os vinhos atlânticos (inclu-
sive dos Açores) circularam em abundância e chegaram a ser reputados
(hoje só o vinho licoroso da Madeira o é). Portos como o do Funchal
ou Puerto de la Cruz, em Tenerife, que prosperou neste período como
porto de escoamento das produções do fértil vale de Orotava, passaram
a ter no tráfego vinícola o seu principal movimento. No hinterland do
Funchal, concretamente, assistir-se-ia à criação de uma nova paisagem
agrícola, marcada pela plantação de milhares de pés de videira e pela
construção de uma nova geração de solares envoltos em exuberantes
jardins de lazer. De resto, é em estreita relação com essa especialização
económica – um pouco à semelhança do que sucedeu, por exemplo, no
Douro – que crescem na ilha as famílias inglesas envolvidas no negócio
do vinho e que se assiste à formação de uma pequena mas influente
comunidade estrangeira.
À sua maneira, tendo em conta as condições ambientais concretas,
podemos encontrar desde muito cedo nos outros arquipélagos macaro-
nésios habitados a mesma extraversão que caracterizou as economias
madeirense e canarina. Essa parece ser de resto uma propriedade comum

constituir uma praga, foi criada intensivamente durante a primeira metade do séc.
XIX em certas regiões do México, Honduras e Guatemala (com vista à exportação do
carmim para o mercado norte-americano) e nas Canárias (com destino à Inglaterra).

59
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

à generalidade das economias insulares, sobretudo no caso de ilhas


pequenas. A bibliografia mostra que nos espaços insulares a reduzida
dimensão dos mercados locais, a escassez de recursos e a descontinui-
dade geográfica, tendem a ser compensados por uma forte abertura ao
mercado externo e por uma especialização na oferta de produtos raros
ou exóticos de alto rendimento que respondam a nichos de procura
no mercado internacional (cf., por exemplo, Dommen e Hein, 1985, ou
Bertram e Poirine, 2006).
Disse já que o açúcar nunca conseguiu obter um sucesso comparável
ao que teve na Madeira e nas Canárias nem nos Açores, nem nas ilhas
de Cabo Verde. Outras fontes de riqueza ocuparam aqui o seu lugar. Nos
Açores, para além da produção de trigo, foi o cultivo de pastel que nos
sécs. XVI e XVII sustentou a economia regional. O pastel (Isatis tinctoria)
é uma herbácea anual nativa na Europa oriental que na Idade Média foi
muito procurada pelas suas propriedades tintureiras. Da sua maceração
produzia-se uma tinta azul-violáceo, insolúvel na água, extraordinaria-
mente resistente às lavagens, e que por isso tinha enorme procura nas
activas oficinas da Hansa e do Mar do Norte. O Infante D. Henrique,
que parece ter tido o cuidado de não deixar os principais parceiros
comerciais de Portugal arredados da aventura da colonização das Ilhas
Atlântidas, se à Madeira chamou sobretudo genoveses, venezianos e
catalães25, nos Açores deu prioridade ao envolvimento de flamengos.
Jácome de Bruges, Guilherme de Brum (van der Bruyn) e Jorge Dutra
(van der Hurtere) são algumas das personalidades flamengas cujos nomes
surgem ligados ao arranque da colonização açoriana26. Provavelmente
foi por essa via que surgiu a ideia de cultivar nos Açores o pastel. Mas
tenha sido ou não, certo é que, tal como na Madeira e nas Canárias o
açúcar constituiu o principal produto de exportação e o grande susten-
táculo da riqueza insular nos dois primeiros séculos de colonização, nos
Açores isso coube ao pastel, que todos os anos se fazia transportar em

25
A presença italiana também foi importante nas ilhas de Cabo Verde – veja-se o
interessante estudo sobre os italianos em Cabo Verde e em São Tomé de I. Castro
Henriques (2004, 129-156).
26
Todos estes – Brum, Bruges e Dutra, Utra ou Horta – são apelidos amplamente difun-
didos nos Açores e que atestam essa abertura histórica do espaço açoriano a gentes do
Mar do Norte. Outros nomes frequentes neste arquipélago e que também decorrem
do aportuguesamento de apelidos provenientes de latitudes mais elevadas da Europa
são, por exemplo, Dulmo (do flamengo van Olm) ou Canto (do inglês Kent).

60
2. Encontros e hibridismos na colonização das ilhas

grandes quantidades para as praças da Flandres a fim de ser consumido


nas oficinas têxteis locais.
Ao «ciclo do pastel» sucedeu o «ciclo da laranja». Raquel Soeiro de
Brito (1955, 74), reportando-se à ilha de São Miguel, identificou 1714
como o ano de início da exportação de laranjas. Partindo dessa referência,
talvez também para o conjunto do arquipélago se possa considerar a
primeira metade do séc. XVIII como o arranque deste ciclo. Quanto ao
destino da exportação, embora continuando a estar no Atlântico Norte,
deslocou-se da Flandres para a Inglaterra, que no apogeu deste ciclo
(após o Bloqueio Continental) absorvia a quase totalidade da produção
de laranjas açorianas: 93,4% das caixas exportadas de Ponta Delgada no
período de 1820-29 destinaram-se à Grã-Bretanha, subindo para 99,5%
entre 1840 e 1844 (Sequeira Dias, 1994, em linha). Tal como sucedeu
com o «ciclo do vinho» nas Canárias e na Madeira, também o da laranja
trouxe aos Açores uma nova geração de comerciantes estrangeiros,
sobretudo ingleses.
A colonização dos Açores não foi tão pronta nem fácil quanto a da
Madeira, ou mesmo a das Canárias. A posição mais profundamente
oceânica deste arquipélago ajuda a explicá-lo. É possível que o clima,
perturbado por tempestades frequentes, também. As ilhas dos Açores,
especialmente as mais ocidentais, revelaram-se aliás tão pouco atractivas
à fixação de gente numa primeira fase que foi preciso recorrer inclusive
a migrações forçadas de degredados e a escravos para promover o seu
povoamento. Carlos Guilherme Riley (1996, 85) situa o início dessa ocu-
pação humana mais efectiva na primeira década do séc. XVI, uma vez
que ainda em 1507 as ilhas açorianas apareciam descritas por Valentim
Fernandes Alemão como estando despovoadas de gente e apenas ocu-
padas por gados. Explica o mesmo autor que a alteração dessa situação
apenas se terá dado à medida que os portugueses foram avançando para
sul na costa africana (ibid.; e também Riley, 1998, 152) – de novo uma
sorte que se construiu na relação das ilhas com o mundo! Para fugir aos
alísios, que no regresso à Península sopravam como ventos contrários,
as caravelas eram obrigadas a fazer uma rota em arco na torna-viagem,
avançando primeiro para noroeste e curvando depois para leste. Esse arco
tinha de ser tão mais largo quanto mais de sul se viesse, e foi isso que
acabou por dar às ilhas açorianas relevância estratégica: o arquipélago
representava, tanto na «volta da Mina» como na «volta da Índia», como
ainda para as carreiras que vinham das Américas, a última escala possível

61
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

de reabastecimento e reparação das caravelas antes de um longo percurso


de várias semanas em mar alto até chegarem finalmente à Península27.
Mais hesitante ainda do que a colonização dos Açores foi a de Cabo
Verde. A aridez das ilhas, e, de um modo mais geral, a estranheza do
homem europeu diante do mundo tropical, cujos ritmos naturais desco-
nhecia, dificultou essa ocupação. Todas as Ilhas Atlântidas foram à sua
maneira, como dizia Orlando Ribeiro (1994, 49), «uma rude escola de
colonização»; eram «Terras inóspitas à primeira vista, de grandes declives
e trechos de costa inabordáveis, que na época do descobrimento estavam
revestidas de matagais impenetráveis e não possuíam uma única planta
alimentar» (ibid., 48). Mas escola mais rude que qualquer outra foi Cabo
Verde. Devido à sua posição geográfica, reunia condições de ambiente
muito diversas das dos outros arquipélagos. Depressa se verificou ser
difícil fazer crescer aí os cereais de pragana tradicionais da alimentação
europeia – o trigo, a cevada, o centeio. A vinha, que a princípio ainda se
cultivou a custo, não produzia resultados que compensassem o esforço,
de modo que foi quase totalmente abandonada, apenas persistindo no
Fogo. Assim, numa primeira fase, tudo quanto se fez foi largar cabras
nas ilhas e usá-las como «armazéns de carne» para abastecimento das
caravelas em trânsito nas costas de África. Julga-se, de resto, que esse
pastoreio algo descontrolado poderá ter sido um factor acelerador
da desertificação do andar basal destas ilhas28. Numa fase seguinte,
desenvolveram-se actividades extractivas, como aliás é comum sempre
que está em causa o aproveitamento económico de «ambientes-limite»
27
Contrariamente aos outros arquipélagos macaronésios, que serviam de escala aos
veleiros numa fase inicial das suas viagens, poucos dias após zarparem da Península,
os Açores surgiam numa etapa final da longa viagem de vários meses de regresso das
Índias, com os navios carregados, muitas vezes a precisarem de reparação, e com as
tripulações exaustas. Porque seriam em princípio estadas mais longas e envolvendo
uma maior procura de serviços nas ilhas, eram «escalas ricas» e as primeiras «escalas
pobres», como refere A. Monjardino (1994).
28
Por influência de uma certa crítica anti-colonialista que também atingiu os estudos
ambientais, tem-se veiculado por vezes a ideia de que Cabo Verde deveria a sua
aridez ao mau uso que se fez dos recursos naturais após a «descoberta». Claro que
a acção antrópica pode ter agravado a desertificação, mas não parece que a aridez
actual destas ilhas possa ser vista como resultado disso. Tudo leva a crer que Cabo
Verde já teria condições ambientais semelhantes às actuais à data da chegada dos
portugueses, pelo menos a fazer fé no que diz Duarte Pacheco Pereira no seu Esme-
raldo De Situ Orbis, datado de 1506, onde as referidas ilhas aparecem descritas como
«estéreis», com «muito pouco arvoredo» e «más de andar» (Cap. 28).

62
2. Encontros e hibridismos na colonização das ilhas

– veja-se por exemplo o que foi a história da borracha na Amazónia,


do ouro no Oeste americano, ou do tráfico de peles no Grande Norte
canadiano. No caso das ilhas de Cabo Verde, o florescimento dessas
actividades traduziu-se na extracção de «sangue de drago» (a seiva do
dragoeiro), que se descobriu poder ter uso útil como verniz, na apanha
da urzela (Roccella tinctoria), de cujos talos esmagados resultava um
corante vermelho-púrpura apreciadíssimo à época dos Descobrimentos,
na colheita de sal, e na caça da tartaruga, de que as águas de Cabo Verde
eram abonadas e cuja carne cedo se começou a vender aos veleiros de
passagem pelas ilhas, quer na forma fresca quer salgada.
Para que se tenha uma ideia das dificuldades que houve na ocupação
humana das ilhas, é de registar o facto de só Santiago e Fogo terem sido
prontamente povoadas. Santo Antão, São Nicolau e Brava teriam de
esperar pelo séc. XVII para conheceram um povoamento mais efectivo,
o que veio a ocorrer na sequência de uma primeira crise do comércio
esclavagista que impôs que se procurassem outras fontes de rendimento
para as ilhas, nomeadamente na agricultura; até essa altura, haviam sido
deixadas num estado de semi-abandono, entregues a uma exploração
pecuária muito extensiva, correspondendo portanto àquilo que já se
designou de «ilhas-montado» (Correia e Silva, 2002). Tentou também
povoar-se Santa Luzia pela mesma altura, mas o projecto fracassou e
a ilha, sujeita a uma secura extrema, acabaria por ser abandonada em
finais do séc. XVIII. Quanto a São Vicente e ao Sal, só já no séc. XIX
sairiam de um estádio de abandono praticamente integral.
As «culturas de rendimento» nunca tiveram em Cabo Verde um
sucesso similar ao que registaram nos outros arquipélagos. O algodão,
que terá sido introduzido muito precocemente a partir da Guiné29,
constituiu a primeira dessas culturas para exportação praticada em
Cabo Verde. Exigente em calor mas tolerante à secura, começou a ser
cultivado ainda no séc. XVI, e por quase três centúrias foi o sustentáculo
de uma rudimentar indústria artesanal de produção de panos, sobretudo
nas ilhas maiores, que hoje sobrevive quase apenas na forma de uma
curiosidade etnográfica. Orlando Ribeiro (1954, 102) conta-nos que toda
essa actividade teve subitamente no séc. XIX um acentuado declínio, e

29
O algodão, que compreende várias cultivares do género Gossypium, pode ter sido
«domesticado» autonomamente em vários pontos diferentes da África e do Médio
Oriente, uma vez que parece ter uma distribuição «ecológica» muito extensa.

63
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

embora não o refira como consequência da Revolução Industrial e da


concorrência exercida pelos tecidos produzidos em grande quantidade
nas fábricas europeias e norte-americanas, parece-me impossível não
encontrar relação entre os dois factos.
Outras «culturas de rendimento» que se praticaram nas ilhas de
Cabo Verde e que comprovam a tal extraversão e abertura das econo-
mias macaronésias a que antes aludi, foram a do anil, a do café e a das
oleaginosas. A anileira (Indigofera anil), proveniente da Índia e trazida
para estas ilhas talvez no séc. XVII com vista a ser usada na produção
de corantes (o famoso e muito apreciado anil), foi explorada enquanto
esteve activa a produção de panos, mas deixou de ter interesse quando
a indústria algodoeira sucumbiu, transformando-se num arbusto «sel-
vagem». O cafezeiro parece ter sido introduzido na ilha de São Nicolau
só em finais do séc. XVIII (Ribeiro, 1957, 127), propagando-se a partir
daí ao resto do arquipélago, com excepção evidente das «ilhas rasas»,
que não reuniam condições para o cultivo de uma espécie como esta,
exigente em solos fundos e que prefere crescer como formação subar-
bórea. Quanto às oleaginosas, de introdução ainda mais recente, as
principais produções são a da semente da purgueira (Jatropha curcas),
que cresce sensivelmente até aos 1.000 m, e a do rícino (Ricinus commu-
nis), que aparece depois, acima dessa cota. Os dois arbustos, bastante
rústicos, desenvolvem-se como se de espécies espontâneas se tratassem
e disseminaram-se largamente nas ilhas de Cabo Verde. As sementes
de uma e de outra chegaram a ter inclusive, a dada altura, papel de
certo relevo na estrutura das exportações do arquipélago: primeiro, no
séc. XIX, quando foram usadas como combustível para a iluminação
pública de Lisboa; depois, no séc. XX, no período em que a CUF deteve
o monopólio das oleaginosas de Cabo Verde e da Guiné (óleo de palma),
e uma frota de barcos da companhia vinha expressamente às ilhas bus-
car o produto dessa exploração. Presentemente, após um período de
esmorecimento do interesse por estas culturas, a purgueira começa a
ser de novo objecto de atenção por parte do Estado e dos investidores
privados, nomeadamente pelo seu potencial na produção de biodíesel.
Mais do que qualquer dessas produções, aquela que verdadeiramente foi
a grande actividade exportadora das ilhas de Cabo Verde, o seu elemento
de conexão com o mundo, e talvez até a sua essencial razão de ser nos
primeiros tempos de colonização, foi o tráfego de escravos. No processo
de investida europeia sobre o continente africano, as ilhas desempenharam

64
2. Encontros e hibridismos na colonização das ilhas

uma função vital – basta pensar no que significaram para a história da


colonização portuguesa em África as ilhas de Bolama, na costa da Guiné,
onde se estabeleceu o primeiro entreposto, ou de Luanda, no caso de
Angola. Protegidas dos riscos de assaltos perpetrados a partir do interior
do continente, fáceis de dominar porque espacialmente confinadas e a mais
das vezes sem população permanente, ofereciam, comparativamente ao
continente desconhecido, uma segurança preciosa. Por outro lado, porque
dispunham por vezes de fontes de água potável e frutos para refresco
das tripulações, constituíam óptimas retaguardas e pontos de apoio para
toda a actividade relacionada com a navegação e o trato. Assim sucedeu
também com o arquipélago de Cabo Verde, cuja maior utilidade residiu
precisamente em funcionar como depósito dos «produtos» comerciados
na costa do Senegal e no Golfo da Guiné, entre os quais, juntamente com
o marfim, o ouro e a malagueta, não tardaram a figurar os escravos.
Qualquer valor de população que se invoque para esses primeiros
séculos da colonização não pode constituir senão uma aproximação.
Quão grosseira, não sabemos. Para 1582, uma fonte da época indica que
haveria nas ilhas de Cabo Verde um universo de 13.700 negros para uma
escassa minoria de cerca de 700 brancos (Carreira, 1977, 27). Provavel-
mente não seriam tão poucos brancos ou tantos negros (ou nem uma
coisa nem outra), mas o atrevimento de asseverar tal desproporção não
pode deixar de significar algo a respeito da origem étnica dominante da
população destas ilhas logo desde o início da sua ocupação.
O tráfego esclavagista, ainda que pelas piores razões, não só pôs as
ilhas de Cabo Verde em contacto com o mundo, como permitiu que
através delas diferentes partes do globo pudessem contactar-se entre
si. Não é por acaso que a modinha brasileira (sobretudo a original, dos
finais do séc. XVIII), o fado e a morna partilham tantos elementos meló-
dicos. Porque foi uma rótula de conexão fundamental entre a Europa,
a África e a América, e ao mesmo tempo um lugar de confluência de
elementos provindos desses vários locais, Cabo Verde, sem deixar de
ser distintamente uma terra africana, pôde desenvolver uma sociedade
e uma cultura plenas de originalidades.
Uma visão que sempre dominou na análise do processo histórico da
colonização das ilhas «africanas» do Atlântico é a de um povoamento
assegurado maioritariamente por gente de África, embora sob comando
de um grupo branco minoritário que teria sabido impor uma marca
civilizadora sobre a massa negra. Disso – propõe a mesma visão – teria

65
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

resultado a formação de sociedades novas, «terceiras», mestiças, de


africanos «branquizados». É aliás assim que vêem as coisas tanto os
«africanistas», que enfatizam a violência da colonização branca e com
isso reduzem as populações negras ao papel de meras vítimas passivas
de uma história que lhes teria sido imposta de fora, como os adeptos
das teses apologéticas ou mais benevolentes para com o projecto colo-
nial português, como é a tese do «luso-tropicalismo», na qual se baseia
a ideia (um mito?) de que a colonização portuguesa terá sido diferente
das outras colonizações europeias, por se ter baseado muito mais no sexo
do que no chicote. De facto, tanto num como noutro caso, curiosamente,
é sempre a perspectiva da mestiçagem como «embranquecimento» das
populações negras que prevalece, e nunca a da mestiçagem como um
processo também de «africanização» das populações brancas.
Claro que tudo isto constitui uma visão excessivamente simplista do
que se passou no mundo atlântico tropical durante a colonização (e por
acção do colonialismo) e de como se formaram as suas sociedades criou-
las. Ambas as visões estão tingidas de preconceitos rácicos. Por detrás
dessa imagem romantizada do português pinga-amor que se «comove»
diante da beleza primitiva da mulher indígena, e que por toda a parte
deixa disseminados filhos mulatos, não deixa de estar presente um certa
ideia paternalista, própria do pensamento imperialista, que se traduz na
imagem do senhor que condescende em amar a serva. Por outro lado, nos
que insistem nessa visão simplista do branco como actor da colonização,
e do negro como sua mera vítima passiva, não deixa de haver também
um certo preconceito, que se traduz numa incapacidade de reconhecer
ao africano uma vontade ou um poder de agir. Ora, o que nos ensina
a história pós-colonial da escravatura e do mundo sul-atlântico nesse
longo arco temporal que vai de 1500 a 1800 é que as sociedades colo-
niais se ergueram a partir de sistemas muito mais complexos que isso.
É verdade que muitos negros eram escravos, mas também havia negros
livres nas ilhas – escravos forros, escravos fugidos, e até negros que
nunca foram escravizados e inclusive possuíam e comerciavam os seus
próprios escravos negros – e em algumas das ilhas esses últimos eram
mesmo a maioria30. Por isso refere Isabel Castro Henriques (2004, 113) que

30
Diz A. Correia e Silva (2002, 4) que em 1731, em Santo Antão, só 15% da população
era escrava, valor que descia para 11% em S. Nicolau e menos de 6% na Brava. A
maior parte dos habitantes, embora negros, correspondiam a pequenos camponeses

66
2. Encontros e hibridismos na colonização das ilhas

pretender reduzir a história da ocupação humana das ilhas do Atlântico


tropical a um «povoamento combinando senhores europeus e escravos
africanos» constitui uma explicação «singularmente deformadora, pois
recusa a participação activa dos africanos, habitualmente considerados
como sendo as coisas da colonização e da vontade europeias». A essa
perspectiva redutora (e até falsa) que coloca nas mãos dos europeus a
autoria de todas as mudanças societais e decisões sobre a ocupação do
espaço e a construção da paisagem, devemos nós contrapor que tam-
bém os africanos intervieram activamente na produção das ilhas e das
sociedades insulanas, ao transporem para esses novos espaços, ainda
que por vezes num quadro de resistência – «resistência» no sentido gra-
msciano que Peter Jackson (1989) trouxe para a Geografia –, muitos dos
seus hábitos, dos seus saberes, da sua tecnologia, das suas formas de
sociabilidade, dos seus modos de organização em família. A difusão do
uso do pilão em Cabo Verde em detrimento da mó é bem o sinal dessa
acção civilizadora que os negros também exerceram. Nada mais errado
portanto do que pretender ver a população africana como uma simples
matéria-prima que os brancos modelaram. A mestiçagem é o produto
de trocas culturais que inevitavelmente se produzem em dois sentidos,
e de negociações entre as partes envolvidas. Os africanos foram como
os europeus agentes da produção dessas novas sociedades crioulas, até
porque terão sido impelidos a criar nesses espaços para onde foram
forçados a migrar mundos novos que para si mesmos fizessem sentido31.

A aclimatação de espécies exóticas e a «tropicalização» da paisagem

Economias vivamente abertas ao «exterior» desde o princípio da sua


colonização moderna, cruzadas por fluxos de gentes e mercadorias de

que trabalhavam directamente a terra e que empregavam mão-de-obra familiar. Os


escravos, além de minoritários, pertenciam quase todos aos donatários das ilhas. Em
consequência disto, e à excepção de Santiago e Fogo, questiona-se o autor citado sobre
se estas «sociedades podem ser legitimamente catalogadas de escravocratas» (ibid.).
31
A ideia da sociedade mestiça fundamentalmente como resultado da acção dos actores
africanos, da sua criatividade e capacidade de encontrarem modelos de organização
societal e formas de cultura material adaptadas a um novo mundo, tem um dos
seus argumentos mais fortes no facto de sempre ter existido nas ilhas uma enorme
desproporção entre a população colonizadora, ínfima, e uma grande massa humana
de traficados e seus descendentes – veja-se, e. g., B. Davidson (1988).

67
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

proveniências diversas em circulação pelos mares (europeus cristãos,


judeus, africanos), as Atlântidas são hoje o produto de um caldeamento
de elementos culturais das mais diversas origens. Essas conexões e
confluências estão transcritas na paisagem, toda ela ou quase (excepto
pequenos trechos de mato espontâneo intocado em pontos menos
acessíveis das ilhas) produto da determinação em tentar arranjar sem-
pre soluções de vida melhores, e também de uma abertura de espírito
característica dos audaciosos e pioneiros. As ilhas da Macaronésia não
revelam nas suas paisagens as marcas de fixidez próprias dos lugares
ermos; o que por toda a parte predomina são, em vez disso, paisagens
que se percebe serem obra humana recente, feitas de um trabalho de
«colagem» de elementos trazidos de muitas procedências, e sempre num
estado de permanente devir.
Não se cinge às chamadas «culturas de rendimento» a que já me
referi a prova dessa abertura das ilhas às influências vindas de «fora»,
por via da aclimatação de espécies exóticas. Verifica-se isso também nas
«culturas alimentares», que se imiscuem de forma muito mais difusa ou
capilar nas paisagens, para já não falar nas próprias espécies ornamentais,
que à sua maneira, ao embelezarem os lugares e com isso ajudarem na
solidarização afectiva das pessoas à terra, também pesaram na trans-
formação das ilhas em lugares plenamente habitáveis.
Quando se iniciou a ocupação humana moderna da Macaronésia a
primeira tentação residiu em procurar fazer de todo esse espaço uma
extensão ultramarina do mundo mediterrâneo. Introduzir elementos
familiares que possam criar a ilusão de continuidade com os lugares
de referência do passado é uma inclinação quase inevitável de quem
desbrava novos territórios. Olhando para o que fizeram os malaio-
polinésios em Madagáscar, ou os franceses no Quebeque e na Argélia,
concluía Hildebert Isnard (1982, 47) que «Emigrando, os homens con-
servam os comportamentos que derivam da sua cultura e transferem a
sua concepção do espaço para o seu novo meio». Provavelmente faz-se
isso na tentativa de conseguir reduzir o desconforto do desconhecido,
de amenizar essa experiência sempre de risco que representa a «frente
pioneira». O trigo, as hortaliças, as videiras, as romãzeiras, as figueiras
e os castanheiros, acabaram assim por ser instrumentos de que os euro-
peus se muniram para – como diria Yi-Fu Tuan (1983) – conferir às Ilhas
Atlântidas um «sentido de lar». Todas essas antigas culturas originárias
do Médio Oriente, que integravam o património agrário do Mediter-

68
2. Encontros e hibridismos na colonização das ilhas

râneo, mas que inexistiam no espaço da Macaronésia, foram tentadas


introduzir nele logo pelos sécs. XV e XVI. O sucesso disso, contudo, foi
em muitos casos limitado. Se é verdade que a paisagem mediterrânea
ainda se pôde estender com alguma facilidade para as Ilhas Canárias e
para a Madeira, revelou-se já todavia difícil de transpor para os Açores
e para Cabo Verde. Essa originalíssima forma de cultivo da vinha que
encontramos no Pico (e na ilha de Lançarote), com a videira crescendo
rasteiramente no solo de lava, em pequenos tanques secos delimitados
por muros de pedra que a protegem do vento – os chamados curros –
são bem o sinal do esforço e do engenho que já tiveram de ser aplica-
dos para a conseguir levar até aí. O Mediterrâneo era visivelmente um
mundo que começava a ficar para trás e a que as Ilhas Atlântidas já não
pertenciam plenamente: mostra-o aliás muito bem o facto de nunca se
ter adaptado nelas a oliveira, que de todas será talvez a mais exemplar
cultura mediterrânea.
Apesar dos europeus não terem renunciado a tentar introduzir na
Macaronésia as espécies a que estavam familiarizados na «metrópole»,
cedo começaram também a abrir caminho ao que se já chamou de «tropi-
calização» das ilhas (Castro Henriques, 2004, 152). Pretende-se com isto
fazer menção ao esforço de modelação nos arquipélagos macaronésios
de uma paisagem outra, inédita, assumidamente diferente da que nela
fora encontrada ao início, mas também da que se deixara para trás, na
«metrópole». Essa «tropicalização» define-se pela mistura e conjugação
de elementos vários, provenientes sobretudo das baixas latitudes e do
hemisfério sul, que até então, ou eram desconhecidos do mundo europeu
e mediterrâneo, ou eram por ele tidos como «exóticos». Esta terá sido
talvez a principal originalidade do povoamento da Macaronésia, e foi
até em certa medida algo que veio contrariar a tradição corrente nos
processos de colonização de novos territórios, onde a norma sempre
fora, como disse, a de procurar reproduzir os comportamentos societais
e os modelos de ocupação e organização territorial próprios dos locais
de origem.
A introdução da cana-de-açúcar na Macaronésia e a dos citrinos, que
tal como aquela foram trazidos do Oriente e introduzidos inicialmente
no Mediterrâneo pelos árabes, corresponderam aos primeiros passos
dados nesse caminho da «tropicalização» das ilhas. Passos ainda mais
decisivos, até pelo efeito que tiveram no sucesso do seu povoamento
humano – tese em que aliás sempre insistiu bastante Orlando Ribeiro

69
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

(por exemplo, 1994, 11-33) – foram porém os que se deram com a intro-
dução de espécies alimentares oriundas da América tropical e subtropical,
altamente nutritivas, em primeiro lugar o milho grosso ou de maçaroca,
mas também o feijão e diversos tubérculos, como a mandioca e a batata-
-doce – todos ingredientes ainda hoje comuns nas diversas cozinhas
das Ilhas Atlântidas.
Talvez não se tenha noção de como a introdução destas plantas
representou então uma ruptura profunda com toda a tradição agrícola
europeia e mediterrânea. Não era apenas o facto de serem espécies estra-
nhas ao património florístico do «Velho Mundo» que estava em causa.
Bem mais importante do que isso foi o facto de todas elas dispensarem
do seu cultivo o uso do arado e de a isso preferirem técnicas baseadas
no emprego de alfaias simples derivadas do uso de varapaus, como as
enxadas e os sachos. Isto significou a ruptura com uma longuíssima
tradição de «agricultura de sementes» de mais de 9.000 anos de história,
comum ao mundo eurasiático, e o perfilhar numa outra tradição agrícola
bem diferente, comum a quase todo o mundo tropical, da Papuásia à
América andina e à Africa negra: a da «agricultura de raízes».
Sinais óbvios da «tropicalização» dos arquipélagos macaronésios
encontram-se ainda, por exemplo, no cultivo de plantas de fruto. São
de facto muito numerosas e diversas as espécies que se trouxeram dos
trópicos para serem introduzidas nas Ilhas Atlântidas e que entretanto
se tornaram parte integrantes das suas paisagens. Há produção de
tâmaras, cajus e mangas em Cabo Verde, de papaias nas Canárias, de
maracujás na Madeira, de ananases nos Açores, quer numa base fami-
liar, nos pequenos quintais anexos às casas, para fins de autoconsumo,
quer também (se bem que mais raramente) no quadro de explorações
de certa dimensão destinadas a escoar para o mercado. Esse colorido
exótico prolonga-se depois ainda nas espécies arbustivas e florísticas que
adornam os jardins das ilhas, quer privados quer públicos: as palmeiras,
que aparecem um pouco por todo o lado, emprestando às paisagens
uma beleza tropical que remete para o imaginário colonial brasileiro
e das Antilhas; as estrelícias, as proteas, os antúrios, os hibiscos e as
buganvílias, a sugerirem ilhas remotas do Índico e do Pacífio; ou então,
nos Açores, outras plantas, como a araucária, as hortenses e o cedro-
do-japão, ou o próprio chá, às quais se devem inusitadas ressonâncias
meio orientais meio alpinas.

70
3. Circulação, vida de relação e urbanidade

Darwin, o caminho-de-ferro e a ideia de insularidade

Entre Dezembro de 1831 e Outubro de 1836, Charles Darwin empre-


endeu a bordo do H.S.M. Beagle uma longa viagem à volta do mundo.
Foi no decurso dessa expedição que colheu o essencial dos dados que
depois o levaram a formular a sua célebre teoria sobre a origem das
espécies. E particularmente úteis parecem ter sido as observações que fez
nos arquipélagos que visitou. A história das Ilhas Galápagos e dos seus
tentilhões é famosa. Darwin verificou que os tentilhões se desdobravam
numa variedade de formas espantosa para a dimensão do arquipélago,
e as razões dessa especiação tê-lo-ão intrigado: havia tentilhões com
bicos fortes e em forma de alicate que se alimentavam de sementes
duras, outros que possuíam bicos delicados e eram insectívoros, e até
estranhos tentilhões-vampiros detentores de bicos longos como agulhas
que usavam para picar as aves marinhas e lhes sugar o sangue.
As ilações que Darwin tirou das observações que colheu são bem
conhecidas. De tudo isso julgou o naturalista britânico poder concluir
que a diversidade das espécies na Terra não era senão o resultado de
um infindável processo de «evolução» em que sucessivas gerações de
novos seres, com características cada vez mais aperfeiçoadas, iam sempre
substituindo os seus antepassados. Na base dessa evolução e de toda
a diversificação das espécies a partir dos mesmos ancestrais comuns
estava a necessidade de adaptação ao meio, funcionando o processo
que designou de «selecção natural» como uma espécie de filtro que
implacavelmente tendia a privilegiar sempre os mais aptos e a eliminar
os mais fracos.
É bem conhecido o choque que esta teoria produziu na mentalidade
da época e o modo como afectou todo o pensamento ocidental dos dois

71
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

últimos séculos. Sobre as suas implicações sociais e morais, particular-


mente, muito se tem escrito. Menos comuns são as referências aos impactes
que o darwinismo teve noutras áreas da imago mundi, e que, contudo,
não deixaram também, a seu modo, de ser significativas; algo que por
exemplo quase nunca se refere é que o darwinismo ajudou a modelar
bastante a própria maneira moderna de se conceber a insularidade.
É com Darwin – ou talvez, para ser mais exacto, com Darwin e Alfred
R. Wallace1 – que as ilhas aparecem pela primeira vez claramente teori-
zadas como espaços de isolamento, e também, em certa medida, como
espaços arcaizantes e de austeridade. Sustentando-se em exemplos como
o das Ilhas Galápagos e da Austrália, possuidoras de espécies de flora e
fauna únicas no mundo, o darwinismo difundiu a ideia de que os espaços
insulares, e sobretudo os pequenos espaços insulares, seriam, como que
«por natureza», locais propícios a todos os géneros de endogamismos e
homogenias e à permanência de formas de vida ancestrais. Presos nas
ilhas, animais e plantas não tinham outra hipótese senão adaptarem-se
aos circunstancialismos concretos desses locais. Daí a diversidade de
formas de bico dos tentilhões dos Galápagos, que seriam adaptações
àquilo de que em cada ilha as aves dispunham para comer. Por outro
lado, devido ao isolamento e ao confinamento (às limitações de espaço),
que implicam sempre uma certa escassez de recursos, explicava ainda
aquela mesma teoria que as ilhas tendiam a possuir populações menos
numerosas, donde que fosse mais improvável o aparecimento de varia-
ções morfológicas capazes de virem a originar novas espécies, isto é,
«inovações». Porque esse isolamento fazia também das ilhas espaços
de algum modo protegidos, menos susceptíveis a ameaças externas e
de onde em regra estavam ausentes os grandes predadores, a «selec-
ção» actuava mais tenuemente, e por isso era mais lenta a «evolução».
Tudo concorria, em síntese, para que as ilhas surgissem como espaços
propícios ao aparecimento de «aberrações» (como eram as tartarugas

1
Como se sabe, Alfred R. Wallace desenvolveu em simultâneo e independentemente de
Darwin estudos que o levaram a conclusões muito semelhantes. Foi o conhecimento
por parte de Darwin dos trabalhos que estavam a ser desenvolvidos por aquele outro
naturalista inglês que o fizeram apressar a publicação da teoria sobre a origem das
espécies. Wallace publicaria em 1902 um trabalho especificamente sobre a vida insular
e o papel das ilhas nos processos de especiação, em que, tomando como base as suas
próprias observações, pôde aprofundar alguns dos aspectos primeiro abordados nos
trabalhos de Charles Darwin.

