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HINOS & AFINS

HINOS E AFINS

Logo logo, eu te invoco, ó voz da claridade


que o melhor é avançar com os pés no canto
mesmo coxeando
mesmo trauteando
fiapos de melodias e melopeias esfareladas
na devoradora invocação de deuses —
os que se arranjam e estão à mão de semear,
e os que se desanranjam
e ficam inclinados tão inclinados
em obscuras bandas
em chamas de ignoto
em bordejante obscuridade.

Tiraram-te a mordaça ó cantor


para cantares a noite e o embalo dos seus seios
e ficaste especado com a boca embuchada de liberdade
e abarrotaram-na de um falso vazio
para que emudecesses na transparência
lobo longe das urzes e da fogosa serrania —
HINOS & AFINS

e agora
que ainda não te amordaçaram de novo
canta ó bicho-do-mato
HINOS & AFINS

Nomeie-se seguidamente a Terra,


profeta-mãe a pródiga a acre
a que nos dá as voltas
a que faz revirar os olhos
e nos segreda dulcíssimas vozes
na melancolia das tardes
nos espantos e espasmos das noites
nas luzes coadas nas esquinas
nas porções de penumbra amarelada
ventre das ângustias dos exilados
frutificando no deslaçar e relaçar das coisas
radiação fundo amoroso insone amante
que nos passa a mão pela nuca durante a trovoada
abundância ignota da obscuridade do mundo
gerando em segredo na calmaria subterrânea
esverdecimentos fartos frutos
criaturas que serão luz e lutos.
HINOS & AFINS

E de seguida veio a Dama Justiceira


a que põe os pratos na mesa e na balança
a que nos convida a rir e a aninhar no ritmo da dança
para que o Equilíbrio ressoe em proporções harmoniosas
em todo visível e oculto
vogais balançando no medi-las
rimas a descartar
ante a evidência e a impaciência
vozes dos outros que tombam caretas na glote
ruminações de trovejamentos
coriscos arrotando
tira daqui põe acolá dobra-a!
inusitados ecos do tinir da bigorna
matemáticos que alçam números nas estrofes
que mimam os talheres que convidam a boca
ao garfo à colher ao pão à sopa
transparência do equilíbrio
imo com tenaz na mão
sino serpe
harpa serra
enigma crucificado empapado papiro
HINOS & AFINS

replicando caças de signos


ó Justiceira
dá-me a medida da plenitude na voz
HINOS & AFINS

Quem é o quem cujo odor nos faz ser cheirados


para o assim não seja um puro assado
mas sim o assentimento do assentar do momento?
HINOS & AFINS

És a Mãe novelo de contos


a possível a desejável
sem assombroso prestígio a discreta
a que se diz na brutalidade oracular —
Memória enrolando e desenrolando as ondas
ó tu a que nos pões a voz voraz
nas bandejas do pensamento
a que aparelha os versos no sexo das Inspiradoras
a que faz nascer as estátuas de sopros ocultos nas pedras
a que coze no amontoado dos muros as imagens
dos animais que arrastam arados
dos varadores de gretas na terra
dos heróis insones de armas e insolências

és a que consente em ser ferida


para que o seu sangue verta
em hinos bebíveis por sua prole
para que o belo abrace em signo e taça.
HINOS & AFINS

Então em sua graça sua galgante graça


sentado lá nos altos cimos nas brumosas alturas
nos cumes brilhantes inacessíveis imensuráveis
vislumbra-se uma criança que erra:
o que cantor dos raios.

Dentro da cratera do tempo


rói o trono roi o poder de seu pai
roi o relembrar roi o divino com o canto
o fulgente o da lira
ccom nome de brilho temperado
o dos ursos o dos ratos
o que vagueia entre as colmeias e as tocas
o que larga fios da farta cabeleira
entre penedos
entre regatos
entre resíduos de actos

ele vivia de costas nos fumos


na cozinha dos oráculos
HINOS & AFINS

longe do sótão dos imperativos da deusa Intiligência


no ondular tenebroso da grande Serpente
da deusa cujo sangue foi amassado com barro
para gerar gerações memoráveis e triçoeiras
com o veneno dos oráculos tilintando
nas veias do ventre nos ossos dos videntes
no vibrátil no palato na face em pressa
empurrando a voz
para a variar o mundo.
HINOS & AFINS

Do lago e do cume da ilha do deus


dirigiu-se ao porto
como se as coisas fossem insónia
antes de serem coisas só sono só sono de vigília
como se a Ilha gritasse para si mesma
livra-te do miasma
livra-te das sombras
livra-te dos adivinhos
livra-te da glória

Que a tua cabeleira fosforescente proteja os videntes


os que adiantam em signos o vindouro
os que acrescentam espelhos aos espelhos
miragens de carne e de verdade que se adentram
ouro entornando-se fervente
reflexos a fazerem-se astros.
HINOS & AFINS

Os navios regressados repousavam


nos recessos da baia
tão temivelmente intactos
na orla com embaixadas
e números
com as novidades
dos povos adjacentes.

