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A BELLE ÉPOQUE CARIOCA EM JOÃO DO RIO E MACHADO DE ASSIS

Fabiana Silveira Moura (UFC)

A principal proposta deste artigo é situar alguns elementos das condições de produção
das crônicas de Machado de Assis e de João do Rio durante a chamada Belle Époque Tropical,
dando ênfase ao período de transição que vai do realismo ao chamado sincretismo pré-
modernista, procurando formular o problema da dificuldade de pensar as relações entre texto
e contexto, investigando, portanto, as redes de interlocução entre literatura e sociedade. Para
tanto, escolhemos a crônica como gênero literário e o Rio de Janeiro como espaço urbano a ser
analisado, pois: “Que a crônica é modalidade de literatura urbana, não resta dúvida, mas no caso
brasileiro há esta particularidade: é no Rio de Janeiro que o gênero nasceu, cresceu e se fixou”.
Desta forma, somos levados a perceber não só as transformações culturais, políticas e urbanas
do Rio de Janeiro, então capital federal, como também a perda de referências e a perplexidade
com que a sociedade carioca viveu a chegada da “modernidade”.
A proclamação da República e a Abolição da escravidão, assim como a chegada dos
Bonds e da “velocidade” trazem consigo o sonho de remodelar o país, inaugurando assim, um
novo tempo no Brasil, o tempo do progresso. No entanto, nas palavras de Compagnon (1996,
p.26), “o progresso torna-se, pois fatalmente, uma rotina que dissolve o ideal de progresso”.
A sensação de “vazio” deixada pela chegada do “novo” acabou por impulsionar
transformações não só no espaço físico da cidade como também na vida social, política e
intelectual dos cariocas. O Rio de Janeiro, antiga cidade imperial, de ruas tortas e estreitas, de
hábitos ainda patriarcais e escravistas tenta se transformar, a todo custo, em uma metrópole
moderna. O principal objetivo é transformar a cidade numa vitrine do país; o Rio vive sua Belle
Époque.
O momento fin-de-siécle pelo qual passa a sociedade brasileira é marcado pelo
movimento pendular entre a modernização e a imobilidade social. Há ainda resquícios culturais
do Romantismo do século XIX, mas com uma preocupação maior com a crítica social.
No âmbito literário, se no Realismo as idéias de revolução social, o cientificismo e as
reformas políticas já começavam a exigir dos escritores, tanto uma literatura de ação comprometida
com as mudanças sociais e principalmente com a crítica, quanto uma abordagem mais intrínseca
do ser humano, visto agora à luz dos conhecimentos das correntes científico-filosóficas da época;
no período chamado de sincretismo pré-modernista os escritores se interessavam por obras de
nítido caráter social, cuja proposta era estabelecer uma aproximação maior entre o escritor e o
público, retratando a vida cotidiana e os tipos humanos marginalizados.

  Psicóloga e mestranda em Literatura Brasileira (UFC). Bolsista Funcap. Orientador: Prof. Dr. Sânzio de
Azevedo
  Expressão usada por Jeffrey Needell (1993).
  RESENDE, B. Cronistas do Rio. Rio de janeiro: José Olympio, 1995, p. 35.
  Segundo Massaud Moisés (Dicionário de termos literários, 1983) a modernidade não apresentou uma cronologia
rigorosa, “genericamente encontrando na Belle Époque seu momento de explosão”. Inicia-se por volta de 1880 e
avança pelo século XX até uma data que varia de 1925 a 1950.
  COMPAGNON, A. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: UFMG, 1996, p. 126.
Neste período da história literária brasileira acontecia ainda a transição entre a forma
clássica e imortal do livro e as folhas dos periódicos, o que fez surgir um novo estilo de escrita:
a crônica — forma mais oportuna de assegurar a sobrevivência dos intelectuais, já que estes não
tinham mais o apoio da aristocracia.
Em meio a tantos acontecimentos novos na cena histórica e literária do Rio, se destacam
duas brilhantes figuras na literatura brasileira: João do Rio e Machado de Assis. Se este consegue
passar ao leitor, de forma crítica, os valores hipócritas da burguesia carioca, aquele mostra o
lado “marginal” e suburbano da cidade, bem ao estilo “flâneur” de Baudelaire.
Nesta época (entre as duas últimas décadas do século XIX e os primeiros anos do século
XX) torna-se difícil não relacionar literatura e processo social. Os estudos literários passam,
então, a fazer parte das ciências ditas sociais, fornecendo “subsídios em nada desprezíveis
para melhor entendimento da história social, visto que o próprio objeto de estudo, a literatura,
representava mimeticamente a estrutura da sociedade” (SANTIAGO, 2002, p.251).
Para Afrânio Coutinho (1968):

Uma análise exata da obra de arte como tal e na sua totalidade e unidade
não exclui o conhecimento de certos fatos relevantes que a integram na
história da civilização (como costumes, linguagem, correntes de pensamento
espiritualidade, etc.). A história não deve ser primeira, mas subsidiária” .

