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AGNALDO GARCIA

(ORG.)

RELACIONAMENTO
INTERPESSOAL

Uma Perspectiva Interdisciplinar

1ª Edição

Vitória
Associação Brasileira de Pesquisa do Relacionamento Interpessoal
ABPRI
2010
1ª Edição – 2010

CAPA e EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

REVISÃO
O autor

IMPRESSÃO

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)


(Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, RJ, Brasil)
_____________________________________________________________
Relacionamento interpessoal – uma perspectiva interdisciplinar / Agnaldo
Garcia (org.).
– Vitória: Associação Brasileira de Pesquisa do Relacionamento
Interpessoal - ABPRI; Vitória - ES, 2010.
225 p. : 21cm
Inclui bibliografia.
ISBN
1. Relacionamento Interpessoal. 2. Psicologia Social. 3. Psicologia do
Desenvolvimento. I. Garcia, Agnaldo.
_____________________________________________________________

É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, para qualquer


finalidade,sem autorização por escrito do organizador. Reservados todos os
direitos de publicação em língua portuguesa à Associação Brasileira de
Pesquisa do Relacionamento Interpessoal - ABPRI.

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SUMÁRIO

Apresentação

1. Transição para a Vida Adulta: Processo de Transformação de Pais e


Filhos
Edna Lúcia Tinoco Ponciano e Terezinha Féres-Carneiro

2. Preenchendo Vazios: Dinheiro e Relações Parentais


Valéria Meirelles e Rosane Mantilla de Souza

3. Antes do Sim: Rituais, Celebrações e Práticas Pré-Nupciais


Juliana Fonseca Simões e Rosane Mantilla de Souza

4. Relacionamento Conjugal e Saúde Mental na Gestação


Joseane de Souza, Poliana Aliane Patrício, Larissa Horta Esper e Erikson
Felipe Furtado

5. Mediação e Promoção do Potencial Cognitivo de Crianças com


Problemas de Desenvolvimento e Aprendizagem
Kely Maria Pereira de Paula, Ana Cristina Barros da Cunha, Tatiane
Lebre Dias, Sônia Regina Fiorim Enumo, Claudia Patrocínio Pedroza
Canal, Flavia Almeida Turrini

6. Utilizando Recursos Tecnológicos para a Avaliação e a Promoção de


Habilidades Sociais
Adriana Augusto Raimundo de Aguiar e Zilda Aparecida Pereira Del Prette

7. Relações Amistosas: Concepções de Professores e Desenhos Infantis


Jussara Cristina Barboza Tortella, Josiane Raymundo dos Santos e Edna
Aparecida Pereira Perobelli

8.Bullying: De Onde vem a Violência que assola a Escola?


Luciene Regina Paulino Tognetta

9. Conflitos Interpessoais entre Adolescentes


Vanessa Fagionattovicentin

10. A Gestão do Convívio Escolar


Maria Isabel da Silva Leme

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11. Aspectos Básicos da Relação Enfemeiro-Paciente e a Prática do
Enfermeiro na Intervenção Breve para os Problemas Relacionados ao Uso
de Álcool
Angélica M. S. Gonçalves, Sandra Cristina Pillon, Priscila Tagliaferro,
Sônia Zerbetto e Sônia Vivian de Jezus

12. O Cuidado do Enfermeiro e o Relacionamento Interpessoal


Rejane Maria Dias de Abreu Gonçalves, Renata Maria Dias de Abreu,
Quênia Cristina Gonçalves da Silva e Leila Aparecida Kauchakje Pedrosa

13. Relacionamento Interpessoal e a Adesão na Fisioterapia


Marina Medici Loureiro Subtil

14. Relacionamento Interpessoal e Economia Solidária


Raquel Ferreira Miranda, Fernanda Henrique Cupertino Alcântara,
Fernanda Simplício Cardoso, Agnaldo Garcia e José Roberto Pereira

15. Amizades Interamericanas de Estudantes Universitários Brasileiros: Um


Estudo Descritivo
Agnaldo Garcia, Lívia Ramos Brandão, Lorena Queiroz Merizio Costa e
Marco Aurélio Togatlian

16. Amizades Intercontinentais de Estudantes Universitários Brasileiros:


Um Estudo Exploratório
Agnaldo Garcia, Fernanda Gomes Dettogni, Lorena Queiroz Merizio Costa
e Marco Aurélio Togatlian

17. Amizades Internacionais de Universitários Brasileiros: Uma Análise dos


Episódios Marcantes
Agnaldo Garcia, Cloves Bitencourt Neto, Luciana Teles Moura e Claudia
Balestreiro Pepino

18. Amizades de Universitários Africanos no Brasil: Uma Análise dos


Episódios Marcantes
Agnaldo Garcia, Dominique Costa Goes, Luciana Teles Moura e Claudia
Balestreiro Pepino

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APRESENTAÇÃO

A realização do I Congresso Brasileiro de Pesquisa do


Relacionamento Interpessoal (I ConBPRI), em Vitória, no ano de 2009,
representou um marco histórico para a pesquisa sobre o relacionamento
interpessoal em nosso país. Este livro, que traz textos de participantes do
evento, mostra um pouco da riqueza do tema, quanto à diversidade de áreas
que lidam com relações interpessoais.
Agradecemos a todos que, de uma forma ou outra, contribuíram
para a elaboração deste livro, em especial à administração central da
Universidade Federal do Espírito Santo e ao Programa de Pós-Graduação
em Psicologia desta universidade e a todos que apresentaram trabalhos e
participaram do I ConBPRI, em Vitória.
Esperamos que o presente livro desperte o interesse dos leitores
para as relações interpessoais e que também seja um estímulo para o avanço
das pesquisas sobre o tema em nosso país.

Agnaldo Garcia
Presidente da Associação Brasileira de
Pesquisa do Relacionamento Interpessoal - ABPRI

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1

TRANSIÇÃO PARA A VIDA ADULTA:


PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DE PAIS E FILHOS

Edna Lúcia Tinoco Ponciano


Terezinha Féres-Carneiro

Ao longo do ciclo de vida, os pais assumem diferentes papéis no


cuidado com os filhos. De acordo com essa perspectiva (MacGoldrick &
Carter, 1995), podem ser relacionados os seguintes papéis para os pais,
paralelamente à transformação dos filhos: 1) adolescência – os filhos
começam a tomar decisões, desenvolvendo, de modo crescente, a
autonomia; os pais têm que negociar com os filhos, participando dessa
transformação modificando o exercício de sua autoridade; 2) jovem adulto
(saindo de casa) – os filhos têm independência para viverem suas próprias
vidas; a relação parental é cada vez menos hierárquica; os pais participam
orientando e aconselhando; 3) jovem adulto (casando) – a independência é
consolidada a partir da formação de uma nova família, os pais têm que
aceitar a escolha dos filhos quanto ao futuro cônjuge, não tendo,
geralmente, influência direta sobre essa escolha; 4) adulto (tornando-se
pais) – com a chegada dos filhos, forma-se o subsistema parental e, a partir
da presença de uma nova geração, os recém pais têm que se adaptar à
diferente participação de seus pais em suas vidas; inicia-se a construção de
novas identidades, a de pais e a de avós, nas quais, os últimos, a partir do
contato com os netos, desenvolvem uma nova forma de se relacionar com
os filhos; 5) adulto (em idade mais avançada) – os pais (avós) têm que
aceitar o fato de poderem ser mais dependentes dos próprios filhos e,
dependendo da saúde dos pais, pode haver uma inversão hierárquica.
A perspectiva descrita acima retrata uma visão tradicional de
família, sendo típica da classe média americana. Apesar de entendermos
que, em relação ao Brasil, há semelhanças e diferenças a serem
consideradas, nesse momento, vamos adotar essa perspectiva para
discutirmos um tipo específico de transformação do relacionamento pais e
filhos, enfatizando a aquisição da autonomia e a independência dos filhos.
Atualmente, devido à continuidade da dependência dos filhos após a
adolescência, há uma variação nas fases do ciclo de vida, relativizando
essas fases. Deve ser acrescentada, ao ciclo vital, a transição para a vida
adulta, que constitui uma fase distinta, alterando a passagem direta da
adolescência ao mundo adulto. Entre esses dois momentos surge a transição,
na qual o jovem não é adolescente nem adulto.
Os jovens hoje experimentam uma variedade de estilos de vida e de
relacionamentos íntimos, sem necessariamente assumirem as
responsabilidades esperadas de um adulto ou deixar a casa dos pais.
Possuem autonomia para tomarem certas decisões, sem o ônus da completa
independência. Por exemplo, hoje é possível ter uma relação amorosa,
“morar” parte da semana na casa do parceiro(a) e manter a casa dos pais
como a sua própria casa. É possível arriscar-se em uma relação amorosa,
sabendo que se pode voltar para a casa dos pais, comportamento típico dos
jovens bumerangues (Mitchell, 2006). Não só as relações amorosas estão
baseadas em vínculos mais frágeis como também a situação do mercado de
trabalho e a exigência de uma prolongada formação profissional não
oferecem garantias de total independência dos pais. Relações afetivas e de
trabalho podem-se dissolver muito mais facilmente do que na época dos
pais dos jovens de hoje. A transição para a vida adulta, portanto, é marcada
pela incerteza, indefinição e complexidade (Camarano, 2004; 2006;
Guerreiro e Abrantes, 2005; Mello e Camarano, 2006; Pais et al, 2005).
A percepção de maior instabilidade para a juventude de hoje é
amplificada ao se traçar um paralelo com uma suposta estabilidade da
família tradicional. Entretanto, supondo que, mesmo na família tradicional,
não haja um momento de estabilidade completa, pode-se aceitar a
diversidade e as flutuações presentes em todas as fases do ciclo de vida e,
especialmente, na transição para a vida adulta (Ponciano, 2002; Ponciano &
Féres-Carneiro, 2003). Desse ponto de vista, ao relativizar o modelo
tradicional, o comportamento dos jovens pode ser compreendido como uma
transição e não um impedimento ou bloqueio no desenvolvimento. É
preciso, portanto, investigar como a transição para a vida adulta,
diversificada e incerta, na qual a independência dos filhos tende a ser
alcançada paulatinamente, tem afetado a relação entre pais e filhos.
Para os jovens de países industrializados, os anos finais da
adolescência até o período dos vinte anos são muito importantes e de
profundas mudanças. Muitos obtêm o nível de educação e de treinamentos
necessários para a vida adulta no trabalho. As possibilidades de mudança
são variadas no trabalho e no amor, sendo exploradas diferentes visões de
mundo. No final dos vinte anos, muitos jovens fizeram escolhas de vida que
têm ramificações duradouras, mas até lá viverão um período de intensa
experimentação. Os jovens podem experimentar mais livremente que os
adolescentes, porque são menos monitorados pelos pais, e mais livremente
que os adultos, porque são menos constrangidos por papéis sociais. O uso
de drogas, como experimentação, por exemplo, tende a aumentar durante e
no final dos vinte anos e tende a diminuir com o casamento e a paternidade,
que trazem as responsabilidades do mundo adulto (Arnett, 2000).

8
A sexualidade também é um campo a ser explorado com liberdade,
experimentando e conhecendo várias possibilidades, antes de um
compromisso sério. A exemplo disso, nos anos de 1980, no Brasil, o ficar
difundiu-se como um novo modo de relacionamento, oferecendo ao jovem a
oportunidade de ampliar o contato com parceiros variados, em uma noite ou
por um breve instante, não tendo, necessariamente, repercussões para o
futuro (Bozon, 2004; Heilborn et al., 2006).
Os jovens, assim, têm mais comportamentos de risco, vivenciando
a noite, a busca do prazer, ficando mais vulneráveis às situações de perigo
que incluem violência e podem ameaçar a vida. O jovem, caracterizando o
seu mundo pela experimentação, busca-se conhecer, construindo sua
autonomia individual, adotando comportamentos independentes de sua
família de origem, em um mundo desconhecido pelos pais.
Ainda assim, o jovem prolonga sua permanência na casa dos pais,
fazendo com que esse processo de maior autonomia e de independência seja
vivido no interior da família. Enquanto não assumem completamente a vida
adulta, nesse momento de transição, a relação com os pais sofre
modificações. A principal mudança é uma maior aproximação dos pais,
sendo estabelecido um relacionamento de maior reciprocidade, de respeito
mútuo, desenvolvendo-se mais para a igualdade do que para a hierarquia
(Singly, 1996; 2000). A relação de dependência e independência é alternada
conforme a situação e a necessidade dos filhos. Os pais continuam
oferecendo suporte financeiro e emocional, principalmente quando não há
condições favoráveis de entrada no mercado de trabalho e quando as
relações amorosas são instáveis, não definindo um projeto de casamento e
de saída da casa dos pais.
Consequentemente, os pais assistem a um aumento de
complicações quanto ao desempenho de suas tarefas. A adolescência dos
filhos chega ao fim, mas não há uma diminuição das responsabilidades. É
preciso continuar auxiliando os filhos no desenvolvimento de maior
autonomia emocional e financeira. Da adolescência à vida adulta, os pais
mantêm um importante papel para o crescimento dos filhos, podendo
facilitar a transição (Arnett, 1994; Doyle & Moretti, 2000; Gitelson e
McDermott, 2006; Gower e Dowling, 2008; Reichert & Wagner, 2007;
Sampaio, 2004).
Diante dessa configuração, é necessário investigar como as mães e
os pais de jovens estão percebendo a transição para a vida adulta,
procurando identificar: as experiências vividas, os significados atribuídos a
esse momento em que não há previsibilidade para o comportamento dos
jovens e, ainda, que tipo de suporte oferecem, enquanto seus filhos não se
tornam adultos independentes.
Utilizamos uma metodologia qualitativa, em que a primeira autora
9
realizou vinte entrevistas com diferentes pais de jovens. Nosso objetivo foi
o de compreender os significados atribuídos à experiência de serem pais que
participam e observam seus filhos tornarem-se adultos. Delimitamos a faixa
etária dos filhos entre os 16 e os 26 anos, mas abrangemos uma faixa de
idade um pouco para menos ou para mais, devido à presença de filhos com
idades variadas, na mesma família. Os demais critérios para a seleção dos
entrevistados foram: classe média e moradores da zona sul da cidade do Rio
de Janeiro.
Das vinte entrevistas, treze foram feitas somente com as mães,
sendo onze separadas dos pais de seus filhos e duas casadas com os pais. As
sete entrevistas restantes foram feitas com casais e são distintas devido à
possibilidade de observar a interação entre os pais, revelando a dinâmica
conjugal aliada à dinâmica parental.
Todos os pais entrevistados (n=27) têm formação universitária,
sendo que nem todos exercem a profissão, sustentando-se com outras
atividades, e três pais e uma mãe são aposentados. Quanto à formação dos
filhos: os mais novos têm o projeto de ingressar na universidade; os mais
velhos já estão cursando; poucos estão formados e no início da carreira. A
idade dos pais varia entre 40 e 67 anos e a dos filhos entre 11 e 28 anos. As
vinte famílias somam o total de 45 filhos. Desse total, vinte e sete filhos
estão na faixa dos vinte anos, dezesseis estão entre 14 e 19 anos, e dois com
11 e 12 anos. Quanto ao número de filhos: quatro famílias têm apenas um
filho; a maioria, onze famílias, tem dois filhos; duas famílias têm três filhos;
duas têm quatro filhos; e uma família tem cinco filhos. Desse total, apenas
três filhos não moram com os pais.

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Tabela I
Família dos entrevistados
Família Entrevistados Nº Idades e gênero dos filhos
filhos
1 Mãe 1 23 fem
2 Mãe 1 20 masc
3 Mãe 1 24 fem
4 Mãe 1 16 fem
5 Mãe 2 23 masc e 25 fem
6 Mãe 2 14 masc e 24 masc
7 Mãe e Pai 2 22 fem e 27 masc
8 Mãe 2 22 fem e 25 masc
9 Mãe 2 11 fem e 16 fem
10 Mãe 2 21 fem e 24 masc
11 Mãe e Pai 2 21 fem e 23 fem
12 Mãe 2 16 fem e 19 fem
13 Mãe e Pai 2 15 fem e 18 masc
14 Mãe e Pai 2 15 fem e 23 masc
15 Mãe 2 21 fem e 28 masc
16 Mãe 3 23 fem, 25 masc e 26 masc
17 Mãe e Pai 3 16 masc, 25 fem e 28 masc
18 Mãe 4 12 masc, 16 fem,18 fem e 23 fem
19 Mãe e Pai 4 12 fem, 17 fem, 20 fem e 21 masc
20 Mãe e Pai 5 14 fem, 15 fem, 17 masc, 23 fem e 24
masc

Em uma análise inicial das entrevistas, a questão que se destaca é:


o que os pais sabem sobre a vida de seus filhos jovens? O mundo dos jovens
é dividido em três categorias: a noite, com seus perigos e diversão, alheios à
vida adulta; a escolha profissional, caracterizada pela dúvida e auxílio dos
pais, marcando mais objetivamente a possível entrada na vida adulta; e a
relação amorosa/sexualidade, sem vinculação com o projeto de casamento e
marcada pela diferença de gênero. Nos três casos, a mãe é uma fonte de
consulta e aconselhamento, fazendo com que ela tenha mais informações
sobre a vida dos filhos de ambos os sexos.
O mundo dos jovens tem características específicas, principalmente
no contexto da noite, e os pais parecem saber disso por ouvirem falar ou
quando percebem algo extraordinário na vida dos seus filhos, revelando
ignorarem, a maior parte do tempo, os reais acontecimentos. Os pais
acompanham os filhos, monitorando-os, muitas vezes com o auxílio do
celular, mas dificilmente conhecem de perto o mundo dos seus filhos
jovens. Por maior que seja a abertura, as informações são filtradas, levando
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os pais a estarem sempre em estado de tensão diante da possibilidade de
algo inusitado acontecer, algo que desconhecem e sobre o qual não têm
controle. Por essa razão, é frequente que os pais entrevistados hesitem em
afirmar com toda convicção saber o que se passa com os filhos, quando
estão se divertindo à noite. Atribuem os perigos ao contexto social, mas
desconhecem como seus filhos comportam-se nesse contexto. O uso de
drogas, por exemplo, é uma preocupação, mas os pais não têm absoluta
certeza sobre a experiência dos filhos. Nesse sentido, ainda se pode falar da
diferença entre gerações e da presença de segredos, que indicam o
afastamento entre as experiências dos filhos jovens e a possibilidade de
conhecimento e compreensão dos pais.
A escolha profissional é um tópico bastante discutido entre pais e
filhos e, sendo mais próximo da vida dos pais, parece também a área mais
ligada à ideia de passagem para a vida adulta. Mesmo assim, não há uma
urgência e tudo deve ser ponderado para que sejam feitas as melhores
escolhas de formação e de exercício profissional, devendo ser consideradas
as dificuldades apresentadas pelo mercado de trabalho. Não há,
necessariamente, um encontro de ideias a respeito da profissão a seguir.
Pais e filhos podem discordar seriamente nesse tópico, mas os filhos
procuram os pais como fonte de orientação e suporte para esse importante
processo de decisão. Aqui, revela-se uma maior dependência, tanto
emocional quanto financeira. Emocionalmente, os filhos sentem-se
inseguros e esperam ter o apoio dos pais em suas escolhas de formação
profissional e, para isso, vão precisar também do suporte financeiro. A
dependência se prolonga ainda mais, em função de os pais estarem
preocupados em oferecer aos filhos melhores condições de entrada no
mercado de trabalho. Surge, então, um paradoxo: a área que se aproxima
mais do mundo dos pais, enquanto adultos que trabalham, é também fonte
de maior dependência, devido às exigências de formação e de preparo para
o mercado, que se aliam à preocupação dos pais quanto a um futuro melhor
para os filhos. Em síntese: os filhos permanecem numa relação de
dependência dos pais enquanto se preparam para a entrada no mundo adulto
do trabalho.
Os pais parecem perguntar: meu filho, um adulto? Os filhos são
vistos como adultos em alguns aspectos e em outros não. Nesse sentido, o
mundo dos jovens contrapõe-se ao mundo adulto, que se localiza à frente,
distanciado no tempo. O projeto de se sustentar sozinho, casar e ter filhos,
característico do ciclo de vida tradicional, não é visto, nem pelos pais nem
pelos filhos, como urgente. É preciso preparar-se para entrar no mundo
adulto, aprendendo a viver de uma forma independente. Assim, a entrada na
vida adulta é adiada porque os filhos ainda não estão preparados. O que
define essa preparação que possibilitará o alcance do status de adulto? A
12
formação profissional e a independência financeira parecem ser as respostas
necessárias para uma definição quanto ao futuro. Enquanto isso, não há um
marcador que determine a entrada definitiva na vida adulta e a relação com
os filhos prolonga-se indefinidamente em uma situação de dependência.
A relação amorosa e a sexualidade são temas presentes, mas
falados com algumas reservas. A discussão se apresenta quando há
necessidade de se tomar decisões, quanto a dormir ou não com o
namorado(a) em casa, por exemplo. A respeito da sexualidade, há, ainda,
uma forte distinção de gênero. As mães participam mais, recebendo
algumas informações ou ajudando a tomar decisões, principalmente com
suas filhas mulheres. Os filhos homens costumam dividir com as mães
aspectos emocionais de sua vida amorosa, geralmente, quando têm dúvidas
ou estão em crise no relacionamento.
Os conflitos entre pais e filhos ocorrem, não tanto entre gerações,
mas entre pessoas com pensamentos e desejos diferentes. Há, portanto,
alguns conflitos e muita negociação, o que suaviza a distinção geracional. A
negociação, por vezes, sugere uma indistinção e uma possível troca de
papéis. A hierarquia entre pais e filhos não é completamente abolida, mas
ela é intercambiável em um processo relacional pautado pela negociação e
pela maior proximidade entre as gerações.
Desse modo, numa família em que pais e filhos estão cada vez
mais próximos, sendo os filhos nomeados como amigos, principalmente no
discurso dos pais, a ideia de conflito entre as gerações perde sua força
heurística para compreender a relação pais e filhos. Os conflitos não deixam
de existir, mas a negociação é a forma de resolvê-los, levando a uma
convivência mais permissiva e possibilitando a coexistência de diferentes
perspectivas, que contribuem para formar e manter em funcionamento as
regras da família, em um processo contínuo de relativização dessas regras.
Nas entrevistas com as mães separadas, predomina a afirmação de
que o pai não participa da vida dos filhos desde a infância e, com a
separação, há uma piora, consolidando-se o afastamento paterno, ao longo
da adolescência e do início da vida adulta. As mães marcam a ausência de
participação do pai e acentuam sua presença como aquele que falta e/ou
falha. Nas entrevistas em que os pais estão presentes, eles têm a
oportunidade de falar e tendem a concordar com as mães, quanto à sua
pouca participação. E, quando participam mais, há uma crítica das mães, o
que parece confirmar a maior habilidade delas participarem,
independentemente de sua situação conjugal e da fase de desenvolvimento
dos filhos.
Há, portanto, uma diferença entre a posição do pai e da mãe,
principalmente após a separação, que é perpassada pela questão de gênero e
pelas histórias da conjugalidade e da parentalidade. A diferença entre a mãe
13
e o pai é retratada tanto nas entrevistas dos pais que permanecem casados
quanto nas entrevistas com as mães separadas e, para essas, há uma
exacerbação da diferença e da desvalorização do pai.
O discurso unânime das mães separadas, inicialmente, fez-nos
pensar em entrevistar os ex-maridos, mas desistimos dessa ideia porque não
era nossa intenção estabelecer um confronto com o discurso das mães.
Ainda assim, gostaríamos de oferecer um espaço para a voz do pai.
Futuramente, consideramos necessário entrevistar pais separados, que não
seriam os ex-maridos das entrevistadas, mas, sim, outros pais dispostos a
falar da participação na vida dos seus filhos jovens. Desse modo,
poderemos contemplar a complexidade da relação pais e filhos, que
continua após a dissolução do casamento, ao entrevistarmos apenas o pai,
trazendo o discurso do homem a respeito de sua participação na vida dos
seus filhos jovens.
A transição para a vida adulta, sendo uma fase distinta do ciclo
vital, transforma tanto o desenvolvimento do filho jovem quanto de seus
pais, acarretando mudanças para o sistema familiar como um todo. Na
transição, com seus vários movimentos de idas e vindas, a instabilidade é
uma certeza que afeta o comportamento de pais e filhos (Gitelson e
McDermott, 2006; Gower e Dowling, 2008; Hauser, 1984; Larson,
Richards, Moneta, et al. 1996). Consideramos, a partir de nossa pesquisa,
que os pais estão vivenciando esse processo sem perceberem as implicações
da continuidade da dependência dos filhos. Vivenciam a transição sem
terem clareza de estarem atravessando uma nova fase, que demanda a
transformação do papel parental.
Por essa razão, a recente transformação do desenvolvimento
pessoal e familiar, que rompe com a expectativa de maior autonomia do
filho no início dos seus vinte anos, precisa ser mais estudada, enfocando a
mudança do papel dos pais, já que os filhos prolongam a sua dependência.
Não é mais a relação inicial da infância, que demandava cuidados físicos de
sobrevivência, sendo caracterizada pela total dependência. Trata-se de um
novo tipo de relação de cuidado que, mesmo considerando o
desenvolvimento crescente da autonomia, exerce o papel de apoio ao
crescimento do filho. Esse é um desafio presente na transição para a vida
adulta: em uma relação de extensão da dependência, ainda que relativa, os
pais precisam criar condições para o desenvolvimento adulto dos filhos
(Mitchell, 2006; Moore, 1987; Ryan e Lynch, 1989).
Nossos entrevistados são de classe média. Por isso, nossos dados
refletem a situação de um grupo privilegiado da cidade do Rio de Janeiro,
apesar das dificuldades enfrentadas para encaminharem os filhos para o
mundo adulto. Seus filhos vivem um processo de experimentação que é
protegido e, na ausência de políticas públicas, têm, no suporte familiar, a
14
condição de enfrentarem os obstáculos que poderiam paralisar o seu
desenvolvimento. A escolha profissional é um exemplo do modo como
podem experimentar várias opções, escolhendo dentre alternativas que se
opõem e alongando o período de formação, enquanto os pais acolhem e
sustentam esse processo. A sexualidade também é vivida de uma forma
protegida, tendo na mãe, principalmente, uma fonte de consulta e de
orientação, que pode assumir responsabilidades na tomada de decisão. Se há
uma indecisão quanto a que profissão seguir, se a camisinha fura, a mãe
orienta e ajuda a decidir e, ainda que haja conflitos durante o processo, a
negociação é a tônica de uma relação não mais baseada na autoridade e no
estabelecimento de uma rígida hierarquia. Essa dinâmica pode alienar o pai
de uma relação mais próxima de seus filhos e levar os filhos a terem
dificuldades em assumir a responsabilidade por seus atos. Para inserir o pai,
transformando o seu modo de participar, a conjugalidade deve ser analisada
como um fator importante que determina o funcionamento da relação pais e
filhos. Assim, haverá, igualmente, uma transformação dos papéis de gênero,
que não deve excluir a diferença entre o pai e a mãe, mas aproveitar os
recursos de ambos para ajudar no crescimento dos filhos e na assunção de
responsabilidades de adultos (Féres-Carneiro, 2005; Gallardo et. al., 2006;
Heilborn et. al., 2006; Hurstel, 1999; Miljkovitch e Pierrehumbert, 2005;
Roudinesco, 2003).
O que ouvimos de nossos entrevistados, portanto, reforça a idéia de
que os pais estão participando da vida de seus filhos jovens, ajudando a
prolongar o período de dependência. O único tópico que parece escapar à
influência direta dos pais é o uso de drogas, surgindo como um tema que
envolve segredos entre pais e filhos. Seria essa área que identificaria mais
nitidamente a separação entre o mundo dos jovens, caracterizado pela
experimentação, e o mundo dos adultos, caracterizado pela observação e
obediência às regras sociais? Essa área é uma das poucas que os pais
consideram não conhecer como os filhos estão vivendo, restando quase
nada que pudesse escapar do conhecimento e da participação dos pais.
Considerando que o desconhecimento/afastamento dos pais é paralelo à
construção da identidade dos filhos jovens, como se daria essa construção
quando os pais afirmam conhecer e estar tão próximos dos filhos? Para
respondermos a essas perguntas, necessitamos empreender mais pesquisas.
Até aqui, porém, podemos afirmar que os pais participam ativamente no
período de transição para a vida adulta, cumprindo o papel de oferecer
suporte para o crescimento e a autonomia dos seus filhos jovens. Esse papel
não é exercido por autoridades, mas por amigos mais velhos, mais
experientes, prontos a aconselhar, ajudando a tomar decisões, o que,
paradoxalmente, prolonga a permanência na casa dos pais, dificultando o
desenvolvimento de uma maior autonomia. Por consequência, é preciso
15
investigar como o amadurecimento ocorre com o suporte dos pais, sendo
acompanhado por um processo de diferenciação, que, ocasionalmente, leva
a comportamentos que se afastam, se distinguem e/ou se opõem aos dos
pais.

Referências

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17
2

PREENCHENDO VAZIOS:
DINHEIRO E RELAÇÕES PARENTAIS

Valéria Meirelles
Rosane Mantilla de Souza

Embora o dinheiro seja um dos grandes e potentes intermediários


dos relacionamentos interpessoais, e as relações econômicas sejam objeto
de diferentes disciplinas já há muito, na Psicologia, seu estudo é recente.
Este capítulo tem como objetivo descrever um estudo de caso sobre
endividamento discutido por meio de conceitos da Psicologia Econômica.
Apresenta um atendimento psicoterapêutico com enfoque sistêmico a uma
mulher de 30 anos, filha única, solteira, executiva de multinacional, com
rendimentos mensais acima de 20 salários-mínimos, que, a despeito de
todos seus esforços, não conseguia sair das dívidas superiores a cinco vezes
seus ganhos quando do início do processo terapêutico. Ao longo do
atendimento buscou-se compreender o significado agregado ao dinheiro, ao
seu mau uso e as conseqüências em sua vida, bem como a sair do
endividamento.
Introduziremos inicialmente alguns conceitos, de modo a favorecer
a compreensão e divulgação da importância de o psicólogo e o
psicoterapeuta tomar contato com o campo da Psicologia Econômica
quando atua com indivíduos de forma contextual, ou seja, considerando
seus relacionamentos e os significados a eles atribuídos.

Psicologia Econômica

De acordo com Ferreira (2008), a Psicologia Econômica tem suas


origens na Europa com o objetivo de ampliar a compreensão dos fenômenos
econômicos sempre influenciados pela participação humana com a
imprevisibilidade ou irracionalidade de seus movimentos. A disciplina
estuda:

“o comportamento econômico dos indivíduos (denominados,


frequentemente, consumidores ou tomadores de decisão, do
inglês „decision makers‟), grupos, governos, populações, no
sentido de compreender como a economia influencia o indivíduo
e, por sua vez, como o indivíduo influencia a economia, tendo

18
como variáveis pensamentos, sentimentos, crenças, atitudes e
expectativas” (p. 39).

O objetivo dos psicólogos econômicos é entender os movimentos


humanos relativos ao uso do dinheiro e ao processo de tomada de decisões
que envolvam ou não a sua administração. Sendo assim, estudam as
„anomalias‟ que envolvem o uso de recursos finitos que neste caso, é o
dinheiro.
Furnham & Argyle (1998) são os autores responsáveis pela
construção de uma teoria sobre dinheiro dentro do campo da Psicologia. A
Psicologia do Dinheiro tem como objetivo entender seu uso pelas pessoas,
uma vez que se considera que o dinheiro “tem, não apenas muitas
definições, mas múltiplos significados e muitos usos” (p. 7), que necessitam
ser entendidos como mais uma importante manifestação do comportamento
humano. Ainda de acordo com estes autores, ao se estudar as atitudes em
relação ao dinheiro devemos, em primeiro lugar, buscar compreender seu
significado para cada pessoa (poder, prestígio, segurança), uma vez que é a
partir deste significado que poderemos entender atitudes como gastar,
desperdiçar, poupar, doar, e outras.
A multiplicidade de possíveis significados atribuíveis ao dinheiro
nos remete a necessidade de entender, junto a cada pessoa, as narrativas
segundo as quais estes sentidos foram sendo construídos ao longo de seu
desenvolvimento. Trata-se de um processo complexo, baseado no
relacionamento interpessoal com as figuras fundamentais de apego (família
de origem, amigos próximos e parceiros românticos) que ocorre dentro de
limites sociais, históricos e culturais específicos. É sob esta circunstancia
que consideramos que a Psicologia do Dinheiro e o Pensamento Sistêmico
podem fazer uma parceria teórica produtiva no sentido de permitir não só
compreender, mas instrumentalizar, as pessoas a se entenderem, e no caso
que discutiremos mais adiante, a sair do endividamento.

Significados Atribuídos ao Dinheiro

Quando pensamos em dinheiro, naturalmente evocamos o lado


quantitativo, ou seja, dinheiro é um número. Porém, é um número que atrela
vários atrativos sociais: poder, talento, habilidade, beleza, saúde,
inteligência e oferece a possibilidade de a pessoa sentir-se sempre especial
(Ferreira, 2008). Nas sociedades capitalistas, o dinheiro também está
associado à segurança, sucesso, liberdade, independência, esperteza, benção
de Deus, status, merecimento, bem estar (Furham & Argyle, 1998; Lea,
Tarpy, Webley, 1997).

19
Para o antropólogo Weatherford (2009: 11), autor do livro „A
história do dinheiro‟, nas sociedades atuais ele “serve como a chave que
abre as portas de quase todos os prazeres, mas também de muitas dores”.
Ao mesmo tempo em que constitui “o ponto de convergência da cultura
mundial moderna, ele define as relações entre as pessoas”, inclusive os
relacionamentos mais próximos.
De fato, o dinheiro tem múltiplas representações sociais para além
da mera quantidade, permeando a rede social pessoal, incluindo-se as
relações mais primárias, como aquela com a família de origem, embora
ainda poucos psicólogos reconheçam este impacto. Madanes& Madades
(1997: 11), é uma das raras terapeutas a destacar o dinheiro e seu uso no
campo de estudo e atendimento a famílias, afirmando que este se encontra
na base de toda a vida conjugal e familiar. A autora destaca que:

“(...) usamos o dinheiro, dissimuladamente, em nossa luta pelo


poder com os nossos maridos, esposas, pais ou filhos. Nós
exprimimos nossos desejos, nossos anseios de confiança, nossa
necessidade de vingança e retribuição por meio do dinheiro. Esta
força secreta do dinheiro nos reúne a todos - irmãs e irmãos,
jovens e velhos - em nome do amor, da vaidade, da compaixão e
da raiva”.

Se não podemos desconsiderar o papel que o dinheiro ocupa, ainda


que „secretamente‟, nos relacionamentos, quando atuamos como
psicoterapeuta torna-se relevante compreender suas decorrências nas
relações interpessoais atuais, tanto quanto delinear a construção destes
significados ao longo do desenvolvimento, junto aos relacionamentos
primários, ou seja, com as figuras parentais.
Os pais dão dinheiro aos filhos e, direta ou indiretamente, ensinam-
nos a administrá-lo e valorizá-lo, ou seja, realizam um programa de
socialização econômica. Mas, como afirmam Furnham & Argyle (1998:64),
alguns pais “com potencial para „comerciantes de amor‟1, dão dinheiro no
lugar do amor”. Portanto, os psicoterapeutas deverão estar atentos às
questões financeiras de seus pacientes, observando fatores psicológicos que
freqüentemente levam a problemas mais sérios de uso do dinheiro. Para
estes autores, algumas pessoas têm o dinheiro como substituto da emoção e
afeto, “que é usado para comprar afeição, lealdade e auto-estima” que
podem conduzir a várias patologias financeiras, entre elas o endividamento
(p. 139).

1
No original: „love dealers‟.
20
Endividamento

Segundo Tolotti (2007) “uma pessoa pode ser considerada


endividada quando não consegue cumprir seus compromissos financeiros e
possui um atraso que oscila entre 1 mês e 3 meses”, sendo possível
caracterizar dois tipos de endividamento: passivo e ativo. O primeiro ocorre
quando as dívidas do indivíduo crescem devido a circunstancias imprevista
e alheias a sua vontade, como no caso de doenças, acidentes, desemprego e
congêneres. Já o endividamento ativo é proveniente de escolhas
equivocadas, isto é, má gestão financeira: “Os endividados ativos são
aqueles que estão constantemente endividados, independente dos
rendimentos que possuem” (p.31).
Nos casos de endividamento ativo devemos considerar as
motivações e aspectos subjacentes. Ou seja, pode haver o endividamento
por consumo excessivo ou baixos rendimentos, mas há também o
endividamento pelas questões afetivas, que nem sempre é percebido pela
própria pessoa, nem por aqueles que a cercam.
Dimensionar o endividamento ativo implica em compreender como
que as escolhas financeiras podem estar pautadas em motivações afetivas e
não pela racionalidade. Neste sentido, como esclarece Tolotti (2007), o
endividamento financeiro pode ser conseqüência do endividamento afetivo.
Segundo a autora, “parte dos endividamentos e das falências pessoais
decorre de insatisfações e tristezas profundas (...) e maior parte dos
endividados, sente culpa, vergonha, baixa estima ou sensação de
impotência” (p. 73), como será evidenciado a seguir.

Apresentação do caso

Silvia recebeu a indicação de uma colega para procurar a primeira


autora deste capítulo, que vem atuando e pesquisando temas associados a
“mulher e dinheiro”, em busca de um processo terapêutico que a auxiliasse
a enfrentar seu prolongado e difícil endividamento.
Silvia tem 30 anos, é solteira, e tem um namorado há dois anos,
com quem pretende morar junto no futuro, embora relate constantes crises
entre o casal. Com educação superior em área financeira, atua como
executiva de uma empresa multinacional e tem rendimento mensal acima de
20 salários mínimos. Poderia ser descrita como bem sucedida
profissionalmente caso não considerássemos a incapacidade de dimensionar
suas dívidas que correspondiam a cinco vezes o valor de seu salário, na
época do início do atendimento psicoterápico. Ela esclareceu que, em
função dos juros, não conseguia se livrar delas e conforme o tempo estava

21
passando, os valores devidos aumentavam desproporcionalmente a sua
entrada financeira.
Segundo os conceitos de endividamento, Silvia deve ser
considerada como uma endividada ativa que, embora possua informações,
formação e um bom entendimento financeiro, manifesta o que Tolotti
(2007) caracteriza como endividamento devido a questões afetivas sendo
importante, portanto, compreender como se construiu esta manifestação ao
longo dos seus relacionamentos.
Em vista do quadro emergencial trazido por Silvia, optamos por
um procedimento terapêutico focal de modo a favorecer um enfrentamento
mais imediato de sua condição, o qual poderia ser seguido de um
atendimento psicoterapêutico posterior mais de longo prazo. Usando
técnicas mais estruturadas como o genograma familiar, autobiografia,
mapas de rede etc, realizamos, durante algumas sessões um estudo da
história de vida de Silvia de modo a compreender seu processo de formação
de vínculos afetivos, explorando também as atitudes de seus pais em relação
ao dinheiro, sua socialização econômica e construção do significado do
dinheiro.
Silvia nasceu no interior do país, em cidade pequena, com escassos
recursos educacionais. Filha única de uma relação conjugal instável, seu
pai, logo após seu nascimento, mudou-se de cidade e, até hoje mantém
pouco contato com a filha (duas vezes ao ano, no máximo). A família
extensa da mãe de Silvia, natural da cidade de seu nascimento, e com
recursos financeiros que foram diminuindo ao longo do tempo, pouco apoio
lhe ofereceu, culpando-a pelo casamento contrário a seus desejos. Assim,
sua mãe teve que trabalhar muito para dar conta da situação em que se
encontrava, para cuidar da filha e garantir-lhe uma vida melhor que a sua,
mas parece não ter lhe permitido boas condições de vinculação.
Enquanto morou com a mãe, aprendeu o valor do trabalho e a viu
se esforçar para fazer dinheiro e não desperdiçar, pois o pai nunca
contribuiu financeiramente com sua educação. Reconhece que sua mãe foi,
e ainda é, um bom exemplo em termos de retidão e comprometimento
profissional, condutas que Silvia reproduz em seu trabalho e que lhe ajudam
a crescer na carreira. Mas, também relata a pouca disponibilidade e
envolvimento afetivo com a mãe, e o total afastamento em relação ao pai.
Refere “sempre se sentir sozinha, com baixa auto-estima em decorrência
das ausências paterna e materna”. Silvia mostra os sintomas de não ter
conseguido construir um apego seguro em relação aos cuidadores primários
e, posteriormente de não ter vivenciado outras relações que pudessem
alterar esta configuração.
A mãe que não lhe supri afetivamente, e que apesar dos esforços,
também não conseguia dar à filha a vida que “ela deveria ter” (nas palavras
22
da mãe) quase desaparece da vida da filha quando, tendo em vista a
expectativa de vida melhor, Silvia se muda para a casa da madrinha, para
estudar em uma cidade maior e em outro estado, tão logo entrou na
adolescência. Durante este período não apareceram relações que
permitissem re-elaborar sua representação insegura de si e do mundo.
Descreveu que vivia bastante isolada e se ressentia da diferença de nível
sócio-econômico entre a família da madrinha e as colegas do colégio onde
estudou, e procurava superar seus sentimentos de inferioridade com muito
estudo e bom desempenho escolar sempre estando entre as melhores alunas
da classe. Silvia encontra, então, na competência intelectual um modo de
lidar compensatoriamente com a insegurança que, no entanto, permanecerá
sem solução, permeando seus relacionamentos e exigindo cada vez mais
mostras de poder.
Aos 22 anos mudou-se para São Paulo em busca de
desenvolvimento profissional e desde então trabalha e se mantém sozinha.
Embora a competência profissional de Silvia seja inegável, o sucesso
profissional parece nunca ter sido suficiente para suprir sua fragilidade de
vinculação afetiva e ela relata que sempre gastou um pouco mais do que
podia, pois “queria sentir-se bem vestida, bonita e aceita perante as
pessoas tanto de seu trabalho quanto da rede social”.
Atualmente, freqüenta uma das melhores academias de ginástica da
cidade, pois considera importante investir em saúde, freqüentar lugares
diferenciados. Por onde passa, faz novos contatos e, por isto mesmo,
constantemente vai a festas, eventos e aniversários que fazem com “sempre
tenha que levar algum presentinho”. De fato, o que percebemos é que
Silvia constantemente gasta mais do que seria razoável se pensamos tratar-
se de contatos sociais pouco íntimos.
Tem predileção por shows, teatro e viagens e não abre mão dos
mesmos, considerando-os “parte de seu processo de formação e cultura”.
Seu padrão de consumo aparece como eminentemente compensatório. Gasta
com roupas, acessórios, shows, presentes caros aos „amigos‟, tudo para que
pareça poderosa e forte, ao mesmo tempo em que, inconscientemente,
implora pela atenção e admiração das pessoas, sem saber como se
aproximar e manter intimidade.
Quando sai com o namorado, ele é quem paga as contas, mas
“como ele é de um nível sócio–econômico mais elevado, precisa estar
sempre bem arrumada”. Não se sente a altura do namorado ou da relação.
Sua dificuldade de assumir/ofertar a si mesma no relacionamento se
expressa comprando constantemente roupas e acessórios novos, o que fez
com que aprendesse a buscar liquidações, brechós, pontas de estoque, mas
não impediu de endividar-se cada vez mais. Embora diga gostar muito do
namorado, Silvia freqüentemente briga com ele e as rupturas e retornos,
23
após promessas de „melhoras‟ de sua parte, tornaram-se o padrão do
relacionamento.
A somatória das necessidades de ser reconhecida, forte, poderosa,
independente, competente, culta, enfim, legitimada e amada pelas pessoas,
fez com Silvia passasse a exagerar em seus gastos e sem se dar conta do que
estava acontecendo, a ponto de quase ficar sem crédito. Neste momento,
mobilizou-se para procurar cursos voltados à educação financeira, contudo,
mesmo com as importantes informações disponíveis, Silvia não conseguia
segui-las. Finalmente, acabou se convencendo de que precisava buscar
outro tipo de ajuda, voltada aos aspectos psicológicos do dinheiro: procurar
uma psicoterapia.
Em uma carta autobiográfica Silvia escreveu: “Minha relação com
o dinheiro sempre foi conturbada. O poder que o dinheiro representa para
mim, ao menos neste momento, perdeu sua força ao mesmo tempo em que
me sinto fraca diante dele” (...) queria ter um acompanhamento de minha
mãe, que se desdobrou para cuidar de mim, mas que teve se distanciar de
mim (...). Comprava muito, desde compras inúteis até bons livros, CDs,
viagens. Busquei um estilo de vida que não era meu. Era como eu me
presenteasse com a vida e o carinho que meus pais não puderam me dar
(...). Desde que cheguei a São Paulo busquei minha identidade em coisas
que „podia‟ comprar e desta forma fui me endividando (...). Hoje,
compreendo que o dinheiro representa meus pais, a presença deles, a
família e a vida e o reconhecimento que não tive”.

Análise do caso

Do relato acima, podemos interpretar que, para Silvia, comprar


significava “cuidar de mim mesma, ser amada, dar coisas boas, ser vista”,
enquanto postergar desejos, realizando escolhas, era repetir as atitudes de
seus pais, que "nunca tinham tempo para mim e me davam alguns presentes
depois, para compensar o tempo que não ficavam comigo. Era uma
tentativa de me fazer sentir especial para eles.”
Silvia não conseguia deixar de repetir consigo mesma a trama que
a enrodilhava. O dinheiro era usado por Silvia para suprir a presença dos
pais na sua vida, uma vez que segundo ela, foi „de um vazio muito grande‟.
Segundo Furnham & Argyle (1998), “Para alguns, dinheiro é dado como
um substituto para emoções e afeto. Dinheiro é usado para comprar
afeição, lealdade e auto-estima” e foi o que ocorreu com ela. Nesta linha de
raciocínio, o significado do dinheiro era de cuidado parental, um substituto
dos afetos, daí a dificuldade em poupar e se privar de coisas que desejava:
“não suportaria mais uma vez dar conta de „nãos‟”, considerados aqui
como a ausência dos pais.
24
Ao favorecer a Silvia identificar como foi sendo construído o
significado atribuído ao dinheiro em sua vida, foi-lhe possível compreender
o comprar e os gastos abusivos como meios de dar conta de vazios
relacionados a relação com as figuras parentais, aos quais se associaram a,
durante a adolescência e vida adulta, a busca de prestígio e aceitação social.
Furnham & Argyle (1998, p. 38) afirmam que o “dinheiro tem o
poder de despertar o nosso lado irracional” e podemos perceber, por meio
deste caso, como a „irracionalidade‟ pode se manifestar em gastos
descontrolados, na expectativa de encontrar o acolhimento e carinho que
não se recebeu no passado e/ou que se espera receber dos relacionamentos
interpessoais atuais, mesmo quando a pessoa tem a capacidade intelectual e
as informações necessárias para não ultrapassar o que sua receita permite.
Retomando Tolotti (2007), que considera que parte dos processos
de endividamento são oriundos de tristezas profundas, no processo
terapêutico de Silvia, foi necessário que ela criasse meios internos para
sobreviver ao „apelo psicológico‟ do dinheiro como substituto de algo que
faltou no passado, o que só foi possível de ser realizado investigando sua
história de vida familiar, juntamente com o significado atribuído ao dinheiro
em seus relacionamentos interpessoais. Ao ter contato e reconhecer suas
emoções, Silvia passou a ter atitudes mais comedidas em relação a si
mesma e ao uso do dinheiro. Antes de fazer alguma compra passou a
perguntar-se „para que‟ e „em nome de que‟ a faria. E mudou a forma de se
perceber, reconhecendo que “seu sucesso profissional também faz parte de
uma forma amorosa de cuidar de si mesma”.
A partir de então, Silvia pode conciliar os conhecimentos de
educação financeira com aqueles a respeito de si mesma, colocando em
prática o que aprendera. Montou uma planilha de gastos que permitiu fazer
projeções para economizar e passou a reduzir despesas. Um exemplo
interessante foi a diminuição dos valores dos presentes dados aos amigos.
Ao invés de algo caro, passou a buscar o inédito, algo como um artesanato
de sua terra natal, superando inclusive a vergonha de ser do interior.
Remanejou gastos, pesquisou preços, trocou a marca de roupas, vinhos;
diminuiu drasticamente a freqüência a shows e, acima de tudo, conseguiu
ficar um mês sem sair do programado financeiramente, embora isto tenha
lhe custado “esforços emocionais altíssimos”.
Na verdade Silvia passou a negociar consigo mesma. A “criança
insegura” passou a ser capaz de esperar para ter algo no futuro e a confiar
que poderia obtê-lo, à medida que, aos poucos conseguiu mudar hábitos de
consumo, bem como amortizar uma parte de sua dívida. Como
conseqüência, sua auto-estima elevou-se e relatou sentir-se mais confiante
em suas decisões. Voltou a ter “desejos” como passar uma semana de
férias em New York, comprar um apartamento, confiando em ser capaz de
25
realizá-los, desde que a médio e longo prazo e consciente de para quem esta
se organizando para conseguir estas aquisições, ou seja, mudando o
referencial e significado do dinheiro em sua vida.
Livre da patologia financeira, Silvia pode dedicar-se mais a si, ao
namorado e a sua rede de amizades, bem como trabalhar mais concentrada,
uma vez que as dívidas estavam literalmente tirando seu sono e
concentração. Encerrado o processo terapêutico, a cada dois meses, envia
notícias por e-mail à terapeuta, que ainda faz um acompanhamento do caso.
No mais recente, havia comprado seu pacote de viagem de férias, dentro do
orçamento e sem se sentir culpada. O namorado iria junto e as brigas
haviam diminuído bastante.

Considerações finais

Para Madanes & Madanes (1997: 11): “Dinheiro é


freqüentemente, a ponta de um iceberg, ocultando problemas mais
profundamente escondidos entre os membros de uma família. O dinheiro
pode ser o ponto crucial que está por trás de outros conflitos em relação ao
amor e à justiça”.
Acreditamos que a história das dificuldades de Silvia em
administrar o próprio dinheiro, apesar da competência profissional e dos
esforços racionais, evidenciam como processos de endividamento podem
encobriam questões mais profundas que dizem respeito às relações parentais
e outros relacionamentos interpessoais. Neste sentido, para a compreensão
de situações de endividamento é necessário identificar os aspectos
relacionados ao significado e uso do dinheiro, bem como a dinâmica
interpessoal dos afetos nele depositados.
Quando atendemos pessoas em situações de risco financeiro,
devemos sempre considerar os aspectos psicológicos do dinheiro, com
atenção especial aos temas familiares e interpessoais, em paralelo aos
aspectos econômicos de gestão de seu uso ou abuso. Mas, consideramos
também ser importante pensar na criação trabalhos de prevenção e cuidado
que favoreçam a interação entre relacionamento interpessoal e psicologia
econômica, expandindo ainda mais os campos de atuação das duas áreas.

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27
3

ANTES DO SIM: RITUAIS, CELEBRAÇÕES E PRÁTICAS PRÉ-


NUPCIAIS

Juliana Fonseca Simões


Rosane Mantilla de Souza

É cada vez mais comum que jovens morem juntos antes de se


casar. Na prática psicoterapêutica, ou mesmo no cotidiano em uma
universidade, dois aspectos ressaltam desta condição. O primeiro refere-se à
insatisfação, principalmente feminina, quando essa experiência se torna
muito longa, leia-se mais de um ano, sugerindo a idéia de que a
conjugalidade “verdadeira” implica em realizar a cerimônia de casamento
com “tudo o que se tem direito” (pedido, aliança de noivado, todo o preparo
para a cerimônia e festa de casamento, lua-de-mel); o segundo aspecto
relaciona-se à freqüência com que, poucos meses após a cerimônia de
casamento, muitos destes casais se separam, agregando ao próprio
sofrimento, o estupor, quando não, a hostilidade, da família de origem de
um ou de ambos recém-casados.
Embora o campo da terapia familiar e de casais tenha se expandido
muito no Brasil e, particularmente a conjugalidade desperte o interesse de
um número enorme de pesquisadores, quase nada se sabe sobre o que
acontece, ou não acontece, no relacionamento dos casais que vivem junto
antes de casar legalmente. O presente capítulo traz algumas reflexões sobre
o tema baseadas nos resultados da pesquisa de mestrado de Simões (2007),
que tratou a situação sob a perspectiva sistêmica dos rituais conjugais e
familiares, e em atendimentos clínicos realizados pelas autoras.

A conjugalidade em questão

As mudanças demográficas e econômicas do final do século XX, e


as reformulações dos papéis femininos e masculinos contemporâneos,
contribuíram significativamente para uma transformação da intimidade e
das expectativas acerca da importância do relacionamento amoroso na vida
dos indivíduos. Hoje, não podemos mais falar em modelo hegemônico de
conjugalidade. As uniões da atualidade, caracterizadas em sua maioria pela
evolução dos sentimentos, e não mais necessariamente pela tutela religiosa
ou jurídica, tornaram o casamento apenas uma das possibilidades,
admitindo-se uma pluralidade de outras opções como o morar junto antes de
casar, as uniões estáveis, as uniões sem filhos e os relacionamentos LAT –
28
sigla advinda da literatura norte americana Living Apart Together que
designa indivíduos que se consideram comprometidos, mas vivem em casas
separadas.
Se, em um passado ainda vivo no imaginário social, as mulheres
saiam da casa dos pais, devidamente casadas, para viver com o marido, sob
uma lógica prescrita segundo a qual ele seria o provedor, ocupando a
posição familiar e social hierarquicamente superior, e ela seria a dona-de-
casa, hoje os relacionamentos são muito mais livres de regras rígidas e o
equilíbrio conjugal tende ao igualitário: ambos os parceiros trabalham e tem
que dar conta da complexa tarefa de equilibrar a satisfação dos projetos
pessoais com a qualidade da experiência conjugal.
Segundo Kimmel (1991) os novos modelos masculinos e femininos
mais flexíveis muitas das vezes não assumiram o lugar dos anteriores,
desenvolvendo-se em paralelo. O que se percebe, então, é uma tensão entre
os diversos papéis desenvolvidos, interferindo nas idéias de família e
desestabilizando o casal que precisará vezes e vezes ao longo de seu
percurso, avaliar o relacionamento e negociar o padrão de satisfação. Com
isso, os ideais românticos dos séculos XIX e XX fundados na imobilidade
da idéia da escolha certa dos parceiros que, assim, permaneceriam “juntos
até que a morte os separe”, perderam espaço para a qualidade do
relacionamento sexual, para o companheirismo, intimidade, igualdade,
equilíbrio entre satisfação do projeto pessoal e relacionamento conjugal
(Norgren, Souza, Kaslow, Hammerschmidt e Sharlin, 2004).
A sobrevivência absoluta da família deixou de ser o foco principal
da conjugalidade. A fidelidade aos deveres familiares e sociais deu lugar à
lealdade aos próprios sentimentos: o indivíduo tornou-se o centro das
atenções, com suas necessidades e anseios sexuais, de afeto, apoio e
segurança. Porém, como estas demandas ocorrem no contexto de um
relacionamento íntimo entre duas pessoas, os conflitos se multiplicaram e
com isso, nunca se falou em relacionamento amoroso/conjugal.

O Nós

Se, vincular-se é uma condição humana e apaixonar-se é uma


experiência muitas vezes vivenciada já na infância, na adolescência,
sustentar um relacionamento amoroso por meio do namoro é uma das
situações mais freqüentes. O namoro é um processo de experimentação -
dentro da grande experimentação que é a adolescência - e é o amar
adolescente que permitirá ao jovem a consciência do sentido vincular da
humanidade, de ser por meio do outro e também a percepção da pulsão e da
incompletude (Souza e Ramires, 2006).