Outras vezes partiam fendendo o escuro mar


vento sobre papel
vinho sobre lenha
afundando-se na linha firme ao fundo
na tinta que transborda o palpitar das coisas
empurrando o duro azul do céu
contra o azul mole mas duro do mar
na distância em que tudo se some
gemendo nas cavidades ondulando
com tráficos pilhagens
segredos mensagens
porque tudo se submerge ou se arreda
no tempo medusando
HINOS & AFINS

no oceâno gorgónico e fatal


no livro-serpente do espaço original.
HINOS & AFINS

E aportou nesta terra com sabor a terra


no brumoso Cume da Poesia
onde as ninfas ascendem às bocas ao sexo-boca-sexo
voltejantes desejos de desejos voracidades
mudando-se em Inspiradoras
em transes vagidos fôlegos

a civilidade assim o exige


o corpo do corpo de homens filhos de homens
cuja trama é a cidade ora amena ora cruel
trilhada com pernas e lábios roupas e sacos
entre o loureiro a oliveira a vinha a hera a borrasca
com os poetas escrutinando caniço em punho
lançando sentidos sem nome dentro dos nomes
confessando os segredos insones das do Cume
debaixo da pele nas unhas na glote
nas vísceras sábias tripas da cabeça
tripé da coluna enrodilhando sexo-texto-sexo
e candura e pudor e miolos
monstruosos miolos
ganhando o peso do desespero do Semibovino
HINOS & AFINS

Elas sabem que são sabidas comediantes


cruéis virgens caçando papéis maiores
no teatro do divino maquilhadas nos assomos
nesse entreposto do sagrado que é a literatura ou a porrada
na luta pancrácia entre a letra e o cidadão
entre o hímen a doçura desavinda e a mão
entre o desepero e a pele que aleita depois do parto
macia mortal mirífica manhosa
nudez fugidia de sugar e de voltar a sugar
nudez que buscamos retomar em braços amantes
mas que foge como lebre ou corça
para a dulcissíma morte ao fundo da porta que chia
em fofo descanço de cicuta

Ele veio e continua vindo


com as ganas levantado do mar esperguiçando-se

tem o grande Oceano por cama e dorme


sacode o eterno retorno da mania da mentira
para lá da variegada esfera de Céu Pai
aguardando que nos sonhos
criaturas mais antigas que os nomes de crinas fartas
HINOS & AFINS

lhe desenhem nos assomos tilintantes contos


de caçadas pré-históricas
e de mães inesperadas.
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E semearam crianças nas eiras


nos prados nos desertos
com sementes fundas
recolhidas pelo deus medonho
pelo Ferreiro
na lava-Logos
sementes de imo fogoso e eterno
temperadas com espumas das éguas de Infernal
(deusa da inquietude e das encruzilhadas)
revestidas de ligas metálicas
em tanques de ferro e cobre
………………………………………………
………………………………………………
Este forjou em ouro a beleza que refulge na obscuridade
poliu espelhos para mirar os tempos
criou redes de tentáculos para pescar deuses
e para o deus Poeta
esmerou-se na ponta da flecha e na lâmina
da faca afiançada para reluzir no rito
pois o Poeta arrazoou as leis e os crimes
distribuiu dúplice a pestilência e o enigma
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o sacrifício e a hamartia
o cutelo e o canto
que domesticam o todo e os prantos
……………………………………
……………………………………
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A Glória-Opinião de cor púrpura


a que vem estendida num tapete
e que leva a faca e o crime
do amante ao pai do filho à mãe
a que anda na boca da corja
digo
colapsava como fruta no prato
no derradeiro prato do banquete
figo
na língua que une deuses a mortais
máscara
enjorcada nos beijos noivos canibais
e nos úberes brutos das aias

viera de uma região selvagem


tal como os nomes dos deuses —
nomes de açafrão côr dos peplos das deusas
e lançara uma corda para as litanias
para as dissimulações do canto
e o enforcamento do materno
HINOS & AFINS

viera para caçar o mundo caçador


e devolver o ouro
à essência e à futilidade.
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Não os deuses que podemos invocar


com palavras sumptuosas limpas escovadas
de pretensioso arcaísmo e origens aventadas
mas deuses cujos sons se eivam em palavras esmigalhadas
feitas de gemidos e babas
de mênstruos e bolachas bolorentas
de formigas baratas & rancorosas
sogras
palavras há muito enterradas no adro
com os ossos do cão da infância
tão fiel tão afagado
palavras dispersas nos ruídos da praga estival
quando fazemos amor antes da sesta

Estas minhas evocações


são prelúdios de eminentes fugas ou de demandas
roubando cores ao crepúsculo
coçando com o dedo a fresta
na parede da casa a abandonar.
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Eu chamo-te invoco-te
com a honra devida à Cerebral
e conta paga na mercearia do comércio com o invisível
ó abanadora de diáfanos abanicos!

Tiro os sapatos para um tempo novo


descalço as meias
espero o sinal ardente e acendo um fósforo
para que as ideias me encontrem quedo e fraco —
quero entrar nelas ou saír da cabeça do deus
ó donzela de astúcias carpintarias sapiências
e levo os dedos dos pés ao abismo e detenho-me
em teu nome prolongado
ó fulgente filha do deus

Da tua cidade levaram o labirinto para Pasifae


e Teseu o devasso
trouxe-o na alma de volta
na flor orquídea ou papoila
machada manchada do mênstruo de Ariadne.
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Também a vós ninfas evoco


ó viventes em torno da ilha-rochedo
onde o deus brotou
e em cuja caverna oca se ouvem
espampanantes gritos de rudas aves
que cantam —

minha filha desejou a vasta boca do deus


minha filha humedeceu o sexo com os lábios do deus
com o suco da grande cerejeira
e tu tocas-me tão viva feita de céu
e arribas na tesa terra
e pariste um ovo alado
que agora erra
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Vagueiam pés de deuses por praças avenidas arredores


e jorra no centro de cada casa a sua presença.
Sabêmo-lo?
Precisamos de peritos para o comprovar?

Aí Bromio Bacchus reside com tirso e espelho


desde que a epidemia o promoveu a patrão de Ménades
planeando a morte de Pentheus.

Procura apenas o acolhimento e algum alimento


para o harém que o segue
tinindo espalhafatando

E por último,
não houvera eu de invocar
as molas de Pleistus,
o ondulado poder de Poseidon,
e o Zeus, o mais altamente, o enorme.