Mas até onde vão as relações entre a literatura e desenvolvimento histórico social no
Brasil? Qual o papel da mimésis e qual o papel da história na literatura?

Se a leitura realista circunscreve questões de relevo para a leitura do texto


nas suas relações com a história e com a sociedade, deixa, no entanto de
compreender o que nele o torna transistórico e por isso mesmo, crítico e
prazeroso. Isto é, o que do texto é capaz de substantivamente proporcionar
saber e prazer aos leitores de outras partes do mundo e de outras épocas da
história (SANTIAGO, 2002, p.261).

Segundo Antoine Compagnon, a mimésis aristotélica é interpretada pelos realistas como


representação das ações humanas através da linguagem, de modo que a literatura nos mostre,
de maneira cada vez mais autêntica, as experiências e os conflitos do indivíduo. No entanto,
uma das críticas mais freqüentes feitas ao realismo consiste na sua pretensa capacidade de
representar o real como se este fosse previsível, ou como se fosse natural, criando, desta forma,
uma relação de obrigatoriedade com as regras ditas realistas, o que faz com que o escritor seja
tolhido em sua criatividade.
Machado de Assis, que é considerado por muitos autores um escritor realista, rompe
com essa linearidade e previsibilidade do realismo, conseguindo retratar a estrutura histórica
e social da alta burguesia. Suas crônicas lidam de forma rascante, mas bem humorada, com a
natureza humana, são surpreendentes e pouco previsíveis, conseguindo passar ao leitor a crueza
de sua concepção da existência humana, mostrando em seus escritos “algo de darwiniano”
(BOSI, 1999). Segundo Dante Moreira Leite, tal característica faz de Machado um cronista
incomparável, pois ele
consegue desvendar os processos pelos quais o homem procura disfarçar essa
insuperável dicotomia entre seus impulsos ou qualidades individuais e as
exigências da vida social. Ao contrário dos românticos, cujas personagens são
extremamente más, embora intimamente boas, Machado descreve a bondade
superficial e a maldade ou mesquinharia profundas (LEITE, 2002, p.256-257).

Em crônica escrita em 05/04/1888 (da série Bons Dias!) Machado de Assis, com evidente
cinismo, nos fala sobre o estilo de sua escrita enquanto cronista de seu tempo:

Portanto, bico calado. No mais é o que se está vendo: cá virei uma vez por
semana, com o meu chapéu na mão, e os bons dias na boca. Se lhes disser desde
já, que não tenho papas na língua, não me tomem por homem despachado, que
vem dizer coisas amargas aos outros. Não, senhor; não tenho papas na língua,
e é para vir a tê-las que escrevo. Se as tivesse, engolia-as e estava acabado
(ASSIS, 1997, p.485).

Para Moreira Leite (2002, p.241-242), o que os críticos de Machado de Assis chamam
de revolta e amargura, nada mais é do que a “percepção do grotesco ou do ridículo, que era um
dos seus traços fundamentais e distintivos.”
As crônicas machadianas conseguem registrar o modo de ser da classe burguesa para
criticá-la, mesmo fazendo parte dela. Ele consegue que seu leitor faça uma leitura “saborosa”
de suas crônicas. Neste caso, a mimésis devidamente instruída de senso crítico, ao invés de
aprisionar o escritor a questões puramente sociais, mostra seu esforço para captá-las de maneira
original e até alegórica.
Desde a fase chamada realista de Machado de Assis (cujo livro Memórias Póstumas
de Brás Cubas é considerado o marco zero do Realismo no Brasil) surgem, na cena literária
brasileira, importantes autores como Lima Barreto e Aluízio Azevedo, preocupados com as
condições sociais dos “pouco favorecidos” e com a hipocrisia da sociedade, mas nenhum com
a maestria machadiana.
Mais tarde um pouco, na passagem do século XIX para o século XX, quando os contrastes
sociais se tornam mais evidentes, surge no Brasil, uma nova classe social: o proletariado -
camada social formada pelos assalariados, cujo trabalho era baseado na mão de obra livre e
formado, em sua maioria, por imigrantes e ex-escravos. Com eles, aparecem as favelas, os
cortiços, os mendigos, comprovando que o Rio de Janeiro não passou impune pela transição
para a ordem capitalista urbana. Desde então, os escritores passam a se interessar mais pelos
tipos marginalizados, pelo subdesenvolvimento e pela miséria.
Ainda com resquícios da mentalidade positivista e da abordagem do homem como “ser
universal” entra em cena o sincretismo pré-modernista, cujo primeiro representante é Euclides
da Cunha com sua obra Os sertões. Nesta época, na contramão dos estilos vigentes ainda que
sob influência do Decadentismo europeu, se destaca como cronista o jornalista e escritor Paulo
Barreto. Sob o pseudônimo de João do Rio, Barreto “flanava” pelas ruas da cidade do Rio de
Janeiro observando os anônimos.