29
O desenrolar da adolescência permite ao jovem a exploração das
várias facetas da experiência afetivo-sexual e o desenvolvimento de uma
identidade como parceiro amoroso. Com o declínio acentuado da iniciação
sexual em ambos os sexos, cada vez mais os adolescentes permanecem com
os pais numa relação de apego e cuidado e exploram a vida amorosa e
sexual em relações que vão desde o “ficar” e outras formas maleáveis de
exploração sexual, até o namoro mais compromissado. Nesse processo, são
conformadas e testadas regras de comportamento e atribuído status
diferenciados aos parceiros, segundo os diferentes tipos e níveis de
envolvimento.
Em geral, o caminho do namoro nos anos adulto-jovem, quando o
indivíduo já tem um projeto pessoal e profissional em andamento e uma
identidade razoavelmente delimitada, leva à possibilidade de um
aprofundamento das relações românticas onde o cuidado mútuo, o
companheirismo, a satisfação sexual e a auto-realização passam a ser
praticados. Nesse momento, o namoro acaba sendo um processo de
aprofundamento que cria intimidade, compromisso e segurança emocional
numa relação com a alteridade.
Ir além do eu e definir um nós refere-se ao apaixonar-se, mas
também a um longo percurso de elaboração de diferenciação. Segundo
Kernberg (1995), o apaixonar-se do adulto e depois a manutenção do
relacionamento, refere-se a capacidade de vincular a idealização com o
desejo erótico, estabelecendo um padrão que inclua a intimidade, o
erotismo, a sexualidade, a ternura, o ideal de ego, a realização dos desejos
junto com a pessoa amada que posicione, em todas estas áreas, a
agressividade a serviço do amor. O “apaixonar-se e amar” implicariam,
portanto, em um processo de luto relacionado a crescer e tornar-se
independente. E a ambivalência estaria sempre permeando as relações
amorosas: a felicidade no encontro, o medo da perda do outro e/ou de si.
Hoje em dia, embora a conjugalidade ainda inclua a promessa ou
esperança da reconstrução do eu a partir do nós, também está cada vez mais
fluida. Quando as pessoas passam a viver juntas, mas sem a tutela do
casamento socialmente reconhecido, são poucas as informações sobre seu
cotidiano. O que sabemos é que, atualmente, na maioria dos países
Ocidentais, muitos adultos jovens estão adiando o casamento devido a
incertezas em relação à perspectiva de trabalho, devido ao aumento do
desemprego; a busca de um nível acadêmico mais elevado, o aumento do
tempo dedicado aos estudos; o aumento da riqueza e, o fenômeno chamado
de “ninho cheio”, onde existe uma tolerância moral por parte dos pais e,
consequentemente, uma menor pressão para que seus filhos saiam de casa,
favorecendo que seus parceiros amorosos/sexuais venham para dentro dela
(Cliquet, 2003; Milan e Peters, 2003).
30
Nos modelos sistêmicos do ciclo vital familiar, como o de Carter e
McGoldrick (1995), pouco se explora a conjugalidade sem a tutela do
casamento, mas, pelo menos parte dos aspectos identificados relativos à
formação do casal, pode ser útil na compreensão das demandas que os
casais que vão morar junto vivenciam, ou se eximem de vivenciar.
Quando vai viver sob o mesmo teto é momento de o casal pôr em
prática o que cada um havia sonhado. Os parceiros devem ser capazes de
desenvolver um estilo de vida próprio, rever normas e valores, dividir
tarefas e responsabilidades, distribuir o tempo de trabalho e de lazer, chegar
a um consenso sobre amizades e emprego do dinheiro, além de integrar o
projeto de vida pessoal e a dois. O que trazem consigo é a experiência de
vida na família de origem da qual precisarão se diferenciar, constituindo o
núcleo próprio, delimitando fronteira mais ou menos flexíveis em relação
aos pais e irmãos e estabilizando um nós conjugal.
O casamento não envolve só os cônjuges: trata-se de procedimento
familiar e social. Quando se mora junto, o compromisso e as lealdades com
a família de origem podem ser mais ou menos flexíveis. A experiência de
atendimento psicoterápico a jovens nos indicava que esta vivência é
“essencialmente conjugal”, quer dizer, há pouca ou nenhuma diferença em
relação ao namoro no que se refere a administrar a inclusão e convivência
do parceiro na vida da família de origem e extensa e incluí-los em seus
rituais e celebrações, mas, ao mesmo tempo, ao contrário dele, quando
frente ao conflito se podia voltar para o especo seguro da casa dos pais,
quando se mora junto deve-se rever o padrão aprendido na família de
origem de organização do cotidiano, de comunicação, proximidade e
solução de conflitos, negociando um padrão dos dois. Por isso, nos
propusemos à compreender um pouco mais o caráter especial desta
conjugalidade, optando por estudá-la na perspectiva dos rituais, dado que
estes sempre foram os grandes organizadores da vida social e familiar.

Rituais, celebrações, rotinas e identidade conjugal

A compreensão das formas ritualizadas de relacionamento pode


oferecer um esboço conceitual particularmente interessante quando tratamos
de relacionamentos fluidos e experimentais como o morar junto, pois, ao
longo da vida humana, os rituais e celebrações sempre deram forma aos
relacionamentos e ao cotidiano. Os rituais podem ser religiosos, profanos,
festivos, formais, informais, simples ou elaborados, o importante neles
refere-se a sua forma, caráter convencional e repetição, e não o conteúdo
explícito (Peirano, 2003).
Segundo Rodolpho (2004), socialmente, os rituais concedem
autoridade e legitimidade quando estruturam e organizam a posição de
31
certas pessoas, os valores morais e a visão de mundo, colaborando para que
a coletividade possa trazer os diversos acontecimentos cotidianos que
envolvem cada um, para dentro de uma esfera social ordenada e organizada.
Dentre os rituais, os que celebram o casamento são dos mais freqüentes
entre os grupos humanos, dado sua centralidade para o reconhecimento do
status adulto para o indivíduo e para a inserção e continuidade da família.
Os rituais combinam o fazer e o pensar, fornecendo a ponte entre,
por um lado, o pensamento cultural e significações complexas e por outro, a
ação social e os fenômenos imediatos (Lind, 2004), bem como ajudam a
constituir a identidade conjugal e familiar: a maneira particular que o casal e
a família tratam dos eventos que lhes são importantes. Como forma
simbólica de comunicação, repetida de maneira mais ou menos
estereotipada, proporcionam significados e satisfação aos seus participantes,
à medida que é por meio deles que cada casal e cada família definem suas
funções, limites e regras, além de afirmar e compartilhar seu sistema de
crenças e valores.
Segundo Bennett, Wolin e McAvity (1991) os rituais têm um alto
poder de organização, pois além de seguir um padrão e uma ordem
identificáveis, envolve todos os participantes, que irão coordenar suas
atividades individuais a favor do rito que será realizado. Desse modo, cada
núcleo familiar, ao mesmo tempo sustenta e repete, bem como cria, seus
rituais, sejam eles cotidianos ou de celebração, os quais, freqüentemente,
possuem elementos de outros rituais já realizados pelas gerações anteriores.
Para as famílias, então, o núcleo da prática do ritual é o fortalecimento dos
relacionamentos e a designação de que os indivíduos são importantes
membros do grupo (Fiese e Tomcho, 2001).
Para Wolin e Bennett (1984), seja qual for o nível sócio-
econômico, a raça ou a crença religiosa, os rituais que fazem parte da
experiência de vida das famílias podem ser organizados em três ordens:
celebrações, tradições e rotinas.
As celebrações são os festejos em dias de feriados ou ocasiões
semelhantes, largamente partilhadas pela cultura, e que cada família em
particular, considera especial. É o chamado Calendário Externo da Família.
Esses rituais estão muitas vezes associados a mudanças sazonais e são
caracterizados pela universalidade dos símbolos que lhe são próprios e por
sua considerável padronização. Muitas vezes, são específicos de
determinada cultura ou sub-cultura. Por meio da repetição, ano após ano,
estas celebrações possibilitam a continuidade de datas conhecidas, de
símbolos e de ações simbólicas. A repetição reinventa os eventos para se
tornarem significativos.
Os rituais de passagem (casamentos, funerais, batismos) fazem
parte desta categoria tanto quanto as festas religiosas anuais (Páscoa, Natal).
32
Possuem importantes funções familiares ao oferecer a seus membros a
oportunidade de clarificar seu status na ordem social e familiar, bem como
uma rica possibilidade para a transmissão de valores e costumes.
Enquanto as celebrações permitem manter a identidade grupal e
dão significado à interligação com uma comunidade étnica, religiosa ou
cultural mais ampla, as tradições são menos específicas em relação à cultura
e mais idiossincráticas, podendo ser consideradas como um Calendário
Interno da Família. Elas não possuem a periodicidade anual dos feriados,
nem a padronização dos ritos de passagem, embora se repitam com
regularidade na maioria delas. Em termos da extensão de preparação e
especificidade do evento, são menos estruturadas e organizadas se
comparadas aos rituais de celebração. Por meio de suas tradições, a família
revela o que é importante na sua vida, exprimindo suas crenças e processos
de tomada de decisão.
Cada família descreve o próprio conjunto de tradições como as
férias de verão, as visitas aos membros da família extensa, costumes de cada
aniversário, refeições especiais etc. Embora a cultura influencie a forma
desses rituais, cada família escolhe as ocasiões que irão adotar ou enfatizar
como tradição. Os elementos de escolha contribuem para o aumento do grau
de significado que os membros atribuem a suas tradições, criando um
contexto do tipo “quem está dentro e quem está fora”.
Apesar de ser a categoria ritual mais freqüentemente realizada, as
rotinas diárias são menos planejadas, intencionais e conscientes. Nessa
categoria encontram-se o horário das refeições e/ou quem as processa, o
tratamento costumeiro com as visitas, as atividades de lazer no final de
semana, quem, quando, e onde se faz as compras para a casa etc. As rotinas
organizam o dia, dão um sentido de ritmo à vida cotidiana, ao mesmo tempo
em que ajudam a definir os papéis a as responsabilidades. Exprimem o que
somos como unidade conjugal, como identidade do casal, provendo a todos
de um sentido de continuidade, previsibilidade e segurança ao longo do
tempo. É dos aspectos da vida conjugal inicial que deve ser negociado mais
prontamente, dado que as heranças das famílias de origem raramente não se
confrontam e estas heranças são praticadas no cotidiano, automaticamente,
e sem reflexão.

Para que se vai morar junto

Se nos anos de 1970, viver como casal, mas sem o ritual religioso
ou civil, era interpretado como um desafio as convenções, o morar junto
atual se cobre de novos sentidos. Ao escolher realizar uma pesquisa
qualitativa (Simões, 2007) por meio de entrevistas semi-estruturadas com
adultos jovens de ambos os sexos, que depois de um período de co-
33
habitação casaram-se no religioso e/ou civil, tivemos a oportunidade de
identificar alguns temas, desejos e demandas que diferenciam estas duas
condições, particularmente úteis para o trabalho dos psicoterapeutas.
Quase sempre o viver sob o mesmo teto acontece “naturalmente”,
dando continuidade ao namoro, à intimidade decorrente do tempo da
relação, como se fosse o próximo passo a ser dado. Alguns jovens se
organizam como casal para ter uma residência comum; na maioria dos
casos, no entanto, um dos parceiros “vai ficando”, cada vez com mais
freqüência na casa do outro que já tem residência própria – porque a
família mora em outra cidade, ou mesmo quando tem situação econômica
estável - que um dia só resta não voltar mais para a casa dos pais.
Perguntados acerca das motivações subjacentes, todos nos explicaram ser
uma forma de resolver o desejo de permanecerem mais tempo juntos, mas
sem se comprometerem demais.
Como conseqüência desse movimento contínuo, quase “natural”
por meio do qual os casais resolvem efetivamente morar juntos, são pouco
freqüentes as celebrações, ou mesmo se considerar a data como algo
especial a ser posteriormente celebrado. Assim, entre os casais que
entrevistamos, sempre identificamos datas tradicionais comemoradas, como
o dia em que se conheceram ou começaram a namorar, mas nada associado
à decisão ou mesmo a chegada definitiva na nova residência, somente a
data do posterior casamento. Neste sentido, o caráter de transição
envolvido, ou não é identificado, ou mesmo, propositadamente, os jovens
buscaram não ressaltá-lo, em nome do caráter experimental da situação.
Somente quando o morar junto é concomitante a um noivado
oficial, ocorre uma comemoração com ou da família de origem. Caso
contrário, embora sem uma aprovação explícita, os pais expressam a
mesma tolerância já verificada durante o namoro quando permitiam a
ausência do filho/a, as viagens com o/a parceira ou a permanência deste/a
em sua própria casa. Em ambos os casos, a presença destes “cônjuges” nos
rituais familiares era semelhante à observada no namoro, geralmente
participavam dos rituais de passagem e de festas tradicionais que não
colidiam entre as duas famílias de origem. Quando isso ocorria cada um
ficava com os seus. A convivência com as famílias extensas, ou mesmo de
origem, era pouco solicitada não sendo motivo dos conflitos que depois
aparecerão, já na preparação da cerimônia de casamento quando
expectativas, valores familiares e culturais produzem confrontos. Ou seja, a
continuidade do namoro em seu caráter experimental é implicitamente
acordada por pais e filhos.
De fato, com muita freqüência, tanto os homens como as mulheres
fizeram referências ao morar junto como sendo uma fase de experiência do
relacionamento, chamado de test-drive ou vestibular. Considerando a
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complexidade do que significa ser um casal que mora junto, segundo os
modelos do ciclo vital familiar, ou seja, desenvolver um estilo de vida
próprio, rever normas e valores, dividir tarefas e responsabilidades,
distribuir o tempo de trabalho e de lazer, chegar a um consenso sobre
amizades e emprego do dinheiro, além de integrar o projeto de vida pessoal,
a dois, e delimitar um relacionamento com as famílias de origem, (Carter e
McGoldrick, 1995), notamos que poucos casais tem clareza do que
exatamente está sendo testado; o que eles dizem é que estão verificando se
combinam entre si, se tudo dá certo, se a relação permanece boa quando a
convivência se torna compulsória.
Os jovens relatam que ocorre uma conversa na qual ficam
estabelecidos critérios para as rotinas do cotidiano como divisão de tarefas
e de orçamento. Quando são as mulheres que vão morar na casa do
namorado, tende-se a realizar alguma modificação na decoração da casa e,
por meio desta prática ritualística defini-se um processo de apropriação de
um espaço que se torna mais neutro para comportar os dois.
Em nossa pesquisa e no cotidiano do trabalho psicoterapêutico,
identificamos os temas associados ao gênero, principalmente no que diz
respeito às rotinas domésticas. Mesmo quando vai morar na casa do
namorado, que antes dava conta do funcionamento de sua casa, a tendência
é que as mulheres passem a ter uma responsabilidade maior sobre as tarefas
da casa. Os motivos podem ser o desconhecimento de outra divisão que não
a tradicional, considerar-se mais habilitada, ou porque questionar a divisão
redundaria em conflitos. O fato é que, o não questionamento tende a
estressar tanto as mulheres sobrecarregadas, quanto os homens que dizem
não entender o que contribuir para a insatisfação delas. Mas, pouco se testa
do equilíbrio doméstico, neste período de experiência!
Já em relação às finanças ocorre uma divisão mais igualitária de
responsabilidades. Considerando que as questões de gênero e outros temas
de repetição de modelos trigeracionais exigem o desenvolvimento de um
padrão de comunicação efetiva para a negociação das diferenças, o que
percebemos é que para a maioria dos casais é mais fácil conversar sobre as
questões mais práticas da convivência, tais como o uso do dinheiro, a
tomada de decisões como troca de carro, compra de aparelhos eletro-
eletrônicos ou até apartamento novo, e mesmo como cada um vai se
organizar profissionalmente, à medida que são extensões dos padrões do
namoro.
Analisando sob a perspectiva dos rituais, são as rotinas que
exprimem o que somos como unidade conjugal, provendo um sentido de
continuidade, previsibilidade e segurança ao longo do tempo. A negociação
sobre as rotinas diárias e as responsabilidades de cada um na relação, que se
traduz na identidade conjugal, o jeito como nós fazemos as coisas, produz
35
temor de rompimento, quer entre as mulheres, quer entre os homens e,
então, muitos deles perdem a oportunidade ou adiam para o casamento a
demanda de desenvolver e testar a efetividade de parte significativa do que
é a conjugalidade.
O morar junto aparece como o período necessário para importantes
ajustes individuais, no que se refere a sentir-se seguro com a própria
maturidade como adulto, para depois dar o passo definitivo que sela a
transição: casar-se. Assim, muito do que se faz é em nome de o casal ficar
mais afinado, para assegurar que o relacionamento é bom e pode durar, isto
é, para que os jovens internalizem a idéia de convivência e conjugalidade,
para que só depois possam, ou na verdade, necessitem compartilhá-la
socialmente.
Considerando a promessa que a concepção do amor romântico traz
- que se encontrarmos a pessoa certa chegaremos ao paraíso conjugal –
compreendemos que não é a conjugalidade ou a convivência cotidiana que é
testada ao se morar junto, mas sim o sentimento amoroso. Porém, em nome
da harmonia doméstica, os temas que envolvem os sentimentos (medo de
não dar certo, insegurança, vontade de casar oficialmente, ciúmes,
reclamações sobre o comportamento do outro etc) também são pouco
expressos em conversas, porque, no imaginário do amor romântico, nos
relacionamentos positivos não há conflitos, só compreensão mútua.
Portanto, para evitar conflitos não se manifestam desejos e diferenças e,
com isso restringe-se a própria vida.
Desse modo, parece que o tema central do vestibular interpessoal
do morar junto, refere-se à pessoa e não a relação que está sendo construída,
ou seja, fica-se na expectativa de ser amado completa e incondicionalmente
pelo outro, sem que haja uma conexão direta com o tipo de relacionamento
estabelecido pelo casal. O que nos parece é que quase ninguém consegue
abrir mão da concepção de amor romântico, aquela que nos permite
escolher o parceiro livremente e de forma idealizada e, sendo assim, talvez
o morar junto seja a “tentativa mágica” de sustentar a crença nesse amor,
mudando o comportamento e não a crença. Ainda existe nesses casais o
medo de falhar na idéia do amor romântico. Com isso, o test-drive aparece
como uma tentativa de evitar o erro potencial da separação e do divórcio, ao
mesmo tempo em que evidencia outro medo, o de colocar a crença em
questão.
Dizemos isto porque é justamente o amor romântico que vai
estimular a idealização do parceiro e expectativas de desenvolvimento da
relação, gerando um auto-questionamento constante entre os sujeitos,
inquirindo se os sentimentos são suficientemente profundos para suportar
um envolvimento prolongado. Parece ser este um dos possíveis motivos do
aumento do número de casais morando juntos: por medo de falhar no
36
casamento ou até no amor, os jovens parecem estar optando por testá-lo
antes da escolha “definitiva”. Porém, negociando pouco à convivência, o
caráter interpessoal e entre-famílias implicado na conjugalidade, eles podem
estar deixando de testar aquilo que estressa os relacionamentos: a
convivência no cotidiano, aquela que o caráter experimental do morar junto
permitiria.
O que observamos permitiu-nos compreender que é devido à
fluidez envolvida, e a insegurança provocada pelos paradoxos sobre o que
se deseja testar e o que é testado realmente, o que mobiliza a busca da
formalização do casamento. O ritual traz a promessa de continuidade das
relações afetivas, a sensação de pertencimento ao grupo e a elaboração de
um significado de vida, gerando satisfação a todos os participantes. Na
preparação, cerimônia e festa de casamento, os jovens podem compartilhar
a decisão de ficar juntos com a família e amigos, que então servirão de
testemunhas de tal decisão, trazendo assim mais segurança de que agora é
“prá valer, agora é para sempre”.

Referências

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Myth: A cultural perspective on life cycle transitions. In: Falicov, C.
J. (Org) Family Transitions - Continuity and Change Over the Life
Cycle. New York: Guilford Publications, 1991, pp. 211-234.
Carter, B. & Mcgoldrick, M. (Orgs.) (1995). As mudanças no ciclo de vida
familiar: uma estrutura para a terapia familiar. Porto Alegre: Artes
Médicas.
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Western Europe and North America. Major Trends Affecting
Families: A Background Document. United Nations, Division for
Social Policy and Development, 2003.
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the relation between religious holiday rituals and marital satisfaction.
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research. In: Kimmel, M.S. (Org.) Changing Men. Newsbury Park,
Sage Publications Inc, pp. 9-24.
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família. CIDADESOLIDÁRIA. Portugal, pp. 6-23.
Milan, A. & Peters, A. (2003). Couples Living Apart. Statistics Canada -
Catalogue No. 11-008.
37
Norgren, M.B.P., Souza, R.M., Kaslow, F., Hammerschmidt, H. & Sharlin,
S.A. (2004). Satisfação conjugal em casamentos de longa duração:
uma construção possível. Estudos de Psicologia (Natal), 9 (3), 585-
593.
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Rodolpho, A.L. (2004). Rituais, ritos de passagem e de iniciação: uma
revisão da bibliografia antropológica. Estudos Teológicos, 44 (2),
138-146.
Simões, J. F. (2007). Antes do sim: rituais, celebrações e práticas de
transição pré-maritais. Mestrado em Psicologia Clínica.Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
Souza, R.M. & Ramires, V.R.R. (2006). Amor, casamento, família,
divórcio...e depois, segundo as crianças. São Paulo: Summus.
Wolin, S.J. & Bennett, L.A. (1984). Family rituals. Family Process, 23(3),
401-420.

38
4

RELACIONAMENTO CONJUGAL E SAÚDE MENTAL NA


GESTAÇÃO

Joseane de Souza
Poliana Aliane Patrício
Larissa Horta Esper
Erikson Felipe Furtado

Relacionamento conjugal durante a gestação

O nascimento de uma criança é um dos momentos que proporciona


mudanças no sistema familiar, principalmente no relacionamento conjugal.
O casal que até então se constituía unicamente de homem e mulher, com o
nascimento do filho, precisa assumir também o papel de pai e mãe. A
transição para a parentalidade é um processo emocional e psicológico que
envolve muitas transformações nas dinâmicas individuais e na interação
conjugal. O relacionamento conjugal precisa ser totalmente reformulado por
meio de renegociações de papéis e funções que são construídos nesse
momento da vida familiar (Cerveny & Berthoud, 2002). É responsabilidade
do casal negociar suas tarefas para se ajustar aos cuidados do bebê e criar
espaço para o novo membro da família. Tornar-se pai e mãe não é uma
tarefa fácil, desta forma exige uma transformação e adaptação dos padrões
anteriores de interação conjugal (Prado, 1996; McGoldrick, 1995).
A decisão de ter um filho é uma experiência que envolve desejos,
medo da responsabilidade, planejamento financeiro, dúvidas, sentimentos
ambivalentes, fortes emoções e opções de vida como, por exemplo, dedicar-
se à carreira profissional ou ao filho. O momento de decisão, o período
gestacional e o nascimento do filho são vivenciados de forma diferente para
o homem e para a mulher, pois está intimamente relacionado ao momento
de vida de cada um. Em geral a mulher sente-se mais fragilizada e sensível
e o homem sente a vinda do filho como um grande desafio a ser enfrentado.
O casal ora sentem-se próximo um ao outro, ora a experiência que estão
vivendo os distancia (Cerveny & Berthoud, 2002).
Pesquisadores como Wilkinson (1995) e Crohan (1996)
investigaram as mudanças na qualidade da relação conjugal de casais que
passavam pela transição para a parentalidade a partir do nascimento do
primeiro filho, comparando-os a casais que não tinham filhos. Eles
obtiveram resultados semelhantes em suas pesquisas, que mostraram que o
declínio na felicidade e na satisfação conjugal é mais pronunciado entre os
39
casais que passam pela transição para a parentalidade do que os que não o
fazem. A hipótese de que as mulheres sofrem mais o impacto do nascimento
do primeiro filho na relação conjugal do que os homens foi confirmada.
Um dos momentos críticos entre os casais é o fim da fase
romântica que geralmente coincide com a fase da gestação, quando os
cônjuges conscientizam-se de que são parte de algo maior do que sua
condição de casal e têm, com isso, que renegociar seus padrões
interacionais e seus valores anteriores (Pittman, 1994). Assim, o nascimento
de um filho é considerado um acontecimento que redefine a relação
conjugal.
O declínio na satisfação conjugal tem sido associada ao período
pré-natal (Belsky et al., 1985), além disso uma relação insatisfatória com o
companheiro pode influenciar na adaptação com a gestação e com o papel
de mãe (Richardson, 1983; Pereira, Santos & Ramalho, 1999). Outro estudo
contradiz este resultado mostrando que a satisfação conjugal, segundo as
mulheres, aumentou durante a gravidez e diminuiu após o nascimento do
bebê (Lawrence, Nylen & Cobb, 2007).
Cowan e cols. (1985) verificaram, mediante suas pesquisas, que o
conflito conjugal aumenta da gravidez até os 18 meses após o nascimento
do bebê, sendo que a satisfação dos homens muda pouco desde a gestação
até os seis meses pós-parto, mas declina mais dramaticamente dos seis aos
dezoito meses do bebê e, contrariamente, a satisfação das mulheres declina
mais da gravidez até os seis meses do bebê, com um declínio moderado dos
seis aos dezoito meses do mesmo. Também Lewis (1988) constatou que as
exigências e tarefas que a maternidade traz às mulheres as levam a ter um
aumento da insatisfação com o casamento, o que gera um aumento nos
conflitos entre os cônjuges.
Brown (1994) verificou que nas famílias de mulheres gestantes, um
ou ambos os cônjuges relataram mais discórdias conjugais. E apontando
ainda que as famílias de gestantes que apresentaram mais problemas no
casamento vivenciaram menor satisfação com o suporte do companheiro,
alto nível de estresse, menor bem-estar e mais sintomas psicológicos e
somáticos.
Em um estudo longitudinal com 114 casais, Rothman (2004)
concluiu que a satisfação com a relação de casal permaneceu estável desde
o início do casamento até o fim da gravidez, mas declinou
significativamente durante a transição para a parentalidade. Para essa
autora, tal declínio foi mencionado tanto pelos homens quanto pelas
mulheres dos casais considerados, mas relacionado a diferentes motivos.
Para os homens, a tendência a fazer atribuições positivas sobre o
comportamento das companheiras explicou o declínio de sua satisfação com
o casamento, enquanto para as mulheres, fatores como depressão e
40
temperamento do bebê foram referidos como influenciando o declínio da
satisfação conjugal.
Um dos motivos apontados pelas gestantes sobre a insatisfação
com o relacionamento conjugal foi o excesso de proteção do companheiro e
o aparecimento de ciúme e insegurança com o companheiro e com o próprio
bebê (Piccinini, 2008).
O sentimento de irritação relatado pelas gestantes especialmente no
primeiro trimestre, geralmente direcionado para o companheiro pode estar
associado com o aumento de conflito na relação conjugal. Assim sendo,
durante a gestação os conflitos conjugais podem aumentar, e com isso
ocorre um declínio da qualidade da relação do casal, especialmente em
relações já anteriormente conflituosas (Belsky, Spanier & Rovine, 1983).
A gestação também afeta a relação sexual devido à presença dos
mitos culturais e das transformações físicas e hormonais que alteram o
desejo sexual da mulher. A sociedade muitas vezes defende a diminuição
da freqüência sexual no período gestacional comprometendo o
comportamento de homens e mulheres, muitos desses casais passam a
acreditar que o sexo não condiz com a maternidade. Quanto ao desejo por
relações sexuais, algumas gestantes referem diminuição do libido em
decorrência dos desconfortos físicos da gestação, tais como
enjôo,crescimento abdominal, vômitos e náuseas. Estas alterações poderiam
influenciar o relacionamento afetivo e sexual do casal (Flores & Amorim,
2007).
A gravidez não é um mero período de preparação psicológica para
maternidade e paternidade, mas sim o primeiro momento do relacionamento
dos pais com seu bebê (Piccinini, 2008). Dependendo das condições que o
casal vivencia esta fase eles poderão ter maior dificuldade no
relacionamento conjugal após o nascimento do bebê, fato este que poderá
afetar negativamente o desenvolvimento da criança.
Saúde mental na gestação

É importante considerar a gestação não somente como um evento


biológico, mas como um processo de adaptação em virtude das
transformações físicas, emocionais e sociais que ela acarreta. Essas
transformações vão desde a aceitação da gestação, mudanças físicas
corporais, preparação para o parto e o nascimento do bebê até o
desenvolvimento de uma relação diferenciada com o marido e a família
(Brockington, 1998).
Além das transformações decorrentes do próprio processo de
adaptação gestacional que, por si só, podem afetar o estado de saúde mental
da mulher, há de se considerar a presença de outras inúmeras variáveis que
a colocam em risco para o desenvolvimento de transtornos e sintomas
41
psiquiátricos. Essas variáveis podem ser: gravidez não planejada, conflitos
familiares, insatisfação conjugal, violência doméstica, eventos estressores,
falta de suporte social e familiar, baixa condição sócio-econômica, sintomas
físicos característicos (náuseas, fadiga, azias, dores musculares, inchaços,
dentre outros), alteração hormonal (especialmente, entre as mulheres
sensíveis à variações hormonais), variáveis obstétricas (como, por exemplo:
aborto, morte fetal ou neonatal, parto pré-termo), dentre outras.
Muito embora sejam estudadas as transformações e fatores de risco
relacionados ao sofrimento psiquiátrico na gestação, este período em si não
significa risco para o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos, como
devidamente comprovado por um amplo estudo epidemiológico realizado
nos Estados Unidos (National Epidemiologic Survey on Alcohol and
Related Conditions – NESARC) (Vesga-Lopez et al., 2009). Neste estudo
foi realizada uma comparação das prevalências de transtornos psiquiátricos
(último ano) do eixo I do DSM-IV entre gestantes, puérperas e mulheres
não gestantes em idade fértil e não foram observadas diferenças
estatisticamente significativas (Vesga-Lopez et al., 2009).
Há de se considerar, contudo, que a presença de sintomas e
transtornos psiquiátricos no período da gestação podem trazer sérias
consequências à saúde da mulher e do bebê.
Estudos têm sugerido que a depressão durante a gestação está
relacionada a complicações obstétricas como pré-eclâmpsia (Kurki, 2000),
analgesia epidural, cesariana e trabalho de parto prematuro (Mackey et al.,
2000), bem como à complicações para o bebê, como baixo peso ao nascer
(Araújo et al., 2010), admissão dos recém nascidos na Unidade de Terapia
Intensiva (Mackey et al., 2000), além de alterações no funcionamento
neuro-comportamental na infância (Jones et al., 1998).
A ansiedade no período gestacional também está relacionada à uma
série de problemas para a mulher e seu bebê, como prematuridade e baixo
peso ao nascer (Araújo, Pereira & Kac, 2007), menor índice de apgar
(Consonni, 2002), analgesia ou anestesia na segunda fase do trabalho de
parto (Perkin et al., 1993), pré-eclampsia e retardo no crescimento intra-
uterino (Teixeira et al.,1999), problemas comportamentais na infância
(Glover & O‟connor, 2002), hiperatividade e déficit de atenção em garotos
e problemas emocionais e comportamentais em garotas na idade de quatro
anos (O‟Connor et al., 2002) e depressão pós-parto (Faisal-Cury &
Menezes, 2006).
O consumo de álcool neste período está associado, de maneira
dose-dependente, à restrição do crescimento fetal, a deficiências cognitivas,
ao aumento da morbimortalidade, ao desenvolvimento da Síndrome Fetal do
Álcool e outros transtornos do comportamento infantil associados à
exposição intra-útero ao álcool (Hanson, Jones & Smith, 1976). A
42
exposição ao álcool também traz agravos à saúde da mãe, como doenças
cardiovasculares, câncer, depressão e distúrbios neurológicos. Além disso,
está associada ao ganho de peso gestacional insuficiente, menor número de
consultas no pré-natal e aumento do risco de uso de outras drogas (Simão,
Kerr-Correa & Dalben, 2002). Pinheiro, Laprega e Furtado (2005)
verificaram que o diagnóstico de uso nocivo ou dependência de álcool
estava relacionado a uma maior prevalência de sintomas de ansiedade e
depressão durante a gestação. Já Aliane (2009) em um estudo prospectivo
com 177 gestantes verificou que quanto maior o consumo de álcool durante
a gestação maior a presença de sintomas depressivos no pós-parto.
Embora sejam muitas as conseqüências prejudiciais dos sintomas e
transtornos psiquiátricos descritos anteriormente, é possível encontrar no
Brasil uma prevalência de aproximadamente 14,2% de depressão na
gestação (Pereira et al., 2009), 5,6% de transtornos ansiosos (entre gestantes
adolescentes) (Mitsuhiro et al., 2006) além de 22,1% de uso de risco de
álcool (Fabbri, Furtado & Laprega, 2007) em amostras de conveniência.
Uma forma de evitar/prevenir esses sintomas e suas consequências
pode ser conseguido através da amenização dos fatores de risco inicialmente
relacionados, ou ainda através de intervenções psicossociais que vão desde
abordagens diretas com a gestante até orientações familiares e melhora do
suporte social da gestante.

Estresse, suporte social e familiar

A literatura identifica que a mulher é potencialmente mais sujeita


ao estresse do que o homem devido principalmente às profundas exigências
e transformações nos papéis desta na economia, na família e na sociedade
(Turner & Avison, 2003; Rossi, 2004), sendo que a própria gestação é
considerada como uma importante fonte de estresse (Lipp, 2006; Homes &
Rahe, 1967). Porém, apesar da maior vivência de estresse cotidiano, a
mulher parece lidar melhor com este problema, o que a torna menos
suscetível a determinadas doenças (Rossi, 2004). A característica feminina
associada à diminuição destes riscos é relacionada com a maneira com que
as mulheres reagem ao estresse. As estratégias de enfrentamento são
focalizadas em suas emoções, ou seja, estratégias que buscam equilibrar o
estado emocional como, por exemplo, conversar com o companheiro e
expressar seus sentimentos, as ajudam a lidar com a vivência freqüente de
eventos estressores (Breslin, 2005; Lipp, 2006; Chaplin et al, 2008).
Chaplin e colaboradores (2008) encontraram importantes
diferenças de gênero em seus estudos. As mulheres parecem reportar mais
tristeza e ansiedade e expressam mais suas emoções após um estado de
estresse, porém apesar da maior emoção subjetiva e comportamental,
43
algumas alterações fisiológicas prejudiciais, tais como o aumento abrupto
da freqüência cardíaca e pressão arterial, são menos freqüentes entre elas,
fato que as protegeria de possíveis danos cardíacos.
Diante de uma situação estressante as mulheres tendem a buscar o
suporte social e falar sobre os seus problemas (Rossi, 2004; Wang et al.
2009). Em um estudo realizado por Lipp e colaboradores (1996) foi
identificado que a principal estratégia utilizada por gestantes para lidar com
o estresse deste período foi à busca do apoio familiar e do suporte e
participação do marido ou companheiro na gestação. Esta estratégia parece
favorecer as mulheres na diminuição da ansiedade e depressão que podem
aparecer nesta fase (Coutinho et al 2002; Baptista et al 2006).
Um outro processo importante para a adaptação para a
parentalidade refere-se a formação da rede de apoio. Amigos, parentes e o
parceiro(a) constituem importante fonte de apoio emocional para o casal.
Receber ajuda, sentirem-se acolhidos e o papel do pai participativo são
movimentos do sistema familiar que facilitam a transição e diminuem o
estresse (Cerveny & Berthoud, 2002).
A falta de suporte social tem significativo impacto na saúde mental
da mulher no período da gestação e após o nascimento do bebê. Uma
pesquisa comparou a influência do status conjugal, o suporte do marido e
saúde emocional de gestantes. A saúde mental de 1578 gestantes foi
avaliada pelo inventário EPDS (Edinburgh Posnatal Depression Scale). Os
autores concluíram que mulheres com pobre suporte conjugal tiveram maior
risco de depressão comparado com mulheres solteiras. E o risco de
depressão nas mulheres solteiras estava associado ao aparecimento de
problemas emocionais sendo estes o maior evento estressor (Bilszta et al.
2008).
O acúmulo de situações estressantes no decorrer da gestação
também poderia causar desfechos negativos à saúde mental de gestantes em
função do desgaste físico e psíquico envolvidos. Holmes & Rahe (1967), os
pioneiros em trabalhos com eventos estressores, já mencionavam que a
exposição a diversos eventos estressores no decorrer de um determinado
período de tempo poderia ter um efeito prejudicial a saúde do indivíduo.
Estes achados também estão de acordo com outros estudos, Muhwezi e
colaboradores (2009), por exemplo, identificaram em sua amostra que as
gestantes depressivas quando comparadas a um grupo controle, reportam
mais eventos estressores, níveis de impacto negativos mais intensos e maior
prevalência de eventos independentes.
Mulheres com elevados níveis de estresse durante a gestação e que
necessitam do suporte do marido são vulneráveis ao desenvolvimento da
depressão pós-parto (Tavares, 1990). Autores apontam a discórdia conjugal

44
e falta de suporte social como fatores de risco para depressão pós-parto
(Clay & Seehusen, 2004).
Fatores relacionados ao estresse estão associados também a
diversos prejuízos a saúde física da mãe e do bebê. Os altos níveis de
estresse e ansiedade maternos durante a gestação parecem aumentar os
riscos para aborto espontâneo, trabalho de parto prematuro e complicações
obstétricas (Whiteheard, 2008; Mulder, 2002). O desenvolvimento fetal
também parece ser prejudicado, os elevados níveis de cortisol materno
liberados em resposta ao estresse físico ou psicológico, produzem
permanentes alterações cerebrais no feto gerando importantes danos ao seu
desenvolvimento (Spietz, 2002; Egliston, 2007) tais como malformações
congênitas, deformações crânio-neurais (Hansen, 2000), baixo peso ao
nascer e problemas emocionais (Rice, 2007; Wadhwa, 1993).
O suporte emocional do companheiro pode contribuir para reduzir
o estresse materno (Maldonato, 1985) proporcionando assim uma gestação
mais tranqüila e saudável. Portanto a qualidade do vínculo da gestante com
seu companheiro é muito importante, podendo funcionar como um
amortecedor dos efeitos dos eventos estressores.
Minuchin (1985) e Bronfenbrenner (1986) revelaram que
casamentos saudáveis proporcionam mais suporte para os cônjuges, em
especial do marido para a esposa, citando ainda que o apoio emocional
oferecido pelos pais às mães contribui para o desenvolvimento dos filhos.
Vários autores apontam que a qualidade da relação conjugal exerce uma
forte influência nas atitudes parentais (Weindrich et al. 1992; Erel &
Burman, 1995).
Segundo Osório (1996), o oferecimento de um adequado suporte
pelo grupo familiar favorece a superação da desestruturação causada pelas
crises vitais. O provimento e o recebimento do suporte familiar influem
diretamente no bem-estar físico, psíquico e social do indivíduo, sendo que a
falta desse suporte é um dos fatores que traduz predisposições à doença
mental (Souza & Baptista, 2008).
Considerações finais

A gestação influência a relação conjugal, portanto especial atenção


deve ser dada ao ambiente familiar nesta fase do ciclo de vida. A concepção
da idéia da gestação pelo casal, discussões sobre o bebê, seu nome e seu
futuro, renegociação das tarefas, o compartilhamento das interações com o
bebê durante a gravidez e de todas as atividades envolvidas no pré-natal são
atividades que ajudam o casal a incorporar a gestação na vida conjugal.
A gravidez também altera outras relações. A mulher neste período
também sente mais necessidade de cuidado e atenção dos membros da
família e dos amigos. Sendo assim, muitas mulheres se tornam mais
45
próximas da família de origem e da família do marido (Brockington, 1998).
A rede de suporte familiar ajuda o casal a enfrentar os estressores presentes
neste período.
Avaliar o momento gestacional requer do profissional vinculado ao
atendimento da gestante uma análise dos múltiplos fatores que estão
associados a saúde mental da gestante, a saúde do bebê e as questões do
relacionamento conjugal, tais como: falta de suporte familiar e conjugal,
vivencia de conflitos conjugais, histórico de transtornos psiquiátricos,
presença de eventos estressores, violência doméstica, uso de álcool pelo
marido ou da própria gestante entre outros.
O casal que tem um bom relacionamento conjugal enfrenta com
mais facilidade as situações estressantes do nascimento do filho. Portanto, é
importante investigar quais são as situações que estão associadas as
dificuldades de relacionamento neste período e quais condições tem
fortalecido o vínculo conjugal.

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50
5

MEDIAÇÃO E PROMOÇÃO DO POTENCIAL COGNITIVO DE


CRIANÇAS COM PROBLEMAS DE DESENVOLVIMENTO E
APRENDIZAGEM

Kely Maria Pereira de Paula


Ana Cristina Barros da Cunha
Tatiane Lebre Dias
Sônia Regina Fiorim Enumo
Claudia Patrocínio Pedroza Canal
Flavia Almeida Turrini

O atendimento à população que apresenta alguma deficiência tem


sido influenciado pelas transformações ocorridas na sociedade moderna,
com constantes variações nos procedimentos de intervenção. Desse modo,
uma maior exigência no sentido de inclusão de grupos minoritários,
decorrente de mudanças socioculturais e educacionais, ocorridas a partir da
segunda metade do século XX, levou a variações nos procedimentos
metodológicos de atendimento. Passamos de uma proposta de treinamento e
reeducação para uma de suporte teórico e prático que permite à pessoa com
deficiência o desenvolvimento de suas potencialidades (Marchesi & Martín,
1995).
Tais mudanças tiveram impacto nas instituições de atendimento
clínico e educacional a essa clientela, no sistema de educação do país,
estreitando relações entre as modalidades de educação regular e educação
especial, assim como no desenvolvimento de pesquisas da área (Enumo,
Dias, Paula & Ferrão, 2003). Nos últimos anos, temos acompanhado todo o
movimento de inclusão de pessoas com deficiência (Batista, 2001; Batista
& Enumo, 2004; Mantoan, 1997; Stainback & Stainback, 1999), mas para a
garantia da efetividade desse processo e não somente a mera inserção física
desse grupo nos diferentes ambientes sociais (Glat, 1995a, 1995b), as
estratégias de intervenção psicoeducacional deverão contemplar o
atendimento das necessidades específicas de aprendizagem.
Como medidas para enfrentar os efeitos negativos dessa exclusão,
despontaram no cenário da Psicologia e áreas afins, abordagens teórico-
metodológicas, tais como a concepção sócio-interacionista de Lev S.
Vygotsky (1896/1934), mais focalizada no conceito de zona de
desenvolvimento proximal, e as teorias da Modificabilidade Cognitiva
Estrutural (MCE) e Experiência de Aprendizagem Mediada (EAM) do
psicólogo Reuven Feuerstein (Feuerstein, Feuerstein, 1991), nascido na
Romênia, que preconizam a capacidade de mudança na estrutura cognitiva
51
(cognitive modifiability), a partir de estratégias adequadas de prevenção e
promoção do desenvolvimento sócio-afetivo e cognitivo, ainda que
condições adversas como a deficiência ou dificuldades de aprendizagem
estejam presentes.
Para Vygotsky (1991) a aprendizagem é mediada, sobretudo, pelas
interações sociais, tanto na esfera interpessoal como no plano sócio-cultural,
o que estabelece uma relação de mútua interdependência entre os domínios
cognitivo e social. É uma concepção que confere destaque às influências
sociais para o processo de mudança cognitiva, entre elas, a orientação e o
suporte dos adultos. Assim, ao conduzir, apoiar, propor desafios, corrigir,
fornecer modelos de comportamento e estruturar a participação da criança
em diferentes atividades, os adultos se colocam como “incentivadores
cognitivos”, fornecendo instruções e estratégias para a solução de
problemas. Esta instrução, geralmente, apresentada de forma espontânea,
pois está entrelaçada no cotidiano da criança em seu processo de interação
com outros significativos, aos poucos se torna formal e sistematizada por
ordem da entrada da criança no ambiente escolar.
De forma semelhante, na perspectiva de Feuerstein, o
desenvolvimento humano é fruto de uma interação adequada, ou seja,
aquela que, baseada em princípios de mediação, possibilita a maximização
do potencial de desenvolvimento da criança, favorecendo a aquisição de
novas ferramentas de aprendizagem (Feuerstein & Feuerstein, 1991;
Tzuriel, 1999, 2001). A inteligência, vista como um constructo fluido,
plástico e modificável, envolve a capacidade do aprendiz para utilizar
experiências anteriormente adquiridas, adaptando-as a novas situações. Está
implicada a idéia de que, a despeito dos déficits de aprendizagem, a partir
das mediações intencionais, a criança tem aptidão, tanto para ser modificada
por uma situação de aprendizagem como para usar tais modificações em
adequações futuras (Fonseca & Cunha, 2003; Lunt, 1994).
As abordagens de Vygostky e Feuerstein acerca do
desenvolvimento infantil podem ser compreendidas sob a perspectiva do
modelo de desenvolvimento transacional, como resultado das interações que
a criança estabelece com o outro e seu meio (Sameroff, 1991). Sob este
princípio, essa análise não pode prescindir das relações entre
desenvolvimento infantil, padrão de interação adulto-criança e
aprendizagem mediada. Segundo Haywood (1995), em uma visão
“transacional” a respeito da natureza e desenvolvimento cognitivo, todo o
indivíduo necessita adquirir processos cognitivos fundamentais antes de se
tornar um pensador eficiente. Logo, o insucesso nas aprendizagens
acadêmicas e sociais não reflete necessariamente um déficit de inteligência,
mas é decorrente de uma aquisição inadequada em termos de processamento
das funções cognitivas.
52
Partindo dessas premissas, surge um novo paradigma de
intervenção psicoeducacional junto a crianças com necessidades específicas
de aprendizagem que, baseado nas referidas abordagens teóricas e
metodológicas, destacam o papel das variáveis sócio-culturais no
desenvolvimento cognitivo (Feuerstein & Feuerstein, 1991; Tzuriel, 2001;
Vygostky, 1991), e refletem uma preocupação pragmática ao propor
ferramentas de avaliação e intervenção, que podem ser usadas para
compreender o processo de aprendizagem infantil e melhorar o desempenho
acadêmico e social. Nesse sentido, essas ferramentas têm como objetivo
possibilitar oportunidades para aquisições cognitivas que capacitem esse
grupo a ser ativo no processo de construção do seu próprio
desenvolvimento, de forma autônoma e responsável, o que impulsionaria o
processo de modificabilidade cognitiva estrutural.
No entanto, o que isto significa? Dentro da perspectiva teórica da
MCE, a modificabilidade cognitiva do aprendiz (learner modifiability)
envolve tanto as mudanças cognitivas em termos de respostas em situações
de intervenção, quanto o aumento do emprego de relevantes processos
metacognitivos na solução de problemas. Não se trata, assim, de uma
modificação que ocorre como resultado de processos circunstanciais de
desenvolvimento e de maturação, mas de uma mudança qualitativa na
cognição, derivada de mediação da aprendizagem que seja significativa,
sólida, durável e generalizável, independente das condições adversas do
ambiente (Fonseca & Cunha, 2003; Jensen & Feuerstein, 1987; Linhares,
1995; Tzuriel, 1999, 2001).
Em termos gerais, os processos cognitivos básicos são adquiridos
pelo indivíduo através de duas formas de aprendizagem: por exposição
direta aos estímulos ou por meio da mediação. Na perspectiva da teoria da
EAM é a segunda modalidade de aprendizagem que afeta
fundamentalmente o desenvolvimento da estrutura cognitiva da criança.
Quando existem situações de intervenção baseadas nesse modelo, a
possibilidade de mudança cognitiva no indivíduo é aumentada, favorecendo
a sua capacidade de aprendizagem em diferentes contextos (Feuerstein &
Feuerstein, 1991).
Há três princípios essenciais para que uma interação possa ser
considerada uma EAM: intencionalidade e reciprocidade, transcendência e
significação (Tzuriel & Haywood, 1992). De acordo com Feuerstein e
Feurstein (1991) e Tzuriel (1999, 2001), a intencionalidade e a
reciprocidade ocorrem quando um mediador intencionalmente chama a
atenção da criança para um objeto e ela responde a este estímulo, criando,
assim, um estado de alerta que facilita o registro eficiente de informações
(input), um processamento adequado (elaboração) e uma resposta efetiva
(output). A transcendência diz respeito à atitude do mediador de conduzir a
53
criança para além de suas necessidades mais imediatas, de forma que ela
aprenda princípios gerais e objetivos que ultrapassem o “aqui e agora” de
uma situação específica. Na interação adulto-criança, o mediador deve, pela
observação desse aspecto, favorecer a generalização da aprendizagem de
regras, estratégias e princípios de uma dada experiência para novas
situações. Por fim, a significação se refere ao comportamento do mediador
em enfatizar aspectos de um estímulo, por meio da expressão de afetos e
pela indicação do valor e sentido do mesmo. Em outras palavras, em uma
situação de aprendizagem mediada, a criança aprende o significado dos
estímulos e internaliza este processo, passando, mais tarde a buscar,
espontaneamente, novas informações, sem esperar passivamente a ajuda do
outro.
Além desses componentes, existem outros princípios de mediação
importantes que devem estar presentes no comportamento do adulto, tais
como: a mediação de sentimentos de competência; de regulação e controle
do comportamento da criança; da diferenciação individual e psicológica;
dos objetivos de busca, de planejamento, de realização e desafio; do
comportamento de partilhar; de mudança (Jensen & Feuerstein, 1987; Lidz,
1991) e, ainda, a mediação do sentimento de pertencimento, valor gerado
em todas as culturas e que leva o indivíduo a estabelecer referências
psicossociais, que o ajudarão a se reconhecer e ser reconhecido, a se
identificar e ser identificado com seus pares (Gomes, 2002).
Considerando os benefícios que a EAM fornece no
desenvolvimento cognitivo de crianças com deficiência e dificuldades de
aprendizagem (Feuerstein & Feuerstein, 1991; Lidz, 1991) foram
estabelecidos procedimentos metodológicos para a avaliação do padrão de
mediação presente nas interações. Essa análise serve de base para a
identificação de aspectos mais específicos do comportamento do mediador
considerados potenciais para que uma interação seja considerada uma
mediação de aprendizagem.
Como proposta de mensuração da EAM, Lidz (1991) elaborou a
Escala de Avaliação da Experiência de Aprendizagem Mediada (Mediated
Learning Experience Rate Scale), instrumento que oferece uma avaliação
do repertório de comportamentos do mediador em áreas que são relevantes
para o desenvolvimento cognitivo da criança. Essa proposta, que resulta dos
trabalhos clínicos de Feuerstein e colaboradores, fornece a possibilidade de
calcular as experiências ambientais e de socialização que têm potencial
influência no processo de aprendizagem infantil, e de operacionalizar os
critérios da EAM.
Além de incluir alguns dos componentes já descritos por
Feuerstein, a escala de Lidz traz modificações e inovações da literatura ao
estabelecer 12 indicadores analisados como atitudes de mediação de
54
aprendizagem: 1) intencionalidade (intentionality); 2) significação
(meaning); 3) transcendência (transcendence); 4) atenção compartilhada
(sharing/joint regard); 5) experiência compartilhada (sharing/sharing
experience); 6) competência/regulação na tarefa (competence/ task
regulation); 7) competência/elogio e encorajamento (competence/praise-
encouragement); 8) competência/desafio (competence/challenge); 9)
diferenciação psicológica (psychological differentiation); 10)
responsividade contingente (contingent responsivity); 11) envolvimento
afetivo (affective involvement); e 12) mudança (change). Para cada um dos
componentes se avalia um gradiente de quatro níveis, que variam do nível 0
(ausência de mediação) até o nível 3 (nível máximo de mediação). Este
nível “ótimo” de mediação diz respeito aos resultados esperados de um
funcionamento cognitivo apropriado: aprendizagem ativa, auto-regulação,
estratégias de resolução de problemas e pensamento representacional. Desse
modo, cada nível é determinado a partir das atitudes adequadas do mediador
ao proporcionar a criança situações de interação baseadas na EAM (Lidz,
1991).
Para Lidz (1991) a elaboração de uma escala para avaliar a
mediação de aprendizagem é relevante já que a maioria dos instrumentos
para avaliação da interação adulto-criança se direciona quase que
exclusivamente para interações entre mães e crianças ou possuem uma
estreita seleção de componentes de interação. Além disso, pesquisadores e
avaliadores têm se mobilizado no objetivo de integrar teoria, avaliação,
intervenção e pesquisa.
Ainda, segundo a autora, as pesquisas sobre a EAM, de forma
geral, conduziram a importantes conclusões: a) a mediação está associada a
um aumento do desempenho dos participantes, em diferentes tarefas; b) a
prática sozinha (diferente da prática mediada) não é capaz de produzir
aumento do desempenho dos sujeitos em tarefas complexas de
aprendizagem; c) a verbalização e o feedback elaborativo são os
componentes mediacionais mais significativos para produzir mudança
cognitiva nos sujeitos; d) as intervenções mediacionais resultam em
melhora no desenvolvimento de estudantes com baixo funcionamento
cognitivo; e) o QI é um bom preditor de aprendizagem, quando associado a
outros dados, mas quando o foco se volta para o processo de aprendizagem,
as abordagens assistidas oferecem melhor predição; e f) o procedimento
assistido traz mais contribuição para a análise da variação do desempenho,
do que aquele oferecido por medidas estáticas, como o QI.
No país, algumas dessas considerações foram discutidas em
estudos que tiveram por objetivo operacionalizar a escala desenvolvida por
Lidz (1991), aplicando a abordagem assistida em crianças com deficiência
visual (Cunha & Enumo, 2010; Cunha, Enumo & Canal, 2006), problemas
55
de comunicação e dificuldades de aprendizagem (Dias, Paula & Enumo,
2009; Paula & Enumo, 2007), e na interação professor-aluno (Dias, Mello
& Moreira, 2009; Faria, Maranhão & Cunha, 2008). Além dos
comportamentos mediacionais apresentados pelo examinador em
procedimentos de avaliação e programas de intervenção, uma importante
variável destacada foi o padrão de responsividade do aprendiz nestes
contextos. Os principais resultados serão discutidos nas seções seguintes.

Avaliação da aprendizagem mediada: possibilidades de


desenvolvimento

Os três estudos2 que serão apresentados fizeram parte de um


projeto integrado de pesquisa (2003 a 2007) que produziu uma grande
quantidade de dados sobre crianças com diferentes problemas no
desenvolvimento, incluídas no sistema regular de ensino das regiões
metropolitana da Grande Vitória, ES e do Rio de Janeiro, RJ.
Considerando somente as informações sobre a mediação,
participaram, no Estudo 1, 12 crianças com deficiência visual (DV),
predomínio de baixa visão leve, cuja média de idade era de 7 anos e 6
meses. No Estudo 2, sete crianças (8-11 anos) com problemas expressivos
na linguagem oral (déficits que variavam de leve a severo nas habilidades
de linguagem e comunicação decorrentes de diferentes etiologias tais como
síndrome de Down, deficiência mental, tetraplegia mista, entre outros). Um
grupo de 17 alunos com dificuldades de aprendizagem, com idade entre 8 e
12 anos, participaram de um programa de criatividade, no Estudo 3.
Esses estudos tiveram como principal produto metodológico a
elaboração de um sistema de categorias comportamentais de mediação da
aprendizagem baseado em comportamentos observáveis do adulto/mediador
em contextos de interação, durante as fases de avaliação e intervenção de
habilidades cognitivas, comunicativas e de criatividade, o que pode ser útil
para fins de pesquisa e de implementação de estratégias educacionais em
grupos que apresentam deficiência e problemas de aprendizagem, em idades
pré-escolar e escolar.
A partir da escala original de Lidz (1991) novas versões foram
obtidas mediante a definição operacional de cada um de seus 12

2
Projeto Integrado de Pesquisa “Influências de variáveis mediadoras do
desempenho cognitivo, lingüístico, matemático e criativo em intervenções e
provas assistidas para crianças com necessidades educativas especiais”, sob
coordenação da Professora Sônia Regina Fiorim Enumo. CNPq Processo n.
501014/2003-9.

56
componentes mediacionais, considerando o tipo de interação entre o
examinador e a criança, a tarefa realizada e a condição da pesquisa (se
avaliação ou intervenção). Mais especificamente foram analisados os
padrões de interação entre: a) examinador e criança com DV durante
aplicação de prova cognitiva assistida; b) examinador e criança com
problemas de comunicação na aplicação de provas cognitivas assistidas e
em intervenção com sistemas de comunicação alternativa e ampliada
(CAA); e c) examinador e criança com dificuldades de aprendizagem em
programa de promoção da criatividade. Por conseguinte, em função das
peculiaridades de cada pesquisa foram obtidos três protocolos para análise
da EAM, a saber: a) Estudo 1 com 36 categorias de comportamentos do
examinador (ex.: solicitar atenção e evocar experiências) organizados nos
12 componentes da escala já citados (intencionalidade, significação, entre
outros); b) Estudo 2 com 13 categorias mediacionais, sendo 26
comportamentos do examinador (por exemplo, expandir a comunicação e
incentivar o relato) distribuídos nos 12 componentes da escala, além de 13
categoriais de comportamentos da criança (manter atenção na tarefa e
responder à questão do examinador, por exemplo), utilizadas para
operacionalizar o único item relativo ao examinando (responsividade à
mediação); e c) Estudo 3 com 9 categorias de mediação analisadas a partir
de um sistema de 17 comportamentos do examinador (ex.: oferecer
feedback informativo e dar dicas).
Em relação ao Estudo 1 os resultados revelaram que, tanto para o
total da amostra de crianças quanto para o total dos critérios de mediação, o
nível de mediação do examinador foi considerado alto (Md = 3). Esse nível
variou entre o nível 0 (sem mediação) para experiência partilhada e
mudança, passando pelo nível 2 (bom), considerando os critérios
intencionalidade e significação, por exemplo, até o nível 3 (ótimo) para,
pelo menos, cinco indicadores de mediação, incluindo a transcendência.
Na análise do padrão de mediação do examinador relacionado ao
desempenho cognitivo na prova assistida, para o total da amostra de
crianças com DV (n=12) observou-se grande variação intragrupo. O
examinador adotou níveis diferenciados que se ajustaram ao desempenho de
cada criança. Nesse sentido, para as que requeriam maior assistência na
execução da tarefa o examinador mais freqüentemente apresentou o nível 3
de mediação (ótimo). Para aquelas com bom desempenho, o nível 2 (bom)
foi bem aplicado. Assim, pode-se afirmar que o examinador apresentou, de
forma sistemática, comportamentos verbais e não-verbais condizentes com
a proposta da interação e que tinham potencial de mediar a aprendizagem da
criança face às limitações apresentadas em tarefas cognitivas.
No Estudo 2, no programa de intervenção com sistemas de
comunicação alternativa, o examinador apresentou um padrão ótimo de
57
mediação em seis categorias da EAM: intencionalidade, significação,
regulação na tarefa, elogiar/encorajar, responsividade contingente e
envolvimento afetivo. As categorias transcendência, atenção partilhada e
desafiar apresentaram uma classificação média (Md=2). Embora o
examinador não tenha apresentado o Nível 0 (ausência de mediação), as
categorias experiência partilhada e mudança apresentaram os índices mais
baixos de mediação (Md = 1). Desse modo, foi mais baixa a freqüência de
comportamentos cujo objetivo era compartilhar com a criança as próprias
experiências ou fornecer informações sobre as modificações no nível de
desempenho cognitivo do aprendiz.
Pode-se afirmar que os diferentes comportamentos do mediador
representaram seu esforço consciente de envolver e manter a criança no
objetivo da interação (ex.: solicitar à criança atenção e auto-regulação para
se manter na tarefa), fornecendo relevância e significado aos estímulos do
ambiente, a fim de conduzi-la a um melhor desempenho nas habilidades
lingüístico-cognitivas (ex.: enfatizar elementos, oferecendo modelo verbal).
Vale ressaltar que, ainda que a categoria transcendência tenha se
apresentado com classificação média, alguns episódios importantes
envolveram a subcategoria estabelecer ponte cognitiva conceitual, mediante
dicas ou estratégias de resolução de problemas, cujo objetivo foi auxiliar a
criança a identificar aspectos conceituais em substituição aos aspectos mais
perceptuais e concretos da atividade.
No tocante ao padrão de comportamentos da criança, o grupo
apresentou nível de responsividade moderado às estratégias de mediador no
contexto de intervenção (Md=2), com maior variabilidade nesta categoria
(AV = 0-3). Poucas sessões necessitaram ser interrompidas devido a forte
resistência da criança para se engajar e manter na tarefa (Nível 0). Assim, o
grupo, na maior parte do programa de CAA, se mostrou receptivo, porém,
com resistência ocasional.
Entre os principais resultados do Estudo 3, a experimentadora
emitiu, nas cinco sessões de intervenção para a promoção de criatividade,
três categorias mediacionais com maior freqüência: 1)
competência/regulação na tarefa (35,1%), que incluiu os comportamentos
de dar dicas (14,9%), fazer questões sobre a tarefa (10,1%), clarificar a
tarefa (7,4%) e incentivar o relato da criança (3,2%); 2) responsividade
contingente (28,5%), agrupando os comportamentos de responder à questão
da criança (15,1%), comentar sobre a criança (11,8%) e responder à
solicitação da criança (1,7%); e 3) competência/elogiar - encorajar
(16,8%), com os comportamentos comentar desempenho da criança
(15,2%), que teve a maior freqüência na escala, e dar feedback positivo
(1,5%).