Então como adivinhadeira


(e o que se adivinha vem via fiadeira)
HINOS & AFINS

eu passo-me
e sento-me na saracoteante cadeira sagrada
e entro na frutífera resposta
além do advento dado.
HINOS & AFINS

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]…………………..[
……para lá do limite de…….
……quando se viu grego no teatro
pôs-se a arrumar no poema a falsa alegria
de uma paideia ululante errada
para que o poema lhe fosse agora iniciação Eleusis
luz droga Baubô
êxtase tranquilidade
qualquer coisa que o valha
mas só se lembrou do côro da Antigona:
"nada sobrepassa o homem em pavor"
………………………………………………………
………………………………………………………
………espalhou a beleza indomável ao entrar em casa…
o cão esperava-o com os livros roídos
mijo caca
canseiras de limpezas palimpsestos por decifrar
….homens que procuram oráculos nos cacos…
…resumos rasos do dia-a-dia
e higiene ao menos mínima
para um heroísmo de dona-de-casa pouco fecundo…
HINOS & AFINS

…vida-morte-vida…………noite incompleta
incompletude noctambulante órfica instável
— sentes o bafo branco dos iniciados?
— será que sentes o bafo branco dos iniciados?
…..deixar cada passagem dentro
no buraco onde enterraste parte da tua vida
esse casamento nem tão sincero quanto o tomaste a sério
o sentido deslizando do adiamento da dissolução…
frase renovando-se na repetição
………………………catharsis……………
e a piedade que longamente gera a cólera
cabrita empoleirada na manante loucura
com cadeira partida de bicho ao lado
………..com o uso reserva-se a………
……………………………………………
carpiu no rosto pela europa e a fantasia vagarosa
carpiu e o nariz acolheu as lágrimas
carpiu sobre as coxas sem cidade sem infância…
………………………………………………
…… com a mão de auspiciosos dons
pôs-se em sexo e desenhou sombras…
…e o pensamento perdeu o pé na estrada
…..das guias do deus…………aladas…
HINOS & AFINS

como a minha língua o proclama…


as mais finas raízes das vísceras.…
………trementes e as palavras que sobram
ao poema à tese encartada sobre os murmúrios
………………………………………………
e se a sua luz te falha? que podes fazer?

…as coisas descaíram para falar de…


…caíram para olhos que mirassem debaixo…
— Silêncio!
cumpriu-se o tempo que nos cobria
de previsões ritos de abismo cal e praia.
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Apressaram-se adiante outra vez


e aninharam-se num adiamento
que não preceda a tormentos.
Sentia-se o brilho do Poeta
brilho bem engraxado enxuto
de uma força desacordoada movente
e o remorso animal inquiria:
o que é que reténs de uma face?
o que é que vês quando o Aedo canta?

As histórias andavam a empinar-se quadrúpedes


com as patas em cima do belo
que é um lacrau súbito
no dedo grande do pé
de um bébé.

Dizes então que adias que enrolas o papiro


com o fio da voz do devaneio
e a barulheira que embala contos ao adufe.

Ela envia-te missivas e o seu bafo


HINOS & AFINS

mora nas letras que os dedos te brindaram


e as tuas mãos e pés enrolam-se num novelo
(liames de sentimentos amachucados)
enquanto pressiono a besta do medo contra o peito.

Confundes o escritor com o leitor a sua voz


a rastejar na pulcritude deambulando
no não lhe ocorrer para onde vão os pés.

A força de uma bela dama não é de desprezar -


mesmo quando te achas em mansidão de infante
quando a idade e o medo
combinam em tango a ver-se grego.

Agarravam-te mãos de muitas suplicantes:


nas zonas baixas junto ao amor central.

Onde é que se anicha o nariz


na descrença dos efeitos retóricos?
Ler é um ritual
de um sacrifício maior
& enquanto te fias nas sílabas,
na eficácia da soletração
HINOS & AFINS

no acolher imagens que te vêm de nenhures


és o leitor não sabe
que é hóspede de mortos
pois a leitura agita as psiques e o obscuro.

Seria eficácia pouca


para um verosímel tão desalinhavado
mas é bem melhor que népias
porque os contos estão-te bombam-te o sangue
são o refúgio que adia o terror do sono
são o rito refugiante antídoto do enfado.
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Um homem deveras farto de invocações celestes


traça com pincel uma linha no corpo
e desenha o altar
e desenha o terrível acto de desenhar.

Aquilo que vejo claramente


claramente o digo
enquanto o mundo corre as persianas.

Mais abaixo, à sua frente


sonolentas devotas desgrenham as cabeleiras
e a emoção tinge-lhes os penteados.
São belas, sem a frescura das plantas jovens:
adequam-se como paramentos ao acto de desenhar
sem virgindades incómodas
sem a inquietação que dispersa.
São pupilas da deusa-serpente
e os seus olhares já medusam um pouco
já marmoreiam outros devotos.
Bastaria um fósforo para que se incendiassem
e as chamas dos seus corpos arrastassem todos
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numa hecatombe inesperada.


Já abusam da maquilhagem para fins hipnóticos
mas de modo nenhum têm o negrume das Erínias
nem vastas asas de Sereias
e muito menos são abominadoras
ou pavorosas aves de rapina.
São belas de suave soberba.
Mas muito cuidado!….
São a seiva da própria obscuridade.
Extrai-lhes a noite ao corpo.
Enxuga as gotas da ira
na completude do desenho.
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As estátuas dos deuses aquietam os homens


haja ou não
deuses trutas cogumelos papoilas
e plantam-se na cidade nas praças
para robustecer o Eros o das garras
com a beleza e a mentira e as mansas fábulas
para venerar a deusa dos olhos de vítreos

e a devoção pelo intuído desconhecido ignoto


sobra aos nomes e aos casos e aos gritos

e as cidades com suas tribos e tanques


buscam adornos em gente e sacrifícios
porque há a comichão da veneração —
desejo ascendendo para lá das criaturas
ó formas para olhar de sus
exemplos do sublime entre fumos e grelhados
…………………………………………………
…uma estátua é um anel erecto
uma boda com o céu
a rival dos ciprestes…
HINOS & AFINS

