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A principal proposta deste artigo é situar alguns elementos das condições de produção
das crônicas de Machado de Assis e de João do Rio durante a chamada Belle Époque Tropical,
dando ênfase ao período de transição que vai do realismo ao chamado sincretismo pré-
modernista, procurando formular o problema da dificuldade de pensar as relações entre texto
e contexto, investigando, portanto, as redes de interlocução entre literatura e sociedade. Para
tanto, escolhemos a crônica como gênero literário e o Rio de Janeiro como espaço urbano a ser
analisado, pois: “Que a crônica é modalidade de literatura urbana, não resta dúvida, mas no caso
brasileiro há esta particularidade: é no Rio de Janeiro que o gênero nasceu, cresceu e se fixou”.
Desta forma, somos levados a perceber não só as transformações culturais, políticas e urbanas
do Rio de Janeiro, então capital federal, como também a perda de referências e a perplexidade
com que a sociedade carioca viveu a chegada da “modernidade”.
A proclamação da República e a Abolição da escravidão, assim como a chegada dos
Bonds e da “velocidade” trazem consigo o sonho de remodelar o país, inaugurando assim, um
novo tempo no Brasil, o tempo do progresso. No entanto, nas palavras de Compagnon (1996,
p.26), “o progresso torna-se, pois fatalmente, uma rotina que dissolve o ideal de progresso”.
A sensação de “vazio” deixada pela chegada do “novo” acabou por impulsionar
transformações não só no espaço físico da cidade como também na vida social, política e
intelectual dos cariocas. O Rio de Janeiro, antiga cidade imperial, de ruas tortas e estreitas, de
hábitos ainda patriarcais e escravistas tenta se transformar, a todo custo, em uma metrópole
moderna. O principal objetivo é transformar a cidade numa vitrine do país; o Rio vive sua Belle
Époque.
O momento fin-de-siécle pelo qual passa a sociedade brasileira é marcado pelo
movimento pendular entre a modernização e a imobilidade social. Há ainda resquícios culturais
do Romantismo do século XIX, mas com uma preocupação maior com a crítica social.
No âmbito literário, se no Realismo as idéias de revolução social, o cientificismo e as
reformas políticas já começavam a exigir dos escritores, tanto uma literatura de ação comprometida
com as mudanças sociais e principalmente com a crítica, quanto uma abordagem mais intrínseca
do ser humano, visto agora à luz dos conhecimentos das correntes científico-filosóficas da época;
no período chamado de sincretismo pré-modernista os escritores se interessavam por obras de
nítido caráter social, cuja proposta era estabelecer uma aproximação maior entre o escritor e o
público, retratando a vida cotidiana e os tipos humanos marginalizados.
Psicóloga e mestranda em Literatura Brasileira (UFC). Bolsista Funcap. Orientador: Prof. Dr. Sânzio de
Azevedo
Expressão usada por Jeffrey Needell (1993).
RESENDE, B. Cronistas do Rio. Rio de janeiro: José Olympio, 1995, p. 35.
Segundo Massaud Moisés (Dicionário de termos literários, 1983) a modernidade não apresentou uma cronologia
rigorosa, “genericamente encontrando na Belle Époque seu momento de explosão”. Inicia-se por volta de 1880 e
avança pelo século XX até uma data que varia de 1925 a 1950.
COMPAGNON, A. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: UFMG, 1996, p. 126.
Neste período da história literária brasileira acontecia ainda a transição entre a forma
clássica e imortal do livro e as folhas dos periódicos, o que fez surgir um novo estilo de escrita:
a crônica — forma mais oportuna de assegurar a sobrevivência dos intelectuais, já que estes não
tinham mais o apoio da aristocracia.
Em meio a tantos acontecimentos novos na cena histórica e literária do Rio, se destacam
duas brilhantes figuras na literatura brasileira: João do Rio e Machado de Assis. Se este consegue
passar ao leitor, de forma crítica, os valores hipócritas da burguesia carioca, aquele mostra o
lado “marginal” e suburbano da cidade, bem ao estilo “flâneur” de Baudelaire.