72
3. Circulação, vida de relação e urbanidade

gigantes dos Galápagos) e onde se revelava possível manter arcaísmos


que noutras circunstâncias a «selecção natural» se teria encarregado de
eliminar (caso, por exemplo, dos marsupiais da Austrália).
Muitas destas ideias foram transpostas para a análise das formas de
vida humana nos espaços insulares. Foi sob influência de Darwin e do
que veio a ser conhecido por determinismo ambiental – um modo de pen-
sar que primeiro seduziu os espíritos eruditos, influenciando as ciências
sociais e humanas, mas que acabou a prazo por se estender e conquis-
tar o próprio «senso comum» – que se difundiu a visão actualmente
dominante das ilhas como espaços de isolamento e até de algum atraso.
Fazendo-se fé em que «O isolamento das ilhas afecta a vida humana do
mesmo modo que as plantas e os animais» (Whitbeck e Thomas, 1932,
330), tornou-se vulgar associar à insularidade o motivo da sobrevivência
de arcaísmos e mesmo, por vezes, de «anormalidades», como seria – ale-
gadamente – o matriarcado, o incesto ou a antropofagia em certas tribos
insulanas. É assim que se compreende por exemplo que a partir de certa
altura, sob clara influência do pensamento evolucionista, os aborígenes
australianos tivessem passado a ser vistos (um pouco analogamente aos
marsupiais…) como formas humanas primitivas que a evolução teria
eliminado não fora a solidão insular extrema da Austrália (cf. de novo
Whitbeck e Thomas, 1932).
É evidente que há na interpretação evolucionista do efeito da insula-
ridade sobre as biocenoses aspectos inatacáveis. É um facto que o mar,
interpondo-se ao progresso dos animais terrestres e ao transporte de
pólenes e sementes pelo vento, cria condições de isolamento que favo-
recem os processos de especiação. Como aliás sucede também com os
continentes em relação aos mares interiores e às suas formas de vida,
diga-se de passagem. O que já não é evidente é que esse mesmo raciocí-
nio seja transponível para as populações humanas e que dele se possam
retirar ilações quanto às oportunidades ou limitações que a insularidade
proporciona ao progresso das sociedades, ou ao desenvolvimento das
civilizações.
O mar pode ser pensado sempre de dois modos. Um é do ponto de
vista de quem privilegia as mobilidades terrestres, as deslocações sobre
solo firme. Dessa perspectiva, é inevitável que o mar seja percebido como
«barreira». Se tivermos em conta que ele interrompe a continuidade das
terras emersas, que cria intermitências na unidade dos continentes, o
mar surge fatalmente como um «fosso» ou um obstáculo a transpor. Não

73
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

é todavia imperioso que as coisas se vejam exactamente deste modo.


Se considerarmos a circulação marítima em vez da terrestre, o oceano
tomará um significado radicalmente diferente. Aí, aquilo que parecia
ser uma «barreira» transformar-se-á num «corredor», à semelhança do
que sucede com as passagens de nível, que também significam coisas
diferentes consoante são vistas da perspectiva de quem circula de com-
boio ou de automóvel.
Talvez pareça estranho à sensibilidade actual que as mobilidades
em meio aquático possam ser privilegiadas em relação às mobilidades
em meio terrestre. A nossa percepção das distâncias e a própria ideia
de acessibilidade constrói-se hoje basicamente sobre a experiência da
circulação rodoviária. É em função do automóvel que pensamos as
distâncias e interiorizamos o espaço. Contudo, nem sempre foi assim.
Até à invenção e à difusão da locomotiva e das estradas macadamiza-
das, no séc. XIX, o meio de transporte mais rápido, fácil e barato para
as médias e longas distâncias era o aquático. Postas a flutuar sobre as
águas, as cargas viam diminuir o seu peso e isso permitia transportar
nos barcos pessoas e mercadorias em quantidades doutra forma impen-
sáveis. Nas naus que faziam a «carreira da Índia» no séc. XVI podiam
navegar até meio milhar de pessoas. Graças ao uso da força do vento,
obtinham-se com esse meio de transporte notáveis economias de esforço
na movimentação de pessoas e bens. Comparativamente, a circulação
terrestre era penosa. O relevo, as florestas e a própria constituição do solo
impunham dificuldades de várias espécies à circulação. Se por um lado
era necessário evitar os terrenos arenosos, onde as patas dos animais e
as rodas das carroças se enterravam facilmente, não era por outro lado
menos necessário evitar os solos argilosos, onde os caminhos ficavam
intransitáveis depois da chuva. Em regiões de relevo acidentado a única
forma de proceder ao transporte de mercadorias era sobre o dorso de
animais de carga ou, onde estes escasseavam, às costas de carregadores.
Para esses tempos que antecedem a revolução dos transportes oito-
centista não se pode portanto dizer que os transportes terrestres fossem
muito mais importantes na modelação dos mapas mentais e na percepção
das distâncias do que os transportes marítimos e fluviais. As mobilidades
sobre terra firme confinavam-se às deslocações de curto alcance impostas
pelas necessidades da vida quotidiana. Sempre que estavam em causa
maiores distâncias, o barco era a solução. Por isso sucedia que em Portu-
gal, em inícios do séc. XIX, era sobretudo por intermédio da navegação

74
3. Circulação, vida de relação e urbanidade

de cabotagem que se fazia a circulação de pessoas e de mercadorias ao


longo do litoral2. Para se ir de Lisboa ao Porto, ou mesmo de Lisboa a
Setúbal, ou de Faro a Lagos, preferia-se o barco. Era essa a forma mais
cómoda e rápida de viajar. Embarcações de menor calado faziam depois
as ligações para o interior do país, através dos rios mais profundos e
com melhor navegabilidade, como o Tejo, o Douro ou o Guadiana. Nada
sugere portanto que, para essas épocas anteriores à invenção do caminho-
-de-ferro e das estradas de macadame (e mais ainda do automóvel), as
ilhas fossem vistas como locais menos acessíveis ou mais isolados que
outros pontos no interior dos continentes. E de resto com razão: não é
certo que um pequeno povoado localizado numa fajã dos Açores ou
das Canárias, mesmo tendo apenas o oceano por horizonte, se encontre
mais isolado ou mais «à parte do mundo» do que uma qualquer aldeia
«enterrada» algures num vale dos Balcãs ou da Anatólia.
Tudo isto se deve ter alterado bastante na primeira metade do séc.
XIX. Dizia-se num estudo clássico de Geografia dos Transportes que a
passagem da diligência para o comboio permitiu que já não só famílias
mas aldeias inteiras pudessem ser transportadas de uma mesma vez
(Capot-Rey, 1946, 98). Pretendia-se com isso mostrar os impactes que a
locomotiva a vapor e o caminho-de-ferro haviam tido nas mobilidades
da população. Podemos supor que não terão sido menores os efeitos
dessas inovações na experiência humana do espaço e das distâncias.
Um óleo datado de 1844 no qual Turner, em lugar das suas famosas
paisagens marítimas de navios e tempestades, retrata uma locomotiva da
Great Western Railway em movimento sugere essa mudança3. A imagem
é a de um mundo desfocado pela vertigem da velocidade moderna do
comboio, como que a ameaçar evolar-se numa nuvem de vapor e fuligem.
Sintetizava-se nisso o sentimento do homem oitocentista inebriado pelas
novas hipóteses da circulação terrestre, diante de cujos olhos o mundo se
transfigurava. O próximo e o distante adquiriam novos sentidos. Muito
provavelmente terá sido também a esta mudança de perspectiva e ao

2
Para conhecer melhor as condições de circulação em Portugal antes da «revolução
dos transportes» e o modo como decorreu a modernização dessa rede no séc. XIX, é
útil consultar M. F. Alegria (1990).
3
A tela, de grandes dimensões, intitula-se Rain, Steam and Speed – The Great Western
Railway e está patente na National Gallery, em Londres. A Great Western Railway era
uma das companhias de caminho-de-ferro privadas que operaram na Inglaterra do
séc. XIX; a sua primeira linha ligou Bristol a Londres.

75
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

efeito que ela teve no redesenhar dos mapas mentais que a tal ideia da
ilha como paradigma do lugar isolado foi buscar parte da sua força.
Um elemento em favor da associação que aqui estamos a estabelecer
entre a Modernidade e a ideia da insularidade como metáfora do isola-
mento é o facto de antes do séc. XIX a visão da ilha não ter exactamente
os contornos e as qualidades que a caracterizam hoje em dia. É verdade
que a etimologia denuncia uma relação antiga entre isolamento e ilha. Foi
de insula que se gerou isola. Todavia, estar «isolado», «ilhado» ou «insu-
lado» – tudo termos que a língua portuguesa conhece como sinónimos
– não significa nos nossos dias exactamente o mesmo que no passado.
Isso que hoje designa essencialmente um estado relacional que tem que
ver com uma privação de comunicação, começou por descrever tão-só
uma forma de estar no espaço, ou seja, o simples facto de se existir numa
ilha. O estar-se separado pelo mar, embora definindo um «limiar» entre
o «cá» e o «lá», não significa necessariamente uma «barreira», e por isso
nunca obrigou a que as ilhas fossem percebidas como lugares isolados,
no sentido que isto actualmente toma para nós. Implicou, isso sim, que
a ilha tivesse sido recorrentemente vista ao longo da história como algo
que está do «do outro lado», e que, neste sentido, se assumisse como o
lugar da alteridade par excellence, o «estrangeiro» absoluto, e até a con-
cretização da própria ideia de «além». Por isso houve sempre uma tão
estreita associação das ilhas aos espaços do sagrado e do fantástico. É
muito sintomático que na mitologia helénica três quartos das divindades
do Olimpo tivessem nascimentos atribuídos a ilhas (Peyras, 1995, 28), ou
que o islamismo medieval situasse o Paraíso algures no Índico (talvez no
Ceilão), dando com isso continuidade a toda uma tradição de «edeniza-
ção» dos espaços insulares – ou de «insularização do paraíso», segundo
outra perspectiva (a de Dubost, 1995, 51) – que vinha da Antiguidade
clássica (caso da Ilha dos Bem-Aventurados, por exemplo). Prova não
menos expressiva dessa ligação recorrente da insularidade ao sentido
de «além», que em certa medida se traduz numa ligação estreita da ilha
ao universo do sonho e do desejo, é o facto de também terem sido por
norma ilhas os lugares imaginados pela literatura utópica dos sécs. XVI
e XVII, desde a Utopia de São Tomás More (1516), que inaugurou este
género literário, à Cidade do Sol de Tomás Campanella (1623) ou à Nova
Atlântida de Francis Bacon (1627) – é isto aliás que dá sentido ao que se
já chamou a «insularidade congenital da utopia» (Minerva, 1995, 52).

76
3. Circulação, vida de relação e urbanidade

Focalidade insular e vida urbana

É verdade que todas as ilhas têm inerente um quê de «isolamento»


(ou de algo à primeira vista assimilável a isso) que não pode ser tido
apenas como historicamente produzido. O facto de estarem cercadas
pelo mar e separadas das demais terras tem impactos nas mobilidades e
nas percepções sobre essas mesmas mobilidades, ajudando a criar a seu
respeito ideias (em parte exageradas) de confinamento, de separação e
de afastamento. Essa será de resto a razão por que os espaços insulares
sempre estiveram de algum modo ligados às funções de exílio e degredo
(cf. Royle, 2001, 49 e sgg, onde este tema é desenvolvido). Casos his-
tóricos de ilhas usadas para locais de desterro, forçado ou voluntário,
são numerosos, provindo já da Antiguidade (cf. Peyras, 1995). Tivemos
situações dessas na própria Macaronésia. Cabo Verde, por exemplo,
povoou-se em parte com judeus degredados. A Ilha Terceira serviu
de cárcere a D. Afonso VI no exílio que lhe impôs o irmão D. Pedro, e
de novo voltou a ser destino de proscrição de presos políticos no séc.
XIX, como bem ilustra o episódio dos «deportados da Amazona»4. As
Canárias serviram ainda no séc. XX para exílio, primeiro de Miguel
de Unamuno, durante a ditadura de Primo de Rivera, e em seguida
do próprio Franco, sob ordem do governo republicano. E tudo isto se
explica porque há uma ideia de exterioridade, afastamento, e ao mesmo
tempo de aprisionamento e de limitação de movimentos, que se associa
às ilhas e que faz delas espaços para onde os poderes tendem a «expelir»
os seus indesejáveis, julgando poder mantê-los aí melhor controlados.
Claro que não é exclusiva das ilhas esta vocação para espaços de
exílio. O Brasil-colónia teve para Portugal muito mais essa função do

4
Amazona era o nome da fragata a bordo da qual foram deportadas as vítimas da
Setembrizada (10 de Setembro de 1810). Quase meia centena de abastados negocian-
tes, intelectuais e militares foram presos sob acusação de jacobinismo, de pertença à
franco-maçonaria e de simpatia para com as tropas napoleónicas, e depois deporta-
dos para a Terceira. Nomes de primeira linha da sociedade lisboeta da época, como
Jácome Ratton, Alexandre António Vandelli, Domingos Pellegrini, Bento Dufourcq
e o conde de Alpedrinha, integraram esse grupo. Muitos destes presos políticos
acabaram por se fixar na Terceira e ser integrados na sociedade local, tornando-se
no gérmen do liberalismo terceirense que mais tarde permitiu organizar nesta ilha a
resistência pedrista ao governo de D. Miguel.

77
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

que Cabo Verde ou os Açores5. Daí que se possa ou até talvez se deva
concluir que mais do que uma decorrência «natural» da insularidade, essa
tendência para o uso das ilhas como espaços de exclusão e banimento
seja sobretudo uma consequência da perificidade. E insularidade e peri-
ficidade estão longe de ser sinónimos, como aliás muito bem mostram
exemplos vários na história, espalhados do Mediterrâneo ao Báltico6.
Os conceitos de perificidade e de isolamento, que às vezes, erra-
damente, tendem a ser confundidos, não se referem a qualidades dos
lugares que se possam considerar fixas ou imutáveis no tempo. Não
constituem atributos que devamos considerar «naturais». Tendo que
ver ambos com a posição relativa que os lugares ocupam no espaço,
acabam por ser qualidades circunstanciais, inconstantes, que variam
não só em função do ponto a partir de onde são perspectivados, mas
também das condições técnicas de transporte e de comunicação de que
a cada momento se dispõe.
Uma definição clássica de posição relativa é considerá-la como «uma
qualidade abstracta, que consiste na relação de um ponto ou de uma
área com os pontos e áreas vizinhos, ou na relação das várias partes de
uma dada área com o todo» (White e Renner, 1936, 629). É neste quadro
e apenas nele que faz sentido falar de perificidade. Só se é «periférico»
se houver um outro que se possa considerar «central». Tudo depende

5
Para perceber o papel dos degredados na colonização do Brasil, pode consultar-se G.
Pieroni (2000). O estudo chama a atenção para a importância que os «banidos» tive-
ram na ocupação europeia do Brasil nos sécs. XVI e XVII, mostrando que se tratava
sobretudo de gente associada a delitos de natureza religiosa e moral. A deportação
acabava assim por cumprir simultaneamente objectivos de ordem moral (expiação
das faltas), social (segregar para evitar a «contaminação»), e político-administrativos
(assegurar a ocupação do território, como aliás já na Idade Média se havia feito com
os homiziados nas áreas de fronteira da Península).
6
Creta foi a sede de uma das mais precoces e misteriosas civilizações do Mediterrâneo
antigo, desempenhando o papel de centro de onde irradiaram influências culturais
para todo o espaço marítimo em redor. A Zelândia, uma grande ilha com posição
central no Báltico, onde se situa a cidade de Copenhaga, foi na Idade Média o centro
de comando de um vasto reino circuntalássico que incluía todas as ilhas menores e
as penínsulas circundantes da Jutlândia (Dinamarca) e da Escandinávia (Noruega e
Suécia). A chamada União de Calmar ficou a dever-se bastante a essa posição insu-
lar central da sede de poder, que garantia proximidade às suas várias componentes
territoriais e dava coerência à unidade política. Mesmo depois de autonomizado o
reino da Suécia, a Dinamarca manteve até ao séc. XIX o poderio sobre a Noruega.

78
3. Circulação, vida de relação e urbanidade

portanto de onde consideramos que está essa centralidade e daquilo


que a define7.
A noção de isolamento remete para uma outra questão: o isolamento
descreve uma situação de privação de contactos; refere-se portanto ao
grau de relação que um dado lugar pode manter com outros, sendo estes
quaisquer outros e não apenas lugares de maior centralidade. Esse iso-
lamento depende primeiro da distância a que um dado sítio se encontra
dos demais. A probabilidade de ocorrência de trocas de mercadorias e
de movimentos de pessoas entre diferentes pontos à superfície da Terra
diminui à medida que aumenta o afastamento entre eles. Quanto maior
é o espaço-tempo a percorrer nas deslocações entre dois locais, menor
a possibilidade de interacção. A isto chama a Geografia de fricção da
distância e do seu efeito resulta como lei geral da organização do espaço
geográfico que locais próximos possuem em princípio maiores hipóteses
de interagir do que locais distantes8.
Sem negar a importância do efeito da fricção da distância, há uma
outra variável que também importa para a definição do grau de isola-
mento a que um dado local está sujeito. Essa variável é a acessibilidade.
A acessibilidade tem que ver com a situação específica que cada local
ocupa com respeito às vias de comunicação e transporte, a qual pode ser
só por si razão para que se altere bastante a posição relativa dos locais à
superfície da terra, agravando ou atenuando as condições de isolamento.
Compreende-se que o envolvimento do mar, representando um vazio
humano em redor das ilhas, possa ser um factor causador de algum
isolamento. Essa acção isoladora do mar será aliás tanto maior quanto
maior for a distância de cada ilha a outras ilhas do mesmo arquipélago,
a outros arquipélagos ou aos continentes mais próximos9. Para as ilhas,

7
É claro que a centralidade tem que ver sempre com uma posição dominante num
território que se organiza sob uma lógica focal ou radioconcêntrica. As razões que
levam a que um dado lugar assuma essa posição topológica central não são todavia,
por norma, geográficas. Não é tanto o ponto que o lugar ocupa no espaço que lhe
confere centralidade, mas mais as características que o lugar desenvolveu. A centra-
lidade resulta assim sobretudo da combinação de vantagens que têm que ver com
a massa demográfica, o poderio económico, o comando político e a capacidade de
inovar e de influenciar culturalmente outros locais.
8
Pode encontrar-se uma excelente exposição destes temas em P. Haggett (2001).
9
Têm sido tentados diversos métodos de medição e classificação do grau de isolamento
insular. As propostas vão desde a simples ponderação da superfície dos arquipélagos
pela superfície da respectiva Zona Económica Exclusiva (ZEE) – que no fundo é uma

79
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

porém, não representa somente desvantagens o facto de se situarem no


mar. Vimos já que em matéria de deslocações, o meio aquático oferecia
no passado benefícios comparativamente ao terrestre. A isso acrescia
ainda o facto de o mar definir não uma linha, mas sim toda uma área
de circulação, onde as deslocações eram (são) em princípio possíveis
de realizar em várias direcções. Os espaços insulares acabavam deste
modo por beneficiar de vantagens no campo das acessibilidades que
contrabalançavam os prejuízos causados pela sua distância aos grandes
pólos de concentração de pessoas, actividades económicas e poder.
Nos mares sempre existiram itinerários preferidos, rotas «clássicas»
que levavam, por exemplo, a evitar os mares gelados e as áreas de baixios
onde havia riscos de encalhe, ou então que confluíam e se adensavam
em pontos de passagem obrigatórios, como estreitos e canais maríti-
mos. Nos tempos da navegação à vela, esses itinerários definiam-se
também pela circulação dos ventos, que desenhavam no mar trajectos
privilegiados e obrigavam a caminhos diferentes para as viagens de ida
e de torna. É verdade que com o advento da propulsão mecânica este
tipo de condicionantes deixou de ser determinante para o desenho dos
trajectos, que então passaram a ser definidos quase só pela lógica do
caminho mais curto. O resultado disto foi que se desintegraram muitos
dos velhos feixes que anteriormente cruzavam os mares, mas nunca
levou a que de todo tivessem deixado de existir neles percursos mais
frequentados que outros.
Entre esses trajectos que historicamente eram mais privilegiados
estão os que passavam por ilhas. Reside nisto outra razão mais para que
se recuse a ideia da ilha como vítima de um isolamento marítimo. As
ilhas representavam para a circulação nos oceanos o que os oásis signi-

maneira de relacionar a dimensão insular e o afastamento a outras terras emersas,


já que é em função dessa distância que se delimitam as ZEE – a indicadores já mais
complexos, como o seguido no Programa das Nações Unidas para o Ambiente
(PNUA), onde se somam as raízes quadradas das distâncias à ilha mais próxima, ao
arquipélago mais próximo, e ao continente mais próximo. Claro que nenhuma destas
medidas é perfeita ou descreve rigorosamente as condições de isolamento insular. O
número de ligações e a frequência de voos ou de carreiras marítimas regulares com
o «exterior», assim como os custos de transporte médios por unidade de distância
nas acessibilidades internas e externas, talvez pudessem ser outras variáveis a ter
em conta na medição do grau de isolamento das ilhas. – Uma apresentação e análise
crítica de alguns dos vários indicadores que têm sido propostos pode ser consultada
em N. Bernardie-Tahir (2005).

80
3. Circulação, vida de relação e urbanidade

ficavam para a circulação nos desertos: abrigo e pontos de apoio para


eventuais operações de reparação e reabastecimento das naus. Acabavam
assim por funcionar como uma espécie de «estações de serviço» nas
«auto-estradas marítimas». Isto levou a que feixes de fluxos provindos
de origens diversas tendessem a convergir nas ilhas, delas irradiando
depois novamente para diferentes destinos. Não querendo isto dizer
que se tenham tornado propriamente lugares centrais (isto é, lugares
dotados de elevada centralidade), significa todavia algo parecido: que
as ilhas, ou pelo menos muitas ilhas, se converteram em lugares focais,
e assim puderam beneficiar de condições especialmente favoráveis a
uma intensa vida de relação10.
Todos os quatro arquipélagos macaronésios povoados tiveram histori-
camente papéis importantes nessa organização da circulação marítima. De
diferentes modos, e também em diferentes épocas, todos, à sua maneira,
desenvolveram e beneficiaram dessa focalidade. Mesmo uma pequena
ilha como o Corvo, que nos habituámos a imaginar «perdida» no imenso
oceano, distante de tudo, beneficiou dessa circulação marítima, como
muito bem mostrou Carlos Guilherme Riley (1995), e está por isso bas-
tante longe de poder corresponder à imagem da ilha solitária, privada
de contactos, alheada do que se passa no mundo. O Corvo, que à sua
extrema «perificidade em termos de geografia política e administrativa»
associava uma «centralidade da sua posição relativamente às rotas náuticas
intercontinentais», que advinha de ser uma das primeiras ilhas avistadas
ao voltar da América (ibid., 68), acabaria por desenvolver uma forma
peculiar de participação nas redes da navegação atlântica, por via da
pirataria, do contrabando e da «recolecção» dos despojos de naufrágios,
ou seja, uma participação mais «marginal» portanto, mas que nem por
isso deixou de ser uma expressão de vida de relação11.

10
A definição clássica de focalidade na teoria da Geografia refere-se à vantagem locativa
que se produz nos lugares «onde duas ou mais rotas de comércio e viagem convergem
ou se cruzam» (White e Renner, 1936, 636).
11
A tese de C. G. Riley (1995) é a de que a ilha do Corvo, pela sua «excentricidade» face
aos centros de poderes estabelecidos na Península Ibérica e mesmo no arquipélago,
e ao mesmo tempo pela sua posição de limite entre uma área de navegação mais
frequentada e apoiada por ilhas a oriente (aquilo que aparece por vezes designado por
«Mediterrâneo atlântico»), e uma outra mais «desabrigada» a ocidente, foi uma área
privilegiada para actividade «marginais» ligadas ao corso e à pirataria. Da leitura deste
artigo fica a ideia de que, como estratégia de sobrevivência, as populações corvinas
estabeleceram cumplicidades com esses corsários (sobretudo corsários ingleses) que

81
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

Como creio que já ficou demonstrado no capítulo anterior, a história


destas ilhas é, em grande medida, a história de uma vida de abertura
intensa ao «exterior». A feição destes lugares sempre foi muito modelada
por essa permeabilidade e ligação ao mundo. Não será por acaso que
existem tão poucos núcleos populacionais importantes em localizações
interiores na Macaronésia. Ilhas de costas menos acessíveis, dominadas
quase em todo o redor por arribas altas, como sucede em São Nicolau,
em São Jorge, em Gomeira e em Hierro, tiveram como consequência que
nunca nelas chegassem a desenvolver-se verdadeiros núcleos urbanos,
e que o seu povoamento humano tivesse sido sempre por isso mais
limitado. Mesmo em Cabo Verde, onde, como resposta à secura, para
aproveitar a precipitação oculta que se produz em altitude, o povoamento
rural se desenvolveu em cotas mais elevadas, sendo por isso tenden-
cialmente mais interior, é à beira-mar que se encontram as cidades e
vilas importantes. Casos como o de Laguna, em Tenerife, ou Betancuria,
em Forteventura, ou Teguise, em Lançarote, que foram dos primeiros
povoados a fundarem-se nas Canárias, e que no passado chegaram a
exercer funções primaciais nas respectivas ilhas, ocupando posições
afastadas do litoral, constituem excepções. Excepções que se devem a
razões de defesa e que têm que ver com a circunstância particular dessas
ilhas serem as mais acessíveis a partir do norte de África: para evitar
as investidas de corsários provenientes da Berbéria (frequentes até ao
séc. XVIII), procuraram-se a início sítios resguardados para os povoados
de fundação europeia, e é isso que explica a origem de Teguise, Betan-
curia e Laguna. Depressa se compreendeu porém que as vantagens da

estacionavam nas imediações da ilha, esperando pela passagem das naus que vinham
das Antilhas e do Brasil. O autor cita documentos que sugerem essa proximidade e
até o apoio da comunidade insular a esses visitantes. Outra actividade que o autor
refere como importante para a vida da comunidade, e que se terá mantido até ao
séc. XIX, foi o que designa por «actividade económica recolectora» das mercadorias
perdidas nos naufrágios (p. 67), que terão sido numerosos, uma vez que era elevado
o trânsito de embarcações nas proximidade do Corvo. C. G. Riley argumenta que a
recolha dessas mercadorias, quer para consumo próprio, quer para revenda, terá tido
muito provavelmente grande importância para a economia local, dada a sua diminuta
dimensão. O autor chega a aventar a hipótese de nem todos esses naufrágios terem
sido involuntários: de facto, sabe-se que noutras «finisterras» europeias (Cornualha
e Bretanha, nomeadamente) era comum as populações «acenderem fachos na orla
costeira com o fito de iludir a navegação nocturna e assim provocar o naufrágio das
embarcações cuja carga era depois metodicamente saqueada» (Riley, 1995, 68).

82
3. Circulação, vida de relação e urbanidade

litoralidade eram bastantes superiores aos riscos que ela envolvia. Daí
que as três localidades tivessem acabado por perder essa capitalidade
inicial em favor de outras de posição litoral (respectivamente, Arrecife,
Puerto del Rosário e Santa Cruz de Tenerife), passando então todos ou
praticamente todos os núcleos macaronésios com dimensão e qualidade
urbana a corresponder a portos marítimos12.
Em toda as Ilhas Atlântidas, dos Açores a Cabo Verde, não obstante
as diferenças de ambiente, há um certo «ar de família» que se respira nas
cidades e nas vilas de feição urbana, segundo José Manuel Fernandes
(1996). Deve-se isso, ainda mais do que ao desenho arquitectónico e às
soluções de construção (que também pesam), aos aspectos que se pren-
dem com a estrutura e a morfologia dos núcleos edificados e com a sua
própria situação geográfica. Uma constante nos aglomerados urbanos
e proto-urbanos de toda a Macaronésia é a preferência pelas enseadas
na escolha dos sítios para a sua fundação (Fernandes, 1996); sobretudo
calhetas abrigadas, circundadas por colinas, onde desembocam pequenos
ribeiros. Nesta preferência e na opção pelas vertentes das ilhas voltadas
a sul (preferência que se atenua nas Canárias e em Cabo Verde, onde o
agravamento das condições de secura faz preferir uma exposição mais
aberta aos alísios), julgou-se já poder ver-se a marca de uma tradição
urbanística lusa ou ibérica, que teria tentado replicar no Atlântico um
modo de fazer cidade aperfeiçoado primeiro na Península (ibid.). Con-
tudo, há outras razões que justificam a opção por fundar povoados
nesses sítios. A referida posição litorânea dos principais povoados das
Atlântidas foi ditada pela vontade de encontrar condições favoráveis para
a actividade portuária e para a vida de relação que ela propicia. Locais
na costa com condições de abrigo (e ademais com fontes de água doce,
para aguada) não são comuns nas Ilhas Atlântidas. O que predomina
são, como vimos antes13, as costas altas e rochosas, pouco acessíveis.

12
Assomada, no interior da ilha de Santiago, é uma das raras excepções. A cidade, cuja
população ultrapassará um pouco os 10.000 habitantes, funciona como um centro
rural, onde os agricultores das montanhas de Santiago vêm trocar os seus produtos
e abastecerem-se dos bens e serviços de que necessitam. O mercado central, com
uma belíssima estrutura em betão do período colonial (anos 30 do séc. XX), é um dos
melhores abastecidos e mais concorridos da ilha. No centro da cidade encontram-se
ainda alguns outros interessantes edifícios modernistas, nomeadamente um pequeno
cinema.
13
Vd. Cap. 1.

83
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

Não admira pois que esses locais raros tenham sido aproveitados quase
todos para núcleos de povoamento.
A extraversão histórica das economias macaronésias a que me referi
no capítulo anterior comprova que estas ilhas sempre dependeram muito
daquilo que chamaria uma «economia da circulação». Para as ilhas, os
portos sempre foram «portas»: portas de saída, através das quais se esco-
avam para o mercado externo as produções locais, quer fosse a urzela
ou o pastel, o açúcar ou o vinho, a banana ou a laranja; mas também
– o que não é menos importante – portas de entrada para mercadorias
e para influências culturais muito diversas.
Contrariamente ao que dizem os mitos que se repetem sobre as ilhas e
as suas populações, não é nada seguro que as sociedades insulanas vivam
ensimesmadas ou que estejam por natureza prisioneiras de um espírito de
desconfiança em relação ao que é novo ou ao que vem de «fora»14. Não
menos errado é julgar que há nas ilhas um conservadorismo imanente.
Todos estes são estereótipos que uma análise mais cuidada e exigente da
realidade aconselharia a recusar. Leite de Vasconcelos, quando chegou
ao Corvo para investigar os arcaísmos da linguagem e das tradições da
ilha, em 1924, foi interpelado logo num dos seus primeiros contacto por
uma mulher local que lhe perguntou a cotação do dólar, e esse cosmo-
politismo, que provavelmente esperaria encontrar em todo o lado menos
ali, desconcertou-o15. É claro que as coisas se passam de forma muito
diversa consoante estamos a falar de uma ilha menor ou maior, mais
ou menos afastada de outras ilhas ou terras emersas. Em todo o caso,
por razões de escala, por motivos que se prendem com a escassez dos
recursos e com a pequenez dos mercados locais (poucos capitais, pouca
mão-de-obra, poucos consumidores), as ilhas são em regra incapazes de
assegurar uma oferta local de bens e serviços em quantidade e quali-
dade suficientes para suprir as suas necessidades internas. A não ser no
campo da utopia, onde a idealização da ilha como paraíso que se basta a
si mesmo é um tema recorrente, não há espaços insulares que consigam
sobreviver nesse estádio de autarcia meio-idílico. As sociedades insulanas
sabem que necessitam do que vem de «fora» para sobreviverem, e isso,
em vez de ensimesmamento, pode conformar precisamente o contrário,

14
Estes e outros mitos foram analisados por A. Meisterheim (2006).
15
C. G. Riley (1995, 64) cita este episódio, que Leite de Vasconcelos deixou inicialmente
registado numa comunicação que fez à Academia das Ciências.