…………………………………………
…..e tinha trazido adiante a fatalidade…
……………………………………………………
…minhas madrastas faziam-se velhas estaladiças
meu pai descia à leitura com a barba cinza
aplainava capas jogava cartas
cobria os textos de aspas e anotações
esverdecia dentro da abominação do vulgo
e eu amava-te ao rubro no vão de escada
onde sobravam latidos e baratas……………
……………………………………………
uma carpa seguindo independente na corrente
………………………………………………
…………………………a morte parece adiável
nos inescapáveis corredores do submundo
& a cigarra já tirita o cansaço
das palavras que vão ser brasa de gritos
sons de flauta batuques evohés…

Todas estas coisas queriam ser uma a uma


mais que todas juntas
conjugando os disformes com o belo
a excepção com o comum e o particular
HINOS & AFINS

os lábios da libação com o fogo sagrado


……………………………………………
Assim é ele o poderoso,
senhor deste terreiro
curandeiro e profeta
lavador das máculas que nos pastam.
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Paráfrase de um acólito do Embriegante

Era o tempo.
Era o espaço.
Era o discurso.
Tudo isso se mantinha contraído,
aninhado na sua inútil preservação
no ovo alado.

A palavra saltou
com suas letras saracoteantes.

O deus gostou da idade


do haver tempos para as coisas
e de palavras que descascassem
o tempo como cebolas
camada a camada.

E a natureza, filha de uma prolongada ausência


fez-se mãe de todas as presenças,
abrindo-se para um filhamento desnaturado.
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As palavras eram recipientes,


vasos-vozes enormes,
recheavam-se do que brota.

As palavras ainda não sabiam como vazar as coisas


e adivinhavam-se nas formas que se formavam na telha
na talha do lagar a cheirar a mosto e azeite
na sombra do gato saíndo da moita
no crepúsculo a esticar as sombras elástico
de uma fisga antes de atirar.

O deus dava saltos da sua prancha.


A retórica fazia-se Luz.
«A luz vem da luz»
diziam coros de mensageiros
que acompanhavam a inauguração celeste.
Inseparado, interminável e sentado num trono
cofiava sua barba.
Essa barba era a prodigalidade do Tempo,
múrmurio
eriçamento de textos que urdem detritos
HINOS & AFINS

de outros textos borburinho


de que um dia ela seria rapada
e de que o Tempo é uma miragem da eternidade.
Sim, o Tempo é uma eternidade
de miragens movediças!
HINOS & AFINS

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A palavra era a melhor prole do deus.


Um dia caiu como um vaso e desfez-se em cacos
em sílabas comezinhasno chão daninho
entre migalhas arcaicas e ervas distraídas
que o cão da amante logo dispersou.

Quem não gostou do começo foi o silêncio,


o ponto que se desentranhou do vazio e do sopro
para acolher a esfera do céu. Nesta barafunda
a vizinha ajeitou o robe e pediu um cafézinho
com biscoitos. Não se consolou,
e por mais harmonioso que fosse o Logos
aquilo soía-lhe a arruídos, a canorices,
a diletantes dissonâncias. Andam aí umas cabras
a fazer das suas. Imaginar o silêncio
é colocar-se antes do começo do Começo.
E há muitos corpos danados de se roer.
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23

O mundo era compilado pelo próprio deus


em erma caderneta caderneta. Bom arquivista
(e também anarquista) esse cavalheiro.

O mundo queria distanciar-se dele


e ele do mundo
mas estavam colados tinham pele uma
e respiravam a um todo em ofegação
ora lenta ora furiosa
infundindo um caldo de luz
entre o ânus e o cucoruto.

Ele sentia-se distante de si —


ia ensopando em saliva a recente velhice
que emerge a cada momento
em tijelas de sopa com aipo
e diccionários etimológicos de latim
e acocorava-se num cantinho

Eis-nos a braços, num trabalho em curso


que perpetuamente se desapropria.
HINOS & AFINS

E tudo isto é. Um colo em queda


no desconsolo a rasar a alegria.
Pode-se não acrescentar nada ou aguardar
que a vida acabe frente ao beco sem saída.
Mesmo o é está a cair como uma inflamação
uma borbulha, boa de escarafunchar
uma amigdalite no pudor celeste
entre a tua saia repuxada acima da santidade
onde a pulsão se parece com arte
onde os teus dedos ajudam
a vomitar o poema inicial.
HINOS & AFINS

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Inerte e a expirar toda


levantou-se a deusa agora romantizada
pelo escritor que naufragava a seco.
E um rapaz malandreco
que subia a calçada sorriu-lhe…
Era o filho do Esteves da Tabacaria encanecido.
E tinha o desejo mas não as chaves
nas algibeiras rotas
e memórias já coxas de seu pai no olhar.

Mas com a palavra deste trabalhador deveras incansável


o que havia a fazer foi feito. E ficou bem feito.
Fui numa de mãos à obra. Nele. Entrenascendo-se.
Era cada vida a cada vida. Vidas a conta-gotas,
páginas falheiamente falsas umas às outras
prontas a serem rasgadas por um filho escasso.

O seu brilho era alimento, farnel e boa pinga.


Era plenitude esvaziando a plenitude.
Para homem queria uma vida de tamanho pequeno
sem grandes luxos ou roupa engomada?
HINOS & AFINS

Preferia dar antes uma de short-story


do que romance em tomos tantos.
E a luz era. Foi. Dia um dois três
até chegar ao sétimo para se esparramar
aninhado num cobertor definhado de família.
Deixava-se acolher na Terra,
deixava de errar num tempo e num espaço renitentes
para migrar para o ali, com suas leis férreas
e os beijos costumeiros de quem ama.
HINOS & AFINS

25

O atarrachamento da Glória
é a estrada que te livra do caminho dado.
Desmanchas os céus apinhados de nuvens.
Pões os pantanos de lado
esses inflamados pântanos soalheiros
que te foram dados como lição de moral
aolado dos encómios ao pão.

