Você está na página 1de 2

Pequeno teatro sobre o desespero, de Aline Bei

Ato 1.

Peguei no colo a menina enrolada no cobertor, ela não acordou. nosso trem partiria às
seis, agora 4:30, na mochila pouca roupa e um livro sobre a américa.

Caminhamos até a estação, não era longe, o vento que fazia parecer distante.

A rua de terra. minha bota surrada.

Passei a mão pelo rosto da menina tão gelado.

Apertei o corpinho contra o peito. cantei pra ela uma música do chile que minha mãe
costumava cantar pra mim, uma música que me acalmava toda vez que eu sentia medo
do meu pai batendo nela. minha mãe cantava a música depois que meu pai batia. depois
que meu pai já estava dormindo. hola chiquita, eres un mar. eres tan grande como todo
el mar um cão começou a nos seguir.

Não tenho comida – avisei.

Ele me olhou de volta como se dissesse

Não estou aqui por você.

Segui caminhando, esqueci uma parte da canção. esqueci, meu deus, como era? Mas
isso não chegou a acordar a menina. quando entrássemos na estação tudo ficaria melhor.
mais calmo. sentaremos naqueles bancos onde se sentam os viajantes, sentaremos
igualmente esperando o nosso trem e a vida vai melhorar a partir disso, tenho certeza.
cinco da manhã, um frio cortante. sinto sede e o cachorro já não está, perdi o momento
em que ele se foi. quase sinto saudades, imagine. saudades daquela rabugice.

Avisto a estação.

Estamos chegando, sussurro pra menina. estamos quase lá barulho dos pés pela terra
meu som caminhando o único som e se for ouvir bem fundo o silêncio tem qualquer
coisa da nossa própria respiração. volto a cantar o hino do chile, minha mãezinha
sempre comigo. agora já avisto a porta, estou vendo a porta, sussurro pra menina.

Adentro o lugar, completamente vazio a não ser pelas pessoas que trabalham ali.

Ccompro meu bilhete, estou nervosa.

A menina precisa? não, a atende responde sem me olhar.

Sento, nas cadeiras que tanto imaginei que sentaria, elas são desconfortáveis e alegres,
elas são a promessa de uma nova cidade pra nós cada vez mais perto enquanto o trem
não chega. abro os botões da blusa.

Tento amamentar a menina.

A boca dela não se mexe.

Tudo bem se você não quer mamar agora. você pode mamar quando quiser.

São quase seis.

Finalmente nosso trem aparece. penso por um instante que perdi o bilhete, mas o bilhete
está em cima da minha coxa. 

Entrego pro maquinista. sem bagagem? só a mochila, senhor. Entro. O vagão está
morno e o mundo pela janela ou parte dele, a cidade que não volto nunca mais. sento. O
trem está vazio como tudo. a menina pesa no meu braço e não acorda, vou colocar ela
no banco.

O trem começa a se mover, aqueles barulhos típicos. estou sentada do lado oposto da
vista e é como se eu fizesse duas viagens. pego meu livro sobre a américa e é como se
eu fizesse três.

Leio algumas páginas sobre a terra, sobre a quantidade de terra na américa latina e isso
me dá um pouco de sono. Isso me dá um tipo de sono inédito.
**

Ato 2.

Senhora?
Senhora?

(O maquinista coloca a mão no bebê. Grita pedindo socorro. Cai o pano).

Você também pode gostar