84
3. Circulação, vida de relação e urbanidade

uma espécie de predisposição para o cosmopolitismo – donde talvez a


causa, por exemplo, da morabeza cabo-verdiana16.
Nas ilhas que pela sua posição geográfica e forma da costa puderam
desenvolver uma maior focalidade, essa predisposição é amplamente
potenciada, e podem então gerar-se nelas focos de vida urbana inte-
ressantes. O espaço da Macaronésia conheceu vários exemplos desses.
Entram nessa categoria casos de cidades históricas como o Funchal,
Santa Cruz de La Palma, Ribeira Grande de Santiago (a dita «Cidade
Velha») ou Angra (mais tarde do Heroísmo), todos núcleos urbanos que
despontaram e floresceram quase imediatamente após a colonização
das ilhas, e em estreita relação com o papel de rótulas giratórias que
estas desde cedo desempenharam na relação da Europa com o resto do
mundo. Cada qual a seu modo, todas foram estabelecimentos huma-
nos que tiveram o seu esplendor e onde se instalou o gérmen de um
universalismo próprio de lugares beneficiados por uma intensa vida
de relação. Santa Cruz de La Palma, hoje uma cidade cuja população
andará em torno dos 15.000 habitantes, chegou a ser dos maiores portos
do império espanhol no tempo de glória dos Habsburgos, que rivalizava
com Sevilha no trato das mercadorias que vinham da América do Sul
e Central, e onde convergiam por isso mercadores um pouco de toda a
Europa. Sobre o Funchal dizia Orlando Ribeiro (1985, 126) que já no séc.
XVI havia nele «uma burguesia comerciante de carácter cosmopolita,
porquanto flamengos, espanhóis, italianos, ingleses, ali faziam grandes
negócios», para informar depois, mais circunstanciadamente, que «No
fim do séc. XVII, em 27 firmas exportadoras de vinho, 20 pertenciam
a estrangeiros», ou que nela começou a funcionar logo em 1658 um
consulado britânico. A Ribeira Grande, apesar de ter tido uma sorte
bem mais efémera e de ser hoje difícil lobrigar nas suas ruínas sinais
do brilho que a cidade chegou a ter no passado, foi também no séc.
XVI um importante entreposto comercial, com «grande movimento de
navios e de gentes e a arrecadação de verbas e mercadorias» (Amaral,

16
A morabeza é apresentada na retórica do nacionalismo cabo-verdiano como uma
qualidade própria da «cabo-verdianidade», sintetizando ao mesmo tempo um estado
de espírito e um estilo de vida. A morabeza refere-se a uma suposta cordialidade e
hospitalidade «natural» do povo cabo-verdiano, que teria que ver, à luz da ideologia
do nacionalismo crioulo cabo-verdiano, com uma capacidade especial de abertura ao
mundo e de tolerância à diferença e à diversidade que adviria da condição duplamente
mestiça e insular de Cabo Verde. – Cf., a este respeito, J. C. G. dos Anjos (2003).

85
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

1964, 175). Reforçava bastante a relevância deste porto o facto de aos


estrangeiros estar interditado o direito de comerciarem directamente
nas feitorias da Guiné e da Mina, o que os fazia convergir em Santiago,
e isso contribuiu para que a cidade da Ribeira Grande acabasse por
desenvolver esse toque cosmopolita.
Outras provas eloquentes da forte abertura que as Ilhas Atlântidas
tiveram desde muito cedo às influências culturais externas, e até mesmo
provas reveladoras de um certo espírito mundano e viajado, estão no facto
de se encontrarem nelas heranças artísticas de origens muito diversas.
No património móvel açoriano do séc. XVI, por exemplo, encontra-se
desde ourivesaria espanhola a tapeçarias flamengas, a mobiliário inglês
e a porcelanas orientais. «Também chegaram da Índia às ilhas açorianas
muitas esculturas de madeira exótica estofada e policromada, umas tra-
zidas por naturais, outras certamente por gente que vinha nas armadas
e que aí pisava terra firme, depois de tantas atribulações» (Dias, 1999,
232), tal como mais tarde, durante a União Ibérica, apareceram materiais
provenientes das zonas de influência castelhana, nomeadamente imagi-
nária sino-filipina e hispano-americana (ibid., 234). Ora, tudo isto é por
si bem elucidativo da vida de relação e do cruzamento de influências
a que estas ilhas estiveram sujeitas desde o início da sua colonização.

Inovações nos modos de comunicação e


reposicionamento estratégico das ilhas

O séc. XIX, primeiro com o estabelecimento da navegação a vapor,


e depois com o lançamento dos cabos submarinos, que iniciaram a era
das telecomunicações, não trouxe efeitos especialmente negativos para
a globalidade das Ilhas Atlântidas; antes parece até ter criado condições
novas de focalidade em algumas ilhas, com repercussões num recru-
descimento urbano. De facto, após a introdução da navegação a vapor,
o Atlântico continuou a ser entre todos o oceano mais frequentado.
Daí que o valor estratégico destas ilhas não tenha decaído. Além disso,
sendo a Grã-Bretanha o «centro» incontestável desta primeira fase do
capitalismo industrial assente no carvão, e logo, por conseguinte, das
suas derivativas imperialistas, não é de admirar que este haja sido tam-
bém um período de apreciável aumento da influência inglesa nas Ilhas
Atlântidas, perceptível desde os Açores a Cabo Verde.

86
3. Circulação, vida de relação e urbanidade

Foi a partir do segundo quartel do séc. XIX que começou a tornar-se


mais comum a utilização dos vapores (steamers) na circulação marítima.
A primeira travessia do Atlântico num barco destes fez-se em 1819, mas
só a partir de 1850, com a invenção da hélice e a sua aplicação em larga
escala nos navios, é que os vapores conseguiram superar a velocidade
dos veleiros e a sua supremacia se tornou finalmente evidente. Grandes
companhias de navegação sedeadas na Inglaterra e nos EUA, e depois
noutros países, como a França, a Alemanha ou a Holanda, iniciaram
então carreiras regulares de vapores através do oceano, tentando pôr
em contacto os principais portos industriais de um e de outro lado do
Atlântico Norte, e depois tanto uns como os outros com os do Atlântico
Sul, onde a indústria emergente ia buscar as matérias-primas.
Para as companhias de navegação inglesas nascidas neste contexto, a
Madeira, as Canárias e Cabo Verde tinham um notório interesse estraté-
gico; um interesse que seria até superior ao que essas mesmas ilhas pos-
suíam para a Península Ibérica, da qual estavam relativamente próximas
(«adjacentes» foi como se chegou a designar as ilhas da Madeira e dos
Açores em Portugal). Da perspectiva dos portos ingleses, sobretudo por
comparação com os portos ibéricos, os arquipélagos atlântidos tinham
a vantagem de ficarem claramente a meia distância no caminho para a
África ou para a América do Sul. Havia portanto fortes benefícios em
aproveitar estas ilhas como pontos de apoio para a navegação transa-
tlântica, e essa foi a razão pela qual no séc. XIX se assistiu em algumas
destas ilhas a uma quasi-colonização inglesa – não uma colonização de
jure, mas de facto – traduzida no estabelecimento de colónias britânicas
ligadas à navegação, ao comércio internacional de matérias-primas e
produtos alimentares, e ao negócio dos combustíveis, nomeadamente
do carvão.
Cidades como Santa Cruz de Tenerife e Las Palmas, que conheceram
um florescimento no séc. XIX, devem muito do aspecto e da sua «perso-
nalidade» actuais a esse elan trazido pela navegação a vapor. A ascensão
de Santa Cruz à categoria de cidade em 1859 constitui um expressivo
sinal desse desenvolvimento trazido pelo reanimar da vida portuária e
pela intensificação do tráfego de longo curso no Atlântico. Possuidora de
um porto de águas profundas, Santa Cruz estava dotada para cumprir
esse papel de porto transatlântico, e foi justamente por influência disso
que ao longo da segunda metade do séc. XIX pôde beneficiar de todo
um conjunto de investimentos que a qualificaram como cidade e lhe

87
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

deram um toque colonial e cosmopolita: estão entre esses melhoramen-


tos a abertura de uma «avenida marítima» – uma «marginal», como se
designa em Portugal – adornada de loureiros e palmeiras, que mudou
a imagem da cidade sublinhando a sua feição marítima e (sub)tropical,
bem como o ajardinamento de diversas praças e avenidas (criando essa
forma muito espanhola de alameda que são os passeos), o estabelecimento
de teatros, de um casino, de clubes vários, etc..
O florescimento oitocentista de Las Palmas associado ao ciclo da
navegação a vapor e ao consequente recrudescimento da vida portuária
foi um pouco mais tardio. O passo decisório foi o estabelecimento da
Gran Canaria Coal Company, já muito próximo do final do século, por
iniciativa de capitalistas ingleses interessados em fazer do Las Palmas
um ponto de apoio para a navegação transatlântica complementar do de
Santa Cruz de Tenerife. Com o estabelecimento do depósito de carvão e
a realização de obras no porto, a cidade desenvolveu-se, crescendo para
norte, em direcção ao arrabalde de Isleta, onde se situavam as infra-
estruturas portuárias. Seria aliás por iniciativa e com capitais britânicos,
e também para responder à procura de residência por parte dessa colónia
de ingleses ligados à vida mercante e portuária, que já mesmo no virar
do século se urbanizaria toda a frente de praia compreendida entre o
centro histórico de Las Palmas e a Isleta; aí surgiria um elegante bairro
de moradias unifamiliares a que se deu a então moderna designação
de Ciudad-Jardin17.
O caso mais expressivo de desenvolvimento urbano associado à
revitalização do tráfego marítimo na era do vapor deu-se contudo em
Cabo Verde. Mindelo, que é hoje a principal cidade do grupo de Barla-
vento e a segunda do país (com pretensões até a uma certa capitalidade
cultural), é inteiramente um produto dessas condições novas geradas
pela navegação a vapor no séc. XIX.

17
Cidade-jardim (garden-city) é a designação de uma proposta urbanística de «cidade
alternativa» desenvolvida por Ebenezer Howard nos finais do séc. XIX no Reino
Unido. Integra-se numa longa série de modelos de cidade mais ou menos utópicos
que o urbanismo moderno procura produzir na sequência da Revolução Industrial
como resposta aos novos problemas que a industrialização veio gerar nas cidades. O
modelo da cidade-jardim procurava reconciliar a cidade com a natureza e encontrar
uma nova forma de povoamento que pudessem combinar as vantagens da urbani-
dade e da ruralidade. A proposta de Ebenezer Howard foi concretizada em 1903 em
Letchworth.

88
3. Circulação, vida de relação e urbanidade

A ilha de São Vicente, apesar das potencialidades naturais oferecidas


pela baía do Porto Grande, havia permanecido desabitada até finais do
séc. XVIII. Porque a orografia não permitia que se produzissem preci-
pitações ocultas e a ilha estava sujeita a condições de secura extrema,
fora sempre adiado um povoamento humano efectivo; à semelhança
do que se passava nas outras ilhas do arquipélago menos dotadas para
a agricultura, a sua ocupação resumira-se até essa altura a uma explo-
ração pecuária extensiva. Assim, é já mesmo no fim do séc. XVIII que
se instalam os primeiros colonos. Esse grupo, que não devia exceder
uma centena de pessoas, forma um pequeno povoado em redor de
Porto Grande18. Uma segunda vaga, de dimensão comparável, chega
por volta de 1820. Não seria ainda isto, porém, a fazer com que a
então designada povoação de Leopoldina deixasse de ser o modesto
aglomerado de pescadores e pastores que era. O salto qualitativo que
transformaria esse povoado num importante porto transatlântico viria
a dar-se só após 1838, quando a carvoeira East India decide instalar no
aglomerado entretanto rebaptizado de Mindelo (por razões políticas que
se compreendem) um primeiro depósito de carvão para abastecimento
dos vapores que viajavam em direcção ao Atlântico Sul.
Nos decénios seguintes, o Mindelo continuaria a ver aumentar a sua
relevância como porto transatlântico. Depois da East Índia, várias foram
as companhias carvoeiras que a partir de meados do séc. XIX decidem vir
instalar-se no Porto Grande. Em poucos anos, o Mindelo converter-se-ia
no maior posto de abastecimento de carvão de todo o Atlântico tropical.
Na antes desolada ilha de São Vicente, começa a confluir um tráfego
marítimo intenso que rapidamente torna necessária a abertura de uma
alfândega. A vida portuária gera oportunidades de emprego que atraem
ao Mindelo imigrantes das outras ilhas, fazendo simultaneamente com
que o aglomerado prospere e ganhe uma interessante escala e qualidade
urbana, passando a distinguir-se rapidamente no arquipélago pelos seus
espaços públicos iluminados, calcetados e arborizados, e por uma oferta
razoável de bens e serviços distribuídos por diversas lojas de retalho
e armazéns grossistas, tabernas e botequins, hotéis, e até biblioteca e
escolas públicas (cf. Almeida, 2003, 250 e sgg.).
Os arquipélagos da Madeira e dos Açores não parecem ter beneficiado
tão grandemente da novidade da navegação a vapor. Explica Álvaro

18
São dados apresentados em G. Almeida (2003, 244), embora sem referência à fonte.

89
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

Monjardino (1994) que as dificuldades por que passou a economia por-


tuguesa na primeira metade do séc. XIX, associado à proximidade das
Canárias, concorreram para que a Madeira ficasse um pouco na sombra
do sucesso daquele arquipélago vizinho. Já a respeito dos Açores, tal-
vez não seja sequer exagero considerar, como fez o mesmo autor, que,
mais do que não terem sido beneficiados, terão mesmo sido, a início,
«duramente atingidos pela inovação que a máquina a vapor trouxe aos
transportes marítimos. A sua importância como escala técnica, funda-
mentalmente imposta pelo regime dos ventos e correntes no Atlântico
Norte, caiu verticalmente» (ibid.). Não obstante, também nos casos da
Madeira e dos Açores houve oportunidades criadas por inovações entre-
tanto ocorridas no sector dos transportes e das telecomunicações que
as ilhas souberam aproveitar. A Madeira, concretamente, beneficiou da
telegrafia por fio. A amarração das primeiras linhas submarinas fez-se
em Portugal em 1870, pondo em contacto o país com a Grã-Bretanha e
com Gibraltar. Três anos depois iniciou-se a imersão do cabo que faria
a ligação ao Brasil, com um primeiro ponto de amarração na Madeira
(Funchal) e um segundo em São Vicente (Mindelo).
No caso dos Açores, essas oportunidades foram geradas também pelo
cabo submarino, e depois, numa segunda fase, pela navegação aérea. O
Faial foi no conjunto do arquipélago a ilha que mais beneficiou disto,
pelo menos na fase inicial. O primeiro cabo submarino foi amarrado
no porto da Horta em 1893. Nos anos que se sucederam, outros se lhes
juntaram, convertendo o Faial num importante nó da rede de teleco-
municações internacional. Por alturas da I Guerra Mundial chegou a
ser viva a competição entre ingleses e alemães pelo controlo dos cabos
de telegrafia amarrados no porto da Horta. As consequências de tudo
isto para a ilha são conhecidas e têm sido sublinhadas: «A fixação de
numeroso contingente de técnicos estrangeiros na cidade da Horta,
sobretudo ingleses e alemães, e a dinâmica de serviços associada às
companhias, proporcionou durante largos anos emprego qualificado»
(Madruga da Costa, 2006, em linha), e foi de resto uma das principais
razões pela qual a Horta se tornou numa das mais cosmopolitas, senão
mesmo na mais cosmopolita cidade açoriana.
Também no capítulo do transporte aéreo, como já insinuei, os Açores
jogaram um papel importante. Nos primeiros tempos da história da avia-
ção, devido à limitada autonomia das aeronaves, o arquipélago foi um
ponto de apoio fundamental para as viagens no Atlântico Norte. Papel

90
3. Circulação, vida de relação e urbanidade

especialmente relevante foi exercido mais uma vez pela Horta. A baía
serviu de porto de amaragem logo na primeira travessia do Atlântico
que se fez em hidroavião (em 1919) e, a partir dos anos 30, quando a Pan
American iniciou as suas carreiras comerciais para a Europa, tornou-se
numa escala obrigatória para os clippers que passam a unir numa base
regular as duas margens do Atlântico Norte, numa viagem que então
levava de Londes a Nova Iorque quase 48 horas. Com a obsolescência
dos hidroaviões após a II Guerra Mundial sucederiam ao Faial nessa
função de escalas do Atlântico Norte duas outras ilhas: Santa Maria e
Terceira; duas ilhas que de resto haviam desenvolvido a sua vocação
aeroportuária no quadro da Guerra19. A utilização dos Açores pelas forças
dos Aliados faz-se no âmbito de um entendimento bastante sui generis
de «neutralidade», como explica António José Tello (2007). Assim, as
primeiras facilidades são concedidas aos ingleses, que a partir de 1943
passam a poder usar um aeródromo nas Lajes (Ilha Terceira) para patru-
lharem os mares em busca de submarinos alemães. No ano seguinte,
como contrapartida da ajuda norte-americana à libertação de Timor Leste,
ocupada pelos japoneses, concede-se o direito de construção de uma
outra base aérea em Santa Maria. A base viria a ficar operacional já só
após o término da Guerra, em 1945. Nunca chegou a ter portanto uma
utilização militar que se possa considerar efectiva. Em contrapartida, logo
em 1946, os norte-americanos negoceiam com as autoridades portuguesas
a abertura do aeroporto de Santa Maria à aviação comercial, contra a
possibilidade de uma permanência de mais longo termo nas Lajes. Isto
acabaria por definir a sorte da ilha nas décadas que se seguiram: para
além de se ter tornado num «ponto de escala obrigatória em voos no
Atlântico Norte, Santa Maria foi também transformada num importante
centro de telecomunicações internacionais», como conta José Medeiros
Ferreira (2007, 86), devendo-se essa especialização aos «equipamentos
deixados pelos norte-americanos e cuja potência rádio permitia atingir
os continentes europeu e americano»20.

19
A história dos Açores durante a II Guerra Mundial (e das Atlântidas em geral) é
apaixonante e está ainda insuficientemente divulgada. Para que se tenha uma ideia
da importância que os Açores tiveram na Batalha do Atlântico, em cujo quadro as
ilhas da Macaronésia chegaram a ser objecto de intenção de ocupação por parte das
várias potências beligerantes, vale a pena consultar A. J. Tello (2007).
20
Foi nos anos 50 que o aeroporto de Santa Maria conheceu o seu apogeu, numa altura
em que «Companhias como a Pan-American, T.W.A., B.O.A.C., K.L.M., Air France,

91
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

Na Ilha Terceira, onde também não tardou a abrir à aviação comercial


um aeroporto anexo à base aérea norte-americana, essa função militar
manteve-se até aos nossos dias. Ela atesta o elevado valor estratégico
que os Açores revestem para os EUA, quer como base de apoio ao
domínio sobre o Atlântico Norte, onde o arquipélago tem uma posição
central, quer como «ponte» para as suas operações militares no Médio
Oriente, em cujo contexto a Terceira funciona como uma escala. Mas
a base das Lajes não importa para a história dos Açores só por isso:
embora funcionando fortemente numa lógica de enclave devido à sua
natureza militar, não deixou de ir «transpirando» ao longo do tempo
certas influências para o espaço em redor, pelo que, neste sentido, é
um elemento crucial a ter em conta quando se pretende compreender
a própria realidade social da Terceira. A base das Lajes, por intermédio
das sucessivas gerações de trabalhadores açorianos que foi empregando
ao longo do seu período de existência (continua a ser o segundo maior
empregador da ilha depois do Estado), acabou por contribuir bastante
para a familiarização da sociedade local com todo um conjunto de hábi-
tos e bens de consumo próprios do mundo americano e do seu estilo
de vida, pelo que, neste sentido, desempenhou também um papel de
«ponte» na ligação da Terceira com o «exterior».

Acessibilidades externas e relações com o mundo


na viragem para o séc. XXI

Embora seja um erro supor que a insularidade implica forçosamente


um maior isolamento ou menor conectividade dos territórios, é um facto
que o séc. XX trouxe mudanças no sector dos transportes que vieram
colocar os espaços insulares numa situação de desvantagem relativamente
nova face às acessibilidades. Deveu-se isso primeiro ao acumular de um
conjunto de inovações tecnológicas que foram tornando cada vez mais

Ibéria, Swissair, Cubana e Aerovias México, faziam passar por aí os seus voos regula-
res transatlânticos e tinham até escritórios de representação no aeroporto» (Medeiros
Ferreira, 2007, 86 e sg.). Depois dos anos 60, a importância deste aeroporto foi decaindo
por causa de um conjunto de inovações aeronáuticas que fizeram aumentar a auto-
nomia dos aviões, e da abertura de vários aeroportos potencialmente concorrentes
noutras ilhas mais urbanizadas do arquipélago, nomeadamente em Ponta Delgada
(1969) e na Horta (1971).

92
3. Circulação, vida de relação e urbanidade

dispensável a existência de bases físicas de apoio à circulação no oceano.


Barcos e aviões de cada vez maior porte, mais autónomos e também
mais velozes, fizeram com que passasse a ser cada vez menos neces-
sária a existência de portos de escala, reduzindo com isso a focalidade
das ilhas. A par disso, deram-se inovações importantes nos transportes
rodoviários que vieram tornar mais fluidas as deslocações em meio ter-
restre; para além de terem melhorado as condições infraestruturais das
redes, melhorou muito mais ainda o material circulante em resultado
dos progressos que se fizeram na indústria automóvel. Graças a isto
foi possível que as distâncias-tempo em meio terrestre se contraíssem
muitíssimo e que as deslocações nos espaços continentais se tornassem
não só mais fáceis, como também mais baratas. A outra face da moeda
foi que com tudo isto se agravaram as desvantagens de quem não está
conectado a essas mesmas redes de transporte, o que, traduzido nou-
tros termos, pensando especificamente no caso das ilhas, significa que
se criaram condições novas de marginalização ou de agravamento da
sua perificidade.
É claro que extrapolarmos a partir daqui que se tenha criado um
cenário novo de isolamento das ilhas, ou de todas as ilhas, é, mesmo
neste quadro, excessivo. Nem por isto se pode dizer que as ilhas tenham
passado a um novo estádio de maior privação de contactos, ou que se
hajam tornado mais alheadas do que se passa no mundo. Fluxos de
mercadorias, pessoas e de informação asseguram a permanência de rela-
ções de mutualidade das ilhas com os «espaços exteriores». A diferença
é que, especificamente no capítulo das trocas tangíveis ou materiais, e
mais ainda nos fluxos de pessoas, essas permutas se acham hoje nas
ilhas penalizadas não só pela distância aos «centros» produtores e de
comando político e económico, mas também pela dependência dos trans-
portes marítimo e aéreo, com tudo quanto eles representam em termos
de rigidez de horários, de lotação, e de custos de tempo e dinheiro. Essa
dependência do transporte aéreo e marítimo significa para as sociedades
insulanas, e comparativamente ao que se passa nos espaços continentais,
que as mobilidades se encontrem fortemente limitadas, o que pode levar
a uma percepção nova de confinamento para essas populações, se não
mesmo até de aprisionamento: vencer uma mesma distância de duas
centenas de quilómetros num espaço arquipelágico, onde isso pode
eventualmente obrigar a uma travessia marítima ou aérea entre ilhas,
não significa, do ponto de vista dos custos económicos e até da facili-

93
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

dade de deslocação, o mesmo que num contexto regional continental,


onde essa distância pode ser facilmente superada por estrada e com a
autonomia e o conforto permitidos pelo transporte automóvel privado.
Nos nossos dias, isto significa uma desvantagem económica impor-
tante. Há estudos que mostram que as ilhas sofrem actualmente de uma
perificidade superlativa, resultante daquilo que se poderá chamar um
«sobrecusto» de transporte associado à insularidade. Este «sobrecusto»
tem que ver essencialmente com o maior número de rupturas por que
passa o transporte das mercadorias até chegarem aos espaços insulares
(transferências entre os modos rodo ou ferroviário e o modo marítimo,
que implicam sempre custos acrescidos associados às operações de
transbordo e de armazenagem), e depois também ao desequilíbrio dos
fluxos de transporte. A dimensão dos mercados insulares não permite
em regra que se gerem nem economias de escala no transporte, nem
fluxos de mercadorias equilibrados nos dois sentidos, o que, seja por
uma razão, seja por outra, acaba sempre por onerar a importação de
mercadorias. O desequilíbrio nos fluxos de transporte, concretamente,
obriga a que o cliente tenha muitas vezes de pagar uma rotação completa,
e não apenas o frete até à ilha. Por causa disto, levar mercadorias em
contentores a partir do «centro» da UE (Maastricht por referência) até
às ilhas europeias do Mediterrâneo ou da Macaronésia fica em média
cerca de 50% mais caro do que fazê-las chegar à periferia continental
europeia (a comparação foi feita com Lisboa, Madrid, Roma, Atenas,
Helsínquia, Estocolmo e Dublim), e, no caso particular de mercadorias
perecíveis, que precisam de transporte rápido, a diferença pode chegar
a quatro vezes mais, dado que nesses casos se tem obrigatoriamente de
usar o avião (Hache, dir., 1999, 52).
Os chamados custos de distribuição, que não representam propria-
mente custos de transporte, mas que se associam a eles, são uma outra
componente a considerar nos custos actuais da insularidade, ou seja,
quando se pensa nas desvantagens acrescidas que a condição insular
traz às economias21. Devido ao facto das ilhas funcionarem como mer-
cados de destino final, os distribuidores tendem a canalizar para elas
bens em variedade e quantidade limitadas, apenas dentro de limiares
para os quais têm garantias de um escoamento assegurado dos pro-
dutos e a bom preço, e o resultado disso é que a oferta acaba por ficar

21
Estou a usar os conceitos a partir de J. Baggioni (dir., 2002, 33).

94
3. Circulação, vida de relação e urbanidade

nestes territórios artificialmente limitada. Por outro lado, por causa da


dependência excessiva das ilhas dos modos de transporte marítimo e
aéreo e de um grupo reduzido de transportadores, há também nestes
territórios riscos acrescidos de rupturas de stock por interrupção dos
fluxos de mercadorias (maior vulnerabilidade a condições atmosféricas
adversas, greves, etc.), o que acaba por pesar negativamente na vida das
famílias e das empresas.
Os referidos «sobrecustos» de transporte e distribuição a que estão
sujeitas as ilhas pesam negativamente no custo de vida e na competi-
tividade destas economias. É um facto que os maiores obstáculos ao
desenvolvimento das regiões insulares não residem nisto, mas em des-
vantagens que têm que ver essencialmente com a falta de «escala» ou
de «massa crítica». Aquilo que os economistas mais tendem a sublinhar
quando diagnosticam os estrangulamentos das economias insulares é a
reduzida dimensão dos mercados «domésticos» e a sua fragmentação, a
falta de mão-de-obra, sobretudo qualificada (um facto agravado pela fuga
dos jovens para universidades no «exterior»), e a escassez de recursos,
desde o solo arável à água, à energia e ao capital. De qualquer modo, é
óbvio que todos os custos acima referidos, ao serem internalizados no
preço final dos produtos, acabam também por prejudicar as economias
insulares, tornando-as menos competitivas.
Um facto aparentemente paradoxal a respeito de como os espaços
insulares se relacionam hoje com as redes de fluxos globais é que, não
obstante a perda de focalidade devida à evolução dos transportes marí-
timos e aéreos e o agravamento da perificidade resultante da sua não
conexão às redes de transporte terrestres, as ilhas continuam a estar
profundamente ligadas ao «exterior» por dependências de várias ordens,
e dependências que parecem até ter-se acentuado. Um facto inquestio-
nável é que os fluxos que as articulam com os «espaços exteriores», de
além-mar, são hoje mais intensos e volumosos que nunca.
A intensificação dos fluxos de mercadorias entre as Ilhas Atlântidas
e o «exterior» tem sido devida sobretudo ao aumento das importações.
Historicamente, as mercadorias carregadas nos portos da Macaronésia
sempre foram muito superiores em volume e valor às descarregadas. É
essa aliás a regra em regiões insulares com sistemas produtivos fortemente
extravertidos, a funcionarem numa lógica de resposta à procura externa
de bens superiores, especialmente nas «metrópoles» (mainland). Muitos,
senão a maior parte dos barcos que chegavam aos portos açorianos no

95
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

séc. XIX para carregarem laranjas vinham em lastro. Sucedia o mesmo


com os que demandavam o Funchal por causa do precioso madeira.
Nos portos de Santa Cruz e de Las Palmas era o ciclo vegetativo da
bananeira que impunha os ritmos do movimento de mercadorias ainda
nos anos 20 e 30 do séc. XX.
Actualmente tudo se passa de forma muito diferente. O movimento
portuário das Ilhas Atlântidas é definido já não pelo escoamento das
produções locais em direcção ao mercado «exterior» (quer nacional
quer internacional), mas sobretudo pela importação de bens desse
mesmo mercado. O desequilíbrio entre a carga descarregada e a carga
carregada nos portos insulares, em qualquer dos quatro arquipélagos
macaronésios com povoamento permanente, é patente, com benefício do
primeiro termo dessa relação. Para que se tenha uma ideia, nos portos
das ilhas portuguesas, em 2006, foram carregadas 779.982 toneladas de
mercadoria e descarregadas 3.477.839 toneladas, o que corresponde a
uma relação de 4,5 toneladas de carga descarregada por cada tonelada
de carga carregada22. Em Cabo Verde, para o mesmo ano, se conside-
rássemos apenas o movimento de longo curso (isto é, sem considerar
o tráfego entre ilhas), a desproporção seria ainda maior: a um total de
35.839 toneladas de mercadoria carregada correspondeu um volume
mais de dez vezes superior de carga entrada, concretamente 392.537
toneladas de mercadoria descarregada23.
É evidente que este acentuar do volume (e do valor) dos bens chega-
dos aos portos macaronésios se deve à integração cada vez mais plena
dessas economias numa sociedade de consumo global. A intensificação
dos fluxos de mercadorias de e para «fora» das ilhas é a expressão
da inclusão dessas economias no «sistema-mundo», e o acentuar das
importações de mercadorias sobre as exportações pode ser visto como
um corolário da reestruturação económica destes territórios, mormente
com a transferência do emprego das actividades produtoras tradicionais
para o sector dos serviços; isto, claro, se não o quisermos tomar como
um sinal do progresso e da sofisticação dos consumos das populações
insulanas. É com efeito bastante elucidativo que nos quatro arquipélagos

22
Os números que uso são do Instituto Nacional de Estatística de Portugal (INE). Salvo
indicação contrária, é essa a fonte que uso sempre que me refiro às ilhas portuguesas.
23
Os números referentes a Cabo Verde são os disponibilizados pelo Instituto Nacional
de Estatística deste país (INE-CV).

96
3. Circulação, vida de relação e urbanidade

em causa, o volume global de mercadorias movimentadas tenha vindo


ao longo dos últimos anos sempre a crescer (embora com flutuações);
e não menos sintomático é o facto de aparentemente existir uma certa
correspondência entre o movimento portuário dos vários arquipélagos,
a dimensão e pujança das suas economias, e as condições de vida das
populações: tomando mais uma vez como referência o ano de 2006, e
considerando o movimento global de mercadorias (o que inclui trans-
bordos), obtinha-se para as Canárias um valor médio de 27,4 toneladas
de mercadorias movimentadas por habitante, para os Açores um valor
de 10,7 toneladas, de 6,8 na Madeira (é preciso não esquecer que são
aqui quase desprezíveis os transbordos, uma vez que praticamente
todo o «peso» do arquipélago se concentra na sua ilha principal), mas
de apenas 1,4 toneladas por habitante no arquipélago de Cabo Verde24.
Comparando o movimento dos vários portos das Ilhas Atlântidas, a
supremacia das Canárias é patente. Las Palmas (porto da Luz) e Santa
Cruz de Tenerife são, muito destacadamente, os portos mais importan-
tes de toda a Macaronésia. Podemos ter uma percepção da vitalidade
destes portos e do que ambos pesam no quadro macro-regional das
Atlântidas se retivermos que as mercadorias movimentadas no porto
da Luz ascenderam em 2007 a 22,3 milhões de toneladas, e em Santa
Cruz a 17,9 milhões; em 2001, tinham-se movimentado nos mesmos
portos, respectivamente, 14 e 15,5 milhões de toneladas de mercadorias,
e em 1996, 9,5 milhões de toneladas naquele primeiro porto, e 12,3 no
segundo, o que, em qualquer caso, representou muitíssimo mais do
que o movimento conjunto de todos os restantes portos das Canárias
no mesmo ano, e até mais do que o movimento total de todos os outros
portos da Macaronésia juntos.
Como se depreende, há uma correspondência estreita entre a impor-
tância dos portos e a «massa crítica» das ilhas. O movimento portuário
de Las Palmas e de Santa Cruz de Tenerife não é independente do
facto de se tratarem das duas maiores cidades macaronésias, situadas
nas duas maiores e mais povoadas ilhas. A isso acrescem depois outros
factores. A importância dos portos canarinos tem que ver também com
o papel que eles mesmo jogam no sistema portuário nacional em que
se integram. Os portos da Luz e de Santa Cruz são muito mais do que

24
As fontes são as já referidas, excepto para o arquipélago das Canárias, que corres-
pondem a números fornecidos pelo Instituto Canário de Estadística (ISTAC).