58
Houve, por parte da experimentadora, a preocupação em enfatizar
as estratégias usadas pela criança, de modo a auxiliá-la nas atividades,
assim como em responder às questões feitas pela mesma, e ofertar dicas,
pistas e estratégias que a conduzissem a um bom desempenho. Todavia, não
ocorreu mediação do tipo dar feedback elaborativo/comparativo, sugerindo
a dificuldade do mediador em apresentar comportamentos verbais que
descrevessem as mudanças processadas no desempenho cognitivo da
criança antes e depois da interação.
A análise de dados do Estudo 3 indicou que não houve relação
estatisticamente significativa entre os níveis de mediação (variação de 0 –
3) oferecidos entre as cinco sessões, tampouco entre aquelas realizadas no
mesmo dia nos dois períodos (matutino e vespertino), sugerindo que não
houve alteração no padrão de mediação empregado ao longo da intervenção.
O gradiente de mediação da examinadora variou entre 1,8 e 2,2, ou seja, as
ações se traduziram em mediações adequadas para conduzir o aprendiz à
expressão das habilidades criativas, como, por exemplo, criar, descobrir,
imaginar e inventar.
Por fim, de modo geral, observou-se nos três estudos que o padrão
de mediação proporcionou maior envolvimento por parte das crianças no
tocante as atividades propostas (desempenho cognitivo em prova assistida,
ampliação da comunicação mediante programa computadorizado, e
desenvolvimento de comportamentos criativos), destinada a otimizar a
situação de aprendizagem nos diferentes contextos.

Considerações finais

A adoção da proposição teórica da Experiência de Aprendizagem


Mediada (EAM) realizada por Reuven Feuerstein, que tem como foco
principal a interação enquanto fator de modificabilidade cognitiva do ser
humano, como base dos estudos aqui descritos, vem sendo considerada por
pesquisadores da área como bastante adequada para contextos de avaliação
e intervenção com crianças com problemas de desenvolvimento (Enumo,
2005a, 2005b; Linhares & Enumo, 2007; Linhares, Escolano & Enumo,
2006), seja de natureza cognitiva, afetiva ou psicossocial. Desse modo, por
se tratar de uma perspectiva teórica e metodológica que não ignora a
presença de fatores intervenientes no desenvolvimento cognitivo, e por
destacar a configuração e dinâmica da mediação, além de valorizar as
variáveis afetivo-motivacionais desse processo (Tzuriel, 1991), a avaliação
da EAM certamente contribui para a compreensão das dificuldades e
necessidades da população referida, oferecendo subsídios para a elaboração
e implementação de intervenções mais efetivas para a aprendizagem.

59
As versões da Escala de EAM dão diretrizes sobre a aplicação de
conceitos considerados essenciais para que uma interação se configure em
uma mediação de aprendizagem (Feuerstein & Feurstein, 1991; Tzuriel,
1999, 2001). Por se basear em observação direta do comportamento, foi
possível obter exemplos de comportamentos de mediadores interagindo em
situações de ensino-aprendizagem com crianças que apresentavam quadros
diversos de dificuldades cognitivas, lingüísticas, perceptivas, emocionais e
de aprendizagem, as quais tendem a afetar seu desempenho sócio-
acadêmico.
Destacamos, ainda, que sua utilização em programas de orientação
e capacitação de pais e professores tem como objetivo favorecer a
construção de uma visão mais positiva e otimista acerca do potencial de
aprendizagem infantil, com conseqüente mudança na postura do adulto na
interação com a criança com necessidades específicas de ensino. Mais
particularmente, a identificação e a descrição desse padrão de interação
poderá subsidiar a prática de mediadores significativos para favorecer
diferentes habilidades no desenvolvimento infantil.
Como limitações da nossa proposição, a aplicação do
procedimento demanda maior tempo no registro dos indicadores
mediacionais, fator que deve ser considerado na aplicação da escala fora do
âmbito experimental. Outro ponto que requer discussão em estudos
adicionais se refere à obtenção de alguns índices de fidedignidade mais
baixos do que os estabelecidos nos estudos observacionais no que tange à
definição de alguns comportamentos e padrão de mediação do examinador.
Essa revisão poderá diminuir a superposição de categorias, agrupando
comportamentos topograficamente semelhantes, mas classificados em
categorias distintas (por exemplo, fornecer ponte cognitiva conceitual e
fornecer feedback elaborativo/comparativo).
Apesar das limitações apontadas, a operacionalização da Escala de
EAM produziu um checklist de possíveis comportamentos do
adulto/mediador em situação de interação permitindo avaliar o papel e a
eficácia da mediação no processo de modificabilidade cognitiva de crianças.
As versões da Escala de EAM aqui discutidas poderão, assim,
auxiliar na recomendação e elaboração de planos de intervenção baseados
na observação da interação entre o adulto e a criança, em contextos
diversos: avaliação psicológica e intervenção educacional (clínicas, escolas
e no lar) e em pesquisa. Igualmente, pode ser um instrumento auxiliar no
monitoramento da evolução do comportamento do mediador nas diversas
situações de interação social. Com isso, esperamos que os resultados aqui
apresentados contribuam para a discussão de questões metodológicas sobre
a adequação e uso de instrumentos de avaliação para a população com
deficiência ou dificuldades de aprendizagem.
60
Por fim, cabe salientar a relevância social dos estudos sobre as
estratégias de mediação na promoção da aprendizagem de crianças com
problemas de desenvolvimento, especialmente nas áreas cognitiva e sócio-
afetiva. Certamente, tal influência tem implicações para o sucesso ou
fracasso escolar. Em outras palavras, mediações adequadas podem
modificar a trajetória desenvolvimental de crianças e jovens tipicamente
marcados por processos de exclusão social, ajudando a eliminar o
autoconceito empobrecido de sua condição de aprendiz, e a participar
ativamente, com interesse e motivação, no próprio processo de
aprendizagem.

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63
6

UTILIZANDO RECURSOS TECNOLÓGICOS PARA A


AVALIAÇÃO E A PROMOÇÃO DE HABILIDADES SOCIAIS

Adriana Augusto Raimundo de Aguiar


Zilda Aparecida Pereira Del Prette

Diante das inúmeras mudanças e transformações advindas da


modernidade e inovação tecnológica, a imagem se tornou uma forma de
comunicação de fundamental relevância no contexto da sociedade atual. A
imagem é utilizada na publicidade, televisão e revistas para comunicar
fatos, idéias e conceitos.
Associada ao som, a imagem configura o termo audiovisual. De
acordo com Parra (1975) este termo apesar de reconhecer e utilizar a
exposição oral, os livros e outros materiais verbais, é usado de modo
especial para indicar aqueles materiais de instrução e experiência que não
dependem, basicamente, da leitura para transmitir mensagens e que
recorrem, inicialmente, para os diversos sentidos. Assim, audiovisual inclui
meios e procedimentos didáticos como o cinema educativo, a televisão,
rádio educativo, gravações, ilustrações, mais recentemente recursos
multimídia e outros.
De uma maneira simples é possível dizer que o termo multimídia
remete à tecnologia audiovisual associada a recursos de interatividade.
Segundo Sabbatini (1998) o termo multimídia refere-se à tecnologia que
permite combinar, em um único programa ou método de acesso (rede, CD-
ROM, etc.), informações em diferentes meios, tais como: texto, imagens
estáticas e dinâmicas, clipes de áudio e de vídeo; incluindo ainda funções de
interatividade, ou seja, a possibilidade do usuário interagir com o programa
na forma de um diálogo bidirecional.
Tem sido crescente o uso de recursos tecnológicos para promoção
e facilitação da aprendizagem de diferentes conteúdos e em diferentes áreas.
Alcalay, Milicic e Torretti (2005) defendem que por meio das imagens as
pessoas são capazes de explorar/experienciar dilemas que de outra forma
somente poderiam ser acessados de forma conceitual. Para essas autoras,
por meio de seqüências dramáticas filmadas, é possível dar vida aos
problemas e transmitir idéias de uma maneira comovedora, vigorosa,
estética e eficaz, além de que a imagem teria a força e o impacto de quebrar
as resistências e captar a atenção do espectador.
No caso específico do campo teórico-prático das Habilidades
Sociais, muitas são as perspectivas de pesquisa e aplicações com a
64
exploração de recursos multimídia. Esse campo destaca-se pela diversidade
de técnicas e procedimentos utilizados, dentre eles recursos tecnológicos,
para a promoção de habilidades de diferentes populações e em diferentes
contextos. Contudo, ainda são incipientes o uso e a investigação sobre
recursos tecnológicos auxiliares avaliação e na intervenção que
caracterizam os programas dessa área. É importante, contudo, destacar
alguns esforços de grupos de pesquisa que, dentre outros interesses, tem
como objetivo a construção de recursos para a intervenção.
Este capítulo tem como proposta apresentar: (a) alguns estudos
indicando as potencialidades do uso da tecnologia no processo de ensino-
aprendizagem; (b) uma breve revisão sobre procedimentos e técnicas
utilizadas para avaliação e intervenção de habilidades sociais no Brasil; e
(c) recursos tecnológicos desenvolvidos e em desenvolvimento pelo grupo
de pesquisa Relações Interpessoais e Habilidades Sociais (RIHS), da
Universidade Federal de São Carlos, coordenado pela Profa. Dra. Zilda A.
P. Del Prette e pelo Prof. Dr. Almir Del Prette; Ao final do capítulo discute-
se a necessidade de maiores investimentos em pesquisas sobre essa
temática, o que oferecerá contribuições importantes para diferentes
segmentos da Psicologia.

Ensino e tecnologia

De acordo com Canan e Raabe (2007), na educação, os recursos


audiovisuais, podem servir tanto para o desenvolvimento de uma
consciência crítica do educando, quanto de suporte para alcançar objetivos
pedagógicos. Para estes autores educar com a imagem, representa tirar
proveito do fato de que os alunos estão acostumados à linguagem visual
permitindo reduzir o hiato comunicativo entre educando e educador.
Resultados positivos obtidos com o uso de recursos audiovisuais
têm sido registrados por pesquisadores de diferentes áreas, tais como: no
uso de trechos de filmes e desenhos animados produzidos pela indústria
cinematográfica para o ensino de conteúdos de Física no Ensino Médio
(Clebsch & Mors, 2004); uso de televisão instrucional em um curso de
Introdução à Psicologia (Bacon, 2001); imagens em vídeo para o trabalho
da temática sexualidade e corpo (Vargas e Siqueira, 1999).
A modalidade de Educação a Distância oferece ainda uma nova
possibilidade para a adequação do processo educacional às necessidades do
mercado, adequando o tripé educando/escola/educador para
educando/sociedade/tecnologia (Marcheti, Belhot & Seno, 2005). Com isso,
tem-se hoje, por exemplo, recursos educativos em TV aberta, como projetos
governamentais, que apresentam documentários e vídeos educativos

65
fazendo uma posterior discussão interdisciplinar das possibilidades de uso
do material.
Assim como ocorre com os recursos audiovisuais, a utilização de
recursos multimídia como estratégias auxiliares e facilitadoras para a
aprendizagem de diferentes conteúdos vem crescendo ao longo dos últimos
anos. Alcalay, Milicic e Torretti (2005) desenvolveram um programa
educacional que incluiu um vídeo e um jogo de atividades projetadas para
ser usado com pais no contexto escolar. Dentre as vantagens do uso das
imagens e conteúdos apresentados, as autoras citam: a) reprodução de um
evento, possibilitando a repetição para discussão; b) base concreta para o
desenvolvimento de um pensamento conceitual em relação à temática
abordada; c) contribuição para o aumento do significado do que foi
aprendido, dando a possibilidade de elaborá-lo; e d) possibilidade de fazer
uma reestruturação cognitiva dos pais, de suas experiências na relação
família-escola.
A partir dos resultados observados com a análise do recurso
audiovisual desenvolvido, Alcalay, Milicic e Torretti (2005) defendem que
o uso do vídeo desperta interesse e permite aos pais-espectadores adotar um
olhar ativo e crítico frente às mensagens audiovisuais, mas também frente a
sua própria forma de exercer sua paternidade. Defendem ainda que o vídeo
facilita a tarefa do professor na hora de trabalhar com os pais, já que a
combinação de imagem e som aumenta a probabilidade de retenção dos
conteúdos.
A utilização dos computadores nas escolas está ampliando-se cada
vez mais, existindo inúmeros softwares no mercado que são largamente
utilizados nos laboratórios de informática de escolas de ensino fundamental
e médio (Silveira & Barone, 2007). De acordo com Tarouco, Roland, Fabre
& Konrath (2004) a importância do uso dos computadores e das novas
tecnologias na educação deve-se hoje não somente ao impacto desta
ferramenta na nossa sociedade e às novas exigências sociais e culturais que
se impõe, mas também ao surgimento da Tecnologia Educativa.
A análise de estudos internacionais investigando os benefícios da
utilização de recursos multimídia permite identificar resultados positivos no
uso desses recursos no processo de ensino-aprendizagem, revelando um
potencial de flexibilidade e motivação (Brewster, 1996); maior atratividade,
apreciação por parte dos usuários e orientação visual (Neuhoff, 2000;
Pemberton, 2006; Smith, 2000); bem como maior desenvolvimento de
criatividade na resolução de problemas pelos usuários (Mayer, 1997).
No âmbito nacional é possível identificar alguns trabalhos
utilizando recursos multimídia para o ensino e aprendizagem. Assim, dentro
do universo computacional pode-se citar a hiperhistória. Segundo Balestro e
Mantovani (2007) os sistemas de hipermídia possuem como característica
66
principal a interação que proporcionam ao usuário. Esta característica,
utilizada em um ambiente lúdico, define o conceito de hiperhistória. De
acordo com as autoras, em uma hiperhistória o usuário tem a possibilidade
de influenciar na história que vive virtualmente, passando de simples leitor
a explorador e construtor.
De uma forma geral, os jogos fazem parte da nossa vida desde os
tempos mais remotos, estando presentes não só na infância, mas também em
outros momentos da vida. Estudiosos defendem que os jogos podem ser
ferramentas instrucionais eficientes, pois eles divertem enquanto motivam,
facilitam o aprendizado e aumentam a capacidade de retenção do que foi
ensinado, exercitando as funções mentais e intelectuais do jogador
(Tarouco, Roland, Fabre & Konrath, 2004).
Ramos (2006) destaca os jogos eletrônicos pela sua inserção ainda
recente na infância e o crescimento acelerado de sua disseminação, e pelo
grande potencial midiático utilizado para criar possibilidades de
representação de papéis e constituição de mundos virtuais, nos quais
comportamentos são autorizados e vivenciados pelos jogadores. Os
enunciados de Ramos vão ao encontro da base para o aprendizado das
habilidades sociais: a interação da pessoa com outros interlocutores e
grupos, o que denota que a possibilidade de interagir com algo é de extrema
importância para o aprendizado significativo.

Promoção de Habilidades Sociais

O campo teórico-prático das Habilidades Sociais constitui, na


Psicologia, uma área de estudo e aplicação de conhecimento com
implicações sobre a qualidade das relações diádicas e intergrupais. De
acordo com Del Prette e Del Prette (2001) o termo habilidades sociais
refere-se às diferentes classes de comportamentos sociais no repertório de
um indivíduo que podem ser utilizadas para lidar de maneira adequada com
as demandas das situações interpessoais.
No contexto tecnológico, a utilização da modelação como técnica
de intervenção em programas de THS é de suma importância, uma vez que
a aprendizagem por observação é um dos processos básicos para isso, em
especial daqueles conteúdos que dependem em grande parte da visualização
de imagens (seja ao vivo, por meio de filmes, desenhos, figuras etc), como
acontece com os componentes não verbais das habilidades sociais.
Estudos brasileiros descrevendo programas de THS permitem
verificar que, embora sejam grandes os esforços em se adotar, no campo das
Habilidades Sociais um delineamento multimodal na avaliação e na
intervenção (Del Prette e Del Prette 1999; 2001; 2009), ainda são poucos os
estudos enfocando o uso de recursos tecnológicos como estratégias de
67
ensino - utilizando ou não a modelação como base, como observado em
estudos descrevendo programas de THS (Bolsoni-Silva e col. 2006; Murta
2005).
Considerando que esta forma de interagir (socialmente habilidosa)
favorece conseqüências positivas e, portanto, pode auxiliar na prevenção
e/ou redução de dificuldades psicológicas (Bolsoni-Silva, 2002); a análise
de artigos descrevendo programas de THS permite verificar pouca
exploração do uso de recursos audiovisuais e multimídia pelo campo das
Habilidades Sociais e que os estudos revelam as potencialidades do uso de
recursos tecnológicos para o ensino de diferentes conteúdo, o
desenvolvimento de novos procedimentos e recursos tecnológicos para uso
nesse campo é fundamental para a pesquisa e a prática na área. Assim, a
divulgação de recursos e pesquisas sobre essa temática pode ser importante
para fomentar novos estudos nessa direção.

Recursos audiovisuais e multimídia desenvolvidos pelo Grupo RIHS

O Grupo Relações Interpessoais e Habilidades Sociais (RIHS) teve


início com seu núcleo base RIHS-UFSCar, coordenado pelos Profs. Dr.
Almir Del Prette e Dra. Zilda A. P. Del Prette e orientandos de graduação e
pós-graduação vinculados aos Programas de Pós-Graduação em Educação
Especial (PPGEEs) e em Psicologia (PPGPsi) da Universidade Federal de
São Carlos. Sua origem fundamentou-se no vislumbre de seus idealizadores
e coordenadores, da necessidade em organizar atividades relacionadas à
temática da produção de conhecimento e oferecer serviços no campo
teórico-prático das Habilidades Sociais (Del Prette & Del Prette, 2006a).
As preocupações do grupo RIHS com a construção de recursos visa
tanto à avaliação e investigação de habilidades sociais até recursos para a
promoção dessas habilidades. A produção científica e a construção desses
recursos estão vinculadas à projetos desenvolvidos e em desenvolvimento
pelos coordenadores do grupo3.
No âmbito da avaliação e da promoção de Habilidades Sociais
recebe destaque o Sistema Multimídia de Habilidades Sociais para
Crianças (SMHSC-Del-Prette), que engloba o Inventário Multimídia de
Habilidades Sociais para Crianças (IMHSC-Del-Prette) e o Recurso
Multimídia de Habilidades Sociais para Crianças (RMHSC-Del-Prette). O
SMHSC-Del-Prette consiste de um conjunto de materiais para avaliação e
promoção de habilidades sociais de crianças de sete a 12 anos de idade (Del
Prette & Del Prette, 2003; 2005).

3
Ver: www.rihs.ufscar.br
68
O recurso para promoção de habilidades sociais foi denominado
RMHSC-Del-Prette e se consta de um CD-Rom com 21 vinhetas de vídeo,
ilustrando situações interpessoais em quatro classes amplas de habilidades
sociais: a) empatia e civilidade; b) assertividade de enfrentamento; c)
autocontrole; e d) participação.
O IMHSC-Del-Prette é o material de avaliação do SMHSC-Del-
Prette, apresentado em versão impressa e informatizada, corresponde aos
materiais de avaliação. É um instrumento aprovado pelo Conselho Federal
de Psicologia destinado à autoavaliação, avaliação da criança pelo
professor e avaliação do professor sobre os itens de habilidades. A versão
informatizada do IMHSC-Del-Prette é apresentada em CD-ROM, gerando
protocolos, gráficos e planilhas. Já a versão impressa é apresentada sob a
forma de um Caderno de Pranchas, com Fichas de Respostas, Folha de
Instruções e Cartões que pode ser apurada manualmente ou inserida no
programa de computador. Para a apuração dos dados, o sistema possui um
gerenciador informatizado que organiza os dados produzidos pelas
avaliações, gerando protocolos, gráficos e uma planilha Excel exportável
para programas estatísticos. Dentre as demais características desse
instrumento destacam-se: “(a) permite análise intraindividual (pontos
“fortes” e “fracos” da criança) e/ou interindividual (situação da criança
em relação a uma amostra normativa); (b) manual com instruções para o
uso dos resultados no planejamento de intervenções específicas; (c) opção e
instruções para o uso dos recursos multimídia em procedimentos de
intervenção, quando a avaliação de habilidades sociais é feita por meio de
outros instrumentos” (Del Prette & Del Prette, 2009).
O Grupo RIHS tem se dedicado também à construção de vídeos
instrucionais4, dentre os quais se pode citar:
 Habilidades Sociais: A assertividade – pequeno vídeo
instrucional desenvolvido para uso nos programas PRODIP 5 e demais
cursos e assessorias (Divulgação restrita).
 Promoção de habilidades sociais na escola – Trata-se de
um vídeo-documentário de 25 minutos, expondo uma experiência prática de
Treinamento de Habilidades Sociais em uma escola de São Carlos. Nessa
experiência, os professores foram capacitados a conduzirem um programa

4
Todos estes recursos encontram-se disponíveis com os coordenadores do
Grupo RIHS.
5
Programa de Desenvolvimento Interpessoal/Profissional – programa
desenvolvido pelos Profs. Dr. Almir Del Prette e Zilda A. P. Del Prette
como uma estratégia alternativa de promoção de recursos humanos em
ambiente organizacional. Para maiores detalhes ler: (Del Prette & Del
Prette, 2006b).
69
em sala de aula, de forma articulada aos objetivos acadêmicos (Divulgação
restrita).
 Habilidades sociais: Treinamento de alunos na condução
de vivências – Vídeo instrucional que ilustra o processo de preparação de
alunos para coordenar atividades vivenciais e que faz parte de uma
disciplina optativa regularmente ofertada no Curso de Graduação em
Psicologia da UFSCar (Divulgação restrita)
 O passeio de Bia – Vídeo instrucional construído para
aprendizado de habilidades sociais relevantes na infância. Destina-se a
crianças pré-escolares enfocando seis cenas ilustrando comportamento
socialmente habilidoso em: fazer pedidos, recusar oferta de carona,
solucionar uma briga entre amigas, ajudar uma senhora a atravessar a rua,
fazer pedidos e fazer convites.
 Vivências no Treinamento de Habilidades Sociais – Esse
vídeo instrucional foi produzido para ilustrar as atividades vivenciais que
fazem parte do livro Psicologia das Habilidades Sociais: Vivencias para o
trabalho em grupo, e são conduzidas pelos coordenadores Zilda e Almir
(Divulgação restrita)
No setor clínico e educacional o Grupo RIHS vem construindo um
Tecnologia Multimídia em Habilidades Sociais (TecM-HS)6. O TecM-HS
tem como foco a população de jovens adultos de 20 a 40 anos de idade,
contemplando duas classes de habilidades sociais mais amplas: Habilidades
Sociais Assertivas de Enfrentamento e Habilidades Sociais Empáticas.
Dentre as Habilidades Sociais Assertivas de Enfrentamento inclui
as habilidades de desculpar-se e admitir falhas, encerrar relacionamento,
estabelecer relacionamento afetivo-sexual (incluindo a negociação do uso
de preservativo), fazer/aceitar e recusar pedidos, interagir com autoridade,
lidar com críticas, manifestar opinião-discordar e pedir mudança de
comportamento. Na classe de Habilidades Sociais Empáticas focaliza as
habilidades de colocar-se no lugar do outro (compreensão e sentimento), e
expressar apoio, compreensão e solidariedade.
O TecM-HS oferece um conjunto de cenas para ilustração de
alguns desempenhos possíveis (habilidosos e não habilidosos) para cada
uma dessas habilidades sociais. Ainda apresenta questões relacionadas a
cada classe de habilidade que podem ser utilizadas como material adicional
em atividades e tarefas propostas em programas de THS.

6
A construção do TecM-HS foi parte do projeto de Pós-Doutorado da
primeira autora sob orientação e supervisão da segunda autora desenvolvido
junto ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos
e com apoio financeiro da FAPESP sob número de processo 07/55850-8.
70
Para profissionais e pesquisadores que desejam ou precisem
desenvolver recursos similares ao TecM-HS é possível acessar na seção
bônus orientações sob a forma de diretrizes para a construção de um recurso
audiovisual e multimídia.
A investigação dos recursos construídos pelo Grupo RIHS ainda
concentra-se no SMHSC-Del-Prette e no IMHSC-Del-Prette. Dentre esses
estudos é possível encontrar desde artigos envolvendo a análise dos
aspectos psicométricos do IMHSC até o emprego do RMHSC-Del-Prette
em programas de promoção de habilidades sociais em dissertações e teses.

Considerações Finais

Os dados apresentados nas seções anteriores permitem uma


reflexão sobre a importância em se ampliar a investigação dos benefícios do
uso de recursos tecnológicos em ambiente de intervenção, dentre eles em
Psicologia. A investigação desses resultados, no entanto, requer um passo
anterior que seria também um maior investimento na construção de recursos
tecnológicos voltados especificamente para essa área.
Outras fontes ainda podem ser acessadas para confirmar uma
tendência cada vez maior em se considerar os avanços tecnológicos e a
fundamental necessidade dos profissionais estarem atentos para as
transformações e evoluções da sociedade. Visando apontar que a Psicologia
também tem buscado interar-se e avançar seus conhecimentos e prática
neste segmento o Jornal CFP publicou em 2006 matéria abordando o
crescente número de estudos voltados a temas relacionados à Interface
Psicologia/Informática, ilustrado, por exemplo, no aumento significativo
dos temas abordados nos Seminários Brasileiros de Psicologia e Informática
(Psicoinfo). De acordo com o Jornal do CFP o principal tema do I Psicoinfo
foi a Psicologia e o uso da informática no dia-a-dia da profissão. Já no II
Psicoinfo os temas centrais estenderam-se para três: a informatização dos
testes psicológicos; a interação humana e os impactos da informatização na
subjetividade humana; e as possibilidades de serviços psicológicos serem
oferecidos via internet, como orientação via e-mail e a tão polêmica terapia
on-line. Ampliando ainda mais os conteúdos, o III Psicoinfo, realizado em
novembro de 2006, contemplou nove temas principais, sendo eles: a
continuidade, o aprimoramento e a validação de sites que prestam serviços
psicológicos via internet; o estímulo às universidades para a produção de
pesquisas com a finalidade de avançar a relação entre Psicologia e
informática; a publicidade de trabalhos produzidos no âmbito das interfaces
Psicologia/informática que possam colaborar para o avanço do campo;
subjetividade e impacto da internet e da tecnologia; informática aplicada à
Psicologia: Testes e instrumentos informatizados; softwares para
71
Psicologia; serviços via internet; uso da informática na prática profissional;
e psicologia aplicada à informática: Inteligência artificial, redes neurais,
visão computacional, modelos cognitivos.
A existência de estudos destacando as potencialidades do uso de
recursos audiovisuais e multimídia no processo de ensino-aprendizagem,
bem como a incipiência dos estudos envolvendo a construção desses
recursos como ferramentas auxiliares em programas de THS, são apenas
alguns dos argumentos que fundamentam a necessidade de maiores
investimentos em pesquisas da Psicologia neste temática, assim como vem
ocorrendo na esfera da informática/internet.
Assim, fechamos este capítulo elencando alguns elementos
essenciais que fundamentam a defesa de que a construção de recursos
tecnológicos, dentre eles recursos audiovisuais e multimídia, no campo das
Habilidades Sociais, pode contribuir para ampliar o escopo das técnicas
utilizadas, sugerir futuros estudos e levantar pontos de reflexão sobre a
temática: (a) a escassez de pesquisas e programas de intervenção em THS
utilizando recursos audiovisuais e/ou multimídia como estratégias de
intervenção; (b) os resultados positivos, evidenciado em estudos de
diferentes áreas, em especial na Educação, frente à utilização desses
recursos no processo de ensino-aprendizagem; (c) a possibilidade de criação
de um ambiente interativo propício ao desenvolvimento das habilidades
sociais, a partir do uso desses recursos; (d) o importante papel da modelação
para a aprendizagem de diferentes conteúdos, inclusive de componentes não
verbais; (e) a ampla utilização da modelação em programas de THS; (f) a
potencialidade dos recursos audiovisuais e multimídia como fonte de
modelos de comportamento; e (g) o interesse crescente da Psicologia no
conhecimento e utilização de recursos tecnológicos que auxiliem no
processo psicoterápico.
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74
7

RELAÇÕES AMISTOSAS:
CONCEPÇÕES DE PROFESSORES E DESENHOS INFANTIS

Jussara Cristina Barboza Tortella


Josiane Raymundo dos Santos
Edna Aparecida Pereira Perobelli

A experiência em escolas de Educação Infantil e Ensino


Fundamental nos fez refletir a respeito de alguns aspectos relacionados ao
olhar do docente sobre as relações entre os alunos e as representações dos
relacionamentos das crianças com os seus pares. O que faz uma criança ser
feliz no contexto escolar? Qual o papel dos relacionamentos interpessoais
para o sucesso escolar? Qual o papel da amizade na escola? Essas perguntas
não são facilmente respondidas, mas, notadamente, estamos convencidos de
que os relacionamentos interpessoais são importantes para a vida humana.
Estudos específicos sobre os relacionamentos interpessoais
(amorosos, familiares e amistosos) são realizados principalmente por
pesquisadores europeus e norte-americanos. Garcia (2005) visando a
consolidação de uma “Psicologia da Amizade” aponta para a necessidade de
avanço teórico e a elaboração de modelos teóricos específicos para esta área
de pesquisa. Nesse sentido, o autor destaca a falta de investigações em
países em desenvolvimento e a necessidade da realização de estudos
comparativos e a compreensão da influência das transformações sociais,
culturais, políticas e econômicas para as relações de amizade.
Diante das necessidades apontadas, para este trabalho destacamos a
compreensão da amizade no contexto escolar, dando voz aos professores e
crianças. A observação na escola nos remete a questões cruciais dos
relacionamentos e alguns pontos nos interessam efetivamente no intuito de
compreender os relacionamentos amistosos: o entendimento dos docentes
acerca do ambiente social e da solidão e a representação das crianças por
meio do desenho sobre seus relacionamentos com amigos e não-amigos.
Mas quais seriam os aspectos que envolvem e interferem na
construção dos relacionamentos amistosos? Entendemos, a partir dos
estudos baseados na perspectiva piagetiana, que na construção da amizade,
os aspectos cognitivos, afetivos e sociomorais estão intimamente
interligados.
Supõe-se que haja o estabelecimento de relações de cooperação e
reciprocidade nas amizades. Piaget (1994) utiliza o termo cooperação
75
quando aborda a questão dos relacionamentos entre as pessoas referentes à
autonomia, explicando que sem as relações entre as pessoas, a necessidade
moral deixa de existir. “A autonomia só aparece com a reciprocidade,
quando o respeito mútuo for bastante forte, para que o indivíduo
experimente interiormente a necessidade de tratar os outros como gostaria
de ser tratado” (p. 155). Para que o indivíduo consiga ter um relacionamento
amistoso é necessário que ocorra uma descentração, isto é, que a pessoa
deixe de considerar apenas as suas opiniões e sentimentos e venha a
perceber os sentimentos e opiniões do outro. Isso supõe relações de
cooperação. Assim é que o sujeito chega a construir a noção exata das
relações sociais de cooperação. Os sentimentos de lealdade, de confiança
mútua, princípios fundamentais da amizade, decorrem de uma construção
de valores.
Porém, como percebemos que há realmente uma construção e que
tais aspectos estão interligados? Por exemplo, analisando as atitudes de uma
criança que se encontra no estágio pré-operatório evidenciamos que ela
ainda não é capaz de conciliar a vontade do outro com a vontade própria;
desse modo, a criança percebe que outra criança está desejando o seu
brinquedo, mas não consegue ainda coordenar o seu desejo com o de outra.
Isso não quer dizer necessariamente que essa criança não possa brincar ou
interagir com outras crianças, mas que seus relacionamentos se dão de
acordo com suas capacidades cognitivas e afetivas. Assim, não podemos
dizer que por causa da centração e do egocentrismo a criança não faça
amizades, mas sim, que não podemos ainda considerar estas amizades em
seu conceito genuíno. Se compararmos uma criança pequena com um
adolescente, veremos neste último outras possibilidades de relacionamentos
estabelecidas, por exemplo, no estágio 3 ou 4 descritos por Selman(1981).
Os estudos desse autor demonstram que há uma evolução na
construção das relações amistosas e descreve cinco estágios de
compreensão reflexiva das amizades: estágio 0: Atividades físicas
momentâneas; estágio 1: Assistência de mão única; estágio 2: Cooperação
leal; estágio 3: Relacionamentos íntimos e mutuamente compartilhados;
estágio 4: Amizades interdependentes e autônomas.
Outro fator que interfere na construção das relações amistosas é o
aspecto social e cultural, incluindo as normas, regras e valores. Sabe-se que,
ao longo de seu desenvolvimento, a criança procura dar explicações sobre a
realidade que a cerca, tanto física e lógica como social, com base em suas
próprias vivências ou esquemas anteriores, procurando, de alguma forma,
certa ou errada, explicações para este mundo.
A unidade social com a qual a criança entra em contato após a
família, geralmente, é a escola. Entendemos que esse espaço é de extrema
importância para a construção das relações amistosas. Nos primeiros anos
76
escolares, presenciamos na criança uma evolução muito importante em
todos os aspectos do seu desenvolvimento: cognitivo, afetivo, social e
perceptivo-motor e as relações que a criança estabelece com os seus pares
contribuem para este desenvolvimento. A criança só poderá tomar
consciência de seu pensamento e sentimentos ao confrontar-se com o
pensamento de outros.
Contudo, qual é a relação entre a possibilidade de desenvolvimento
das noções de amizade e o contexto escolar? Seria o ambiente um fator
relevante nessa construção?
Quando entramos em um determinado ambiente muitas vezes
podemos observar que ele fala conosco, transmitindo emoções, sensações,
recordações; raramente saímos de um ambiente sem levarmos alguma
impressão, seja ela boa ou ruim, alegre ou triste, amistosa ou não. Sendo
assim, temos que considerar a importância do ambiente escolar para a
construção da afetividade do educando.
Entende-se por ambiente solicitador aquele que é organizado pelo
docente no sentido de favorecer a construção das estruturas cognitivas e
afetivas, bem como privilegia as interações sociais e a resolução de
conflitos cognitivos e sociomorais gerados por ele. A capacidade de se
relacionar com outras pessoas remete à possibilidade de estabelecer um
convívio social que envolva produzir, dividir e aprender com o outro,
implica aprender a conviver com as diferenças de humor, de hábitos, de
costumes, de cultura, entre outros.
E quando essas oportunidades não são garantidas? O que pode gerar
a falta de um ambiente propício para o estabelecimento de relações
interpessoais? Se tal fato ocorrer, temos um ambiente pautado no
autoritarismo, dependência dos alunos, exclusão e discriminação. Um dos
fatores que pode ser destacado sobre a exclusão é o sentimento de solidão.
A solidão está relacionada aos sentimentos que geralmente não são muito
agradáveis.
Todavia, qual seria a razão dessa solidão? A amizade contaria
como um elemento importante nesse aspecto? Essas crianças teriam
problemas em estabelecer amizades ou em mantê-las? Seriam os conflitos e
as discordâncias os causadores da falta de amizade?
Conflito e discordância são comuns em amizades próximas das
crianças. Alguns autores enfocam que a maneira como as crianças resolvem
os conflitos de forma rápida e amigável é mais importante que evitar
conflitos. Esses dados parecem bem coerentes com a realidade, pois
desmistificam a ideia que se tem sobre amigos: nunca discutem ou têm
opiniões diferentes (Parker & Asher, 1993).
Alguns estudos atribuem à solidão uma combinação de
dificuldades sociais, tais como, retração e inibição de responsividade social,
77
comportamento social retraído, má aceitação de colegas, poucos ou nenhum
amigo. Crianças retraídas/rejeitadas receberam maior quantidade de rejeição
dos colegas e mais baixa porcentagem de índices de melhor amigo (Asher et
al, 1990; Renshaw & Brown, 1993).
No entanto, como saber o que as crianças pensam a respeito das
suas amizades? O interesse pelas interações entre as crianças e a observação
como docentes nos fez perceber que elas, por meio de desenho, registram
mais do que é perceptível ou mais do que é solicitado, apresentando por esta
forma de expressão e por meio do relato oral, uma riqueza de detalhes que
só adquire sentido aos olhos dos adultos quando estes podem captar o que
foi desenhado e quando o associavam à fala de seus produtores. Por
exemplo, quando se pede à criança desenhar a si própria com seu amigo, ela
produz desenhos com muitos outros elementos e ao comentar sobre o
mesmo, muitas vezes, cria um enredo de uma história.
O desenho é uma forma de expressão e de representação e a
amizade é um valor, assim, associar os temas poderá contribuir para ampliar
os estudos a respeito das representações no campo dos valores. Ao se
considerar o que as crianças pensam, como se representam e como
descrevem suas interações, permite aos estudiosos analisar os fenômenos
das relações interpessoais a partir de outro prisma. Para Pinto e Sarmento
(apud Gobbi, 2005. p. 69) “... o estudo das crianças a partir de si mesmas
permite descortinar uma outra realidade social, que emerge das
interpretações infantis dos respectivos mundos de vida. O olhar das crianças
permite revelar fenômenos sociais que o olhar dos adultos deixa na
penumbra ou obscurece totalmente”.
Bombi e Pinto (1998) realizaram um estudo transversal sobre
amizade, utilizando o desenho como um instrumento de representação.
Diante da hipótese de que a criança poderia expressar, por meio do desenho,
suas ideias sobre aspectos psicologicamente importantes da amizade,
inicialmente, pediram que ela desenhasse a si mesma com um amigo. O
instrumento considerava os seguintes itens: Coesão e Distanciamento,
Semelhança, Valor e Clima emocional Os resultados dos estudos
demonstraram que a maioria das crianças, independentemente de sexo e
idade, demonstraram a exigência da igualdade entre os amigos, sendo esta
considerada como fundamental na amizade. Diante das necessidades de
ampliação nas investigações das pesquisas destacadas, apresentamos agora
dois estudos realizados no contexto escolar.

Os estudos

Ambos os estudos utilizaram a abordagem qualitativa, na busca da


compreensão sobre a maneira como professores e alunos encaram as
78
questões focalizadas sobre os relacionamentos interpessoais. Na pesquisa
com os professores, utilizou-se a entrevista com questões semi-estruturadas
e para os alunos a representação gráfica, por meio do desenho.
Apresentamos agora, primeiramente, os objetivos e os resultados da coleta
de dados de cada um dos estudos separadamente.

Estudo 1

O primeiro estudo denominado “Concepções de Professores sobre


os Fatores Intervenientes na Manutenção das Relações Amistosas” (Santos
& Tortella, 2006) teve por objetivos: a) Analisar as percepções que os
professores possuem acerca da organização do ambiente social que seja
favorável para a manutenção das amizades; b) Analisar como o professor
lida com as questões de solidão. Foram participantes desse estudo 10
professores com idade entre 21 e 45 anos, todos do sexo feminino e com
formação superior, que atuavam no Ensino Fundamental em uma escola
privada no município de Campinas / SP.
Utilizou-se como instrumento a entrevista semi-estruturada
constituída de três questões abertas. Nesse instrumento, o professor pôde
falar sobre o tema proposto com base nas informações e experiências
profissionais.
Os dados das entrevistas realizadas com os sujeitos foram agrupados
em torno de cada questão. Analisou-se o teor de cada resposta, sendo que as
semelhantes foram classificadas na mesma categoria. É preciso ressaltar que
o leitor encontrará um N (frequência absoluta) nas tabelas que não coincide
com o número de participantes da pesquisa, pois cada um dos entrevistados
pôde dar mais de uma resposta para uma mesma pergunta. Organizaram-se
quadros para a visualização da quantidade de respostas e exemplos de cada
categoria.
Questão 1: Como você acredita que deva ser a organização do
ambiente social que seja favorável para a manutenção das amizades?

79
Quadro 1 - O ambiente social favorável para a manutenção das
amizades
Categoria Número de Exemplos
respostas
Responsabilidade 1 P1: A organização do ambiente social deve
ser um ambiente de trabalho com muita
responsabilidade (...).
Convivência 1 P2: O ambiente deve ter pessoas que deem
exemplos de boa convivência.
Respeito 5 P 10: Acredito que deva ser um ambiente,
principalmente, baseado em respeito e
sinceridade para a manutenção das
amizades.
Princípios da 2 P 5: Quando falamos de organização
Proposta Pedagógica escolar, destaco a importância do Projeto
Pedagógico da escola, que representa a
identidade da mesma, pois nele estão os
princípios orientadores da ação pedagógica
no contexto escolar.
Valores 1 P 8: Para a manutenção de relações sociais
mais afetivas (como a amizade) acredito ser
indispensável a presença de valores e
atitudes.

Para esses professores, a organização do ambiente social está


diretamente relacionada com um trabalho pautado no respeito mútuo, nos
princípios descritos na proposta Pedagógica e nos exemplos de convivência.

Questão 2: Você já observou algum aluno que não conseguia


estabelecer laços de amizade com outros na sala de aula? Como acredita que
devam ser trabalhadas as questões de solidão?

80
Quadro 2 - Solidão
Categoria Número Exemplos
de
respostas
Intervenção 5 P 10:
Acredito que devemos integrar esse aluno ao
resto da turma. Já observei alguns alunos com
esse tipo de dificuldade. Acredito que devemos
integrar esse aluno ao resto da turma
propondo, por exemplo, atividades em grupo,
estabelecendo funções para esse aluno na sala
de aula e exaltando suas qualidades sem
denegrir dos outros colegas (...)
Mostrar a 2 P 8: Estímulo à construção de novos laços de
importância dos amizade ou relacionamento. De maneira sutil
relacionamentos e não evasiva, o professor pode levar os
alunos a perceberem a importância de termos
amigos e nos relacionarmos bem com todas as
pessoas, sem falsa demagogia, ou seja, não
que todos tenham que ser melhores amigos,
íntimos entre si, mas devemos nos respeitar e
conviver bem.
Motivação 1 P 4: É preciso motivá-los a se relacionar com
o grupo, mostrando que a solidão é ruim e
sinalizando a importância da amizade, e esta
importância ganhará significado quando o
aluno vivenciar; assim, vivenciando a
amizade, verá que a solidão não é boa.

A intervenção e o demonstrar a importância dos relacionamentos


pode ajudar nos problemas de solidão, segundo os participantes da pesquisa.
Nota-se que uma das formas de intervenção sugerida foi o trabalho em
grupo e a valorização de condutas pró-sociais.
A partir dos dados apresentados nos quadros 1 e 2, infere-se que,
para os participantes da pesquisa, o ambiente escolar precisa ser planejado a
partir de princípios e valores pautados na ética que regem os
relacionamentos interpessoais.

Estudo 2

O segundo estudo denominado “O Desenho da Amizade como


Forma de Expressão no Contexto Escolar” (Perobelli & Tortella, 2008)
81
objetivou: a) analisar as diferenças dos desenhos das crianças quando
representam a si mesmas junto com um amigo e quando representam a si
mesmas junto com um não amigo; b) verificar quais elementos predominam
na representação de um amigo e na representação de um não amigo.
Participaram da pesquisa 27 crianças com idade entre 6 e 9 anos de
ambos os sexos. O material utilizado foi organizado a partir de uma
adaptação de um instrumento criado por Bombi e Pinto (1998), que mede as
características dos desenhos infantis que representam as pessoas amigas. De
acordo com os objetivos estabelecidos e a opção pela análise qualitativa, um
novo instrumento foi organizado para subsidiar a observação dos dados
qualitativos do desenho. O instrumento foi denominado “Instruções para
análise qualitativa dos desenhos dos amigos e não amigos” e contém 6 focos
de observação: 1. Olhar; 2. Atividade Comum; 3. Proximidade; 4. Clima
Emocional; 5. Perturbação na relação; 6. Semelhanças.
Para este artigo apresentamos os dados referentes aos itens 4 e 5.
Apresentaremos, primeiramente, o foco de observação, alguns desenhos
ilustrativos do foco e por último os dados quantitativos de cada foco.
Explicamos em cada um dos focos a questão norteadora e o critério de
análise por entender que este material pode auxiliar o leitor na compreensão
dos dados.

Foco de observação 4 – Clima emocional


Pergunta norteadora: qual estado de ânimo que caracteriza a relação?
Para analisar os desenhos podem-se considerar a expressão facial, os
símbolos convencionais ou as verbalizações diretas e explícitas do próprio
estado de ânimo.
Critérios de análise:
4.a. Bem estar (alegria, amor, exultação serenidade etc.) indicado por um
sorriso, por uma piscada; por símbolos como coração ou por expressões
escritas, tais como, “sou feliz” ou “que alegria”.
4.b. Hostilidade (raiva, ameaça, desprezo etc.) indicada por um ou mais
índices: sobrancelhas franzidas ou inclinadas para baixo até o nariz, olhar
malévolo, dentes cerrados, sorriso sarcástico; por símbolos, como fumaça
que sai da cabeça, caveira que sai da cabeça; por expressões verbais, tais
como, “te odeio” ou palavrões.
4.c. Mal-estar (tristeza, medo, dor etc.) indicado por um ou mais dos
seguintes índices: lágrimas, traçado da boca para baixo, olheiras ou olhos
desfigurados, boca com expressão de medo, cabeça baixa; símbolos como
estrelinhas sobre a cabeça; por expressões verbais, tais como, “socorro” ou
“que medo”.

82
Tabela 1 - Foco de observação 4 – Clima emocional.
M6 F6 M7 F7 M8 F8 M9 F9 Total
Foco 4.a. Amigo 4 4 5 6 4 2 1 0 26
Foco 4.a. Não Amigo 2 1 1 4 1 1 1 0 11
Foco 4.b. Amigo 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Foco 4.b. Não Amigo 0 0 1 0 0 1 1 0 3
Foco 4.c. Amigo 0 0 0 0 0 0 1 0 1
Foco 4.c. Não Amigo 2 3 3 2 3 0 0 0 13
Nota-se pela tabela que há um número expressivo de desenhos de
amigos relacionados a expressões de bem estar. O que nos chamou a
atenção foram os traços que demarcam a expressão de sorriso, no total de 26
desenhos. Para os não amigos as representações demonstram
descontentamento, tristeza, insatisfação, totalizando 13 desenhos e 3 que
são demonstrativas de hostilidades.
Percebe-se, pelas representações, um número maior de bons
relacionamentos, demarcados pelas expressões de contentamento.

Foco de observação 5 – Perturbação na relação


Pergunta norteadora: as figuras indicam uma perturbação na relação?
Critérios de análise:
5.a. disputa de objetos: as figuras brigam por um mesmo objeto, uma
tentando arrancar da outra. Isso pode ser observado na postura, por
exemplo, pés firmes ou por expressões escritas, tais como, “solta, é meu”.
5.b. ameaça: as figuras representam um ato físico lesivo como, por
exemplo, um punho cerrado, um tapa, mostrando um pau, jogando uma
pedra.
5.c. choque físico: uma figura golpeia a outra diretamente com tapas,
pontapés, empurrões; podem vir acompanhados também de expressões
escritas.
5.d. hostilidade verbal: são consideradas as expressões verbais de
hostilidades: o zombar, os insultos, as acusações, as palavras ameaçadoras
ou gestos como mostrar a língua.

Tabela 2 - Foco de observação 5 – Perturbação na relação.


M6 F6 M7 F7 M8 F8 M9 F9 Total
Foco 5.a. Amigo 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Foco 5.a. Não Amigo 0 1 0 0 0 0 0 0 1
Foco 5.b. Amigo 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Foco 5.b. Não Amigo 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Foco 5.c. Amigo 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Foco 5.c. Não Amigo 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Foco 5.d. Amigo 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Foco 5.d. Não Amigo 0 0 0 0 0 1 1 0 2

83
Esperávamos uma configuração diferente para esse foco. Tínhamos
por hipótese que encontraríamos muitos desenhos que ilustrassem os
conflitos entre os não amigos. De maneira surpreendente, apenas encontrou-
se um desenho que demonstra uma disputa de objetos e dois outros
desenhos que demonstram hostilidade verbal; um deles tem o termo DIABO
para o não amigo e o outro demonstra um gesto de hostilidade quando
afirma: “BARA FEITISO”. Para esse último, inferimos que há o desejo de
afastar o não amigo que havia encontrado bolinhas de gude.
Embora com pouca quantidade de representações, os três desenhos
encontrados são muito significativos. Ao desenhar, a criança apresenta tanto
suas concepções sobre os relacionamentos como também este procedimento
propicia um momento de explorar suas emoções.
Nos estudos realizados por Tortella (2001), houve vários relatos
das crianças enfatizando agressões físicas, que foram enquadradas na
categoria denominada de condutas antissociais, com respostas tais como:
bater, chutar, socar e brigar. Outra categoria analisada pela autora foi a de
sentimentos negativos, na qual se encontraram respostas sobre o que as
crianças sentiam pelo não amigo como: ódio, raiva, vontade de bater; de
chutar e de beliscar.
Diferentemente desses resultados, podemos perceber que neste
estudo prevalece mais a representação do clima emocional do que as
situações de conflito propriamente ditas. As crianças parecem demonstrar
mais os seus sentimentos por meio do desenho do que suas condutas.
Concordando com essa representação, Tortella (2001) encontrou na
categoria Sentimentos positivos a verbalização de crianças que, ao estarem
com seus amigos sentiam amor, alegria, felicidade, e em outra categoria a
incapacidade de expressar sentimentos verbalmente, o que nos demonstra
que o desenho é uma forma de expressão em potencial, pois nesta pesquisa
fica nítido que as crianças representam seus sentimentos, os agrados, e
desagrados por meio de sua expressão gráfica.
Para concluir, vale ressaltar que durante toda análise foram
observadas diversas representações dos amigos, as quais se apresentam mais
elaboradas; com atributos, cores, decorações como flores, corações e outros
objetos e alguns destes atributos podem ser vistos nesse foco. Já para as
representações do não amigo observa-se uma ausência de detalhes e quando
são encontradas estão representadas por obstáculos; elementos gráficos
entre as figuras desenhadas.

Considerações Finais

Analisar como docentes e crianças expressam e registram suas


concepções acerca da amizade nos trouxe informações particularmente
84
interessantes. Respeito mútuo, condutas pró-sociais, intervenções por meio
de procedimentos didáticos, como o trabalho em pequenos grupos, são
temas sugeridos pelos docentes para que o ambiente seja propício para o
estabelecimento de bons relacionamentos interpessoais.
Dar oportunidade aos alunos de se expressarem sobre suas
amizades por meio do desenho representou, para nós pesquisadores, uma
rica possibilidade de ampliar os conhecimentos sobre o tema. Os dados
demonstraram que realmente existe uma diferença nas representações das
crianças quando ilustram seus relacionamentos. O fato de as crianças
manifestarem sentimentos, mas não as condutas de agressões físicas quanto
aos não amigos nos remetem a uma nova problemática de estudo.
A partir da análise dos dados, algumas implicações pedagógicas
podem ser evidenciadas. O conhecimento por parte dos docentes sobre
como se dá o estabelecimento dos relacionamentos interpessoais, a
importância da amizade para o desenvolvimento, as melhores intervenções a
serem realizadas no caso dos conflitos entre pares, o desenho como
instrumento de avaliação e a organização de um ambiente sociomoral nos
parece serem pontos cruciais para os estudos, tanto na formação inicial
quanto na continuada dos professores.
Concluindo, consideramos estas pesquisas preliminares - o estudo
do ambiente escolar tendo como foco os fatores intervenientes na
manutenção das relações amistosas e o desenho como forma de
representação da amizade - como contribuições para a ampliação dos
estudos sobre os relacionamentos interpessoais no Brasil. Destaca-se,
também, a abertura de novas pesquisas na área da Pedagogia e Psicologia
Educacional, pois, ao entender as representações e os procedimentos
utilizados por docentes e crianças, podemos contribuir para uma educação
em valores.

Referências
Asher, S. R.; Parkhurst, J. T.; Hymel, S. & Williams, G. A. (1990). Peer
rejection and loneliness in childhood. In: Asher, S. R. & Coie, J. D.
(Eds.). Peer rejection in childhood, pp. 253-273. Cambridge:
Cambridge University Press.
Bombi, A.S. & Pinto, G. (1998). Los colores de la amistad: estudios sobre
las representaciones pictóricas de la amistad entre los niños.
Madrid: Visor.
Garcia, A. (2005). Psicologia da amizade na infância: Uma revisão crítica
da literatura recente. Interação em Psicologia, 9 (2), 285-294.
Gobbi, M. (2005). Desenho Infantil e Oralidade. In: Faria, A.L.G.;
Demartini, Z. De B. F; Prado, P. D. (Orgs.). Por uma cultura da

85
infância: metodologias de pesquisa com crianças. 2. ed. Campinas:
Autores Associados.
Parker, J. G. & Asher, S. R. (1993). Friendship and friendship quality in
middle childhood: links with peer group acceptance and feelings of
loneliness and social dissatisfaction. Developmenttal Psychology,
29 (4), 611-621.
Perobelli, E.A.P. & Tortella, J.C.B. (2008). O Desenho da Amizade como
Forma de Expressão no Contexto Escolar. 2008. Trabalho de
Conclusão de Curso, Curso de Pedagogia da Universidade São
Francisco, Itatiba.
Piaget, J. (1994). O juízo moral na criança. Tradução E. Lenardon. São
Paulo: Summus. (Original publicado em 1932).
Renshaw, P. D. & Brown , P. J. (1993). Loneliness in middle childhood:
cuncurrent and longitudinal predictors. Child Development, 64,
1271-1284.
Rubin, K. H., Lemare,L. J. & Lollis, S. (1990). Social withdrawal in
children: developmental pathways to peer rejection. In: S. R. Asher
& J. D. Coie (Eds.). Peer rejection in childhood. pp. 217-252.
Cambridge: Cambridge University.
Santos, J. R. & Tortella, J. C. B. (2006). Concepções de professores sobre
os fatores intervenientes na manutenção das relações amistosas.
Trabalho de Conclusão de Curso, Curso de Pedagogia da
Universidade São Francisco, Itatiba.
Selman, R. L. (1981). The child as a friendship philosopher. In: S. R.
ASHER & J. M. GOTTMAN (Orgs.). The development of children
friendships, pp 242-272. Cambridge: Cambridge University Press.
Tortella, J. C. B. (2001). A representação da amizade em díades de amigos
e não-amigos. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, São Paulo.

86
8

BULLYING:
DE ONDE VEM A VIOLÊNCIA QUE ASSOLA A ESCOLA?

Luciene Regina Paulino Tognetta

“O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”.