A escuridão agarrou-te à recusa.


Não era preciso tanto.
A escuridão é a ressaca da nossa abertura.
A escuridão é as garras do não atiçando
essa nega que desbrava espaços
onde eles não fenecem.

Então plantam-se árvores escuras dentro.


Arborescem palmeiras no cavo do sagrado
onde confessaste as tuas preferências
onde revelaste as tuas escapadelas
as tuas impossibilidades preferidas
o teu relâmpejar com especiarias
HINOS & AFINS

as tuas parvoíces maternas.

Ainda nos estranhavamos inúteis acres


Ainda vivíamos de olheiras esbugalhados
presos ao maravilhamento de haver noite
cá fora
com estrelas mitos e tudo.
HINOS & AFINS

26

Gora do lar, homem-cão!


Conheces as manhas do rato e as garras do leão?

Somos caninos escorraçados desde natos


e nascer é a forma discreta de dizer
escorraçar
cão.
HINOS & AFINS

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Veio um, pela calada,


pela linha mais tortuosa
só, um, um só, com a corda ao pescoço do seu canto, nó a nó
com o mundo enredado na colcha do invisível.
Era uma criatura rochosa, granular.
Uma montanha nómada.
Vagueador, indagador, mendigo,
vagabundo, viajante, asceta.
E arauto genésico. Seu nome era : (...);
um sublevador da multidão.

Veio como mensageiro,


com voz de colosso, esforçada, por um desfiladeiro
onde camelos traficam drogas e armas.
Tinha a disponibilidade e a velocidade adequadas.

A sua voz parecia a da reprimenda


mas adoçava os povos, sossegava as feras.
Precisavamos dessa calorosa reprimenda.
Sentiamo-nos crianças encanitadas
ante oradores possantes.
HINOS & AFINS

A sua voz era um bramido sublinhado de elefante.


«Ao homem mortal!…».
Alto arauto espalhando espelhos...
«Os gritos todos isso é o mundo!».
Poderiam confiar nele,
ele que se via como padrasto das coisas?

Luz intelectual era, vinda da psukhé fundadora.


Desdobrável, petaliperformante,
textos penetrando textos em recado báquico
tinta penetrando na pele do leitor a más horas.
Divino-enchido no papo.
Aberto à agonia de tudo o ebule
entre o a vir e o que se veio.
Precursor, trazendo o segredo na sacola:
umbigo da luz aleitando liames.

Uma testemunha faladora acolhia o deus.


A palavra, grávida, junto a quem o gerou,
era a Obscuridade convincente,
a primeira prenhe
a Luz que dá banho a todos os homens
a que faz puré das agonias acumuladas.
HINOS & AFINS

Iluminação: com feixes e sopros.


Natureza dos homens sem homens nem natureza.
Humanidade de todas as naturezas.
O Ser como esgoto farolando.

Ele veio para ligar a terra à terra,


o ornamento que une o rejeitado os cadáveres
os dejectos que alimentam a trama materna.
No impersuásivel, mas persuasivo, kosmos.

Era o jamais visto:


o mundo estava por sublinhar, comentar, engolfar,
escrevinhado numa caligrafia brava,
despautada, desbocada, quase oral.
Havia ecos de rabiscos na arrumação dos objectos.
Ele porém resguardou a palavra, envolveu-a
no lenço com que se recolhem os mortos
e os mucos dos viventes.
Vagabundo, ex-trangeiro, insensato, louco.
Era entre um dos seus como seu.
A máscara encobrindo a tripla mãe, sua própria face.
Nenhuma honra o mostrou como um convidado.
HINOS & AFINS

Ajuntou-se a nós na honra desonrante,


na humilhação que eleva ao intemporal,
ao improvável.

Mas aqueles, disponíveis,


de entre os que estavam disponíveis,
abriaram-lhe as orelhas e os corações.
Eram os acolhentes, quem quer que fossem.
Receberam-no tendo nada, o não-existente o nulo o farelo.
Deram-lhe leito leite e ouvidos.
Deram-lhe a escuta devorante
os que eram sem os despojados das poses.
que eram sobretudo o serem sem
esses despojos de todos os despojos.
HINOS & AFINS

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Arte de mil ignorada


com dentes de harpia e pimentas barbáras
embora doce e penetrante.

Arte com o tremor das noites gélidas, forte


a acender a lareira na escuridão
com os pés gelados sobre o pó das cinzas.

A adorável arte dos ardis, das visões, da cal


contra o azul espesso do céu
tentando desenhar os lábios ardilosos da amada —

que linhas traçam?


de que incerta cor
são os olhos que tanto fitaste?

Queres testemunhar o mundo


para que mais mundos te testemunhem?

Arte de mil que te esboça te ignora o corpo


te embacia a visão com palavras intumescentes
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de malhar sobre o mundo —

A palavra dá-se-te —
e tu, dás à palavra?
É uma: a arte de mil, a acotovelar-se para ser justa
toda densa iniciática gloriosa
suada suja.
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Quando se ampara com vigor o texto que diz


eu sou o sopro dos deuses o bafo do touro dos céus
eu sou o neutro o insone o medusante
há que ser prudente com esse nome
que não é filho de outros nomes —
temos que desconfiar do absoluto na palavra
e das facilitação dos discursos na eloquência
mas agarrá-lo com punhos firmes
e as cordas de cânhamo dos navios.

Os videntes falam com licenciosidade


de um rugir inspirado, vindo das fundações da terra.
A licenciosidade tornou-se respeitada
mas os frémitos vocais nem sempre são inspirados.

