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OS CADERNOS DE AUGUSTO BARATA

(1937 – Pampilhosa da Serra)

divisas

Le talent de bien-être

Ser versus Fazer?

O divino Otium contra a apologia do trabalho.

A condição superior é a da perguiça/meditação. Esta é uma condição


oposta à do trabalho perpétuo e ao vinculo do trabalho a um “Estado”
ou a uma comunidade. Nenhum endividamento perante uma máquina
social-burocrata.

O excesso de trabalho produz necessidades artificiais e uma obcessão


com a produtividade. Sim, a riqueza produz riqueza, mas demasiada
riqueza provoca excessivas assimetrias e mal-estar.

O Talento de fazer apenas o Indispensável ou o aprazívelmente


Inútil.

A razão do trabalho é a emancipação do trabalho. O trabalho procura


a sua auto-dissolução no Paradisíaco.

O trabalho gera a sua própria re-produção, isto é, séries de


simulacros. O Estado é a congruência dos simulacros, desde o
Egipto. O excesso de trabalho traduz-se no monumental, no
mastabismo e nos museus.
O Estado inventa a antinomia trabalho/natureza. O trabalho é o que
nos “liberta” da natureza e o que nos escraviza para mais trabalho e
menos natureza.

O tédio urbano é a incapacidade de viver o òcio entre a vertigem dos


simulacros. Só a substituição tendencialmente apocaliptica dos
simulacros entretem. Durante pouco tempo.

O trabalhador pede eminentes apocalipses permanentes.

O talento de bem-Ser dessimulacriza.


La revolution avec le bon gout

O bom-gosto foi a defesa da aristocracia contra as pretensões da


burguesia no domínio das maneiras.

O bom-gosto passou a ser a defesa da burguesia esclarecida da


burguesia emergente.

O bom-gosto é “modernidade” sem superficialidade nem


“profundidade”.

O Kitsch não é necessáriamente nem o popular nem o religioso mas a


súbita devoção a um canone de simulacros. No fascismo e no
comunismo é a devoção à familia, à comunidade e ao trabalho que
funcionam como estereotipos da dominação. Na religião é o culto
das reliquias. O mau-gosto e a morte andam de mãos-dadas. Os
ornamentos funerários, os ex-votos e as santinhas. Na natureza não
há kitsch.

O Ready-made abre a porta para o mau-gosto. Em arte o Surrealismo


é a cartilha do mau-gosto. Nem tudo no surrealismo é mau. Quase
tudo no surrealismo é masoquismo e voyerismo. A revolução
surrealista é a revolução para o mau-gosto com Trotsky no altar.

Os comunistas e os construtivistas reclamam-se do bom-gosto. Mas


apropriaram-se da inutilidade do bom-gosto para espalharem o terror
do útil. O terror do útil acaba por virar-se contra o útilitarismo
construtivista. À propaganda convêm imagens mais familiares. No
entanto a receita construtivista está-se a converter na imagem de
marca do capitalismo. O design é a quintessencia do consumo. Falso
espartanismo da forma e da funcionalidade.
L’Etat c’est le foie gras

O Estado é a engorda mecanizada (remediada).

O Estado é um Remédio e um Remendo.

O Estado é controlo e trabalho – mas a sua retórica é proteção,


progresso e prosperidade.

O Estado é a Soberania burocrática (Médica e Militar) sobre os


nossos orgãos e a aniquilação da consciência.

O Estado não redestribui a riqueza porque suga grande parte da


riqueza para as forças policiais, a burocracia e a auto-celebração
(propaganda). O que é “investido” no bem-estar públåico é irrisório.

O Estado faz patê com o povo.

A arte espanta, entretêm e recheia a alma do burguês.

A anti-arte é uma iguaria para o burguês que se revolta (de um modo


totalmente burguês) contra a classe a que pertence. A auto-revolta é
uma comédia exquis, ora revigorante ora aviltante. Outras vezes o
burguês apenas se diverte com essas revoltas impotentes, e santifica-
as, e dá-lhes uma legitimidade dentro do Estado. Os futuros museus
hão-de celebrar a auto-comiseração da arte frustrada com a sua
incapacidade de auto-supressão.