Adaptado de Martin Luther King

Existe um grande problema nas questões de como educamos


nossos meninos e meninas exatamente porque a leitura que fazemos dos
problemas de violência na escola e entre eles o bullying, é sempre através
das manifestações mais evidentes ao menos aos olhos das autoridades
escolares: pela indisciplina. As situações de indisciplina indicam a não
obediência às regras, o que convenhamos, para os professores, significa
muitas vezes desobedecer às figuras que fazem a regra 7. Estamos
acostumados a agir pautados na perspectiva de que as regras existem em
função da obediência à autoridade e para dar conta de tal ordem
estabelecida, comumente usamos formas de punições, que são também tão
violentas quanto às formas de violência que assistimos em nossas escolas.
Por certo, parece que quando discutimos esses problemas falamos sob
apenas uma perspectiva, instigados comumente pela mídia que a retrata: da
violência cometida por nossos alunos contra os professores. Numa pesquisa
recente realizada pela APEOESP, órgão sindical dos professores de escolas
públicas do Estado de São Paulo, em 2008, dos 580 questionários
respondidos por educadores da rede estadual de ensino, apurou-se que 24%
dos professores já haviam sido vítimas de violência física; 43% disseram ter
sido alvos de palavras xingamentos; 30% se referiram a humilhações que
passaram e 27% foram alvo de agressões verbais e intimidações. Outra
pesquisa, agora da FIPE, financiada pelo MEC 8 em 2009 chama também a
atenção para a violência na escola: “quase 9% dos professores e 8% dos
funcionários de escola pública do país sofreram, por parte dos

7
Uma característica da heteronomia é acreditar que as regras existem em função da
autoridade. Crianças pequenas explicam o valor da regra em razão da existência de
alguém que devido ao seu não cumprimento, pode punir (Piaget, 1932).
Lamentavelmente, muitos adultos também acreditam que as regras existem somente
em função da autoridade e guardam „dinheiro público nas meias‟ quando acham que
não estão sendo vistos....
8
http://g1.globo.com/Noticias acesso em 17/06/09 - 16h02 - Atualizado em
17/06/09 - 18h24 .

87
alunos, algum tipo de discriminação, como agressão física, acusação injusta
ou humilhação”. Dados como esses parecem descrever um cenário de
relações em que alunos e professores não se entendem e em que os últimos,
vitimados pelo sistema que não pune os vilões da história, parecem não
saber o que fazer.
Entretanto, não pensamos nas formas de violências que nós,
professores, podemos utilizar com nossos alunos, muitas vezes expondo-os,
humilhando-os, aplicando-lhes sanções que os fazem persistir na convicção
de que as regras existem porque a autoridade ali está e as cobra
veementemente. Contudo, essas formas de violência que a escola se utiliza
para combater o que também chama de violência por parte dos alunos não
são explícitas, são veladas, sutis. Aqui se esconde outro problema, que é
uma crença de que as crianças sentem de maneira diferente de nós. E que as
crianças não se sentiriam humilhadas, menosprezadas, atacadas pelos
adultos quando colocadas em situação de exposição. Porque nós não
teríamos coragem de fazer isso com o adulto, mas fazemos isso
constantemente com as crianças9? Isso, portanto, requer um olhar atento aos
problemas infantis, exatamente aqueles que se referem a como nossas
crianças têm sido desrespeitadas.
Antes ainda de passarmos ao enfrentamento da questão central
dessa reflexão sobre o bullying, é preciso ir adiante nesta discussão sobre os
problemas de violência notadamente percebidos pelos professores como
desrespeito às regras que sustentam as relações na escola. Sim, pois, é
preciso lembrar que comumente nos incomodamos com pequenos fatos
cotidianos e criamos novas regras, como aquela que proíbe o uso do boné,
que não sustentam um valor moral como o respeito a toda e qualquer
pessoa. Perdemos nosso tempo com esse tipo de regra e não damos a devida
atenção às questões morais. Bilhetinhos ou torpedos durante a aula nos
aborrecem. Celular, chinelos ou shorts curtos nos incomodam, no entanto,
tais ações não nos fazem repensar a necessidade de que nossas aulas possam
trazer sentido aos alunos para que esses se interessem de fato por aquilo que
é bem maior – o conhecimento e o uso deste em benefício do homem.
Gastamos tempo demasiadamente grande com discursos sobre a

9
Elkind (1975) apresenta vários equívocos que enquanto adultos temos para com o
desenvolvimento infantil: um deles é que de fato, as crianças seriam diferentes
quanto aos seus sentimentos – não se sentiriam constrangidas quando chamamos sua
atenção na frente de todos, ou não se sentiriam humilhadas quando nos voltamos aos
outros para questionar sobre sua atitude. Porém constantemente, acreditamos que as
crianças „pensam‟ como os adultos conseguindo manter-se, por exemplo, quatro
horas a fio, sentadas para „aprender‟: crianças, principalmente cujo pensamento pré-
lógico persiste, precisam da ação – brincar, pegar,puxar, falar para que seu
pensamento possa se desenvolver.
88
importância do uniforme não composto pelo boné, mas não paramos para
discutir os problemas que acontecem nos recreios em que meninos e
meninas são deixados de lado, são ameaçados por não serem “iguais” aos
demais...
Tudo isso para mostrar que a escola se preocupa demasiadamente
com os problemas de indisciplina e se esquece de um problema que é
freqüente entre meninos e meninas – o bullying. Vamos a ele. Uma forma
de violência não necessariamente dessa geração visto que é um problema de
seres humanos que têm algo em comum desde o primeiro momento em que
nascem - a necessidade de serem vistos como valor nas relações que
estabelecem com os outros. Um problema que é muitas vezes esquecido
pela escola, primeiro porque aqueles que inserem as futuras gerações no
mundo moral se incomodam mais com situações de indisciplina, segundo,
pois concebem que os problemas das crianças não são relevantes já que
acreditam que elas não sentem como nós adultos.
Primeiramente, vamos apontar suas características principais para
entender, posteriormente, como podemos agir. Sim, pois, para agirmos
contra aquilo que nos angustia quando vemos nossas crianças passarem por
situações de violência precisamos primeiro identificar o problema e
compreender suas características.
Bullying é uma forma de intimidação entre pares, ou seja, entre
crianças10, entre adolescentes ou entre adultos. Não chamamos de bullying
quando a violência é entre pais e filhos, ou entre professor e aluno e sim; a
esse respeito, chamamos assédio moral.
O prefixo inglês Bull remetendo-se a touro simboliza a força física
ou psicológica daquele que é o Bully ou autor. Este escolhe um alvo frágil
para passar por situações constrangedoras, batendo, xingando, inventando
mentiras a seu respeito, roubando, deixando de lado em grupo de trabalho
ou times, usando a internet para enviar comentários maldosos, etc. Todas
são situações de bullying, marcadas pela violência. Entretanto, existem
algumas características importantes que diferenciam esse fenômeno de
outras formas de violência. Temos insistido nelas justamente pelo fato de
que o conjunto dessas características nos leva a um fenômeno diferente que
não poderia ser traduzido como „maus tratos‟ entre iguais ou apenas como
„maus tratos‟11.
A primeira delas é que não são brincadeiras momentâneas e
esporádicas, mas ações repetidas sempre com um mesmo alvo fazendo com

10
De acordo com Ruiz & Mora-merchán (1997) há pesquisas que comprovam que
crianças a partir dos 3 anos de idade já se envolvem em situações de bullying.
11
Para mais explicações sobre o uso da palavra em inglês bullying ver Tognetta,
2010.
89
que a vida desse último se torne um inferno e, portanto, que sua rotina seja
marcada pela incidência de violência. A segunda característica dessa forma
de violência é a intencionalidade das agressões: esses meninos e meninas,
que são autores do bullying, querem fazer com que o outro se sinta
menosprezado, diminuído e exposto, ou seja, há a intenção de ferir e que
exige de nós um esforço para pensar nas correções necessárias a essa forma
de desrespeito com o outro. Querem ser vistos como líderes, ou como
melhores ou como maiores naquilo que atribuem como valor. Nessa
segunda característica, a intenção de ferir gera no autor uma espécie de
prazer. Existem alguns estudos das neurociências que mostram que esses
meninos, ao agirem mal, têm liberado uma substância orgânica que lhes
gera uma sensação de prazer. Se nossas reflexões parassem por aqui,
obviamente poderíamos supor que rigorosamente o que falta a esses
meninos e meninas autores de bullying seria a punição, pois são „maus‟. É
preciso então, ainda que não adentremos as ações que podemos e devemos
tomar como intervenções, nos lembrar que tais crianças e adolescentes,
embora sintam prazer em provocar os outros, precisam ser vistos como
também necessitando de ajuda, pois carecem de um „mal‟ cujo remédio
também é de responsabilidade da escola: carecem de sensibilidade moral (a
que se referiu Smith, 1999, quando tratou da necessária participação dos
sentimentos numa ação moral) uma espécie de capacidade de sair de si, do
ponto de vista cognitivo e afetivo para ver o outro como um sujeito digno de
respeito12 (Tognetta, 2010). Veremos ainda como podem e devem ser
nossas intervenções ao considerarmos essa demanda.
Uma terceira característica é que existe um alvo além de um autor.
A atribuição dessas nomenclaturas13 permite-nos superar um estereotipo que
tem sido constante nos estudos de bullying e nas propostas que se tem,
principalmente em termos de políticas de intervenções: chamávamos os
protagonistas desse fenômeno como agressores e vítimas; quando falamos
em „agressor‟ pensamos em um sujeito „mau‟, e quando falamos em
„vítima‟ atribuímos a ela um sentimento de piedade que parece por si só
resolver a situação – agimos por ela e não suscitamos no alvo de bullying,
ao sentir pena, a necessidade de se defender. Portanto, a alteração dos
nomes não é somente uma mudança de linguagem, mas de significação.
Por certo, os autores de bullying, embora tenham a intenção de
ferir, também precisam de ajuda porque não conseguem se ver como valor
(no sentido moral e não estético ou socialmente estabelecido), são muitas

12
Por essa e outras razões ainda trataremos o bullying do ponto de vista das imagens
que os sujeitos desejam e têm de si diante dos outros e dessa forma pensamos que a
inserção do tema do bullying no universo da Psicologia Moral é promissor.
13
Maiores discussões o leitor pode encontrar em Tognetta & Vinha (2008).
90
vezes incapazes de reconhecer seus próprios sentimentos e
consequentemente os sentimentos dos outros. Por sua vez, os alvos de
bullying são meninos e meninas vitimizados pelos estereótipos sociais e por
isso sofrem. Sim, pois estes alvos comumente têm uma característica que
foge do que é culturalmente estabelecido: usam óculos, choram demais, são
gordinhos ou tímidos, ou seja, têm um padrão e um comportamento que os
diferencia dos demais.
Contudo, ainda que caibam as explicações das ciências sociais para
a necessidade de se pensar o bullying do ponto de vista do preconceito, nos
parece pouco para pensar a grandeza desse fenômeno: como explicamos o
fato de que nem todo mundo que usa óculos, ou que é baixinho, ou
gordinho, por exemplo, se torna alvo de bullying? Exatamente porque essa é
a imagem que têm de si, ou seja, quem se torna alvo de bullying concorda
com aquela imagem que os outros apresentam dele se sentindo por isso
menosprezado e sem forças para reagir aos escárnios a que são submetidos.
Eis a contribuição da Psicologia Moral: bullying é um problema moral e
pode ser entendido sob a perspectiva dos avanços nos estudos desta ciência.
Meninos e meninas precisam sentir por si um auto-respeito que os levem a
respeitar o outro. Alvos de bullying assim o são até que não consigam
enfrentar seus próprios medos e desafios por se sentirem desrespeitados.
Nossas investigações atuais têm nos apresentado notadamente tais
pressupostos: interessantemente, numa pesquisa com 63 adolescentes que se
envolvem em cyberbullying (bullying no espaço virtual) 20 meninos e
meninas que se apresentaram como já tendo sido vitimizados por algozes na
internet, quando foram questionados sobre seus sentimentos em relação a
outras vítimas que sofriam ataques, 30% das respostas se referiram ao
“merecimento” desses alvos (Tognetta & Bozza, 2010). Isso denota o
quanto os alvos de bullying o são em função de certa concordância com
aqueles valores aos quais são relacionados.
Outra característica importante é que o bullying, diferentemente do
que se apresenta no senso comum, não é um fenômeno de violência que
acontece entre professor e aluno, como já dissemos anteriormente. Bullying
é uma forma de violência que acontece numa simetria de poder instituído
em que não há alguém com menos ou mais autoridade. Se existem formas
de violências do aluno para com o professor, ou se existem formas de
intimidação, de humilhação ou de exposição do professor para com a
criança, essas são formas de violência, mas não podemos caracterizar como
bullying.
A próxima característica é uma das mais imprescindíveis para
pensarmos na nossa atuação em sala de aula, exatamente pelo fato de que o
que caracteriza o autor de bullying é a necessidade de manter uma boa
imagem diante dos outros. O autor precisa se sentir aceito, precisa se sentir
91
valor. Se ele tem essa necessidade onde estará o fator que vai motivar as
suas ações? No público, ou seja, na platéia que assiste ao espetáculo.
Interessantemente, podemos pensar que boas soluções para
combater o bullying na escola, implicariam então, formas de ajudar os
nossos meninos e meninas que são em número muito maior- o público, a se
indignarem contra as injustiças que vêem dia-a-dia. Isso porque, novamente,
é o que temos encontrado em nossas investigações atuais e que
correspondem aos dados elucidados em outras pesquisas mundialmente
reconhecidas (Almeida et al, 2003; Avilés & Casares, 2005; Fante, 2005).
Numa investigação com 150 adolescentes do nono ano de Ensino
Fundamental II e primeiro ano do Ensino Médio de escolas públicas da
região metropolitana de Campinas (Tognetta et al), encontramos números
que assim descrevem essa forma de violência entre pares: 16% de nossa
amostra foi considerada entre autores convictos cujas ações de bullying são
reveladas na freqüência contínua de seus ataques; 29,3% são aqueles
autores que eventualmente se colocam, muitas vezes como forma de
proteção e revanche, como autores esporádicos de uma forma de violência
que se pareceria com aquelas consideradas bullying; 60% como aqueles que
já passaram por processos de vitimização e finalmente, 92% que dizem já
terem assistido a alguma situação de bullying na escola. Vejamos: quase
que a totalidade dos alunos já assistiram a cenas desse tipo de violência na
escola, já foram, portanto, “público”. É ele quem dá a atenção e assim
promove o autor. Bullying é um fenômeno escondido aos olhos do
professor, os quais estão mais atentos a situações que os afetam
diretamente, mas não é escondido aos olhos dos alunos. O autor fará os
colegas ou até a classe inteira saber que chamou um colega de um apelido
que ele não gosta, porque é essa a maior recompensa de um autor de
bullying: ver a dor do outro com seu sucesso diante dos outros. Quanto mais
souberem daquilo que ele é capaz de provocar em alguém, mais satisfeito
ele se sente.
As pesquisas mais recentes realizadas por Fante (2005) mostram
que na região de Rio Preto a violência chamada bullying existe. Outras,
conduzidas por Mascarenhas (2009) na região norte do país também atestam
a urgência das intervenções. Na região de Campinas encontramos em 2010
(como já mencionados anteriormente) dados também alarmantes. Em 2004
e 2005, conduzimos investigações que puderam constatar o fato em nossa
região (Tognetta & Vinha, no prelo). Naquela ocasião, perguntamos a cerca
de 800 crianças e adolescentes de escolas públicas e particulares da região
de Campinas: “Você já foi humilhado, diminuído, desprezado ou caçoado
por parte de alguns alunos?”, para sabermos se essas crianças se viam
muitas vezes como alvo de bullying dos seus pares, e assim pensarmos em
intervenções para essas questões de agressividade que não chegam até nós.
92
Entretanto, introduzimos uma pergunta (“Você já foi humilhado, diminuído,
desprezado ou caçoado por algum de seus professores?”) neste mesmo
questionário que dizia a respeito de situações de violência na escola
advindas de outras fontes. Para nossa surpresa o grande problema que
encontramos foi, além do bullying, o fato de que crianças e adolescentes
serem vítimas dos próprios professores. Numa das amostras, do 4º ano do
Ensino Fundamental ao 2º ano do Ensino Médio encontramos 22% de
respostas que indicaram já terem sido menosprezados, ameaçados,
zombados pelos professores. Não podemos dizer que este seja um número
pequeno quando pensamos em pessoas. A violência é tão velada que não
pensamos que as formas de atuação de um professor também podem levar
as crianças a serem alvos e autores de bullying, ainda que indiretamente.
Isso porque, imaginemos a seguinte situação: em determinada escola
conhecida por nós e em que conduzimos as pesquisas de 2004 e 2005 na
região de Campinas, os pais de dez principais alunos que eram considerados
“terríveis” pela escola são convocados para uma reunião em que os filhos
estão presentes. Coletivamente a professora vai apontando os defeitos de
cada um desses alunos na frente de todos. Seus pais, sentindo-se
ridicularizados, culpados... É dessa forma velada, não intencional, que
também a escola expõe suas violências: expõe publicamente o que deveria
ser particular. Infelizmente um dos grandes equívocos da escola, além de
todos os já citados, é que trabalhamos o que é público como particular e o
que é particular como público: quando temos uma „briga de galo‟ – aqueles
momentos em que há espectadores que se rejubilam com a briga de outros
dois, constantemente como resolvemos? Encaminhamos os „brigões‟ para a
direção e pedimos ao grupo que se aglomera que se disperse. O problema
era público e não particular. Todos estavam, de alguma forma, envolvidos
ainda que pela ausência de indignação a essa situação de injustiça. Todos
deveriam ser questionados: e se fosse com você? O que vocês poderiam ter
feito para impedir que essa briga acontecesse? Tudo isso para que aqueles
que são indiferentes se sintam implicados a tomar uma posição, para que se
indignem com as injustiças na escola.
Há de fato uma explicação para que crianças e adolescentes cada
vez mais se distanciem de pensar no coletivo da escola, como vimos numa
investigação realizada com outros 150 estudantes de escolas públicas e
particulares do Estado de São Paulo em 2009: falta-lhes indignação ao que é
público, pois se encontram pensando numa espécie justiça apenas auto-
referenciada sem se implicar com os outros (Tognetta & Vinha, 2009).
De fato, embora seja objetivo da escola que as crianças e
adolescentes se sintam responsáveis pelo que é público, pouco fazemos para
chegar a tal realização. Realizamos outra pesquisa na região de São Paulo
(Tognetta & Vinha, 2010), com 100 crianças e adolescentes, perguntando se
93
já tinham visto ou tinham sido tirados da sala de aula para permanecerem no
corredor de castigo, ou então, excluídos da sala e colocados em exposição
pública. Esses meninos apresentaram altos índices de exclusão deles ou de
colegas da sala de aula. E o interessante é que perguntamos também quanto
tempo durava essa exposição na sala de aula ao que obtivemos diferentes
respostas como de 3-5 minutos, 10 minutos, 1 hora, e alguns responderam
“muito tempo”. O que seria “muito tempo” para uma criança? Na verdade
seu tempo psicológico é o que está em jogo, não podemos caracterizar se
são 5 minutos, 1 minuto, 10 minutos ou 50 minutos ou quantos minutos e
horas são de fato, mas, na verdade, uma grande porção de tempo de
exposição.
Por certo, essa pesquisa nos dá um viés enorme para pensarmos
como vamos combater a violência entre pares na escola, cuja própria escola
é fonte de violência, em que aqueles que formam não consideram que as
crianças têm sentimentos e consideram que a moral deve ser algo a ser
tratada sempre publicamente. Vejamos como é difícil levar para frente uma
proposta de intervenção ao bullying se na verdade, precisamos inicialmente
formar os educadores, ajudá-los a pensar e a lidar com quaisquer situações
rotineiras, para depois então intervir em casos específicos de bullying.
Não significa que os professores tenham realmente culpa dessa
situação, até porque eles não sabem o que fazer, não há tempo para discutir
sobre isso em sala de aula, nos cursos de graduação; são poucas horas para
tais discussões em disciplinas de Psicologia da Educação. Não se trata de
procurar culpados, mas, de fato, entender que está na formação dos
professores um canal para a compreensão desse fenômeno humano e a
possibilidade de intervenção.
Falta-nos, portanto formação adequada para fazer com que esses
meninos e meninas se indignem com situações de injustiça. Falta-nos,
enquanto professores, olhar para o bullying não como brincadeira, mas
exatamente como mais uma oportunidade de, a partir de um conflito, se
aprender a conviver. As pesquisas em psicologia moral vão defender que é
verdadeira a necessidade de que se tenha consciência das regras que
regulam a convivência humana, mas que é preciso mais que isso: é preciso
um querer, que nos move a agir. Portanto, é preciso trabalhar com os
sentimentos desses meninos e meninas que pouco se sensibilizam com os
outros, por isso os questionamos: como vocês se sentiriam se fossem
chamados desse jeito? Como as pessoas se sentem nessa situação?
Esquecemo-nos que generosidade, misericórdia, sensibilidade à dor
do outro, são construídas na relação entre pares, e não através do processo
de “ensinamentos da moral”. Ou seja, na verdade tentamos acreditar que
somos nós que ensinamos e todo trabalho de disciplinar é nosso. O fato é
que uma forma promissora de superar o bullying é quando as crianças são
94
instigadas, levadas e ajudadas a dizer a quem é de direito a maneira como se
sentem, a buscar soluções alternativas para os problemas que têm no
cotidiano, a dizer como são tratadas e como gostariam que fossem
respeitadas para que de fato possam tomar consciência de seu valor e do
outro.
Dessa forma, superar formas de violência significa dar a essas
crianças espaços para que elas possam compreender que existem outras
maneiras de se resolver um conflito. Pouco adianta punir o autor de bullying
e afirmar que ele é mau já que é preciso ajudá-lo a perceber a perspectiva do
outro. E como fazemos isso? Primeiro este outro terá que falar como se
sente e não o professor, porque quando falamos, o valor está em nos
obedecer e não respeitar àquele que sofreu as ofensas. Por essa razão
crianças e adolescentes precisam ser acostumadas a dizer como se sentem.
Esses alunos, autores ou alvos, infelizmente, não têm espaço para dizer
como se sentem, se chateados ou revoltados, porque quando se sentem
revoltados agem da mesma maneira, causando revolta nos outros. Há algo já
nos revelado por Winnicott (1999): “a manifestação de um comportamento
agressivo da criança, é na verdade a dramatização de um mau interior que é
ruim de mais para ser tolerado como tal”, ou seja, há muitas vezes algo de
errado com aquele que agride somado a uma necessidade de se sentir valor,
própria do ser humano como nos alertou Adler (Tognetta, 2009) e para isso
precisa primeiro ser respeitado pelas suas autoridades, dizendo o que pensa,
o que sente... Se auto conhecer para poder reconhecer como se sente em
diferentes situações e assim respeitar os outros. É por isso que temos
insistido em atividades e jogos para ajudar essas crianças a reconhecer
como se sentem em diferentes situações que vivem (Tognetta, 2003; 2009).
Enfim, em uma palavra, as ações iniciais para vencer o bullying
precisam ser da escola. Infelizmente, o que temos hoje como nos recorda
Leme (2006) é um “processo de terceirização” dessas ações formadoras já
que acreditamos que chamar o conselho tutelar, discar 0800... Resolveremos
o problema de bullying. É dentro da escola que as ações para ajudar essas
crianças e adolescentes a superarem esses atos violentos, a falta de valor, a
ausência de reconhecimento de sentimentos deve começar.
Nossas investigações têm provado que o bullying é um problema
moral14 e, portanto a constituição de um ambiente cooperativo mais do que
ações pontuais aos dramas cotidianos é necessária.

14
Numa investigação com 63 adolescentes, não encontramos, entre meninos e
meninas que são autores de cyberbullying, aqueles cujas representações de si
aspiram por conteúdos éticos, ou seja: as imagens de si que aspiram autores de
bullying ou cyberbullying são aquelas ligadas à estereótipos sociais ou a conteúdos
95
E nossa última palavra: precisamos resgatar a idéia de que meninos
e meninas que desrespeitam os outros também se sentem desrespeitados
primeiro. Respeitar as crianças (o que não significa permitir o desrespeito
como pensamos ter evidenciado) é nosso grande desafio para vencer, não só
as situações de bullying, mas qualquer outro tipo de violência na escola.

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97
9

CONFLITOS INTERPESSOAIS ENTRE ADOLESCENTES

Vanessa FagionattoVicentin

Talvez seja dispensável justificar a necessidade de estudos na área


da violência. Na ultima década o número de investigações que trata do tema
da violência e dos conflitos interpessoais aumentou consideravelmente. Não
é surpresa dada às situações cotidianas de desentendimentos interpessoais
que resultam em violência, o que torna urgente a realização de estudos que
possam analisar as variáveis relacionadas à problemática e propor
intervenções.
Cumpre destacar alguns dados específicos sobre a população
brasileira a fim de reforçar a importância da atenção a esta problemática.
Carlini-Cotrim, Gazal-Carvalho e Gouveia (2000) encontraram resultados
que reforçam a nossa concepção; no estudo, cerca de 22% dos estudantes da
rede estadual paulista e um terço dos estudantes da rede privada afirmaram
já terem se envolvido em pelo menos duas brigas violentas. Os autores
ainda revelaram que 8,7% dos estudantes do sexo masculino da rede pública
de ensino relataram portar armas de fogo e 20,8% dos estudantes de escolas
particulares, armas brancas, como canivete e faca. Isso evidencia uma alta
prevalência de situações de conflito em que seus integrantes não têm a
finalidade de resolver o assunto de modo pacífico e sim de destruir ou
prejudicar o seu oponente através de abuso de poder, que é a característica
de fenômenos violentos.
Ilustrando esta afirmação, um estudo coordenado por Abramovay
(2005) com alunos do ensino fundamental (a partir da 6ª série) e do ensino
médio de cinco capitais do Brasil (Belém, Salvador, São Paulo, Porto
Alegre e Distrito Federal) evidenciou que 20% dos alunos afirmam que já
bateram em alguém na escola, 14% dos estudantes dizem já terem sido
ameaçados e 34, 8% afirmam já terem visto algum tipo de arma na escola.
Desta forma, configura-se como tarefa urgente para os pesquisadores
estudar os aspectos relacionados aos conflitos interpessoais, a fim de
contribuir para o planejamento de ações que possam favorecer a construção
de formas mais evoluídas de resolver os desacordos interpessoais, em
especial, entre as novas gerações.
Waiselfisz (2008), autor do estudo sobre o Mapa da Violência dos
Municípios Brasileiros, mostrou que apesar da queda no número de
assassinatos entre 2004 e 2006, entre 1996 e 2006 o número de assassinatos
no Brasil cresceu mais que a população. Os homicídios tiveram aumento de
98
20% enquanto o crescimento da população foi de 16%. O estudo aponta
ainda que de 1996 a 2006, os homicídios na população jovem de 15 a 24
anos passaram de 13.184 para 17.312, representando um aumento decenal
de 31,3%. O estudo aponta para outra preocupação: o aumento de situações
de violência em sujeitos em idade escolar e cada vez mais jovens.
A partir destes estudos pode-se notar que a incidência, intensidade
das ações violentas é uma das maiores problemáticas que a sociedade
enfrenta. Além disso, o problema se alastra para pessoas cada vez mais
novas, inclusive no espaço escolar. Contudo, nem sempre os conflitos
interpessoais resultam em situações de violência. Aliás, o conflito pode ser
considerado algo positivo, dependendo da forma como é resolvido. Logo
discutiremos as formas de resolver os conflitos interpessoais, foco do
presente estudo.
Antes convém definir o significado do termo conflito. O termo
“conflito” vem do antigo latim: “conflictus”, do verbo confligo, ere, que diz
respeito a chocar. Por estar relacionado a forças opostas, o termo “conflito”
é empregado tanto em situações individuais e internas quanto em situações
coletivas e externas, como os conflitos familiares, entre pares, sociais e
entre nações.
É possível que em função da definição do conceito tratar de
“choque entre elementos”, o conflito interpessoal seja entendido como
negativo e pernicioso. Shantz and Hartup (1992) afirmam que divergências
e oposições são inevitáveis em situações de interações pessoais,
especialmente se tais interações são freqüentes. Segundo esses autores,
“pesssoas diferem no que acreditam, no que elas sabem, e o que elas
pensam que poderiam fazer e como, assim como o que elas fazem, e estas
diferenças trazem conflitos com outros limites ocorridos” (p.2). As autoras
completam que o conflito tem sido amplamente reconhecido como força
central na mudança desenvolvimental, para ambos os lados, favorável e
desfavorável.
Com a mesma concepção Vinha (2003) embasada numa visão
construtivista, lembra que Piaget concebe tanto o conflito que ocorre no
interior do sujeito (intra-individual) quanto o que ocorre entre indivíduos
(interindividual) como necessários ao desenvolvimento. Vinha (2003)
explica que através do processo de equilibração ou auto-regulação
(responsável pela construção de todo o conhecimento), os conflitos internos
e externos levam o sujeito a buscar uma nova ordem interna e possibilitam
uma nova ordem externa. A autora concebe as discussões e os conflitos
como positivos, da mesma forma que Shantz and Hartup (1992), mesmo
que desgastantes, já que só pode haver trocas de pontos de vista a partir da
interação social.

99
Deluty (1979) e Leme (2004) distinguem três principais estratégias
utilizadas pelas pessoas para a resolução de conflitos interpessoais:
agressiva, submissa e assertiva. A estratégia agressiva caracteriza-se pelo
enfrentamento da situação de conflito interpessoal apelando para formas de
coerção, como violência ou desrespeito ao direito, sentimento e opinião
alheia. A estratégia submissa caracteriza-se pelo não enfrentamento de uma
situação por meio de fuga ou esquiva, freqüentemente pela consideração
dos direitos, idéias e sentimentos dos outros em detrimento dos próprios.
Por fim, a estratégia assertiva também envolve enfrentamento da situação
de conflito, porém sem qualquer tipo de coerção. Caracteriza-se por
comportamentos explícitos de defesa dos próprios direitos, mas levando em
consideração os direitos, sentimentos, idéias e opiniões alheias. O termo
estilo de resolução de conflito é aqui utilizado para indicar a reação
comportamental predominante de uma pessoa diante de desacordos
interpessoais, o que não significa que outras estratégias não possam ser
utilizadas.
Ainda que muitas pesquisas nos indiquem uma triste realidade,
observamos que é possível resolver conflitos interpessoais de forma justa e
harmônica através da estratégia assertiva de resolução de conflitos. Percebe-
se que é uma forma de resolução pacífica que envolve o diálogo e a troca de
pontos de vista. Além disso, busca-se uma solução que satisfaça em parte os
envolvidos no desacordo. Parece obvio que o estilo de resolução de
conflitos assertivo é o mais desejável nas relações interpessoais. Segundo
Leme (2004) é preciso que a pessoa tenha recursos cognitivos e afetivos
para que tenha condições de resolver um conflito de forma assertiva.
Diversos estudiosos debruçam-se sobre investigações que abordam
as conseqüências as pessoas que adotam diferentes estratégias de
enfrentamento de solução de conflitos. O estilo agressivo de resolver
conflitos parece trazer danos tanto para o agredido como para o agressor.
Para este último, as implicações são inúmeras e podem ser divididas em
internas e externas. Alguns dos efeitos internos são apontados por Monjas e
Caballo (2005): auto-imagem pobre, sentimento de culpa, frustração,
sentimento de perda de controle, raiva exacerbada e sentimento de solidão.
Fica claro que a condição de causar dano ao próximo tem como
conseqüência o afastamento das pessoas que cercam o indivíduo de estilo
agressivo, ou seja, uma conseqüência externa que justifica o sentimento de
solidão do agressor, aumento do sentimento de raiva e de auto-imagem
empobrecida (sem levar em conta que esse aspecto pode ser uma das causas
já discutidas). Outras implicações externas para a pessoa de estilo agressivo
apresentadas pelos autores referem-se à perda de oportunidades em todas as
áreas da vida em função das sanções pelos seus atos (que em muitos casos

100
podem chegar ao âmbito jurídico), do desafeto das pessoas e do
agravamento de conflitos com interações cada vez mais agressivas.
O estilo submisso é aparentemente inofensivo, sendo que, muitas
pessoas que adotam este estilo afirmam que não se incomodam com a
coerção alheia. Deluty (1979) afirma que o comportamento submisso
normalmente é motivado pelo medo do confronto e Leme (2004) completa
afirmando que, caso o sujeito se sentisse em condições de obter sucesso
com o comportamento agressivo, optaria por ele, ao invés do submisso.
Monjas e Caballo (2005) dizem que a pessoa submissa, além de não atingir
seus objetivos e de não ter suas necessidades satisfeitas, encontra-se
frustrada, infeliz e ansiosa. Os autores afirmam que tais emoções podem
resultar em depressão, auto-imagem pobre e solidão por receio do
enfrentamento nas relações sociais. Além disso, percebe-se que a pessoa de
estilo submisso mantém-se imatura, heterônoma e dependente de outros que
ela julga melhores e mais fortes que si mesma. Em suma, nota-se que a
pessoa de estilo submisso apresenta freqüentemente inúmeros problemas
internos e conflitos intrapessoais. Poderíamos acrescentar que a pessoa de
estilo submisso participa indiretamente para a manutenção de desigualdades
e injustiças sociais que resultam da sua incapacidade de se colocar para
restabelecer o equilíbrio interpessoal.
Por fim, o sujeito que adota um estilo de resolução de conflitos
assertivo tem a maior probabilidade de ter o desacordo resolvido e os seus
objetivos pelo menos em parte satisfeitos. É possível que mesmo com uma
solução pacífica e dialogada, a pessoa que utiliza um estilo assertivo para
resolver um desacordo precise abrir mão de algumas de suas metas e
desejos. Contudo o fará a partir da compreensão da perspectiva do outro
envolvido no conflito. Endossamos que o fato de a pessoa expressar-se
livremente, ser compreendida e ter a perspectiva de ter suas necessidades
em parte atendidas e superadas resulta num sentimento de auto-respeito e
dignidade. Além disso, colabora para a construção de um respeito pelo
outro, em outros termos, a construção de uma autonomia moral. Monjas e
Caballo (2005) acrescentam que as pessoas assertivas sentem-se mais
satisfeitas consigo mesmas e à vontade com os outros.
A partir dos estudos e conceitos que foram apresentados até o
momento foi realizado um estudo de doutorado que teve como um dos
objetivos investigar as formas de resolução de conflitos encontradas em um
grupo de adolescentes. Apresentaremos também os resultados relativos a
diferença de gênero e de faixa etária encontrada na população estudada.

101
O estudo

Participaram do estudo 84 estudantes de uma escola pública na


faixa etária de 12 a 16 anos, de ambos os sexos e nível socioeconômico
baixo. Após o consentimento da família, os adolescentes foram convidados
a responder o Questionário aberto derivado da escala Children‟s Action
Tendency Scale (Deluty, 1981). É um instrumento que avalia
concomitantemente e comparativamente três tipos de tendências de
resolução de conflitos interpessoais: agressivo, submisso e assertivo. A
avaliação se dá por meio de descrição de conflitos interpessoais fictícios
com conteúdo de provocações, perda, frustração, entre outros.
Partindo dos estudos de Leme (2004) que encontrou em seus
estudos com o mesmo instrumento de investigação, respostas mistas de
submissão e assertividade, assertividade e agressividade, submissão e
agressividade, adotamos as seguintes categorias para avaliar as respostas
dos adolescentes: agressivo, submisso, assertivo, assertivo-submisso,
submisso-agressivo e assertivo-agressivo.
Os resultados relativos às respostas dos participantes deste estudo
nas 10 situações de conflito propostas pelo instrumento evidenciou que
39,29% do grupo de adolescentes apresentaram respostas categorizadas
como submissas, seguidos por 28,57% dos participantes que indicaram
respostas agressivas. Dos sujeitos que responderam ao material, 19,05% não
apresentaram predominância de respostas e apenas 5,95% dos sujeitos
tinham uma predominância de respostas assertivas. Os sujeitos com
respostas categorizadas como mistas formaram a minoria, já que 4,76% dos
adolescentes tiveram respostas predominantemente submissa-agressiva e
2,38% respostas agressiva-assertiva. Não houve participantes que
tendessem predominantemente para a categoria submissa-assertiva
(Vicentin, 2009a).
Nota-se que a resolução de conflitos submissa era a mais indicada
pelos adolescentes do estudo diante de situações de conflitos hipotéticos.
Em seguida a estratégia agressiva foi predominante. Diferentemente do
tínhamos como hipótese sobre a maior incidência da agressividade, os
adolescentes escolheram mais formas pacíficas, ainda que injustas, como
solução para um desacordo interpessoal, já que o índice de estratégias
submissas é o maior e das estratégias agressivas é o segundo mais
encontrado. Uma infeliz constatação é que a estratégia de resolução de
conflitos assertiva é indicada por uma proporção pequena de adolescentes.
É preciso lembrar que o instrumento indica apenas o juízo do sujeito e não a
ação. É possível que muitos adolescentes indiquem nos conflitos fictícios
um tipo de estratégia para a solução de um desacordo, mas na ação tenham

102
uma outra atitude. No entanto, chama a atenção que mesmo que no nível do
julgamento, os adolescentes apresentem tão poucas respostas assertivas.
Uma análise qualitativa das respostas dos sujeitos nos ajudou a
compreender estes dados. Muitas justificativas dos adolescentes para a
escolha de suas respostas para a solução de um conflito mostram que eles
não reconhecem outra alternativa diante do desacordo a não ser “calar” ou
“brigar”. Exemplos de respostas comuns diante de um conflito que
envolve ser empurrado para fora da fila da cantina reforçam esta
concepção: “nada...para não arrumar confusão” ou “xingava...porque
ele me empurrou da fila”. Parece que os adolescentes carecem de
oportunidades de conhecer formas mais apropriadas de solução de conflitos.
Com relação ao estudo que envolve a diferença de gênero e as
formas de solução de conflitos, a análise das estratégias indicadas pelos
adolescentes nas 10 situações de conflitos evidenciou que meninos e
meninas diferem na proporção de respostas submissas e agressivas, ainda
que não tenha surgido diferença significativa entre os dois grupos (Vicentin,
2009a). Com relação às respostas categorizadas como submissas, foram
apontadas por 44,26% das meninas e 28,57% dos meninos, enquanto
22,95% das meninas indicaram estratégias agressivas e 38,10% dos
meninos. Já as respostas assertivas foram mais encontradas entre meninos
(9,52%) do que em meninas (4,92%) enquanto que as respostas mistas
foram encontradas mais freqüentemente entre meninas (8,20%) do que em
meninos (4,76%)
Da mesma forma que o presente estudo, Leme (2004) ao usar o
mesmo instrumento deste estudo com questões abertas, encontrou também
em sua pesquisa que os meninos fornecem mais soluções julgadas
agressivas e as meninas mais soluções submissas. A autora afirma que as
maiores sanções sociais que as meninas estão sujeitas quando agem de
forma agressiva, favoreça as respostas e condutas submissas. Em outros
termos, esta diferença tem relação com fatores culturais.
Beaudion e Taylor (2006) afirmam que as crenças dos indivíduos
estão associadas às diferentes culturas. Segundo as autoras, as culturas
patriarcais produzem efeitos que favorecem crenças diferentes nas meninas
e meninos. Alguns dos efeitos ao sexo feminino citados pelas autoras são:
concentrar-se nas necessidades dos outros, sacrifício, ser boa cuidadora e
expressar emoções. Entendemos que o efeito de concentrar-se apenas nas
necessidades dos outros favorece a construção de um estilo de resolução de
conflito submisso. Essa concepção das autoras coincide com a maior
incidência de estratégias submissas apontadas pelas meninas do presente
estudo, já que a submissão foi considerada neste estudo como a
consideração das idéias, sentimentos e desejos alheios em detrimentos dos
próprios.
103
Para verificar se existia diferença entre as variáveis estudadas e a
faixa etária dos participantes, os adolescentes foram divididos entre aqueles
de 12 e 13 anos e os de 14 a 16 anos. Sendo assim, contou-se com 39,75%
de adolescentes que estavam com a idade entre 12 e 13 anos na ocasião do
estudo e 60,25% que estavam no segundo grupo. Os resultados apontaram
que não ocorreu diferença significativa entre os dois grupos e nem mesmo
diferenças percentuais entre os dois grupos. Os dois grupos apresentaram
predominância idêntica de resolução de conflitos submissa (40%).
Observou-se uma proporção maior de respostas assertivas entre a faixa
etária dos mais velhos (8,00%) quando comparados aos mais novos
(3,03%). Entretanto, os participantes mais velhos também apresentaram
mais respostas agressivas (30%) do que os mais novos (24,24%). Surgiram
mais respostas categorizadas como mistas entre os mais novos (9,09%)
quando comparados aos mais velhos (6,00%) (Vicentin, 2009a).
Estes resultados contradizem uma das hipóteses do estudo, uma
vez que se esperava que os adolescentes mais velhos apresentassem mais
respostas assertivas. Diversos autores discutem a necessidade do âmbito
cognitivo para que as pessoas possam ter ações que favoreçam a resolução
de conflito justa e equilibrada (Piaget, 1932- 1994; Selman, 1980; Leme
2004; Vinha 2003). Apenas a partir dos 11 ou 12 anos, o adolescente tem
condições de chegar a um pensamento formal (Piaget, 1896-1980), nível em
que surge o raciocínio hipotético dedutivo, o que significa a capacidade de
estabelecer relações entre variáveis. Em outros termos, o adolescente que se
encontra nesse nível de pensamento torna-se capaz de pensar sobre todas as
possibilidades de uma situação para tomar decisões sobre ela. Esse tipo de
estrutura de inteligência oferece recursos para uma solução plenamente
assertiva, que é aquela solução que busca entrar em acordo mútuo entre os
pares envolvidos no conflito, considerando todas as variáveis de cada
sujeito, como direitos, sentimentos, idéias e desejos. Dessa forma, apenas
no estágio das operações formais as pessoas podem julgar de forma mais
evoluída em situação de desacordo. Nesse caso, uma proposição óbvia é que
quanto mais velhos os sujeitos, eles julgariam de forma mais evoluída e
teriam condições de responder de forma mais assertiva às situações de
conflitos hipotéticos. Entretanto esse resultado não se confirmou neste
estudo. Este resultado indica que o desenvolvimento cognitivo não é razão
suficiente para que os adolescentes apontem estratégias de solução de
conflitos mais evoluídas.
Em suma, os resultados do estudo que foi apresentado (Vicentin,
2009a) mostram para uma proporção maior de adolescentes que indicam
respostas submissas, seguido dos que apontam as agressivas. As respostas
assertivas, consideradas as mais evoluídas e equilibradas foram apontadas
por uma pequena parcela de adolescentes. As meninas mostram mais
104
respostas submissas quando comparadas aos meninos e não surgiu diferença
nas respostas dos adolescentes mais velhos e mais novos. Fica evidente que
nas soluções escolhidas para a solução do conflito, alguém sai prejudicado.
Pode-se concluir que, sem oportunidades de aprendizagem que levem a
melhores maneiras de solução de conflito, a maioria das pessoas entende,
como único recurso, deixar de defender os próprios direitos, ou fazer valer
os seus direitos custe o que custar. É um esquema de domínio-submissão já
apontado por Fernandez (2005) ou luta ou fuga indicado por Deluty (1981).
No cotidiano encontramos situações cada vez mais freqüentes de
agressividade e violência escolar, casos de agressividade furtiva (com
roubos, furtos, ameaças) e relações desarmoniosas que se prolongam na
vida adulta, no ambiente de trabalho, conjugal, com filhos e amigos.
Sustentamos que o ambiente familiar e o escolar são os caminhos para a
busca de uma sociedade justa.
A instituição educacional se depara diariamente com situações de
conflito entre os pares. O educador enfrenta cotidianamente situações que
envolvem o pensar sobre a ação mais adequada para que um aluno que
agrediu outro perceba as conseqüências de sua atitude, e o outro, que se
submeteu, reflita sobre o motivo que permitiu a agressão. A aplicação das
sanções devidas também geram dúvidas ao educador. As ações dos
educadores diante de conflitos com os alunos e entre os alunos podem
contribuir para que esses adotem ações agressivas, submissas ou assertivas
nas situações de desacordos interpessoais. Dessa forma, são os profissionais
de educação, que estudam o desenvolvimento infantil, que têm condições
de iniciar esse trabalho, de realizar ações diárias para que os alunos tenham
recursos para adotar condutas assertivas. E, ainda, podem ser formados para
realizar projetos a longo prazo para a formação de crianças e adolescentes
mais assertivos.
Sustentamos que o ambiente escolar possui duas vias principais
para o trabalho com os conflitos interpessoais e a aprendizagem de solução
de conflitos (Vicentin, 2009b). A primeira via são as ações cotidianas que
os educadores têm quando se deparam com crianças e adolescentes que
estão envolvidos em desacordos interpessoais. Ao discutir sobre os conflitos
interpessoais na escola, DeVries e Zan (1998) afirmam que existe três
princípios básicos para que o educador conduza os conflitos entre os alunos.
A primeira é: seja calmo e controle suas reações. Muitos educadores perdem
o equilíbrio emocional em situações de conflitos entre os alunos e acabam
dando exemplos de agressividade àqueles que pretende educar. Por
descontrole ou por desconhecer formas melhores de agir, utilizam-se de
estratégias coercitivas, controlando momentaneamente o comportamento
dos alunos, mas privando-os de pensar em formar de estabelecer uma
relação equilibrada com os pares. Os dois outros princípios: reconhecer que
105
o conflito pertence aos alunos e acreditar na capacidade deles para a
resolução do problema, também são fundamentais para que o educador
tenha consciência de que precisa ter um papel de mediador nas situações de
conflitos entre os alunos e não de legislador. Quando o educador diz quem
está certo ou errado ou resolve o conflito pelos alunos tira a oportunidade
destes de pensarem sobre seus sentimentos idéias e desejos e perceber o do
outro.
Ginott (1974) propõe que o tipo de linguagem que o educador
utiliza nas situações de conflitos entre os alunos pode colaborar ou não para
a resolução de conflito mais pacífica e equilibrada, já que não provoca
sentimentos nocivos nos envolvidos. Trata-se da linguagem descritiva, que
é aquele que descreve os fatos, mas não emite julgamento de valores sobre a
personalidade ou a capacidade do aluno. Com a linguagem descritiva as
partes se sentem compreendidas e favorece a motivação para uma solução
mais construtiva.
Finalmente, a segunda via do trabalho com os conflitos
interpessoais na escola chamamos de propostas de ações programadas
(Vicentin, 2009b). Tais propostas devem fazer parte da rotina dos
estudantes. Podemos citar o trabalho com as assembléias escolares (Araújo,
2004; Tognetta & Vinha, 2007), o trabalhos com os sentimentos (Tognetta,
2009; Tognetta, 2003) e os trabalhos com conflitos hipotéticos (Sastre;
Moreno, 2002; Vicentin, 2009b).
Com relação ao trabalho com os conflitos hipotéticos, Sastre e
Moreno (2002) são algumas das autoras pioneiras ao falar de um trabalho
que se destine à aprendizagem de resolução de conflitos e a emocional. As
autoras afirmam que realizar exercícios com grupos de crianças e jovens
não significa passar fórmulas para resolver conflitos. A proposta das autoras
é que ao apresentar exercícios que suscitem a discussão de conflitos
interpessoais para pessoas daquela faixa etária, os educadores favorecem o
reconhecimento e expressão de sentimentos, a reflexão dos direitos e
deveres, além da discussão sobre as possíveis soluções e suas implicações
imediatas e em longo prazo. Assim como a proposta das autoras, sugerimos
atividades com os adolescentes que sejam realizados de forma lúdica a fim
de que os alunos possam debruçar-se sobre os sentimentos, motivações e
alternativas para solução de conflitos interpessoais (Vicentin, 2009b).
Para concluir, qualquer proposta de trabalho com os conflitos na
escola só será efetiva se os educadores se conscientizarem de seu inevitável
papel na formação interpessoal e moral dos alunos. Para tanto é preciso
refletir sobre o tipo de aluno que pretendem colaborar para formar e qual é o
seu papel diante desta formação.

106
Referências

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108
10

A GESTÃO DO CONVÍVIO ESCOLAR

Maria Isabel da Silva Leme

O objetivo do capítulo é analisar a relação entre gestão e qualidade


do convívio na escola, que, como se procurará demonstrar por meio de
resultados de pesquisa, tem grande importância, tanto sobre a aprendizagem
acadêmica como sobre o desenvolvimento geral dos alunos. Como se
analisará também, a promoção de um ambiente agradável e seguro não se
resume a repressão da violência na escola. È um problema complexo, que
depende de vários níveis de atuação, desde políticas estabelecidas pelos
órgãos governamentais até a ação cotidiana dos educadores na escola. Neste
sentido, como se constatará nas pesquisas, a violência não se resume a
provocar um convívio comprometido na escola, é antes reflexo da ausência
de valorização de um ambiente voltado para o desenvolvimento dos alunos.
Nessa perspectiva, Abramovay e Rua (2004) na conclusão de
extensa pesquisa realizada sobre violência na escola salientam em suas
recomendações finais o compromisso que sustenta a prevenção e
erradicação da violência enquanto política pública, que deve envolver toda a
sociedade: "Tem-se também como premissa que, cada vez mais, a
prevenção e erradicação das violências nas escolas exigem relacionar
conhecimento sensível, ético, valorização do jovem, criação de um
ambiente agradável e participativo, com conhecimento especializado e
transdisciplinhar, bem como análises sobre segurança pública, segurança
escolar." (p.324). Salientam ainda que a implementação de políticas
públicas de segurança demandam o apoio de várias instâncias, dos governos
federal, estadual e municipal porque requerem diversos níveis de ação, que
serão analisados a seguir.

A gestão da violência pelos órgãos públicos

Um aspecto que chama a atenção ao se buscar informações sobre


as políticas públicas de combate à violência escolar é a dificuldade em
localizar dados a este respeito. É provável que tal dificuldade se deva, pelo
menos parcialmente, ao fato das pesquisas sobre violência escolar serem
ainda relativamente recentes, acarretando na pouca disponibilidade de
dados, tanto para informar os pesquisadores, como para subsidiar as
políticas dos órgãos públicos. Outro problema é a baixa freqüência de

109
registro de ocorrências pelas escolas, que dificulta aferir a magnitude do
fenômeno, e, portanto, a efetividade das iniciativas governamentais.
Algumas iniciativas públicas para lidar com a violência escolar
tiveram início já no final da década de 1980 em São Paulo, quando o
fenômeno começava a se manifestar (Gonçalves e Sposito, 2002). Valem
ser relatados dois programas: o de estímulo à democratização da gestão nas
escolas e o de abertura das mesmas nos finais de semana em São Paulo,
sendo que a última iniciativa perdura até hoje, envolvendo 2341 unidades
escolares em todo o estado segundo dados divulgados pela Fundação para o
Desenvolvimento da Educação (FDE, 2010). Na mesma época, na gestão de
Luiza Erundina na cidade de São Paulo foi realizado o programa "Pela
vida, não à violência", que envolveu desde a formação de funcionários
como vigias, até a interação dos alunos com grupos de rappers para discutir
questões como racismo e preconceito nas escolas (Gonçalves & Sposito,
2002). Ainda na década de 1990 em São Paulo, foram realizados outros dois
programas, Comunidade Presente e Parceiros do Futuro. O primeiro visava
criar uma cultura de valorização da paz pelo fortalecimento da cidadania, e
o segundo promover solidariedade, respeito à pluralidade e um convívio
mais ético (Liberal, Aires,Aires & Osorio, 2005).
Também na década de 1990, em Porto Alegre, foi estabelecida uma
parceria entre a Secretaria de Educação e a Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, que realizaram um diagnóstico dos problemas de
convivência nas escolas, que consistiam em 59% dos casos em violência
contra a pessoa, como conflitos, ameaças, agressões físicas. A partir dai, foi
realizado o programa "Ação Contra a Violência nas Escolas", para colocar
em prática princípios de convivência como diálogo, negociação no conflito
e busca de entendimento do significado das incivilidades perpetradas pelos
jovens (Gonçalves & Sposito, 2002). Em 2003, foi firmada uma parceria
entre o governo de estado gaúcho e a Unesco no projeto Escola Aberta para
a Cidadania, que consistia na abertura nos finais de semana de 50 escolas
da rede estadual. Além do impacto positivo observado na convivência entre
os membros da comunidade escolar e na parte pedagógica, vale salientar
que foi verificado maior envolvimento dos pais com a escola (Unesco,
2005).
Parcerias semelhantes com a UNESCO foram firmadas pelos
governos estaduais do Rio de Janeiro e de Pernambuco, para implantação
do programa Escola Aberta que consistiu na abertura nos finais de semana
de escolas situadas em áreas de maior vulnerabilidade social, pelos altos
índices de violência e pouca disponibilidade de atividades de lazer. Nos dois
estados, os resultados foram positivos no sentido de controlar a espiral de
violência, que em escolas de Pernambuco (checar se o Rio também) baixou

110
ao nível das escolas caracterizadas como mais pacíficas (Waiselfisz &
Maciel, 2003).
A Unesco também realizou parceria em 2002 com o governo da
Bahia, onde iniciou o mesmo programa de abertura de 58 escolas nos finais
de semana. O programa também foi avaliado positivamente, não só por
reverter o crescimento da violencia, mas por um resultado inesperado e
digno de menção que foi a transposição para o espaço escolar das
atividades de fim de semana, como as iniciadas nos laboratórios de
informática. (Abramovay, Andrade, Farah,& Macedo Castro, 2003).
Segundo as pesquisas encontradas, no estado de Minas Gerais, as
iniciativas dos órgãos públicos para lidar com a violência na escola foram
mais diversificadas do que em outros estados. Foram implementadas, como
em São Paulo, no final dos anos 1990, em função dos altos índices de
violência escolar. Em 1999, foi firmada uma parceria com a Universidade
Federal de Minas Gerais para a realização do programa "Agenda da Paz",
voltado para a formação e capacitação de docentes. Na mesma época, foram
tomadas algumas iniciativas por parte da Polícia Militar, como o
monitoramento das ocorrências, e um programa de proteção às escolas,
denominado "Anjos da Escola", que ainda está em vigor, que estimulava a
participação de todos os integrantes da comunidade escolar nessa tarefa,
tendo se estendido para vários outros municípios do estado. O programa
"Rede de Trocas", que visava o intercâmbio de experiências bem sucedidas
entre educadores foi realizado pela Secretaria de Municipal de Educação de
Belo Horizonte (Gonçalves & Sposito, 2002). Em 2003, foi implantado o
"Escola Viva, Comunidade Ativa" por iniciativa do governo estadual em
escolas onde fora identificada queda no desempenho discente em função da
presença de violência em seu interior. As ações consistiram em: abertura
das escolas nos finais de semana; capacitação docente; reestruturação dos
currículos, mais voltados para o atendimento de aspirações da comunidade;
intensificação do processo de escolarização pelo acréscimo de um ano ao
Ensino Fundamental, jornada de período integral, e atendimento
psicopedagógico aos alunos. Verificou-se diferença significativa nos índices
de violência registrados após a intervenção (Correa, 2007).
Verifica-se ao final desta breve revisão que a iniciativa mais
freqüente para lidar com a violência escolar consistiu na abertura das
escolas nos finais de semana para atividades de lazer e cultura, seguida
pelas de formação dos educadores. Os resultados foram mais significativos
nos programas de abertura da escola nos finais de semana. Cabe ressaltar
ainda que as iniciativas ficaram mais a cargo dos governos estaduais e
municipais. O governo federal, até onde se conseguiu apurar, teve duas
iniciativas. Uma do Ministério da Justiça, que consistiu na criação de uma
comissão de especialistas para estabelecer diretrizes para combater a
111
violência escolar, levando ao Programa Paz nas Escolas, implantado em 14
estados brasileiros (Gonçalves & Sposito, 2002). O programa realizou
capacitação de educadores em temas como direitos humanos, ética,
cidadania e mediação de conflitos. Além disso, foram feitas campanhas para
desarmamento da população, parcerias com organizações não
governamentais para capacitação de outros profissionais como policiais, e
estímulo às agremiações de jovens para a discussão da violência nas
escolas. Uma outra iniciativa foi o incentivo ao protagonismo juvenil, via
estímulo à participação dos estudantes na gestão escolar, tal como
preconizado nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.
Nas 5 escolas em que se pesquisou esta participação, verificaram-se
resultados pouco significativos, o que foi atribuído à forma vertical com que
foi implementada a participação dos jovens, decidida fora da escola, pela
administração do sistema, e não pelas próprias instituições (Ferreti &
Tartuce, 2006).
É bem provável que outras iniciativas tenham sido implementadas,
que não foram localizadas por ainda não terem sido ainda analisadas. Vale
destacar que dificultam a consolidação das intervenções contidas nesses
programas: a descontinuidade, ocasionada pelas mudanças de gestão nos
órgãos públicos; a desarticulação entre as várias instâncias envolvidas na
implantação das políticas, (Abramovay et al, 2002); e também, distorções
nas metas originais na sua implementação, causadas pela burocracia;
despreparo dos recursos humanos que atuam como multiplicadores nas
formações, e, finalmente, a ausência de monitoramento confiável das
ocorrências, que permita aferir a eficácia das medidas tomadas (Gonçalves
& Sposito, 2002). Vale lembrar outro fator importante, exemplificado pelo
estímulo a uma gestão mais democrática via protagonismo juvenil: só
produzem resultados positivos intervenções que são implementadas em
ambientes já mobilizados para a mudança. Neste sentido, é crucial o papel
do diretor para a organização deste ambiente na escola e sua mobilização
para a mudança.