Neste tempo é dificil cruzar-se com beleza


que não seja comparável a animais
esses animais que agora expulsamos do convívio
aqueles que devoramos com ignorância
ignorando-lhes o soberbo olhar o calor
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o pelo o cheiro desagradável


as singularidades de cada
e que desde sempre coubemos matar.
E a mente desata a vaguear. Abre portas
que permaneciam há muito escancaradas.
A tudo dá prémio
para o Corpo ser humilhado criança
na imprecisão de não dar conta do mundo
no estar sem reservas
no ir-se acotovelando às àsperas paredes do labirinto
onde pontuam ratos e serpentes
lesmas e centopeias.

Porque a Terra não é apenas a cama do deus


vergel nupcial dos elementos — erva, hera, vinha —
ela é a substância das nossas partes — bexiga apêndice
baço polegares pêlos mamilos e o demais.
O deus deseja-se a si como Terra, brutal
parte transmissível, recuperável,
boda narcísica da prole com a demiurgia.
E pela carne fazemo-nos deuses no leito desse rude noivado.
Porque para que sejamos mais espirituais
há que se fazer mis carnal.
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As crianças estão estreladamente sobrecarregadas


do deus-sol. O que não é oferecido
surge no fio da penumbra. O deus sacode
as poeiras as preces.
Veio de um dar que se dá porque dá.
Não quer ser chamado a núpcias.

A palavra auto-realizada ercarna-se


bombeada nas vacilações e na possessão.
Ele trouxe com as palavras os instrumentos
da música mortal.
E as palavras eram sobras de sombras
que embuscavam as laminadas formas.
Variações escuras de homem a esborrachar homenss
a comprimir-se em pele e suor contra o devir-mulher.

Variações do fosco
do difuso e da ténebra.
Ecos do silêncio mais escavado.

O portador de palavras veio por algum Rito,


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unido na forma, Humano-parecendo, invisível.

E o deus fulvo residiu na tosca tribo dos homens.


A sua reputação é pujante.
Sobretudo quanto à beleza arrojada
e a bailes de dedos e fogos de língua.
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Nós vimo-la através de gentis:


era a Doxa, extendendo-se em fatias de cor
a Doxa/Kabod com a sua tenda de bebidas alcoólicas
a opinião que dá conta do saber fazer e saber dizer
vinda de Tebas pelas mãos de Hermes o Diluente
acompanhada por Antígona e Ismene
as de Amor Inclemente
damas descalças vagando
para a luz esconsa que se evade do tempo.

O Corpo é embrieguês disse-nos a deusa


e a minha gramática são as posturas
adestradas na gymnásia na exercitação
da palavra-corpo do texto-peito do âmago-voz
respondi-lhe tiritando.

Eu faço-me carne e faço-me lama


e faço-me celebração
pulmão-canção
galo sacrificial
faço-me alegria-alegoria às avessas das conclusões
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da ratoeira do tempo que intíma


e dos retornos-serpente mordentes caudas de si
faço-me vocação de infante que geme começos
o que chupa o tutano ao ser
o elevador das inércias com convicção
o cume superado na imediatez

A graça quer ser a evidência do acolhimento.


Faz-se serva da presença.
A respeito e no respeito da palavra Carne.
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Era o mensageiro adiantado


flecha do Sol
percorrendo a corda dentro da voz —
voz de profeta sussurrando de uma duna
cuidado esse está aqui aquele
com quem falei em falas honestas
o que veio o que chegou antes de todos
o que vem após nós o que ficará com as chaves
o que abre as comportas dos ventos e das marés
o que diz como Crítias nunca chegamos
ai! nunca chegamos a entrar no rio
nunca saímos do alvo do brilho
o alvo a saber a freixo do arco
e não avançamos nem nos quedamos
empinados na devassidão aracnídea.

Ele era o mais adentrado no antes alvo


de modo que lhe somos o ser própício
& a ele pertencendo
banquetear-nos-emos com os imortais
indo poço da humilhação e das melodias.
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Estultos em bicos dos pés com unhas encravadas —


talvez não mereçamos mais que as formigas
por muito generosos que sejamos
por mais que pulemos para os altíssimos
essa pata que espezinha de vez.
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E todo este povo, ávido, engalfinhado


acotevalava-se com uma réstia de honra
devastado por maleitas várias
e formigando rancores num balbuciar perdulário
buscava herói de passagem,
moço capaz de incorrer na hybris, com a labrys,
de belo perfil, a dispensar, a médio prazo.
Teriam mais uma anedota para contar,
um merecido e variável mito, quiçá um culto,
uma estátua, uma peça de teatro perfeita, engenhosa,
e palavras melífulas, antecipadamente azedadas.
Dar-lhe-iam o acolhimento em casa de pasto
e logo um repouso merecível
numa cama com pernas roídas por ratos
testemunhando a presença de um deus barato.
E em seu peito esse deus ajustaria o sopro, o dom,
a força que outrora fora afiançada por um profeta patife
ou intuída por uma virgem sacrificada em vão.
Dar-lhe-iam um Cadillac, maneirinho, com estofos em cabedal
e luxos: jacuzzi, massagens, bebidas, room service,
e o telefone de uma pêga local, àrdua e sensual,
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não vá o gajo estar precisado.


Sobrariam brilhos, cascas, pevides
e acólitas de longos cabelos, new-age, a transar.
Ou filhos. E uma mãe a querer-se enforcada zás
num vôo lívido e perfumado.
E, do alto, o deus daria a benção ou a maldição
do lote (ou lotaria) dos destinos
que afiançaria anuiria decretaria
uma vez mais outra vez
lá onde brilha eterna a lua pebleia.
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Esfrega a pele precária, mãos imaturas


pulsos pusilânimes
de segurar armas e empurrar epítetos.
.......................................
Mais deceptivo era o rei raposa
vendo a passagem dos exércitos.
A vida é lacónica? Ri-se o efémero?
Um a um bordam o frio friso da glória
na vereda do estreitamento dos destinos
..........................................................
guerreiros cujas silhuetas se encastram nos vasos
quando desfilam em linhas leves
nas colinas do crepúsculo
posando imagináriamente
para pintores de vasos.
Viris passam no rumo do ritmo da glória e da cigarra
no enfilar de desejos e mortes
com cães e corvos facilitadores de cadáveres
auxiliares na descida ao obscuro.
Núcleo audacioso dos movimentos…
Vão alinhavar-se num lauto luto.
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Retornam da competição atlética ardente.