97
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

apenas «portas de entrada» nas Canárias para os produtos importa-


dos. Por Portugal ocupar o essencial da fachada ocidental-atlântica da
Península, Las Palmas e Santa Cruz acabam por ser os portos «naturais»
de Espanha para os fluxos vindos do Atlântico Sul, desempenhando
para esses correntes um papel semelhante ao que Valência, Alicante ou
Málaga têm no Mediterrâneo, ou ao que os portos de Vigo, Corunha e
Bilbau desempenham na articulação com a Europa do Norte. Associado
a este papel, aparece o transbordo de mercadorias e indústrias ligadas
a uma primeira transformação de algumas matérias-primas provindas
da costa ocidental africana e da América «espanhola». É o caso, por
exemplo, do petróleo da Venezuela e da Guiné Equatorial. Nessa função
pesa sobretudo o porto de Santa Cruz de Tenerife, que se especializou
bastante no sector petrolífero e por isso mesmo tem a parte de leão do
seu movimento de mercadorias nos granéis líquidos.
Em todos os quatro arquipélagos povoados da Macaronésia, há uma
hierarquia bastante nítida dos seus portos. Claro que a diferenciação
entre portos mais e menos frequentados não é nova, sempre houve no
passado; o que é novo é o facto do seu funcionamento se fazer hoje de
forma muito mais articulada e arborescente. Em todos os arquipélagos
existe um pequeno número de portos de maior dimensão e movimento
que correspondem a «portas de entrada/saída», por intermédio dos quais
se fazem as ligações dos arquipélagos ao «espaço exterior», e que depois,
à escala regional, funcionam como centros de redistribuição do tráfego de
mercadorias para os portos de menor dimensão nas outras ilhas. No caso
dos Açores, esse papel «central» cabe hoje indiscutivelmente ao porto de
Ponta Delgada. No de Cabo Verde, não é tão evidente a supremacia de
um porto sobre os outros: o de Mindelo (Porto Grande) ganha em termos
do tráfego de navios, mas o da Praia adianta-se-lhe caso consideremos
a tonelagem ou o número de contentores movimentados. Em qualquer
caso, está claramente concentrada nesses dois portos a importação de
mercadorias, sendo a partir deles que depois se opera a redistribuição
pelas outras ilhas do arquipélago; e essa é aliás a razão por que, quando
se considera as mercadorias transitadas pela navegação de cabotagem
nos vários portos cabo-verdianos, estes são os únicos em que o volume
de mercadorias carregadas excede o de mercadorias descarregadas.
Há em algumas ilhas mais do que um porto em funcionamento.
Nesses casos, o desenvolvimento das acessibilidades terrestres nas
ilhas, que melhoraram muito nos últimos anos, permitiu que os portos

98
3. Circulação, vida de relação e urbanidade

passassem a funcionar articuladamente, com papéis complementares,


apresentando cada um deles a sua própria especialização. Na Ilha Ter-
ceira, por exemplo, o principal porto de mercadorias não é Angra, mas
Praia da Vitória. O tráfego de Angra está hoje quase totalmente centrado
nos granéis líquidos, sendo no porto da Praia que se faz o restante
movimento. Na Madeira, o grande porto de contentores é actualmente
o Caniçal, tendo o do Funchal ficado praticamente reservado para o
tráfego de passageiros e de granéis.
Este tipo de funcionamento hierarquizado dos portos tem como con-
sequência que se gerem dentro dos arquipélagos, entre as suas diversas
ilhas, fortes desigualdades em matéria de acesso aos bens de consumo,
facto que se reflecte nos custos da insularidade. Se é certo que pensando
na globalidade da Macaronésia, ou mesmo em cada um dos arquipélagos
per se, não fará sentido falar de isolamento, já é diferente se pensarmos
no que se passa à escala das ilhas. O grau de conectividade de uma
pequena ilha como as Flores dos Açores, ou a Gomeira das Canárias,
ou a Brava de Cabo Verde, é muito diferente do de uma Grã-Canária,
de uma Santiago ou de uma São Miguel. As ligações com o resto do
mundo são nesses casos quase sempre indirectas, isto é, intermediadas
pelos portos maiores dos arquipélagos, onde primeiro convergem as
mercadorias, e a partir de onde se faz depois a sua redistribuição. Os
produtos chegam por isso a essas ilhas menores e «periféricas» com custos
de transporte ainda mais elevados do que às ilhas maiores e «centrais»,
uma vez que sofreram mais transbordos. Pode além disso suceder que
se as condições atmosféricas não estiverem de feição, o abastecimento
fique comprometido, o que não tem praticamente risco de ocorrer nas
ilhas maiores, onde se faz a armazenagem grossista, e onde os stocks
se mantêm por isso sempre em níveis mais ou menos elevados. Para
que se tenha uma ideia de como pode ser grave esta interrupção dos
fluxos nas ilhas menores, vale a pena reter que nas Flores, «no Inverno,
a taxa de anulação de voos pode chegar aos 50% e, por vezes, os navios
chegam a ter dois meses de atraso», conforme recordava André-Louis
Sanguin (2007, 7).
Se em termos de movimento de mercadorias o transporte marítimo
continua a ser nos nossos dias preponderante, a situação é já diferente
no tráfego de passageiros. Aí a tendência nos últimos decénios tem ido
no sentido de uma substituição do transporte marítimo pelo transporte
aéreo. Nas ligações com o «exterior», essa supremacia do avião é patente,

99
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

para não dizer esmagadora. Exceptuando o tráfego de cruzeiro (que não


corresponde estatisticamente a «chegadas», mas a «trânsito»), o número
de pessoas que chega às Ilhas Atlântidas por via marítima é irrelevante,
correspondendo quase totalmente a navegação de recreio. De resto,
mesmo os passageiros de cruzeiro, só nas Canárias e na Madeira têm
peso, correspondendo naquele arquipélago espanhol a valores médios
anuais na ordem dos 900.000 passageiros e na Madeira a cerca de um
quarto disso25.
Nas acessibilidades internas (entre ilhas) as deslocações de barco
estão também já muito limitadas hoje ao tráfego entre ilhas próximas,
sendo o transporte aéreo a dominar em geral. As ligações marítimas só
preponderam sobre as ligações de avião quando estão em causa viagens
curtas, com tempos de navegação até uma hora (como sucede, por exem-
plo, entre as ilhas do Faial, do Pico e de São Jorge, ou, nas Canárias,
entre Forteventura e Lançarote), e mais ainda quando se trata de ilhas
de pequena dimensão, cujo mercado é incapaz de garantir a viabilidade
de carreiras aéreas regulares e a preços comportáveis (caso de Hierro
e da Gomeira, por exemplo). No conjunto das Ilhas Atlântidas, apenas
Cabo Verde continua a ter uma situação diferente. As viagens aéreas
envolvem custos difíceis de comportar pela população cabo-verdiana,
cujo rendimento médio se situa muito abaixo do dos outros arquipélagos,
e por isso não se procedeu ainda a uma transferência do movimento de
passageiros do modo de transporte marítimo para o aéreo, como acon-
teceu já nos outros arquipélagos. Grande parte das viagens entre ilhas
faz-se ainda de barco, mas, como mesmo as acessibilidades marítimas
são frágeis (nem sequer entre duas ilhas próximas e com a importância
das de Fogo e Santiago há ligações marítimas regulares), o cenário geral
acaba por ser o de uma certa imobilidade, com movimentos modestos
de população entre ilhas.

25
Vd. notas anteriores a respeito das fontes dos dados. A desproporção entre os valo-
res das Canárias e da Madeira deve-se essencialmente ao facto de alguns cruzeiros
aportarem em várias ilhas das Canárias e de os mesmos passageiros serem por isso
várias vezes contabilizados nas estatísticas de trânsito. Na verdade, as Canárias e a
Madeira participam essencialmente nas mesmas rotas de cruzeiros, com percursos
centrados nesta área que corresponde ao velho Mar das Éguas (golfo de Cádiz, costa
atlântica de Marrocos, Canárias e Madeira), ou que juntam o Mediterrâneo ocidental
(Baleares, Valência, Gibraltar) a esta área.

100
3. Circulação, vida de relação e urbanidade

Tal como sucede com o tráfego marítimo de mercadorias, a despro-


porção entre o movimento de passageiros nos aeroportos das Canárias
e do resto das Ilhas Atlântidas é brutal. Neste arquipélago, em 2005,
aterraram e descolaram dos seus aeroportos 875 aviões por dia em
média, o que quer dizer um avião a cada dois minutos. Em nenhum dos
outros arquipélagos macaronésios chegou sequer a um oitavo disso o
movimento observado. Desse intenso fluxo de aeronaves, mais de dois
terços concentraram-se nos aeroportos da Grã-Canaria e de Tenerife.
Aliás, só nos três aeroportos destas duas ilhas circularam nesse ano
quase tantos passageiros quantos os que foram registados no total dos
aeroportos portugueses (incluindo Lisboa e Faro), concretamente, 21,6
milhões de passageiros (32,2 milhões na globalidade do arquipélago),
número que só por si atesta bem até onde vai a interacção das Caná-
rias com o «espaço exterior», e de como é desapropriada a ideia de um
hipotético isolamento insular para descrever a realidade destas ilhas,
ou pelo menos das suas ilhas maiores.
Mais de metade dos passageiros registados nos aeroportos canari-
nos equivale a movimento internacional, sendo este em cerca de dois
terços composto por tráfego não regular, isto é, voos fretados por ope-
radores turísticos internacionais (charters). Mesmo entre os passageiros
que chegam ao arquipélago provenientes dos aeroportos espanhóis da
Península, e que por isso são registados na categoria de tráfego interno,
há uma fatia muito apreciável de viajantes estrangeiros que, não tendo
ligações directas entre os seus aeroportos de origem e os aeroportos
das Canárias, passam em trânsito por Madrid ou Barcelona. Tudo isto
é muito elucidativo da importância que o turismo tem na génese desta
larga movimentação de gente a que tenho estado a aludir, e de como
constitui um factor crucial na articulação desta região com o resto do
mundo, e em especial com a Europa média e setentrional, onde se situam
os principais mercados turísticos das Ilhas Canárias.
Claro que contrastando com essa forte ligação ao «exterior» de que
beneficiam as ilhas da Grã-Canária, de Tenerife e até mesmo, se bem
que mais distanciadamente, a própria ilha de Lançarote, as restantes
possuem fluxos aéreos modestos. Sobretudo as ilhas menores, como
Gomeira e Hierro, que detêm apenas 1,5% da população das Canárias.
Contrastes semelhantes entre as ilhas maiores, que possuem aeroportos
internacionais e que desfrutam de condições de acesso ao «exterior»
relativamente favoráveis, e as menores (ou menos povoadas), com as

101
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

quais não só não há ligações directas a partir de «fora», como nem sequer
voos tão frequentes a partir dos hubs regionais, observam-se também nos
outros arquipélagos. É certo que se deram nos últimos decénios grandes
progressos em termos de facilitação dos transportes e das comunicações
que vieram beneficiar as ilhas menores26, mas ainda hoje há ilhas que
não possuem sequer ligações aéreas regulares, como é o caso da Gra-
ciosa e São Jorge, nos Açores, ou de São Nicolau e a Brava, em Cabo
Verde. Daqui se deverá concluir portanto que, não sendo a insularidade
imperiosamente sinónimo de isolamento, há contudo, nas ilhas de menor
dimensão, desvantagens que decorrem justamente da falta de «escala»
destes territórios e que acabam por dificultar a sua acessibilidade ao
«exterior». Na bibliografia, este fenómeno aparece por vezes designado
por «dupla insularidade»27, mas, para sermos rigorosos, talvez fosse mais
conveniente falar antes de uma «hiperperiferização» das ilhas menores
pelas modernas formas de organização dos transportes.

26
Vale a pena reler M. J. Roseira (1988), para uma avaliação das condições em que se
encontrava a ilha de Porto Santo nos inícios dos anos 80.
27
O conceito aparece, por exemplo, em Planistat Europe & Bradley Dunbar Ass.
(2003, 49).

102
4. Êxodos e diásporas

A tentação de sair: necessidade ou oportunidade?

Uma ideia que se generalizou a respeito das ilhas – das ilhas em geral,
e não apenas das Atlântidas – é a de que se tratam de lugares com uma
especial propensão para produzirem emigração. Exemplos como o da
Irlanda, Sicília ou Malta, que ao longo dos dois últimos séculos tiveram
importantes surtos emigratórios, e que com isso viram a sua população
dispersar-se pelo mundo, desde os EUA à África do Sul ou à Austrália,
contribuíram bastante para a formação desta ideia. Uma ideia que de
resto não é totalmente falsa: se olharmos para o que ocorreu noutras
regiões insulares, como as ilhas gregas e turcas do Egeu, as ilhas das cos-
tas da Noruega e da Escócia, ou as das províncias atlânticas do Canadá,
em todas verificamos que a emigração constituiu uma tendência forte
dos últimos cento e cinquenta anos, com efeitos num despovoamento
acentuado das pequenas ilhas e numa concentração da população nas
ilhas maiores e, sobretudo, nos continentes próximos1.
Algo de semelhante se pode dizer a respeito da Macaronésia. Todos
os quatro arquipélagos povoados tiveram histórias demográficas em
que a emigração sempre pesou bastante. Embora qualquer processo de
colonização implique que numa fase inicial, que poderá ser mais ou
menos prolongada, os saldos migratórios sejam positivos, a verdade
é que abundam as notícias que apontam para uma tendência histórica
antiga de recrutamento de emigrantes nas Ilhas Atlântidas (cf. Medeiros,
2005-b, 25 e sgg.; ou Soeiro de Brito, 1997, 38 e sgg.).
Sobre a emigração histórica gerada na Madeira e nos Açores, sabe-se
que ela terá existido logo desde o séc. XVI, o que é dizer praticamente
1
Diversos casos concretos são analisados em S. A. Royle (2001, 87 e sgg.). Mais suma-
riamente, há informação sobre isto também em R. King (1993).

103
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

após o início da ocupação dos arquipélagos. As ilhas da Macaronésia


foram desde bastante cedo, como dizia Alberto Vieira (1990, 43), «pólos
de atracção e de divergência nos movimentos sociais à volta do Atlân-
tico». Nesta função de rótula por elas exercida, com atraimento e logo de
seguida redistribuição de gente em redor, parece ter aliás residido uma
das causas, ou pelo menos um dos principais factores de cimentação
disso a que já se chamou a «civilização atlântica» (Gillis, 2004), ou seja,
esse espaço de sincretismos e de afinidades de cultura que se estruturou
no Atlântico, a partir de permutas entre os mundos africano, europeu e
americano. Foi ao que parece com gente dos Açores e da Madeira que
se encetou a colonização da Baía, Brasil, logo na centúria de quinhentos.
Promoveu tais movimentos a própria Coroa, que proporcionava trans-
porte e oferecia terras às famílias de colonos («casais», na terminologia
da época) que aí quisessem ir estabelecer-se. As correntes migratórias
com direcção ao Brasil mantiveram-se depois e recrudesceram até um
pouco no séc. XVII, não só em resultado da continuação da referida
política de recrutamento de «casais», mas também devido às «levas
de soldados» que a certa altura se começaram a fazer, primeiro para
combater o invasor holandês no Pernambuco, e numa segunda fase
para assegurar o domínio do sul do Brasil, cujo território estava a ser
disputado pela potência espanhola2. No séc. XVIII, com a descoberta de
ouro em Minas Gerais (ocorrida na última década do séc. XVII), Mato
Grosso (por volta de 1718) e Goiás (em 1725), passou a juntar-se ainda
uma nova corrente de gente atraída pela exploração aurífera e pela
perspectiva de enriquecimento fácil e rápido que a ela se associava.
Também das Canárias há notícias de fluxos migratórios destinados
ao continente americano desde cedo. Manuel Hernández González (s.d.,
em linha) refere tal tendência logo a partir do séc. XVI e atribui-a não
apenas ao arquipélago se situar na rota dos alísios, o que quer dizer
no caminho «natural» das naus que se destinavam à América, mas
também ao facto dos colonos canarinos se encontrarem motivados de
um espírito e de disporem de um capital de experiência valioso, uma
vez que a colonização das Canárias constituíra uma espécie de ensaio
2
Segundo se diz em O. R. Medeiros e A. B. Madeira (2004, 17), só dos Açores saíram
«entre 1637 e 1645 […] mais de 2.600 recrutas para o Brasil»; acrescentam os mesmos
autores que esta gente, na sua maioria, não terá regressado mais ao arquipélago,
pois, sendo «homens jovens em idade casadoira», é provável que tenham acabado
por constituir família no Brasil e aí ficado.

104
4. Êxodos e diásporas

para o que estava a ocorrer no «Novo Mundo». Esse fluxo migratório


acentuou-se a partir de finais do séc. XVII e na origem disso terão estado,
como nas migrações de açorianos e madeirenses, motivos políticos, uma
vez que foi o próprio poder a fomentar ou estimular essas partidas.
Para responder às investidas dos ingleses e franceses nas Caraíbas, que
começavam a desafiar a hegemonia de Espanha no hemisfério ocidental,
houve necessidade de reforçar a presença espanhola nas Américas, e
isso implicava que se descobrisse novas formas de valorização desses
territórios e que se conseguisse angariar para eles colonos. O açúcar
na Hispaniola e em Cuba (seguido do café e do tabaco), ou o cacau na
Venezuela, foram algumas das soluções encontradas nesse dito esforço de
valorização económica dos territórios espanhóis ultramarinos, e às Ilhas
Canárias coube um papel crucial no fornecimento da gente necessária
para a expansão dessas culturas. Assim, na Venezuela, foram canarinos
os grandes protagonistas da colonização das planícies interiores da bacia
do Orenoco – a região dos Llanos; em Cuba, é a eles que se atribui a
fundação de uma cidade tão importante como Matanzas; na parte da
Hispaniola que corresponde à actual República Dominicana, foi também
basicamente com gente das Canárias que depois de 1697 se procedeu
à colonização das áreas montanhosas do interior da ilha, formando-se
com isso «um campesinato branco ou mulato claro» que no séc. XIX viria
a ser decisivo para o desenvolvimento de uma consciência nacional e
vontade independentista3; finalmente, no Porto Rico, «das 28 povoações
novas que se fundam entre 1714 e 1797, não menos do que 19 devem a

3
Cf. M. Hernández Gonzalez (s.d., em linha). Depois de várias décadas de disputa
entre franceses e espanhóis, a Hispaniola foi repartida em 1697, ficando a coroa fran-
cesa na posse do terço ocidental da ilha, e a espanhola com o domínio dos restantes
dois terços. Na parte francesa, a colonização apoiou-se essencialmente no trabalho
escravo africano. Em 1791, muito por influência da Revolução Francesa, essas massas
populares negras iniciaram uma sublevação violenta que levou à invasão da parte
oriental da ilha e culminou na proclamação da independência do reino do Haiti, em
1804. Sucede porém que na parte da ilha de fala espanhola, a população, constituída
mais por camponeses brancos e mestiços do que propriamente por escravos negros,
nunca se reviu em pleno na causa dos insurrectos, e por isso nunca aceitou ficar
sob o poder dos haitianos e do seu auto-proclamado monarca negro. Esse pequeno
campesinato dominante no interior da ilha acabou por se aliar às elites instruídas de
Santo Domingo, iniciando uma luta que viria a resultar na emancipação da República
Dominicana em 1844.

105
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

sua origem ao esforço colonizador dos filhos das Canárias» (Hernández


González, s.d., em linha).
No caso de Cabo Verde, se excluirmos o tráfego esclavagista, que
corresponde a uma corrente migratória mais antiga mas de características
muito especiais, é à viragem para o séc. XVIII que parece remontar o
início da emigração (voluntária) das gentes locais. Para se compreender
bem o contexto em que isso decorre, convém recordar que os sécs. XVII
e XVIII representaram para Cabo Verde um longo período de abandono,
que se iniciou com o domínio dos Áustrias, e que veio a culminar depois
com a criação da poderosa Companhia do Grão-Pará e Maranhão, já
sob Pombal, em cuja alçada o arquipélago ficou, e que todas as análises
reconhecem ter tido uma influência desastrosa na evolução económica
de Cabo Verde4. A cumulação dessas sucessivas adversidades condu-
ziu a que as elites locais de nobres reinóis e de «homens de teres» que
se haviam estabelecido inicialmente no arquipélago abandonassem as
ilhas, deixando para trás uma população negra e mestiça entregue ao
difícil esforço de retirar da terra seca o seu sustento. É portanto neste
quadro de patente deterioração das estruturas económicas e sociais, com
consequências num empobrecimento das populações, que «No final do
séc. XVII os baleeiros americanos e outros começam a pesca de cetáceos
nos mares dos Açores e nas ilhas de Cabo Verde» (Carreira, 1977, 74)
para responder à crescente procura industrial do «azeite de baleia» e do
marfim; esses navios cedo passaram a recrutar nas ilhas homens para
as suas tripulações, e foi isso que, de acordo com António Carreira, terá
justificado que também por esta época se abrissem «aos cabo-verdianos
as perspectivas de emigrar para os Estados Unidos» (ibid.).
Se no séc. XVIII, como vimos, já teria havido uma tendência para
a emigração nas Ilhas Atlântidas, o séc. XIX, então, foi o período da

4
A Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e Maranhão foi criada em 1755, com
capitais de comerciantes portugueses que o Marquês de Pombal conseguiu aliciar
para a sua constituição. A companhia estava incumbida da exploração das plantações
do Brasil e, por forma a reunir as melhores condições para o exercício da sua activi-
dade, foi-lhe concedido o monopólio da importação de escravos e do comércio nas
ilhas de Cabo Verde e nas costas da Guiné enquanto vigorou, até 1777. O controlo
monopolista dos portos de Cabo Verde e do comércio que neles se fazia destruiu a
burguesia local. Por outro lado, como era prioridade da Companhia que os escravos
fossem para as plantações brasileiras, a venda de escravos nas ilhas passou a fazer-se
a preços exageradamente elevados, gerando com isso uma carência de mão-de-obra
que afectou a economia local.

106
4. Êxodos e diásporas

confirmação em alta dessa tendência, que depois, com flutuações, com


fases de expansão e de depressão, se prolongou pelo séc. XX. O fim do
esclavagismo, precisamente numa altura em que o «sistema-mundo»
estava em pleno processo de construção, foi um factor chave para que
tal se verificasse. O reforço da emigração macaronésia neste período é
o sinal da plena integração destas ilhas no «espaço global», e um sinal
de que também elas, a seu modo, ou à sua medida – como notaram
Allan Williams e Lucinda Fonseca (1999) – acabaram por ser agentes ou
parte activa do processo de globalização, que precisamente nesta época
teve uma das suas fases de maior impulso. Para a industrialização da
América do Norte, para a exploração agrícola capitalista da América do
Sul e para a colonização de África, que dava então os primeiros passos,
precisava-se de mão-de-obra, e muita. Era necessária gente para traba-
lhar nas plantações de açúcar e de café do Brasil, para cuja produção
havia um mercado de escala cada vez mais global; de gente que fosse
explorar as minas da Colômbia e do Chile e arrotear as pradarias do
Uruguai e da Argentina; de mão-de-obra para a construção das linhas
de caminho-de-ferro do Congo e de Angola, cruciais para uma efectiva
ocupação colonial do interior do continente africano e para a drenagem
dos seus recursos; ou então em outras grandes obras de modernização
dos transportes, fundamentais para a integração da economia mundial,
como foi o caso do Canal do Panamá, em cuja abertura (concluída em
1911) trabalharam muitos canarinos.
Das Canárias saíram ao longo do séc. XIX dezenas de milhares de
pessoas com destino quer aos territórios que permaneceram como coló-
nias espanholas, quer às jovens repúblicas da América Latina entretanto
emancipadas. Só em Cuba, onde foi necessário substituir a mão-de-obra
escrava nas plantações e fábricas de tabaco e de açúcar, calcula-se que
houvesse entre 50.000 a 60.000 imigrantes canarinos na segunda metade
do séc. XIX (Hernández González, s.d., em linha). A Venezuela, que depois
da independência (1821) e de reencontrado o equilíbrio político interno
voltou a atrair gente de fora (a Venezuela viveu uma longa guerra civil
entre 1858 e 1870), receberia os maiores fluxos daquelas ilhas no último
quartel do século, numa altura em que o arquipélago das Canárias vivia
o fim do ciclo da cochonilha e se encontrava a braços com uma grave
crise económica, e na Venezuela, pelo contrário, havia boas promessas
de prosperidade ligadas à actividade cafezeira: «a transcendência desse
contingente foi tal que entre 1874 e 1888 dos 20.827 imigrantes regis-

107
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

trados 14.403 eram insulares» (ibid.). Outro destino relevante para os


emigrantes das Canárias foi o Uruguai, onde se estima que entre 1835 e
1845 tenham chegado umas 8.200 pessoas vindas do arquipélago, isto é,
o equivalente a «uns 17% de todos os imigrantes e 65% dos espanhóis»
chegados àquele país da América do Sul (ibid.).
A história repete-se com pequenas alterações nos outros arquipélagos.
Por exemplo, «Calcula-se em 40.000 o número de pessoas que deixaram
a Madeira entre 1835 e 1855», e em 80.000 os que abandonaram a ilha
entre 1890 e 1940 (Ribeiro, 1985, 115). Por sua vez, só da ilha açoriana
de São Miguel estima-se que «desde 1886, ano em que se iniciaram os
registos regulares, até 1950, deixaram a ilha 95.000 pessoas» (Soeiro de
Brito, 1983, 542).
Para explicar esta aparente vocação dos espaços insulares para a
geração de êxodos migratórios adiantam-se por norma razões que têm
que ver com a escassez de recursos e com a vontade das populações
fugirem de um meio que é tido como sendo «por natureza» rude,
limitador. Mesmo se o problema não é verbalizado exactamente nestes
termos, o que está em causa é quase sempre a ideia (feita) de que as
ilhas, dispondo de recursos escassos, são locais mais sensíveis à pressão
demográfica, e onde a emigração tem por isso quase invariavelmente
de aparecer como válvula de escape5.
Não nego que haja algum fundo de verdade nesta suposição. É mais
do que evidente que num caso como o de Cabo Verde essa explicação de
base «ecológica» tem cabimento. O arquipélago, embora com um clima
matizado pela maritimidade, integra – como já vimos antes6 – a extensa
faixa árida do Sael que atravessa a África até ao Mar Vermelho, pelo que
corre risco elevado de estiagens prolongadas; um clima ingrato, portanto,
que pinta as ilhas com o dramatismo de uma «paisagem que parece feita
de aço retorcendo-se ao sol em desvairados esgares e onde só a largos
espaços se vê uma árvore sumida na sua desgraça», como escreveu
Germano Almeida (2003, 29). Graves episódios de carência alimentar
sucederam por isso desde muito cedo e acabaram sendo recorrentes ao
longo da história destas ilhas. A primeira grande fome documentada

5
Exemplo disso é a apresentação da Madeira por O. Ribeiro (1985, 116), como «um
desses países produtores de homens que, apesar das crises dos países de imigração,
necessita de exportar o excedente da sua população» (sublinhado meu).
6
V. Cap. 1.

108
4. Êxodos e diásporas

dá-se em 1580 e prolonga-se por dois anos – ou seja, numa altura em


que o governo do reino não estava em condições de poder responder
atempadamente à crise alimentar –, estimando-se que dela tenha resul-
tado a perda de cerca de um quinto da população. Noutra grande fome,
a de 1774-75, morreram no arquipélago para cima de 20.000 pessoas em
poucos meses (Almeida, 2003, 28). Crises de mortalidade decorrentes
de estiagens prolongadas e anos de más colheitas verificam-se ainda
em 1823-26, em «que morreram cerca de 30.000 pessoas no conjunto do
arquipélago, com a ilha de Santo Antão a perder 13.000 dos seus habi-
tantes» (ibid., 29), em 1830-33, em 1845, e em 1863-66, que aparentemente
terá tido consequências ainda mais devastadoras, vitimando cerca de
30% da população recenseada (Carreira, 1977, 150).
Ilídio do Amaral (1964, 211) qualificou «de tipo espasmódico» a
evolução da população até 1960 na ilha cabo-verdiana de Santiago, que
estudou em pormenor. Pretendia com isto descrever a «alternância de
movimentos de expansão demográfica e de quedas brutais» da popula-
ção (ibid.), a mais das vezes em resultado de fomes geradas pela lestada,
mas também, mais raramente, em anos excepcionalmente chuvosos, por
episódios epidémicos de paludismo e gripe (os mais frequentes), ou
de cólera e outras doenças intestinais infecciosas. Vários anos de más
colheitas entre 1900 e 1906, um surto de paludismo em 1916, a gripe
pneumónica em 1918, e depois novamente maus anos agrícolas e fomes
em 1920-21 e em 1946-48, tiveram como efeito que ainda no séc. XX se
assistisse a picos de mortalidade nas ilhas de Cabo Verde, com efeitos
nefastos na demografia. Não são porém somente os movimentos naturais
de população que explicam que a essas várias fomes e epidemias, que
ciclicamente foram atingindo Cabo Verde, se hajam associado quedas
pronunciadas de população: delas resultaram também fugas de gente
na forma de surtos emigratórios destinados quer à metrópole, quer a
outras colónias ultramarinas, quer ainda ao estrangeiro, e isso pesou
igualmente na evolução demográfica do arquipélago.
A fome de 1863 foi analisada por António Carreira (1977, 150 e sgg.),
e da descrição que dela fez podem tirar-se conclusões sobre o papel que
as catástrofes terão tido ao longo da história no eclodir de surtos de emi-
gração nestas ilhas. À semelhança de outras fomes que assolaram Cabo
Verde, também esta resultou do esgotamento das reservas alimentares
depois de alguns anos sucessivos de más colheitas. A fome acabou por
se instalar e atingiu em poucos meses proporções calamitosas. «Os ser-

109
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

viços públicos e a rede de comércio ficaram desmantelados. Os famintos,


desorientados, deambulavam pelos caminhos e pelos povoados, por
vezes sem a noção sequer do tempo», enquanto «Os cadáveres ficavam
nos vales e nas achadas a apodrecer ou eram devorados pelos corvos e
pelos cães» (Carreira, 1977, 152). Para escapar à inanição, a população
tentava desesperadamente uma possibilidade de fuga nos navios que
aportavam no arquipélago. Homens velhos e novos e mesmo rapazes
muito jovens, quando não crianças, ofereciam-se nos portos como embar-
cadiços. Houve para além disso fortes movimentações entre as ilhas,
com a população a migrar sobretudo para Santiago e São Vicente, que
tinham os principais portos, e onde havia por isso também hipóteses mais
favoráveis de beneficiarem de ajuda alimentar a partir do «exterior». A
pressão para fugir terá sido de tal ordem que se promulgaram leis para
restringir as saídas de cabo-verdianos para o estrangeiro, assim como os
movimentos de famintos entre as ilhas, que eram vistos como um risco
para a ordem pública. A resposta que as autoridades encontraram foi
estimular a emigração «orientada» com destino a São Tomé. Nessa outra
colónia portuguesa estava em franca expansão o cultivo do cacau, para
o qual havia um mercado em crescimento, e, num quadro novo como
aquele que então se vivia, de pós-esclavagismo, a sustentação dessa
economia de plantação colonial implicava inventar outras formas de
engajar braços para responder às necessidades de produção das roças. A
opção por recrutar entre a população cabo-verdiana faminta essa mão-de-
-obra foi a forma que as autoridades encontraram de, simultaneamente,
responderem à procura de trabalho em São Tomé, e fazerem face à crise
vivida nas ilhas de Cabo Verde. Ecos dessa e doutras migrações muito
fomentadas pelas autoridades em direcção a São Tomé encontram-se
ainda hoje nas letras de algumas belas mornas cabo-verdianas.
Excepção talvez para o caso de Cabo Verde, onde as condições de
vida sempre foram especialmente adversas, e também para as ilhas
mais orientais das Canárias, que padeceram de igual forma, até muito
tarde, de fomes crónicas em resultado da sua aridez7, não é líquido que
a conhecida propensão histórica das gentes insulanas para emigrarem

7
A população das ilhas de Forteventura e Lançarote foi sendo «dizimada secularmente
por fomes», como se lê em J. F. Martín Ruiz (1981, 13). Uma dessas últimas grandes
crises de mortalidade associadas à fome ocorreu em 1847, e também afectou a ilha
da Madeira.

110
4. Êxodos e diásporas

resulte de uma necessidade mais premente de procurar alternativas de


sobrevivência num quadro de maior escassez de recursos, ou sequer que
estes espaços hajam estado no passado sobre uma pressão demográfica
excessiva (cf., e. g., Amorim, 1995). A essa suposta ideia de uma cares-
tia «natural» das ilhas pode com efeito antepor-se que as populações
insulanas têm a seu favor a possibilidade de viverem da complemen-
taridade dos modos de vida agro-pastoris e piscatórios, e que isso terá
sido no passado uma vantagem por comparação com o que se passava
na maioria das regiões rurais não insulares8. Carlos Alberto Medeiros
(1967, 168 e sgg.) dava justamente conta disso no estudo que dedicou
à pequena ilha açoriana do Corvo, ao notar que nos anos 60 (séc. XX)
continuava a ser comum as famílias corvinas complementarem a explo-
ração da terra com uma pesca artesanal em barco próprio, circulando
por isso o peixe entre as famílias a título gracioso ou a um preço muito
baixo. Mas os dados históricos que se conhecem são contraditórios e não
permitem concluir inequivocamente nem uma coisa nem outra; se por
um lado há sinais que sugerem que a vida nas ilhas seria especialmente
difícil, por outro encontram-se evidências que espantam pelas razões
contrárias. Pensando especificamente no caso da Macaronésia, o que
se poderá talvez dizer é que no séc. XIX a situação variava bastante de
ilha para ilha, inclusive no seio do mesmo arquipélago; se nalgumas
era possível que houvesse situações de pobreza mais aguda e/ou mais
generalizada, noutras vivia-se num quadro que estava longe de ser de
penúria, como aliás atesta o facto de se encontrarem nalgumas destas
ilhas (no Pico, nomeadamente) indicadores de mortalidade infantil e
de esperança de vida à nascença excepcionalmente favoráveis para a
época (cf. Amorim, 2004).
Claro que a necessidade, seja no seu sentido mais duro e dramático,
que é quando envolve fome e miséria, seja na forma mais amenizada
de um simples desejo ou expectativa de melhoria de vida – isso que no
crioulo se chama o escapá vida – foi um factor fundamental, senão o factor
fundamental, para que se gerasse nas populações insulanas a tentação de
emigrar. Porém, indispensável para se compreender essa mais acentuada
propensão que as gentes das ilhas têm ou parecem ter para emigrar, é
pensar que sempre se lhes pôs também, mais do que à gente de outros

8
O que não significa que não reconheça que todas estas sociedades insulanas, desde
os Açores a Cabo Verde, foram sempre muitíssimo mais agricultoras que pescadoras.

111
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

locais, uma questão de oportunidade. As ilhas, contrariamente ao que


imagina o pensamento dominante, que é um pensamento construído a
partir da perspectiva distorcida da mainland, não estão isoladas – referi
já isso nos capítulos anteriores. Comparativamente às regiões rurais do
interior de Portugal ou de Espanha, é indiscutível que as Ilhas Atlântidas
estavam nos sécs. XVIII e XIX muito mais abertas ao «exterior» (hoje
diríamos ao «global») graças à focalidade que possuíam nas grandes redes
de transporte e comunicação transoceânicas, mas também ao floresci-
mento da indústria baleeira, que fez destas ilhas bastante frequentadas
na época. Para que se tenha uma ideia, só em 1844-45, num ano de grave
crise alimentar e em que muita gente ansiava fugir da ilha, chegaram
ao arquipélago de Cabo Verde «para a pesca da baleia, ou apenas para
se reabastecerem de refrescos e mantimentos (fruta, gado vivo, carne
de tartaruga salgada, etc.), quarenta e dois navios: 40 americanos, 1
inglês e 1 francês» (Carreira, 1977, 67). De tudo isto resultavam portanto
oportunidades de emigração que outros lugares não conheciam, e isso
foi certamente também uma razão para a maior propensão para emigrar
que estas populações sempre parecem ter conhecido.