O papel do diretor na gestão voltada para a promoção do convívio

A importância da gestão para o cumprimento da missão educativa


da instituição escolar dispensa maiores argumentos, em vista do consenso
sobre esta posição. Neste sentido, considera-se que não só são importantes
suas decisões concernentes ao funcionamento institucional, como a
organização e coordenação de trabalhos, pela articulação e integração dos
vários setores escolares, mas ainda sua liderança frente à comunidade
escolar, tanto no que diz respeito à qualidade do trabalho pedagógico ali
desenvolvido, da valorização da aprendizagem dos alunos, como em relação
112
ao desenvolvimento destes como pessoas. Para tanto, é necessário que a
gestão garanta um ambiente favorável à aprendizagem, organizado, com
compromisso do corpo docente, onde o uso do tempo, do espaço e dos
recursos está voltado prioritariamente para este fim; e também o
estabelecimento de um clima de confiança, acolhimento e cuidado, onde as
regras são claras e compartilhadas, em termos de direitos e
responsabilidades bem definidas. As escolas com padrões de gestão e estilo
de liderança como os descritos acima são mais eficazes, obtendo melhores
resultados em avaliações de desempenho estudantil (Namo de Mello &
Atié, 2003).
É importante destacar, que para exercer liderança sobre o corpo
docente, estimulá-lo para o cumprimento de metas comuns, é necessário
agir com justiça, no sentido de equilibrar deveres e direitos, exigindo, por
um lado, o cumprimento das tarefas docentes, e por outro, acolhendo a
participação dos professores nas decisões, fornecendo-lhes apoio para que
exerçam sua autoridade em sala de aula, respaldando-os em decisões
disciplinares, e atendendo de suas necessidades didáticas (Stefkovitch &
Begley, 2007).
Além dos aspectos acima, vale lembrar outro, também
indispensável ao exercício da liderança do diretor junto à comunidade
escolar. O respeito à autoridade do diretor demanda que seja considerada
legítima, visto que é difícil exercê-la com base apenas na assimetria de
poder, que terá que ser reafirmado constantemente. A legitimidade pode ser
traduzida como as características de uma autoridade que levam os que a ela
estão subordinados ao sentimento de dever, no sentido de acatar suas
decisões, seguindo-as voluntariamente por um sentimento de obrigação,
invés de medo da punição. Em outras palavras, o controle dos outros é
substituído pelo auto controle porque as decisões e regras estabelecidas pela
autoridade são vistas como justas e equânimes (Tyler, 2006).
Além de zelar pelo cumprimento da função pedagógica da escola, é
necessário que o diretor cuide ainda da formação dos alunos como futuros
cidadãos, no caso do tema aqui tratado, pessoas que valorizam a
convivência harmoniosa com o outro. Para tanto, é necessário que seja
priorizada pelo diretor a promoção de um ambiente de convivência seguro e
agradável na escola. Um dos fatores que dificultam a implantação deste
ambiente é a manutenção de crenças e valores sobre relações humanas
pouco claros ou até equivocados. Um bom exemplo consiste em considerar
que a formação afetiva do aluno é atribuição exclusiva da família, cabendo
à escola apenas a sua formação acadêmica. Sem depreciar o valor desta
formação, nem a importância da família na educação do aluno, vale
lembrar que o aluno não se despoja de seus valores e sentimentos ao
adentrar a escola, convertendo-se em um autômato nos relacionamentos que
113
ali mantém. Pelo contrário, é ali que vai fazer amizades, se defrontar com
sentimentos desconhecidos, despertados por situações diferentes daquelas
que vive com a família, como por exemplo, a pressão exercida pelo grupo
para que participe na intimidação como o bullying contra um colega. Por
não ocorrer usualmente no contexto familiar, o aluno não sabe lidar com ela
e receia tornar-se a próxima vítima. Neste sentido, é preciso esclarecer e até
mudar uma série de concepções sobre convivência, além da questão da
responsabilidade conjunta de ambas instituições, família e escola, pela
educação afetiva do aluno. É preciso esclarecer também concepções sobre
violência e indisciplina, em termos de suas convergências e diferenças. Isto
porque a indisciplina é vista como uma manifestação de violência, o que
nem sempre procede como se analisará a seguir.
Primeiramente, é importante analisar se indisciplina sempre
envolve violência. Se indisciplina é conceituada como transgressão às
regras de conduta estabelecidas pela instituição, pode-se afirmar que não.
Isto porque muitas destas regras se referem ao cumprimento de horários,
uso de vestuário para identificação de alunos da instituição, cuja
transgressão não tem impacto no convívio dos diversos integrantes da
comunidade escolar. Por seu lado, a violência também nem sempre envolve
transgressão às regras de disciplina na escola, como no caso de grupos de
alunos que difamam ou isolam outros alunos porque condenam sua
aparência física ou algum outro atributo, prática que de modo geral não
consta nas proibições da escola.
Entretanto, deve ser lembrado que a violência na verdade envolve
uma transgressão maior, que é a das regras morais, se aceita sua definição
como o uso da força ou da coação do outro para obtenção de um fim
desejado. Coagir, forçar alguém a submeter-se, envolve a violação de seu
direito ao respeito, configurando uma situação de injustiça. Na situação
descrita acima, de difamação de um aluno diferente fisicamente, ocorre uma
forma de violência velada, pois o objetivo de fazer prevalecer valores
intolerantes do grupo está violando o direito do aluno ao respeito.
Outro exemplo da associação entre indisciplina e violência pode
ser percebida nas queixas de professores sobre a conduta de seus alunos em
sala de aula que dificultam o exercício de suas atividades docentes (Alves,
2006). Muitos comportamentos dos alunos, configuram mesmo indisciplina,
por consistirem em desobediência às regras, como gritos, risos e
movimentação desnecessária em sala de aula. Porém, não se pode
caracterizar estas condutas como violência quando os alunos pretendem
apenas se divertir, sem qualquer outro objetivo. O objetivo de diversão não
torna a conduta desejável, mas, por outro lado, não lhe confere o status de
transgressão moral como a violência, em que a submissão do outro é um
meio para se atingir um fim. Já transgressões como troca de insultos,
114
ameaças e empurrões, que também são objeto de queixa frequente dos
professores, constituem exemplos de violência, não só porque envolvem o
uso da coação, mas, principalmente, porque visam com isso a consecução
de algum objetivo, como por exemplo, intimidar o outro. Em alguns casos,
visam intimidar o próprio professor que tenta reprimir tais manifestações,
por meio de ameaças e agressões. Mesmo que o professor não sofra
tentativas diretas de intimidação, justifica-se sua interpretação de que são
uma forma de violência contra a sua pessoa porque representam um desafio
à sua autoridade docente, impedindo-o de exercer o seu papel de professor.
Outra queixa frequente dos professores é o fato de serem simplesmente
ignorados em seus apelos para restabelecer a ordem na sala de aula.
Também ai configura-se uma forma de violência, pois o descaso
manifestado representa uma forma de desafio à sua autoridade, impedindo
o cumprimento do seu papel. Neste sentido, a indisciplina em sala de aula
quando envolve desrespeito à autoridade do professor, ao seu direito a
exercer seu papel docente, ou ainda, desrespeito ao direito de alunos que
desejam aprender, pode ser considerada uma forma de violência.
Decorre desta análise de indisciplina e violência outra
diferenciação necessária, entre violência e conflito interpessoal. Em
virtude de ser confundido com a violência, que é uma estratégia de
resolução, o conflito é visto frequentemente como algo a ser evitado ou
reprimido a qualquer custo. É importante ter em mente que o conflito em si
não é algo bom ou ruim, mas sim as formas usadas para sua resolução,
como a violência. O conflito faz parte da vida, em função da existência de
diferenças entre as pessoas em seus objetivos. Além disso, diferentemente
do que muitos acreditam, o conflito não é algo típico de uma certa idade, no
caso na juventude, argumento também usado para justificar sua repressão.
Deve-se ainda questionar a crença de que a violência com a qual muitas
vezes o conflito é resolvido é algo que "explode" subitamente, invés de uma
construção social, passível de intervenção (Cubas, 2006).
A atribuição de responsabilidade exclusiva à família pela formação
afetiva do aluno, já tratada acima, envolve outra crença equivocada, que
também pode levar ao comprometimento do ambiente de convivência na
escola. Trata-se da atribuição de responsabilidade pelos conflitos que
ocorrem à falta de limites na educação dada pela família aos alunos, o que
em última análise, isenta a instituição de sua parcela de responsabilidade
nos desacordos que ali ocorrem. Assim, a escola não se questiona se o corpo
docente, por exemplo, está cumprindo com seu dever de ensinar. A ausência
de cumprimento deste dever por faltas, atrasos, gera muitas vezes revolta
nos alunos, que percebem violado seu direito à educação (Aquino 1996),
causando conflito com os professores. Também não se questiona se os
espaços destinados a recreios e atividades de lazer estão bem dimensionados
115
e supervisionados (Pereira, 2002), se todos são tratados com equidade, ou se
alguns são privilegiados, como por exemplo, atrasos são permitidos aos
professores, mas não aos alunos. Porém, não basta que o diretor passe a ter
crenças mais adaptadas à realidade, isto é, que acredite que a
responsabilidade pelos conflitos é também da organização da instituição, e
portanto de quem responde por ela. É preciso que tome iniciativas efetivas
para organizar o ambiente da instituição para um convívio mais
harmonioso entre os membros. São elas que serão discutidas a seguir.

Ações para a promoção do convívio

A gestão democrática, isto é, a inclusão de todos os membros da


comunidade na tomada de decisões sobre vários aspectos da vida na
instituição vem sendo crescentemente defendida nos últimos anos (Romão
& Padilha, 2001; Paro, 2002), pois está associada, entre outros resultados
positivos, ao uso de estratégias de resolução de conflitos mais pacíficas e
elaboradas, como a negociação (Vinha & Mantovani de Assis, 2007), assim
como à observância das regras pela legitimação da autoridade (Tyler, 2008).
Se a observância da regra é baseada apenas no medo de punição, não na
legitimação, a transgressão é muito mais provável quando a conseqüência
negativa puder ser evitada pelo infrator. O ideal é que sejam desenvolvidos
nos alunos sentimentos de compromisso com as regras, o que só pode ser
logrado se houver efetivamente alguma forma de participação na elaboração
das mesmas. Esta participação pode ocorrer por meio de reuniões para
discussão das normas de conduta, conseqüências para transgressão,
princípios que as sustentam, como por exemplo, o respeito, a justiça, ou
mesmo racionalidade, em termos de custos e benefícios. É essencial que
princípios como respeito sejam compreendidos pelos alunos, pois as regras
não abrangem todas as situações possíveis, levando à necessidade de algo
mais geral, adaptável a novas circunstâncias. Também é necessário que os
alunos entendam o significado de compromisso que representa sua
participação no processo de decisão. Precisam entender que o fato de suas
opiniões estarem sendo consideradas no diálogo e na negociação de idéias
significa que fazem parte do processo de decisão, e portanto são também
responsáveis pelas mesmas. É importante salientar que não se pretende
destituir de poder aqueles que respondem pela instituição como o diretor,
mas partilhá-lo mais eqüitativamente com a comunidade escolar, para que
esta se responsabilize também pela escola. As regras e as conseqüências
advindas da desobediência devem ser não só ser fruto da decisão coletiva,
mas ainda, devem ser claras, objetivas e acessíveis a todos. As
conseqüências para a transgressão devem ser proporcionais às faltas
cometidas, visando antes de tudo que o aluno aprenda com elas. As
116
consequencias que excluem o aluno do cotidiano escolar, como as
suspensões devem ser evitadas, pois por resultar em perda de conteúdo
escolar e provas, podem prejudicar a aprendizagem, limitando
oportunidades futuras de trabalho, perpetuando o círculo vicioso da
violência.
O cuidado com os alunos deve estar presente em toda a escola.
Várias pesquisas (Pereira, 2002; Leme, 2006, Ruotti, 2006) têm revelado
que os espaços onde ocorrem mais conflitos são justamente aqueles que
recebem menor supervisão da escola, como recreio, entrada e saída,
banheiros e corredores. É necessário então, maior supervisão nestes
espaços, e no caso mais específico do recreio, observar além da sua
adequação em termos de dimensão para a prática de jogos e outras
atividades, se estas estão favorecendo a sociabilidade entre alunos.
Um outro aspecto que merece atenção para a organização do
ambiente de convivência é a competição, que tem sido associada a
sentimentos negativos em relação ao outro, visto como um adversário. Se
estimulada pode comprometer o ambiente de convivência, tornando-o
inseguro e ameaçador. Deve ser evitada a organização de classes por
desempenho, pois contribui para um clima de competição na escola, assim
como algumas formas de divulgação de avaliação. A formação dos
professores para o desenvolvimento afetivo e psicosocial dos alunos deve
contemplar também este aspecto.
Uma providência importante a ser tomada pelos gestores para
diminuir a incidência de conflitos na escola é a já mencionada formação de
docentes e funcionários para aplicação das regras de disciplina, dispensando
o mesmo tratamento a todos os alunos, sem cometer injustiças pela
concessão de privilégios a alguns que são negados a outros. Esta é uma
queixa frequente dos alunos, já verificada em pesquisa (Leme, 2006) que
por levar ao sentimento de injustiça, pode comprometer a adesão às regras
disciplinares. Da mesma forma, é necessário orientá-los para que sua
intervenção em conflitos, e outros desentendimentos entre alunos, não seja
no sentido de interromper rapidamente o incidente, impedindo os
envolvidos de resolverem de modo autônomo e negociado o problema.
Tanto o corpo docente como os funcionários precisam ser orientados no
sentido de ajudarem as partes a dialogar e encontrar uma solução negociada.
Caso contrário, estarão negando uma oportunidade de aprendizagem aos
alunos, e provavelmente, prolongando o desentendimento que pode resultar
em distanciamento, ou mesmo inimizade entre alunos. A este respeito, vale
lembrar os resultados encontrados por De La Taille (2006) em pesquisa com
uma amostra representativa de alunos de Ensino Médio, na qual mais da
metade (55%) dos participantes afirmou perceber mais adversários do que
amigos no mundo atual. Coerentemente com essa visão negativa de mundo,
117
quase a totalidade (90,5%) destes jovens afirmou que os conflitos atuais são
muito mais resolvidos pela agressão do que pelo diálogo. Ou seja, esses
resultados indicam que os jovens percebem o mundo como mais constituído
de adversários hostis do que amigos, onde os problemas são resolvidos
apelando-se para a violência.
Os resultados encontrados por De La Taille (2005) sobre a
percepção negativa do outro, podem indicar conflitos não resolvidos na
escola, resultando em medo e desconfiança entre alunos. A este respeito,
Jarymowicz e Bar-Tal (2006) colocam que o medo é um sentimento que
pode sobrepujar a confiança, por ser uma emoção primária, processada tanto
inconsciente como conscientemente. Sendo uma emoção presente também
em outras espécies, deve ter sido selecionada filogeneticamente, em
resposta às pressões adaptativas, podendo levar à ausência de reação, ou
então, à agressão reativa a um ataque presumido. Já a confiança, pelo seu
caráter de emoção secundária, é processada deliberadamente, envolvendo
atividade cognitiva, requerendo antecipação, esforço na busca de novas
idéias e flexibilidade, em suma, aprendizagem. Em função deste
processamento deliberado é freqüentemente suplantada e inibida pelo medo,
processado mais rápida e automaticamente. Entretanto, o mais importante
em termos do ambiente de convivência é que o medo pode suplantar o plano
individual, tornando-se uma orientação emocional coletiva, organizando a
vida social. Na visão dos autores citados, a orientação coletiva para o medo
pode até ser funcional para lidar com situações estressantes, mas pode, a
longo prazo, tornar-se um obstáculo para o restabelecimento da paz. Neste
sentido, um ambiente de medo pode prejudicar a aprendizagem e o
conhecimento sobre sentimentos, o que chamaríamos meta afetividade, que
as pesquisas têm verificado que está relacionada positivamente à adaptação
social do indivíduo (Izard, Fine, Schultz, Mostow, Ackerman &
Youngstrom, 2001). Vale relatar que Loukas e Robinson (2004)
investigaram a influência da percepção de algumas dimensões do ambiente
escolar por alunos de 10 a 14 anos de idade sobre o ajustamento à escola.
Dentre os resultados encontrados, vale destacar duas dimensões de interesse
para o presente capítulo: atrito entre alunos e coesão. A percepção de atrito
entre alunos foi a dimensão que mais se relacionou a problemas de
ajustamento porque impede o desenvolvimento do sentimento de
pertinência e conexão com a escola.

A gestão pela família

Finalmente, a escola para obter os melhores resultados de sua


ação, no estabelecimento de um ambiente propício ao convívio e à
aprendizagem, precisa atuar em conjunto com a família. Neste sentido,
118
uma prática bastante disseminada que precisa ser revista é de chamar a
família diante de qualquer transgressão do aluno. Esta forma de resolver
problemas disciplinares, como já analisado acima, além de nem sempre ser
adequada em vista da diferença entre os dois contextos, pode levar a uma
percepção de assimetria de poder. Portanto, antes de convocar a família
para que tome as providências, é necessário analisar se a transgressão do
aluno não está relacionada à organização da instituição. Mais do que ser
convocada para resolver cada problema causado pelo aluno, a família
precisa ser orientada sobre como proceder para preveni-los e atuar de
modo coerente com os princípios de convivência defendidos pela escola.
Neste sentido, é preciso orientar os pais sobre a importância de um estilo
de autoridade democrático, que demonstra afetivo positivo pelo filho ao
estabelecer regras, justificando-as em termos de cuidado parental. Além
disso, é importante também atenção para a coerência entre a norma
explicitada e a sua conduta, assim como o consenso entre si quanto às
regras que estabelecem (Knafo & Schwartz, 2003; Dunman &
Margolin,2007). Além disso, Ohene, Ireland, Mc Neely e Burowski
(2006) verificaram que a desaprovação explícita da violência pelos pais
aumenta a probabilidade dos filhos manterem atitudes contrárias à
agressão entre pares. Por outro lado, essas atitudes pró-sociais diminuem
se os pais usam punição física como forma de disciplina.

Considerações finais

Ao final deste capítulo espera-se ter demonstrado a complexidade


envolvida no estabelecimento de um ambiente propício à convivência, à
aprendizagem e ao desenvolvimento psicosocial do aluno na escola. Tal
complexidade demanda vários níveis de atuação, que para se efetivar,
exigem compromisso, coerência e continuidade. Sobre as iniciativas
governamentais, seria desejável maior diversidade e quantidade de medidas,
incluindo-se a formação de gestores para uma atuação como a preconizada
por diversos autores aqui examinados. No plano específico da escola, o
compromisso de todos os educadores em atuar no sentido do melhor
interesse do aluno, e não da escola, como certas crenças sobre a família,
indisciplina e conflitos parecem indicar.

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121
11

ASPECTOS BÁSICOS DA RELAÇÃO ENFEMEIRO-PACIENTE E


A PRÁTICA DO ENFERMEIRO NA INTERVENÇÃO BREVE PARA
OS PROBLEMAS RELACIONADOS AO USO DE ÁLCOOL

Angélica M. S. Gonçalves, Sandra Cristina Pillon,


Priscila Tagliaferro, Sônia Zerbetto, Sônia Vivian de Jezus

A enfermagem psiquiátrica brasileira tem se esforçado nas últimas


décadas no sentido de delinear a ênfase do papel do enfermeiro, seja no
âmbito da psiquiatria ou da saúde mental mais recentemente. Neste sentido,
é necessário esclarecer que para pensar nos aspectos comportamentais das
relações humanas, mais especificamente no relacionamento terapêutico
enfermeiro-paciente, a enfermagem tem sofrido influências de outras áreas,
tal como da psicologia, (especialmente da Psicologia Humanista com os
pressupostos de Calr Rogers, a partir de 1960), da sociologia e da
comunicação e tem também desenvolvido conhecimento próprio com
algumas teorias que introduziram um novo paradigma, no qual o cuidado
evolui do simples cuidado físico para a competência no relacionamento
interpessoal centrado nas “relações interpessoais que se processam entre o
enfermeiro e o paciente”, tal como propõe a Teoria das Relações
Interpessoais (1952) desenvolvida por Hildegard Peplau (Almeida, 2005),
que mais tarde foi sistematizada por Joyce Travelbee (1979) (Filizola,
1997). Outras autoras como Ruth Virgínia Matheney, Mary Topalis, Maria
Aparecida Minzoni, Susan Irving, Cecelia Monat e Ruth Mylius Rocha
também tem refletido sobre o assunto, enfocando o papel do enfermeiro
enquanto agente terapêutico, cujas ações se baseiam no relacionamento com
a pessoa em sofrimento que assiste (Lima et al., 2010).
Frente ao exposto e pensando na reorganização do modelo de
atenção preconizado pelo sistema de saúde brasileiro que tem como base a
articulação de serviços, práticas e tecnologias, aqui particularmente levando
em consideração a estruturação da rede de assistência à saúde mental no
país, observa-se a preocupação do Ministério da Saúde em enfrentar a
questão da Saúde Mental na Atenção Básica (Ministério da Saúde, 2003), o
que pressupõe que com a evolução das políticas, a prática da enfermagem
psiquiátrica e seus conhecimentos não devam ficar restritos apenas aos
serviços especializados, mas devam deslocar-se para outros equipamentos
de saúde. Com isso, faz-se necessário refletir a respeito do papel do
enfermeiro neste novo contexto e quais estratégias e mudanças melhorariam
a resolutividade e eficácia na assistência prestada, incluindo as ações
preventivas (Gama, 2009).
122
Neste sentido, considerando especificamente a problemática do uso
de álcool não apenas em âmbito nacional, a Organização Mundial de Saúde
tem lançado esforços na difusão de um conhecimento que fundamenta a
realização da prevenção do uso abusivo do álcool nos serviços de Atenção
Primária à Saúde de maneira estruturada, ao que denomina de “Estratégias
de Diagnóstico e Intervenção Breves”. Neste texto usaremos o termo
“rastreamento” ao invés de “diagnóstico” por ser mais apropriado ao tipo de
instrumento que se usa para investigar o padrão de consumo e os problemas
relacionados ao uso de álcool na comunidade. O reconhecimento do
enfermeiro como profissional de referência para atuar em ações preventivas
e educação em saúde instiga a reflexão sobre como aspectos básicos da
relação enfermeiro-paciente podem cooperar para que tais estratégias sejam
implementadas com sucesso nos serviços de saúde.

O Rastreamento e a Intervenção Breve

As estratégias de rastreamento e Intervenção Breves podem ser


pensadas enquanto uma tecnologia em saúde que sistematiza a prevenção do
uso abusivo do álcool. Como o próprio nome faz referência, primeiramente
se deve investigar os problemas relacionados ao uso do álcool, o que
denomina-se de “rastreamento”, ferramenta auxiliar para se realizar uma
Intervenção Breve. Para isso, diversos instrumentos psicometricos de
triagem já validados no Brasil vem sendo utilizados (AUDIT, T-ACE,
CAGE, DUSI) (Castel & Formigoni, 2000). O quadro abaixo mostra os
limites de consumo de baixo risco, que norteiam as informações e
orientações com fins educativos para prevenção de danos decorrentes de
abuso álcool ao se realizar um rastreamento.

Quadro 1 – Apresentação dos riscos de saúde e níveis de álcool


consumidos.
Riscos Mulheres Homens
Baixo Menos de 14 UI de álcool por Menos de 21 UI de álcool por
semana. semana.
Médio 15 a 35 UI de álcool por 22 a 50 unidades por de álcool
semana. semana.
Alto Mais de 36 UI de álcool por Mais de 51 UI de álcool por
semana. semana.
1UI = Unidade Internacional de álcool = 10 – 12 gramas de etanol (NIAAA,
2005)
Após o rastreamento é necessário que seja feita a Intervenção
Breve de maneira adequada ao padrão de consumo e danos identificados.
Um modelo simples que pode direcionar a intervenção breve foi
123
desenvolvido pelo National Institute on Alcohol and Alcoholism (NIAAA,
2005). Este modelo foi planejado para usuários de álcool, entretanto, pode
ser utilizado para indivíduos que fazem uso de outras substâncias
psicoativas.

Quadro 2 – Ilustração sobre os passos que envolvem a condução da


intervenção breve para os problemas do álcool, segundo NIAAA.
Passo I – Perguntar sobre o uso do álcool
Avaliar o Padrão de Rastreamento
consumo:
Semanal e Ocasional

Passo II – Perguntar sobre os


problemas relacionados ao uso do
álcool.
Físicos Mentais Dependência
do álcool

Passo III – Aconselhamento apropriado

Dependência Bebedor de
Risco ou
Nocivo

Aconselhar a Aconselhar a
abster-se diminuir ou a
reduzir a limites de
baixo risco.
Planejar objetivos

Passo IV – Monitorar o Progresso do


Paciente.

É importante ressaltar a Intervenção Breve não é sinônimo de


terapia, mas se refere a uma intervenção de tempo limitado, que utiliza de
estratégias de educação, aconselhamento, técnicas centradas no cliente
enfocando mudanças comportamentais e monitoramento. A literatura aponta
o tempo de duração entre 5 a 20 minutos. Em relação ao número de sessões,
estudos mostram que não existe um número determinado para o começo,
meio e fim. Apesar disso, observa-se uma variação de 1 a 12 sessões de
atendimento (Marques & Furtado, 2004).

124
O conhecimento sobre elementos de técnicas motivacionais são
fundamentais, tais como aquelas sugeridas de acordo com o Modelo
Transteórico, que enfocam que a efetividade da intervenção depende da
capacidade do profissional aplicar a técnica adequada ao estágio de
prontidão para mudança, seja ele de pré-contemplação, contemplação,
preparação, ação ou manutenção, tal como descrito no quadro 3. (Vilella et
al., 2009).

Quadro 3 - Opções para a modificação do comportamento de acordo com


os estágios de mudanças (Miller & Rolnick, 1991).
Estágio de Opções
Mudança
Pré – Fazer um registro diário do uso do álcool (avaliação do
Contemplação padrão de consumo).
Discutir e refletir sobre o comportamento do beber, de
modo a levantar dúvidas sobre a continuidade do
consumo.
Contemplação Fazer um quadro com os prós e contras e relacioná-los
as vantagens de beber e não beber.
Considerar uma tentativa de diminuição ou abstinência
dependendo do problema por 2 a 4 semanas.
Fornecer materiais para leitura (panfletos educativos)
Sugerir a participação em grupos de terapias, auto –
ajuda.
Preparação Discutir as opções disponíveis para favorecer a
redução do consumo ou para tratamento
Revisar os recursos de apoio familiar e social para
mudanças
Estabelecer metas para o nível de consumo ou
abstinência
Planejar ações
Ação Reforçar os benefícios da modificação comportamental
e discutir dificuldades
Manutenção Realizar monitoramento do comportamento
modificado, identificando situações de risco, de modo
a prevenir recaídas

Como pode ser observado, rastrear e aplicar a Intervenção Breve


significa utilizar um recurso simples e barato que pode ser implementado
não apenas pelo enfermeiro, mas por diversos trabalhadores da saúde em
diversos contextos. Por se tratar de uma prevenção universal, é aplicável a

125
toda a comunidade, sejam às próprias pessoas que fazem uso abusivo de
álcool ou seus familiares e amigos. O único requisito para uma aplicação
adequada e consequentemente mais efetiva, é que o profissional receba um
treinamento rápido que inclua conteúdos sobre abordagem do usuário,
aplicação de instrumentos de rastreamento e intervenções breves, incluindo
o aconselhamento breve.

O Papel do Enfermeiro, os Aspectos Básicos da Relação Enfermeiro-


Paciente e as Estratégias de Rastreamento e Intervenção Breves

O modelo de Intervenção Breve, que inclui o rastreamento como


uma ferramenta essencial, foi originalmente desenvolvido para aumentar a
motivação para a mudança do comportamento em relação ao uso da
substância e estimular a capacidade do indivíduo em se auto-avaliar, auto-
monitorar e auto-regular os comportamentos pelos quais ele deseja que
sejam alterados. A aplicação destas estratégias exige uma abordagem
adequada e centrada na problemática do álcool enquanto problema de
saúde. O aconselhamento breve (nos casos de indivíduos que podem estar se
expondo a risco ou já sofreram algum dano em virtude do uso excessivo de
álcool) e o monitoramento podem ser pensados e bastante relacionados com
aspectos básicos da relação enfermeiro-paciente, muito úteis para viabilizar
e tornar mais efetiva esta tecnologia em saúde.
Neste contexto, o vínculo, a aceitação, a empatia e a confiança
podem representar para o enfermeiro ferramentas fundamentais para
abordar a questão do álcool, assim como para acompanhar e monitorar o
sucesso na redução ou abstinência do consumo ou ainda, acolher as
dificuldades do indivíduo a quem assiste. A comunicação também exerce
um papel extremamente relevante, na medida em que é um instrumento
básico e sinaliza para o profissional o quanto sua intervenção preventiva
tem feito sentido.
Filizola e Pavarini (2002) discorrem sobre vínculo enquanto
envolvimento emocional maduro, ou seja, como a capacidade de
transcender-se e interessar-se por outra pessoa sem que este interesse
interfira na ajuda a ser oferecida ao outro, reconhecendo-o como um ser
único. Para realizar o rastreamento e a Intervenção Breve, o vínculo não se
constitui em um pré-requisito, entretanto, quando este vínculo já existe,
espera-se que o momento da abordagem do assunto seja mais favorável e se
necessário realizar o monitoramento, a perspectiva também se torna mais
positiva.
A aceitação não implica somente em compreender os
comportamentos do outro, nem tampouco concordar com os mesmos.
126
Significa apenas reconhecer o significado que tais comportamentos
adquirem para um indivíduo (Filizola & Pavarini, 2002). Um enfermeiro
pode aceitar que um usuário de sua unidade de saúde venha fazendo uso
abusivo de álcool, mas pode não concordar com este comportamento. A
demonstração de aceitação favorece o despertar de um sentimento de
segurança e confiança por parte do sujeito assistido, o que
conseqüentemente facilita acessar e compreender as razões, os fatores de
risco e as situações que permeiam o uso de álcool.
Empatia é primordial para realização de uma Intervenção Breve,
tanto que se constitui em um dos sete elementos que fundamentam e
caracterizam essa intervenção. Pode ser definida, segundo Rogers (1977),
no estado de aperceber-se do quadro de referências internas e significados
do outro.
Ao abordar a questão do álcool na aplicação de um instrumento de
rastreamento ao indivíduo é prudente que seja garantido o anonimato das
informações e que seja explicado o motivo de tal investigação, portanto,
uma postura profissional com credibilidade pode cooperar muito para a
obtenção de respostas honestas. Pode-se realizar essas ações preventivas em
um primeiro contato do enfermeiro com o cliente e se uma boa abordagem
for feita, este momento pode ser o disparador para a construção de uma
relação de confiança que se for plenamente estabelecida, pode colaborar
muito para que o enfermeiro tenha melhores condições para ajudar o
paciente no sucesso em atingir metas assumidas voluntariamente.
Outros elementos, que junto com a empatia constituem os pilares
da Intervenção Breve são: retroalimentação, responsabilidade,
aconselhamento, menu e auto-eficácia (Marques & Furtado, 2004). Todos
eles podem ser melhor trabalhados se os pressupostos básicos da relação
enfemeiro-paciente supracitados forem levados em conta.
A retroalimentação ocorre quando é feita a comunicação dos
resultados da avaliação do seu consumo do álcool. Consiste na devolutiva
dos resultados obtidos na aplicação de um instrumento de rastreamento
(Marques & Furtado, 2004).
A “responsabilidade” tem a ver com a autonomia, compromisso e
posicionamento do paciente frente a mudança de comportamento a que se
propõe (Marques & Furtado, 2004).
O aconselhamento, tal como descrito anteriormente, depende da
avaliação do estágio de prontidão para mudança do paciente. Corresponde
às orientações e recomendações que o profissional deve oferecer ao
paciente. Nesta etapa, a questão da aceitação é imprescindível, pois a
intervenção deve ser desvinculada de juízo de valor moral ou social e deve
preservar a autonomia de decisão do paciente (Marques & Furtado, 2004).

127
"Menu" consiste em fornecer ao paciente um catálogo de
alternativas de ações possam ser reais e implementadas por ele (Marques &
Furtado, 2004). Para que este menu cumpra com seu objetivo de auto-ajuda
ou para mostrar opções de tratamento disponíveis, é desejável que o
enfermeiro se proponha a estabelecer um diálogo significativo, no qual se
discuta a problemática do álcool na perspectiva do “aqui e agora”, de modo
a haver pertinência entre ao que o indivíduo traz como causas para o beber e
o conhecimento e habilidade técnica do profissional utilizada para ajudar o
paciente a estabelecer metas que o beneficiem. Isto está intimamente ligado
com a auto-eficácia, pois o foco do profissional é sempre o de “promover e
facilitar a confiança do paciente em seus recursos e em seu sucesso,
correspondendo a um reforço do otimismo e autoconfiança, voltado a uma
maior autopercepção da eficácia pessoal e da consecução de metas
assumidas” (Marques & Furtado, 2004).

Desafios

As publicações internacionais e nacionais de enfermagem deixam


evidente que os enfermeiros pouco incluem em suas rotinas medidas
preventivas para o uso e abuso do álcool, incluindo testes que permitam a
identificação e as orientações sobre problemas relacionados a este uso.
Inúmeras causas poderiam ser apontadas para explicar esta situação,
entretanto, o exercício dos aspectos básicos do relacionamento enfermeiro-
paciente que tem como premissa a mutualidade, ou seja, o convívio e as
trocas entre os indivíduos, intensamente mediadas pelos sentimentos, tanto
de um como pelo de outro poderiam facilitar o processo de abordagem e
monitoramento da abstinência ou redução do consumo de álcool do
paciente, já que é importante que os envolvidos no relacionamento
mantenham o diálogo franco e exponham suas percepções, para evitar
distanciamento, superficialidade e incomunicabilidade (Chaves et al., 2008).
Frente ao exposto, infelizmente o enfermeiro, especialmente aquele
atuante em áreas não-especializadas em psiquiatria ou saúde mental, ainda
encontra muita dificuldade em vislumbrar a enfermagem como processo
interpessoal (Filizola 1997; Lima et al., 2010), no qual tanto o profissional,
quanto o paciente podem obter crescimento e desenvolvimento pessoais,
portanto, no contexto que aqui discutimos, se faz necessário treinar e
capacitar a enfermagem não apenas em estratégias de rastreamento e
intervenção breves, mas também incentivar e mostrar um aspecto prático e
necessário do conhecimento pertinente às relações interpessoais para que
não somente a assistência, mas também as medidas preventivas
implementadas por enfermeiros sejam mais efetivas nos diversos âmbitos de
serviços à saúde. É possível reforçar esta idéia, considerando preceitos da
128
ótica de Travelbee, que afirma que o grande desafio da Enfermagem é
entender seu paciente, dentro do seu mundo, das suas angústias e de seus
anseios, proporcionando um cuidado mais ético e humanizado (Travelbee,
1979).

Considerações Finais

Com o novo panorama das políticas públicas brasileiras, a inclusão


da problemática do álcool na Atenção Básica configura-se em um novo
campo de atuação da enfermagem psiquiátrica, que em virtude disso, deve
passar a ser praticada não somente nos serviços especializados.
A realização práticas preventivas para o uso do álcool, tal como o
rastreamento e a Intervenção Breve, exige não apenas capacitação para a
identificação de problemas e o oferecimento de aconselhamento, orientação
e, em algumas situações, monitoramento periódico, mas também inclui a
perspectiva de transformação o cuidado, pois a enfermagem se depara com
uma nova demanda neste contexto. Com isso, o profissional envolvido com
seu trabalho deve objetivar a melhora do grau de saúde de seu paciente,
sendo capaz de fornecer assistência necessária, possuindo um corpo de
conhecimento especializado e encarando a sua prática como um processo
interpessoal (Oliveira et tal., 2005).

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130
12

O CUIDADO DO ENFERMEIRO E O
RELACIONAMENTO INTERPESSOAL

Rejane Maria Dias de Abreu Gonçalves


Renata Maria Dias de Abreu
Quênia Cristina Gonçalves da Silva
Leila Aparecida Kauchakje Pedrosa

O HOMEM ESTÁ MAIS DISTANTE


DAQUILO QUE ESTÁ MAIS PRÓXIMO
DE SI (SEU PRÓPRIO EU)
Nietzsche

Vale lembrar que a prática da Enfermagem está associada a vários


acontecimentos históricos, culturais e religiosos e sua evolução, enquanto
profissão nasce da necessidade de atender aos interesses políticos, sociais e
econômicos. A enfermagem profissional nasceu sob o modo de produção
capitalista, o que determinou seu processo de trabalho (Pires, 2009; Martín
et al.,1997).
Kawamoto e Fortes (1997) ressaltam que a retomada do passado
vem demonstrar que as práticas de saúde são muito antigas. Por muitos
séculos, o cuidado de enfermagem foi exercido de forma empírica, pelas
mães, por sarcedotes, feiticeiros e religiosos. No entanto, ressaltam que, a
partir do século XX os conceitos sobre enfermagem sofreram modificações
influenciadas pela ação de Florence Nightingale.
Com Florence, o cuidado ganha especificidade em relação à
divisão do trabalho social, incorpora atributos de um campo de atividades
especializadas e reconhecidas, socialmente, como necessárias. O exercício
profissional constitui um estudo sistematizado, com reflexão teórica
investigativa que busca subsídios para a solução dos permanentes desafios e
problemas acrescentados na dialética da vida em sociedade (Pires, 2009).
Os autores relatam que, neste período, surgiram as concepções
teórico-filosóficas de enfermagem desenvolvidas por Nightingale através
das observações sistematizadas e registros estatísticos obtidos de sua
experiência prática no atendimento diário a doentes. Dessa vivência, foram
categorizados quatro conceitos fundamentais: ser humano, meio ambiente,
saúde e enfermagem. Esses conceitos foram considerados revolucionários
para sua época e, ainda hoje, se identificam com as bases humanísticas da
enfermagem, tendo sido revigorados pela teoria holística.

131
A dinamização do relacionamento da equipe de enfermagem,
assim como da equipe multiprofissional poderá propiciar uma
comunicação mais efetiva e, é possivel que os enfermeiros sentirão mais
valorizados mais seguros no desempenho do seu trabalho, favorecendo,
inclusive o enfrentamento da crise e das situações adversas sendo assim o
enfermeiro estará promovendo sua saúde o que poderá reverter também
na atenção prestada à saúde da população atendida (Montanholi, 2006).
Com o objetivo de buscar a integralidade do cuidado à saúde, nas
diversas áreas, a formação do enfermeiro deve contemplar o relacionamento
interpessoal. Esse processo que precisa ser sustentado e valorizado consiste
em responder ao sofrimento do indivíduo que busca o serviço de saúde,
fornecendo um cuidado integral que vai além das demandas expressas e
atenda às necessidades do cidadão no se refere a sua saúde e não se reduza
somente ao biológico (Mattos, 2001).
Destaca-se o perfil do enfermeiro em seu campo profissional com
funções multideterminadas e dependentes de sua formação acadêmica, suas
características pessoais e características sociais, que muitas vezes, ainda
sofrem a influência das políticas de saúde (Baldi, 1992). Trata-se de uma
profissão que integra diferentes saberes, diferentes profissionais, diferentes
especialidades, incorpora a produção de novas tecnologias influenciada,
pela renovação dos saberes e evolução da ciência.
Todos esses fatores contribuíram para uma expansão da rede de
formação de profissionais de enfermagem e que, hoje, com o novo
paradigma da saúde, a formação do pessoal da área de enfermagem é
reconhecida pelo Ministério da Saúde como fundamental para a consecução
dos princípios e das diretrizes gerais do Sistema Único de Saúde (SUS). O
cotidiano das relações de atenção e da gestão setorial e a estruturação do
cuidado à saúde devem se incorporar ao aprender e ao ensinar, formando
para a saúde integral.

O Trabalho do Enfermeiro e o Relacionamento Interpessoal

As relações interpessoais são processos que envolvem o convívio e


trocas entre os indivíduos, por isso são intensamente mediadas pelo
sentimentos, tanto de um como de outro, sendo importante que os
envolvidos no relacionamento mantenham o diálogo franco e exponham
suas percepções para evitar distanciamento, supercialidade e
incomunicabilidade (Pinho & Santos, 2007).
Nós seres humanos somos sociáveis e segundo Fonseca (2008), as
relações interpessoais são vínculos de importância significativa . Elas
revelam que uma pessoa pode influenciar atitudes e comportamentos de
outras. O ser humano constitui-se a partir da estruturação de sua relação
132
com o outro. A vida em sociedade, permite a criação de apoio social nos
diferentes ambientes onde o ser humano se encontra, e este apoio acaba
produzindo benefícios tanto para quem apóia quanto para quem o recebe.
A prática em enfermagem, caracterizada pela interação sistemática
durante o cuidado, é marcada pelo desenvolvimento de relações
interpessoais necessárias à resolução de problemas. São estas características
que tornam possível a manutenção da integridade do indivíduo, respeitada
sua autonomia e liberdade. Ao desenvolver o relacionamento interpessoal
na manutenção da saúde, o enfermeiro possibilita e estimula a promoção da
relação do paciente com seu corpo, seu círculo social, sua família e suas
capacidades atuais (Silveira, 2009; Furegato & Morais, 2006).
Para garantir a qualidade da assistência prestada, o enfermeiro
necessita de habilidades e observações durante as intervenções com os
indivíduos. Estas necessidades determinarão o sucesso ou fracasso no
processo terapêutico e no cuidado. Para aplicação desta observação, faz-se
importante a realização, pelo enfermeiro, de um levantamento de dados,
contando-se, para isso, com um instrumento direcionado, conforme a sua
realidade, habilidades e conhecimentos científicos (Peplau, 1965).
Para isso, o enfermeiro melhora a qualidade de seu trabalho,
priorizando a organização, planejamento, direção, avaliação das ações em
seu atendimento e uma abordagem mais humanística com uma pessoa que
enfrenta uma experiência de adoecimento (Furegato & Morais, 2006).
A enfermagem, então, pode ser entendida como um processo
interpessoal pelo fato de envolver interação entre duas ou mais pessoas,
com uma meta comum. Em enfermagem, essa meta comum proporciona o
incentivo ao processo terapêutico, no qual profissional de enfermagem e
paciente respeitam-se mutuamente, ambos aprendendo e crescendo como
um resultado da interação (Belcher & Fish, 2002).
A conquista dessa meta, ou de qualquer outra, é obtida através do
uso de uma série de passos que seguem determinado padrão. Uma vez que a
relação do enfermeiro com o paciente desenvolve-se nesse padrão
terapêutico, há uma flexibilidade na maneira como o profissional age, na
prática, fazendo julgamentos, utilizando habilidades fundamentadas no
conhecimento científico, utilizando habilidades técnicas e assumindo papéis
(Belcher & Fish, 2002).
Peplau identifica quatro fases sequenciais nas relações
interpessoais, que são: orientação, identificação, exploração e resolução à
compreensão do relacionamento enfermeiro-paciente. A segunda e a
terceira fase podem ocorrer em um processo contínuo e em conjunto
denominado como fase de trabalho (Peplau, 1993).
A fase de orientação ocorre quando o paciente e/ou família
percebem a necessidade de ajuda e procuram a assistência profissional.
133
Desse modo, a partir do primeiro contato, juntos, passam a identificar e
compreender os problemas existentes (Peplau, 1991). Nesta primeira fase,
ocorre o levantamento de dados no processo de enfermagem (Belcher &
Fish, 2002).
A fase de identificação ocorre quando se esclarece a primeira
impressão do paciente e este aponta, seletivamente, as pessoas que
conseguem satisfazer suas necessidades e ajudam no processo terapêutico
satisfatório. Dessa forma, passa a adotar uma das seguintes posturas: ser
interdependente com ele, ser autônomo e interdependente do enfermeiro ou
ser passivo e dependente do profissional (Peplau, 1991). Ao término desta
fase, são identificados os diagnósticos de enfermagem (Belcher & Fish,
2002).
A fase de exploração ocorre após identificar, entre os membros, a
compreensão das relações interpessoais que visa explorar todos os serviços
de saúde e da comunidade que possam apoiar no processo terapêutico
(Peplau, 1991). Neste momento, fica evidente o planejamento com
estabelecimento de metas e objetivos e intervenções (Belcher & Fish, 2002).
Na última etapa do processo interpessoal, fase de resolução,
espera-se que as necessidades do paciente e/ou família tenham sido
satisfeitas e implica no desfazer a relação de dependência, para uma
assistência fortalecida na capacidade para agir por si mesmo, através dos
esforços cooperativos do indivíduo, familiares e profissionais de maneira
cuidadosa, sendo estes previamente preparados (Peplau, 1993). Esta parte
da teoria representa, no processo de enfermagem, a fase de avaliação
(Belcher & Fish, 2002).
Dessa forma, o trabalho educativo do enfermeiro, junto à
comunidade, pode contribuir para a formação, a promoção, a reabilitação e
a autonomia dos usuários. Com esta teoria, o enfermeiro encontra subsídios
para embasar o seu trabalho educativo e desempenhar, da melhor maneira, a
assistência em saúde mental, junto ao paciente, família e sociedade, mesmo
que seja o ambiente hospitalar o contexto predominante na teoria. A
enfermeira pode fazer com que os cuidados de saúde sejam conduzidos do
hospital para a comunidade (Peplau, 1993; Almeida, Lopes & Damasceno,
2005).
Seguindo essa direção, algumas inquietações nortearam o
desenvolvimento do estudo: os enfermeiros devem munir-se de
instrumentos que possibilitem melhor entendimento sobre o relacionamento
interpessoal, o que permitirá adequar os cuidados básicos, para planejar e
implementar ações em saúde, visando à melhoria da qualidade da
assistência, contribuindo para discussões desta temática, em nível nacional.
Assim, o estudo tem como objetivo descrever as ações dos
enfermeiros no primeiro contato com o usuário na Estratégia Saúde da
134
Família (ESF) e identificar a importância dessas ações para o
relacionamento interpessoal, no município de Uberaba-MG.
Metodologia

O estudo é de caráter descritivo e transversal e foi realizado nas


ESFs do município de Uberaba/MG. O município conta com 47 equipes de
saúde da família cadastradas no ano de 2009. A população estudada foi
constituída por enfermeiros vinculados às ESFs, tendo-se usado como
critério de inclusão o profissional fazer parte da ESF desse município, por
no mínimo um ano e concordar em participar da pesquisa. Foram excluídos
os enfermeiros que não responderam ao instrumento de coleta de dados e/ou
aqueles que estavam afastados do serviço no período da realização dessa
coleta. Ao todo, 45 enfermeiros responderam ao questionário, enquanto dois
foram excluídos por não atenderem aos critérios de inclusão.
Os dados foram coletados no período de fevereiro a maio de 2009,
por meio de um instrumento estruturado e com perguntas dicotômicas e
analisados através da estatística descritiva, previamente testado por meio de
um estudo-piloto.
As variáveis do estudo foram: acolhimento, orientações,
encaminhamento, escuta, exame físico, levantamento das necessidades
básicas do usuário, atenção à comunicação verbal, atenção à comunicação
não verbal e nenhuma ação.
Este estudo é parte integrante da dissertação de mestrado
desenvolvida sob o título Ações dos enfermeiros em saúde mental na ESF,
aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da
Universidade Federal do Triangulo Mineiro (UFTM) (protocolo n.º
1242/08).

Resultados e Discussão

Entre as ações realizadas pelos enfermeiros na ESF para


estabelecer uma boa relação enfermeiro-usuário, no primeiro contato, a
mais mencionada foi o acolhimento, 45 (100%), seguida de escuta, 38
(84,4%); orientações, 28 (62,2%); levantamento das necessidades básicas
do usuário, 27 (60%) e atenção à comunicação verbal, 27 (60%).
Vale destacar, entre os resultados, que 31 (68,9%) dos pesquisados
não responderam que o encaminhamento é uma ação realizada no primeiro
contato, bem como 29 (64,4%) não estão atentos à comunicação não verbal,
o que corresponde à ocorrência do predomínio da linguagem verbal sobre a
linguagem não verbal entre os participantes do estudo.

135
Nas ações realizadas pelos sujeitos da pesquisa no primeiro contato
com os usuários na ESF, destacam-se o acolhimento, a escuta e a
orientação.
Esses resultados obtidos corroboram com estudos que têm
demonstrado que as intervenções de saúde devem estar pautadas em uma
interação terapêutica que busca garantir a escuta, o cuidado, o vínculo, o
acolhimento e a co-responsabilização do sujeito por sua saúde. As pessoas,
portadoras ou não de uma patologia orgânica, passam a evidenciar, através
de seus sintomas e queixas, uma posição subjetiva singular na relação com
sua própria saúde e vida (Labosque et al., 2005; Munari et al., 2008).
O acolhimento pode caracterizar, na ESF, uma efetividade em
relação aos princípios e diretrizes importantes para a prática, como a
integralidade, o vínculo e a resolutividade. Em relação à operacionalidade,
caracteriza-se pela organização e funcionalidade do serviço de saúde,
atender as pessoas que procuram pelo serviço, com a função de acolher,
escutar, capaz de dar respostas positivas e de resolver os problemas de
saúde da população (Buchele et al., 2006).
No primeiro encontro, a enfermeira e o usuário têm objetivos e
interesses totalmente distintos. Têm seus próprios preconceitos sobre o
significado da situação e dos papéis de cada um no encontro. Com o
trabalho realizado juntos, começam a chegar a um entendimento mútuo
sobre a situação e estabelecer metas comuns que incidem sobre a saúde do
indivíduo (Mok & Chiu, 2004).
Considera-se que a falta de tempo para o acolhimento, ou a rápida
realização dessa atividade, visto que as equipes buscam agilizar o
atendimento devido ao excesso de demanda na unidade, ou, talvez, pela
questão da produtividade exigida pelos gestores, podem influenciar no
tempo dispendido para o acolhimento prejudicando o diálogo e a escuta.
Espera-se com o acolhimento a produção do encontro entre o
profissional de saúde e o usuário, uma interação interpessoal e de troca
mútua. Essa prática permite um momento de escuta, no qual o profissional
volta-se ao sujeito com empatia e afabilidade (Mielke, 2009).
Stefanelli (1993) cita que, na enfermagem, o envolvimento,
empatia e respeito mútuo são a arte e a ciência da profissão. Desta forma,
pode-se considerar que essas ações na enfermagem constituem-se em
importantes estratégias de cuidado e ferramentas essenciais no trabalho em
saúde, particularmente em saúde mental, quando se dá a oportunidade ao
sofrimento do outro, a uma relação de confiança, permeada pelo vínculo e
pelo compromisso.
A importância da empatia na interação terapêutica parece ser um
conjunto de objetivos comuns, tais como: iniciar a comunicação
interpessoal a fim de compreender as percepções e necessidades do usuário;
136
habilidade do mesmo de aprender ou lidar de forma mais eficaz com seu
ambiente e redução ou resolução de seus problemas (Peplau, 1991; Mercer
& Reynolds, 2002).
Pinho e Santos (2007) referem-se que a falta de motivação dificulta
o estabelecimento do relacionamento interpessoal, mesmo que haja a
intenção de que ocorra, parece ficar na superficialidade por causa da pouca
disponibilidade pessoal do cuidador.
Um estudo realizado em Florianópolis-SC, com 1.800 enfermeiros,
93% deles afirmaram sentirem-se estressados no trabalho. Constatou-se
que a falta de um bom relacionamento interfere diretamente na assistência
prestada e na satisfação no trabalho, gerando maior estresse para a equipe
de enfermagem desta unidade. Existindo assim outras fontes de estresse
relacionado com o cotidiano são eles: a comunicação deficiente, a
utilização de mecanismos de defesas inadequados como à impaciência e a
não realização do trabalho em equipe, a falta de cooperação espontânea, a
sobrecarga de trabalho para alguns elementos da equipe e a falta de
continuidade das ações iniciadas. A qualidade dos cuidados não está
somente relacionada à habilidade técnica, mas também ao bem estar
psicológico dos profissionais (Coronetti, 2006).
A capacidade de comunicar permite ao homem compartilhar sua
própria experiência e o conhecimento do indivíduo que se comunica com
os demais acerca de si mesmo. A comunicação precisa e eficaz exige um
tipo de comportamento adquirido e requer tempo e esforço para cada um
dos participantes (Travelbee, 1982).
A comunicação deve estar relacionada com a capacidade e a
competência a ser adquirida pelo enfermeiro, atendendo às necessidades do
usuário e respeitando os aspectos culturais e ambientais. A fase de
orientação da teoria do relacionamento interpessoal proposto por Peplau
(1991) assemelha-se com este aspecto e, segundo Shives (1994, p. 91), nesta
fase, se busca construir a confiança, o suporte, criar um ambiente
terapêutico, avaliar os pontos fortes e as fraquezas do sujeito, a fim de
estabelecer um modo de comunicação aceitável para ambos.
Ainda, neste estudo, destaca-se a relevância dos pesquisados em
realizar as ações voltadas para o levantamento das necessidades básicas dos
usuários e a atenção à comunicação verbal, já no primeiro contato.
Para o levantamento dessas necessidades básicas, durante a
consulta de enfermagem, o exame físico deve ser entendido como parte
integrante e representa um dos meios que complementam o levantamento de
problemas que necessitam de ações dos enfermeiros que visam contribuir na
melhoria da qualidade da assistência (Barros, 2002).
Neste estudo, vale ressaltar que poucos enfermeiros (26,7%)
responderam que realizam o exame físico no primeiro contato.
137
Para que se possam obter dados relevantes para assistência de
enfermagem, faz-se necessário, além da habilidade na execução do exame
físico, competência profissional para discernir o que se encontra dentro dos
limites normais que requerem intervenção e interpretação do que está sendo
percebido (Barros, 2002).
Peplau (1991) define a comunicação como um processo
interpessoal que envolve a seleção de sinais e conceitos que são importantes
para definir, de alguma forma, o desenvolvimento de um entendimento
comum. A comunicação verbal do enfermeiro com o paciente torna-se
produtiva quando o enfermeiro desenvolve a consciência de seus padrões
verbais e a oportunidade de avançar no aprendizado do indivíduo.
Acrescenta, ainda, que conversar com os indivíduos é mais que um
bate papo social, representa a responsabilidade do uso das palavras em um
processo de ser produtivo. Adiciona que os gestos corporais que usam
podem influenciar a interação com os sujeitos e não somente a resposta
verbal (Peplau, 1960).
O enfermeiro deve estar atento ao uso adequado das técnicas de
comunicação verbal e não verbal, captando e interpretando-as
adequadamente, demonstrando confiança buscando criar um vínculo entre
ambos (Peplau, 1960; Furegato, 1999; Silva, 1996).
Observou-se, entre os pesquisados, que somente (35,6%)
responderam que estão atentos à comunicação não verbal no primeiro
contato. Nota-se, neste estudo, a dificuldade do enfermeiro em estabelecer a
comunicação não verbal com o usuário na ESF.
Furegato (1999) ressalta que o enfermeiro deve estar atento à sua
expressão, gestos, olhares ou palavras que podem ser interpretadas pelo
outro como ameaçadores. O comportamento congruente pode minimizar os
sentimentos de ameaça sentidos pelo outro, gerando efeito terapêutico e
transparente.
Stefanelli (1993, p. 15) ao se referir ao processo de comunicação
observa que:

A comunicação já não pode mais ser considerada apenas como um


dos instrumentos básicos da enfermagem ou do desenvolvimento do
relacionamento terapêutico. Ela tem de ser considerada como
capacidade ou competência interpessoal a ser adquirida pela
enfermeira não importando sua área de atuação. É a competência
interpessoal, usada de modo terapêutico que vais permitir à
enfermeira atender às necessidades do paciente em todas suas
dimensões levando em consideração a sua cultura e o ambiente.

138
Na maioria das vezes, a comunicação não verbal traduz o estado
emocional da relação enfermeiro-usuário através do contato físico, postura,
aparência física, o tom emocional da fala, o silêncio se faz presente durante o
cuidado do enfermeiro, diante da constatação de que não se comunicar é
impossível diante dos diversos procedimentos. Com isso, a comunicação
verbal acontecerá naturalmente, como consequência do diálogo (Silva,
1996).
Os profissionais da saúde têm, na comunicação, um fator essencial
para exercer ações com qualidade e humanização, buscando o conhecimento
dos usuários, pois, através dela, são capazes de interagir, dialogar e
compreender suas necessidades, proporcionando uma assistência integral e
individualizada aumentando sua satisfação em relação ao atendimento e
minimizando seus anseios, dúvidas e medos (Silva, 1996; Furegato, 1999).

Considerações Finais

Ao enfermeiro vale o esforço de considerar que, como ser humano,


suas emoções, anseios, preconceitos podem estar presentes no trabalho que
desempenha. Estes aspectos podem refletir em suas ações e, certamente,
serão obstáculos para o estabelecimento de uma relação futura com o
usuário. Essa interação deve acontecer naturalmente e, por isso cabe aos
enfermeiros uma atenção para as suas condutas e conceitos pré-definidos
que vão influenciar e contribuir para o atendimento das necessidades
humanas do indivíduo.
O primeiro contato é um momento em que se estabelece a
qualidade da relação enfermeiro-usuário, o qual irá permear a toda a
assistência de enfermagem prestada. Alguns pontos devem ser observados
para maior eficiência do cuidado. O indivíduo deve estar confortável, deve-
se permitir que ele se expresse plenamente usando uma linguagem
compatível com o nível cultural do mesmo e estar atento para a
comunicação não verbal.
Acredita-se que o estabelecimento da comunicação não verbal não
seja um procedimento fácil de ser levado em conta no primeiro contato,
devido aos aspectos culturais, crenças e valores de cada pessoa. Por isso, a
importância de realizar estudos que busquem observar, na prática, a
realização desta modalidade de comunicação, através da interação do
enfermeiro com o portador de transtorno mental na ESF.
A enfermagem aproxima o conhecimento individual da habilidade
profissional a qual deve buscar um amadurecimento do relacionamento
interpessoal que pode ser fornecido na atenção primária como uma forma
eficaz de ajudar os portadores de transtorno mental.