Acham-se no fausto da saúde
na fatalidade da fama lasciva e lúgubre
no mesmo divergindo-se em formas
no arfar da terra que afaga
a brevidade basta das criaturas.
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Eu perguntei-lhe se eram corpos como nós


porque nós não nos pareciamos muito com corpos
e eu ainda não tinha percebido, tão tolo!
apesar da leitura atenta a concisos diccionários antigos
e enciclopédias empoeiradas
o que era isto de sermos corpos
que inclinação era esta da nudez da carne

Respondeu-me
que sim senhor
aqueles eles eram a modos que corpos
mas não como nós
nem outra coisa que estimássemos
porque é que a uma velhacaria chamariamos corpo?

Um corpo será somente o que podemos tocar?


Seria contudo dificil de provar,
segundo esse ponto de vista,
que aquelas criaturas
pois de criaturas se tratavam,
fizessem parte da nossa natureza.
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Nada neles era matéria vulgar


e quando tentavamos examiná-los
de modo a que os nossos sentidos
apreeendessem suas proporções,
seu peso e suas medidas,
sentiamos repulsa comichão fascínio.

Eram criaturas deambulantes


recusando a aparência diurna
e só na noite fosforeciam a sua carne de treva
confiando-nos difíceis evidências.

De certa forma aqueles eram corpos combinatórios,


adicionando as partes mais reconhecíveis da memória
a outras soterradas num tugúrio nas calendas.
E se a memória não é a experiência
em que é que consiste a experiência?
Porque a memória não é slimita às limpas ilacções
que dela retiramos,
mas também é o desperdício o laboratório
para o qual somos incapazes de construir silogismos.

Então esse lixo voga e incarna-se nos pesadelos


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e nas estranhas aparições


e na vozearia dos oráculos.
E graças a ele há dias em que o ar se torna
mais espesso e quente….
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36

ser-lhe-á colocada uma túnica nova


com belas dobras e hieróglifos debruados,

e seu corpo será purificado


com a água que inunda os deltas
acolhendo os flamingos rosados

e terá sobre seus pés sandálias


feitas do branco couro de antílope

e a figura da deusa Aletheia


de um verde-colorido
será colocada em cima da prancha ocre

sempre que Hermes o deseje


será recitada esta canção em nome de Apolo

e os sacerdotes e os restantes homens


deverão fazê-lo do mesmo modo.
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sejam quais forem as palavras


o recitante deve mantê-las na ordem estrita
enquanto o livro for cantado

e fará seu lugar circular


ou de amplos ângulos

e os seus dois olhos serão como abutres


devorando a escrita

e seja qual for o recitante


as imagens de que fala
devem raiar
como se fora o dia do nosso parto

e sua casa nunca se deteriorará


mas resistirá mais que inumeras eternidades

que ele tudo vê


mesmo para lá dos três mundos
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37 (a partir de Catulo)

Vai vai
levado dos mares ermos
às montanhas do nascente

velozmente vem pisando pé ante pé


impaciente na oriental floresta
é becanaice
é olaré
e penetra nos bosques coroados de espessas sombras:
domínio
deusa
zás!
trás!

fende as profundesas

pressionando os aguilhões em raiva insensata
de cabeça perdida
corta-se com calhaus arranha-se nas silvas
prova-se o sangue das várias feridas
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cantam-lhe os atributos de efébo


o membro as nádegas a beleza
Kouros
cujo corpo clama para os ditosos
avança com a sombra entalada na cor
esboça o sorridente brilho de um imortal

mal a terra o seu sangue fresco fareja


logo agarra com mãos nevadas
um ligeiro tamborete
bum tamborete bum bum bum
força no tampo
tampo de pele de coelho
estrondo do face a face
com o agreste
verdura galopante
ó Deusa
Mãe Consagrada a Grande
escuta com agrado
os instrumentos doss teus mistérios

sob dedos delicados


HINOS & AFINS

retinem
sobre a cavidade sonora de um couro de cabra
e as míudas as grupies as tontas a matilha
agitadas de tremor frenético
põem-se a cantar assim para as suas companheiras

fuge fuge
galguem a terra insone
ajuntai ajuntai
madeiras galhos arbustos
para consagrar no fogo da carne
para queimar fumegar pela Deusa

escalam todas enlaçadas coroadas


manadas de vagabundas
ah vocês!... vocês!...
procurando exiladas terras de outrem
seguem os passos do Jovem
guiam-se pela verdura do efébo
enfrentam as fúrias e os perigos ondulam no pasto
folgam-se em ódio inusitado a Afrodite
HINOS & AFINS

……………………………………………………

alegrando as vossas psykhés em corridas rápidas


acompanham a Senhora do Mel e dos Leões
sem demora
a Dama inabitável
não hesitam
vêm todas
seguem seguem
para a residência oriental da Tripla
para as madeiras odoríferas da Deusa
para as maneiras frígidas das Bela
onde ressoa o zumzum dos címbalos
onde tamboretes retinem
onde o aulo duplo esguincha árias graves e melismas
tremores grunhidos sininhos
som continuo

— é lá que as ébrias as outras


agitam freneticamente cabeças
e se coroam de hera
HINOS & AFINS

(urros agudos)
«nós queremos celebrar o santo mistério»
(bocas bárbaras)