Nesta época (entre as duas últimas décadas do século XIX e os primeiros anos do século
XX) torna-se difícil não relacionar literatura e processo social. Os estudos literários passam,
então, a fazer parte das ciências ditas sociais, fornecendo “subsídios em nada desprezíveis
para melhor entendimento da história social, visto que o próprio objeto de estudo, a literatura,
representava mimeticamente a estrutura da sociedade” (SANTIAGO, 2002, p.251).
Para Afrânio Coutinho (1968):
Uma análise exata da obra de arte como tal e na sua totalidade e unidade
não exclui o conhecimento de certos fatos relevantes que a integram na
história da civilização (como costumes, linguagem, correntes de pensamento
espiritualidade, etc.). A história não deve ser primeira, mas subsidiária” .
Mas até onde vão as relações entre a literatura e desenvolvimento histórico social no
Brasil? Qual o papel da mimésis e qual o papel da história na literatura?
Em crônica escrita em 05/04/1888 (da série Bons Dias!) Machado de Assis, com evidente
cinismo, nos fala sobre o estilo de sua escrita enquanto cronista de seu tempo:
Portanto, bico calado. No mais é o que se está vendo: cá virei uma vez por
semana, com o meu chapéu na mão, e os bons dias na boca. Se lhes disser desde
já, que não tenho papas na língua, não me tomem por homem despachado, que
vem dizer coisas amargas aos outros. Não, senhor; não tenho papas na língua,
e é para vir a tê-las que escrevo. Se as tivesse, engolia-as e estava acabado
(ASSIS, 1997, p.485).
Para Moreira Leite (2002, p.241-242), o que os críticos de Machado de Assis chamam
de revolta e amargura, nada mais é do que a “percepção do grotesco ou do ridículo, que era um
dos seus traços fundamentais e distintivos.”
As crônicas machadianas conseguem registrar o modo de ser da classe burguesa para
criticá-la, mesmo fazendo parte dela. Ele consegue que seu leitor faça uma leitura “saborosa”
de suas crônicas. Neste caso, a mimésis devidamente instruída de senso crítico, ao invés de
aprisionar o escritor a questões puramente sociais, mostra seu esforço para captá-las de maneira
original e até alegórica.
Desde a fase chamada realista de Machado de Assis (cujo livro Memórias Póstumas
de Brás Cubas é considerado o marco zero do Realismo no Brasil) surgem, na cena literária
brasileira, importantes autores como Lima Barreto e Aluízio Azevedo, preocupados com as
condições sociais dos “pouco favorecidos” e com a hipocrisia da sociedade, mas nenhum com
a maestria machadiana.
Mais tarde um pouco, na passagem do século XIX para o século XX, quando os contrastes
sociais se tornam mais evidentes, surge no Brasil, uma nova classe social: o proletariado -
camada social formada pelos assalariados, cujo trabalho era baseado na mão de obra livre e
formado, em sua maioria, por imigrantes e ex-escravos. Com eles, aparecem as favelas, os
cortiços, os mendigos, comprovando que o Rio de Janeiro não passou impune pela transição
para a ordem capitalista urbana. Desde então, os escritores passam a se interessar mais pelos
tipos marginalizados, pelo subdesenvolvimento e pela miséria.
Ainda com resquícios da mentalidade positivista e da abordagem do homem como “ser
universal” entra em cena o sincretismo pré-modernista, cujo primeiro representante é Euclides
da Cunha com sua obra Os sertões. Nesta época, na contramão dos estilos vigentes ainda que
sob influência do Decadentismo europeu, se destaca como cronista o jornalista e escritor Paulo
Barreto. Sob o pseudônimo de João do Rio, Barreto “flanava” pelas ruas da cidade do Rio de
Janeiro observando os anônimos.