139
Os resultados deste estudo trouxeram informações para incentivar
o desenvolvimento do projeto terapêutico em parceria com o portador de
transtorno mental, como uma forma para se chegar à resolução dos
problemas que afetam o indivíduo, a família e a comunidade, valorizando
sua autonomia, a interação com as pessoas e a comunicação.
A ESF, ainda hoje, é considerada uma estratégia de desafio entre os
profissionais de saúde devido ao seu enfoque centrado na atenção na
promoção da saúde do indivíduo inserido na comunidade e, por ser tratar de
um programa que pode ampliar o trabalho bem como aprimorar o horizonte
profissional por se tratar de uma experiência nova, com enfoque generalista
e inovador na carreira do profissional em saúde.
Diante do exposto, espera-se que este estudo subsidie ações que
possam contribuir na elaboração de estratégias que favoreçam os
enfermeiros nas ações de promoção da saúde mental para melhoria de sua
assistência junto aos portadores de transtornos mentais na ESF.

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142
13

RELACIONAMENTO INTERPESSOAL E A
ADESÃO NA FISIOTERAPIA

Marina Medici Loureiro Subtil

Os serviços de saúde oferecidos à sociedade geralmente são


mediados por relacionamentos entre profissionais que prestam o serviço e
os pacientes que os recebem. As pesquisas sobre essa forma de
relacionamento, contudo, tem contemplado mais o relacionamento
interpessoal entre médicos e pacientes, com ênfase nas questões ligadas ao
processo de comunicação estabelecido entre essas partes (Garcia, 2005). No
diagnóstico dado pelo médico e a terapêutica administrada, a familiaridade,
a confiança e a colaboração estão implicadas nos resultados satisfatórios
(Gadamer, 1994). A proposta de conhecer melhor os aspectos envolvidos no
adoecimento do paciente é responsável pela efetiva promoção da saúde, ao
considerar o enfermo em sua integridade física, psíquica e social e não
somente de um ponto de vista biológico (Wulff, Pedersen & Rosemberg,
1995).
O papel do escutar o paciente é destacado por Marinho (1995)
como importante na relação terapêutica estabelecida, além de favorecer a
criação de um espaço na relação onde o paciente tem a permissão de
expressar-se e ambos participam efetivamente do processo de cura. Neste
caso, o paciente se sente aceito, compreendido, amado e sem culpa.
Um dos fatores necessários para que a fisioterapia atue diretamente
no processo de reabilitação do paciente é na maneira como o paciente se
relaciona com o fisioterapeuta e vice-versa. A partir da prática profissional,
pode-se observar que, à medida que os pacientes se envolvem no tratamento
fisioterapêutico, relações interpessoais marcadas pela afetividade se
desenvolvem, as quais podem afetar o curso e a qualidade do tratamento em
questão. No caso da fisioterapia, esse relacionamento é fundamental, uma
vez que o tratamento pode se estender por anos, com um contato freqüente,
até várias vezes por semana e com uma proximidade expressiva, devido à
natureza do atendimento, incluindo o próprio contato físico. A
reciprocidade também favorece as aquisições de habilidades interativas,
bem como a evolução de um conceito de interdependência (Ribeiro, Moraes
& Beltrame, 2008). Segundo Copetti (2001) a reciprocidade pode gerar uma
motivação capaz de levar os indivíduos a prosseguirem e acelerarem suas
atividades, melhorando o padrão de aprendizagem e consequentemente os
quadros de saúde física e mental.

143
Os profissionais de saúde que se propõem a tratar o paciente
precisam buscar o sentido e o significado da queixa que o cerca. A leitura
parcial desse paciente representa, de certa forma, a fragilização da relação
terapêutica (Loyola, 1984) quando desconsidera que a eficácia terapêutica
depende de todos os atos que envolvem o encontro entre o paciente e o
profissional (Ferreira, 1993).
Durante as sessões de fisioterapia é necessário que o paciente não
apenas observe e execute as atividades propostas pelo fisioterapeuta, mas
que esse (paciente) se reconheça como ativo e chave fundamental no
processo terapêutico. Afinal, a efetividade do tratamento encontra-se numa
via de mão dupla, onde os pacientes precisam ser participantes ativos sob a
orientação do fisioterapeuta. A tendência é que à medida que os
participantes se envolvam em relações interpessoais, características como
afetividade, reciprocidade, confiança, respeito e vínculo se desenvolvam e
se tornem mais evidentes.
Neste panorama, o desenvolvimento de relacionamento entre
fisioterapeuta e paciente apresenta-se como algo natural e muito provável de
acontecer entre essas partes, visto que o tratamento em questão apresenta
fatores favoráveis ao surgimento de um relacionamento interpessoal, tais
como longo período de convivência, estímulos táteis prolongados e
comunicação verbal em boa parte do atendimento fisioterapêutico.
O interesse em estudar o fenômeno da adesão na fisioterapia com
base no relacionamento estabelecido entre fisioterapeutas e pacientes
firmou-se como o objetivo central da minha dissertação (Subtil, 2010).
Considerando a escassez de trabalhos sobre o tema no campo da
fisioterapia, o estudo teve caráter qualitativo e exploratório, avaliando uma
amostra de pacientes e fisioterapeutas de um centro de reabilitação pública
do Espírito Santo.
Fizeram parte da pesquisa 11 pacientes adultos de 25 a 73 anos,
com diagnósticos clínicos variados, como fraturas ósseas, degenerações
articulares e reabilitação de pós operatórios ortopédicos; além de quatro
fisioterapeutas atuantes na equipe em que esses pacientes foram atendidos.
Tanto os pacientes quanto os fisioterapeutas foram submetidos a
uma entrevista com um roteiro semi-estruturado com tópicos que se
propuseram a compreender os fatores envolvidos ao processo de adesão na
fisioterapia.
A análise dos dados seguiu os três passos da fenomenologia-
semiótica: descrição, redução e a interpretação. A descrição consistiu numa
separação de partes de um todo e numa demarcação de unidades de sentido
do texto original. A redução apresenta-se como uma síntese, já que agrupa
as partes separadas da descrição apontando os temas centrais do fenômeno
que serão analisados posteriormente na interpretação; a interpretação
144
organiza o conteúdo das unidades reduzidas em um texto que integra todos
os temas que compõem a experiência de cada indivíduo dentro do fenômeno
estudado, comparando-os com as pesquisas realizadas acerca da temática
escolhida (Gomes, 1998 ; Lanigan, 1992).
Os relatos dos pacientes sugeriram uma estrutura do fenômeno
organizada em torno de duas áreas temáticas: a) a fisioterapia e o bom
profissional: tem que ser profissional, mas tem que ser humano também; b)
adesão versus não adesão.
Resumidamente, as duas áreas temáticas apresentaram percepções
que incluíam ou citavam a questão da relação estabelecida entre o paciente e
o fisioterapeuta e a importância para o sucesso da reabilitação.
O bom fisioterapeuta foi visto como aquele que alia a habilidade
técnica à habilidade para o relacionamento interpessoal. O fisioterapeuta é o
profissional capaz de aliviar ou suprimir os sintomas dolorosos de cada
doença, tornado-os capazes de voltar às atividade de vida diária. Além da
competência técnica, o fisioterapeuta precisa saber relacionar-se com o
paciente, oferecendo a atenção individualizada, avaliando e cuidando
daquele que o procura de uma forma integrada, considerando tanto os
aspectos físicos como emocionais. Para ser considerado bom, o
relacionamento entre paciente e fisioterapeuta precisa envolver empatia,
reciprocidade, confiança e afeto. Todas essas qualidades foram percebidas
como determinantes do relacionamento e do sucesso do processo
terapêutico.

Tem que ter conhecimento, mas tem que conversar, ouvir, dar
atenção... (Paciente 07).
Não adianta ser muito bom na teoria se não sabe nem conversar
com o paciente e dar a atenção que ele precisa aqui...(Paciente 02).

O relacionamento entre os pacientes e os fisioterapeutas da unidade


de atendimento foi percebido como satisfatório, no entanto, consideram ter
pouco tempo de contato e baixa possibilidade de conversar com cada
terapeuta sobre seus problemas e a evolução na reabilitação.

Eu sei que eles atendem muitos pacientes por hora, e acho que talvez
por isso não possam nos dar a devida atenção, passar mais tempo
nos escutando, avaliando e tudo mais (Paciente 09).

A adesão ao tratamento é percebida como um processo que está


vinculado tanto ao paciente quanto ao profissional. Realizar o tratamento
fisioterapêutico até o final requer qualidades e aspectos daquele que trata e
daquele que é tratado. No caso dos pacientes, fatores como disciplina,
145
desejo de melhorar, assiduidade, confiança no profissional e na técnica
escolhida, compromisso e a realização das orientações quanto a execução
das atividades domiciliares figuram como determinantes para que o paciente
realize todo o tratamento na fisioterapia. Quanto aos fatores ligados aos
fisioterapeutas, os aspectos emocionais, ligados à forma como se dá o
relacionamento e o tratamento do profissional com o paciente aparecem
antes das habilidades técnicas. Oferecer atenção, carinho, respeito, amor,
confiança e afeto, foi percebido como essenciais para que o paciente sinta-
se motivado a continuar a fisioterapia.
O abandono da fisioterapia aparece ligado a quatro fatores:
dificuldades financeiras; necessidade de voltar ao trabalho; falta de interesse
e desvalorização do tratamento, tanto devido à avaliação negativa dos
serviços oferecidos pelo SUS, quanto devido a fatores psicológicos que
geram um descomprometimento do paciente com um tratamento que não é
pago; insatisfação com as técnicas fisioterapêuticas e com o relacionamento
com o fisioterapeuta.
Os relatos dos fisioterapeutas indicaram uma estrutura organizada
em três áreas temáticas: a) capacidades e habilidades do bom fisioterapeuta;
b) a adesão à fisioterapia; c) o relacionamento fisioterapeuta paciente.
Na percepção dos fisioterapeutas, as qualidades que o profissional
deve ter para oferecer um tratamento satisfatório se referem tanto ao
contexto técnico quanto ao contexto pessoal. O bom fisioterapeuta é aquele
profissional capaz de associar suas capacidades e habilidades técnicas a
capacidades e habilidades comunicativas, tais como saber escutar e
compreender o paciente em estado de sofrimento, oferecendo atenção e
cuidado em forma de afeto (amor, respeito, solidariedade/apoio, carinho,
atenção, escuta) e de contato físico (terapia manual). A atuação
fisioterapêutica não deve permanecer restrita à execução de técnicas e
aplicação de aparelhos, mas deve construir uma abordagem que integre as
competências profissionais e as habilidades para lidar com o outro de forma
abrangente.

Ter amor à profissão, gostar do que faz, então faz com qualidade,
ter respeito pelo paciente, porque ele precisa do seu toque e do seu
carinho, da sua atenção, do seu conhecimento técnico científico;
mas não adianta nada saber todas as técnicas se você não encosta
no paciente. A maioria dos nossos pacientes precisa mais da nossa
atenção, do nosso calor humano, do que às vezes da nossa técnica, e
só de você encostar e tocar nele, de conversar com ele, você já está
resolvendo parte do problema (Fisioterapeuta 04).

146
O fisioterapeuta foi visto como o profissional capaz de devolver as
aptidões físicas ao paciente, possibilitando o retorno as suas funções de vida
diária, ao trabalho e levando a melhora da qualidade de vida. O bom
fisioterapeuta é aquele que atua desde a prevenção de disfunções até a
reabilitação do indivíduo, orientando os pacientes para executar as
atividades em casa, já que as duas horas semanais na fisioterapia são
insuficientes para a reabilitação completa e rápida do paciente.

Somos capazes de aliviar a dor do outro, reduzir o sofrimento. Não


tem profissão mais bonita e criativa que essa. A fisioterapia cabe em
tudo porque mexe com o movimento humano, o que me incomoda é
que a nossa profissão ainda não foi vista em sua plenitude, acho que
nem mesmo os fisioterapeutas se dão conta dessa magnitude
(Fisioterapeuta 02).

O processo de adesão na fisioterapia foi descrito pelos


fisioterapeutas como um evento associado em grande parte ao paciente,
considerando este último peça fundamental no processo de reabilitação. O
paciente deve ser um agente ativo deste processo, desejando alcançar e
buscar a melhora e reabilitação das funções perdidas ou prejudicadas pelo
adoecimento. Para que o paciente permaneça no tratamento, é necessário,
por parte dos fisioterapeutas, tratar com atenção cada caso apresentado, de
forma individualizada, oferecendo a assistência adequada àquele caso.

O paciente precisa participar ativamente do tratamento, fazer os


exercícios em casa seguindo nossas orientações e se conscientizar
que não fazemos milagres, nem trabalhamos sozinhos, precisamos
da ajuda e participação dele (Fisioterapeta 03).
Para ele continuar a vir ele precisa se sentir apoiado, cuidado,
ouvido, tratado (Fisioterapeuta 02).

A carência por afeto e os demais comprometimentos de ordem


emocional dos pacientes foram apontados como fatores ligados ao processo
de adesão.

Às vezes não são só problemas físicos, tem problemas de família


desorganizada, com dores físicas e dores da alma. Alguns vêem a
fisioterapia só para saírem de casa e se sentirem menos sozinhos e
abandonados, eles fogem do ambiente em que vivem (Fisioterapeuta
01).

147
Os fatores de ordem emocional foram identificados como
limitantes na continuidade do tratamento caso não sejam solucionados.
Cabe ao fisioterapeuta identificar essas possíveis alterações e encaminhar ao
profissional de psicologia da equipe.
O processo de não aderir ao tratamento fisioterapêutico esteve
associado a seis causas principais: as condições sócio econômicas
desfavoráveis dificultando o acesso ao local de tratamento, a busca pela
aposentadoria precoce e o auxílio do INSS, a demora até o início do
tratamento, a não aceitação do quadro crônico de certas doenças, a melhora
relativa dos sinais e sintomas da doença somada a falta de persistência em
continuar até o final e a necessidade de voltar às atividades de trabalho para
o sustento da família.
Portanto, o processo de aderir ou não a fisioterapia foi relacionado
tanto a contingências gerais quanto a características pessoais/ perfil
psicológico dos pacientes. Nesse processo, o paciente é visto como
elemento principal e o fisioterapeuta como elemento secundário. Ser o
elemento principal significa ter a maior parte das responsabilidades ligadas
ao processo de reabilitação, ou seja, a melhora do quadro dependerá mais da
vontade e do interesse do paciente em alcançar os objetivos do tratamento
do que o tratamento em si oferecido pelos fisioterapeutas.

Aqui o nosso maior problema com a adesão é a passagem, 80 a 90%


são pessoas humildes, depois tem muitos pacientes que vem pra cá
por conta de um laudo do INSS, aí eles pegam o laudo e vão embora,
e tem a questão da demora da triagem (Fisioterapeuta 01).

O relacionamento entre fisioterapeuta e paciente foi percebido


como fator fundamental para o sucesso da reabilitação, além de ser peça
chave no processo de adesão comentado no tema anterior. A relação que se
constrói entre esses indivíduos é permeada por respeito, carinho, empatia,
atenção e capacidade de escuta do outro.

A gente tem que ter empatia com o paciente, tem que dá atenção, os
pacientes vem pra cá procurando o tratamento de reabilitação, mas
a gente não é só fisioterapeuta, a gente acaba sendo um pouco de
conselheiro (Fisioterapeuta 02).
A relação é de muito respeito, um carinho respeitoso eles tem por
nós e nós por eles, muitos contam problemas e a gente acaba
ouvindo. Eles tem carência de serem ouvidos (Fisioterapeuta 03).
Tem que haver empatia pelo profissional e pelo paciente para
refletir positivamente no tratamento, tem que ter uma relação
positiva, estar atento às reclamações dele, as coisas que você pode
148
estar melhorando no tratamento dele, no atendimento
(Fisioterapeuta 04).

Existe um conflito na forma como os participantes descrevem essa


relação, para alguns se trata de uma amizade com características
profissionais, mas sem a formação de vínculo íntimo, para outros existe a
formação do vínculo, mas sem necessariamente caracterizar uma relação de
amizade. A forma como percebem o relacionamento revela suas dúvidas na
identificação e descrição desse tipo de relação, que hora apresenta-se como
amizade e hora como relacionamento profissional, associando
características dos dois tipos de relação. Mesmo com as dificuldades em
descrever o tipo de relação que se estabelece entre fisioterapeutas e
pacientes, o relacionamento entre ambos foi identificado como fator
essencial no processo de reabilitação e adesão na fisioterapia.

Eu converso, tento formar não uma amizade, mas um vínculo com o


meu paciente, eu gosto de conversar, de ouvir o que ele tem a dizer.
Não precisa ser amigo pessoal, mas no relacionamento profissional
tem que dar atenção (Fisioterapeuta 01).
Eu sei o que é dor e o que é sofrimento, eu procuro receber o
paciente da melhor maneira possível, criando um vínculo com ele
sem intimidades é claro, para que essa uma hora que ele passa aqui,
ele se sinta bem, que tire suas dúvidas e que confie no profissional,
que até brinque às vezes, tendo um respeito, mas também com
liberdade (Fisioterapeuta 02).

Interpretação Fenomenológica

A redução fenomenológica mostrou que o fenômeno da adesão ao


tratamento na fisioterapia está estruturado em torno de três aspectos: o
cuidado integral, que compreende a forma de abordagem fisioterapêutica
durante o tratamento, considerando o paciente em todas as suas dimensões
(físicas, psíquicas e sociais); a comunicação, que abrange os aspectos da
relação que se estabelece entre terapeutas e pacientes; e as contingências
sócio econômicas que perpassam as limitações financeiras dos pacientes
atendidos pelo SUS - os fatores ligados à permanência ou abandono da
fisioterapia. Dessa forma, o desafio da interpretação é entender como esses
três focos problemáticos explicam e se relacionam com o fenômeno da
adesão na fisioterapia.
A adesão não se limita ao conhecimento e reconhecimento da
doença músculo esquelética e à escolha do procedimento mais adequado à
reabilitação. A adesão na fisioterapia envolve questões ligadas ao cuidado
149
integral, cercado de uma abordagem terapêutica e avaliação multifatorial; ao
desenvolvimento e aperfeiçoamento continuado da comunicação e da
relação que se estabelece em todos os níveis interpessoais do tratamento, e a
consideração dos fatores sócio econômicos de cada paciente.
Portanto, aderir ao tratamento na fisioterapia é muito mais que
realizar as 10 ou 20 sessões prescritas pela equipe, revelando não se tratar
de um processo quantitativo e sim qualitativo, que envolve mais do que uma
disfunção músculo esquelética a ser resolvida. A adesão compreende uma
situação em que um indivíduo busca o serviço do centro de reabilitação,
carregando consigo uma série se sentimentos, perspectivas, emoções, dores
e angústias, que podem, na maioria dos casos se aproximarem ou estarem
relacionadas de alguma forma ao adoecimento de ordem física.
O cuidado integral perpassa questões que envolvem a tomada de
decisões tanto por parte dos terapeutas, quanto dos pacientes. Cuidar
integralmente de um indivíduo significa percebê-lo como um ser social,
físico e emocional, que carrega consigo todos os medos, angústias e
frustrações por estar doente naquele momento.
O paciente é um indivíduo que apresenta uma história e uma
personalidade únicas. Sua carga genética, assim como as suas experiências
de vida, terão influência sobre a sua personalidade e sobre a forma como o
mesmo reage à doença. Está no próprio indivíduo o motivo de sua doença
(Perestrello,1996 e Tahka, 1988).
O tratamento recebido pelos pacientes, apesar de ter sido
considerado satisfatório, trouxe uma série de pontuações e críticas, dentre
elas o desejo em ter mais tempo de contato com os fisioterapeutas. A
expectativa por mais toque, mais atenção e maior disponibilidade para
serem ouvidos, expressa uma necessidade de tratamento mais abrangente,
tirando o foco da parte física lesionada e direcionando mais a atenção aos
fatores emocionais que podem estar envolvidos no processo de
adoecimento.
No mesmo sentido, aqueles que tratam revelaram estar conscientes
da necessidade deste tipo de abordagem sistêmica; no entanto, percebe-se
um desencontro entre a fala e a prática diária, visto que não há tempo
suficiente para a realização de uma anamnese aprofundada com cada
paciente, nem a chance de ouvi-lo um pouco mais a cada sessão. Esse
desajuste surge a partir do momento em que um mesmo fisioterapeuta
precisa atender cerca de cinco pacientes por hora de terapia, o que de fato o
impossibilita de oferecer um tratamento de maneira efetivamente integral.
Com a automatização do atendimento fisioterapêutico, nem mesmo os
profissionais se dão conta da perda de qualidade em atendimento,
considerando muitas vezes que apesar do pouco tempo com o paciente e as
altas demandas, a reabilitação é satisfatória para quem oferece e para quem
150
recebe o atendimento. A angústia dos profissionais do centro de reabilitação
direciona-os a momentos em que é reconhecida a necessidade de ajuste no
modelo de atendimento, e a momentos em que os limites e as metas
estabelecidas pela instituição superam as possibilidades de ajustes
favoráveis à implementação da abordagem terapêutica integral. Este fato
revela que o ritmo intenso de trabalho e a necessidade de atender um
número máximo de pacientes, tem contribuído para a perpetuação do
modelo biomédico de atendimento e de uma visão quantitativa do processo
de adesão.
O modelo biomédico tem pouco a dizer sobre o sofrimento e sobre
como o indivíduo de percebe frente ao adoecimento, já que seus
procedimentos e sua forma de abordagem terapêutica acabam por resumir as
pessoas, as coisas, a vida e os acontecimentos do mundo às medidas de seus
padrões de referência, onde o que mais importa é a parte doente e não o
todo (Castiel, 1994).
Saber identificar se um paciente apresenta fatores emocionais
ligados ao processo de adoecimento, como causa ou como conseqüência,
remete a um processo de formação do fisioterapeuta que deveria ser
embasado nos aspectos psicossociais do indivíduo. Para que o profissional
de saúde ofereça um tratamento mais abrangente, é preciso identificar se os
mesmos estão preparados a perceberem que não é possível limitar sua ação
ao componente físico.
Quando se parte do pressuposto que todas as doenças são
psicossomáticas já que corpo e mente são inseparáveis, anatômica e
funcionalmente (Mello, 1983; Marinho & Fiorelli, 2007), constitui-se um
erro tentar dissociar os problemas psicológicos e emocionais dos transtornos
orgânicos, já que toda agressão ao corpo provoca reflexos para a mente e
vice versa. O paciente expressa por meio de palavras, gestos, posturas e
ações, além de características pessoais, a forma como a disfunção se
manifesta.
Sabe-se que a efetividade de um tratamento, assim como a adesão
estão estreitamente relacionados à comunicação e a relação entre terapeuta-
paciente, seja no contexto da psicoterapia (Jardim, Souza & Gomes,2009)
no contexto da enfermagem; (Esperedião & Trad, 2006; Hoga, 2004); no
contexto da medicina (Lemme, 2005 ; Perestrello, 1996) ou no contexto da
fisioterapia (Sanguin & Vizzotto, 2007; Marinho e Fiorelli, 2007).
Portanto, cuidar integralmente de um paciente, requer além das
habilidades técnico científicas, a capacidade de estabelecer uma
comunicação adequada entre todos os envolvidos no processo de
reabilitação. Desde o momento do acolhimento do paciente, passando pela
triagem, durante as sessões, até o dia da alta fisioterapêutica.

151
Tanto aqueles que recebem o tratamento como aqueles que tratam,
vêem na comunicação uma ferramenta essencial ao sucesso da reabilitação.
Estabelecer uma relação de qualidade entre terapeuta e paciente contribui
para o conhecimento mais aprofundado daquele que é tratado, além da
expansão do conhecimento de quem trata, tanto sobre a melhor forma de
reabilitar o paciente, como aprender a avaliar continuamente o tipo de
abordagem terapêutica que é oferecida a cada um (Balint, 2007; Abdo,
1996; Silva, 2008; Stone, Patton & Heen, 1999).
O paciente deve ser visto como alguém que comunica e necessita
de uma atenção especial, não só como um portador de uma patologia (Costa
Junior & Sandoval, 2002). Segundo Leon (1973), para que o profissional da
área da saúde seja bom é necessário priorizar a comunicação com o
paciente. A relação criada pelo profissional com seu paciente, quando
afetuosa e valorizada, favorece o desenvolvimento de estados emotivos
positivos que facilitam a reabilitação. Quanto mais o fisioterapeuta entende
o paciente, maior é a possibilidade de ajudá-lo, tratá-lo e incentivá-lo a
realizar todo o tratamento.
Quanto maior é a compreensão das necessidades, das capacidades e
desejos do paciente, pelos profissionais da área da saúde, maior será o
sucesso obtido no tratamento do mesmo (Olivieri, 1985; Caprara &
Rodrigues, 2004; Moreira & Araújo, 2002 ; Fishman, 1995).
A descrição dos participantes deste estudo revelou a urgência na
melhoria da comunicação entre terapeuta e paciente, onde o profissional
dará mais atenção a como o paciente percebe a sua doença, não se
apresentando tão distante e afogado em suas próprias percepções; ou mesmo
envolvidos em seus medos, anseios e dúvidas quanto a seu empenho diante
de determinado caso a ser tratado. Isto também não quer dizer que os
fisioterapeutas e demais profissionais tenham que mudar de papel e
exercerem outras funções atribuídas à psicologia, mas sim devem estar mais
abertos à comunicação com o paciente e compreender em que medida
podem usar o diálogo a favor do tratamento e o momento certo de convidar
o psicólogo a participar do processo de reabilitação.
A maneira como o fisioterapeuta se relaciona com o paciente,
precedeu a perfeição da técnica, ao ser considerada como um aspecto mais
relevante durante a reabilitação. Isto não significa que o tratamento sem
resultados terapêuticos seja considerado bom, mas sim que antes da
remissão dos sintomas e devolução das funções perdidas, a relação que se
estabelece entre fisioterapeuta e paciente deve ser satisfatória, sendo
essencial para a adesão e o sucesso da reabilitação.
A dificuldade tanto por parte de terapeutas quanto por parte dos
pacientes em descrever e classificar o tipo de relacionamento que se
estabelece entre eles parece indicar uma dificuldade dos fisioterapeutas em
152
lidar com um tipo de informação psicológica ou emocional trazida pelos
pacientes à terapia (angústias, medos, frustrações, carências, entre outros).
Essa dificuldade perpetua o distanciamento entre quem trata e quem recebe
a atenção, e reforça o receio dos fisioterapeutas de estabelecer vínculos
afetivos que possam se tornar uma relação de dependência pelo tratamento e
ou pela relação que o paciente estabelece com o profissional. Encontrar um
ponto de equilíbrio entre o vínculo saudável e o vínculo dependente foi
visto como um desafio aos profissionais de saúde, já que a relação que se
estabelece entre ambos, no entanto, é percebida como algo mais que um
relacionamento exclusivamente profissional, apesar de não se tratar
exatamente de amizade.
A relação terapeuta-paciente é, antes de qualquer coisa, uma
relação entre duas pessoas que se comunicam e estabelecem trocas durante
todo o tempo. O relacionamento estabelecido entre os terapeutas e os
pacientes apontou a presença de dimensões como compromisso, confiança,
respeito, apoio social, apego, proximidade, intimidade (maior no sentido
paciente-terapeuta) e comunicação.
No entanto, ainda mais importante que descrever ou caracterizar
o tipo de relação que se estabelece, é entender em que medida o
fisioterapeuta pode usá-la a favor do processo terapêutico.

Referências

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155
14

RELACIONAMENTO INTERPESSOAL E
ECONOMIA SOLIDÁRIA

Raquel Ferreira Miranda


Fernanda Henrique Cupertino Alcântara
Fernanda Simplício Cardoso
Agnaldo Garcia
José Roberto Pereira

Este trabalho é resultado de uma mesa-redonda ocorrida no I


Congresso Brasileiro de Pesquisa do Relacionamento Interpessoal que
abordou a temática do relacionamento e a economia solidária. Propõe-se
discutir sobre os relacionamentos interpessoais entre trabalhadores de
empreendimentos solidários e cooperativistas partindo do pressuposto de
que, nestas esferas, a ação coletiva se diferencia daquela que se desenvolve
nos domínios de empresas privadas e daquela que se desenvolve no
contexto social das relações tradicionais.
O capítulo está organizado de modo a apresentar inicialmente o cenário dos
estudos em Economia Solidária, seus fundamentos teóricos e aspectos
relevantes de sua implementação prática. Em seguida, nos referimos a uma
pesquisa no âmbito da economia solidária e do cooperativismo
apresentando uma análise dos valores, crenças e significados que permeiam
as ações solidárias e os vínculos sociais constituídos entre os associados de
duas cooperativas populares de Minas Gerais pertencentes à Rede de ITCPs,
após serem submetidas ao processo metodológico de incubação. E,
finalizando,apresentamos uma pesquisa que aborda os relacionamentos
interpessoais entre as participantes de uma cooperativa de produção do
Espírito Santo, estabelecendo uma perspectiva histórica dos
relacionamentos desde a criação do empreendimento até a situação
contemporânea dos relacionamentos e o impacto dos relacionamentos no
desenvolvimento da cooperativa.

Economia Solidária: projeto, prática e segurança ontológica

A Economia Solidária (ES) consiste num modelo de organização do


trabalho pautado na autogestão e na solidarização do capital. Contudo, não
se resume aos empreendimentos cooperativos tradicionais e alcança
experiências informais de organização social, como mutirão, ajuda mútua,
mutualidade e outros (Alcântara, 2005). Essa é uma das muitas concepções
156
sobre o que é a ES. Existem muitos autores que, por exemplo, entendem que
só o cooperativismo popular faz parte da ES, enquanto o cooperativismo
tradicional não. Outros farão restrição apenas às cooperativas de trabalho,
alegando que estas, na maioria dos casos, constituem fraudes aos direitos
trabalhistas e sociais conquistados pelos trabalhadores com vínculo
empregatício. Por esta razão preferimos falar nos princípios que
caracterizam a ES, não no formato organizacional que os empreendimentos
assumem. Sobre o surgimento da ES logicamente não existe um consenso e
também não existe uma sistematização de dados capaz de indicar quando
surgiram os primeiros empreendimentos de Economia Solidária ou
empreendimentos econômicos solidários (EES) (Alcântara & Nagem,
2009).
Segundo nosso entendimento, o surgimento da ES ocorre, não por
acaso, no mesmo instante em que as empresas capitalistas fundadas no
vínculo de subordinação jurídica e no assalariamento se consolidam. Porém,
fundamenta-se em pressupostos contrários aos destas últimas. Sua
existência remonta ao início do século XIX e está associada à expansão do
movimento cooperativista. Daí decorre que consideramos a ES equiparada
ao modelo surgido do movimento cooperativista em meados do século XIX,
quando foi criada a primeira cooperativa de fato, a famosa Cooperativa de
Rochdale (Singer, 2002). Outros autores argumentam que a ES nada tem a
ver com a Revolução Industrial, mas sim com a crise financeira que
acometeu o Brasil e vários outros países na década de 80 (Leite, 2009;
Lima, 2008). Um dos principais efeitos desta crise foram a reestruturação
produtiva, a liofilização organizativa, o aumento do desemprego e da
informalidade (Antunes, 2002; Ramalho & Santana, 2004; Ribeiro, 2008).
Existe uma diferença substancial entre estas duas perspectivas, a qual
ultrapassa a questão formal. A primeira associa a ES à autonomia e a um
modelo com fim em si mesmo. Já a segunda a vê como resposta ao
desemprego, como algo temporário e circunstancial. Além disso, esta última
geralmente associa as práticas associativas produtivas à precarização e
flexibilização das relações de trabalho.
Esse não é o único ponto que causa bifurcação nos direcionamentos
teóricos e análises produzidas. Outra polêmica ainda pouco problematizada
ocorre quanto à natureza sociológica deste fenômeno. As principais
interpretações entendem ser ela: (1) um modo de produção; (2) um modelo
de produção; (3) um mecanismo para se chegar a um modo de produção
pretendido (Nagem, Alcântara & Coelho, 2009).
Como o histórico de trabalho e de vida da maioria dos indivíduos
que é público alvo de políticas de geração de renda no formato cooperativo
está associado à hierarquia, obediência e cumprimento de atividades
estabelecidas por terceiros, a insegurança ontológica aparece de modo
157
recorrente nas experiências desta natureza. Essa “segurança do ser” não está
associada única e exclusivamente a um dado fenômeno, mas sofre
interferência direta e concreta dos efeitos das mudanças sofridas no mundo
do trabalho. Basicamente as pesquisas que versam sobre o tema têm
associado ele à estabilidade, mas o problema diz respeito também à própria
concepção do que significa estabilidade. Dessa forma, é fundamental
também compreender o que significa o trabalho para os indivíduos e as
várias formas em que se materializa. Podemos ter um exemplo da
multiplicidade de sentidos que são atribuídos à palavra trabalho ao
observarmos a citação que segue:

Nessa pesquisa, entende-se que o trabalho ocupa um lugar central


na vida de quem o realiza. Para tanto, são enfocados dois fatores: o
fato de ser ele um meio de sobrevivência e o tempo de vida a ele
dedicado. O trabalho além de ser um meio de subsistência, também
é um meio de integração social, pois possibilita o relacionamento
entre pessoas, a inclusão social e o sentimento de pertencer a um
grupo. (Medeiros & Macêdo, 2006, 63)

Supõe-se, com isso, que estar inserido em uma atividade de trabalho


confere segurança ontológica, mas não é bem isso o que ocorre. Nota-se
com freqüência que apenas atividades já institucionalizadas tendem a
produzir esse efeito. Primeiro vejamos o que significa segurança ontológica
para Giddens (2002, 223). Segundo ele: “Sentido de continuidade e ordem
nos eventos, inclusive daqueles que estão dentro do ambiente perceptual
imediato do indivíduo”.
Lógico que o trabalho não é o único elemento de referência para a
formação de identidade. Mas, é plausível a alegação de que também a
insegurança transforma o trabalho em precário e que “sofrimento e
emprego” é diferente de “sofrimento e trabalho” (Medeiros & Macêdo,
2006). Sennet (2009, 10) ao discutir as mudanças no mundo do trabalho
para as relações familiares e sociais do trabalho deixa essa perspectiva
bastante clara:

“Carreira”, por exemplo, significava originalmente, na língua


inglesa, uma estrada para carruagens, e, como acabou sendo
aplicada ao trabalho, um canal para as atividades econômicas de
alguém durante a vida inteira. O capitalismo flexível bloqueou a
estrada reta da carreira, desviando de repente os empregados de um
trabalho para o outro. (Sennet, 1999, 10).

158
Parece inegável os efeitos da insegurança ontológica sobre a vida do
trabalhador, mas resta agora explora um pouco mais os motivos de sua
existência. Consideramos que a rotinização do comportamento gera um
quadro cognitivo com escolhas, cujos comportamentos mais familiares são
compreendidos pelos indivíduos como “opções preferenciais” frente às
“escolhas possíveis” (Alcântara, 2005). Resulta dessa constatação que a
racionalidade não é um cálculo avalorativo, mas sim um resultado
determinado por instituições sociais.
Vários mecanismos podem ser utilizados para minimizar os efeitos
desse período de transição e estranhamento. Tais mecanismos tentam
fornecer uma familiaridade com a prática proposta, facilitando, com isso, a
rotinização das práticas pautadas na autogestão e na solidarização de
capital.

Vínculos Sociais e Subjetividade: Estudo de Duas Cooperativas


Populares de Minas Gerais

O presente estudo representa parte de uma pesquisa qualitativa


financiada pela Fapemig, no âmbito da economia solidária e do
cooperativismo, cujas ações para a geração de trabalho e renda levam em
conta a condição de sociabilidade expressa na subjetividade dos associados.
De acordo com Singer (2002), as práticas autogestionárias e os novos
movimentos sociais não são investimentos paliativos contra o desemprego e
a exclusão, mas uma prática organizativa que visa à geração de trabalho e
renda, sem perder de vista valores como solidariedade, autonomia, liberdade
e participação.
Dessa forma, com o interesse voltado para a análise da
subjetividade, surgiu a questão norteadora da pesquisa: que valores e
crenças orientam a conduta dos associados de cooperativas populares, após
terem passado por um processo metodológico de incubação pelas ITCPs,
que tem como princípios orientadores a economia solidária e os
fundamentos do cooperativismo rochdaleano?
As Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs)
são iniciativas desenvolvidas no âmbito da política pública, cuja finalidade
é o assessoramento técnico de grupos de trabalhadores desempregados ou
em situação de trabalho precarizado, de modo a se organizarem em
atividades autogestionárias, sustentadas nos princípios solidários e
cooperativistas.
Para categorizar o repertório de valores e crenças dos associados de
cooperativas populares após passarem pelo período de incubação, bem
como analisar a aplicabilidade dos princípios da economia solidária no
âmbito das diferentes subjetividades que compõem os grupos de associados,
159
foram selecionadas duas cooperativas populares de Minas Gerais
pertencentes à Rede de ITCPs, representantes da região sudeste do país,
sendo uma de comércio e outra de produção.
O suporte metodológico adotado na pesquisa foi de natureza
qualitativa, fundamentado no método interpretativo das ciências sociais, o
qual procura analisar a percepção dos sujeitos a respeito do tema em estudo,
utilizando-se para isso a coleta de informações por meio das entrevistas em
profundidade.
A escolha das cooperativas seguiu os critérios de seleção adotados
pelo projeto de pesquisa “Gestão Social da Rede Universitária de
Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares na Geração de
Trabalho e Renda”, desenvolvido pelo Departamento de Administração e
Economia da Universidade Federal de Lavras, em Lavras, MG e financiado
pela Fapemig. Segue abaixo a descrição dos referidos critérios:
a) Critérios de seleção das ITCPs para análise: foram selecionadas
as ITCPs que apresentaram, simultaneamente, três critérios:
localizada em região de maior concentração do número de ITCPs,
pioneirismo e maior número de cooperativas incubadas;
b) Critérios de seleção das cooperativas incubadas: foram
priorizadas para a pesquisa qualitativa aquelas cooperativas que
tinham maior tempo de funcionamento, porque possuem potenciais
informações qualitativas; que tenham sido incubadas pelas ITCPs
selecionadas para análise. O tamanho da cooperativa deve ser
levado em conta, por isso as cooperativas serão estratificadas em
três grupos quanto ao número de associados (grande, médio e
pequeno), que possam corresponder aos tipos de grupos “latentes”,
“intermediários” e “privilegiados”, classificados pela “lógica da
ação coletiva” de Olson (1999). Também se levou em conta, na
escolha das cooperativas, a localização geográfica, pois ela
constitui um fator indicativo de contexto cultural específico, sendo
escolhida pelo menos uma localizada em cada uma das regiões
referenciadas. (Pereira, 2007, 35-36).

Foram entrevistados treze associados, no período compreendido


entre os meses de junho e julho do ano de 2008, sendo oito integrantes da
cooperativa de trabalho e cinco integrantes da cooperativa de produção.
Para compor o perfil sócio-demográfico dos participantes da pesquisa foram
consideradas as seguintes variáveis: gênero, idade, escolaridade, estado
civil, número de filhos e renda familiar.
A escolha da amostra de entrevistados foi não probabilística por
conveniência, significando que “os indivíduos são escolhidos simplesmente

160
por serem mais acessíveis ou, então, por serem mais fáceis de serem
avaliados.” (Alencar, 2004, 63).
A pesquisa foi dividida em duas etapas: uma destinada à revisão
bibliográfica sobre o tema pesquisado e a segunda, dirigida à coleta de
informações por meio de entrevistas em profundidade. O recorte teórico a
partir da Psicanálise e da Teoria da Dádiva (Mauss, 1974) possibilitou o
diálogo entre psicologia e antropologia na interface com o campo
organizacional, levando em conta as dimensões psíquica, social e cultural
que constituem a subjetividade.
As análises e as interpretações das entrevistas foram feitas com
base no referencial teórico da pesquisa, sendo construídas categorias
analíticas nucleantes para auxiliar na interpretação dos relatos coletados. As
categorias de análise da pesquisa partiram das matrizes teóricas trabalho e
subjetividade, de onde foram extraídas oito categorias analíticas nucleantes:
Trabalho, Ação Política, Solidariedade, Cooperação, Participação,
Aprendizado, Identificação e Pessoalidade, devidamente agrupadas em três
unidades de análise interdependentes: (a) os significados do trabalho
associado à subjetividade dos sujeitos; (b) elementos intersubjetivos da
economia solidária; (c) elementos psíquicos, sociais e culturais da
subjetividade.
Foram selecionados fragmentos da fala dos entrevistados que
refletem os conceitos teóricos operacionais da pesquisa, organizados nas
categorias analíticas nucleantes, possibilitando fazer inferências sobre a
subjetividade dos associados após passarem pelo processo metodológico de
incubação, com a finalidade de assimilar os princípios da economia
solidária e do cooperativismo.
Os relatos colhidos evidenciaram que a estratégia metodológica
adotada pela ITCP atingiu, em parte, sua finalidade de ação socializadora
sobre os associados. Pela análise das narrativas foi possível inferir que o
trabalho realizado pelas incubadoras propiciou uma nova projeção às
atividades desenvolvidas nas cooperativas populares, além de reforçar os
laços de identificação do grupo, ao sensibilizar os associados para o
trabalho em equipe, a solidariedade e a cooperação na tomada de decisões
que afetam os interesses grupais.
Por outro lado, as narrativas analisadas apontaram alguns aspectos
da estratégia de incubação identificados como falhas metodológicas, a
saber: o processo de desligamento da incubadora e a variável rotatividade
do grupo, que acabou comprometendo o processo de aprendizagem
adquirido pelos associados no período da incubação, bem como a confiança
depositada na ITCP. Os entrevistados das duas cooperativas se queixaram
que o processo de desligamento da incubadora foi efetivado num momento
crítico do empreendimento, comprometendo o sentimento de confiança na
161
incubadora. Sobre a rotatividade do grupo, ponderaram que alguns
associados não faziam parte da cooperativa na época da incubação e,
portanto, não foram socializados nos princípios solidários e cooperativistas.
Essa observação foi confirmada nas entrevistas com os associados que não
passaram pelo processo de incubação, pois deixaram evidente que não se
apropriaram dos conceitos e valores do empreendimento solidário, embora,
muitas vezes, os colocavam em prática por imitação.
Em relação aos vínculos sociais, estes foram avaliados com base
nas categorias analíticas nucleantes Identificação e Pessoalidade. As
análises apontaram que, em parte, os entrevistados assumiram os princípios
da economia solidária e do cooperativismo como modo de organização no
trabalho, apropriando-se dos conceitos e definições que sustentam o
empreendimento solidário. Aqueles que estavam na cooperativa há mais
tempo e participaram de todo o processo de incubação, apresentaram
conhecimento mais elevado dos fundamentos do cooperativismo e, para
além do sustento econômico, buscavam, no empreendimento, um modo
particular de se relacionar com o grupo, tornando o trabalho uma fonte de
satisfação e realização pessoal. Por outro lado, quando indagados sobre as
possibilidades de sobrevivência da cooperativa no mercado capitalista,
assegurando um meio de auferir renda para o sustento, os entrevistados
revelaram a crença de que o trabalho formal oferece proteção e garantias
não vislumbradas nas cooperativas. Contudo, não se mostraram conscientes
dessa crença de conceber o trabalho formal como fonte de garantias, o que
inviabilizou que fizessem um exame crítico do valor que atribuem ao
trabalho.
Os resultados desta pesquisa apontaram que novos estudos devem
ser desenvolvidos, com a finalidade de conhecer em maior alcance e
profundidade os elementos psíquicos, sociais e culturais que constituem a
subjetividade humana e influenciam as atitudes, crenças e valores, bem
como os procedimentos metodológicos adotados pelas ITCPs com vistas a
atingir os objetivos proclamados. A partir do conhecimento desses
elementos, espera-se que novas perspectivas sejam alcançadas para a
construção de projetos que viabilizem a ação do homem no espaço da
pluralidade, visando o bem-estar social, a sustentabilidade e a dignidade
humana.

Relacionamento Interpessoal: Estudo de Caso de uma Cooperativa


Popular

Este trabalho é fruto de uma pesquisa desenvolvida junto a uma


cooperativa de produção localizada no município de Vitória, mais
especificamente em uma região de baixa renda da cidade, a Ilha das
162
Caieiras. Ao longo de oito meses foi estabelecido contato com as
cooperadas e observou-se suas rotinas de trabalho, as relações interpessoais,
a estrutura sócio-cultural e o ambiente em que estavam inseridas.
A cooperativa iniciou as atividades em 1999, surgiu de uma
demanda do poder público municipal que a propõe como parte de um
projeto de urbanização de áreas ocupadas por assentamentos informais e
geração de renda para população carente, sendo originalmente composta
por quarenta e nove mulheres, identificadas como as desfiadeiras de siri da
Ilha das Caieiras. Essas mulheres nunca haviam participado de um grupo
cooperativo e estavam sem um trabalho formal, viviam, basicamente,
do desfio de siri que faziam individualmente nas calçadas da Ilha. No
momento da pesquisa, a atividade da cooperativa não era o desfio do siri,
mas um restaurante de culinária típica capixaba, sediado em um local
construído às margens do mangue e cedido pela prefeitura de Vitória para
uso das cooperadas.
A pesquisa teve como objetivo descrever e analisar a história dos
relacionamentos interpessoais entre as participantes de uma cooperativa de
produção da Ilha das Caieiras, na cidade de Vitória, Espírito Santo,
buscando compreender o desenvolvimento histórico e a situação atual
destes relacionamentos. Participaram da pesquisa doze mulheres
cooperadas, dentre as treze que estavam em atividade na cooperativa no
momento da pesquisa. Os dados foram obtidos por meio de entrevistas
semi-estruturadas com as participantes e observação das instalações e da
rotina de trabalho na cooperativa. Foram analisados por análise de conteúdo
e organizados de acordo com o referencial teórico de Robert Hinde (1997)
que possibilitou uma compreensão da natureza e da dinâmica dos
relacionamentos. São destacados três pontos em relação ao histórico e à
situação contemporânea dos relacionamentos: uma história de sobreposição
de diferentes formas de relacionamento: familiar, comunitária e de trabalho;
a transposição de padrões de relacionamento familiares e comunitários para
as relações de trabalho; a necessidade de um amplo planejamento de
treinamento para o desenvolvimento interpessoal e organizacional.
Robert Hinde é um dos autores contemporâneos que mais
contribuiu para a tentativa de organização de uma “ciência do
relacionamento interpessoal”. De acordo com Hinde (1997), há
relacionamento se os indivíduos têm uma história comum de interações
passadas e o curso da interação atual é influenciado por elas. Segundo este
autor, o relacionamento interpessoal faz parte de um sistema de relações
com seis diferentes níveis de complexidade, especificamente: o nível de
processos psicológicos, de comportamento do indivíduo,de interação, de
relacionamento, de grupo e sociedade, que afetam e são afetados uns pelos
outros e ainda a estrutura sociocultural e o ambiente físico. Além de
163
considerar as diferenças entre esses níveis, Hinde (1997) ressalta que é
preciso vê-los não como entidades estanques, mas como processos que se
inter-relacionam e se influenciam mutuamente.
O tema relacionamento em ambiente organizacional representa
uma proporção muito pequena dos estudos publicados em revistas
internacionais especializadas sobre relacionamento interpessoal (Garcia,
2005). Um panorama mais amplo dos estudos sobre relacionamento
interpessoal nas organizações surge nos periódicos internacionais de
Psicologia Organizacional. Diferentes aspectos do relacionamento
interpessoal, conforme organizados por Hinde (1997) estão presentes nestas
publicações. Várias têm abordado similaridade, diferença, reciprocidade e
complementaridade. Entre estas, estão pesquisas sobre diferenças de idade e
seus efeitos na relação supervisor-subordinado (Perry, Kulik & Zhou, 1999;
Finkelstein, Allen & Rhoton, 2003), sobre similaridade e
complementaridade entre colegas (Tett & Murphy, 2002), sobre os efeitos
da similaridade na percepção e na avaliação (Strauss, Barrick & Connerley,
2001), sobre os efeitos da similaridade com colegas e clientes no
desempenho (Leonard, Levine & Joshi, 2004), sobre o papel da
dissimilaridade entre supervisor e subordinado (Duffy & Ferrier, 2003) e
sua influência no local de trabalho.
A partir dos dados obtidos, são destacados alguns aspectos centrais
do papel dos relacionamentos interpessoais na construção e manutenção de
uma cooperativa de produção. O primeiro aspecto refere-se à construção do
sistema cooperativo como uma reorganização das relações interpessoais. O
segundo trata da dimensão sociocultural e ambiental e a transferência das
relações familiares e de amizade para o trabalho. Apesar do modelo de
Hinde (1997) apresentar estruturas socioculturais e ambiente físico como
duas dimensões distintas, na prática, não se pode pensar o ambiente como
algo isolado de suas determinações sociais e culturais.
Do ponto de vista do relacionamento interpessoal, a formação da
cooperativa exige uma nova estrutura e dinâmica nas relações entre as
desfiadeiras da Ilha, afetando ainda a comunidade da Ilha. A mudança
econômica traz consigo novas formas de produção que exigem novos papéis
e novas relações entre as pessoas, as quais são inseridas em uma estrutura
de trabalho que requer o desenvolvimento de relações profissionais,
entretanto os padrões de relacionamento na cooperativa parecem atrelados
às relações familiares e na comunidade, com amigos e parceiros.
Ao entrar na esfera profissional o indivíduo não é desprovido dos
demais papéis sociais que representa principalmente, os papéis familiares de
mãe, esposa, filha, tia. Observa-se uma permeabilidade entre os diversos
papéis familiares e profissionais vivenciados pelas cooperadas, sendo, por
vezes, a cooperativa, uma extensão da casa das cooperadas.
164
Na cooperativa o que é transposto para a esfera profissional são as
próprias relações familiares, portanto, falar das relações interpessoais na
cooperativa estudada implica em ressaltar que essas são de ordem
primordialmente familiar. As fronteiras físicas da família e organização
coincidem, pois a cooperativa localiza-se onde as cooperadas e seus
familiares sempre viveram, o entorno é totalmente familiar. A presença dos
laços familiares cria um sistema organizacional familiar baseado na
lealdade e na submissão, que impede qualquer movimento contrário. Nem
tudo, porém, é desvantagem, pois a relação cooperativa/família carrega
consigo lealdade, dedicação, sensibilidade à vivência dos colegas,
sacrifícios feitos pela família, orgulho familiar.
As dificuldades para o desenvolvimento de uma cultura
autogestionária estavam presentes nas expectativas das cooperadas no
momento de formação da cooperativa, quando havia a valorização do
assalariamento, da carteira assinada, a incompreensão quanto à necessidade
de horário de trabalho, a falta de entendimento das características e
peculiaridades de uma cooperativa, a participação na cooperativa vista
como falta de opção de emprego e a permanência na cooperativa vista como
temporária. Parte fundamental do processo de formação de uma cooperativa
encontra-se na preparação dos trabalhadores para o exercício da atividade
neste novo contexto, mas há uma barreira comum nas cooperativas
populares: o baixo nível de escolaridade (Albuquerque, 1994; Lima, 2004).
Ao propor a criação de uma organização cooperativa é importante
que seja feita uma análise da atividade que os futuros membros da
cooperativa em questão realizavam, compreender como era a organização
do trabalho e avaliar quantos cooperados seriam necessários para que o
desenvolvimento das atividades seja compatível com um rendimento
financeiro mínimo para a manutenção da cooperativa e seus membros.
Cursos de formação e aprimoramento são fundamentais para
instrumentalizar as cooperadas para a realização de atividades com
qualidade e para convivência em uma organização cooperativa. Sabe-se que
não é nada fácil assimilar novas formas de pensar e de agir, colocando-as
em prática de modo a sempre levar em consideração o outro, por mais
elevadas que sejam as metas de democracia, igualdade e autogestão.
Particularmente, quanto à cooperativa investigada, algumas
considerações podem ser feitas: a necessidade de estudos prévios das
condições sociais e históricas para a implantação de uma cooperativa,
incluindo um estudo das redes de relações interpessoais e como estas serão
afetadas pelo novo empreendimento; a necessidade da formação das pessoas
que irão participar do empreendimento, levando-se em conta a história da
população alvo e a história da atividade a ser desenvolvida no
empreendimento, buscando sua formação técnica, mas também social e
165
administrativa; a necessidade de acompanhamento do desenvolvimento
organizacional e interpessoal, incluindo as relações profissionais.
Os elos entre o relacionamento interpessoal e empreendimentos
solidários ainda necessitam de investigações mais amplas, não somente do
ponto de vista empírico, mas também de ordem conceitual.

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168
15

AMIZADES INTERAMERICANAS DE ESTUDANTES


UNIVERSITÁRIOS BRASILEIROS: UM ESTUDO DESCRITIVO

Agnaldo Garcia
Lívia Ramos Brandão
Lorena Queiroz Merizio Costa
Marco Aurélio Togatlian

O termo amizade tem sido empregado para relações entre pessoas,


grupos e nações. Amizades internacionais, em particular, estão presentes
tanto na literatura sobre relacionamento interpessoal (e.g. Ward, 2001)
quanto na literatura sobre política internacional (e.g. Digeser, 2009).
O foco do presente artigo são amizades entre pessoas de diferentes
países. A expressão amizades internacionais é empregada por se referir a
amizades entre pessoas que permanecem vinculadas a seu país de origem,
diferindo assim de amizades de migrantes recentes ou entre grupos culturais
dentro de um mesmo país.
Amizades entre membros de diferentes países, etnias ou culturas
ainda são pouco investigadas. De modo particular, pouco se sabe sobre
amizades internacionais ou interculturais envolvendo países latino-
americanos. A crescente globalização da economia e seus efeitos sobre as
relações internacionais e o aumento do contato entre pessoas de diferentes
origens devido à facilidade de deslocamento ou de comunicação entre
países torna o tema de amizades internacionais ou interculturais como algo
de relevância para o panorama social e cultural do século XXI.
Amizades e alianças são fenômenos que envolvem pessoas e nações,
ainda que em diferentes proporções. Em ambos os níveis, contudo,
amizades abrem possibilidade de cooperação, de ajuda mútua em diferentes
campos de atuação, social, cultural e científica.
A literatura sobre amizades interculturais e internacionais ainda
apresenta limitações. Amizades entre pessoas de diferentes grupos, etnias,
raças, culturas e nações são temas relacionados. Autores recentes têm
indicado a influência de fatores como raça e etnia na escolha de amigos
(Kao & Vaquera, 2006) e mesmo em atividades compartilhadas (Hunter &
Elias, 1999). Amizades interraciais e interétnicas têm revelado efeitos que
ultrapassam a díade de amigos, como a redução de preconceito racial e
integração social. Jacobson e Johnson (2006), por exemplo, relacionaram a
presença de amizade entre diferentes raças com a geração de atitudes mais
favoráveis em relação à aceitação de casamentos interraciais. Um grupo que
têm despertado o interesse dos autores voltados para amizades
169
internacionais ou interculturais são os estudantes internacionais (Antonio,
2004; Constantine e cols., 2005; Kudo & Simkin, 2003 Levin, Laar &
Sidanius, 2003; Yamazaki e cols.; 1997; Ying, 2002).
Amizades interculturais se dão entre pessoas de diferentes culturas
(Sias e cols., 2008) convivendo em um mesmo país (Collier & Bornman,
1999) inclusive como resultado de imigração recente (DeBruin-Parecki,
2003). Amizades internacionais representam um caso particular de
amizades interculturais pois seus participantes são cidadãos de diferentes
países. Neste caso, a expressão de refere mais apropriadamente à amizade
entre pessoas originárias de diferentes países, as quais mantêm uma ligação
importante com o seu país, como é o caso de estudantes internacionais ou de
profissionais temporariamente no exterior.
Os universitários internacionais representam o principal grupo
investigado neste tema. Amizades internacionais ou interculturais de
universitários estrangeiros geralmente têm sido investigadas quando estes se
encontram fora de seu país de origem (Bektas, 2008; Ward & Margoret,
2004), destacando suas dificuldades para estabelecer amizades com
pessoas do país anfitrião (Bailey, 2006; Brown, 2009a; Cushner & Karim,
2004; Pandian, 2008; Sawir, Marginson, Deumert, Nyland & Ramia, 2008).
As amizades interculturais de universitários nessas condições têm sido
consideradas importantes por contribuírem para a aprendizagem do idioma
e da cultura locais (Ward, 2001; Ward, Bochner & Furnham, 2001). Um
tópico importante nestes estudos refere-se às diferenças culturais, ora vistas
como negativas para as amizades (Gareis, 2000), ora como positivas (Kudo
& Simkin, 2003, Sias et al., 2008), motivando tais amizades.
Em relação a amizades internacionais, pouco tem sido investigado
no Brasil. Desidério (2006) indicou as dificuldades de estudantes africanos
do Programa Estudante-Convênio de Graduação para fazer amizades com
brasileiros. Subuhana (2009), por outro lado, referiu-se à amizade com
brasileiros de universitários africanos no Brasil como um fator positivo em
sua adaptação ao país. Finalmente, Andrade e Teixeira (2009) trataram
brevemente da amizade em pesquisa sobre a adaptação de estudantes
internacionais no Brasil (Andrade & Teixeira, 2009).
Como referencial teórico, a pesquisa se baseia na obra de Robert
Hinde, especificamente Hinde (1997), que enfatiza os aspectos descritivos e
a consideração de diferentes níveis de complexidade e suas relações
dialéticas na pesquisa sobre relações interpessoais.
As amizades internacionais de universitários brasileiros e,
particularmente, as amizades interamericanas, são pouco conhecidas.
Conhecer melhor essas amizades pode contribuir para promover uma maior
integração social e cultural entre universitários no continente americano.