A formação das diásporas macaronésias: ciclos e destinos

Da comparação da história emigratória dos quatro arquipélagos


habitados da Macaronésia, há traços comuns que ressaltam. O mais
evidente é o paralelismo nos ciclos de expansão e retracção da emigra-
ção em cada um deles, nomeadamente quando se considera o horizonte
temporal largo dos dois últimos séculos. Sugere isto que os factores
externos, estruturais ou «globais», terão sido tão ou mais decisivos para
as variações nos fluxos migratórios destas populações do que os factores
internos ou locais. Anos de más colheitas, de pestes ou de catástrofes
naturais (temporais severos, vulcões, tremores de terra) foram sempre
factores desencadeantes de surtos migratórios, mas a emigração é um
fenómeno que envolve interacção entre lugares e que por isso depende
quer do que se passa nos locais de origem, quer de destino.
Tentando periodizar os vários ciclos de emigração porque passaram
as Ilhas Atlântidas, o primeiro grande período de êxodo que se identifica
corresponde ao arco temporal que vai desde meados do séc. XIX até ao
primeiro quartel do séc. XX. Embora marcado por uma forte variabilidade

112
4. Êxodos e diásporas

interanual dos contingentes de emigrantes, ou seja, seguindo uma curva


de evolução em dentes de serra, foi um êxodo que veio em crescendo
até atingir o seu apogeu por volta de 1920, e de que resultou a formação
de importantes colónias de diáspora, sobretudo nas Américas9.
Já acima sugeri a existência de uma ligação forte deste primeiro ciclo
de emigração às transformações do séc. XIX que se ligaram ao colonia-
lismo, ao avanço da industrialização e da urbanização, designadamente
no «Novo Mundo», e à formação de um mercado internacional cada vez
mais alargado para produtos tropicais como o café, o cacau, o tabaco ou
a borracha. Essa emigração corresponde portanto a algo que tem que
ver com a própria construção da economia-mundo, e que mais uma
vez mostra a imbricação, e até o papel activo das Ilhas Atlântidas nos
grandes processos de âmbito global. É bem evidente por exemplo que
a emigração para a América, que de início aparece muito dependente
da actividade baleeira, só se sustenta e prospera porque neste período
se dá a industrialização da costa leste dos EUA (Nova Inglaterra, Nova
Jérsia, etc.), e porque com isso se geram nesses territórios de destino
novas possibilidades de integração no mercado de emprego para os
imigrantes das Atlântidas. Não menos claro é que se há também por
esta época fluxos importantes que se desenham em direcção ao Brasil,
à Argentina, à Venezuela ou a Cuba, tudo isso é devido – como já disse
– às oportunidades geradas nessas regiões pelo desenvolvimento de
um sector primário capitalista, com forte vocação exportadora (produ-
ção de café, açúcar e tabaco; criação de gado; extracção de borracha,
ouro, cobre e ferro; etc.), muito exigente em mão-de-obra, e que além
disso teve ainda o efeito de gerar o seu próprio crescimento urbano,
concretizado no aparecimento de metrópoles como São Paulo, Rio,
Buenos Aires, Montevideu, Caracas ou Havana, com tudo quanto isso

9
A noção de diáspora já não é hoje usada apenas para descrever a condição dos povos
«expulsos» ou que se viram privados da sua terra natal, como sucedia a início, quando
se falava da diáspora judaica e arménia. O termo é hoje empregado num sentido
mais lato, para designar as comunidades que emigraram, mas que continuam a ter
laços de lealdade e sentimentos de pertença com o seu território ancestral (isto é,
que continuam a entendê-lo como «pátria»), e que se sentem ligadas às populações
que aí permaneceram, mantendo em relação a elas uma ideia de co-etnicidade que
se traduz no uso de uma língua comum e na perseverança de um certo número de
rituais e costumes – cf. R. Cohen (1997).

113
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

significou em termos de mais oportunidades de emprego nos sectores


secundário e terciário.
Nem toda a emigração deste período se fez de forma espontânea.
Disse já que de Cabo Verde para São Tomé (mas também para a Guiné
e para Angola) houve em certas alturas migrações «orientadas» que as
autoridades patrocinaram, ou que talvez tenham até forçado. Também nas
outras ilhas, se bem que de forma menos impositiva, existiram situações
análogas de recrutamento das populações locais para a colonização de
territórios terceiros. No modo das potências coloniais europeias verem e
entenderem o mundo, as ilhas macaronésias apareciam como uma espécie
de «alforges» de gente disponível que se amontoava à espera nos cais,
e aonde era portanto fácil ir buscar os recursos humanos necessários
ao povoamento das colónias em «desbravamento». Falamos, portanto,
de algo que não está desligado da tal retórica das ilhas como lugares
«sobrepovoados». Mas seja esta ideia ou não uma fantasia inventada
pelo pensamento colonialista, certo é que uma parte da emigração das
Ilhas Atlântidas se deveu ao facto de elas terem sido usadas activamente
pelo imperialismo europeu na construção dos seus projectos coloniais.
Assim, foi na Madeira que se recrutaram os colonos que na década de
1880 viajaram para o sul de Angola, para as províncias de Moçâmedes
(hoje Namibe) e Huíla, de modo a substituir a passageira colonização
boer e iniciar uma ocupação portuguesa definitiva daquelas terras
(Medeiros, 1976). Já antes as autoridades nacionais haviam permitido
às autoridades francesas angariarem em Cabo Verde «colonos» para as
Antilhas (na verdade, não se tratava de colonos, mas sim de assalariados
destinados a substituir o trabalho escravo nas plantações de Guadalupe
e da Martinica), assim como aos ingleses recrutarem trabalhadores na
Madeira para as Índias Ocidentais (São Cristóvão e Nevis, Jamaica, etc.)
e para a Guiana (então designada genericamente pelo nome de um dos
seus rios: Demerara), que com isso se tornaram nos grandes destinos
da emigração madeirense nas décadas de 1840 e 5010. Um outro surto
importante foi o que se destinou às Ilhas Sanduíche (Havai), a cujo
governo as autoridades portuguesas abriram igualmente a possibilidade
de recrutar trabalhadores na Madeira, fazendo com que cerca de 23.000

10
A. Vieira (1990, 47), afirma que a Guiana Britânica e as colónias inglesas das Índias
Ocidentais foram o eldorado para a população da Madeira em meados do séc. XIX,
captando só a Guiana cerca de 70% da emigração madeirense nessa época.

114
4. Êxodos e diásporas

madeirenses emigrassem para aquele distante arquipélago do Pacífico


entre 1878 e 1913 (Vieira, 1990, 48).
Pode hoje parecer estranho que tenha havido das ilhas de Cabo
Verde e da Madeira movimentos emigratórios de magnitude para esses
destinos remotos e sem uma aparente relação com os arquipélagos de
origem. Tudo se percebe melhor porém se tivermos em conta que por
esta altura sobrevieram na Madeira uma série de acontecimentos que
mergulharam a ilha numa crise económica séria, a começar pela grande
fome de 1846-47, consequente da propagação de um fungo que fez
perder quase toda a produção local de batata (semilha), e a culminar
na crise da produção vitivinícola com as pragas do oídio (1852) e da
filoxera (1872 a 1883). A destruição das vinhas fez reanimar a cultura
de açúcar, e a produção de vinho deu durante algum tempo lugar a
um desenvolvimento da indústria de aguardente. Só entre 1828 e 1856,
passou-se de um cenário de apenas dois engenhos de açúcar na ilha
para um total de 18, todos com destilação, subindo depois esse número
para 29 unidades em 1861 (entre engenhos e destilarias), e 49 em 1900
(Silva e Azevedo de Menezes, 1940-46, vol. I, 754 e sg.). O recrutamento
de «colonos» madeirenses para o Havai tem que ver em parte com esta
reanimação da actividade sacarina na Madeira; veio na sequência do
acordo comercial que aquele reino polinésio estabeleceu em 1875 com
os EUA e que lhe abriu caminho ao abastecimento da Federação em
açúcar; o Havai precisava de mão-de-obra para poder expandir a sua
produção, e de preferência mão-de-obra que estivesse familiarizada com
o trabalho nas plantações de cana e nos engenhos, donde a escolha dos
madeirenses (a par de japoneses, chineses e filipinos)11.
A emigração madeirense para a Guiana Britânica, que começou mais
cedo e foi ainda mais numerosa, explica-se no quadro de uma colonização
tardia, que já não pôde ser apoiada no trabalho escravo. As Guianas,
com o seu clima equatorial, quente e húmido, e as suas terras baixas
e alagadiças, nunca despertaram especial interesse aos colonizadores
ibéricos, que as achavam insalubres. Esse vazio de poder permitiu que
holandeses, ingleses e franceses se estabelecessem nesses territórios e que
mantivessem ao longo dos sécs. XVII e XVIII uma presença na região,

11
Os luso-descendentes, quase todos madeirenses, totalizam ainda hoje o equivalente a
4% da população do Havai. Os japoneses são a principal minoria deste que é um dos
mais multiétnicos estados dos EUA, correspondendo a mais de 16% da população.

115
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

embora apenas liminar, junto à costa, e sem nunca terem esclarecido bem
entre si a posse da colónia. Só em 1816 as Guianas foram repartidas por
entre essas três potências com interesse na região, o que abriu caminho a
uma ocupação mais efectiva do espaço, com o arroteamento de trechos
da floresta virgem e de mangais para plantações de cana-de-açúcar e de
arroz. Pouco tempo depois deu-se a abolição da escravatura (na Guiana
Britânica, em 1838), e isso obrigou a que as autoridades administrado-
ras tivessem de procurar fontes de mão-de-obra alternativas. A solução
encontrada foi o recrutamento massivo de trabalhadores em outras
regiões onde os franceses, holandeses e ingleses estavam presentes, ou
onde possuíam interesses, donde a chegada de madeirenses, a par com
gente de várias outras origens, sobretudo chineses e indianos, à Guiana
Britânica nesta época12.
Uma parte deste primeiro ciclo de aspersão de gente que decorreu no
séc. XIX inscreveu-se ainda muito na lógica daquilo que Robin Cohen
(1997, 57 e sgg.) designou de «diásporas imperiais», isto é, movimentos
de população gerados pelo imperialismo. Essas migrações originadas pelo
sistema colonial foram de resto um dos grandes factores de unificação
do espaço do Atlântico, ou de criação daquilo a que John R. Gillis (2004,
86) chama a «Oceânia atlântica» e onde inclui a Macaronésia, as ilhas
do Golfo da Guiné e as Antilhas13. Verdade, porém, é que uma grande

12
As Guianas representam um enclave de população asiática na América do Sul. Na
Guiana, mais de metade da população actual é descendente de indianos. No Suriname
(antiga Guiana Holandesa), para além de indianos, que correspondem a um terço da
população, há muitos descendentes de javaneses. A presença dos madeirenses explicou
que tivessem chegado a ser publicados na Guiana jornais de língua portuguesa em
finais do séc. XIX e princípios do séc. XX.
13
O autor insiste nas analogias deste espaço oceânico com o do Pacífico, denotando que
também aqui se está diante de um vasto espaço multi-arquipelágico com afinidades de
cultura e de paisagem que resultam de uma história de fluxos de circulação intensos
no seu seio. Essa unidade chega a planos que podem parecer inesperados, como o
da língua. Há na verdade grande similitude nos crioulos de Cabo Verde, São Tomé
e das Antilhas Holandesas (o chamado papiamento de Aruba e Curaçao), que hoje se
acha que são todos evoluções de uma mesma língua franca que os povos africanos
pertencentes a diferentes etnias e apanhados pelo trato negreiro teriam desenvolvido
para se entenderem entre si – cf. E. F. Martinus (1996). O recente desenvolvimento
dos meios de comunicação de massa e das indústrias culturais, que ajudaram à
formação do pan-africanismo, é um outro factor que tem contribuído para o reforço
de algumas dessas afinidades atlânticas, ajudando por exemplo a que muitos jovens
cabo-verdianos tenham adoptado um aspecto e um estilo jamaicano, ou a que o zouk

116
4. Êxodos e diásporas

parte, senão a maior parte dos fluxos deste período corresponderam já


a «diásporas laborais», ou seja, na terminologia de Robin Cohen (1997),
migrações justificadas pelas novas necessidades do capitalismo indus-
trial em emergência. A maioria das pessoas que abandonam as Ilhas
Atlântidas durante estes anos fá-lo com efeito voluntariamente, sem
estar enquadrada num projecto político explícito de domínio colonial,
simplesmente em resposta à vontade e à esperança de poder vir a encon-
trar melhores remunerações para a sua força de trabalho nas regiões de
destino. Tanto, aliás, que muitas vezes essa emigração se fez até sem
autorização, ou mesmo contra aquilo que era a vontade das autorida-
des. O êxodo das gentes insulanas atingiu proporções tais neste período
que as administrações se viram na necessidade de controlar e refrear
as saídas, «apertando» a emissão de passaportes e vistos. Mas quanto
mais isso sucedia, mais as populações respondiam com a emigração
«clandestina», passando a evitar os portos e a fugir a salto das falésias
para os barcos – donde a expressão que na gíria portuguesa ainda hoje
designa a emigração ilegal.
O apogeu deste primeiro ciclo de emigração deu-se nos quatro arqui-
pélagos habitados da Macaronésia por volta de 1920, depois de um
primeiro curto período de refreio por alturas da I Guerra Mundial, e de
um quase estancamento da emigração nos anos de 1918-19, marcados
pela pandemia global da gripe espanhola. Depois desse pico, o êxodo
a partir das Ilhas Atlântidas diminui rapidamente, podendo dizer-se
que se encerra aquele primeiro ciclo moderno de emigração massiva
característico do séc. XIX, com os seus destinos preferenciais na América
Central e do Sul (a Guiana para madeirenses, o Brasil para açorianos e
para madeirenses também, Venezuela e Cuba para os canarinos), nos
EUA (a costa leste sobretudo para a gente dos Açores e Cabo Verde, a
Florida para canarinos), e depois, muito mais modestamente, nalguns
territórios africanos, como a Guiné, Angola e a região do Cabo, as duas
primeiras mais atractivas para cabo-verdianos, e as duas últimas para
madeirenses. Nos Açores e em Cabo Verde, onde havia maior depen-
dência dos EUA como destino de emigração, o declínio deu-se logo a
seguir a 1920. Os EUA, que até 1921 haviam concedido sempre quase
total liberdade à imigração, começaram por essa altura uma política mais

se haja tornado quase tão popular nas festas de Santiago, do Fogo, e de São Vicente,
como entre os seus «vizinhos» das Antilhas.

117
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

restritiva, que entre outros critérios passou a preterir gente analfabeta, o


que levantou barreiras à emigração proveniente destas ilhas. Nos outros
arquipélagos, o abrandamento foi mais lento, de modo que se não pode
considerar definitivamente encerrado este primeiro ciclo de emigração
senão já perto do final da década.
Ao período que cobre sensivelmente o segundo quartel do séc. XX
corresponde um certo hiato na história da emigração macaronésia. A
Grande Depressão de 1929-33, a que logo se seguiu a II Guerra Mundial,
é a razão para que tenhamos tido uma significativa quebra nas taxas
de emigração. Os números, que antes andavam sempre em média na
casa dos milhares de emigrantes por ano e arquipélago, desceram por
esta altura para o nível das poucas centenas, tendo havido até nalguns
arquipélagos anos em que quase não existiu emigração (1941 nos Açores,
por exemplo, como constatam Medeiros e Madeira, 2004, 27). O motivo
residiu em que muitos dos destinos tradicionais se fecharam à chegada
de novos imigrantes. Os EUA, que de todos foi o país mais afectado pela
crise de 1929-33, chegando a uma taxa de desemprego de quase 25%,
deixaram praticamente de receber gente. Mas também Cuba e o Brasil
restringiram bastante a entrada de imigrantes depois de 1930, não só por
efeito do choque da Grande Depressão, mas também, mormente no caso
do Brasil, em consequência das mudanças políticas que sobrevieram à
revolução de Getúlio Vargas, e que em muitos domínios se traduziram
por novas leis bastante mais restritivas.
Compreende-se que, sobretudo para as populações madeirense,
açoriana e cabo-verdiana, que possuíam no Brasil e nos EUA os seus
destinos mais importantes, estas mudanças tenham significado um
duro revés. Para além de descer para níveis muito abaixo das décadas
anteriores, a emigração destas ilhas reorientou-se em parte. Angola e
África do Sul ganharam então peso relativo como destinos da emigração
madeirense, bem como a região do Caribe, em especial a Venezuela. Para
os açorianos, as Bermudas e as Antilhas holandesas apareceram como
opções de recurso, muitas vezes sob novas modalidades de emigração,
sazonais ou temporárias (ligadas à pesca e à safra). No caso de Cabo
Verde, embora igualmente num quadro geral de abaixamento dos valores
absolutos, a emigração aumentou em termos relativos para a metrópole
(Portugal) e para África, onde a costa ocidental do Senegal ao golfo da
Guiné ganhou relevância. Quanto à emigração canarina, estes anos de
retracção das saídas ficaram associados a uma certa reorientação dos

118
4. Êxodos e diásporas

fluxos de Cuba para a Venezuela, pois que a primeira, vivendo à época


fortemente dependente do investimento e da exportação para os EUA,
acabou por sofrer muito mais os efeitos do crash.
Um segundo ciclo de emigração importante para as Ilhas Atlântidas
corresponde ao período que vai, grosso modo, desde o fim da II Guerra
Mundial até aos anos 70. São os anos que António Carreira (1977, 105)
classificou como de «grande êxodo» referindo-se ao caso de Cabo Verde,
mas que se podiam descrever de igual maneira falando a respeito dos
outros arquipélagos. Os valores da emigração, que começam paulatina-
mente a aumentar a partir de 1950, irão ao longo deste período sempre
numa tendência de crescendo até atingirem o apogeu na década de 60 no
caso das Canárias, e nos primeiros anos de 70 nos outros arquipélagos.
Raquel Soeiro de Brito (1983, 543) disse que este foi «o período de maior
emigração de todos os tempos na história açoriana», acrescentando que
«apenas em vinte anos (de 1957 a 1977, inclusivé) emigram só em São
Miguel, um pouco mais de 107.000 indivíduos, numa ilha em que o total
da população passa de 164.000 em 1950 para 132.500 em 1981» (ibid.).
Nas Canárias, o número de pessoas que abandonou as ilhas em direc-
ção à Venezuela ascendeu só nos anos 50 a mais de 62.000 indivíduos
(Martín Ruiz, 1981, 23). De Cabo Verde, saíram espontaneamente cerca
de 138.000 pessoas de 1950 até 1973, de acordo com António Carreira
(1977, 249), a que, segundo o mesmo autor, se tem de juntar depois
uma emigração «encapotada», que nos boletins dos portos corresponde
ao transporte de «serviçais» ou «contratados» com destino às colónias
portuguesas de São Tomé e Angola, estimada em quase 39.000 pessoas;
conjuntamente, portanto, estaremos a falar de uma taxa de emigração
média anual de 3,1% na década de 50, de 3,4% na de 60, e de 5,7% no
triénio de 1970 a 73.
Este novo ciclo emigratório do Pós-guerra, que a início aparece ainda
dominado pela navegação, embora já só praticamente navegação em
vapores, e onde depois o avião vai gradualmente ganhado um peso
crescente, conhecerá novos destinos. As correntes migratórias geradas
nos quatro arquipélagos atlânticos divergem e passam a diferenciar-se
entre si um pouco mais que no passado. Os Açores, por um lado, vêem
reforçada a sua integração norte-atlântica; para além dos EUA, o Canadá
irrompe como novo destino preferencial de emigração neste período e
as Bermudas confirmam-se supletivamente como outra meta apetecível
para as gentes açorianas. Já a Madeira reforça a sua vocação sul-atântica,

119
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

especializando-se nos destinos Venezuela e África do Sul, onde o petró-


leo e o ouro e as gemas, respectivamente, constituíram sustentáculos
de crescimentos económicos rápidos e funcionaram como importantes
chamarizes para a imigração. A Venezuela seria aliás também o grande
destino do êxodo canarino, que no entanto, a dada altura, com o boom
do turismo nas ilhas (Grã-Canária e Tenerife sobretudo) e a consequente
familiarização com o mercado britânico, se passou a orientar também
bastante para a Grã-Bretanha. Quanto a Cabo Verde, foi o espaço europeu
que apareceu como novo destino de emigração nestes anos; a metró-
pole (Portugal) não só se tornou destino de um cada vez maior número
de cabo-verdianos, como passou também a funcionar como «porta de
entrada» na Europa e «porto de escala» em estratégias migratórias que
passaram a visar outros países europeus, sobretudo a Holanda (com uma
emigração ligada à actividade portuária) e a Itália (no caso de raparigas
para serviços domésticos), mas também, em menor escala, a França e o
Luxemburgo, aonde os cabo-verdianos chegavam integrados nas cor-
rentes migratórias portuguesas, ou então, em alternativa, via Senegal14.
Cabo Verde foi dos arquipélagos macaronésios o que, considerando
a taxa de emigração total no conjunto da segunda metade do séc. XX,
mais gente terá perdido em termos relativos. É verdade que essas per-
das parecem estar a ser cada vez menores, tendo sido nos anos 80 já
inferiores às que se observaram nos anos 70, e na última década do séc.
XX mais baixas ainda, mas, mesmo assim, só no conjunto dos anos 90,
houve um saldo migratório total de -14.400 pessoas no arquipélago15. O
resultado de toda esta evolução foi a formação de uma vasta diáspora
que, de acordo com os valores oficiais das autoridades cabo-verdianas,
ascenderá a uns 520.000 indivíduos, para uma população residente nas
ilhas de 434.625 habitantes (no recenseamento de 2000). Não obstante,

14
A história da emigração cabo-verdiana para a Holanda e Itália e as estratégias da
integração laboral destes trabalhadores nas regiões de destino foi objecto de um estudo
aprofundado em P. Góis (2006). A emigração feminina para Itália, concretamente, que
não deixa de ser à primeira vista um fenómeno algo intrigante, parece estar relacio-
nada com a acção dos capuchinhos italianos de São Nicolau (daí ser mais incidente
nas ilhas de Barlavento); os frades, empenhados em resolver situações de pobreza
nas ilhas, terão começado a recrutar raparigas e a arranjar famílias italianas que as
recebessem como empregadas domésticas, dando com isso início a uma corrente
migratória especializada.
15
A fonte dos dados que aqui aparecem citados é o Instituto Nacional de Estatística
de Cabo Verde (INE-CV).

120
4. Êxodos e diásporas

apesar de toda esta «sangria» demográfica, Cabo Verde conseguiu ser


o arquipélago onde a população mais cresceu ao longo deste período,
dado que em 1950 se cifrava apenas nuns cerca de 150.000 habitantes.
Deveu-se isso em grande medida à modernização das condições de
armazenagem, conservação e distribuição dos alimentos, que de mea-
dos do séc. XX para cá conseguiu erradicar as históricas fomes de Cabo
Verde, e assim diminuir muitíssimo a mortalidade.
Excepção para o caso cabo-verdiano, que depois de 1975 – como
referi – continuou a ter fortes emigrações, e até emigrações recrudescidas
(como aliás não é incomum acontecer em cenários pós-coloniais), nos
outros arquipélagos macaronésios a emigração, ou pelo menos a emi-
gração tradicional, de longo termo, tem vindo a perder peso nos últimos
tempos. Daí que hoje não seja já totalmente adequado caracterizar as
Ilhas Atlântidas como uma «região de emigração». O arquipélago das
Canárias foi o primeiro a inverter essa tendência de perda e a registar
saldos migratórios positivos, o que se observou nos anos 80. Graças a
isso, foi possível ver aumentar a população residente nesta comunidade
autónoma espanhola em 23,9% de 1981 para 2001 – um valor que se pode
considerar bastante elevado, pois foi quase três vezes superior à variação
média da população em Espanha no mesmo período –, correspondendo
os quinquénios de 1981-86 e 1991-96 aos de maior crescimento16. Na
Madeira e nos Açores essa tendência é mais recente: os anos 90 trouxeram
ainda perda de população às duas regiões insulares em consequência
de saldos migratórios negativos, mas em inícios do séc. XXI a tendência
parece ter-se invertido e os ganhos obtidos pela imigração conseguiram
finalmente superar as perdas da emigração (Brito Henriques, 2007, 165).
É claro que se genericamente, ao nível dos arquipélagos, deixámos de
ter saldos migratórios negativos, tal não significa que isso se verifique tam-
bém ao nível das ilhas. A essa escala, a situação é muito mais contrastada.
Nas Canárias, nem todas as ilhas beneficiaram na mesma proporção dos
ganhos de população observados nos últimos decénios, e algumas não
beneficiaram mesmo de todo. Foram essencialmente as ilhas orientais, mais
próximas da costa africana, tradicionalmente desvalorizadas pela sua aridez
intensa, mas que reúnem boas condições para o turismo, e que ademais,
graças às modernas tecnologias de dessalinização da água de mar, podem
hoje ver mitigada essa histórica desvantagem, aquelas onde, em termos

16
Os números são do Instituto Canário de Estadística (ISTAC).

121
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

relativos, os ganhos de população foram mais acentuados. Forteventura,


por exemplo, viu a sua população residente aumentar 122,4% entre 1981
e 2001 – um valor surpreendente – e Lançarote em 90,8%. Gomeira, pelo
contrário, perdeu no mesmo período 2,5% da sua população.
A transição para saldos migratórios positivos não significa que a
emigração tenha cessado ou deixado de ser um fenómeno pertinente
nas sociedades macaronésias. Há nas Ilhas Atlântidas uma «cultura de
emigração» demasiado enraizada para que se possa imaginar tudo isso a
esfumar-se de repente. Talvez se esteja simplesmente a assistir à passagem
de um modelo mais tradicional de emigração, até há pouco tempo preva-
lecente, feita em moldes relativamente estáveis, com sítios e momentos de
partida e de chegada bem definidos e envolvendo uma mudança de local
de residência de base permanente, para um novo modelo mais complexo
e confuso de migrações temporárias, com sucessivas idas e vindas, e que
por isso já não tem de implicar necessariamente o abandono da residência
habitual. Pelo contrário: é muito provável que essas estadas «fora» por
períodos limitados se articulem hoje em dia com a manutenção de uma
actividade regular nas ilhas de origem, integrando-se em estratégias indi-
viduais e familiares de sobrevivência baseadas na pluri-actividade e no
pluri-rendimento. Este novo migrante do séc. XXI pode perfeitamente ser
alguém que continua a cultivar numa base regular a sua fajã, a explorar
o seu pequeno café, ou a conduzir o táxi na terra onde sempre viveu, e
que no entanto, volta e meia, como imaginava Jorge Gaspar (1993, 207),
em reposta a um telefonema que eventualmente possa surgir, «prepara o
saco, toma o táxi para o Funchal, recebe o bilhete de avião da agência de
viagens» para «Londres, de onde segue para a costa leste, Estados Uni-
dos, daí para a Samoa Ocidental», até por fim embarcar «num daqueles
atuneiros da frota de San Diego» e se converter por algumas semanas
num pescador, seguindo os cardumes até à Nova Zelândia. Ao cabo de
algumas semanas, terminada a faina, regressa a casa e às suas ocupações
habituais, até que de novo o telefone toque e o ciclo se refaça.

Redes transnacionais e relações «global-local»

A emigração sempre constituiu para as Ilhas Atlântidas um factor de


articulação com o «mundo exterior», quer dizer, um motivo e um ins-
trumento para que se dessem permutas, materiais e imateriais, tanto de

122
4. Êxodos e diásporas

«dentro» das ilhas para «fora», como de «fora» para «dentro». Do mesmo
modo que houve aspectos da vida das ilhas que através da emigração
ressoaram para outros locais, modelando as formas de organização des-
sas sociedades e o aspecto das suas paisagens, houve igualmente muita
influência externa que chegou às ilhas pelos emigrantes e que por essa
via acabou por conformar a vida local.
As populações que se estabeleceram na diáspora levaram consigo muito
do seu património imaterial, traduzido na forma de saberes e gostos, de
hábitos e convenções, transpondo para os lugares novos onde se fixaram
uma parte do universo de referências característico da maneira de viver
nas terras de origem. Isso mesmo observou por exemplo Carlos Alberto
Medeiros (1976, 222) no estudo que dedicou aos primórdios da coloniza-
ção das Terras Altas da Huíla, ao afirmar que foi «nítida a influência de
diversos aspectos da vida rural da ilha da Madeira» nos modos como se
processou essa ocupação. Sobretudo nos casos em que o solo foi repartido
por propriedades mais pequenas e os colonos madeirenses tiveram de se
adequar a uma estrutura fundiária mais conforme à da terra de origem,
quase replicaram nesse ambiente as culturas a que estavam habituados
e o seu modus operandi. «A colonização madeirense», dizia Carlos Alberto
Medeiros (1976, 364), «assentou numa agricultura minuciosa […], com
largo emprego da rega e produções muito variadas que permitem falar,
com plena justificação, num regime de policultura», e que desse modo
acabou por recriar em pleno continente africano uma parte do colorido
da ilha de origem. O açúcar e o inhame, este último vindo da América
e primeiro introduzido na Madeira, onde se tornou num tubérculo ali-
mentar muito apreciado, são dois exemplos de produtos introduzidos
nesta região de Angola pelos colonos madeirenses.
Nas Américas encontram-se vários outros exemplos de heranças
deixadas pela diáspora macaronésia, nomeadamente no património
imaterial. A forma peculiar dos cubanos pronunciarem o castelhano
parece ser uma herança canarina, tal como é seguramente canarina a
origem da difusão do culto da Nossa Senhora da Candelária em todo o
Caribe, de Cuba a Venezuela17. As Festas do Divino (Espírito Santo), que
17
O culto da Nossa Senhora da Candelária (ou das Candeias) está fortemente implantado
nas Canárias, onde parece ter surgido no séc. XV, na sequência de um acontecimento
miraculoso ocorrido numa gruta da ilha de Tenerife. Algumas interpretações desta
veneração sugerem que se trata de uma reinterpretação cristã de antigos cultos
guanches.

123
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

os emigrantes açorianos levaram primeiro para o Brasil, e que depois


transportaram para os EUA e Canadá, constituem um outro desses
exemplos, aliás amplamente estudado pela etnografia.
A história das Festas do Divino é interessante e muito esclarecedora
sobre o papel que as ilhas macaronésias jogaram na conformação da
«civilização atlântica». Provêm de uma tradição de culto do Espírito
Santo que parece remontar à Europa da primeira metade do séc. XIII,
onde terá surgido por influência de Joaquim de Flora, um monge ita-
liano, místico, a quem se deve o desenvolvimento de uma doutrina
messiânica centrada na Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, e que
o Vaticano cedo considerou herética18. Apesar da oposição da hierar-
quia da Igreja, o joaquimismo, em larga parte por causa da profecia
igualitária que continha, cativou as camadas populares da sociedade e
acabou por dar origem a modos de celebração do Pentecostes que foram
recuperar velhos rituais pagãos ligados à celebração da prosperidade e
da abundância (o Pentecostes, celebrado cinquenta dias após a Páscoa,
coincide no calendário agrícola do hemisfério norte com as primeiras
colheitas), envolvendo banquetes colectivos e distribuição de comida e
esmolas (o Bodo aos Pobres)19. Onde o controlo da hierarquia da Igreja se
fez sentir mais efectivamente, as celebrações do Pentecostes puderam
ser preservadas dessas manifestações populares. Nas Ilhas Atlântidas, e

18
O pensamento joaquimita baseava-se numa visão apocalíptica e escatológica da
História, e acabou por derivar numa heresia milenarista. Advogava esta doutrina,
desenhada na segunda metade do séc. XII, que tal como a Encarnação do Verbo
significara a transição de um primeiro tempo de governo de Deus Pai (a Primeira
Pessoa da Santíssima Trindade) para um tempo novo de domínio do Deus Filho (a
Segunda Pessoa da Santíssima Trindade), haveria de chegar a era da Terceira Pessoa,
ou «Império do Divino Espírito Santo», e que esse tempo de graça plena estaria pró-
ximo. O Império do Divino Espírito Santo corresponderia ao apogeu da história, um
tempo final de perfeição e alegria, de abundância e sabedoria, que seria marcado pela
difusão generalizada dos dons do espírito, e onde, por consequência, todos seriam
iguais. O pensamento milenarista de Joaquim de Flora, não obstante a reprovação
da hierarquia da Igreja, logrou uma considerável influência na cultura ocidental,
popular e erudita, sendo a ele que se deve em Portugal, por exemplo, a inspiração
do Quinto Império. Sobre o pensamento de Joaquim de Flora e a sua ressonância na
cultura europeia, com destaque para o séc. XX português, deve ler-se J. E. Franco e
J. A. Mourão (2005).
19
O culto à deusa Ceres na Roma Antiga, concretizado na forma de festivais de vários
dias que decorriam na Primavera, é um exemplo dessas festas pagãs de celebração
das colheitas.