A arte de revolta é o fétiche masoquista do capitalista e do tirano –


ao senhor apraz-lhe ser fustigado eróticamente pelo amestrado
chicote do servo quando lhe dão esses apetites – o senhor desfruta
com prazer a ira proletária porque esta é mais degradante que o
servilismo sem consciencia de classe do campesinato.

O senhor também desfruta com um prazer quase intelectual a pseudo


ira proletária das artes revoltadas.

A arte para o povo aumenta o servilismo do povo. A “arte para o


povo” é somente a intenção de haver uma arte que satisfaça
hipotéticamente as massas – o capitalismo é mais experiente nestes
dominios que os sovietes e os fascistas.

No fascismo é a politica que é o supremo entretenimento. A


curiosidade da arte é substituída pela fatalidade da guerra.

A classe operária só tem, segundo os comunistas, a força do seu


trabalho. Prefere o bordel à opera ou ao que quer que seja. Os
designios da arte são-lhe alheios. A sua capacidade produtiva (de
objectos e prole) raramente se destina ao seu usofruto. Mais filhos =
mais carne para canhão.

Não há nada genuinamente proletário senão o horror do trabalho e a


sordidez dos suburbios.

Tudo o que produz é concebido por burgueses, ou por uma


mentalidade burguesa, mesmo nas fábricas soviéticas.

A dialética operário/burguês tornará a propriedade proletária e o


gosto suburbano.

O prazer burguês dará lugar ao consumo imaterializante e a um


híbrido que combina o òdio proletário com o desprezo burguês. Essa
classe será a vitíma perpétua da sua lógica e encontrará vitímas
voluntárias para os seus rituais de auto-destruição e entretenimento.
Notas sobre o bom-gosto

O bom-gosto é a minha permutação (o meu êthos metamórfico) – é a


perdição a que me permito.

O bom-gosto é uma intolerancia provisória, uma severidade, uma


(in)disciplina, um suave capricho despótico – pessoal, distinto,
soberano.

O bom-gosto nasce de uma pulsão hierarquizante, uma vez que


pressupõe todos os outros gostos como inferiores e degradantes – é
uma evasão do desprezo aristocrático e burguês, é um refugio e
distanciamenro do kitsch sempre emergente.

O kitsch é ignorância, incultura, pressa, reconversão, religiosidade


degradada.

O kitsch compete ferozmente. È promessa da ausência total de


critérios, mascarado de libertação – o kitsch torna-se claro na sua
adopção quer pelos totalitarismos politicos quer pelas seitas
religiosas – onde nos cheira a kitsch a submissão é o designio. Seja
na devoção dos santinhos, seja no mobiliário de “estilo”.

O bom-gosto é exuberante. Não é necessáriamente despojado ou


anti-ornamental. Há que distinguir o bom do mau ornamento. Isto
não é maniqueísmo!

A Forma recusa-se a seguir funções – é o que distingue o


Suprematismo do Construtivismo. As funções é que perseguem a
forma: tentam instrumentalizá-la para designios adicionais onde a
forma perde os seus poderes emancipadores.

A Forma é anti-platónica e híbrida (sincrética): não é “perfeita”, não


é nenhum protótipo, não é um modelo, mas sim uma despoletadora
de energias.

A Forma é superabundância, riquesa auto-suficiente – gera de si


mesmo ou transforma unilateralmente.
O bom-gosto é o anti-esteticismo, recusa de reverência, de adoração
acéfala, de submissão ao “objecto” – a Forma é “Absoluto”,
Plenitude, Transutopia, paradisiaco no paraíso.

O bom-gosto é algo burguês sem ser veículo de corrupção – é a mais


valia sem mais mais-valias. É a emancipação do lucro.

O bom-gosto assenta sobre um vazio total, num desertamento de


ideias e sensações – materialismo e nominalismo – a matéria é o que
é metamórfico e as coisas e os seus supérfluos nomes são aquilo a
que a cada momento dão entender diversamente.

Materialismo+”Abstração” – mas nunca ascetismo: o bom-gosto não


é um esvaziamento ascético, mas a acidez anti-ascética e hiper-social
(ver o sobrinho de Rameau).