170
O objetivo da presente pesquisa foi analisar alguns aspectos das
relações de amizade de universitários brasileiros, residindo e estudando no
Brasil, com cidadãos da América do Sul e do Norte.

Método

Participaram da pesquisa 20 estudantes universitários com idades


entre 20 e 25 anos, sendo oito do sexo masculino e 12 do sexo feminino,
alunos regularmente matriculados em cursos de graduação ou pós-
graduação da Universidade Federal do Espírito Santo, que declararam
manter relações de amizade com cidadãos de outros países da América do
Sul ou do Norte na fase de recrutamento de voluntários para participar da
pesquisa.
Os dados foram obtidos por meio de entrevistas semi-estruturadas,
com base em um roteiro pré-estabelecido, contendo perguntas fechadas e
abertas. Os participantes foram entrevistados individualmente e os dados
gravados e transcritos. Os dados transcritos das entrevistas foram analisados
através de análise do conteúdo, com base em Bardin (1977). As categorias
emergentes foram identificadas e organizadas de acordo com a literatura
sobre o tema.

Resultados

A Rede de Amigos - Foram citados 41 amigos de nove países das


Américas: EUA, México, Canadá, Argentina, Colômbia, Peru, Venezuela,
Equador e Bolívia. A idade dos amigos internacionais variou de 19 a 62
anos, porém dentre os 41 amigos citados, 34 (83%) estavam na faixa de 19 a
30 anos e 25 (61%) amigos citados tinham de 18 a 25 anos. A maioria dos
amigos era do sexo feminino (26 ou 63%). Dezoito amigos (44%) eram dos
EUA, sete (17%) do México e sete (17%) do Canadá. Os demais países
foram citados no máximo três vezes.
Origem da Amizade - Quinze participantes (75%) já haviam
viajado para o exterior. As amizades tiveram início por contato pessoal no
exterior (68%), contato pessoal no Brasil (23%) e contato online (9%).
Quatro (20%) entrevistados haviam morado com seus melhores amigos
estrangeiros em experiências de intercâmbio em outros países.
Percepção das Amizades Internacionais - Apenas dez participantes
puderam comparar as amizades com estrangeiros entre si, por terem mais de
um amigo estrangeiro. Destes dez, apenas duas não viam diferenças entre
essas amizades. Para outras duas, a idade era um fator diferenciador, sendo
mais amigo aquele na mesma faixa etária. Ainda outras duas disseram ser
mais íntimas de pessoas do mesmo gênero. Três estudantes consideravam as
171
diferenças como oriundas das características pessoais dos amigos, o que
determinaria o grau de intimidade e não a cultura dos mesmos. Para um
deles, a dificuldade com o inglês impedia que se tornasse mais íntima do
amigo estrangeiro. Outra citou a diferença entre os temas da conversação
com os amigos como fator de diferenciação entre eles. Um dos
entrevistados afirmou ser diferente as relações com amigos estrangeiros que
mantém contato virtualmente e os que ele encontra pessoalmente, visto que
com esses últimos tem um laço de amizade mais forte devido ao contato
pessoal.
Quanto à diferença entre amigos locais e internacionais, nove
(45%) consideraram as amizades locais mais próximas devido,
principalmente, à facilidade de manter contato: “acho que o conceito de
amizade aqui é muito mais válido do que lá. E as pessoas se tornam amigos
mais facilmente aqui no Brasil do que lá”. Por outro lado, outro afirmou o
contrário: “Não têm muita diferença. Apesar de que as pessoas de fora às
vezes são mais sinceras na amizade”. Oito (40%) entrevistados não viam
diferenças significativas entre amigos locais e internacionais. Vários
indicaram como única diferença o tempo de convívio, mas “o apreço pelas
pessoas é o mesmo em ambos os casos”. Outro participante afirmou que “as
amizades locais tendem a se dissipar caso não haja contato freqüente e,
com as amizades internacionais, a ligação se mantém mesmo com a
distância e a falta de oportunidade de contato”. Alguns afirmaram que uma
diferença entre as amizades locais e internacionais é o tipo de assunto
abordado nas conversas, visto que o assunto que mais impera nas conversas
com os amigos estrangeiros é a diferença entre os costumes.
Quanto ao relacionamento romântico com os amigos estrangeiros,
apenas três entrevistados tiveram amizades ligadas a algum relacionamento
romântico. Considerou-se haver envolvimento amoroso quando o
entrevistado(a) já havia “ficado” ou namorado com o(a) amigo(a). Nos três
casos, um garoto namorou durante dois meses, que foi o tempo em que
ficou no país da amiga estrangeira. Uma garota “ficou” mais de uma vez
com o amigo enquanto ele esteve no Brasil. Em um terceiro caso, o garoto
“ficou” apenas uma vez em uma festa com a amiga estrangeira.
Ao descrever seus amigos estrangeiros, 19 (95%) universitários
usaram adjetivos como: inteligente, alegre, sincero, companheiro, divertido,
engraçado, disponível, carente, prestativo, calmo, gente boa e comunicativo,
entre outros. Adjetivos tais como brincalhão, divertido, engraçado, alegre e
extrovertido perfizeram 38% dos adjetivos citados. De uma forma geral, os
adjetivos referentes aos aspectos positivos dos amigos representaram 93%
dos adjetivos citados. Já os adjetivos referentes aos aspectos negativos dos
amigos, tais como desorganizado, prepotente, briguento, ciumento, entre
outros, representaram apenas 7% do total. Seis (30%) entrevistados falaram
172
do que seus amigos gostam de fazer ao descrevê-los e apenas dois (10%)
participantes falaram dos aspectos físicos dos seus amigos.
Histórico da Amizade - Sete participantes (35%) conheceram seus
melhores amigos estrangeiros na escola e citaram acontecimentos marcantes
na escola onde se conheceram. Outros locais ou atividades como igreja,
futebol, festas, shopping e vizinhança foram relacionados aos
acontecimentos mais marcantes das amizades. Esses momentos incluíram
trocas de confidências, festas, falecimento de parentes e despedidas.
Apenas dois universitários haviam mantido o último contato com
seu amigo internacional pessoalmente, visto que ambos se encontravam no
Brasil. Dos outros 18 entrevistados, a maioria havia mantido seu último
contato com o amigo estrangeiro via internet, sendo o MSN o meio mais
citado, seguido do e-mail. Um participante citou o skype como o meio
online usado no último contato. O telefone foi citado como o meio do
último contato por quatro entrevistados e uma entrevistada considerou como
último contato quando ela mandou um cartão de Natal para a amiga.
Nove (45%) estudantes não tinham nenhum tipo de contato com as
famílias. Os tipos de contato com as famílias dos outros 11 (55%)
entrevistados foram diversos, ocorrendo entre o amigo estrangeiro e os pais
do participante, ou entre o participante e os pais do amigo estrangeiro.
Também foi citado o contato com outros familiares tais como irmãos, filhos
e cunhados. No caso de uma das entrevistadas, a amizade entre ela e uma
menina estrangeira foi precedida da amizade entre seus pais: “Os meus pais
e os pais da minha amiga são amigos e eles sempre vêm aqui no Brasil nos
visitar e nós já fomos uma vez na Argentina visitá-los.”
Interesses Comuns e Atividades Compartilhadas - Para indicar
áreas de interesse em comum com o melhor amigo estrangeiro, os
participantes selecionaram uma ou mais das seguintes opções: lazer (17 ou
85%), cinema (11 ou 55%), música (15 ou 75%), turismo (13 ou 65%),
literatura (4 ou 20%), esportes (7 ou 35%), artes (3 ou 15%), religião (5 ou
25%), família (8 ou 40%). Outros ainda foram citados, como filosofia (1 ou
5%), gastronomia (2 ou 10%) e relacionamentos amorosos (2 ou 10%). A
opção “lazer” foi a mais comum e a opção “ciência” não foi considerada
como área de interesse comum por nenhum dos participantes.
As atividades com amigos mais citadas pelos entrevistados quando
fisicamente próximos foram sair à noite para bares, boates e festas (60% dos
entrevistados) e ir à praia (45% dos entrevistados). Ir ao cinema, sair para
comer e conversar foram citadas por 20% dos entrevistados (cada
atividade). Outras atividades como ouvir música, ir ao shopping, à igreja e
fazer turismo também foram citadas. Um dos entrevistados disse: “a gente
ia à praia, nadava, levei ele pra surfar, para tomar cerveja no quiosque”; e

173
outro: “quando fisicamente próximos nós jogamos futebol, ouvimos música,
visitamos outros amigos em comum”.
Comunicação - Os principais meios de comunicação entre os
entrevistados e seus amigos estrangeiros foram a internet (68%), o telefone
fixo ou celular (16%), o contato pessoal (9%) e por cartas (7%). Três
idiomas foram utilizados pelos entrevistados na comunicação com amigos
estrangeiros: inglês, português e espanhol. O idioma mais usado foi o inglês
(66%), seguido pelo português (25%) e espanhol (9%). Mais de um meio de
comunicação ou idioma podia ser empregado na comunicação com o
mesmo amigo.
Quanto aos temas de conversação por escrito (Internet), grande
parte dos entrevistados (75%) conversava com amigos estrangeiros sobre os
acontecimentos do dia-a-dia, entre outros. Treze (65%) conversavam sobre
assuntos como carreira, profissão e trabalho. Assuntos como amigos em
comum, relacionamentos, família e futuro foram citados por 30% dos
entrevistados (cada um). Outros assuntos como planos para se encontrarem
novamente, estudos, música, futebol, esportes, problemas e troca de
conselhos, religião e fatos que aconteceram quando estavam fisicamente
próximos também foram citados como assuntos mais falados em
conversações por escrito.
Dificuldades e o Significado das Amizades Internacionais - As
principais dificuldades citadas pelos entrevistados foram distância física
(14), diferença de idioma (7) e diferenças culturais (4). Quanto à distância
física, uma entrevistada declarou que com a distância “a intimidade fica
prejudicada, não tem jeito. Mas quando a gente se encontra pessoalmente a
intimidade volta a ser alta!”. Quanto ao idioma, um entrevistado disse: “o
idioma era difícil no começo e como ela era muito geniosa, ela ficava
nervosa porque a gente não entendia tudo o que ela estava falando. E ela
falava muito rápido também, não tinha muita paciência. Era engraçado!
Mas com o tempo ela aprendeu e correu tudo bem. Ensinamos uma à outra
algumas palavras e a comunicação fluiu”.
As diferenças culturais foram consideradas uma dificuldade por
poucos participantes (20%). Um declarou: “diferença cultural é mais ela
que sente, com relação à música e à comida, principalmente”. Outra
afirmou que a “diferença cultural marca bastante”. Ao contrário dessas
declarações, três entrevistados (15%) consideraram a diferença cultural
como algo agregador, por exemplo: “diferenças culturais, eu não vejo como
dificuldade e sim como oportunidade pra conhecer novas culturas”.
Quanto ao significado de amizades internacionais, cinco (25%) dos
vinte entrevistados consideraram que estas têm o mesmo significado das
amizades locais. Em contrapartida, quinze (75%) consideraram o
significado das amizades internacionais como diferente visto que há uma
174
“troca cultural e de valores também”. Diferenciações tais como: “as
amizades internacionais... têm o enriquecimento cultural de ambas as
partes, que aprendem muito com a forma de lidar com o outro” mostraram
aspectos positivos das amizades internacionais. Declarações como: “lá no
Canadá é mais difícil você estabelecer uma amizade porque lá as pessoas
são mais fechadas, mais frias, respeitam mais o espaço dos outros”
mostraram as dificuldades de se fazer amigos de culturas diferentes.
O País do Melhor Amigo Estrangeiro - Os participantes
comentaram suas percepções, sentimentos e conhecimento do país do
melhor amigo estrangeiro. Dos vinte universitários entrevistados, nove
(45%) já haviam estado no país do melhor amigo e, desses nove, oito
descreveram sua experiência de forma positiva, como uma experiência
maravilhosa ou que gostaram muito. Um desses entrevistados chegou a
dizer: “foi a melhor e a pior experiência da minha vida, ao mesmo tempo”.
Treze entrevistados (65%) descreveram seus sentimentos em
relação ao país do melhor amigo estrangeiro de forma positiva,
demonstrando admiração por diversos aspectos. Uns declararam admiração
pelas pessoas, pela sociedade, outros pela economia e educação do país,
entre outros. Em relação às características do país do melhor amigo
estrangeiro, uns enfatizaram aspectos positivos como o desenvolvimento
tecnológico, ou negativos, como o descaso com os imigrantes, a pouca
saúde dos hábitos alimentares e a frieza dos americanos, sendo que um
deles descreveu os EUA com as seguintes palavras: “liberdade,
consumismo, riqueza, poder e guerra”. Em contrapartida, alguns
entrevistados apontaram características bem positivas em relação ao
Canadá, por exemplo: “a infinita calma. A liberalidade das leis e a certeza
de que as poucas que existem serão cumpridas. Honestidade e educação
também me chamam atenção”. Outros atribuíram características positivas
aos países latinos, comparando-os com o Brasil, por exemplo: “a Colômbia
é um país caliente, de pessoas animadas como no Brasil. É um país que tem
praias, ilhas e muitas outras belezas naturais. Me encanta a língua deles,
por ser bem próxima ao português”.
Quanto à mudança da percepção de um país em função da amizade
com um habitante desse país, onze (55%) reconheceram que a percepção
mudou para melhor. Para nove (45%), a imagem se manteve a mesma. Uma
disse que contribuiu muito mais com a mudança de imagem que seu amigo
tinha do Brasil do que ele contribuiu com a imagem que ela tinha dos EUA:
”[...] ele achava que tinha macacos na rua por aqui e viu que não era nada
disso quando ele veio pela primeira vez aqui no Brasil”.
Uma lista de interesses em relação ao país do melhor amigo
estrangeiro foi apresentada aos entrevistados. 70% deles manifestaram
interesse em visitar o país e apenas 10% disseram que não possuíam
175
nenhum tipo de interesse em relação ao país do melhor amigo estrangeiro.
Além de visitar ainda tinham interesse em estudar (8 ou 40%), trabalhar (9
ou 45%) ou residir (7 ou 35%) no país do amigo.
Ações Propostas para Aumentar as Relações entre Países - A
ação mais citada foi a promoção de intercâmbios de trabalho e estudo
(75%). Segundo um entrevistado: “essa é uma grande maneira de promover
amizades internacionais, interculturalismo, quebra de preconceitos e
paradigmas e até mesmo a paz mundial por facilitar o diálogo entre
pessoas de nações diversas”. Apenas três (15%) citaram a internet como um
meio de aumentar relações entre países. Alguns acreditavam que o governo
brasileiro poderia agir nesse sentido dando incentivos para estudantes que
quisessem fazer intercâmbio e para famílias que se disponibilizassem a
receber pessoas de outros países. Estimular o aprendizado de línguas
estrangeiras também foi citado como uma ação para aprender sobre outras
culturas e aumentar relações entre diferentes países. Outros modos ainda
foram mencionados, como “na própria universidade, é grande a
diversidade, pessoas de vários países diferentes. Sempre há oportunidades
de fazer amizades internacionais”.

Discussão

Relacionamentos se estendem ao longo do tempo e sofrem


mudanças, sendo importante investigar seu desenvolvimento (Hinde, 1997).
Quanto ao início das amizades internacionais, o contato pessoal no exterior
ou Brasil mostrou-se como o principal meio de se fazer amigos, apesar da
Internet ser o meio de comunicação mais empregado com esses amigos.
Mesmo as sugestões para aumentar as relações de amizade entre países
diferentes destacam intercâmbios, o que pressupõe o contato pessoal. No
histórico das amizades, são eventos compartilhados pessoalmente os que
mais aparecem como episódios marcantes, como festas ou despedidas.
Desta forma, apesar dos avanços nos meios de comunicação o contato
pessoal ainda continua central para as relações de amizade.
Quanto ao significado das amizades internacionais (no caso,
interamericanas), estas se diferenciam das locais podendo apresentar
desvantagens, como o fato de serem menos próximas, mas também
vantagens, como as possibilidades de troca cultural, o que foi considerado
positivo. A literatura sobre amizades internacionais ou interculturais têm
encontrado aspectos negativos (Gareis, 2000) e positivos (Kudo & Simkin,
2003, Sias et al., 2008) nesses relacionamentos.
Como era esperado, as características do melhor amigo estrangeiro
são predominantemente positivas, com destaque para a inteligência, o
humor (alegre, divertido, engraçado, brincalhão, divertido, extrovertido),
176
entre outras qualidades, como ser sincero, companheiro, disponível, carente,
prestativo, calmo e comunicativo, entre outros. Grande parte destas
qualidades manifesta-se nas interações sociais entre amigos, como na auto-
revelação (sincero) e no companheirismo (companheiro).
As maiores dificuldades encontradas nessas amizades foram a
distância física, a diferença de idioma e diferenças culturais. As amizades
internacionais, portanto, parecem apresentar algumas propriedades
particulares, como a ambivalência das diferenças culturais que também
foram percebidas como possibilitando trocas culturais importantes. Na
literatura, as dificuldades estão mais relacionadas ao fazer amigos de
culturas diferentes (Bailey, 2006; Brown, 2009a).
Segundo Hinde (1997), o relacionamento interpessoal não se limita
às interações entre duas pessoas, mas diversos níveis de complexidade estão
presentes e afetam e são afetados pelos relacionamentos, além do ambiente
físico e das estruturas sócio-culturais. No presente caso, os dados sugerem
que a relação entre amigos internacionais não se limita à díade de amigos,
mas envolve claramente o relacionamento pessoa-grupo (ou nação). Assim,
os participantes não eram alheios às nações representadas pelos amigos,
mas mostravam diferentes níveis ou tipos de interesse em relação a esse
país. Vários demonstraram interesse em visitar, estudar, trabalhar e mesmo
residir no país do melhor amigo estrangeiro, indicando que uma amizade
internacional abre caminhos entre pessoas e entre pessoas e nações.
Um ponto particular diz respeito à influência dos amigos na forma
como os universitários brasileiros concebiam ou percebiam o país do amigo
e os efeitos da amizade sobre essa percepção. O fato de vários participantes
considerarem que o relacionamento com um amigo estrangeiro tenha
melhorado a visão do país desse amigo é relevante em termos teóricos e
práticos. Fenômeno semelhante já havia sido observado nas relações raciais
(Jacobson & Johnson, 2006). Do ponto de vista teórico, a influência entre
diferentes níveis de complexidade, como relacionamento interpessoal e
entre grupos ou nações, é um tema relevante. Do ponto de vista prático,
pode-se esperar que um número expressivo de amizades entre pessoas de
diferentes países possa contribuir para a diminuição de preconceitos em
relação a esses países.
Essa relação entre gostar do amigo estrangeiro e sentir simpatia por
seu país, o que ocorreu na maioria dos casos, sugere a necessidade de mais
estudos investigando o quanto relações interpessoais podem estar ligadas a
relações internacionais entre nações.
Os dados sugerem que a existência de amizades pessoais possa estar
associada a uma maior aproximação entre diferentes nações, tomando-se
como perspectiva a relação indivíduo-grupo ou nação. Por outro lado, a
simpatia ou admiração por um país também pode estar associada com a
177
busca de amizades com cidadãos desse país. Os dados indicam que os
universitários brasileiros estão envolvidos com amizades internacionais com
pessoas de países que, aparentemente, mantêm uma maior identificação
cultural com o Brasil. Neste caso, há laços mais estreitos com os países da
América do Norte, apesar da maior proximidade física do Brasil, do que
com outros países da América do Sul. Em pesquisas futuras, seria
importante investigar não apenas as amizades já existentes mas também
quais os fatores que limitam a existência de um número maior de amizades
interamericanas e, particularmente, de amizades com outros sul-americanos.
Em relação à literatura sobre amizades internacionais, o presente
trabalho contribui para uma extensão do sentido da amizade, não como algo
presente somente durante o período de contato físico, mas se estendendo no
tempo e apesar da distância, o que não tem sido investigado na maioria dos
casos. A literatura internacional tem tratado de amizades interculturais ou
internacionais de universitários estudando no exterior (Antonio, 2004;
Constantine e cols., 2005; Kudo & Simkin, 2003; Levin, Laar & Sidanius,
2003; Yamazaki e cols., 1997; Ying, 2002), restringindo-se a um período
limitado. Nesse sentido, o presente trabalho mostrou que o valor da amizade
não se restringe a um momento ou fase de afastamento do país, mas essas
amizades podem se tornar duradoras. Esta perspectiva também revela outras
dificuldades e potencialidades dessas amizades. O presente trabalho
procurou investigar amizades internacionais de universitários brasileiros e
cidadãos das Américas como relacionamentos mais duradouros, em que
alternam períodos de contato e ausência.

Conclusão

Do ponto de vista da estrutura das redes de relacionamento, destaca-


se, ao menos parcialmente, o distanciamento da comunidade latino-
americana, revelado pelo pequeno número de amizades com pessoas desses
países em comparação com os EUA e pelo uso pouco freqüente do idioma
espanhol entre amigos. Possivelmente, essa rede reflete maior identidade
cultural dos universitários brasileiros com cidadãos desses países. Também
pode-se apontar que as amizades não estão claramente relacionadas a
experiências ou tentativas de cooperação cultural ou científica entre os
países. Curiosamente, o item “ciência” como interesse compartilhado, por
exemplo, não foi indicado por nenhum participante. Duas metas em longo
prazo poderiam ser uma expansão de amizades com cidadãos de países de
língua espanhola e uma maior integração e cooperação cultural e científica
associada às amizades internacionais. De forma geral, uma maior e melhor
integração social e cultural de universitários brasileiros com a comunidade

178
das Américas contribuiriam para o desenvolvimento social e cultural de
todo o continente.

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181
16

AMIZADES INTERCONTINENTAIS DE
ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS BRASILEIROS:
UM ESTUDO EXPLORATÓRIO

Agnaldo Garcia,Fernanda Gomes Dettogni


Lorena Queiroz Merizio Cost e Marco Aurélio Togatlian

Amizades entre membros de diferentes grupos, etnias, países ou


culturas ainda são pouco investigadas, especialmente no continente sul-
americano. Os avanços recentes na tecnologia da comunicação e nos
sistemas de transportes têm permitido um maior contato entre cidadãos de
diferentes países, possibilitando uma maior integração com efeitos no
desenvolvimento social, cultural, econômico e científico. Formas de
transporte mais eficientes e acessíveis e o acesso a meios de comunicação
de penetração mundial (como aqueles possibilitados pela Internet) permitem
uma ampliação e intensificação da comunicação entre pessoas
geograficamente distantes. As melhorias esperadas para as condições
sociais, econômicas, culturais e tecnológicas do país provavelmente
possibilitarão, a um número cada vez maior de jovens universitários, iniciar
e manter relacionamentos de amizade com habitantes de diferentes países,
criando oportunidades para relacionamentos e amizades internacionais.
A literatura sobre amizades interculturais e internacionais ainda é
restrita. Alguns autores têm investigado diferentes aspectos das amizades
interétnicas e interraciais, como o papel da identificação racial e étnica nas
escolhas de amigos (Kao & Vaquera, 2006) e nas atividades compartilhadas
(Hunter & Elias, 1999). Amizades entre raças ou etnias diferentes têm
revelado efeitos importantes sobre a diminuição do preconceito racial e
integração social, gerando atitudes mais favoráveis em relação à outra raça,
como no caso da aceitação de casamentos interraciais (Jacobson & Johnson,
2006). As investigações sobre amizades interétnicas, interraciais ou
interculturais têm se concentrado em países nos quais diferentes raças ou
etnias convivem em função de movimentos migratórios. Um grupo
específico de estudos se refere às amizades interculturais ou internacionais
de universitários estudando no exterior (Yamazaki et al., 1997; Levin, Laar
& Sidanius, 2003; Constantine et al., 2005; Ying, 2002; Antonio, 2004;
Kudo & Simkin, 2003). Neste caso, os universitários e seus amigos tendem
a permanecer vinculados a seu país de origem.
Amizades internacionais ou interculturais são marcadas pelas
diferenças entre as culturas dos indivíduos (Sias et al., 2008) e podem
resultar da diversidade cultural do próprio país, com no caso da África do
182
Sul (Collier & Bornman, 1999) de imigração recente (e.g. DeBruin-Parecki,
2003) ou de estrangeiros temporariamente em outro país, como é o caso dos
estudantes universitários internacionais, que representa o principal grupo
investigado neste tema. Estas amizades têm sido investigadas em diferentes
situações, geralmente referindo-se a amizades de estudantes estrangeiros
fora país (Ward & Margoret, 2004; Bektas, 2008). Por vezes, estudos são
realizados sobre universitários do país anfitrião em contato com estudantes
estrangeiros (Ward, 2001). As amizades com pessoas de outro país sofrem
limitações e dificuldades e as amizades tendem a se dar com pessoas do
mesmo país (Bailey, 2006; Pandian, 2008; Brown, 2009a; Cushner &
Karim, 2004; Sawir, Marginson, Deumert, Nyland & Ramia, 2008).
Amizades interculturais contribuem para a aprendizagem do
idioma e da cultura local enquanto aquelas com pessoas do próprio país
reduzem o estresse e a solidão (Ward, 2001; Ward, Bochner & Furnham,
2001) e fornecem diferentes formas de apoio (Brown, 2008, Zhao &
Wildemeersch, 2008). As diferenças culturais, fator central nestas
amizades, podem criar dificuldades para fazer amigos de outros países
(Gareis, 2000), mas também podem atuar positivamente nesses
relacionamentos (Kudo & Simkin, 2003, Sias et al., 2008).
No Brasil, há poucos trabalhos relacionados a amizades de
estudantes internacionais. Alguns estudos sobre estudantes estrangeiros
indicaram suas dificuldades para fazer amizades com brasileiros (Desidério,
2006). Subuhana, 2009, analisando a experiência sociocultural de
universitários da África Lusófona no Brasil refere-se à amizade com
brasileiros como um fator positivo em sua adaptação ao país. Finalmente,
Andrade e Teixeira (2009), em estudo sobre a adaptação de estudantes
internacionais de um programa de convênio à universidade no Brasil
incluíram itens sobre amizade em avaliações de adaptação e satisfação com
o contexto de vida no país (Andrade & Teixeira, 2009).
Como referencial teórico, a pesquisa se baseia em Hinde (1997), que
enfatiza os aspectos descritivos e a consideração de diferentes níveis de
complexidade e suas relações mútuas, e em Adams e Blieszner (1994), que
enfatizam os processos e aspectos estruturais das amizades de adultos.
As amizades internacionais de universitários brasileiros são pouco
conhecidas, contudo, representam uma área de investigação com relevância
científica teórica, por representarem amizades entre pessoas com
características étnicas ou culturais diferentes. Do ponto de vista social,
conhecer melhor essas amizades pode indicar formas para uma maior
integração social e cultural entre universitários desses continentes,
permitindo o desenvolvimento de programas de inserção de universitários
brasileiros em redes internacionais de amizades, com seus respectivos
benefícios para a produção científica, artística e cultural em geral.
183
O objetivo da presente pesquisa foi analisar alguns aspectos das
relações de amizade intercontinentais de universitários brasileiros (jovens
adultos com idades entre 18 e 25 anos), residindo e estudando no Brasil,
com cidadãos de países da Europa, África, Ásia e Oceania. Quanto aos
objetivos específicos, foram investigados os seguintes pontos: (a) a rede de
amigos estrangeiros (identificação dos amigos, incluindo gênero, idade e
país de origem); (b) histórico da amizade; (c) atividades compartilhadas e
interesses comuns; (d) a comunicação com amigos estrangeiros (idiomas e
meios de comunicação); (e) a percepção da amizade: diferenças entre
amizades; (f) características dos amigos estrangeiros; (g) o significado da
amizade; (h) dificuldades da amizade; (i) a percepção do país do melhor
amigo estrangeiro; e, (j) propostas para aumentar as relações de amizades
entre cidadãos de países diferentes.

Metodologia
Participaram da pesquisa 20 estudantes universitários com idades
entre 18 e 25 anos, alunos regularmente matriculados em diferentes cursos
de graduação ou pós-graduação da UFES, que haviam declarado manter
relações de amizade com cidadãos de países da Europa, Ásia, África ou
Oceania na fase de recrutamento de voluntários para participar da pesquisa.
Os dados foram obtidos por meio de entrevistas semi-estruturadas, com
base em um roteiro pré-estabelecido, contendo perguntas fechadas e abertas.
Aqueles que aceitavam participar da pesquisa assinavam um Termo de
Consentimento para Participação em Pesquisa. Os participantes foram
entrevistados individualmente e os dados foram gravados e transcritos. Os
dados transcritos das entrevistas foram analisados através de análise do
conteúdo, com base em Bardin (1977). As categorias emergentes foram
identificadas e organizadas de acordo com a literatura sobre o tema. Um
roteiro de entrevista foi desenvolvido visando identificar os pontos acima
indicados: (a) a rede de amigos estrangeiros (identificação dos amigos,
incluindo gênero, idade e país de origem); (b) histórico da amizade; (c)
atividades compartilhadas e interesses comuns; (d) a comunicação com
amigos estrangeiros (idiomas e meios de comunicação); (e) a percepção de
diferenças entre amizades; (f) características dos amigos estrangeiros; (g) o
significado da amizade; (h) dificuldades da amizade; (i) a percepção do país
do melhor amigo estrangeiro; e, (j) propostas para aumentar as relações de
amizades entre cidadãos de países diferentes.

Resultados
A rede internacional de amigos - Cada participante indicou de um
a cinco amigos estrangeiros, cujas características estão indicadas na Tabela
1. De forma geral, a idade do participante e a dos amigos era próxima, mas
184
a origem dos amigos foi diversificada. O contato era principalmente com o
próprio amigo, sendo pouco o contato com as famílias. Dez universitários
não tiveram contato com as famílias do amigo. Para quatro, o contato foi
superficial (como cumprimentar, conversar ao telefone, pela internet ou por
recados enviados pelo amigo). Em três casos, as famílias visitaram o país de
origem dos amigos. Também tiveram contato com outros familiares como
irmãos, filhos, cunhados, etc. Apenas um mantinha contato com a família
do amigo no momento da entrevista. Quatro entrevistados tiveram essas
amizades ligadas à algum relacionamento romântico, tendo já “ficado” com
o(a) amigo(a).
Tabela 1. Rede internacional de amigos (* já viajou para o exterior).
Participante Amigo 1 Amigo 2 Amigo 3 Amigo 4 Amigo 5
Gênero e Gênero, Gênero, Gênero, Gênero, idade e país Gênero,
idade idade e país idade e país idade e idade e país
país
P1-M24 M20-Japão
P2*-F19 F19-Suíça F20- F20- F18-Japão M22-
Noruega Suécia Holanda
P3*-M18 F19-
Alemanha
P4*-M19 M20- M20- M19-
Alemanha Guiné- Angola
Bissau
P5*-M23 M22-Itália
P6*-M24 F23-
Alemanha
P7-M23 F21-
Alemanha
P8*-F22 M23-Áustria
P9*-F24 M27-França F25-França
P10*-F20 M42-Nova M20-Nova M21- F42-Nova Zelândia
Zelândia Zelândia Nova
Zelândia
P11-F21 M23- M24- M23- M23-Alemanha M25-
Holanda Holanda Holanda Holanda
P12-F24 M30-Serra F40-
Leoa Escócia
P13*-F21 F17-
Alemanha
P14*-F21 M31- M28-Sérvia F26- M21-Alemanha
Espanha Eslovênia
P15-F20 F09-China
P16*-F23 F25-Espanha M23-
Espanha
P17-M25 F23-França F21-Itália
P18-M19 F-Espanha F16-
Alemanha
P19*-M21 M28-Sérvia M26-Rússia M31-Costa F25-França
doMarfim
P20*-M25 M21-Rússia
185
Histórico das amizades - O início da amizade se deu por contato
pessoal no exterior (43%), contato pessoal no Brasil (49%) ou contato
online (8%). Vários conheceram os amigos em festas no Brasil, como
carnaval, festas na universidade ou boates e aniversários: “nos conhecemos
no carnaval de Salvador, em 2005. Mesmo sendo alemã ela curtiu o
carnaval como se fosse uma brasileira nata” (P6). Outros haviam
conhecido o amigo praticando algum tipo de esporte ou ao receber ajuda no
exterior: “era nosso primeiro mês na França e ainda não falávamos a
língua francesa direito, então resolvemos pedir ajuda ao casal. Eles
acabaram escolhendo por nós e fazendo nosso pedido” (P9). O contato
ainda se deu em ambiente de trabalho (ao atender o futuro amigo como
cliente), ao receber ajuda para conseguir um emprego no exterior, em uma
palestra sobre Psicanálise e em viagens.
O intercâmbio foi a maneira pela qual se formaram várias amizades,
ao serem recebidos na casa de outras pessoas ou quando parentes
hospedavam estrangeiros no Brasil: “minha amiga alemã veio fazer um
intercâmbio e ficou na casa de meus tios por um ano. Assim, tivemos
bastante contato, passeamos juntas, conversávamos bastante e ela se
tornou parte de minha família. Sempre muito interessada para saber o
significado das coisas, ela perguntava tudo” (P13). Além do contato
pessoal, fizeram contato pela internet, através de jogos de computador e
troca de e-mails e pelo MSN.
Os episódios marcantes da amizade aconteceram no Brasil ou no
exterior. Vários citaram festas como marcantes: “fazíamos muitas festas
quando o P estava aqui. Todo final de semana fazíamos churrascos à
brasileira, com caipirinha e tudo. Ele adora e festas e em todas ficava
muito bêbado” (P8). Outros destacaram o apoio e disponibilidade dos
amigos em ajudar: “como, por exemplo, no dia em que ele montou um
computador só para mim, ou quando participou comigo de atividades da
escola lavando carros para arrecadar fundos para uma apresentação de
teatro” (P10). Passeios pela cidade e visitas a pontos turísticos também
foram indicados como marcantes.
As brincadeiras e os momentos de despedida também deixaram
marcas: “o momento mais marcante foi quando ele foi embora e falou que
estava indo, mas que iria voltar para não sair mais daqui. Ele quer morar
no Brasil, pois ele fala que não existem no mundo pessoas tão boas como
aqui” (P1).
Atividades compartilhadas e interesses comuns - Os interesses
comuns estavam ligados principalmente ao lazer (19), música (13), turismo
(11), cinema (10), esportes (8), literatura (6), família (5), artes (4), religião
(3), trabalho (3), ciências (3), festas (1), gastronomia (1) e relacionamentos
(1). Também foram citados assuntos acadêmicos, como ciência, tecnologia
186
e desenvolvimento sustentável, além de idiomas. Apenas um não tinha
muitos interesses em comum com o amigo estrangeiro por serem muito
diferentes.
As atividades compartilhadas com o amigo variavam de acordo com
a proximidade. Quando fisicamente próximos, as atividades em comum
foram jogos (dama, baralho, xadrez e videogames), esportes (futebol e
vôlei), ir a festas, praia, cinema, restaurantes, clubes, shoppings,
supermercados, casa de amigos, pic-nics, além de acampar, conversar, rir,
contar piadas, estudar, viajar, passear, cozinhar, ver filmes, ir ao trabalho,
escola, igreja ou parque juntos, sair para comer, beber ou dançar. Quando
fisicamente distantes, as atividades estavam ligadas à internet, como jogos
virtuais, bate-papo (MSN), além de e-mails. Dois participantes não
compartilhavam atividades com o amigo e não mantinham contato quando
ausentes.
Quanto aos tipos de conversas e trocas de informações quando
distantes dos amigos, os assuntos mais citados foram os relacionados à vida
cotidiana do amigo, assuntos pessoais, família, faculdade, trabalho, festas,
esportes, namoro, amigos em comum, mulheres ou homens, planos para o
futuro, política ou acontecimentos em cada país. E ainda lembranças dos
encontros pessoais, episódios memoráveis de quando viviam juntos e
programação de novos encontros e viagens.
A comunicação com amigos estrangeiros - A comunicação com
um amigo podia utilizar um ou mais meios de comunicação. Os principais
meios utilizados foram o contato pessoal (22%), telefone (fixo ou celular)
(17%), Internet (55%) e cartas (6%). A comunicação com o amigo também
podia dar-se com o uso de um ou mais idiomas. Os principais idiomas
utilizados foram inglês (48%), português (34%), francês (7%), espanhol
(5%), italiano (2%) e russo (4%).
Diferenças entre amizades internacionais - Alguns participantes
não puderam comparar suas amizades internacionais por terem somente um
amigo estrangeiro. Dos que tinham mais de um amigo estrangeiro, quatro
não viam diferenças significativas entre essas amizades. Parte dos sete
participantes que reconheceram diferenças, explicaram que estas eram
devidas a diferentes graus de intimidade: “a convivência é diferente, há
mais intimidade com uns que com outros” (P4), a diferentes níveis de apoio
recebido no exterior: “na França conheci muitas pessoas, mas hoje em dia
considero amigos somente esses dois que foram os que mais me apoiaram
pelos três meses que fiquei lá” (P9) e à presença ou não do amigo no Brasil,
possibilitando a convivência.
Na comparação entre amizades locais e internacionais, alguns (seis)
as consideraram iguais ou semelhantes e outros (14) as consideraram
diferentes. A diferença foi atribuída a diferentes comportamentos em função
187
das diferenças culturais e à falta de convivência e intimidade: “é diferente,
não há mais contato físico, a distância é grande. Você acaba não tendo
muita intimidade como tem com seus amigos que você vê sempre” (P13).
Alguns consideraram as amizades internacionais mais superficiais que as
locais: “as amizades estrangeiras são superficiais, enquanto as locais são
amizades sólidas” (P6) ou o inverso: “estrangeiros são mais difíceis de
relacionar no começo, são mais fechados, mas depois de um tempo, em que
há maior proximidade, eles se tornam amigos bastante fiéis e queridos. A
amizade tende a ser mais verdadeira que as outras” (P11).
Características dos amigos estrangeiros - Apenas um participante
falou de aspectos físicos do amigo. Os outros 19 entrevistados usaram
adjetivos como: engraçado, divertido, alegre, inteligente, extrovertido, legal,
simpático, prestativo, brincalhão, curioso, amigo, culto e comunicativo,
destacando aspectos positivos dos amigos. Também indicaram hábitos ou
gostos desses amigos, como jogar futebol, sair para beber e fumar, sair para
se divertir, ajudar os amigos, sair para festas e praias, viajar e conversar e
gostar de comida e bebidas brasileiras (feijoada, guaraná e caipirinha).
Ainda foram caracterizados como pontuais, responsáveis, não muito
afetivos ou muito afetivos, respeitadores e estudiosos. Adjetivos menos
positivos como desorganizado, desocupado e calado, foram pouco
empregados. A percepção das características do amigo mudou no decorrer
da amizade. Para alguns, os estrangeiros eram um pouco fechados ou
desconfiados no início mas depois se revelaram mais comunicativos: “o que
pude notar de mais diferente no jeito dela é que, de fato, apesar de
amigável no começo, ela tinha meio essas coisas de „não me toque‟, pois
ficava muito na dela, mas quando a conheci melhor, vi como era
descontraída, bem humorada e engraçada” (P14).
Alguns se referiram ao apoio dos amigos quando moraram fora do
país, compartilhando vários momentos, bons e ruins.
O significado da amizade - Todos os participantes trataram a
amizade como algo muito importante e positivo. Treze entrevistados
associaram amizade a confiança, troca e apoio. Em síntese, amizade é
desejar o bem do outro sem desejar nada em troca, cada um podendo se
expressar a seu modo. Trata-se de um relacionamento marcado pelo
companheirismo, responsabilidade, reciprocidade e sinceridade e que se
constrói sobre a confiança. Significa estar ao lado em bons e maus
momentos. A amizade é o alicerce para o bem-estar e a felicidade, onde se
deposita esperança e se compartilham idéias. Na amizade, há interação e
identificação e um vínculo gerado pela atração entre os que partilham algo
essencial. É um imenso apoio que se recebe quando é preciso e um
acolhimento de grande valor. Amigos são a família que se escolhe, sendo
algo tão ou mais importante que a família de sangue. Ter amigos é saber
188
lidar com as diferenças de cada um, aprendendo a ser tolerante e respeitar o
próximo.
Quanto ao significado específico de amizades internacionais, 14
destacaram o acréscimo em conhecimentos e experiência devido às
diferenças culturais, permitindo o aprendizado da cultura e das tradições de
outros países e povos, sendo como as amizades locais do ponto de vista
pessoal: “na Nova Zelândia tive o contato com pessoas das mais diversas
culturas e nacionalidades e isso foi de grande enriquecimento tanto pessoal
quanto cultural. Pessoal, pois um contato com outra cultura faz você
enxergar a sua própria, se reconhecer na diferença e aprender um pouco
inclusive sobre si e de onde vem a partir desses contrastes. E também,
claro, em nível de trocas de experiências no contato com pessoas
diferentes. Culturalmente é também incrível a possibilidade de estar de
frente para um novo tão diferente de sua realidade e poder vivenciar e fazer
parte da realidade desse outro. O que considero mais legal dessa vivência
foi o prazer desses relacionamentos que me permitiram estar naquela
cultura, de sentir um pouco a realidade deles, de fazer parte do mundo
deles também” (P10).
Entre outros ganhos culturais, dá-se o aprimoramento de um idioma
diferente, como o inglês, além da troca de visões de países diversos. As
vantagens profissionais se referem a possibilidades futuras de trabalho em
outro país.
Dificuldades nas amizades internacionais - As principais
dificuldades foram a ausência física (11 participantes), o idioma (4) e as
diferenças culturais (2). Para alguns não há dificuldades: “idioma e a
diferença cultural não interferem na relação. Houve uma boa adaptação e
aceitação de ambos” (P6). Outros indicaram falta de tempo para manter
contato: “como nós trabalhamos e estudamos, além de estarmos sempre
ocupados, ainda há o fuso horário que é de cinco horas e atrapalha muito”
(P11). Para outro, a maior dificuldade era o temperamento da amiga: “o que
mais complica é o temperamento da minha amiga, mas a gente se parece
nisso também, era até bom para ver que quando eu ficava assim, como era
a resposta das pessoas. Ela se deixava atingir muito fácil. Criava
dificuldade onde nem sempre tinha e era um pouco cabeça dura pra aceitar
outras opiniões” (P14).
A percepção do país do melhor amigo estrangeiro - Quatro
pontos foram investigados em relação à percepção do país do melhor amigo
estrangeiro: o nível de conhecimento acerca do país, suas principais
características, como ter um amigo mudou a imagem do país e os interesses
em relação ao mesmo. O nível de conhecimento acerca do país do melhor
amigo estrangeiro variou do básico a um conhecimento amplo. Apenas dois
universitários relataram conhecer pouco o país. A maioria citou
189
características positivas, em termos físicos (paisagens) ou humanos (social,
político, econômico e cultural), destacando sua beleza natural ou a
educação, cultura e economia da nação. Em alguns casos, foram
mencionados aspectos positivos e negativos. Somente três haviam visitado o
país do amigo.
Sete entrevistados não perceberam mudanças na imagem que tinham
do país após a amizade. Para outros, a imagem que tinham mudou para
melhor graças à pessoa do amigo como exemplo do povo ou das
informações obtidas a partir dele: “eu imaginava que os europeus eram
sempre muito „certinhos‟ devido à educação que eles recebem lá e até um
pouco ríspidos, mas o P me mostrou que eles não são esses robôs que eu
imaginava. São jovens como nós brasileiros, que gostam de festas, de sair,
se divertir” (P8). Em outro caso, “apesar de achar que os franceses são
frios nós acabamos descobrindo que nem todos são assim, como F e J que
desde que nos viram nos ajudaram. Penso que há outras pessoas assim lá,
que não devemos achar que todos são iguais” (P9). E ainda: “a idéia que eu
tinha da Holanda era de que podia se fazer tudo, mas não é verdade. Lá
tem certa liberdade, mas há muitas leis para regulamentar tudo” (P11).
Segundo os participantes, é necessário conhecer pessoas de outros
países para nos livrarmos de alguns preconceitos já enraizados em nossa
própria cultura. Também citaram sentimentos como respeito e admiração
pela cultura, culinária, economia, desenvolvimento, educação, preservação
ambiental, história de luta do país. Alguns relataram a saudade dos amigos e
do país e outros curiosidade de conhecer o lugar. Em relação aos
sentimentos ruins, foram citadas tristeza e indignação em relação ao
descuido governamental e à desigualdade social existente (Serra Leoa) e o
medo da violência (Espanha).
Finalmente, os participantes indicaram interesses em relação ao país
do melhor amigo estrangeiro, incluindo visitar (13), estudar (7), trabalhar
(6), residir (3) ou nenhum (2).
Propostas para aumentar a amizade entre cidadãos de países
diferentes - Para doze entrevistados, a amizade entre habitantes de países
diferentes poderia aumentar por meio de intercâmbios estudantis e
profissionais, o que deveria receber investimentos e incentivos do governo
brasileiro, além do incentivo ao turismo internacional através da diminuição
do custo nas viagens: “só conhecendo os países para se formar verdadeiros
laços de amizade” (P9).
Para outro, “dentre os pilares para manter uma amizade, um dos
mais importantes é a tolerância. Não sei a melhor maneira para isso, mas
investir e facilitar intercâmbios culturais é uma ótima maneira, pois assim,
estando no país do outro, a facilidade de tirar preconceitos é maior,
criando também uma tolerância entre os povos” (P14). Ainda foi
190
mencionada a necessidade de maior divulgação da cultura de outros países
no Brasil, visto que a população cria estereótipos que não correspondem à
realidade desses países.
De forma geral, a necessidade de “respeito” foi bastante citada.
Segundo os participantes, se o preconceito fosse menor e as pessoas
tivessem maior respeito pela cultura alheia, haveria o enriquecimento das
relações entre as culturas e a possibilidade de viver diversas experiências,
sempre respeitando as pessoas como elas são e não as julgando antes de
conhecer sua cultura. Segundo um entrevistado, para aumentar a amizade,
“diminuir qualquer tipo de preconceito seria uma boa pedida para
qualquer diferença cultural” (P20). Outro ponto colocado foi o uso da
internet para aumentar as relações de amizades internacionais através de
bate-papos (MSN), Orkut (páginas online) e sites relacionados a
intercâmbios onde as pessoas possam conversar, trocar informações, fotos,
entre outros.

Discussão

A literatura internacional tem tratado especificamente de amizades


interculturais ou internacionais de universitários estudando em outro país
durante sua estadia no exterior (Yamazaki et al., 1997; Levin, Laar &
Sidanius, 2003; Constantine et al., 2005; Ying, 2002; Antonio, 2004; Kudo
& Simkin, 2003). Assim, a presente pesquisa sobre amizades entre
universitários brasileiros, residindo e estudando no Brasil, e cidadãos da
Europa, Ásia, África e Oceania, representa uma forma de relacionamento
ainda pouco investigadas.
Adams e Blieszner (1994) destacam a importância da estrutura das
amizades, incluindo a rede de amigos. O conhecimento da estrutura e
funcionamento de redes internacionais de amigos é de fundamental
importância não apenas para os estudos de aspectos culturais das amizades,
mas também pelo potencial para o desenvolvimento social e cultural
daqueles envolvidos nessas amizades. Os dados indicaram a presença de
redes internacionais de amigos com até cinco estrangeiros, ligados a um ou
mais países, representando 20 nações diferentes. Deve ser apontada a
importância de se investigar a internacionalização da rede de amizades
como um fenômeno do século XXI, com potencial de enriquecimento social
e cultural a partir dessas amizades.
As amizades internacionais apresentam algumas peculiaridades,
como a distância entre os amigos e as diferenças culturais. Segundo Hinde
(1997), a pesquisa do relacionamento deveria ter início com o exame
daquilo que as pessoas fazem juntas, ou seja, as atividades compartilhadas,
relacionadas a interesses comuns. As amizades internacionais alternam
191
períodos de convivência, em que atividades ligadas ao lazer, música,
turismo, cinema e esportes e atividades de cunho mais cultural, como
ciências, literatura, e artes são compartilhadas. Conforme indicado pelos
participantes, esses períodos de convivência geram episódios ou momentos
que são relembrados ao longo do período de afastamento, o que,
possivelmente, contribui para a manutenção dessas amizades. Outro ponto
de destaque é a riqueza cultural envolvida nessas amizades e a forma
positiva como os universitários com amigos internacionais lidam com o
estrangeiro, o diferente, sem manifestar preconceitos ou atitudes negativas.
A proximidade foi um fator decisivo para determinar as atividades
compartilhadas com o melhor amigo estrangeiro. Mesmo fisicamente
distantes, os universitários compartilhavam atividades pela internet, o
principal meio de comunicação com esses amigos. Outro fator central para a
existência dessas amizades é o conhecimento de outro idioma,
especialmente do inglês, que foi o principal idioma de comunicação entre
amigos.
Hinde (1997) também se refere à importância do estudo do
desenvolvimento dos relacionamentos. Neste sentido, tanto no início da
amizade quanto nos seus episódios marcantes, o contato pessoal é
fundamental. Os momentos vividos lado a lado são retomados e integram os
temas de conversa quando os amigos estão separados.
A maioria considerou as amizades internacionais diferentes das
locais, destacando o “acréscimo” ou enriquecimento trazido pelas
diferenças culturais. Por outro lado, a maior dificuldade foi a ausência física
e diferença de idioma. Neste caso, as diferenças culturais ocupam um lugar
de pouco destaque.
Hinde (1997) apresenta diferentes níveis de complexidade afetando
as relações interpessoais. O estudo de amizades internacionais torna ainda
mais evidente a importância de outros níveis de complexidade, como grupo,
sociedades e mesmo nações com suas culturas particulares nas relações de
amizade. Os dados indicaram que ter um amigo estrangeiro pode afetar a
visão que cada um tem do país desse amigo, geralmente de forma positiva.
Também deve-se destacar a atitude positiva em relação aos países dos
amigos e o interesse demonstrado em visitar, estudar ou trabalhar nesse
país.
Os dados sugerem que uma amizade pessoal com um cidadão de
um país contribui para a formação de uma atitude mais positiva desta pessoa
em relação a esse país. Possivelmente, quanto mais contatos amistosos
houver entre cidadãos de países diferentes maiores serão as chances dessas
nações estabelecerem relações amistosas e cooperativas. Efeitos
semelhantes têm sido observados nas relações entre grupos raciais ou
étnicos. Segundo o Jacobson e Johnson (2006), a existência de amizades
192
entre euro-americanos e afro-americanos aumentou a taxa de aprovação de
casamentos inter-raciais. Estudos com grupos étnicos também indicaram
que amizades entre indivíduos pertencentes a diferentes grupos reduziram
os preconceitos de um grupo em relação ao outro (Levin, Laar & Sidanius,
2003). Os dados sugerem que o mesmo possa ocorrer com grupos
nacionais, de modo que a amizade entre membros dessas nações venha a
reduzir o preconceito entre seus cidadãos em relação ao país do amigo.
Concluindo, em um mundo em que o desenvolvimento social e
tecnológico tem aumentado o potencial de contato entre cidadãos de
diferentes países torna-se cada vez mais importante conhecer como pessoas
de origens diferentes se relacionam e como estes relacionamentos afetam a
relação entre os países que representam. Tal conhecimento poderá
contribuir para uma maior e melhor integração social e cultural entre
cidadãos de diferentes países, afetando positivamente as trocas culturais e a
cooperação internacional.

Referências

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195
17

AMIZADES INTERNACIONAIS DE UNIVERSITÁRIOS


BRASILEIROS: UMA ANÁLISE DOS EPISÓDIOS MARCANTES

Agnaldo Garcia
Cloves Bitencourt Neto
Luciana Teles Moura
Claudia Balestreiro Pepino

Mudanças sociais e tecnológicas, incluindo o avanço da tecnologia


da comunicação e dos meios de transportes, entre outros fatores, têm
facilitado o contato e a formação de amizade entre pessoas de diferentes
origens. As amizades entre pessoas de diferentes países, nações e culturas,
têm sido denominadas de amizades interculturais ou internacionais.
Um grupo particularmente importante na investigação das
amizades interculturais ou internacionais são os estudantes estrangeiros
residindo no exterior. Geralmente, as amizades interculturais ou
internacionais são investigadas entre estudantes estrangeiros fora de seu
país (Ward & Margoret, 2004; Bektas, 2008), sendo menos freqüentes
estudos sobre universitários do país anfitrião que entram em contato com
esses estudantes estrangeiros (Ward, 2001).
Um ponto central nesses estudos é o reconhecimento das limitações
e dificuldades encontradas por esses estudantes para fazer amigos com
pessoas do país anfitrião, tendendo a fazê-lo com outros estudantes do
mesmo país de origem (Bailey, 2006; Pandian, 2008; Brown, 2009a;
Cushner & Karim, 2004; UKCOSA, 2004; Sawir, Marginson, Deumert,
Nyland & Ramia, 2008) evidenciando também a influência da raça e da
etnia nessas amizades (Antonio, 2004).
Do ponto de vista de adaptação a um país diferente, ambos os tipos
de amizade são importantes. Amizades com pessoas do país anfitrião
contribuem para a aprendizagem do idioma e da cultura local enquanto as
com pessoas de mesma nacionalidade ajudam a reduzir o estresse e a
solidão (Ward, 2001; Ward, Bochner & Furnham, 2001) e obter apoio
instrumental (Brown, 2008), emocional e espiritual (Maundeni, 2001). Por
essa razão, os estudantes internacionais procuram criar uma subcultura para
apoiá-los emocionalmente e socialmente no país anfitrião (Zhao &
Wildemeersch, 2008).
A formação de amizades internacionais deve muito à
internacionalização da educação superior (Kreber, 2009; Alfantookh &
Bakry, 2008), mas os fatores envolvidos na formação e no desenvolvimento
dessas amizades ainda são pouco investigados, como é o caso da auto-
196
revelação, importante para o aprofundamento dessas amizades (Chen,
2006).
Como amizades entre pessoas pertencendo a diferentes países e
culturas, as diferenças culturais são aspectos centrais nestes
relacionamentos. Estas, contudo, têm mostrado um papel ambivalente. Por
vezes, são consideradas como fatores limitantes, dificultando o
estabelecimento e o desenvolvimento de relacionamentos interculturais,
como no caso de conflito entre diferentes conceitos de amigo em diferentes
culturas (Gareis, 2000). Em outras investigações, as diferenças culturais são
vistas de uma perspectiva positiva, graças a fatores como receptividade a
outras culturas, orientação e empatia transcultural (Kudo & Simkin, 2003).
A exploração de diferentes culturas e idiomas nas amizades interculturais
também foi apontada como um aspecto positivo da amizade, ao lado da
assistência prestada, além da presença de fatores como rituais, atividades,
regras e papéis, auto-revelação, networking e conflito (Lee, 2006).
No Brasil, poucos autores têm investigado amizades de estudantes
internacionais. Alguns poucos trabalhos investigando outros aspectos da
vida desses estudantes, por vezes, fazem menção a suas dificuldades em
fazer amigos brasileiros (Desidério, 2006), indicam a amizade com
brasileiros como um fator positivo (Subuhana, 2009), ou incluem itens
sobre amizade em avaliações da adaptação e satisfação com o contexto de
vida no Brasil (Andrade & Teixeira, 2009).
Apesar da possibilidade de contato direto com pessoas de outros
países e culturas, os resultados obtidos com os estudantes universitários
internacionais, em termos do aumento da tolerância e da aproximação
cultural entre os povos ao retornarem tem sido considerado pequeno
(Cushner & Karim, 2004), assim como a melhoria nas habilidades
transculturais (Ward, 2001) e na competência intercultural (Brown, 2009b).
Conhecer melhor amizades interculturais ou internacionais de
universitários brasileiros pode fornecer informações importantes para
promover a aproximação entre estudantes de países e culturas diferentes,
com reflexos para a cooperação social, cultural e científica internacional.
Do ponto de vista teórico, a pesquisa se baseia na literatura sobre
amizades interculturais ou internacionais e na obra de Robert Hinde (1997)
sobre relacionamento interpessoal. Hinde, com base na Etologia Clássica,
propõe alguns princípios para a construção de uma ciência dos
relacionamentos, com ênfase na descrição e na análise de diferentes níveis
de complexidade e suas relações dialéticas, partindo de interações e
passando para relacionamentos, grupos e a sociedade. Ainda aponta a
influência do ambiente físico e das estruturas sócio-culturais sobre os
relacionamentos.

197
O objetivo desta pesquisa é investigar a natureza das amizades
internacionais de estudantes universitários brasileiros, com base nos
episódios marcantes dessas amizades, à luz das propostas de Robert Hinde
(1997). A expressão “amizade internacional”, neste trabalho, significa um
relacionamento entre pessoas de diferentes nacionalidades mantendo uma
ligação importante com o país de origem, como é o caso dos estudantes
internacionais.