124
4. Êxodos e diásporas

muito em especial nos Açores, onde é provável que o maior afastamento


face aos grande centros de poder religioso se haja traduzido num certo
afrouxamento da vigilância, ou então numa maior tolerância em rela-
ção às práticas sociais, essas formas de celebração do Pentecostes, mais
exuberantes e com uma maior incorporação de elementos pagãos, que
na Europa foram reprimidas, puderam estabelecer-se e vingar, vindo a
evoluir no sentido das actuais Festas do Divino.
O culto à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade tornou-se nos
Açores numa festividade de grande aparato, com um ritual complexo e
cheio de simbologia, que marca o calendário anual e regula toda a vida
comunitária. Envolvendo instituições e sítios físicos (as irmandades e os
impérios20), ritos colectivos que se prolongam por várias semanas, como
as procissões e os cortejos, os terços rezados em conjunto nas casas dos
vizinhos, as festas públicas de imposição de coroas e ceptros, e depois
ainda acções sociais, de carácter público e colectivo, como a distribuição
de esmolas e os banquetes partilhados em que todos os membros da
comunidade participam (os bodos e as funções21), percebe-se que as Festas
do Divino desempenharam no passado (e desempenham hoje em dia)
um papel fundamental na sociedade açoriana, funcionando como um
factor crucial de coesão das comunidades locais e de construção das
identidades colectivas.
A emigração açoriana foi o vector da difusão das Festas do Divino
no continente americano. Nos EUA e no Canadá, onde as comunidades
açorianas são mais recentes, estas festividades reproduzem ainda muito

20
Os impérios são pequenos edifícios de alvenaria (originariamente, simples palanques
de madeira) construídas pelas irmandades do Divino Espírito Santo para guardar os
vários adereços envolvidos nas celebrações, assim como os mantimentos necessários
para as festividades. A maioria foi edificada em finais do séc. XIX e nas primeiras
décadas do séc. XX, num estilo neo-romântico relativamente simples e ingénuo,
coincidindo esse ciclo de construção mais intensa com a prosperidade gerada pela
emigração.
21
O bodo decorre no sétimo domingo após a Páscoa (o dia de Pentecostes propriamente
dito) e faz-se por norma defronte ou junto do império, no espaço público. As esmolas,
compostas por uma porção de carne de vaca (normalmente um bezerro abatido para
o efeito), pão de massa sovada (um pão doce, enriquecida com ovo) e por «vinho de
cheiro», são expostas em bancos corridos ou em carros de toldo puxados por bois
e delas se podem servir todas as pessoas que pretendam. Já a função é uma refeição
colectiva para convivas composta de sopa de pão, cozido de carne ou alcatra, massa
sovada e arroz doce.

125
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

fielmente, de forma até quase exacta, o que se passa nos Açores. Os açoria-
nos de Toronto fazem funções como as que se realizam na Terceira e em São
Miguel e usam instrumentalmente isso como oportunidade para congregar
compatriotas e manter ou até reforçar a coesão do grupo. Na Califórnia
(no vale de São Joaquim), onde a comunidade açoriana se especializou no
trabalho agrícola e na pecuária, as Festas do Divino puderam manter o
colorido rural que têm nas ilhas, incluindo os aparatosos desfiles dos carros
do bodo puxados pelos bois, e isso fez com que se tivessem até tornado numa
atracção turística. No Brasil, onde o estabelecimento da população açoriana
começou primeiro e conheceu diversas vagas de emigração, a situação é
mais díspar. As Festas do Divino fazem-se um pouco por todo o país, mas
há regiões em que são heranças de festividades mais antigas, introduzi-
das pelas primeiras vagas de colonos, logo no séc. XVII, e que por isso se
afastam já bastante do paradigma dos festejos nas ilhas, e outras regiões
em que o culto continuou a ser alimentado pelas vagas de imigrantes do
sécs. XIX e XX, e desse modo puderam manter uma maior conformidade
com os festejos que se fazem nos Açores, no Canadá ou nos EUA22.
Por via da emigração têm chegado também às ilhas muitas influên-
cias vindas de «fora», com repercussão aos mais variados níveis, desde
o económico ao cultural e ao político. Um dos exemplos talvez mais
inesperados dessa influência reside na própria formação das modernas
identidades nacionais e/ou regionais, que em todos os arquipélagos
da Macaronésia foram parcialmente produzidas a partir de «fora», por
gente que, sob formas diversas, viveu a experiência da diáspora e nela
pode desenvolver um outro olhar e fazer uma outra interpretação da sua
própria condição. No caso de Cabo Verde, a formação dessa identidade

22
Em São Luis do Maranhão e nas cidades histórias de Goiás e Minas Gerais, que tiveram
influxos importantes de gente açoriana nos sécs. XVII e XVIII ligados à colonização
e ao surto do ouro, mas que depois disso deixaram de ser regiões de imigração,
têm Festas do Divino que hoje se poderiam considerar já mais «tropicalizadas», no
sentido em que foram entretanto muito contaminadas por elementos pagãos afro-
brasileiros e derivaram para formas relativamente originais. Em Goiás, por exemplo,
as Festas do Divino «carnavalizaram-se», incluindo mascaradas. Em São Luís, um dos
elementos fortes dos festejos são as caixeiras, mulheres negras que acompanham as
procissões tocando instrumentos de percussão e que dão à celebração um evidente
toque africano. No Rio de Janeiro, em contrapartida, onde continuou a chegar muita
imigração açoriana até ao séc. XX, as Festas do Divino estão associadas aos bairros e
aos subúrbios onde essa comunidade se fixou mais intensamente e continuam a ser
dominadas por ela – v. sobre esta matéria M. Moraes Filho (1999).

126
4. Êxodos e diásporas

nacional, que começou por ser a invenção da «crioulidade» como base


do ser-se cabo-verdiano, ou seja, a ideia de uma identidade mestiça,
nem europeia nem africana, mas outra, produziu-se sobretudo por via
erudita. A geração dos ditos «claridosos» foi essencial nisto23; foram os
autores congregados em torno desse movimento, todos membros das
elites locais (eles mesmos mestiços na sua maioria) que passaram por
«exílios» de estudo nas universidades de Coimbra e Lisboa e que depois,
regressados às ilhas para ocuparem cargos no ensino e na administração,
souberam manter pontes de diálogo com alguns círculos intelectuais no
«exterior», os grandes ideólogos e obreiros dessa identidade nacional.
Nas Canárias, o equivalente dessa auto-consciencialização que evoluiu
para um sentimento nacionalista mais cedo ainda que em Cabo Verde,
teve uma génese diferente, de base popular, mas nem por isso ficou
menos ligada à experiência diaspórica. A génese desse nacionalismo, que
na essência nasce de uma operação mental que é a «re-imaginação» das
Canárias já não como extensão ou adjacência de Espanha, ou seja, já não
como parte integrante da metrópole europeia, mas sim como mais uma
qualquer outra colónia «ultramarina», remonta aos finais do séc. XIX e
aparece matricialmente ligada a sectores da população que emigraram
para as Américas. Foi entre gente que acompanhou de perto as lutas da
independência em Cuba e em Porto Rico, ou que na Venezuela se deixou
seduzir por um certo ideário republicano «bolivarianista», que primeiro
surgiu essa consciência nacionalista; homens e mulheres, portanto, como
Secundino Delgado, considerado o pai do nacionalismo canarino, que se
politizaram nas fábricas de tabaco de Cuba e da Florida, ou nos meios
fabris e da pequena-burguesia de comerciantes de Caracas, e que aí
desenvolveram um anarco-nacionalismo de forte pendor anti-colonialista.
A importância da emigração na vida das ilhas está bem patente no facto
de o emigrante constituir, em todos os quatro arquipélagos habitados da
Macaronésia, um personagem incontornável das sociedades locais e das
representações sociais, tanto eruditas como populares. O «demerarista»
na Madeira do séc. XIX era, como é ainda de certa forma o «americano»
açoriano dos nossos dias, objecto simultaneamente de admiração e troça

23
São designados por «claridosos» os escritores neo-realistas de Cabo Verde que entre os
anos 30 e 50 estiveram ligados à edição da revista literária Claridade. Incluem-se nesse
grupo nomes como Baltasar Lopes da Silva (poeticamente, Osvaldo Alcântara), Jorge
Barbosa e António Aurélio Gonçalves. Já me referi parcialmente a isto no Cap. 1.

127
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

por parte dos conterrâneos que nunca partiram, que zombam dos seus
modos estrangeirados e algo artificiais, mas ao mesmo tempo invejam
a prosperidade por ele alcançada. A emigração e o emigrante são aliás
temas recorrentes nas literaturas produzidas nestas ilhas. É sobre isso
que fala por exemplo o clássico Chiquinho de Baltasar Lopes da Silva
(1947), «monumento» da dita geração «claridosa», ou o celebrado Gente
Feliz com Lágrimas de João de Melo (1989); e esse mesmo é ainda um
tema que, embora já sem dramatismo, antes colorido pela luminosidade
da ironia, atravessa grande parte da obra do cabo-verdiano Germano
Almeida. No seu recente O Mar na Lajinha (2004), por exemplo, de entre
os amigos banhistas aposentados que diariamente se juntam na praia do
Mindelo, são poucos aqueles por cujas vidas não passaram, directa ou
indirectamente, histórias de migrações. Maribel, a vendedora de pão de
traça e grogue da Lajinha, é um personagem que cresce em São Tomé,
para onde a mãe tinha ido como «contratada»; Pantcha é alguém que
Germano Almeida imagina a trabalhar e a fazer fortuna nos cabarés
de Dacar; depois há Oceano, ex-funcionário público em Angola, a Tia
Lú e o seu noivo nunca regressado da América, o Chico que vai para
a Europa clandestinamente e passa a viver como «guarda-costas» de
uma holandesa, ou Dida, a femme fatale que consegue manter uma vida
ostentosa graças à pensão do seu falecido marido emigrado.
Poder-se-ia talvez pensar que a influência do emigrante e da emi-
gração na vida destas ilhas fosse hoje já menor do foi que no passado,
uma vez que se vive presentemente num cenário de taxas de emigração
muito mais baixas. Não é porém assim. E não é assim por dois motivos:
primeiro, porque em todos estes arquipélagos o retorno dos emigrantes
tem sido nos últimos decénios bastante significativo24; e depois, porque

24
Os arquipélagos da Madeira e dos Açores estão entre as regiões portuguesas que nos
anos 80 e 90 tiveram, em termos relativos, maior impacto do regresso de emigrantes,
com um volume global que equivaleu a alguns milhares de chegadas. Nas Canárias,
o fenómeno tem sido ainda mais expressivo; começou nos anos 80, mas acentuou-se
bastante na segunda metade dos anos 90, após as alterações do Código Civil que
permitiram a cidadãos sul-americanos adquirirem a nacionalidade espanhola mediante
a comprovação dessa nacionalidade por parte dos seus pais ou avós (Leis 29/1995,
de 2 de Novembro, e 36/2002, de 8 de Outubro). Muita gente que assim pôde aceder
ao estatuto de emigrante de segunda ou terceira geração tentou escapar às dificul-
dades económicas vividas nos países sul-americanos, migrando para as Canárias;
só entre 2000 e 2005, segundo notícia no El Dia (2 de Fevereiro de 2005), chegaram
ao arquipélago nestas circunstâncias cerca de 35.000 pessoas, vindas sobretudo da

128
4. Êxodos e diásporas

hoje, contrariamente ao que sucedia no passado, estes mesmos arquipé-


lagos são parte integrante de efectivas «comunidades transnacionais»
diaspóricas, donde que as influências da emigração acabam por fluir
difusa e continuamente através dos vários tipos de relações, pessoais e
institucionais, formais e informais, que mantêm articuladas as diásporas
com os lugares de origem, modelando as identidades. A modernização
dos meios de transporte e comunicação, com a consequente facilitação
das mobilidades e das transacções de informação, associadas à globali-
zação dos sistemas financeiros, tem permitido aos emigrantes manterem
uma presença muito mais regular e constante nas sociedades de origem.
Contrariamente ao que sucedia no passado, em que o contacto era muitas
vezes esparso, e até por vezes se perdia, os familiares de «dentro» e de
«fora» das ilhas estão hoje em contacto quase permanente, visitam-se
nas férias e em datas importantes, e mantêm entre si fluxos financeiros
e trocas de bens. Há por isso muitos comportamentos novos, formas
de sociabilidade, hábitos de consumo, que se aprendem e internalizam
no contacto com os familiares e amigos da diáspora, quando estes vêm,
nas férias que eventualmente se passam nas casas desses parentes emi-
grados, na correspondência, nos contactos telefónicos, nos presentes
que trocam. Uma necessidade que apareça pode ser hoje facilmente
acudida pelos parentes da diáspora: um depósito é feito na Califórnia
e fica disponível para levantamento na Madalena do Pico dois ou três
dias depois; ou então, para responder a uma necessidade, não é difícil
ir ao aeroporto em Lisboa ou em Milão e despachar para a família na
Praia um pequeno contentor com peças de roupa ou electrodomésticos.
A existência destes fluxos transnacionais associados à emigração,
através dos quais circulam informações, mercadorias e dinheiro, explica
que muitos aspectos dos estilos de vida prosseguidos nas Ilhas Atlântidas
surpreendam pelo cosmopolitismo e pela urbanidade. Há manifestamente
entre as classes médias, e sobretudo na cultura juvenil, um acesso a bens
de consumo que não está muitas vezes em consonância com as ofertas
do mercado local, e isso explica-se em grande medida pelos bens que
circulam nessas redes familiares transnacionais. De resto, quem visita
as ilhas percebe em muitos sinais que o nível de vida das populações se

Argentina e da Venezuela (v. notícia no URL: <http://www.eldia.es/2005-02-21/


canarias/ canarias2.htm>). O governo da Comunidade Autónoma das Canárias criou
um subsídio de ajuda à integração desta população.

129
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

situará um pouco acima daquilo que seria expectável, tendo em conta


a riqueza que é criada localmente, e isso tem mais uma vez muito que
ver com a emigração. As remessas dos emigrantes, embora já tendo tido
no passado mais importância do que actualmente nos dois arquipélagos
portugueses e nas Canárias, continuam a ser relevantes para a susten-
tação de alguns sectores de actividade nessas ilhas, como a construção
civil, e para o bem-estar dos mais idosos, por via das ajudas aos fami-
liares. Já em Cabo Verde, as remessas não só têm vindo a aumentar em
termos absolutos, como detêm inclusive uma elevada importância: o
arquipélago estava em 2005 entre os cinco países do mundo com maior
contributo das remessas dos emigrantes para a formação do PIB (13,4%)
(Tolentino et alli, 2008, 32), destinando-se essas verbas maioritariamente
para investimentos na habitação, em transportes (automóvel privado), e
para apoio ao consumo, através da participação nas despesas de saúde,
alimentação e educação de familiares. Um efeito directo destas transfe-
rências encontra-se na paisagem, traduzida no habitat. Nas achadas da
periferia da Praia crescem hoje novas urbanizações de moradias uni-
familiares modernas, de padrão europeu, que estão relacionadas com
aplicações de poupanças da diáspora, e que contrastam gritantemente
com os bairros que cresceram desordenados para responder às procuras
menos solventes do êxodo rural25. O recente boom do automóvel privado,
também este muito ligado às remessas dos emigrantes, explica por outro
lado que hajam surgido finalmente no virar deste século as primeiras
estradas asfaltadas na ilha de Santiago. Muito importante, porém, se
queremos avaliar com justiça os efeitos das remessas dos emigrantes
no desenvolvimento cabo-verdiano, é ter em conta que muitas destas
despesas não são apenas consumo, mas sim verdadeiros investimentos
no capital humano, o que mostra a importância da emigração na vida
local dos locais de origem: «Nem sempre o que parece é mesmo só
consumo, por exemplo, os recursos utilizados na educação dos filhos
e parentes, a saúde da família, a construção e o equipamento de uma
casa» é algo que vai muito para além disso (Tolentino et alli, 2008, 102).

25
Pamarejo, a leste da Praia, é um exemplo dessas extensões modernas em que há forte
aplicação das poupanças da diáspora.

130
5. As ilhas redescobertas:
turistas e novos imigrantes

Ilhas, fantasias elísias e escapismo

«Nem todos os grupos humanos têm noções sobre a vida do além


ou concebem um lugar – um Eliseu – para onde vão os espíritos favo-
recidos», lembrava Yi-Fu Tuan (1980, 130), mas muitos grupos humanos
pensam desse modo e, de uma forma ou de outra, todas «As pessoas
sonham com lugares ideais». As ilhas contam-se entre os ambientes que
mais frequentemente aparecem ligados a essas geografias idealizadas
por sonhos de felicidade plena. Yi-Fu Tuan dizia a esse respeito que «A
cosmologia budista,» por exemplo, «reconhece quatro ilhas de “terra
excelente”, situadas no “mar exterior”», e que na mitologia hindu há
referências a uma ilha «formada de pó de pedras preciosas, na qual
crescem árvores que expelem doces aromas» (ibid., 135). No Ocidente,
funcionam como homólogos históricos desses eliseus insulanos a ilha
de Calipso, de que a Odisseia fala, ou ainda os Jardins das Hespérides,
de que há referências em Hesíodo e Eurípedes.
Que as ilhas são lugares par excellence de concretização da ideia de
«além» e de projecção de fantasias elísias, já antes o dissemos1. Essas
imagens cristalizaram-se ao longo da história na mentalidade ocidental,
acabando por enformar também o próprio modo de olhar as ilhas e a
maneira das sociedades se relacionarem com elas. A ilha como locus da
concretização de um certo imaginário elísio atravessa os tempos, vem
da Antiguidade até aos nossos dias, e, por mais surpreendente que
possa parecer, há nas várias expressões que essa representação mental
foi tendo no decurso da história um certo número de elementos básicos

1
V. Cap 3.

131
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

comuns que se repetem. Nessas recorrências está a essência do ideal da


insula paradisiaca; e este ideal foi, como veremos, um molde importante
na construção das próprias paisagens reais de muitas ilhas.
Referindo-se ao Jardim das Hespérides, Maria Helena Rocha Pereira
(1991) adverte que talvez este espaço mítico não possa ser considerado
genuinamente insular. Isto porque não é seguro que o lugar tenha sido
localizado numa ilha logo desde os primeiros tempos de formação do
mito, que tudo indica ser antigo, possivelmente já do período minóico.
Tenha sido ou não desde a origem um desses eliseus insulanos, certo
é que encontramos presentes no Jardim das Hespérides muitos dos
elementos que através dos tempos iriam constituir a estrutura básica
da imagem idealizada da insula paradisiaca, como a pradaria verdejante
e florida, onde o mito coloca ainda por vezes rebanhos de carneiros a
pastarem, numa evocação de quietude e abundância, as fontes das quais
jorra ora água ora néctar, e depois o elemento feminino, na forma de
divindades primaveris, alegres, que se reúnem para cantarem em con-
junto, e as árvores de fruto, que especificamente no caso do Jardim das
Hespérides são árvores que dão pomos de ouro, símbolos superiores
do amor erótico.
A Idade Média produziu também as suas representações da insula
paradisiaca (a Ilha Brasil, a Ilha das Sete Cidades, as Ilhas Afortunadas
de São Brandão, etc.), correspondendo na essência a evoluções do arqué-
tipo anteriormente descrito, embora permeadas agora por influências
novas, vindas do mundo céltico e até, nalguns casos, do muçulmano.
Um desses exemplos de insula paradisiaca é a Grande Ilha do Solstício,
onde o monge Trezenzónio teria passado sete anos da sua vida2. Expri-
mia-se nela o Paraíso tal como o concebia o final do primeiro milénio,
e muito curioso é constatar que voltamos a encontrar nessa idealização
do lugar perfeito alguns dos velhos elementos que compunham a ima-
gem do éden insulano clássico. A Grande Ilha do Solstício é uma terra
de fartura e de facilidades, de pradarias onde mais uma vez aparecem
ovelhas calmamente a pastarem, e onde «o mel corre em abundância

2
A lenda do monge Trezenzónio, que teria vivido pelo séc. VIII, e que aparece fixada
num códice latino ibérico do séc. IX intitulado Trezenzonii de Solistitionis Insula Magna,
ressoa aspectos da história de São Brandão. Inscreve-se portanto na mesma tradição
literária de carácter épico e hagiográfico característico da Baixa Idade Média, de
origem céltica, mas que se difundiu um pouco por todo o «arco Atlântico» europeu,
atingindo também a Península Ibérica.

132
5. As ilhas redescobertas: turistas e novos imigrantes

por entre a fragância das flores e das árvores de fruto» (apud Almeida
Lucas, 1991, 76). Produzida num contexto cristão, esta representação
medieval da insula paradisiaca perde as conotações eróticas do passado.
Desaparecem dela os coros femininos de ninfas sedutoras. Surgem em
seu lugar os cantos das aves, que vêm desempenhar a mesma função
na construção de uma paisagem sonora ridente e harmoniosa. Como
ideal do locus amenus que é, a Grande Ilha do Solstício não conhece nem
Invernos rigorosos nem Verões escaldantes, mas sim uma «Primavera
eterna» que ignora a noite «dado que a luz das estrelas sempre mantém
uma claridade que afasta as trevas» (ibid.).
A insula paradisiaca aparece depois de novo, e ainda mais esplendo-
rosamente, n’Os Lusíadas, no Canto IX, concretizada na imagem da Ilha
dos Amores que Vénus dá de prémio aos marinheiros portugueses pelos
seus trabalhos, e que é em si o retrato acabado da paisagem perfeita:
suaves outeiros de erva viçosa, fontes límpidas onde nascem rios sussur-
rantes, lagos calmos, bosques de ulmeiros em cujos troncos se enroscam
videiras, e pomares de ramos pendentes sobre as águas de tão pesados
que estão de «pomos odoríferos e belos» e de limões que lembram os
seios de virgens (Os Lusíadas, IX, 55). A sugestão de um ar perfumado é
reforçada ainda pela presença das flores, que são copiosas na descrição
camoniana da insula paradisiaca, e diversas, entre narcisos e lírios, rosas
e violetas, açucenas e jacintos. Depois, não menos importante para a
caracterização do ambiente deste éden insulano, é a sua paisagem sonora,
na qual, retomando um velho tema da Antiguidade, vamos encontrar de
novo os coros de ninfas a tocarem «harpas e sonoras flautas» (Lus., IX,
64), agora acompanhados pelo canto de cisnes e rouxinóis. Finalmente,
como último traço desta representação renascentista do eliseu insulano
aparece a dimensão erótica, exuberantemente exposta no episódio em
que as ninfas são surpreendidas no banho pelos marinheiros e fogem,
até que finalmente se rendem nos braços dos seus perseguidores no
meio dos bosques, por entre as árvores, em «famintos beijos», em «afa-
gos suaves», e num «mimoso choro» que logo «em risinhos alegres se
tornava» (Lus., IX, 83).
Se é certo que a imagem da insula paradisiaca tem já em Camões lai-
vos de uma certa exuberância tropical, tal marca tornar-se-á mais forte
e impressiva depois do séc. XVIII, quando a exploração do Pacífico vier
finalmente fixar a imagem das ilhas dos «mares do sul» como referencial
do éden terrestre. O conhecimento da Oceânia foi na verdade funda-

133
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

mental para que se fincasse na mentalidade ocidental essa versão mais


luxuriante e erotizada da insula paradisiaca. Era um mundo totalmente
novo e que em muitos aspectos ultrapassava até a própria imaginação
ocidental esse que se dava a conhecer finalmente. As ilhas da Polinésia
pareciam corresponder, como explica Jean-François Staszak (2006, 79),
à «sociedade perfeita descrita pelos filósofos das Luzes, Rousseau em
particular», onde «homens e mulheres viviam em estado natural, em
paz e harmonia, praticando um amor livre e sem vergonha». Além disso,
lembravam o éden bíblico, dado que tais ilhas podiam ser vistas, sem
grande esforço de imaginação, como um belo «jardim luxuriante, de
clima tão doce que se podia viver quase nú, de terra tão rica e de frutos
tão abundantes que nenhuma necessidade havia de trabalhar» (ibid.).
Podemos depreender de Hans-Jürgen Lüsebrink (1995) que o passo
derradeiro para a fixação definitiva da imagem das ilhas dos «mares
do sul» como concretização terrena do Paraíso foi dado, todavia, pela
propaganda colonialista do séc. XIX. Ela veio dar uma visibilidade nova
a essas representações míticas dos espaços insulares, ao pôr a circular
na «opinião pública» a ideia da ilha tropical como lugar de vida doce e
de facilidades. Por acção das sociedades geográficas, que tão importan-
tes foram na sua época para a consagração da ideologia imperialista e
até para a sua concretização no terreno3, de companhias privadas que
viam na expansão ultramarina oportunidades de negócio, e que por isso
apoiavam as campanhas coloniais, ou mesmo directamente por acção
dos próprios governos, através dos seus ministérios de ultramar ou da
marinha, começam a aparecer a partir de 1840, primeiro em Inglaterra
e em França, e depois, especialmente a partir do último quartel do
século, noutros países europeus (Alemanha, Bélgica, Itália, Portugal,
etc.), iniciativas destinadas a sensibilizar e mobilizar as populações

3
As sociedades geográficas são instituições de iniciativa privada surgidas na Europa
do séc. XIX com o objectivo de desenvolver o conhecimento científico dos territórios
ultramarinos. A composição destas sociedades era por regra bastante eclética, reunindo
membros das várias componentes da elite do liberalismo oitocentista, de naturalistas e
académicos a industriais e banqueiros, de políticos a oficiais do exército. Para além de
financiarem e organizarem expedições, as sociedades geográficas tinham por missão
difundir o conhecimento geográfico sobre os territórios explorados e as novidades
científicas em geral, através dos seus museus, das exposições que realizavam, das
memórias e dos boletins que publicavam. A primeira sociedade geográfica fundada
na Europa foi a de Paris, que apareceu em 1821, e que acompanhou Bonaparte na
expedição ao Egipto. A Royal Geographical Society, de Londres, é de 1830.

134
5. As ilhas redescobertas: turistas e novos imigrantes

para a «aventura» colonial. Dessas iniciativas, onde se incluíam desde


a simples publicação de folhetos e cartazes, anúncios nos jornais, até
à organização de espectaculares exposições destinadas a «informar» a
«opinião pública», resultaram muitos dos estereótipos em que se baseiam
ainda hoje as «geografias imaginárias» do mundo intertropical e das
suas ilhas4, sempre plenas de referências a uma natureza pródiga e a
um certo primitivismo feliz que supostamente marcaria os modos de
vida dos seus habitantes.
Gauguin, que foi um viajante intrépido e um apaixonado do mundo
tropical, deixou muito bem expressa na sua obra essa visão idílica da
insularidade dos «mares do sul». As suas telas da Martinica, do Taiti e
das Ilhas Marquesas, onde se misturam, como mostrou Jean-François
Staszak (2006), imaginação e observação, ideias feitas antes da partida
para os trópicos e aprendizagens colhidas na sua experiência neles,
reflectiam esse ideário, ao mesmo tempo que contribuíram para a consa-
gração moderna da imagem da ilha tropical como insula paradisiaca. Na
verdade, lá estão uma vez mais presentes muitos dos elementos clássicos
dessa paisagem mítica, como a vegetação exuberante, a abundância de
frutos, as cascatas e os lagos, as aves ornamentais e canoras, e depois,
por toda a parte, muitas mulheres jovens, indígenas nuas de cabelos
longos, sempre em grupos (como as ninfas tendem a surgir na imagi-
nação masculina), ou languidamente recostadas sobre leitos de flores.
Esta ideia da insula paradisiaca, de tão antiga e de tão sedimentada que
está na mentalidade ocidental, só podia ter originado uma atracção turís-
tica forte pelos espaços insulares, sobretudo sabendo nós a importância
que o turismo adquiriu como horizonte de felicidade na Modernidade.
Sinais dessa apetência pelas ilhas começaram a ser visíveis logo no
séc. XIX – o século que inventou o turismo moderno – mas ganharam
expressão à medida que se avançou no séc. XX e que o turismo se foi
distendendo socialmente como prática. Os números não deixam aliás
dúvidas quanto a essa preferência turística pelas ilhas, e em especial
pelas ilhas de águas quentes, que os catálogos de viagens continuam a

4
O conceito de «geografia imaginária» é aqui recuperado directamente de E. Said (2004)
para designar as representações que o pensamento ocidental moderno, imperialista,
faz dos espaços e dos habitantes que vê como «outros».

135
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

apresentar como modelos do paraíso terrestre, e que por essa via aca-
bam por ir mantendo vivo e operativo o velho mito do eliseu insulano5.
Há a par desta visão ridente da ilha uma outra imagem que se con-
solida no séc. XIX e que, por mais inesperado ou até irónico que possa
parecer, também contribuiu favoravelmente para a imagem forte que
os espaços insulares adquiriram nas geografias mentais do turismo:
referimo-nos à ideia da ilha como local isolado e distante a que já
anteriormente aludimos6, e que então apresentámos como possível con-
sequência das mudanças de perspectiva trazidas pela «revolução dos
transportes» oitocentista e pela melhoria das acessibilidades terrestres.
É curioso pensar que as mesmas razões que no plano das representa-
ções levaram à desvalorização das ilhas enquanto territórios de vida
quotidiana tenham contribuído igualmente para a sua valorização como
territórios de excepção e de evasão, ou seja, como espaços privilegia-
dos do anti-quotidiano. A ideia da ilha solitária, isolada, remota, não
deixa de ter o seu encanto. Percebeu isso logo a mesma sensibilidade
romântica do séc. XIX que a produziu. O Romantismo, em todo o seu
egotismo, subjectivismo, melancolia e propensão para a depressão (o
famoso mal du siècle), viu no escapismo, isto é, numa espécie de desejo
sempre insatisfeito de escape ou fuga do mundo, e na contemplação
do abismo, do «sublime», e das paisagens que em geral remetem para
o infinito – o mar, uma noite enluarada, o deserto – um prazer que se
podia assemelhar, como dizia Henri Peyre (1995, 107), a uma «volúpia
na solidão». A ilha, à luz desta sensibilidade, entendida como lugar
solitário e distante, ganhava o valor de um refúgio do mundo e dos seus
males, transformava-se num doce «ninho» onde o homem moderno se
podia recolher, talvez «não necessariamente para estar sozinho nele»,
como dizia D. H. Lawrence em The Man Who Loved Islands7, «mas para

5
Para se fazer uma ideia da incidência da procura turística nas ilhas basta ver que
entre as regiões do mundo mais dependentes do turismo estão precisamente espaços
insulares. As Caraíbas e as ilhas do Pacífico Sul encontram-se nessa categoria, como
se documenta, por exemplo, em Y. Agostolopoulos e D. J. Gayle (2002, 4).
6
V. Cap 3.
7
Usei a edição electrónica que se encontra acessível no URL: <http://www.islomania.
com/resources/ebooks/lawrence/themanwho.html>. O conto The Man Who Loved
Islands deve ter sido escrito por D. H. Lawrence em 1926, mas teve a sua primeira
edição já postumamente. O controverso autor de O Amante de Lady Chatterley conta
nesta breve história as desventuras de um homem que desbarata a fortuna a construir
refúgios em ilhas desertas. O escapismo e a vida campestre são os temas essenciais

136
5. As ilhas redescobertas: turistas e novos imigrantes

fazer dele um mundo seu». A essa ideia de isolamento e de distância


que coloca a ilha como que à margem do mundo, juntou o Romantismo
depois uma outra ilusão ainda, que é a da ilha se situar também «fora
do tempo», numa espécie de suspensão sobre o fluir da história. Daí
que na imagem estereotipada da ilha romântica o castelo medieval
seja um ingrediente tão comum. Essa ilha que se imaginava distante e
isolada acabava por ser também a metáfora do lugar prístino, do lugar
que consegue resistir ao tempo em estado de pureza original, sem se
deixar «corromper» pela Modernidade, incólume à industrialização, à
mecanização e à urbanização.
Pensar a insularidade, como passou a fazer a mentalidade moderna,
em ligação estreita com as ideias de solidão e de afastamento poderá não
ser muito abonatório se tivermos as necessidades da vida quotidiana
como critério, mas possui em contrapartida grande potencial de sedução
se o nosso olhar for definido a partir de uma vontade de escape. Aí,
visto a partir dessa perspectiva, todo esse imaginário insular moderno
que o Romantismo produziu, onde se insiste numa ideia de exteriori-
dade e alteridade totais da ilha em relação ao espaço e ao tempo, passa
a revestir um carácter extraordinariamente apelativo. Uma atracção,
de resto, que a evolução dos transportes e das comunicações do último
século, em vez de atenuar, reforçou. À medida que as distâncias vão
sendo reduzidas ou até «abolidas pelo imediatismo e a massividade das
ligações à superfície do planeta», observava Françoise Péron (2005, 428),
«a ilha, juntamente com a extensão marinha que a separa do continente,
aparece como o último território geográfico que materializa a ideia de
distância, de ruptura espacial», e isso vem conferir mais força ainda à
ficção do espaço insular como último destino possível de escape, e, logo,
como espaço de marcada vocação turística.

O climatismo oitocentista e as rivieras atlântidas

O turismo, que também é vida de relação, e que portanto acaba por


ser na sua natureza contrário à própria ideia de isolamento, está inscrito

desta história, pela qual perpassa, à semelhança do que sucede noutras obras do
mesmo escritor, um sentimento crítico e de decepção em relação à artificialidade e
desumanidade da sociedade moderna.