  Termo usado por Roland Barthes em seu texto “A aula”.


João do Rio foi um dos precursores da crônica moderna, misto de literatura e jornalismo,
adotou como tema desde os salões mais elegantes da burguesia carioca até seu bas-fond. Seu
livro A alma encantadora das ruas, escrito em 1908, revela aspectos que chocaram quem vivia
no universo da Belle Époque carioca, revelando uma cidade destoante daquela divulgada e vivida
pela classe dominante. Suas crônicas, sua linguagem fragmentada e a mistura de estilos acabam
por originar as fantasmagorias da metrópole, onde o moderno e o arcaico se interpenetram e
trazem do passado uma história que não foi contada, a história não idealizada da periferia e dos
excluídos.
Este espaço fragmentado do urbano torna-se então a grande metáfora da modernidade.
A cidade, a rua são os lugares onde transitam as alteridades, onde se percebe o anônimo, mas
não de maneira metódica e previsível, beirando a indiferença:

Para compreender a psicologia das ruas não basta gozar as delicias como se
goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio
de curiosidades malsãs, e os nervos com um completo desejo incompreensível,
é preciso aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos
esportes – A arte de flanar (...) Aí está o verbo universal sem entrada nos
dicionários, que não pertence a nenhuma língua (RIO, 1997, p.51).

Escrito durante o governo Rodrigues Alves, o livro A alma encantadora das ruas é,
para o crítico Luís Martins, importante não só para a literatura como também para historiadores
e sociólogos que pretendam reconstruir a vida carioca do início do século XX. Nele, a cidade
aparece em primeiro plano, influenciando um estilo literário onde a dicção se aproxima do
prosaico para conservar o lirismo, realçando o que há de “encantador” nas ruas.
João do Rio se torna o cronista da cidade e um dos precursores do jornalismo investigativo
no Brasil, quando vai atrás da notícia, esteja ela nos morros ou nos salões. Vive e faz ver a
chegada do automóvel, “o cavalo de Ulysses posto em movimento por Satanás” (GOMES,
2005, p.61) observa e vive como a “gente chic” que freqüentava os cafés da Avenida Central,
imitando as modas e costumes de Paris, dizendo: “estamos na era da exasperante ilusão, do
artificialismo,do papel pintado, das casas pintadas, das almas pintadas” (id. p.171); mas também
acompanha o aparecimento das favelas, dos mendigos, dos trapeiros, do trabalho quase escravo
dos estivadores e das “pequenas profissões”:

Todos estes pobres seres tristes vivem do cisco, do que cai nas sarjetas, dos
restos, dos ratos, dos magros gatos dos telhados, são os heróis da utilidade,
os que apanham o inútil pra viver, os inconscientes aplicadores à vida das
cidades daquele axioma de Lavoisier – nada se perde na natureza (id, p.116).

Com seu estilo único de descrever as ruas e a “gente alegre” que nelas vive, João do
Rio consegue passar ao leitor atento o verdadeiro espírito da modernidade vivido pelo Rio de
Janeiro fin de siécle. Sob a aparência de um olhar desatento e distraído esconde-se alguém cuja
volúpia reside na decifração dos sinais e das imagens - algo que pode ser revelado por uma
palavra deixada ao acaso, uma expressão capaz de fascinar o olhar de um pintor, um ruído que
espera o ouvido atento de um músico.
Sem deixar de lado a importância da literatura no âmbito histórico e da história no
âmbito literário, a proposta de fazer uma releitura da Belle Époque carioca através das crônicas
de Machado de Assis e de Paulo Barreto veio certamente da percepção da maneira como ambos
conseguem fazer literatura através da crônica. Tanto Machado de Assis, mostrando a visão
hipócrita da burguesia carioca, quanto João do Rio, flanando pelos subúrbios da cidade, captam
certas particularidades do momento histórico que os inspirou, transformando-os em um estilo
original de escrita, que proporciona prazer no ato da leitura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
BARTHES, Roland. A Aula. São Paulo: Cultrix, 2003.
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
BOSI, Alfredo. Machado de Assis: O enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999.
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. BH: UFMG, 1996.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. RJ: Sul Americana, vol.1, 1968.
GOMES, Renato Cordeiro. João do Rio. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional/Editora
Agir, Coleção Nossos Clássicos, 2005.
LEITE, Dante Moreira. Psicologia e literatura. São Paulo: UNESP, 2002.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1983.
NEEDELL, Jeffrey. Belle Époque Tropical: Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na
virada do século. São Paulo: Cia. das letras, 1993.
PRADO, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1977.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Cia. das letras, 1997.
______. As religiões do Rio. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional. Departamento
nacional do livro. http/www.dominiopublico.com.br.
SANTIAGO, Silviano. Para além da história social. In: ______. Nas malhas da letra. Rio de
Janeiro: Rocco, 2002.

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