— é lá que ondulam as serpentes da deusa errante


é lá que é necessário correr dançar rápido rápido
fuge fuge

— mal de Jovem o mulher incerto o que dirige


frotas de palavras
à sua deusa à doçura materna
o que não se tem em ser homem
o indestinado da sua identidade
o jovem émulo do Adivinho
e de repente desboca desemboca sexo em punho
entusiasta
— urros
— canto firme
— frenesim baba feridas
— ligeireza descalça
— mungidos
— múuuuuuuuuuuuu!
— múuuuuuuuuuuuuuuu!
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barulham os címbalos
bafejam as moças e os passos firmes fortes
há grande estrépito
e vozearia de cor
saltos impetuosos
galgam o Monte verde
num tempo furioso de hálitos arregalados
perdidos
desatados de si

Ele
tamborete na mão
guia através de florestas espessas
corre
simula manipula afasta as urzes
segura a novilha indomável
quer subtrair-se ao peso dos jugos
e ao pesadelo das Loucas
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— rápido!

loucas no encalço da sua impetuosa senhora


assomam aos domínios de Deusa
& extenuadas de cansaço
socumbem ao sono
quedam-se no regaço da estrelada
a dos astros que abraçam

no torpor se afundam —
um pesado sono fecha suas pálpebras
e a raiva das suas almas apaga-se
vencida por suave descanso
e embalada por grilos
………………………………………………
…………………………………………

Mas mal o sol sobe com sua cabeça de ouro


os raios dos seus olhos catam o pálido éter
a terra esperguiça-se
e os regatos rosnam:
…………………………………………
andam aí caçadores com gorros de pele
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adiantados de aljavas de couro


e flechas fulgentes
……………………………………………………
os furiosos transportes do efébo
…………………………………………
…………………………………………
teme
quer voltar para poente
a margem
e então
com olhos banhados de lágrimas
recorda o vasto mar
o azul do deus das marés cavalgador de ondas
firme ante o azul seco de curvo Céu
………………………………………………
o infortunado
endereça à sua pátria estas tristes palavras:

ó pátria minha,
tu que me deste ao mundo!
ó minha pátria!
minha mãe!
a quem abandonei na minha desgraça?
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sou como os escravos que roubam seu mestre!

em ti quero deitar-me como num leito de chamas


ó Monte
para me exilar no meio da neve
e neste antro congelar
e nestas terríveis paragens
assombrar o javali de corno letal!

ó minha cara pátria


onde em que lugares
te buscarei doravante?

são curtos os momentos


onde o meu espírito não cega de brava raiva!

que não posso não me tenho


não me sei senão insaciado de me não ser

devora com orelhas lobas minhas preces


aceita minhas madeixas
que quero ser o ímpeto das florestas
onde o lobo acasala e o urso dormita
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distante da casa de meus pais


distante do fumeiro onde seca o porco
e se limpam as mãos no lanudo cão
qu'é dos meus amigos?

eis-me distante da praça onde se ajuntam os sábios


na toada da conversa onde cozem palavras
e das minhas tias enegrecidas enegrecidas
pela morte dos filhos em combate?

e eu que me deixei ir
desgraça!
ah!
desgraça em mim
quantas vezes a minha alma não terá que gemer assim!

sou mulher?
sou efebo?
fui criança
fui a flor do ginásio
a glória dos atletas massajados com azeite
e ervas odoríferas!
vi às minhas portas a multidão
HINOS & AFINS

vi meu limiar amornado por ela


vi minha casa coroada de grinaldas de flores
quando a aurora me arrancava à cabana dos sonhos

mantendo-me
serei mais um acrescento que participa na deusa?
uma parte que serve a Deusa
a que corre por todos os lados?

eu? serei uma ferverosa?


eu? a sombra de mim mesmo
eu? um homem estéril
eu? terei por estada
os lombos do Monte esverdecente
esse cobertor de neves
eu? consumirei a minha vida
sobre os orientais cumes
que apinhados de àrvores de penedos
e bestas cabeludas!

ah o que tenho de facto? a dor!


o que tenho de facto? lamentações!
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Mal estas rápidas palavras


foram evacuadas de seus lábios rosados
levaram o caso inconcebível
os queixumes às orelhas gémeas dos Deuses
e a Deusa no seu carro de leões
destacou o touro de esquerda esquartejou-o
estendeu-o como um tapete
aplicou a sua ira bebendo sangue
e proferiu suas ordens ao Efébo:
vai diz vai corre
e faz agitar a cauda em fúria
faz com que a fúria fira
audacioso por quereres subtrair-te ao meu império
retornarás a madeira
serás o mastro de Teseu o que embarca
o emprenhador de magas
vai bate os teus flancos agita-me esse cú
tem coragem golpeia teu sexo
que os lugares retenham teus estrépitos
teus rugidos
agita
selvagem
sobre o teu pescoço musculado
HINOS & AFINS

a crina fulva!

assim falou a temível Deusa,


e a sua mão manejava os fios do ………
………………………
………………………
o servo excita-se ele mesmo
e numa fúria rápida
corre freme
calca os arbustos
e em corrida errante
cedo atinge o cume dança
unta-se de mel
……………………………………………
vislumbra-se o frágil Efebo
entre sangue e esperma desmaia
cai no regaço da desnuda Deusa
de se ir em Deusa
……………………………………………
o espírito trespassado a faca
o ápice de sombra manchado
a dôr do bicho-pinheiro
de hastes orvalhadas
HINOS & AFINS

o sabor do pinhão
moído com sangue

então vê vê claramente
a extensão do seu sacrifício
os lugares onde se encontra
e a alma em acalmia
…………………………………………………
……………………………………………………
florirás em florestas selvagens
e doravante servirás
e servirás e servirás
entre bestas bagas e mel

grande deusa, Deusa de dentes afiados


deusa soberana do Nascente
leva para longe de minha casa as tuas fúrias!
leve a outro lugar teus transportes!
leva a outro lugar atuas raivas!

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