137
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

de diversas formas e sob diferentes intensidades na paisagem das Ilhas


Atlântidas. Acaba por ser, neste sentido, um elemento que participa
também bastante na construção do sentido de lugar nesta região.
Tal como o conhecemos hoje, o turismo pode ser descrito como uma
forma de consumo moderna que vive do prazer da fruição dos lugares e
de uma satisfação que se retira da própria acção de viajar. Nem sempre
se soube apreciar isso. A invenção do turismo, por finais do séc. XVIII
ou começos do séc. XIX, correspondeu na verdade ao aparecimento
de uma forma nova de experiência do espaço geográfico em que o
humano, na sua totalidade de corpo e espírito, se jogou para aprender
a descobrir na beleza ou mesmo na simples estranheza das paisagens
motivos de arrebatamento, e para se abrir como nunca antes ao des-
frute sensual das amenidades ambientais: a frescura da água do mar,
o vapor envolvente das termas, a leveza do ar da montanha, a tepidez
de um sol de entardecer. O turismo moderno consistiu basicamente no
cultivo desses prazeres, e esse cultivo pôde vingar porque entretanto o
legitimou um discurso novo, «científico», de médicos e «higienistas»,
que alertava para as propriedades medicinais dos climas amenos, dos
banhos termais, da talassoterapia, e a dada altura até da própria viagem
como «espairecimento» e cura de «neurastenias».
O turismo veio permitir um novo olhar sobre ambientes que não
haviam reunido até então especial simpatia, concretamente a montanha
e a beira-mar. A sensibilidade romântica começara por transformar os
grandes abismos, os penhascos agrestes e a imensidão do mar em expres-
sões do «sublime». Esse fora o primeiro passo para que a montanha e a
beira-mar se reabilitassem e pudessem finalmente emergir como espaços
de fruição. O aparecimento do tal discurso científico a que aludi sobre
as qualidades do ar e da água e da sua relação com a saúde a partir do
séc. XVIII foi igualmente decisivo; disso resultaria um reconhecimento
novo de virtudes higiénicas e medicinais no ar puro, fresco e leve da
montanha, bem como nas brisas marítimas, conduzindo ao apareci-
mento das primeiras estâncias de climatismo em altitude e nas costas
litorais8; disso sairia depois ainda um gosto revivificado pelas termas

8
A. Corbain (2001, 67) chama «aerismo» a esta atenção pela qualidade do ar e ao
conjunto de convicções que se gera a seu respeito nos sécs. XVIII e XIX. Diz ele que
é isso, por exemplo, que «explica o urbanismo desse tempo, o gosto pelas grandes
esplanadas, as largas avenidas», para depois acrescentar ainda que «Um tal sistema

138
5. As ilhas redescobertas: turistas e novos imigrantes

e a invenção de todo um conjunto de novas práticas hidroterapêuticas


ligadas, primeiro aos banhos de mar, e depois aos desportos na água,
que também abririam novos horizontes na ocupação humana da beira-
-mar, das margens dos lagos, e até dos cursos de água.
Ao longo dos tempos, o gosto pelos diversos tipos de ambiente e aquilo
que neles se valoriza foi-se alterando. De início a prioridade residiu em
fugir aos miasmas estivais e em procurar ambientes frescos e revigorantes
onde se pudesse passar o Verão, quase sempre em combinação com prá-
ticas hidroterapêuticas. Foi isso que gerou o surto termal oitocentista, o
aparecimento das primeiras estâncias de montanha, e ainda o multiplicar
por todo o séc. XIX de diversas estâncias de banhos ao longo das costas
frescas e agitadas do Atlântico, desde o Golfo da Biscaia às costas da
Mancha e ao Mar do Norte. Numa segunda fase, foi a fuga aos rigores
do Inverno e a procura de ambientes amenos em praias meridionais que
prevaleceu. Resultou disto a «invenção» das rivieras e dos lidos dos finais
do séc. XIX, as primeiras com os seus paradigmas na Côte d’Azur e nas
costas lígure e amalfitana, os segundos no Adriático. Já o gosto pelos
banhos de sol (o «heliotropismo»), que veio confirmar em definitivo esta
preferência pelas praias meridionais, se bem que de Verão, constituiu
totalmente uma invenção do séc. XX, e mesmo, em larga escala, já da
sua segunda metade, tal como aliás sucedeu com a procura da montanha
durante o Inverno para a prática de desportos de neve.
Percebe-se que uma parte da Macaronésia se tenha afirmado como
destino de turismo logo praticamente no séc. XIX. Sobretudo as ilhas mon-
tanhosas situadas a latitudes subtropicais, onde se conjugavam condições
favoráveis para o climatismo (ar puro e fresco de montanha e, ao mesmo
tempo, um clima marítimo ameno no Inverno) e uma paisagem que se
conformava ao ideal da insula paradisiaca, especialmente pela exuberância
da vegetação9. Destas, as ilhas maiores, com portos importantes, e logo
melhor conectadas com os mercados exteriores da Península e mesmo
da Europa, acabariam por ser obviamente as privilegiadas.

de convicções científicas conduziu ao gosto pelos espaços ventilados e a depreciar muito


fortemente as paisagens nas quais parece reinar uma total imobilidade» (ibid., 68).
9
As referências ao belo efeito visual da vegetação densa e das montanhas são cons-
tantes nos relatos de viagens feitos por estrangeiros da Madeira desde o séc. XVIII,
como se constata a partir dos excertos coligidos em A. Marques da Silva (2008).
Nesses relatos, não são poucos os que comparam a ilha a um jardim ou a um éden,
mostrando a recorrência do velho mito do eliseu insulano.

139
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

Madeira, Grã-Canária e Tenerife foram as ilhas onde essa presença do


turismo se fez sentir primeiro. Ao longo do séc. XIX, as três constituíram
pontos de passagem frequentes para gente que procurava o bem-estar
físico e a cura de males variados (respiratórios, reumatológicos, «neu-
rológicos»,…), ou que tão-só e simplesmente se entregava a viagens de
deleite para poder viver a emoção do encontro com paisagens exóticas
e «pitorescas»10. O número de cabeças coroadas e de membros da alta
nobreza que passam pela Madeira a partir de meados do séc. XIX é
notável e é uma prova dessa inclusão plena da ilha nos circuitos de
turismo da época: a rainha Adelaide de Inglaterra em 1847, o duque de
Leuchtenberg, genro do czar Nicolau I da Rússia, em 1849, o imperador
Maximiliano do México, em 1852, a lendária Sissi da Áustria, em 1860, a
imperatriz Eugénia, mulher de Napoleão III, em 188011. Na Grã-Canária
e em Tenerife pode não ter havido clientela de tanto brilho, mas nem por
isso as duas ilhas deixaram de ter uma frequência igualmente assídua
de turistas internacionais desde meados do séc. XIX. De resto, mesmo
na Madeira, embora sejam aqueles nomes sonantes a captar a atenção, é
óbvio que a grande maioria da procura era composta por membros das
classes médias (negociantes, professores, médicos, funcionários públicos,
escriturários, deputados,…), como aliás se sabe hoje que sucedia na
maioria das estâncias termais e de climatismo oitocentistas, e inclusive
nas mais selectas (cf. Blackbourn, 2002).
A conversão destas três ilhas em destinos de climatismo reflectiu-se
numa série de inovações nas práticas sociais e no urbanismo que ainda
hoje são marca importante destes lugares. Funchal, Las Palmas, Santa
Cruz de Tenerife e, do outro lado desta ilha, a típica localidade de Puerto
de la Cruz, locais onde então se concentravam as maiores procuras de
turistas, foram objecto de investimentos que ajudaram a criar neles um

10
As Canárias, em particular, juntavam à imagem da tropicalidade insular a ideia de
um certo exotismo com ressonâncias «orientalizantes», dado pela proximidade do
norte de África. Os palmares e os dromedários, introduzidos pelos europeus nas ilhas
logo no início da sua ocupação, e que eram usados correntemente como animais de
trabalho e de transporte na Grã-Canária, em Tenerife e em Lançarote, marcando pre-
sença na vida quotidiana, ajudavam a construir essa imagem. O dromedário é aliás
um tema frequente em postais e fotografias antigas das Ilhas Canárias (v. o arquivo
fotográfico digital no URL: <http://www.fotosantiguascanarias/org/>).
11
Notícias da passagem destas e doutras figuras da sociedade internacional pela
Madeira ao longo do séc. XIX e até finais do primeiro quartel do séc. XX podem ser
encontradas em F. A. da Silva e C. Azevedo de Meneses (1940-46).

140
5. As ilhas redescobertas: turistas e novos imigrantes

ambiente jouissant típico das estâncias de climatismo. Multiplicaram-se


então os chalets e as villas de vilegiatura. Fundaram-se grandiosos palace
hotel ao estilo de fin-de-siècle, como o Reid’s, no Funchal, o Grand Hotel
Taoro de Puerto de la Cruz, ou o velho Hotel Metropole e o Santa Cata-
lina de Las Palmas. Apareceram restaurantes, teatros, clubes, casinos e
«estações de banhos». E finalmente, ainda muito por causa dessa procura
externa, introduziram-se cedo inovações que haviam de tardar em outras
«cidades de província» de escala comparável, como foi mormente o caso
da iluminação pública eléctrica (1895 no Funchal, por exemplo) ou do
cinema (1896 na Grã-Canária).
Este primeiro surto de turismo gerou o aparecimento de agradáveis
subúrbios de vilegiatura nas envolventes desses núcleos, em posições de
média altitude. Monte, na montanha sobranceira ao Funchal, é exemplo
disso. Na Grã-Canária, desenvolveu-se uma localidade homóloga na
envolvente de Las Palmas, em Tafira. Caracterizavam-se pela presença
de pequenos hotéis e moradias familiares de qualidade envoltas em belos
jardins, umas para veraneio da burguesia local, outras para arrendar «à
época» aos turistas. Distinguiam-se depois pelo cuidado com que neles
eram trabalhados os espaços públicos. A intenção era a de criar condi-
ções propícias para a fruição da vida ao ar livre e para a sociabilização
dos veraneantes, intento que aliás também se pressentia nalgumas das
intervenções urbanísticas que pela mesma época se fizeram no Funchal,
em Las Palmas e em Santa Cruz de Tenerife. Os parques e jardins, a
arborização das ruas (quase sempre com espécies exóticas: palmeiras,
jacarandás, acácias, etc.), o mobiliário urbano, os coretos, as fontes públicas
e os lagos artificiais, são tudo coisas que nestas cidades surgem por esta
época e que têm muito que ver com essa intenção. A paisagem urbana
das ilhas transformava-se por efeito do turismo, adquiria traços novos
de uma art de vivre típica dos centros de vilegiatura da belle époque, e
como arquétipo de toda essa transformação que se alargava também
aos espaços em redor das cidades, como modelo de referência subja-
cente, aparecia ainda e sempre o ideal da insula paradisiaca, agora com
uma tonalidade tropical mais forte dada pelo imaginário colonialista:
dizia um célebre e popular guia turístico inglês do primeiro quartel do
séc. XX que subir o comboio do Monte, no Funchal, era como fazer em
miniatura a famosa linha de caminho-de-ferro do Uganda, que subia
de Mombaça para Mau, tal era a riqueza, a variedade e o exotismo da
flora! (Brown, 1922, 45).

141
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

Fora destas três ilhas, o turismo, nessa sua fase oitocentista, não teve
quase expressão. O arquipélago de Cabo Verde, pela aridez e pelo calor,
estava longe de poder corresponder às necessidades do climatismo, ou
sequer à imagem verdejante do clássico eliseu insulano. Nos Açores, houve
vontade de promover o turismo, mas o sucesso das medidas desenvol-
vidas com esse fim foi limitado. A criação da Sociedade Propagadora de
Notícias Micaelense em 1899, de iniciativa privada, que juntava na sua
missão objectivos culturais e de promoção turística, editando panfletos,
guias e postais de São Miguel, não foi suficiente para que os Açores se
afirmassem como um destino turístico com significado. Em 1924, por
iniciativa dos autonomistas, financiaram-se missões de intelectuais às
ilhas com o intuito de promover o arquipélago, mas também isso gorou
os objectivos12. O clima dos Açores era visto como menos benigno que
o da Madeira ou das Canárias. Depois havia a distância, o afastamento
do arquipélago em relação aos grandes focos emissores de turistas,
que penalizava os Açores e os impedia de se tornarem num destino de
turismo popular. Contra isso pouco podia o facto de escritores e articu-
listas exaltarem a beleza telúrica destas ilhas, a harmonia melancólica
das cores coadas pela luz húmida do Atlântico, ou que, voltando uma
vez mais aos velhos temas clássicos, recheassem a descrição das ilhas
de referências pastoris, insistindo na imagem dos prados viçosos e do
gado a pastar livremente nos campos.
Nos Açores, precisamente pelo que disse, não há muitos lugares que
tenham nascido do surto de turismo oitocentista, ou que tenham tido
nele um factor de impulso importante. As Furnas, em São Miguel, cons-
tituem praticamente o único exemplo disso, embora com uma génese
que aparece ligada, não ao climatismo, mas ao termalismo, e com uma
procura que de início era essencialmente interna, composta quase só
pelas classes possidentes de São Miguel e de outras ilhas do arquipélago.
A descoberta da caldeira das Furnas como local de vilegiatura deveu-se
a Thomas Hickling, negociante e mais tarde cônsul norte-americano em
São Miguel, que no último quartel do séc. XVIII fundou nesse local uma

12
Foi na sequência dessas missões que se produziu, por exemplo, As Ilhas Desconhecidas
de Raul Brandão (1926), hoje considerada uma das maiores obras de literatura de
viagens de língua portuguesa. O livro, que teve grande divulgação, foi importante
para cristalizar, tanto interna como externamente, uma imagem marítimo-pastoril dos
Açores e uma identidade açoriana muito assente na ideia da agrura do ambiente e
da solidão insular.

142
5. As ilhas redescobertas: turistas e novos imigrantes

quinta de veraneio. A propriedade, que em meados do séc. XIX passa-


ria para a posse dos Viscondes da Praia, que a valorizaram (sobretudo
graças aos investimentos que fizeram no jardim de aclimatação), foi a
primeira de várias outras quintas e challets de recreio que se estabele-
ceram no vale das Furnas e em redor da lagoa próxima, atraídos pelas
fontes de águas quentes e sulfurosas e pela excelência da paisagem. O
maior desenvolvimento das Furnas viria a ocorrer todavia já no séc. XX,
após a venda da antiga propriedade dos Viscondes da Praia à Sociedade
Terra Nostra, de capitais da família Bensaúde, em 193313. Seria por acção
destes investidores que finalmente apareceria nas Furnas o primeiro hotel
de qualidade do arquipélago, a que se juntaria em 1939 outra inovação
importante: o primeiro campo de golfe açoriano.

Do «turismo de massas» aos «turismos de nicho»:


reinvenções do idílio insular

Incomparavelmente mais significativo que esse primeiro surto oitocen-


tista a que fiz referência foi o desenvolvimento turístico que se observou
nas Ilhas Atlântidas a partir sensivelmente de 1960, num cenário novo

13
Os Bensaúde (Bin Saud) são uma família de judeus marroquinos que se estabeleceram
nos Açores nas primeiras décadas do séc. XIX, atraídos pela prosperidade do «ciclo
da laranja». Houve então várias outras famílias hebraicas originárias de Marrocos que
também imigraram para os Açores, mas esta foi a que logrou maior sucesso. A sua
actividade começou por estar ligada ao comércio ambulante de tecidos, mas, graças a
uma estratégia agressiva baseada em baixas margens de lucro, depressa conseguiram
destruir a concorrência local e evoluir para uma posição de destaque tanto no comér-
cio retalhista como por grosso, passando a dominar praticamente toda a importação
de fazendas no arquipélago. As relações com a diáspora hebraica em Gibraltar e na
Inglaterra contribuíram certamente para o seu sucesso. É esta ligação matricial dos
Bensaúde ao comércio internacional que justifica depois o alargamento da sua área de
negócio ao sector dos transportes e, mais tarde ainda, ao turismo. Os Bensaúde esti-
veram ligados, por exemplo, à Empresa Insulana de Navegações, que durante muito
tempo foi a única a assegurar as ligações ao Continente por vapores, e também da
própria SATA (Sociedade Açoriana de Transportes Aéreos). Em menos de um século, os
Bensaúde transformaram-se numa das famílias burguesas mais ricas e poderosas dos
Açores, e mesmo do país, com uma posição firmada num largo espectro de actividades,
incluindo na banca e no sector dos seguros (Banco Comercial dos Açores, Companhia
de Seguros Açoreana), e com uma descendência de personalidades ilustres ligadas às
ciências, à engenheira e às artes. – Para um maior desenvolvimento deste tópico, v.,
e. g., F. Sequeira Dias (s.d., em linha), ou também F. Sequeira Dias (1996).

143
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

de «turismo de massas» motivado pelo «heliotropismo» (e por um «bal-


neotropismo» que passou a dar preferência às águas tépidas) e apoiado
no transporte aéreo e em novas formas de organização e de consumo
das viagens, agora em moldes mais estandardizados e integrados.
As Canárias foi onde primeiro e mais intensamente se sentiu este boom.
Os primeiros sintomas desse crescimento mais rápido e impactante do
turismo começaram a ser perceptíveis na Grã-Canária e Tenerife ainda
antes da entrada na década de 60. Para isso pesou a existência de aero-
portos (Las Palmas e Santa Cruz desde os anos 30), a presença de um
certo conjunto de infra-estruturas de base (saneamento, estradas, restau-
rantes, táxis, etc.) que decorria da própria «massa crítica» das ilhas e de
uma história de turismo que apesar de tudo já possuíam, e finalmente a
ocorrência de praias com areia, embora – em boa verdade – não muito
numerosas, nem propriamente extraordinárias14.
Maria del Carmen Santana (1993), que estudou em detalhe a produção
do espaço turístico nas Ilhas Canárias, mostrou que nesse processo de
transformação profunda que foi a turistização canarina iniciada nos anos
60 esteve activo um grande número de actores, desde proprietários fun-
diários ao pequeno capital local, às grandes sociedades de investimento
internacionais e às próprias autoridades, que caucionaram e nalguns
casos promoveram até essas transformações através dos instrumentos
de ordenamento do território. Por causa das expectativas de crescimento
económico que o turismo alimentava, geraram-se pressões fortes no
sentido de um maior investimento no sector turístico-imobiliário, que
levaram a alterações importantes e rápidas não só na estrutura e posse
da propriedade, mas também no uso do solo. De início essa pressão fez
sentir-se essencialmente em torno dos focos de actividade turística que
já estavam consagrados (Santa Cruz, Las Palmas e Puerto de la Cruz),

14
Como vimos anteriormente (Cap. 1), as maiores e «melhores» praias de areia
encontram-se nas ilhas a oriente, especialmente em Forteventura. Na Grã-Canária,
as praias de areia resumem-se a pequenas enseadas, havendo a destacar um único
grande areal de areia dourada na área de Maspalomas. Em Tenerife, o cenário não
difere significativamente, agravado pelo facto das praias serem de areia mais escura.
Para assegurar uma maior conformidade da oferta local aos padrões de exigência
do moderno «balneotropismo», que prefere as praias de areia clara, importam-se
todos os anos do Sara toneladas de areia para despejar sobre os areais escuros de
Tenerife – isto diz até onde pode chegar a artificialização da paisagem por influência
do turismo.

144
5. As ilhas redescobertas: turistas e novos imigrantes

como forma de aproveitar ao máximo o capital fixo instalado. O resultado


foi um acentuar da turistização desses núcleos urbanos, especialmente
patente ao longo das frentes de mar. A certa altura, porém, deixou de ser
possível continuar a manter esse relativo confinamento da actividade e a
pressão do turismo passou a estender-se cada vez mais a outros espaços,
deslocando-se preferencialmente para áreas mais a sul, menos expostas
aos alísios, e ao mesmo tempo com melhores condições de insolação.
Essas localidades que no passado, quando a agricultura fora a base da
economia, haviam sempre estado entre as menos atractivas, justamente
por causa das suas condições de maior calor e secura, encontravam agora
motivos inesperados de valorização. Uma euforia urbanística iria então
transformar por completo largas extensões da costa: em Adeje e Arona,
dois municípios do sudoeste de Tenerife, aprovaram-se só em 1972 um
total de 28 planos de urbanização, todos em resposta a expectativas de
investimento no sector do turismo, com os quais se abriu caminho a que,
de uma vez só, mais de 1.720 hectares de solo rústico se convertessem
em solo urbano (Santana, 1993, 88).
O estudo de Maria del Carmen Santana mostra que depois de um
ligeiro abrandamento dos investimentos na segunda metade dos anos 70,
relacionável com o «choque petrolífero» e a crise económica mundial, os
anos 80 voltaram a ser de grande furor. A esta nova vaga associaram-se
também mudanças qualitativas no processo de turistização. No caso de
Tenerife especificamente, o pequeno empresariado local deixou de ser o
principal agente de transformação de uso do solo; o protagonismo pas-
sou sobretudo para o capital estrangeiro e para os grandes investidores,
no que demonstra uma imbricação mais intensa do turismo canarino
nas lógicas de funcionamento do sistema financeiro internacional. Os
investimentos canalizaram-se nesta fase também para novas tipologias
de oferta (preferência pelo sector extra-hoteleiro – ou seja, apartamen-
tos turísticos, village-clubs, etc. – em detrimento do sector hoteleiro) e
passaram a concentrar-se mais marcadamente ainda no sul da ilha,
onde só de 1985 a 1990 a oferta «passou de 35.295 camas para 89.044,
experimentando um crescimento em torno de 151,5%» (Santana, 1993,
193). Para isso terá sido decisiva a abertura do segundo aeroporto de
Tenerife em 1977, precisamente nessa parte da ilha.
O surgimento de novas áreas urbanizadas e o seu alastramento
ao longo da costa foi a consequência mais visível de todo este boom
turístico-imobiliário. São novos espaços urbanos que concretizam muito

145
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

exemplarmente aquilo que Patrick Mullins (1991) designava por «urbani-


zação turística»15. Correspondem globalmente a configurações territoriais
novas, que na tipologia dos espaços turísticos proposta por Jean-Pierre
Lozato-Giotart (1993, 134) caem na classe das «estações balneares espe-
cializadas polinucleadas», formadas por «uma nebulosa de pequenos
pólos turísticos costeiros», uns resultantes da evolução de antigos portos
piscatórios, que entretanto foram transformados em portos de recreio,
outros de um crescimento ex nihilo a partir de solo «livre» junto à frente
de mar, sobretudo nos locais onde havia praias. A densidade da cons-
trução é elevada, mesmo se as altimetrias são baixas, de que resulta
uma ocupação massiva do solo. A paisagem é dominada pelos hotéis e
aparthotéis, pelos apartamentos turísticos e pelas village-clubs, com os
seus complexos de piscinas, e pelas marinas, as rent-a-car, os shopping
centres, as ruas pedonalizadas de esplanadas barulhentas, e os parques
de diversão aquáticos, que aliás são, em conjunto com as praias, os locais
onde se concentra a vida colectiva destes lugares.
Por causa desta evolução que conheceram, as Canárias representam
hoje um pouco no Atlântico oriental o que as Baamas significam no
Atlântico ocidental: um caso extremo de turistização em contexto insu-
lar. No começo dos anos 90, o número de turistas estrangeiros chegados
anualmente ao arquipélago rondava os 5 milhões, o que equivalia então
a mais de quatro vezes a população residente, e esse número continuou
sempre a progredir até 2001, ano em que se atingiu o máximo de 10,1
milhões de turistas estrangeiros16. Desde então os números têm vindo
em queda, mas em 2008 o volume da procura estrangeira chegada ao
arquipélago cifrava-se ainda em 9,2 milhões de turistas (só britânicos,

15
O conceito de «urbanização turística» foi desenvolvido e trabalhado por P. Mullins
(1991), muito baseado na sua experiência da Austrália. A tese essencial é a de que, tal
como a era industrial teve o seu processo de urbanização próprio, de que o paradigma
foi a metrópole urbano-industrial, com as fábricas e os portos de mercadorias, a era
pós-industrial estaria também a produzir as suas formas de urbanização, tendo por
centro já não a produção mas sim o consumo. A esta nova forma de produzir espaço
urbano e ao tipo de «cidade» dela resultante – uma cidade dispersa e fragmentada,
polinucleada, de comércio e de lazeres – chamava o autor de «urbanização turística».
Os exemplos mais acabados disto encontram-se, no caso de Tenerife, na chamada
Costa Adeje (praias de Fuñabé, Los Cristianos, Las Américas,…) e na Grã-Canária,
nas áreas de Puerto Rico e Maspalomas.
16
Os números referidos para as Canárias são do Instituto Estadístico de Canárias
(ISTAC).

146
5. As ilhas redescobertas: turistas e novos imigrantes

eram 3,4 milhões; alemães, 2,5 milhões). E para as dormidas na hotela-


ria, os números não impressionam menos: 2008 registou 47,1 milhões
de dormidas, valor que foi inclusive superior ao de 2001.
Considerando no cluster do turismo os sectores do alojamento e da
restauração, das actividades de aluguer de imobiliário, dos transportes
e dos lazeres, estima-se que ele contribuísse em 2007 para 31% do PIB
das Canárias, gerando directamente à volta de 968.000 postos de traba-
lho17. Indirectamente, o turismo contribui ainda para o dinamismo de
um outro muito alargado leque de actividades conexas e subsidiárias,
como a construção civil, o comércio, e uma parte dos serviços pessoais
e às empresas (bancos, contabilidade, informática, etc.). Isto mostra a
importância que o turismo tem nas Canárias. Não se pode contudo
dizer que essa relevância seja idêntica em todo o arquipélago, ou que
o turismo contribua de igual modo em todas as ilhas para a geração
de emprego e de riqueza, e para a própria modelação da paisagem. As
ilhas de Tenerife e Grã-Canária concentram o essencial da actividade
turística do arquipélago, cabendo-lhes no conjunto mais de dois terços do
total de dormidas (19,2 milhões de dormidas em Tenerife e 12,7 milhões
na Grã-Canária em 2008), a que se seguem Lançarote e Forteventura,
que na verdade só começaram a ter uma exploração turística em larga
escala nos anos 90, mas que têm vindo a aumentar muito rapidamente
a sua quota de mercado desde então. Já as ilhas ocidentais, de menor
dimensão, sem aeroportos ou com aeroportos pouco conectados, e sem
praias, restaram praticamente à margem do «turismo de massas»: La
Palma viu realizar-se em 2008 um total de 721.500 dormidas; Gomeira,
453.700; Hierro, 43.100 dormidas.
O percurso seguido pela ilha da Madeira foi bastante diferente do
das ilhas mais turistizadas das Canárias. É um facto indubitável que a
Madeira constitui hoje um spot turístico de primeira ordem no Atlântico
Norte, e que por via do turismo se estabelecem importantes correntes de
ligação ao «exterior», sobretudo ao Reino Unido, à Alemanha e à Escan-
dinávia, que são por tradição os principais mercados turísticos da ilha.
Em 2007, foram registados nas várias formas de alojamento hoteleiro da
região (que para este efeito é basicamente a ilha da Madeira), 1,1 milhões
de hóspedes, a que corresponderam quase 6 milhões de dormidas. Não
obstante, a Madeira nunca chegou a uma forma de «turismo de massas»

17
Os números são das Contas Satélites de Turismo, também do ISTAC.

147
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

comparável ao que conheceram as Canárias. A ilha turistizou-se, mas


não com o peso nem nos moldes em que isso se fez em Tenerife ou na
Grã-Canária. A inexistência de praias e as restrições que a orografia
impôs até muito tarde ao movimento aéreo funcionaram como entra-
ves a um crescimento em maior escala do turismo18. É verdade que a
abertura do aeroporto de Santa Catarina em 1964 permitiu que na sua
sequência houvesse um aumento da procura, mas isso cifrou-se num
incremento de algumas centenas de milhares de turistas por ano nas
décadas que se seguiram, e não de milhões de turistas, como sucedeu
nas Canárias. Esse crescimento mais paulatino, não tendo impedido que
também na Madeira o turismo passasse a ser uma actividade determi-
nante na economia, e que os efeitos dessa turistização se expressassem
na própria paisagem, levou porém a que tudo isso ocorresse dentro de
um certo equilíbrio de proporções e mantendo critérios de muito maior
selectividade19.
No caso de Porto Santo, foi sobretudo a ausência de «massa crítica»
decorrente da pequena escala da ilha, a que acresciam dificuldades sérias
em sustentar uma procura volumosa por causa da crónica carência de
água a que sempre esteve sujeita e das limitações de abastecimento em
bens de consumo, que impediu um desenvolvimento mais precoce do
turismo. Não obstante existir uma extensa praia de areia e de apresentar
condições de insolação e um regime de precipitações muito favoráveis
para o turismo de sol e mar numa grande parte do ano, Porto Santo
chegou aos anos 80 com a sua oferta de alojamento reduzida a um
18
O aeroporto da Madeira só em 2001, na sequência das obras de ampliação da pista,
passou a estar apto para receber qualquer tipo de aeronave comercial. Até então,
devido à sua diminuta dimensão, o aeroporto estava impedido aos grandes aviões.
Acresce a isso que o aeroporto se caracterizava (e caracteriza ainda) por condições de
turbulência muito difíceis (ventos laterais e uplift), obrigando a que, para manobrar
neste aeroporto, os pilotos possuam licenças especiais.
19
Basta ver que a oferta da Madeira nunca atingiu uma dimensão que permitisse cheap
packages como as Canárias, razão pela qual nunca chegou a ser um destino apetecível
para viagens do segmento mais baixo. A partir do Reino Unido, por exemplo, é pos-
sível comprar 7 dias de férias em self-catering mais avião na Costa Adeje, Maspalomas
ou Lançarote por apenas 180 £. Essa é aliás a razão por que as Ilhas Canárias se
tornaram num destino apetecível para férias de jovens (surfistas, backpackers, viagens
de finalistas, etc.). Já na Madeira, pelo contrário, são os indicadores de qualidade da
oferta turística que fazem a diferença: a Madeira destaca-se por ter uma proporção
de camas em hotéis de 4 e 5 estrelas superior à média nacional, rácios mais elevados
de pessoal ao serviço por cama, e ainda proveitos superiores por cama.

148
5. As ilhas redescobertas: turistas e novos imigrantes

hotel e três modestas pensões. Nas duas últimas décadas, porém, com a
melhoria das acessibilidades externas, sobretudo por via da banalização
do transporte aéreo, e com os avanços tecnológicos na dessalinização
das águas, que permitiram embaratecer bastante os custos desse trata-
mento, Porto Santo pode começar a abrir-se ao turismo, estando a ser
actualmente destino de importantes investimentos nesse sector, com
uma forte componente de capital internacional.
Num estado também mais incipiente de desenvolvimento do que o
das Canárias ou da Madeira, embora a viver um rápido crescimento,
está o turismo em Cabo Verde. De facto, foi já depois da independên-
cia, e mais destacadamente ainda após 1990, com o fim da governação
de orientação marxista, a transição para o sistema democrático multi-
partidarista e a liberalização económica, que se assistiu ao take off do
turismo no arquipélago. Claro que já havia infra-estruturas turísticas
em Cabo Verde antes de 1990, porém foi só na última década do século,
na sequência das referidas alterações políticas, que o turismo passou a
ser equacionado pelas autoridades como um instrumento crucial para
o desenvolvimento do país, e que se lançaram os primeiros pacotes
de medidas para a sua promoção. Em resultado destas medidas, que
combinaram investimentos públicos directos, medidas de estímulo ao
empreendedorismo interno, e grandes facilidades para o investimento
estrangeiro, a oferta hoteleira do país subiu para cerca de 12.000 camas
e a procura aumentou, entre 1990 e 2000, de menos de 25.000 turistas
por ano para mais de 83.000, continuando depois sempre em crescendo
até atingir cerca de 333.500 turistas em 2008, a que corresponderam 1,8
milhões de dormidas (23% produzidas por turistas britânicos, 19% por
italianos e 15% por portugueses)20.
Mesmo tratando-se de números de procura e de oferta muito inferio-
res aos das Canárias ou da Madeira, a verdade é que para a economia
cabo-verdiana estes valores não deixam de significar bastante. O turismo
representa actualmente à volta de 21% do PIB e é o principal destino do
investimento directo estrangeiro no país21. As assimetrias entre as ilhas
são todavia grandes. Uma ilha apenas – Sal – concentra mais de metade

20
Os números que aqui se citam são os fornecidos pela Câmara de Comércio, Indústria
e Turismo Portugal-Cabo Verde, acessíveis no URL: <http://portugalcaboverde.
com/>.
21
A fonte destes dados é a anteriormente citada.

149
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

da oferta hoteleira do arquipélago e cerca de 70% das dormidas que os


turistas realizam22. O restante da procura distribui-se praticamente por
três outras ilhas apenas: Boavista, Santiago e São Vicente (respectiva-
mente, 12,6%, 10,2% e 5,5% das dormidas, em 2006). Significa isto, em
resumo, que há ilhas fortemente turistizadas, algumas quase até num
regime de «mono-especialização», e outras que pelo contrário permane-
cem num estado de relativa «virgindade», sendo apenas visitadas por
turistas com maior sentido de aventura e de descoberta, ou então por
turistas integrados em programas de férias de circuito, que envolvem
passagens pelas várias ilhas, mas muito breves.
Se a incidência do turismo em Santiago e em São Vicente está asso-
ciado a uma procura mais eclética e de vocação urbana, que na maior
parte dos casos envolve motivos combinados de negócio e de lazer, no
Sal e na Boavista essa procura está focalizada nas férias de sol e mar,
apenas marginalmente complementada por produtos conexos, como o
turismo desportivo (surf e windsurf; mergulho; pesca desportiva; etc.)
ou o turismo natureza (observação da fauna marinha, sobretudo). Sal e
Boavista, na verdade, pouco mais têm a oferecer que isso. O facto de se
tratarem dos principais destinos de turismo no arquipélago mostra até
que ponto vai a especialização de Cabo Verde neste tipo de oferta. Mas,
ao mesmo tempo, mostra também como o turismo é capaz de inverter
equilíbrios e relações de força antigas entre territórios. Algumas das ilhas
que historicamente sempre estiveram entre as menos prósperas e com
menor capacidade de retenção de gente, passaram a estar entretanto,
graças ao turismo, entre as mais atractivas. Sal concretamente, que foi
das últimas ilhas cabo-verdianas a ser povoada (apenas no segundo
quartel do séc. XIX23), e que por meados do séc. XX permanecia quase
insignificante em gente e em funções, foi a que maior aumento demo-

22
Em 2006, os estabelecimentos hoteleiros do Sal receberam 59,6% dos hóspedes regis-
tados em Cabo Verde, cabendo-lhes 69,1% das dormidas (INE-CV).
23
O povoamento humano numa base permanente só se fez na ilha do Sal depois de
1830, com o início da exploração «industrial» dos recursos salíferos, sobretudo para
exportação para a América do Norte e para o Brasil. Com isso, a ilha transformou-
se por algum tempo numa espécie de grande mina ao ar livre, chegando a acolher
milhar e meio de habitantes por meados do séc. XIX, na sua maioria homens, e quase
todos ligados à actividade extractiva. Mas a ilha não tinha outra produção senão o
sal, tudo o que era preciso à vida humana vinha de fora, desde a água, aos alimen-
tos e ao vestuário, e isso explica que a vulnerabilidade às crises fosse grande e que,
portanto, não se tivesse prolongado por muito tempo esse período de prosperidade.