Para compreender a psicologia das ruas não basta gozar as delicias como se
goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio
de curiosidades malsãs, e os nervos com um completo desejo incompreensível,
é preciso aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos
esportes – A arte de flanar (...) Aí está o verbo universal sem entrada nos
dicionários, que não pertence a nenhuma língua (RIO, 1997, p.51).
Escrito durante o governo Rodrigues Alves, o livro A alma encantadora das ruas é,
para o crítico Luís Martins, importante não só para a literatura como também para historiadores
e sociólogos que pretendam reconstruir a vida carioca do início do século XX. Nele, a cidade
aparece em primeiro plano, influenciando um estilo literário onde a dicção se aproxima do
prosaico para conservar o lirismo, realçando o que há de “encantador” nas ruas.
João do Rio se torna o cronista da cidade e um dos precursores do jornalismo investigativo
no Brasil, quando vai atrás da notícia, esteja ela nos morros ou nos salões. Vive e faz ver a
chegada do automóvel, “o cavalo de Ulysses posto em movimento por Satanás” (GOMES,
2005, p.61) observa e vive como a “gente chic” que freqüentava os cafés da Avenida Central,
imitando as modas e costumes de Paris, dizendo: “estamos na era da exasperante ilusão, do
artificialismo,do papel pintado, das casas pintadas, das almas pintadas” (id. p.171); mas também
acompanha o aparecimento das favelas, dos mendigos, dos trapeiros, do trabalho quase escravo
dos estivadores e das “pequenas profissões”:
Todos estes pobres seres tristes vivem do cisco, do que cai nas sarjetas, dos
restos, dos ratos, dos magros gatos dos telhados, são os heróis da utilidade,
os que apanham o inútil pra viver, os inconscientes aplicadores à vida das
cidades daquele axioma de Lavoisier – nada se perde na natureza (id, p.116).
Com seu estilo único de descrever as ruas e a “gente alegre” que nelas vive, João do
Rio consegue passar ao leitor atento o verdadeiro espírito da modernidade vivido pelo Rio de
Janeiro fin de siécle. Sob a aparência de um olhar desatento e distraído esconde-se alguém cuja
volúpia reside na decifração dos sinais e das imagens - algo que pode ser revelado por uma
palavra deixada ao acaso, uma expressão capaz de fascinar o olhar de um pintor, um ruído que
espera o ouvido atento de um músico.
Sem deixar de lado a importância da literatura no âmbito histórico e da história no
âmbito literário, a proposta de fazer uma releitura da Belle Époque carioca através das crônicas
de Machado de Assis e de Paulo Barreto veio certamente da percepção da maneira como ambos
conseguem fazer literatura através da crônica. Tanto Machado de Assis, mostrando a visão
hipócrita da burguesia carioca, quanto João do Rio, flanando pelos subúrbios da cidade, captam
certas particularidades do momento histórico que os inspirou, transformando-os em um estilo
original de escrita, que proporciona prazer no ato da leitura.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BARTHES, Roland. A Aula. São Paulo: Cultrix, 2003.
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
BOSI, Alfredo. Machado de Assis: O enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999.
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. BH: UFMG, 1996.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. RJ: Sul Americana, vol.1, 1968.
GOMES, Renato Cordeiro. João do Rio. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional/Editora
Agir, Coleção Nossos Clássicos, 2005.
LEITE, Dante Moreira. Psicologia e literatura. São Paulo: UNESP, 2002.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1983.
NEEDELL, Jeffrey. Belle Époque Tropical: Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na
virada do século. São Paulo: Cia. das letras, 1993.
PRADO, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1977.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Cia. das letras, 1997.
______. As religiões do Rio. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional. Departamento
nacional do livro. http/www.dominiopublico.com.br.
SANTIAGO, Silviano. Para além da história social. In: ______. Nas malhas da letra. Rio de
Janeiro: Rocco, 2002.