1. A “Abstração” é uma forma mágica de concentrar a


energia da natureza – é o diagrama instrumental da physis.
2. A “Abstracção” coexiste harmoniosamente com a
Iconofilia e a propagação das energias e poderes icónicos.
3. A “Abstracção” não procura o seu fim ou o fim da arte,
mas o eterno inacabamento e o progresso mimético.
4. A “Abstracção” é variação, embora o número de formas
variantes seja limitado.

A arte é o que intensifica a vida, não o que se lhe opõe, o que a


complementa e o que a vinga. A “abstracção” artistica é o que na arte
torna claro esse papel de intensificação. Quando nos referimos à
“abstracção” não a entendemos como Kandinsky, Mondrian e tantos
outros – não falamos de uma estrutura subjacente à natureza ou a
emancipação da representação ou algo parecido – não temos o horror
ao “campo” nem aos “ícones”, nem queremos pôr pontos finais ou
fundar ambiciosas utopias. Utilizamos o termo “abstracção” por
afinidade formal porque usamos formas que nascem de sequências
geométricas. O que não é novo. O ornamento geométrico sempre o
fez, tal como os diagramas ciêntificos que são uma maneira de
ilustrar relações de forças. A arte moderna tem tendência a negar a
sua relação filial com o ornamento numa atitude parricída.

(que é feito dos bons velhos deuses do primeiro modernismo? –


Stirner, Nietzsche, Whitman: vitalismo lirico e disponibilidade
egoista?)
Deve-se, como tal, conhecer muitíssimo bem a anatomia do bom-
gosto. Há que amar simultaqneamente as vísceras e a estrutura,
quanto a pura exterioridade.

O bom-gosto é o simulacro de uma utilidade que deixou de ter


sentido. É a aura dessa perca de sentido – o seu fantasma, o seu rasto
que em paradoxo se mostra, que está ali, que persiste, que se
intromete na realidade com o mais cínico realismo, com a mais cruel
crueza.

O drama do bom-gosto é o tudo já ter sido feito. Pior – é o tudo já ter


sido refeito – estamos condenados à eterna repetição do “perfeito”?
Não! Estamos a ser constantemente solicitados pela “variação”. E
pelo pecado especioso da imperfeição de outras fraquesas. A
humildade das fraquesas aproxima-nos mais do absoluto do que o
poder hipócrita da perfeição.

As formas ditas perfeitas, como os sólidos pitagóricos ou os


rectângulos de ouro são referências abjectas. São boas para
comunistas, fascistas e sociedades secreta.

As formas imperfeitas e as proporções desviantes têm outro encanto:


o quadrado negro de Malevich é o antídoto do pseudo-enigmático
das pirâmides. O canónico é parte da investigação como Força e
pessoalização. Nâo se trata de exaltar a dissimetria mas antes de
entender a intrusão de uma lógica iluminista e “rocaille” no que
parece um paradigma modernista.

O quadrado introduz um ponto indispensável na figuração tradicional


do divino – na comédia da “santíssima trindade” surgiu o Diabo, ou a
“transgressão” como elemento de humanisação e de escoamento de
energias reprimidas. Baudelaire teorizou e deu vida a este sabor da
“mortalidade” – quanto mais mortal mais “absoluto”.

O bom-gosto é como tal uma persistência do feito e do refeito sobre


o que se está a fazer, sendo o que se está a fazer um mal-entendido e
um estado de ignorância relativamente ao que já foi feito. Ao
admitirmos a nossa ignorância não nos desembaraçamos do
entusiasmo.

Assim como o feito se refaz no refeito é inutil pensar que há algo por
fazer. Quero com isto dizer que é absurdo pensar que há algo capaz
de se expandir para além deste círculo vícioso. Como absurdo que é,
e lógicamente, como resistência do bom-gosto, este círculo expande-
se como vício.

O por fazer, o devir deste culto que é a arte, radicaliza-se na


expansão de uma viciosidade, para além de todas as mortes, para
além da morte incessante da arte, para além da incessante arte de
morrer.

Devir do vício. Devir do incessante. Devir da morte-vida. Devir do


que escapa à morte-vida. Devir do remanescente e do renascente.

Ou – devir do absurdo, do inútil, do supérfluo, do vazio. Devir de


uma racionalidade igualmente inútil que acompanha com razões
geométricas a inutilidade essencial e nutritiva.