150
5. As ilhas redescobertas: turistas e novos imigrantes

gráfico registou nos dois últimos decénios e uma das que observou
progressos mais notáveis nos indicadores socioeconómicos, e tudo por
causa dos investimentos e das novas oportunidades de emprego geradas
pelo turismo.
Não deixa de ser irónico que as ilhas rasas, as mais «azaradas» de Cabo
Verde no passado por causa das suas condições naturais, pareçam ser
hoje, precisamente pelas mesmas razões, as mais bafejadas pela sorte.
Sal e Boavista, graças aos seus extensos litorais de areia branca, têm sido
até agora as privilegiadas quer pelos investidores privados, quer pelas
próprias autoridades. Maio também tem vindo a ser objecto de uma
crescente atenção. Aliás, um dos projectos de desenvolvimento mais
ambiciosos que Cabo Verde tem em curso relaciona-se justamente com
o turismo na Boavista e no Maio, para o qual foi criada uma sociedade
de capitais públicos responsável pela gestão de quase 7.000 hectares
distribuídos entre as duas ilhas24. Das três ilhas, contudo, o Sal foi a que
mais se antecipou nesse caminho por ter beneficiado da localização do
primeiro aeroporto internacional do arquipélago. A construção desse
aeroporto remonta aos finais dos anos 30 e, confirmando uma vez mais a
estreita ligação histórica de Itália a Cabo Verde (que afinal podemos fazer
recuar a António da Noli…), deveu-se a capitais italianos. A intenção
era fazer da ilha um ponto de apoio ao correio aéreo entre a Itália e a
diáspora italiana na América do Sul. Mas o eclodir da II Guerra Mundial
não chegou a permitir que essa missão se cumprisse. O aeroporto fez-se,
mas permaneceu pouco utilizado, até que por fim nos anos 60, já em
posse das autoridades portuguesas, passou a funcionar como aeroporto

24
A Sociedade de Desenvolvimento Turístico das Ilhas da Boavista e Maio foi criada
com o objectivo de assegurar a gestão e administração das «zonas de desenvolvi-
mento turístico integrado» (ZDTI) daquelas duas ilhas. A instituição da figura das
ZTDI aparece fundamentada pela necessidade de assegurar um desenvolvimento
turístico sustentável em Cabo Verde. Na verdade, as ZTDI acabam por funcionar
como «enclaves», ao surgirem regidas por lógicas e critérios próprios de ocupação e
organização do espaço, muitas vezes em tudo diversos dos territórios envolventes.
As áreas designadas como ZTDI ficam exceptuadas da observância das normativas
gerais e dos procedimentos administrativos vulgares no licenciamento de novas
obras. Em contrapartida, estão obrigadas a produzir os seus planos directores espe-
cíficos, com cenários e metas económicas, propostas de desenho urbano, e medidas
de conservação do ambiente. No caso concreto das Ilhas da Boavista e Maio, o plano
aponta para a criação de 60.000 postos de trabalho num horizonte de 15 anos, dos
quais, directos, serão 14.300 na Boavista e 4.300 no Maio.

151
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

de apoio nas ligações aéreas da metrópole às colónias africanas, o que


o valorizou e, indirectamente, valorizou a ilha.
Viajar hoje de avião para Cabo Verde, Madeira ou Açores é, em termos
relativos, e mesmo, nalguns casos, em termos absolutos, mais barato
do que era há cinco, dez ou quinze anos. Por surpreendente que isso
pareça, é um facto. Essa redução dos preços deveu-se não só a inovações
tecnológicas nas aeronaves que permitiram reduzir os consumos por
passageiro transportado e unidade de distância percorrida, mas também
a um outro vasto conjunto de mudanças ocorridas quer na organização
do trabalho quer ao nível da regulação (liberalização do espaço aéreo,
por exemplo) que vieram concorrer no mesmo sentido, permitindo
reduzir os custos de operação das companhias aéreas.
O «turismo de massas», com as suas propostas de férias estandardi-
zadas, organizadas numa lógica de economia de escala e de integração
em pacote, foi a forma que o mercado encontrou para garantir um acesso
facilitado ao turismo no passado, «democratizando-o». Hoje, graças não
só à maior competitividade do transporte aéreo, mas também à muito
maior flexibilidade e autonomia na organização de viagens permitidas
pelas TIC, é possível os turistas optarem, a preços muito mais comportá-
veis que no passado, por férias independentes, «temáticas», diferenciadas
e diferenciadoras, o que veio abrir caminho ao florescimento de novos
produtos turísticos, «alternativos», ou enquadráveis nos designados
«turismos de nicho»25.
O crescimento dos «turismos alternativos» abre possibilidades novas
às Ilhas Atlântidas, como demonstra desde logo o caso dos Açores. Este
arquipélago tem sido um dos grandes, senão o principal beneficiário
destas tendências novas da procura, que rejeitam os destinos madu-
ros, com as suas ofertas padronizadas e convencionais, e que a isso

25
O conceito de «turismo alternativo» define-se por oposição ao «turismo de massas»
convencional e pretende descrever novos produtos e actividades que respondem a
perfis turísticos mais alocêntricos, a maiores preocupações com a autenticidade das
experiências e dos lugares turísticos, e a formas de viagem menos penetradas por
relações comerciais, mais independentes, mais respeitadoras das culturas locais, e
com uma imbricação mais plena e difusa na vida das comunidades, como se explica
em D. Weaver (2006, 38 e sgg.). Os «turismos de nicho», que correspondem a formas
de turismo motivadas por temas particulares, não têm de corresponder exactamente
a um «turismo alternativo» (podem usar, por exemplo, as facilidades de viagem e de
alojamento do «turismo de massas» convencional), mas integram-se neste na maior
parte dos casos.

152
5. As ilhas redescobertas: turistas e novos imigrantes

preferem destinos novos, capazes de propiciarem experiências mais


intensas de contacto com a natureza e com as idiossincrasias locais.
Os Açores inscrevem-se muito neste espírito e isso está a permitir-lhes
tirarem benefício do facto de nunca terem conhecido no passado um
«turismo de massas». Tendo podido manter devido a isso um cunho
mais «virgem» e «autêntico», as ilhas estão capacitadas para se afirma-
rem como destino de qualidade excepcional para todas essas procuras
«alternativas», ligadas mais ao turismo de natureza, ao turismo activo,
ou então ao turismo rural26. Essa é aliás a razão que faz dos Açores um
destino claramente emergente neste início do séc. XXI, com uma oferta
ligada a actividades como o whalewatching e o birdwatching, o trekking e
a escalada, o mergulho e a caça submarina, o turismo rural e o turismo
de habitação: as dormidas aumentaram nos Açores cerca de 40% só
entre 2000 e 200727, e muito interessante ainda é verificar que toda esta
procura se tem apoiado numa infra-estrutura bastante mais leve e difusa
que a convencional, dada a presença forte que as unidades TER têm na
estrutura de oferta do arquipélago.

Os novos imigrantes: as Ilhas Atlântidas como horizontes de sonho

O desenvolvimento do turismo nos últimos decénios teve como efeito


não só que se transformassem as condições materiais de vida nas Ilhas
Atlântidas, mas também a forma como elas são vistas e representadas,
intensificando-se nas imagens mentais que delas se fazem uma certa
dimensão idílica, como espaços de sonho e de projecção de fantasias. É
aliás em grande medida por isso que nos últimos decénios se tem assis-
tido também à chegada de novos habitantes à região, num processo que
representa uma espécie de redescoberta das ilhas e ao mesmo tempo
26
A National Geographical Traveler publicou em 2006 (número de Novembro/Dezembro)
um ranking dos 111 destinos insulares do mundo melhor preservados e com mais
interesse para o ecoturismo, com base na opinião de um painel de 522 especialistas
de diversos países do mundo (jornalistas, fotógrafos, ecologistas, geógrafos, etc.). Os
Açores apareciam nesse ranking em segundo lugar, apenas atrás das dinamarquesas
Feroe. Reside nisto uma prova muito evidente do que aqui se está a dizer acerca do
potencial dos Açores para uma vasta gama de turismos «alternativos», mais «verdes»
e com um maior sentido de aventura e descoberta.
27
Os números de base combinam dados provenientes do INE e do Turismo de Portugal
(TP) e incluem as dormidas na hotelaria e no turismo em espaço rural (TER).

153
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

de confirmação da sua focalidade e da sua vocação para a confluência


de culturas.
Nestes novos imigrantes encontram-se dois grupos bastante diversos.
De um lado, cidadãos sobretudo da UE, gente vinda dos países mais
desenvolvidos da Europa do Norte e Ocidental, que chega integrada
em novas lógicas migratórias que de certa forma reinventam a tradição
da vilegiatura e do climatismo, ou que então têm que ver com fanta-
sias ligadas ao imaginário das ilhas e a um escapismo pós-materialista
que se concretiza em projectos de vida «alternativos» percebidos como
mais «naturais», ou mais simples, ou mais autênticos. Do outro lado,
imigrantes laborais atraídos pelas oportunidades criadas pelo cresci-
mento económico que todos os quatro arquipélagos, de uma forma ou
de outra, têm observado.
Em toda a Macaronésia, as Ilhas Canárias, já por causa da sua
dimensão, já por causa da sua mais forte e precoce turistização, são de
longe o arquipélago onde a presença de população estrangeira é maior.
Em 2001, recenseados, havia a residir nas ilhas 97.840 estrangeiros, ou
seja, o equivalente a 5,8% da população residente. Aproximadamente
metade – 48.095 pessoas – correspondia a cidadãos europeus, sobretudo
alemães (15.992 indivíduos) e britânicos (11.690)28. A maior parte eram
idosos aposentados atraídos pela amenidade subtropical das ilhas, os
dias luminosos (mesmo no Inverno), o mar, e por um custo de vida
apesar de tudo mais baixo que o das suas terras de origem. Resultava
portanto daquilo que na literatura da especialidade é designado de
«migração de reforma» (retirement migration). Entre essa população que
havia decidido «insularizar-se», contudo, havia também gente em idade
activa, pessoas que a mais das vezes tinham chegado primeiro às ilhas
como turistas, mas que animados pela possibilidade de um estilo de vida
diferente num ambiente que ao longo de todo o ano sugere férias (onde
se pode ir à praia, fazer surf, caça submarina), acabaram por decidir
ficar, empenhando economias e sonhos em pequenos negócios – coisas
variadas, como bares ou restaurantes de praia, agências imobiliárias e
rent a car, empresas de animação turística (escolas de mergulho, aluguer
de barcos, etc.), entre outras.
Depois dos europeus, os cidadãos centro e sul-americanos represen-
tam as maiores comunidades estrangeiras residentes nas Canárias. A

28
Os dados agora citados e seguintes são do ISTAC.

154
5. As ilhas redescobertas: turistas e novos imigrantes

ligação histórica a essa região explica a forte presença de imigrantes. No


recenseamento de 2001, eram 32.528 pessoas, provenientes sobretudo
da Colômbia, da Venezuela e de Cuba. Era o resultado de um refluxo
da velha corrente de trabalhadores transatlântica, que tantas famílias
canarinas levara no passado para o Caribe, e que agora fazia o caminho
inverso, trazendo gente atraída pela novas oportunidades de emprego
criadas nos sectores turístico e imobiliário das Canárias (construção
civil, hotelaria, restauração, serviços de limpeza, etc.). Proveniente dos
vizinhos Marrocos e Mauritânia, por fim, havia também recenseada uma
população de cerca de 7.300 pessoas.
A afirmação das Canárias como região de destino de emigração
reforçou-se nos últimos anos bastante sobretudo entre as populações da
África Ocidental. A emigração ilegal com origem na África subsariana é
hoje um facto essencial a ter em conta não apenas na análise da demo-
grafia dos vários países envolvidos (países de origem, atravessamento
e de destino), mas também de toda a geopolítica do Mediterrâneo e do
Atlântico Oriental, e até da sua economia. Uma reportagem numa edição
especial da revista Visão dedicada a África em Dezembro de 2007 mos-
trava que o negócio da emigração ilegal é hoje uma das grandes fontes
de rendimento para as populações das regiões desérticas e sub-desérticas
do norte de África, onde funciona como uma espécie de renascimento
da «economia caravaneira». O tráfico de emigrantes ilegais implica que
se assegure o transporte, o combustível, o fornecimento de alimentos e
de água no decurso da viagem, e o pagamento de subornos e extorsões
nos postos de controlo ao longo do caminho. Só no Níger, segundo dizia
a referida reportagem, estima-se que ascendam a 2 milhões de euros os
rendimentos das extorsões efectuados por mês nos postos de controlo.
Essa emigração clandestina de África para a UE segue várias rotas.
As mais duras são as que cruzam o Sara pelo interior, através do Níger,
da Argélia e da Líbia, em direcção aos portos do Mediterrâneo. Muito
mais procuradas são as que preferem o percurso pela África Ocidental,
através do Burquina-Faso e do Mali, ou do Senegal (para os fluxos que
são gerados nas Guinés, Serra Leoa e Libéria), e que depois sobem ao
longo da costa pela Mauritânia e o Sara Ocidental. Esta rota deriva na
Mauritânia e no Sara Ocidental em dois ramos, um que segue por via
terrestre para Marrocos, para tentar finalmente a travessia do Mediter-
râneo e chegar às costas do sul de Espanha, e outro que prefere a via
marítima, lançando-se em embarcações frágeis de madeira (pirogas,

155
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

lanchas, cayucos, etc.) em direcção às Ilhas Canárias. Por vezes, em


pequenas embarcações de 25 a 30 m, amontoam-se 70, 80, ou até mais
de uma centena de pessoas, sobretudo homens e rapazes, sem comida
nem água, expostos ao sol e ao vento, para uma travessia que pode
durar de três a quinze dias, consoante se sai do Sara Ocidental ou do
Senegal. A proximidade a que as Canárias estão da costa africana tem
feito do arquipélago, desde meados dos anos 90, um destino cada vez
mais apetecido para estes movimentos de gente desapossada, que o
desespero extremo empurra para a aventura. Só em 2006 terão chegado
por esta via ao arquipélago cerca de 32.000 imigrantes clandestinos,
segundo os números oficiais. Alguns milhares morrem anualmente no
mar, por afogamento, fome e sede ou hipotermia. A maior parte dos
imigrantes que consegue chegar às costas de Tenerife, Forteventura e
Lançarote é, contudo, detectada pelas autoridades e levada para «campos
de detenção temporária» onde permanece até que possa ser repatriada,
nunca chegando portanto a concretizar o seu sonho de uma vida mais
próspera em solo europeu29.
Nos arquipélagos da Madeira e dos Açores não se vive nada de com-
parável ao que sucede nas Canárias. As ilhas portuguesas, por causa da
sua muito maior distância da costa africana, têm conseguido escapar a
estes fenómenos de imigração ilegal massiva e feita em moldes muito
precários. A presença de população estrangeira é aliás, tanto em termos
absolutos como relativos, muito inferior à das Ilhas Canárias, apesar de
se encontrar também aqui em expansão. Em 2001, com autorização ofi-
cial de residência, havia 2.838 pessoas estrangeiras na Madeira, e 2.596
nos Açores30. Em 2007, eram já 6.959 pessoas naquele primeiro arqui-
pélago, e 4.692 nos Açores, o que correspondia a um crescimento entre
aqueles dois anos, respectivamente, de 145% e 81%. Este crescimento

29
De 7 a 10 de Junho de 2006, esteve nas Canárias uma delegação do Parlamento Euro-
peu (Comissão das Liberdades Cívicas, Justiça e Assuntos Europeus) encarregada de
analisar o problema da imigração clandestina no arquipélago e a situação em que se
encontravam os imigrantes detidos nos «campos de detenção temporária». O relatório
da missão, publicado oficialmente em 6 de Julho de 2006, com Jean Lambert como
relatora, é um documento impressionante e ao mesmo tempo muito esclarecedor
sobre a forma como se processa a imigração clandestina para as Canárias. O relató-
rio pode ser lido no URL: <http://www.europarl.europa.eu/meetdocs/2004_2009/
documents/pv/623/632483/623483pt. pdf>.
30
Os dados foram recolhidos no INE, a partir de informação original do Serviço de
Estrangeiros e Fronteiras.

156
5. As ilhas redescobertas: turistas e novos imigrantes

deveu-se, também neste caso, a um reforço importante da capacidade


de atracção das ilhas sobre as migrações laborais. Na Madeira, depois
dos «imigrantes ricos» da Europa ocidental que procuram a ilha pelas
suas amenidades (e que são os mais numerosos), pesam sobretudo as
comunidades brasileira e ucraniana; a presença de imigrantes africanos
e magrebinos é residual. Já nos Açores, em contrapartida, depois da
comunidade brasileira, que cresceu muito na última década, é a dos
cabo-verdianos que mais se destaca.
Talvez de tudo o mais surpreendente seja, porém, o facto de também
as ilhas de Cabo Verde se terem tornado nos últimos anos num destino de
emigração cada vez mais apetecível, nomeadamente para as populações
da África Ocidental. Os números que circulam na comunicação social
apontam para valores na ordem dos 15.000 imigrantes, maioritariamente
concentrados nas ilhas de Santiago, São Vicente e Sal. O crescimento eco-
nómico de Cabo Verde dos últimos decénios, que permitiu ao arquipélago
guindar-se à categoria dos países de «desenvolvimento intermédio», e
a estabilidade política, são as causas dessa capacidade nova de atracção
que as ilhas parecem estar a exercer sobre as populações «vizinhas» do
Senegal, da Guiné-Bissau, da Guiné-Conacri, da Serra Leoa, da Libéria,
do Gana, do Mali, ou da própria Nigéria. Mas não é só essa a razão.
A imigração clandestina reveste hoje, em toda a fronteira marítima do
sul da Europa, dimensões trágicas, pelas proporções que apresenta e as
condições calamitosas em que decorre. A resposta da UE tem sido o endu-
recimento das acções de vigilância militar no mar. A criação da agência
FRONTEX em 2004, com responsabilidades de coordenação de controlo
das fronteiras externas, abriu caminho à acção conjugada das forças mili-
tares de vários estados-membros da UE. As águas do Mediterrâneo e do
«Atlântico mediterrâneo», sobretudo junto às Canárias, transformaram-se
nos últimos anos, em virtude disso, num espaço fortemente militarizado,
onde aviões e navios de guerra circulam quase em permanência, pers-
crutando as águas à caça de embarcações suspeitas. Reforçou-se além
disso a cooperação com as forças marroquinas no controlo e contenção
desses movimentos. Esse «apertar do cerco» teve como consequência
que as rotas se redesenhassem, passando a fazer-se a saída para o mar
bastante mais a sul, logo do Senegal ou mesmo da Guiné-Conacri, e isso
veio colocar Cabo Verde na rota destas movimentações.
A chegada dessas vagas de imigrantes a um país que, para os parâ-
metros europeus, está longe de poder ser considerado um modelo de

157
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

abundância e de oportunidades, é em si o sinal acabado do desespero


extremo em que essas populações se encontram nos seus países de
origem. Estes novos imigrantes, sobretudo homens, começam a marcar
a paisagem humana de Cabo Verde. A sua actividade decorre maiori-
tariamente no sector informal da economia. Uns arranjam emprego na
construção civil, ou como vigilantes de estaleiros, armazéns, e até de
restaurantes e hotéis, e a sua presença resulta por isso pouco perceptível.
Mas outros entregam-se ao comércio ambulante de bugigangas, óculos
de sol, e artesanato, fazendo circular as suas figuras esguias vestidas de
longos cafetãs de algodão, sobretudo nas áreas com mais turismo, e isso
é algo que não se pode deixar de notar. Nos mercados, outra figura que
passou a marcar presença nos últimos anos é a do costureiro senegalês,
sentado à sua máquina de costura, entre o balouçar de longas peças de
pano penduradas. Não havia tradição disso em Cabo Verde.
Os chineses representam actualmente outra comunidade imigrante
importante no arquipélago. Embora o estabelecimento de relações
diplomáticas e económicas entre os dois países remonte ao período da
descolonização, a chegada em grande número de chineses é um fenómeno
já claramente do séc. XXI, ainda que tendo começado a prenunciar-se
nos anos 90. Embora recente, essa presença de investidores e imigrantes
chineses tem crescido muito rapidamente. Claro que não é o pequeno
mercado interno do arquipélago que interessa prioritariamente à China;
é sim a importância estratégica que Cabo Verde pode ter para a presença
desta enorme economia emergente na África Ocidental. Só assim se
explica, aliás, a opulência da embaixada da China na Praia. Para prosse-
guir esse desejo, a China tem desenvolvido em Cabo Verde uma política
de «cooperação» intensa e particularmente amigável, que inclui, entre
outras acções, a construção directa de algumas infra-estruturas cruciais
para o país, com engenharia, dinheiro e mão-de-obra chinesas. Cabo
Verde percebe esse interesse e vai ao seu encontro, não escondendo a
ambição que tem de se transformar na grande plataforma da marinha
mercante chinesa no Atlântico oriental, um pouco aliás à semelhança do
que as Canárias já representam para a frota pesqueira. A contrapartida
tem sido a abertura do mercado cabo-verdiano aos comerciantes chineses,
que, praticando uma estratégia agressiva de baixas margens de lucro,
conseguiram em pouco tempo uma implantação fortíssima no tecido
comercial, e nalguns casos até uma implantação dominante. As conse-
quências são de avaliação difícil: se é um facto que esta propagação dos

158
5. As ilhas redescobertas: turistas e novos imigrantes

bazares chineses, onde se encontra de tudo e a baixo preço (brinquedos,


roupa e calçado, rádios e outro material electrónico), tem prejudicado
o pequeno investidor cabo-verdiano, não é menos verdade que se lhe
deve também uma nova facilidade no acesso das populações a todo um
enorme conjunto de bens de consumo. Os bazares chineses estão hoje
um pouco por todo o lado, incluindo na Brava, a mais pequena das ilhas
de Cabo Verde, e ademais uma ilha «periférica» (tanto do ponto de vista
geográfico como topológico), onde em parte vieram suprir uma história
antiga de carências no abastecimento da população local em bens de
mercado, incluindo bens banais.
Este papel, como região de destino, que o espaço da Macaronésia
começa a ocupar de novo na geografia das migrações internacionais
representa uma espécie de redescoberta das ilhas e o reafirmar de uma
focalidade que se pode ter julgado, por algum tempo, perdida. Constitui
além disso o confirmar de uma «vocação» antiga das Ilhas Atlântidas
como lugares de confluência de gentes e de encontros de culturas.
Também o papel das ilhas como stepping-stones, ou seja, como «pontes»
na ligação de diferentes partes do mundo, a que aludi antes31, e que é
em grande medida a antítese da própria ideia do isolamento insular, é
algo que hoje começa a tomar de novo um forte sentido. Parte das Ilhas
Atlântidas – as Canárias, concretamente, e em menor escala, Cabo Verde
– foram nos últimos anos integradas nas grandes correntes de emigração
ilegal, de escala transnacional, originárias na África subsariana, e que
usam os grandes «vazios» do deserto e do oceano como superfícies de
circulação. Para muitos desses milhares de homens deserdados que
todos os anos dão às costas das Canárias, o arquipélago não aparece nos
seus projectos migratórios como um destino final, mas sim como um
«trampolim» para um outro horizonte de sonho maior que é o espaço
continental europeu.

31
V. Cap. 2.

159
Epílogo:
a «era informacional» e o futuro da Macaronésia

Pretendi mostrar ao longo das páginas que ficaram para trás que é
injusto e desadequado considerar as ilhas, e em concreto as da Maca-
ronésia, como paradigmas do lugar isolado. A «perificidade» que nor-
malmente se reconhece às regiões insulares, e que no caso das Ilhas
Atlântidas chega inclusive à fórmula superlativa, oficialmente consagrada,
da «ultraperificidade», presta-se a esse equívoco, ao sugerir a ideia de
uma posição remota e marginal, inibidora de hipóteses de interacção
espacial, propiciadora de imobilidade e de imobilismos. A verdade é
que as Ilhas Atlântidas se encontram nos antípodas disso. Há – não
se pode negar – o problema da distância. Depois da grande evolução
registada nas acessibilidades terrestres nos dois últimos séculos, que fez
«encolher» muito as distâncias em contexto continental, as ilhas ficaram
numa situação comparativamente desvantajosa, e isso levou, em muitos
aspectos, ao surgimento de novos factores de marginalização. Creio
porém que terá ficado demonstrado que a marca destes lugares está no
facto de se terem construído e reconstruído ao longo da história sempre
numa base de abertura intensa ao «exterior» e de conexão forte com o
mundo, estando tudo isso bem plasmado nas suas paisagens.
O «sentido global do local» de que falava Doreen Massey (1994, 146
e sgg.) é patente no espaço da Macaronésia e tem que ver directamente
com o que acabei de dizer. Não são apenas as condições específicas de
cada sítio, o ambiente físico e a população que nele está presente, que
modelam as realidades sociais concretas que encontramos nas ilhas des-
tes arquipélagos. No que se refere às Ilhas Atlântidas, Doreen Massey
parece ter total razão. Essa concepção, de que a autora é profundamente
crítica, do lugar como entidade socioterritorial homogénea, «fechada»,
unitária, com um «dentro» e um «fora» bem definidos, e uma identi-

161
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

dade construída sobre a percepção hiperbolizada dos particularismos


locais, revela ser uma abstracção no espaço da Macaronésia. A realidade
observável e vivida é muito diversa disso. Por todo o lado o que temos
são lugares um pouco compósitos e híbridos, construídos de misturas,
sobreposições e fusões, ou seja, com um equilíbrio próprio que repousa na
tensão entre forças provindas ao mesmo tempo de «baixo» e de «cima»,
de «dentro» e de «fora», do «local» e do «global», dado que todos eles
estão imbricados, à sua maneira, e com diferentes intensidades, em
redes que os ligam a outros lugares, a diferentes escalas, e envolvendo
os mais diversos tipos de movimentos.
Se todas as ilhas da Macaronésia apresentam até certo ponto uma
extraversão e permeabilidade que decorrem desta sua inclusão em redes
e da participação em fluxos diversos de mercadorias, pessoas e infor-
mações, a verdade porém é que nem todas elas se encontram de igual
modo integradas nessas redes, quantitativa e qualitativamente falando.
A conectividade das ilhas é variável em cada momento, e tem variado
também ao longo do tempo. Além disso, nem todas integram exacta-
mente os mesmos espaços-rede. Muitas das diferenças que encontramos
na Macaronésia e dão variedade às suas «paisagens», físicas e sociais,
materiais e imateriais, relevam justamente desses distintos padrões de
ligação que os diversos arquipélagos e ilhas foram estabelecendo ao
longo do tempo com outros lugares.
Nem todas as ilhas possuem histórias de igual sucesso – verificámos
isso. Por outro lado, ao longo da história, também não foi sempre igual
a sorte das diversas ilhas. As condições variaram no passado e variam
ainda hoje consoante a forma como cada um desses lugares se conseguiu
e consegue conectar e pôr em sintonia com o mundo. Variaram depois
ainda conforme o modo como, em cada momento, esse mesmo mundo
avaliou as circunstâncias concretas de cada ilha e permitiu ou não que se
gerassem condições para a valorização dos seus recursos. Ora, reconhecer
isto implica que se perceba que as ilhas não estão sujeitos a qualquer
tipo de fatalismo. A condição insular não implica condenação inevitá-
vel ao subdesenvolvimento. Até mesmo os problemas que relevam das
«deseconomias de escala», que estão entre os estrangulamentos mais
diagnosticados nas regiões insulares, podem ser compensados (pelo
menos em parte) pelas economias de relação, de que as Ilhas Atlântidas
deram ao longo da história boas provas de saberem gerar e explorar.

162
Epílogo: a «era informacional» e o futuro da Macaronésia

Alterações nos meios de transporte e comunicação foram sempre


momentos de mudança para as ilhas. Umas vezes os espaços insulares
beneficiaram dessas inovações, outras não. Além disso, para as mesmas
inovações, as diversas ilhas reagiram por vezes de maneiras também
diversas. O efeito refractário do local funcionou bastante nesta matéria. A
sorte das ilhas dependeu sempre muito do que as inovações tecnológicas
significaram em termos de ganhos ou perdas de focalidade, e, logo, de
condições de integração no mundo; e isso revestiu sempre uma elevada
dose de indeterminação, já porque as condições concretas das ilhas são
diferentes, já por falarmos quase sempre, no caso dos espaços insulares,
de redes algo fluidas, sem uma existência rígida, pesada, que se traduza
em infra-estruturas físicas que agarrem os movimentos a trajectos fixos
no território e possam com isso ser geradoras de uma grande inércia.
Hoje as Ilhas Atlântidas estão claramente de novo num desses
momentos de mudança, ditada desta vez pela evolução recente das
tecnologias de informação e comunicação (TIC). Manuel Castells (2002-
03), que tem sido dos académicos mais atentos a este fenómeno e que
mais tem procurado reflectir sobre as implicações económicas, sociais,
culturais e políticas de todas estas inovações, considera que estamos
diante de uma revolução análoga à que sucedeu em finais do séc. XVIII
e que levou à emergência da era industrial. Os microprocessadores, a
Internet, as comunicações por satélite, os telefones celulares, tudo isso,
são inovações que representam no presente, nesta nova «era informa-
cional» em que estamos a entrar, algo semelhante ao que o comboio e os
vapores representaram no passado, na era industrial, e a elas ligam-se
mudanças no plano económico, na forma de organização das sociedades
e – obviamente – nas suas espacialidades.
Prever o que a revolução das TIC e a nova «era informacional» vão
significar para as ilhas, e muito particularmente para as Ilhas Atlântidas,
não é fácil. E não é fácil porque há desde logo grande indefinição sobre
os impactes das TIC na organização do espaço geográfico em geral.
Há quem chame mais a atenção para o grande incremento de conecti-
vidade que as TIC produzem, ao permitirem ligar sem fios e com base
em tecnologia relativamente barata muito mais gente e gente com uma
distribuição muito mais difusa no espaço. E há, pelo contrário, quem
insista sobretudo nos riscos da chamada «fenda digital», lembrando que
as TIC podem funcionar elas mesmas como novos factores de exclusão,
produzindo as suas próprias desigualdades ou reforçando desigualda-

163
Distância e Conexão. Insularidade, relações culturais e sentido de lugar no espaço da Macaronésia

des já existentes, uma vez que a integração das populações no novo


espaço-rede que configuram implica que haja recursos, quer na forma
de conhecimentos, quer de equipamentos e infra-estruturas de teleco-
municações, quer de dinheiro para pagar as transacções de informação.
Por mais contraditórias que possam parecer as tendências em jogo,
e por mais cautelosos que queiramos ser relativamente à previsão de
evoluções futuras, parece-me bastante visível que a revolução das TIC
e a nova «era informacional» encerram um vasto potencial de oportu-
nidades para as ilhas. Prende-se isso primeiro que tudo com o referido
incremento de conectividade, que poderá ser especialmente vantajoso
para as ilhas menores, de longe as mais prejudicadas em todo o tempo
em que vigorou o paradigma industrialista, isto é, da sociedade pro-
dutora de mercadorias que emergiu com a Revolução Industrial, com a
sua lógica baseada nas economias de escala. A haver políticas que levem
até esses lugares as necessárias infra-estruturas de telecomunicações e
os serviços que as tornem operativas, e que se capacitem as populações
para o uso destas tecnologias, é evidente que se abre com as TIC um
potencial novo para a inclusão destes lugares no espaço-rede e para a
exploração de novas economias de relação.
O tal «tempo atemporal» de que falava Manuel Castells (2002) e que
via como uma inerência da «era informacional» é outro aspecto que
merece destaque. Esse «tempo atemporal» tem que ver com a quase
instantaneidade com que ocorrem as interacções entre lugares no novo
espaço-rede estruturado nas TIC. Isto significa aquilo a que já se chamou
a «morte da distância» (Cairncross, 1997), ou seja, a anulação do seu
efeito de fricção. E isto não é nada despiciendo para o futuro das ilhas
se pensarmos que tem sido justamente a distância uma das variáveis
constitutivas da sua perificidade. As ilhas que souberem aproveitar as
oportunidades que estão a ser geradas pela revolução das TIC, talvez
consigam em breve começar a rescrever de novo a sua história, e talvez
então também a insularidade, enquanto categoria teórica, precise de
voltar a ser repensada.

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172
Índice

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Nota de abertura: insularidade e nissologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

1. O espaço da Macaronésia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Posição e composição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Afinidades do quadro biofísico e diversidade de ambientes . . . . . . . . . 31

2. Encontros e hibridismos na colonização das ilhas. . . . . . . . . . . . . . . 43


«Descobrimento» e inclusão no mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
O «ciclo açucareiro» e a integração regional dos espaços insulares. . . . 51
Extraversão das economias, confluências e cruzamentos de gentes . . . 57
A aclimatação de espécies exóticas e a «tropicalização» da paisagem . 67

3. Circulação, vida de relação e urbanidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71


Darwin, o caminho-de-ferro e a ideia de insularidade. . . . . . . . . . . . . . . 71
Focalidade insular e vida urbana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
Inovações nos modos de comunicação e
reposicionamento estratégico das ilhas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
Acessibilidades externas e relações com o mundo
na viragem para o séc. XXI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92

4. Êxodos e diásporas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103


A tentação de sair: necessidade ou oportunidade? . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
A formação das diásporas macaronésias: ciclos e destinos . . . . . . . . . . . 112
Redes transnacionais e relações «global-local» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122

5. As ilhas redescobertas: turistas e novos imigrantes . . . . . . . . . . . . . 131


Ilhas, fantasias elísias e escapismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
O climatismo oitocentista e as rivieras atlântidas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
Do «turismo de massas» aos «turismos de nicho»:
reinvenções do idílio insular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
Os novos imigrantes: as Ilhas Atlântidas como horizontes de sonho . . 153

Epílogo: a «era informacional» e o futuro da Macaronésia. . . . . . . . . . 161

Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165

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