Metodologia

Participaram da pesquisa 120 estudantes universitários brasileiros,


sendo 74 do sexo feminino e 46 do sexo masculino. A idade dos
participantes variou de 18 a 40 anos, com a seguinte distribuição: 18 anos
(6), 19(14), 20(15), 21(16), 22(24), 23(13), 24(12), 25(9), 26(1), 27(4),
32(3), 36(1), 37(1) e 40 (1). Os estudantes eram provenientes de oito
estados brasileiros: ES (89), SC (11), PA (10), PE (5), AM (2), PR (1), BA
(1) e MG (1). Dos participantes, 71 já haviam viajado para o exterior e 49
não.
Estudantes universitários de graduação com amigos estrangeiros
foram convidados a participar da pesquisa. Ao aceitar o convite, os mesmos
assinavam um termo de consentimento para participação na pesquisa e
respondiam a um questionário composto por questões abertas e fechadas,
elaboradas com base em pesquisas anteriores sobre o tema. O material
analisado no presente artigo refere-se a respostas escritas a uma questão
aberta solicitando aos participantes citar um ou mais episódios marcantes do
relacionamento com o melhor amigo estrangeiro ao longo dessa amizade.
As respostas foram analisadas por análise de conteúdo, com base
em Bardin (1977). O conteúdo foi organizado em oito categorias temáticas,
em torno do tema central de cada episódio contado, de modo indutivo. Os
temas presentes nas respostas foram organizados nas seguintes categorias:
(1) reuniões sociais e festas, (2) viagens e passeios turísticos, (3) religião e
esportes, (4) humor, (5) situações de perda e despedida, (6)
companheirismo, (7) apoio, acolhimento, confiança e auto-revelação, (8)
diferenças culturais. A descrição de cada grupo temático é apresentada nos
resultados. A organização dos temas ainda foi se baseou nas propostas de
Hinde (1997) para a estruturação de uma ciência dos relacionamentos
interpessoais, tanto do ponto de vista das grandes categorias, quanto dos
aspectos tradicionalmente investigados nos relacionamentos, como
companheirismo, apoio, auto-revelação, entre outros. Os dados são
analisados de modo qualitativo. No decorrer dos resultados, os números
entre parênteses indicam qual o participante (de 1 a 120) relatou o item em
questão. Por vezes, são inseridas as palavras do próprio participante como
198
exemplos de cada caso. Como os relatos de episódios marcantes podem ser
mais ou menos complexos, em algumas ocasiões era possível incluir o
episódio em mais de uma categoria, especialmente em relação a festas e
diferenças culturais. Nestes casos, optou-se em inserir o fato contado no
item de diferenças culturais.

Resultados e Discussão

Os resultados reúnem os episódios marcantes das amizades


internacionais em oito grupos temáticos, conforme indicado no item
anterior. O participante podia citar mais de episódio marcante. A maioria
dos episódios analisados foi apresentada como uma breve narrativa. Os
resultados incluem 145 episódios marcantes citados.
Reuniões Sociais e Festas – Foram consideradas reuniões sociais
os agrupamentos de pessoas para conversar ou compartilhar atividades
como festas, shows e comemorações. Estes episódios marcaram um grande
número de amizades.
Em alguns casos, os universitários se limitaram a indicar festas
como os episódios mais marcantes dessas amizades, sem maiores detalhes
(13, 29, 43, 46, 58, 69, 74). Em outros casos, as festas foram lembradas em
associação com o consumo de álcool ou tabaco, como beber em um festival
de música (120), beber no show do Chiclete com Banana (91) e fumar
charuto em uma festa (106). Dois participantes expressaram claramente os
excessos praticados com amigos como episódios marcantes dessas
amizades: “muitas festas que a gente ia, muitos perrengues que a gente
passou de ficar até tarde e ficar perdido na cidade sem ter como voltar para
casa” (99); “no dia de thanks giving saímos cedo de casa e fizemos
praticamente um tour alcoólico gastronômico pela cidade parando em vários
bares e restaurantes durante todo o dia, até chegar totalmente torto e cheio
em casa à noite” (117). Por vezes, as lembranças estavam associadas ao
envolvimento com a polícia: “fomos levados à delegacia por atrapalhar o
silêncio dos vizinhos com o som ligado às alturas durante a madrugada”
(49).
A música e a dança são partes integrantes das reuniões com
amigos, em karaokês para cantar e dançar (47), em saídas para dançar (17),
no carnaval de Salvador (18), nos rocks de Ouro Preto (79), em boates (75),
em festas de fim de ano (39), nas “baladas” (93, 115), em shows (31), em
cafés com comidas e danças típicas (31), e ainda “as danças que ele faz nas
festas em que vai” (22). As celebrações de aniversário (35, 94, 97) e
casamento (42, 100, 105, 109) também foram marcantes: “no meu
aniversário ela me chamou para jantar fora, com festa surpresa” (32).

199
Finalmente, algumas reuniões sociais promoveram o encontro com
outras pessoas para troca de informações, como “encontros do grupo do
jornal” (29) e “encontros do grupo de adolescentes” (29).
Viagens e Passeios Turísticos – Além das referências a viajar
juntos (17, 96, 115), ainda marcaram as amizades internacionais os contatos
com a paisagem e com as pessoas dos lugares visitados. Por vezes, foram as
visitas aos pontos turísticos que se tornaram memoráveis, como viajar pelo
norte do Brasil (27), ir ao Zoológico (93) ou simplesmente visitar pontos
turísticos (18, 64, 112). Outras vezes, as viagens permitiram conhecer outras
pessoas, como o namorado da amiga (53), os amigos (38, 60, 74) ou a
família do amigo (103).
Religião e Esportes – Outras atividades sociais estavam ligadas a
religião e esportes. Apesar de não ter sido muito presente em episódios
marcantes, a religião se mostrou importante quando era compartilhada. Uma
participante relatou como episódio marcante ter recebido da amiga “um
livro falando sobre Deus” (eram da mesma religião) (8). Outras se referiram
a “uma conversa sobre a visão dos jovens em relação ao mundo e à religião”
(61), a “conversas sobre Deus” (56) e a “acampamentos ligados à igreja”
(98). Os esportes também marcaram as amizades como a vitória em
campeonatos esportivos (4, 24, 33) ou a prática de esportes em conjunto
(38, 90, 98, 102).
Humor - O humor marcou alguns episódios, incluindo situações
cômicas, trotes e brincadeiras. Diversos episódios foram considerados
marcantes por terem sido engraçados ou cômicos, como não saber cozinhar
e tentar inventar receitas com produtos estragados (16), brincadeiras com
outras pessoas (20), a tentativa fracassada e engraçada do amigo namorar a
irmã (23), as brincadeiras pelo fato do amigo ser negro (mas sem
preconceito) (25), os recados deixados pelo amigo que sempre resultavam
em desencontros (26), as brincadeiras ou trotes com vizinhos (43), ter
pulado o muro para entrar por ninguém ter atendido a porta (111), quando
os dois assistiram ao mesmo filme no mesmo dia (alugado e TV paga) (51).
Apoio, Acolhimento, Confiança e Auto-Revelação - Em diversos
momentos, os participantes se referiram ao apoio recebido em um momento
específico ou ao acolhimento, geralmente envolvendo mais pessoas, quando
o participante foi residir com a família no exterior ou ao receber alguém do
exterior. O apoio revela em contato mais diádico, enquanto a acolhimento
dá-se em um contexto mais amplo. A manifestação de confiança também
resultou em episódios marcantes, assim como a auto-revelação.
O acolhimento refere-se à recepção do participante, geralmente
com a participação de familiares, podendo levar à sua inserção na família do
amigo. Vários episódios falam de acolhimento: “me convidaram para voltar
aos EUA e se prontificaram a pagar todas as custas” (19). Ao conviver com
200
uma família no exterior uma participante relatou que sua amizade
transformou-se em uma relação de fraternidade por morar com a amiga,
tornando-se parte de sua família (14). Em outro caso, “eu conheci seus pais,
seus irmãos e o pai dele cozinhou pra gente” (41). E ainda “este professor
conseguiu a casa de uma amiga dele para eu ficar, pois eu não tinha
condições de pagar hotel” (77). Em outro caso ocorrido no exterior “quando
meus pais foram me visitar nos EUA e levei-os para jantar no restaurante
em que trabalhava, a H. foi super gentil, nos deu de cortesia o jantar” (59).
No único caso ocorrido no Brasil, a participante relata: “eu e o pai fomos
buscá-lo no aeroporto, sem que soubéssemos como ele era, só pelas fotos”
(69). Nestes casos, o episódio marcante refere-se ao acolhimento por parte
do amigo, de sua família ou de seu grupo de amigos.
O apoio se refere a alguma forma de ajuda material, informacional,
mas principalmente emocional, como o consolo recebido do amigo ao
terminar um namoro, (40), pelo amigo ter ligado antes de uma entrevista de
estágio trazendo tranqüilidade e confiança (44), por consolar ao não ser
aprovada no vestibular (76), pelas “palavras de apoio que trocamos sobre as
provas, a saudade que ele sente do seu filho e do seu país” (116) e ainda à
ajuda nas atividades da escola (103). O apoio estava presente nas “pequenas
coisas do dia-a-dia, de atos de consideração e cuidado” (31) e nas
“encrencas, ela ficou do meu lado, me apoiando” (7).
Alguns episódios marcantes diziam respeito à confiança por parte
do participante no amigo, incluindo “a confiança de deixar a casa por conta
dela” (9) e a confiança do amigo ao conviver “com alguém desconhecido”
(113). A auto-revelação foi indicada em frases como “ter contado sobre seus
filhos e ex-esposa, da falta de amigos e do apoio da família, da solidão”
(87), ao estabelecer “uma conversa muito profunda - uma relação eu-tu”
(82) e também “ao contar sobre as dificuldades de relacionamento com a
própria família distante” (68) e de serem “confidentes uma da outra” (92).
Apoio, acolhimento, confiança e auto-revelação estão intimamente
relacionados.
Companheirismo – O companheirismo é marcado pelo convívio,
companhia ou compartilhamento do dia-a-dia com o amigo. Neste caso, o
fato marcante não é um episódio específico, mas o relacionamento ao longo
do tempo. Vários se referiram ao convívio diário como algo marcante, como
conviver todos os dias, almoçar, lanchar e estudar juntas (15), conviver
muito, sempre almoçando juntos (35), freqüentar a casa uma da outra (72,
98), jantar juntas (78), estar sempre juntas (98), o fato de ter ido morar
juntas possibilitando conviver mais (96). E ainda sair juntas (45) e
conversar até altas horas (17, 115) e “ela sempre me fazia companhia” (79).
Finalmente, os estudantes mencionaram o fato de o amigo estar presente em
vários momentos de sua vida, ao correr, rir, se divertir, conversar e comer
201
(103), ao dormir na casa da amiga, assistir filmes e conversar sobre a vida
(75), na primeira tatuagem, no primeiro namoro e na formatura (49). Esse
companheirismo chega a ser considerado como cumplicidade (5, 119). Em
algumas ocasiões, a retomada do contato perdido foi algo marcante, como o
reencontro na casa de um ou outro (4, 50).
Situações de Perda e Despedida - Situações de perda marcaram
as amizades internacionais, como a morte do pai ou da mãe do participante
ou do amigo (4, 109) e a possível perda de uma bolsa de estudos (21). A
despedida marcou a amizade de vários participantes, desde a notícia da
separação (8), o dia da despedida ou sua celebração (1, 35, 97, 105, 35 e
59), o momento da despedida (98, 76, 93) e os discursos ou cartas de
despedida (10, 62, 48). Estes discursos e cartas, assim como presentes
simbólicos da amizade (89, 98), talvez pudessem ser vistos como parte do
compromisso gerado pelas amizades.
Diferenças Culturais - As diferenças culturais estão presentes em
diversos episódios marcantes. As diferenças culturais, por vezes, foram
apontadas em relação a festas. Apesar disso, elas foram incluídas neste item
em função da centralidade do tema para o presente estudo.
Algumas festas foram lembradas em função de diferenças culturais.
Em alguns casos essas diferenças se referiam a diferentes padrões de
comportamento. Para um dos participantes, foi marcante a reação do amigo
“à forma ousada de algumas amigas durante o churrasco que ele me
acompanhou. Ele pareceu sem graça e assustado” (52). Em outros casos,
essas diferenças estão na culinária típica do lugar: “o churrasco que fiz na
casa dele onde ele experimentou um churrasco brasileiro de verdade” (101).
As diferenças ainda diziam respeito a dificuldades com o idioma. Em uma
festa de amigo secreto, o amigo tentou falar português em público (2), outro
tentou cantar no vídeokê uma música inteira em português, mas misturou
português, inglês e alemão (6). Uma das participantes mencionou as
diferenças culturais entre as festas de diferentes países: “houve grande troca
de culturas, porque ela pôde viver um pouco de nossas formas de diversão,
como são as nossas festas” (67).
A reação dos amigos a diferenças ambientais e humanas foi
marcante, como a admiração da natureza do país (107, 118) ou da beleza de
seu povo (95). As diferenças culturais também foram lembradas, como as
conversas sobre as culturas nacionais e suas festas (45), e conversas e o
contato com sua culinária (37, 63) e costumes (83). Outra citou o fato de
“ouvir música coreana” e aprender “brincadeiras coreanas tradicionais” (98)
como marcantes. Um exemplo de diferentes culturas unindo pessoas deu-se
“quando ela me ensinou a fazer trancinhas africanas e fez nos meus
cabelos” (15). Em outro caso, foram marcantes os “desencontros causados
pela cultura dos brasileiros que quando falam que vão atrasar um tempinho
202
pode ser uma hora” (65). Uma participante citou “uma mania que americano
tem de fazer acordos com um amigo de se eles chegarem a uma certa idade
e não casarem, eles se casam para não ficarem sozinhos” (51).
As diferenças de idioma também geraram episódios marcantes nas
amizades internacionais, envolvendo as dificuldades com o idioma e sua
superação (55, 71, 114), incluindo a troca de palavras (83) e dificuldades
com o vocabulário (92). Outras lembranças estavam ligadas a servir como
intérprete do amigo e para o amigo (68, 89, 107).
Os episódios marcantes são reveladores por sua diversidade e
riqueza. Esses episódios servem para se compreender melhor a natureza das
amizades investigadas.
Com base, em parte, no esquema proposto por Hinde (1997), três
fatores se destacam nas respostas dadas: relacionamentos, grupos sociais e
cultura. Alguns episódios relatam aspectos mais internos ao relacionamento,
como apoio, auto-revelação e companheirismo. Outros estão claramente
ligados a situações sociais (como reuniões sociais e festas, viagens e
passeios, religião e esportes), com suas normas e tradições. Finalmente, as
diferenças culturais se destacam pela origem internacional dos participantes.
Como estes apresentam relações dialéticas, nem sempre ocorrem de modo
distinto, mas podem interagir.
Diversos episódios indicam a inserção de uma relação de amizade
em um grupo social realizando uma atividade social ou cultural (como
festas ou reuniões sociais). Estas relações entre relacionamentos (díade de
amigos) e grupos a que pertencem (sua inserção social) são dialéticas,
conforme proposto por Hinde (1997), pela presença de influências mútuas.
Os grupos são portadores de tradições ou estruturas sócio-culturais, como
rituais, tradições, normas e regras, inclusive relacionados a festas e
comemorações, entre outros. É notável que relacionamentos tenham como
episódios marcantes eventos grupais ou sociais. Possivelmente, os grupos
façam a mediação entre as díades e a cultura da sociedade mais ampla, com
suas tradições históricas e folclóricas.
Viagens e passeios também envolvem o ambiente sócio-cultural e
grupos sociais. Pontos turísticos integram o ambiente sócio-cultural, como
parte do ambiente físico, possuindo significados históricos, sociais e
culturais. Viagens e passeios também estão ligados a grupos sócio-culturais
em torno da pessoa do amigo (como familiares e amigos).
Os episódios contados revelam uma dialética entre o que ocorre na
díade e em grupos sociais mais amplos e suas atividades sócio-culturais.
Esses grupos são portadores de tradições sócio-culturais que fazem parte
das amizades, como é o caso da religião e dos esportes. Por vezes, não há
limites claros entre a relação diádica e a vida no grupo, como no caso do

203
acolhimento pelo amigo, que se estende para sua família ou grupo de
amigos.
Os episódios, em geral, são positivos. Lembranças de sofrimento
são poucas e estão relacionadas a perdas importantes ou à despedida. Outros
episódios são lembrados por serem engraçados, sendo o humor outra fonte
de recordações de amigos.
Uma dimensão importante nas amizades interculturais ou
internacionais são as diferenças culturais. A reação dos amigos a diferenças
ambientais e sociais, como episódios marcantes, mostra a presença do
ambiente em suas dimensões sócio-culturais sobre o relacionamento. As
diferenças culturais são vistas, predominantemente, como positivas, ligadas
à curiosidade pelo diferente, pelo estrangeiro, o que pode ser um traço
cultural do Brasil ou das pessoas que buscam o contato com outras culturas
em nosso país. Um fator notável relacionado às diferenças culturais é a
orientação positiva e a superação de possíveis dificuldades advindas dessas
diferenças. Vários episódios indicam a avaliação positiva da cultura do
amigo estrangeiro, sua culinária, suas festas, suas estórias, músicas e
tradições. Neste sentido, as amizades formam pontes entre diferentes
culturas.
O conjunto de episódios marcantes mostra a diversidade e a
complexidade de eventos em torno das amizades evidenciando diferentes
níveis de complexidade, desde os fatores internos à díade, como
companheirismo e apoio, a inserção em grupos sociais e suas atividades,
como nas reuniões sociais e festas, e o compartilhamento de aspectos
culturais de cada nação por intermédio do amigo. Frente a essa
complexidade, o esquema proposto por Hinde (1997) nos parece adequado
como ponto de partida para a compreensão das amizades internacionais a
partir de relatos de episódios marcantes.
O foco da presente pesquisa difere de pesquisas anteriormente
realizadas sobre amizades de universitários com pessoas de outro país.
Enquanto a maior parte dos estudos volta-se para os estudantes no momento
em que estão no exterior (Ward & Margoret, 2004; Bektas, 2008), ou dos
estudantes locais em relação à presença de estudantes estrangeiros (e.g.
Ward, 2001), o presente estudo se concentrou em estudantes brasileiros
vivendo em seu próprio país e investigou suas amizades com estrangeiros
vivendo em outro país ou no Brasil. Investiga, assim, as amizades
internacionais de uma perspectiva mais abrangente, incluindo amigos
vivendo no exterior, resultantes, na maior das vezes, de contato pessoal no
Brasil ou no exterior, em algum momento de suas vidas. Neste sentido,
busca compreender essas amizades na vida de estudantes não sujeitos a uma
situação estressante, como morar no exterior.

204
A literatura destaca as limitações e dificuldades para estabelecer
amizades com pessoas do país anfitrião entre estudantes internacionais e a
tendência a fazer amizades com conterrâneos (Bailey, 2006; Pandian, 2008;
Brown, 2009a; Cushner & Karim, 2004; UKCOSA, 2004; Sawir,
Marginson, Deumert, Nyland & Ramia, 2008). As experiências dos
universitários com estrangeiros no Brasil e no exterior, como visitantes e
anfitriões, indicam diversos momentos em que essa integração foi possível a
ponto de gerar amizades que permaneceram mesmo após a separação.
As amizades com pessoas do país anfitrião permitem aprender mais
do idioma e da cultura local (Ward, 2001; Ward, Bochner & Furnham,
2001). Os dados do presente trabalho indicam que essas amizades não se
limitam ao momento de vida que se está no exterior, mas elas se estendem
para além desse período, revelando experiências bem sucedidas de
aproximação e formação de amizades entre pessoas de culturas e idiomas
diferentes.
A literatura tem indicado que os resultados do contato intercultural
em relação à tolerância em relação às diferenças (Cushner & Karim, 2004),
à melhoria nas habilidades transculturais (Ward, 2001) ou na competência
intercultural (Brown, 2009b) têm sido inferiores aos esperados. Os dados da
presente pesquisa são mais otimistas ao indicar que as amizades
internacionais fazem parte da vida dos participantes, mesmo estando em
países distantes e que as histórias ligadas a amigos estrangeiros são marcada
por episódios positivos.
Mesmo no Brasil, as amizades internacionais servem de elemento
para uma aproximação maior entre brasileiros e estrangeiros, cujo
relacionamento revela dificuldades (Desidério, 2006) ou para melhorar
redes sociais precárias (Andrade e Teixeira, 2009) e para aprofundar as
amizades que já são reconhecidas como fatores de integração entre
estrangeiros e brasileiros (Subuhana (2009).
Os dados indicam que a internacionalização da educação, incluindo
as possibilidades de intercâmbio, pode forjar amigos internacionais
permanentes e não apenas temporários (Kreber, 2009) ao permitir o contato
entre estudantes de diferentes países para o desenvolvimento destas
amizades (Alfantookh, 2008).
As amizades internacionais devem ser compreendidas em toda sua
amplitude, incluindo fatores externos e internos, como auto-revelação,
considerados fundamentais para o aprofundamento de amizades
internacionais (Chen, 2006). Outros fatores internos presentes nos
resultados incluíram apoio e companheirismo, como dimensões mais
próprias à díade.
Apesar da literatura, por vezes, ressaltar o papel limitador das
diferenças culturais, consideradas em seus aspectos negativos (Gareis,
205
2000), a presente investigação mostrou que as diferenças podem ser
positivas nas amizades. Neste sentido, os dados se aproximam dos achados
de Kudo e Simkin (2003), que propuseram a receptividade, incluindo
orientação e empatia transcultural, como fatores relevantes nas amizades
interculturais. As diferenças culturais não foram mencionadas como
empecilhos intransponíveis para a comunicação e a amizade, geralmente
sendo contornadas e deixando recordações positivas.
Alguns paralelos também podem ser encontrados entre os
resultados obtidos por Lee (2006) e esta investigação. Alguns pontos em
comum se referem à presença de fatores positivos (como prestar
assistência), auto-revelação e networking. Os rituais, atividades, regras e
papéis mencionados por Lee (2006) fazem parte das estruturas sócio-
culturais tratadas no presente artigo. De modo particular, há uma
correspondência em termos de explorar as diferenças de culturas e de
idiomas como aspectos específicos de relacionamentos interculturais.
As propostas de Hinde (1997) em relação ao relacionamento
interpessoal apresentam-se como uma possibilidade para se analisar as
amizades internacionais. O autor apresenta um esquema conceitual sobre as
relações dialéticas entre relacionamentos e outros níveis de complexidade.
O presente trabalho parte da questão dos níveis de complexidade e suas
relações mútuas. Quatro elementos propostos por Hinde se destacaram neste
estudo: relacionamentos, grupos, ambiente e estruturas sócio-culturais. Para
permitir uma interpretação mais próxima à natureza dos relatos, estruturas
sócio-culturais foram integradas aos grupos sociais e ao ambiente físico,
passando-se a tratar de ambiente sócio-cultural e grupos sócio-culturais
(com suas atividades, como reuniões sociais e festas), que manifestam
diferenças culturais.
Do ponto de vista empírico, o presente trabalho apontou
características das amizades de universitários brasileiros revelando, a partir
dos episódios marcantes, a profundidade e a extensão dessas amizades,
servindo de ponto de partida para possíveis ações para facilitar essas
amizades. Do ponto de vista teórico, o trabalho procurou lidar com aspectos
internos e externos da amizade, que estiveram presentes no conjunto das
respostas, utilizando algumas propostas de Hinde que sevem de base para a
discussão.

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208
18

AMIZADES DE UNIVERSITÁRIOS AFRICANOS NO BRASIL:


UMA ANÁLISE DOS EPISÓDIOS MARCANTES

Agnaldo Garcia
Dominique Costa Goes
Luciana Teles Moura
Claudia Balestreiro Pepino

A formação de amizades com pessoas de outros países deve muito


à internacionalização da educação superior (Kreber, 2009; Alfantookh &
Bakry, 2008). As amizades de estudantes estrangeiros residindo no exterior
têm sido investigadas em diferentes países, como a Nova Zelândia (Ward &
Margoret, 2004) e Turquia (Bektas, 2008). Estes estudantes geralmente
encontram dificuldades para fazer amigos com pessoas do país onde
estudam, aproximando-se de outros estudantes da mesma nacionalidade ou
etnia (Bailey, 2006; Pandian, 2008; Brown, 2009a; Cushner & Karim, 2004;
UKCOSA, 2004; Sawir, Marginson, Deumert, Nyland & Ramia, 2008;
Antonio, 2004).
As amizades com pessoas do país anfitrião facilitam a
aprendizagem do idioma e da cultura local enquanto aquelas com pessoas
do mesmo país contribuem para reduzir o estresse (Ward, 2001; Ward,
Bochner & Furnham, 2001) e obter apoio instrumental e emocional (Brown,
2008; Maundeni, 2001; Zhao & Wildemeersch, 2008). Pouco se sabe sobre
os fatores envolvidos na formação e aprofundamento dessas amizades
(Chen, 2006).
Ao viver em um país estranho, as diferenças culturais se tornam
centrais nestes relacionamentos. Em relação às amizades, estas têm sido
consideradas como elementos que dificultam fazer amigos de outras
culturas, entre outros motivos, por diferentes concepções de amizade
(Gareis, 2000). Por outro lado, essas diferenças têm sido consideradas como
elementos positivos nessas amizades, quando os jovens se mostram
receptivos a outras culturas, revelando empatia transcultural (Kudo &
Simkin, 2003). Ter amigos de diferentes culturas permite explorar
diferentes culturas e idiomas ao lado da assistência prestada (Lee, 2006).

Pouco se sabe sobre as amizades de estudantes estrangeiros no


Brasil. Tais amizades, por vezes, são mencionadas de passagem em
trabalhos investigando outros pontos da vida desses estudantes. Assim,
alguns autores têm se referido à dificuldade de estudantes africanos para
209
estabelecer amizades com brasileiros (Desidério, 2006). Por outro lado, a
amizade com brasileiros também tem sido apontada como um traço positivo
da experiência de estudantes africanos no país (Subuhana, 2009). A amizade
ainda ocupa uma posição periférica em estudos sobre a adaptação e
satisfação com o contexto de vida no Brasil (Andrade & Teixeira, 2009).
O aprofundamento no conhecimento sobre as amizades de
estudantes estrangeiros no Brasil pode contribuir para sua adaptação ao país
e também fornecer elementos para uma maior integração social e cultural
desses estudantes em nosso meio.
A presente pesquisa tem como fundamentação teórica as propostas
de Robert Hinde (1997) para o estudo do relacionamento interpessoal, assim
como alguns princípios propostos por Adams e Blieznser (1994). Hinde,
partindo de atitudes orientadoras da Etologia Clássica, apresenta algumas
propostas para a construção de uma ciência dos relacionamentos,
destacando a descrição e a análise de diferentes níveis de complexidade e
suas relações mútuas ou dialéticas, desde interações, relacionamentos,
grupos e a sociedade. Ainda trata da influência do ambiente físico e das
estruturas sócio-culturais sobre o relacionamento interpessoal.
O objetivo desta pesquisa é investigar a natureza das amizades de
estudantes africanos no Brasil com base nos episódios marcantes dessas
amizades, à luz das propostas de Robert Hinde (1997).

Metodologia

Participaram da pesquisa 12 universitários estrangeiros residindo e


estudando no Brasil, sendo dez de Guiné-Bissau e dois de São Tomé e
Príncipe. Todos eram alunos da Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES), sendo 11 graduandos e um mestrando, com idades entre 20 e 33
anos. Seis eram do sexo masculino e seis do sexo feminino e o tempo de
permanência no Brasil variou de um a sete anos. Havia nove católicos, um
muçulmano, um protestante e um não professava nenhuma religião. Todos
falavam português e dez também falavam crioulo.
Os dados foram obtidos por meio de entrevistas semi-estruturadas
baseadas em roteiro pré-estabelecido, contendo perguntas fechadas e
abertas. Os participantes foram entrevistados individualmente e os dados
foram gravados e transcritos. No momento da entrevista assinavam um
Termo de Consentimento para Participação em Pesquisa. Os dados
analisados no presente artigo foram respostas a uma questão aberta sobre os
episódios marcantes das amizades mais próximas, que foram submetidos a
análise de conteúdo (Bardin, 1988). O conteúdo das respostas foi
organizado em categorias de modo indutivo.

210
Os estudantes foram entrevistados com base em um roteiro prévio
dividido em três partes: (A) dados sócio-demográficos (nacionalidade, local
de nascimento, idade, tempo de residência no Brasil, curso e período,
religião e idiomas); (B) a rede de amigos: (a) identificação dos amigos; (b)
atividades compartilhadas e interesses comuns; (c) a comunicação com
amigos. (C) O relacionamento com os amigos mais próximos (até três):
onde reside (Brasil ou exterior), histórico da amizade, dificuldades e o
significado da amizade e seu papel na adaptação ao Brasil e na forma como
vê o país. Os dados analisados no presente artigo se referem às respostas
quanto ao histórico da amizade, especificamente quanto aos episódios
marcantes nas amizades próximas.
A realização da presente pesquisa foi aprovada pela Comissão de
Ética em Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES.

Resultados

Cada participante podia citar mais de episódio marcante em suas


amizades mais próximas. Os episódios marcantes das amizades foram
divididos em três grandes grupos temáticos: (a) apoio e companheirismo;
(b) festas e outros eventos sociais; (c) diferenças culturais. A maioria dos
episódios analisados foi apresentada na forma de uma breve narrativa. Os
resultados incluem 36 episódios marcantes que foram analisados de forma
qualitativa. Os nomes são indicados de forma abreviada, sempre se indicado
o sexo do estudante por M (masculino) ou F (feminino).
Apoio e Companheirismo - Apoio e companheirismo podem ser
considerados fatores internos à díade de amigos. Assim, o apoio se refere à
ajuda ou auxílio que um amigo fornece a outro, em termos materiais ou
instrumentais, emocionais e informacionais. Considera-se como
companheirismo o compartilhamento de experiências e o convívio entre
amigos.
O apoio marcou algumas amizades e deu-se em duas situações
principais: na chegada do estudante estrangeiro à cidade onde iria estudar e
em situações de enfermidade, urgência médica ou morte. Nos três exemplos
abaixo, o apoio se manifestou em situações de enfermidade ou urgência
médica. O primeiro episódio refere-se à visita do amigo quando a estudante
esteve doente: “E eu fiquei doente assim, internada, e ele apareceu com
umas florezinhas [...]. Ele ficou lá igual um irmão mesmo. [...]. Eu tive
certeza que ele se importava comigo naquela ocasião, que foi muito meigo”
(A-F de Guiné Bissau e E-M do Brasil).
Em um segundo episódio, o amigo levou o participante ao hospital
em função de um problema de saúde, “foi um dia em que eu estava doente,
aí eu estava aqui no campus mesmo, aí ligaram pra ele e ele foi lá na hora,
211
me levou pro hospital, ficou lá comigo o tempo todo até eu sair do hospital”
(O-M e M-M, ambos de Guiné Bissau). O terceiro episódio de apoio deu-se
em uma situação de emergência médica de um parto prematuro da esposa
do participante em que o amigo brasileiro foi informado da situação e
deslocou-se, juntamente com seus familiares, para socorrer o amigo
guineense.

Quando a L. deu a luz ao R., eu tava fazendo prova [...] e recebi a


ligação do hospital. E aí, a primeira pessoa que eu lembrei foi o A.
[...]. Eu sem experiência, sem preparação nenhuma, longe da
família [...]. Quando eu cheguei no hospital, o A. e seus pais já
estavam lá me apoiando [...] E eles me deram total apoio (P-M. de
Guiné Bissau e A.-M do Brasil).

Outro momento de dificuldade marcou a amizade entre duas


estudantes de São Tomé e Príncipe no Brasil. O desencontro de informações
sobre a morte da avó de uma delas causou um grande sofrimento à neta que
havia perdido o ente querido:

A avó dela morreu e ninguém falou nada pra ela porque a família
queria poupá-la. Só que ela [...] namorava com um rapaz que tava
em Portugal e ele veio passear aqui [e disse]“eu fiquei sabendo que
a sua avó morreu”. E ela assim não sabia disso, e pra ela foi um
choque enorme [...] ela parecia que ia desmaiar (Mr-F e Mk-F,
ambas de São Tomé e Príncipe).

Em outros caos, esse apoio se manifestou na recepção ao amigo ao


chegar à cidade onde iria estudar. O primeiro episódio refere-se à recepção
do amigo ao chegar a Vitória, que foi buscá-lo na estação rodoviária e o
levou para conhecer a cidade e seus amigos: “aí ele mostrou alguns lugares
interessantes e me apresentou aos amigos [...] „esse é o meu amigo A., da
África, está estudando na UFES‟. Aí todo mundo fica impressionado, „como
é que você conhece ele?‟ (Am-M de Guiné Bissau e Fe-M do Brasil).
Em episódio semelhante, o amigo brasileiro mostra a cidade para o
amigo de fora “um dia ele me convidou, saímos, e foi na rua tal, na praia e
tudo mais, foi muito bom (Ans-M de Guiné Bissau e Rf-M do Brasil). Em
outro caso, “a gente saiu junto, ela me mostrou um monte de lugares, foi
muito marcante (Jul-F de Guiné Bissau e De-F de Guiné Bissau). Outra
amizade foi marcada pela ajuda e cuidado ao chegar a Vitória:

Ela me ajudou com muito amor mesmo, com muito carinho, com
muita atenção e me falou assim [...]. Eu estava sentada na cama
212
dela e desarrumando a minha mala, as minhas coisas, e ela me disse
“Er, deixa eu te ajudar, Er, deixa eu te ajudar”, eu tava assim meio
desorientada. E depois, outro dia, ela me levou [...] pra Polícia
Federal com muito carinho mesmo. Com o dinheiro dela, pegamos
ônibus e fomos até lá. Foi muito marcante pra mim...O cuidado que
ela teve com a gente assim (Er-F e Ur-F, ambas de Guiné Bissau).

Em outro caso, a ajuda foi em relação à socialização com pessoas


do sexo oposto aqui no Brasil, quando o amigo teve oportunidade de falar
sobre as meninas brasileiras e seu comportamento, face ao interesse do
estudante guineense em se aproximar delas: “eu estava interessado em
saber o caráter, o que eles gostam, as meninas, o que elas não gostam [...]
como é que elas se comportam, sobretudo quando você é estrangeiro. Aí
eu... tá aprendi, aprendi com isso, com ele. (Am-M de Guiné Bissau e An-
M do Brasil). Finalmente, um estudante de Guiné Bissau reconheceu o
“apoio que ele vem dando” referindo-se a outro amigo guineense (Os-M e
Ho-M, ambos de Guiné Bissau). Os exemplos acima apontam para a
presença da ajuda no momento inicial, em relação ao ambiente físico e em
relação às pessoas do lugar.
O companheirismo também marcou algumas amizades. Em um
primeiro caso, a amiga deixou de sair de férias com a própria família em
Guiné Bissau para ficar com a amiga, “ela não quis viajar, optou por ficar e
a gente ficou, nós duas....Pra ficar comigo (Juc-F e Van-F, ambas de Guiné
Bissau). O companheirismo também é marcado pela atenção e
demonstração de carinho, no caso entre a amiga santomense e a brasileira:
“ela liga assim em tempos esporádicos [...] “ah, tô com saudade”, “liguei
pra dizer que te amo”, ela é assim muito sensível” (Ed-F de São Tomé e
Príncipe e Val-F do Brasil)
Por meio da companhia dos amigos é criado um ambiente familiar
semelhante ao do país de origem, “o dia que eu fui almoçar na casa dela,
tava uma amiga minha lá [...]. A gente estava bagunçando, aquele ambiente
quase familiar, me fez lembrar muito da minha família lá em Guiné e me
marcou muito (Er-F e Lí-F, ambas de Guiné Bissau). Uma estudante
guineense recordou um encontro com a família da amiga brasileira: “fui
com ela, na casa dela, em Minas Gerais, conhecer os pais dela, a mãe,
muito legal, ela fez comida típica mineira pra mim, gostei. ...É, gostei. Eu
tenho muita amizade com os familiares dela” (Jul-F de Guiné Bissau e Cr-F
do Brasil).
O convívio diário também faz parte do companheirismo, com
conversas sobre mulher e música “a gente também conversa muito e passou
a [...] se aproximar mais porque a gente fica conversando negócio de
mulher, negócio de [...] ele não gosta muito de futebol [...]. É música,
213
mulher, sociedade, assim, a gente se aproximou muito” (Pat-M de Guiné
Bissau e Wan-M de São Tomé e Príncipe). Duas amigas citaram conversas
no restaurante universitário como marcantes (Jul-F de Guiné Bissau e Di-F,
de Angola).
Apoio e companheirismo estão presentes em uma amizade entre
estudantes de diferentes países africanos:

Bem, a gente mora junto, a gente troca idéia, a gente discute, porque
ele é bom de política, de sociedade, de futebol. [...]. Ele também
brinca com o R., se a gente não estiver aqui, às vezes, ele fica com o
R., vai lá e brinca, aquelas coisas de amizade assim. Ele também me
ajuda a falar “não” pra R. se eu não estiver aqui (Pa-M de Guiné
Bissau e He-M de Cabo Verde).

Festas e Outros Eventos Sociais - As festas marcaram diversas


amizades dos estudantes africanos: “já fomos em muitas festas, já fizemos
muitas graças (Ans-M de Guiné Bissau e N-M de Angola). Um estudante
guineense tinha como episódio marcante de uma amizade com uma
brasileira a festa surpresa que ela preparou por ocasião de seu aniversário:
“Aí eu cheguei em casa, todas as coisas preparadas pra mim [...] Ela
preparou o bolo de aniversário, convidando amigos [...”]. (Am-M de
Guiné Bissau e R-F do Brasil). Outra festa surpresa de aniversário foi
marcante para outro estudante de Guiné Bissau: “eu fiz anos lá, ela me fez
surpresa, não esperava, até chorei, sabe? Porque chamou as colegas da
faculdade, chegou aí, começou a bater palma, chorei mesmo, foi muito
legal (Jul-F e Del-F, ambas de Guiné Bissau). Outra festa de aniversário foi
marcante pelo papel que os amigos assumem na ausência da família:

Com africano, é a festa que marca sempre. Porque a festa, quando a


gente faz a festa [...] é uma coisa. Eu fiz aniversário, por exemplo, o
pessoal aqui é a minha família que já tá lá na festa, aí você
esquece... assim a festa que a gente faz é mais para esquecer a
família porque a família da gente agora é esse pessoal. Aí na festa a
gente aproveita... aumenta ainda mais amizade (Ho-M e Pat-M,
ambos de Guiné Bissau).

E ainda outra festa de aniversário, “também ela fez anos, fez uma
surpresa pra ela” (Jul-F de Guiné Bissau e Di-F de Angola).
Outras festas foram marcantes em função das brincadeiras e
mesmo pelo consumo de bebidas alcoólicas afetando o comportamento do
amigo na festa: “quando alguém está embriagado, fala algumas coisas de
brincadeira [...]. Já realizamos algumas festas africanas, fomos nelas e ele
214
dançou pra caramba” (Ans-M e Ho-M, ambos de Guiné Bissau). Em outra
situação similar, a estudante santomense conta que quando sua amiga bebia
nas festas, cantava todas as músicas e queria extravasar: “Quando chegava
fim de semana e tinha festa, ela bebia, nossa dava muito trabalho, tinha que
levar pra casa, ela já começava a falar coisas assim que já não está no
contexto mais (Mr-F e Mk-F, ambas de São Tomé e Príncipe).
Em outro exemplo, o consumo de bebidas alcoólicas estava
associado ao clima de festa e os episódios marcantes com o amigo estavam
relacionados às oportunidades em que ele bebia. Em uma destas
oportunidades,

Ele chegou todo bêbado [...] porque teve uma festa na UFES [...]. Aí
eu levei ele pro quarto dele [...] Eu gosto de L. é quando ele bebe.
Ele assim, ele é muito alegre assim, muito doidão. Quando ele bebe
ele é tudo de bom [...] ele fica divertido, ele fala coisas boas assim,
coisas de amor, abraça, ele quer conversar” (Ed-F de São Tomé e
Príncipe e L-M do Brasil).

Outro episódio marcante refere-se à forma de dançar do amigo nas


festas: “O que mais me marca nele é quando ele dança [...]. Ele é muito
engraçado [...]. O momento que mais me marcou na amizade foram as
festas que a gente faz. Assim o jeito que ele dança mesmo. Nossa, é muito
engraçado”. (Ho-M e Os-M, ambos de Guiné Bissau).
De modo mais genérico, uma estudante de São Tomé referiu-se a
sair e beber com a amiga “então assim, a gente sai e bebe” e mais
especificamente, considerou marcante a festa de noivado da amiga, “no
noivado dela [...] foi o momento de botar anel” (Ed-F de São Tomé e Li-F
de Guiné Bissau).
Em uma das poucas recordações ainda de amizades em Guiné
Bissau, a participante menciona uma festa na escola, em que o amigo a
incentivou a se apresentar:

Ele me falou assim „vai você, você sabe cantar essa, você vai e faz
um playback, eu vou ficar aqui aplaudindo isso pra você‟, „tá, eu
vou fazer, eu vou pensar, depois no outro dia a gente faz‟. Então ele
me deu aquela coragem [...] e eu fui e eu fiz a música” (Er-F e Ka-F,
ambas de Guiné Bissau).

Uma festa de formatura na escola, seguida por uma visita a uma


boate, ainda no país de origem, foi importante para a amizade entre duas
estudantes guineenses: “ela ficou assim tão feliz porque depois daquele dia,
o tio dela ia deixar ela sair mais [...]. Eu não esqueço, a gente se divertiu
215
muito e depois a gente voltou pra minha casa” (Juc-F e Jue-F, ambas de
Guiné Bissau). Geralmente, os episódios marcantes que incluíam festas se
deram entre universitários de dois países africanos.
A festa oferecia o contexto para diferentes acontecimentos. Um
estudante de Guiné Bissau citou como algo marcante as festas, uma em
particular: “Teve uma vez [...] a gente foi pra festa, aí ele foi, caiu o
passaporte dele. É... e a gente teve que sair todo mundo, ajudando ele a
procurar, até que a gente conseguiu achar (Os-M de Guiné Bissau e Ed-M,
de Cabo Verde).
Alguns eventos sociais ainda estavam ligados a festas, mas já
mostram a influência da religião nessas amizades. Uma festa de aniversário
foi marcante também pelo fato do estudante ter sido convidado para
participar da festa assim que chegou ao Brasil e por ter sido convidado a
orar na festa, mesmo encontrando alguma dificuldade com o idioma:

Foi uma coisa muito marcante quando eu fui num aniversário de um


amigo dele depois de três dias [...]. Aí eu fui convidado pra orar
antes de começar aquela festinha. Então, o meu português era meio
feio, meio difícil e eu tava com vergonha de expressar no meio de
muita gente, naquela hora. Então, mas eu tentei fazer com vontade,
falei aquilo que eu podia na altura (Am-M de Guiné Bissau e Fe-M
do Brasil).

Outro evento social ligado a religião foi lembrado na amizade de


outros dois jovens guineenses, um fato ocorrido ainda em Guiné Bissau,
quando a estudante era acolita, participando da liturgia de um culto
religioso. O evento marcante deu-se em um passeio ou intercâmbio com
outro grupo religioso em outra parte do país que o amigo queria participar,
mesmo não sendo acolita. Mesmo assim, “ele foi falar com o padre que eu
falei que ele podia ir no meu lugar. Mas não deixaram e ele acabou indo
escondido” (Juc-F e Die-M, ambos de Guiné Bissau).
As festas estão muito presentes nos episódios recordados como
marcantes em diversas amizades, geralmente com outros amigos africanos
e, por vezes, ocorridos ainda quando estavam no continente africano, antes
de vir para o Brasil estudar.
Diferenças Culturais - As diferenças culturais estão presentes em
vários episódios marcantes. De modo mais evidente marcaram duas
amizades, ambas com brasileiros. Um primeiro episódio está relacionado
aos diferentes nomes das coisas em São Tomé e Príncipe e no Brasil, o que
marcou como algo engraçado:

216
Os episódios que eu levo mais dos meus amigos do Brasil mesmo é o
fato [...] de algumas coisas que aqui tem algum significado, no meu
país tem outro. [...] Quando eu ia almoçar no restaurante
universitário, a gente saía em grupo e eu também tava sempre
presente, eu falava alguma coisa e P. sempre me corrigia. Tanto que
eu morria de vergonha, mas o pessoal ficava sempre rindo. É muito
engraçado e eles adoram fazer muita palhaçada (Mr-F de São Tomé
e Príncipe e Pat-M do Brasil).

Em outro caso, foi o ensino de crioulo que marcou uma amizade


entre um guineense e um brasileiro:
O que marcou é o jeito que ele me fala pra eu ensinar crioulo [...]
Eu ensino, ele sabe, ele sabe assim muita coisa de crioulo porque eu
ensinava. Aí ele falava crioulo, assim escrevia [...]. Aí todo mundo
assim da sala ficava com ciúmes [...]. Mas o negócio de ensinar
crioulo pra ele me marcou, a facilidade que ele tem de pegar. Ele
sabe muita coisa de crioulo (Ho-M de Guiné Bissau e Ro-M do
Brasil).

Um caso particular em que uma estudante santomense brincou com


uma prima por causa do tipo de biquíni que usava poderia ser considerado,
possivelmente, como reação a uma cultura diferente quanto ao modo de se
vestir:

Estávamos numa praia [...] a prima dela [...] colocou um biquini


que estava atrás pequenininho [...]. Ela falou tanta coisa [...] pra
prima, “ah, mas isso não pode, você já tem um filho de 22 anos”,
mas foi tão engraçado a forma dela falar, eu não sei reproduzir isso,
não. [...] mas todo mundo ficou rindo lá. A mulher ficou cheia de
vergonha [...] mas a prima assim não ficou chateada [...] (Mr de São
Tomé e Príncipe e L-F do Brasil).

Finalmente, um estudante guineense mencionou como algo de


destaque em sua amizade com um angolano, as comparações que faziam
entre os seus países de origem, não somente em termos culturais, mas
também em termos de desenvolvimento e importância:

Discutimos... não de briga, discutimos, questão do amigo. [...] A


discussão é a diferença entre o meu país com o país dele, cada um
acha que o país dele é melhor. Pronto, em relação ao país dele é
verdade. O país dele em relação ao nosso é melhor porque ele é
mais grande e tudo mais, tem mais desenvolvimento, é melhor em
217
tudo. Eu recuso mais por causa assim... você já sabe... eu recuso
mais questão do país, „ah, eu estou defendendo o meu país‟. Dizendo
mesmo, na verdade, o país dele é melhor que o nosso, em nível de
desenvolvimento, porque é mais grande (Ans-M de Guiné Bissau e
N-M de Angola).

Nestes exemplos, a presença de diferenças culturais nos episódios


marcantes dá-se de forma positiva, não indicando questões como
preconceito ou discriminação, mas são diferenças que são vistas e vividas
com humor e respeito mútuo.

Discussão

Os episódios marcantes possibilitam uma visão bastante reveladora


das amizades examinadas, indicando sua amplitude e profundidade. Como
indicado por Adams e Blieszner (1994), as amizades apresentam aspectos
internos e externos à díade. Enquanto os eventos relacionados a apoio e
companheirismo revelam mais do relacionamento em suas dimensões
diádicas, as festas e demais eventos sociais indicam que essas amizades
ocorrem dentro de um contexto social mais amplo. Finalmente, as
diferenças culturais indicam que dimensões culturais e nacionais estão
presentes nesses relacionamentos.
Com base em Hinde (1997), estes três grupos de eventos marcantes
estão associados a diferentes níveis de análise que o autor propõe. O apoio e
o companheirismo caracterizam os relacionamentos enquanto as festas
mostram as relações dialéticas que existem entre os grupos sociais e os
relacionamentos diádicos. A influência da cultura também está prevista no
modelo de Hinde (1997) como estruturas sócio-culturais. Estes diferentes
níveis de complexidade estão presentes nos relatos de episódios marcantes
da amizade.
A importância das festas para os estudantes africanos é algo
notável. Recordar amizades em função de sua inserção em eventos sociais
indica que esses relacionamentos não podem ser reduzidos a um fenômeno
restrito a duas pessoas. O grupo social está claramente presente na amizade,
por meio das atividades sociais ou culturais que promove (como festas e
outros eventos sociais). Conforme proposto por Hinde (1997),
relacionamentos e grupos apresentam relações dialéticas e se influenciam
mutuamente. Os grupos desempenham um importante papel quanto ao
relacionamento servindo de contexto para o encontro de pessoas e o
surgimento e aprofundamento de relações de amizades ou outras. Os grupos
ainda permitem a transmissão de tradições, como aquelas subjacentes às
diferentes festas citadas. Novamente, conforme Hinde (1997), estas
218
tradições sociais e culturais que ele denomina de estruturas sócio-culturais,
estão em relação dialética com os relacionamentos diádicos.
Outro elemento do esquema de Hinde (1997) refere-se às relações
dialéticas entre o ambiente físico e os relacionamentos. Em vários episódios
pode-se ver a presença do ambiente físico na amizade. Amigos servem de
guia em um novo contexto ambiental, além de contribuir para a socialização
de seus pares, fazendo a mediação entre pessoas e grupos.
Apesar dos episódios geralmente se mostrarem como algo positivo,
eles vão do extremo sofrimento até o humor e a intensa alegria. Vários
episódios são lembrados por serem engraçados.
Finalmente, as amizades de estudantes estrangeiros no Brasil ainda
revelam como os estudantes lidam com as diferenças culturais ao se
aproximarem de pessoas de outros países. Apesar dos possíveis
desencontros devidos a essas diferenças, o que se observa novamente é a
presença do humor ao lidar com as diferenças, do interesse em aprender e
conhecer da cultura do outro. Possivelmente as amizades facilitem a
superação dessas diferenças integrando-as dentro de um relacionamento
caracterizado pelo apoio e companheirismo, que ultrapassa a questão da
tolerância das diferenças. As diferenças culturais acabam assumindo um
papel positivo, aproximando-se de outros trabalhos, como o de Kudo e
Simkin (2003). Em concordância com Lee (2006), a exploração das
diferenças culturais e de idioma foi um aspecto positivo nos
relacionamentos com pessoas de outra cultura.
Enquanto a literatura tem destacado as limitações e dificuldades
para estabelecer amizades com pessoas do país anfitrião entre estudantes
internacionais e a tendência a fazer amizades com conterrâneos (Bailey,
2006; Pandian, 2008; Brown, 2009a; Cushner & Karim, 2004; UKCOSA,
2004; Sawir, Marginson, Deumert, Nyland & Ramia, 2008), o presente
trabalho revelou o conteúdo de ambas a partir de episódios marcantes. De
modo similar, enquanto a literatura tem apontado as amizades com pessoas
do país anfitrião permitindo uma maior aprendizagem idioma ou da cultura
local (Ward, 2001; Ward, Bochner & Furnham, 2001), os relatos de
episódios marcantes mostram que os ganhos com essas amizades superam
essas metas.
Uma questão que merece uma maior reflexão diz respeito às
amizades entre estes estudantes africanos e seus parceiros brasileiros, cujo
relacionamento revela dificuldades (Desidério, 2006). Conforme indicado
por Subuhana (2009), as amizades são fatores de integração entre
estrangeiros e brasileiros. Cabe às instituições de ensino superior
possibilitar maior contato e aproximação entre esses grupos, tendo como
possibilidade de atuação o incentivo à formação de amizades. Jovens
universitários que partem para outro país para estudar enfrentam um
219
ambiente físico, social e cultural que não é o seu mundo. Neste caso, os
amigos são um bem precioso. Se amigos são pessoas importantes no dia-a-
dia de todas as pessoas, essa importância se torna ainda mais destacada
quando as pessoas passam a viver em terras distantes.

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222
SOBRE OS AUTORES

Adriana Augusto Raimundo de Aguiar - Fonoaudióloga, Mestre e Doutora


em Educação Especial e Pós-Doutoranda em Psicologia no campo
das Habilidades Sociais pela Universidade Federal de São Carlos.
Atualmente é membro do Grupo de Pesquisa RIHS – Relações
Interpessoais e Habilidades Sociais.
Agnaldo Garcia - Professor do Departamento de Psicologia Social e do
Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da UFES. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. E-
mail: agnaldo.garcia@pq.cnpq.br.
Ana Cristina Barros da Cunha – Professora do Departamento de Psicologia
Clínica do Instituto de Psicologia da UFRJ.
Angélica M. S. Gonçalves - Doutoranda, Programa de Enfermagem
Psiquiátrica -
Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/USP.
Claudia Balestreiro Pepino – Doutoranda do PPGP/UFES.
Claudia Patrocínio Pedroza Canal – Professora do Instituto de Ensino
Superior e Formação Avançada de Vitória, ES.
Cloves Bitencourt Neto - Bolsista de Iniciação Científica do CNPq, UFES.
Dominique Costa Goes – Bolsista de Iniciação Científica do CNPq, UFES.
Edna Aparecida Pereira Perobelli – USF/SP
Edna Lúcia Tinoco Ponciano – PUC/RJ.
Erikson Felipe Furtado - Depto. Neurociências e Ciências do
Comportamento
Faculdade de Medicina de Ribeirao Preto/USP.
Fernanda Gomes Dettogni - Bolsista de Iniciação Científica do CNPq,
UFES.
Fernanda Henrique Cupertino Alcântara - DER-UFV.
Fernanda Simplício Cardoso - PUC-Arcos.
Flavia Almeida Turrini – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da UFES, Professora do Departamento de Psicologia do
Centro Universitário São Camilo, ES.
José Roberto Pereira – UFLA.
Joseane de Souza - Psicóloga. Doutora em Enfermagem Psiquiátrica.
Pesquisadora do Nucleo de Pesquisa em Psiquiatria Clínica e
Psicopatologia Pai/Pad. Depart. Neurociências e Ciências do
Comportamento. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/ USP.
Josiane Raymundo dos Santos – USF/SP.
Juliana Fonseca Simões - jsimoes@hotmail.com
Jussara Cristina Barboza Tortella – USF/SP.

223
Kely Maria Pereira de Paula – Professora do Departamento de Psicologia
Social e do Desenvolvimento da UFES, Professora do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da UFES.
Larissa Horta Esper. Enfermeira. Mestranda em Saúde Mental. Dep.
Neurociências e Ciências do Comportamento. Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto/USP.
Leila Aparecida Kauchakje Pedrosa - Enfermeira, Doutora. Professora
Adjunto IV do Curso de Pós-graduação Mestrado em Atenção à
Saúde da UFTM.
Lívia Ramos Brandão - Bolsista de Iniciação Científica, CNPq. UFES.
Lorena Merizio Queiroz Costa – Doutoranda do PPGP/UFES.
Luciana Teles Moura – Doutoranda do PPGP/UFES.
Luciene Regina Paulino Tognetta - Coordenadora da linha de pesquisa
“Afetividade e Virtudes” do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Educação Moral – Unesp/Unicamp.
Marco Aurélio Togatlian – Doutorando do PPGP/UFES.
Maria Isabel da Silva Leme - Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo
Marina Medici Loureiro Subtil – Fisioterapeuta. Mestre em Psicologia pela
UFES.
Poliana Aliane Patricio - Psicóloga e Doutoranda em Saúde Mental. Dep.
Neurociências e Ciências do Comportamento. Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto/USP.
Priscila Tagliaferro - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/USP
Quênia Cristina Gonçalves da Silva - Mestranda do Curso de Pós-graduação
Mestrado em Atenção à Saúde da UFTM
Raquel Ferreira Miranda – Doutora em Psicologia pela UFES. Professora da
UFV-CRP.
Rejane Maria Dias de Abreu Gonçalves - Enfermeira da Universidade
Federal de Uberlândia/MG. Mestre em Enfermagem e Saúde pelo
Curso de Pós-graduação Mestrado em Atenção à Saúde da
Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
Renata Maria Dias de Abreu - Enfermeira, Mestre em Enfermagem e Saúde
pelo Curso de Pós-graduação Mestrado em Atenção à Saúde da
UFTM.
Rosane Mantilla de Souza - Programa de Estudos Pós Graduados em
Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. E-mail: rosane@pucsp.br.
Sandra Cristina Pillon - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/USP
Sônia Regina Fiorim Enumo - Professora do Departamento de Psicologia
Social e do Desenvolvimento da UFES, Professora do Programa de

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Pós-Graduação em Psicologia da UFES, Bolsista de Produtividade
em Pesquisa do CNPq.
Sônia Vivian de Jezus - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/USP
Sônia Zerbetto - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/USP
Tatiane Lebre Dias – Professora do Departamento de Psicologia da UFMT,
Professora Colaboradora no Programa de Pós-Graduação em
Educação da UNEMAT.
Terezinha Féres-Carneiro – PUC/RJ. Bolsista de Produtividde em Pesquisa
do CNPq.
Valéria Meirelles - valeriameirelles@terra.com.br
Vanessa FagionattoVicentin - Universidade de Franca. Agência
financiadora: CNPq. E-mail: vanessafvv@bol.com.br.
Zilda Aparecida Pereira Del Prette - Psicóloga, Mestre e Doutora em
Psicologia, com Pós-Doutorado pela Universidade da Califórnia. É
professora Titular e orientadora nos Programas de Pós-Graduação
em Psicologia e Educação Especial da Universidade Federal de São
Carlos e coordenadora do Grupo de Pesquisa RIHS – Relações
Interpessoais e Habilidades Sociais.

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