Em suma – DEVIR DO CAPRICHO DO INÚTIL.

O que me faz insistir numa das minhas divisas – O POVO AMA AS


DITADURAS PORQUE PARECEM ÚTEIS!

Outras vezes ama a utilidade por ser ditatorial.

Ser ditador é ser um escravo embriagado do inutil, ser o seu mais


humilde servo, ser o cão dos seus caprichos.

O despotismo do inutil surge sob a égide de uma impossivel


racionalidade.

O inutil é o último grau de uma racionalidade implacável.

O inutil é o fim da escadaria da racionalidade, do colossal zigurat da


racionalidade.

Do topo desse zigurat as razões parecem mesquinhas, meros suportes


de um sonho insensato.

A medida das medidas é a Desmesura.

A Desmesura não é de forma alguma uma ausência de medida, uma


sem-medida, um monstro brutal que introduz a caoticidade.
A medida das medidas é sómente a medida junto da qual todas as
medidas são pequenas. Exactamente a medida com a qual todas as
medidas têm de se medir.

A Desmesura é o que medita e premedita a excelência do Inutil – a


sua hierarquia.

O artista não pode pensar sinceramente senão a partir da


maximização dos pontos de vista, isto é, do vortex da insensatez
divina, onde o Nomos se confunde com a Hybris.

A sensatez filosófica não lhe convém, e muito menos a vocação


política. Toda a arte é política precisamente naquilo que não diz
respeito aos politicos – intensifica os actos, as paixões e a aspiração
ao Absoluto.

O comunismo é a redução ao útil. Pior, é a negação das hierarquias e


como tal a supressão da racionalidade – uma concessão aos idolos,
ao fanatismo, à fé, à devoção ao timoneiro politico de ocasião. Todos
os apetrechos da religião trabalham para satisfazer os caprichos
revolucionários do Supremo Dirigente da última fornada.

O sonho do comunismo é a redução ao sempre-pequeno, à mediania


dos sonhos, à mediocridade, à mesquinhez, ao esforço eterno, ao
súor, ao trabalho.

O comunismo faz da terrivel condição de expulsão do paraíso o seu


tenebroso paraíso.

Pergunto, amigos, a quem pode interessar a mediocridade? – aos


comunistas!

A Glória é sempre algo que é pouco. A aparência da Glória é uma


virtude. O ocultamento da Glória é a virtude suprema. A propaganda
da Glória deixa que a Glória seja engulida pela propaganda

Por isso mesmo a implacável consciência exige a ocultação da glória.

Quando a Glória está enfraquecida surge vem a aparência da Glória.


Esta degrada-se em propaganda. E com a propaganda surgem os
falsificadores da Glória e os seus demagogos (actualmente esse anão
da politica e do pensamento que é Hitler).
Finalmente vêm aqueles que dizem possuir a Glória – fantasmas de
uma decadência, de um miserabilismo de expressão, de uma pobreza
de Alma.

Os que dizem possuir a Glória são como cães que ladram quando
vêem um estranho. No ladrar não há eternidade. Os estranhos
afastam-se.

O verdadeiro poder parece e é Inútil. Por isso ele é poderoso.

O falso poder fala do útil. Por isso ele é venenoso. Isto cheira a
chinesice, mas é seco.

O que tem o poder cria os modelos. Os que são efeitos do poder


executam os simulacros. Os que são livres livram-se quer dos
modelos quer dos simulacros.

O Inutil trai-se constantemente a si mesmo e não necessita sequer de


se afirmar através da fidelidade à verdade. A verdade é esse trair-se.
MANUAL DE TRAIÇÕES

traição primeira

Só na apresentação a verdade tem lugar.


Só no ocultamento da apresentação a verdade tem lugar.

traição segunda

Um edificio tem um interior e um exterior.


Uma pintura é uma falsificação e um segredo.

traição terceira

Uma obra de arte é que nela vai dito.

UMA BOA OBRA DE ARTE É A QUE TRAI


CONSTANTEMENTE O QUE NELA VAI DITO.

O que o artista sabe é muito mais não só do que diz, mas de tudo o
que pode dar a entender. Ser espectador é saber deixar-se ser traído.

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