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Junho de 2021
1
NO ÁLBUM
DO MEU AMIGO J.A. DA SILVA SOBRAL.
Amigo. . .
Pedes um canto na lyra,
A quem apenas lhe tira
Sons de viola chuleira?
Insistes d’essa maneira?
Não sabes que, por desgraça,
Por mais esforços que faça
Por ser vate é sempre em vão?
Não vês que mente o rifão:
Quem porfia mata caça?
(F. X. DE NOVAES.)
25 Desprenda-se a veia,
26 Comece a festança,
27 Mordendo, cortando—
28 Com toda chibança.
29 Ateie-se a Musa,
30 Na magra cachola,
31 Com phrases flammantes
32 De chôcho pachola.
33 E qual estudante,
34 Campando de sábio,
35 Que empunha a luneta,
36 Que é seu astrolabio:
37 Eu pego na penna,
38 Escrevo o que sinto;
40 —Seguindo a doutrina
41 Do grande Filinto.
66 Sciencias e lettras
67 Não são para ti
68 Pretinho da Costa1
69 Não é gente aqui.
…………………………………2
70 Ouvindo o conselho
71 Da minha razão.
72 Callei o impulso
73 Do meu coração.
1 Seguimos aqui a forma com que se encontra este verso na 1ª e na 3ª edições e não
“Cost” como se encontra na segunda por ser evidente gralha tipográfica.
2 Cotejando as três edições disponíveis, consideramos que esta solução gráfica, usada na
primeira edição, parece a melhor para marcar uma pausa dramática no poema do que o
simples aumento do espaço entre as estrofes usado na segunda e terceira edições, que
pode ter sido devido a falta de tipos na caixa tipográfica.
Humberto de Araújo, Mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará
Junho de 2021
82 Desculpa, meu caro amigo,
83 Eu nada te posso dar;
84 Na terra que rege o branco,
85 Nos privam té de pensar!…
86 Ao peso do captiveiro
87 Perdemos razão e tino,
88 Soffrendo barbaridades,
89 Em nome do Ser Divino!!
…………………………………
94 Do chôcho bestunto
95 Cabeça farei;
96 Mimosas cantigas
97 Então te darei.—
90 E quando lá no horisonte
91 Despontar a Liberdade;
92 Rompendo as férreas algemas
93 E proclamando a igualdade;
3 A segunda edição — que utilizamos aqui — omite o acento, evidente erro tipográfico
que não ocorre nas outras duas.
Humberto de Araújo, Mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará
Junho de 2021
94 Do chôcho bestunto
95 Cabeça farei;
96 Mimosas cantigas
97 Então te darei.—
2
Excetuando-se a epígrafe de F.X. de Novais, todo o poema é composto
em redondilhas. Das 24 estrofes, apenas 4 são em redondilhas maiores e
as restantes em redondilhas memores. Mas como a utilização desses me-
tros contribui para a estruturação do poema?
As estrofes em redondilha maior (verso de 7 sílabas) respondem pelo
caráter dialógico do poema, isto é, são utilizadas pelo poeta para tratar
diretamente com o seu amigo e marcam o início de cada uma das 4 partes
de tamanhos desiguais do poema. Observe-se ainda que o ritmo dessas
estrofes não segue um esquema fixo:
3
Na primeira parte, que funciona como um preâmbulo ou introito, o po-
eta explicita o pedido do amigo na primeira estrofe em redondilha maior
(que escandimos logo acima), mas em seguida explica que não fará um
poema como se espera por não falar de flores, prados, sinos, pássaros
Humberto de Araújo, Mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará
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canoros, regatos ou do Cupido, isto é, temas e figuras caras ao Romantismo
vigente no seu tempo. A crítica é ainda mais profunda, pois ao afirmar que
não o faz por ser “pobretão”, coloca a estética Romântica como algo da
elite, contra a qual o personagem satírico, Getulino (pseudônimo derivado
de Getúlia, território do Norte da África), assim como Luiz Gama se insur-
gem, e se apresenta como excêntrico, cômico (“ratão”, v. 8).
Assim, é nesse dizer o que não vai dizer, que o eu-lírico tece seu discurso
crítico à sociedade de seu tempo, ao mesmo tempo que assume um lugar
de fala, como um negro que tem orgulho de sua origem, como se vê no
seu poema “Quem sou eu”:
Ham de chamar-me—tarello,
Bode, negro, Mongibello;
Porém eu que não me-abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Após esse primeiro momento em que o poeta, ao dizer o que não vai
dizer, diz muito, a segunda parte principia com o poeta dizendo, na estrofe
em redondilha maior que abre a seção, o que pode oferecer, isto é, “pala-
vras desconchavadas” e “sandices ritmadas” (versos 21 a 24). E inicia então
com uma paródica invocação às musas, arremedo da literatura clássica
(versos 25 a 41). A invocação termina com o poeta dizendo:
37 Eu pego na penna,
38 Escrevo o que sinto;
40 —Seguindo a doutrina
41 Do grande Filinto.
4 Grifo nosso.
Humberto de Araújo, Mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará
Junho de 2021
Mas após invocar Filinto Elísio – poeta arcádico português que escreveu
Da Arte Poética Portuguesa, em que codifica normas e conceitos acerca da
poesia e da língua portuguesa –, o poeta volta ao jogo de dizer no não dito
(ou no interdito?):
54 Mordendo na sola,
55 Empunha o martello,
56 Não queiras, com brancos,
57 Metter-te a tarelo.
[…]
66 Sciencias e lettras
67 Não são para ti
68 Pretinho da Costa
69 Não é gente aqui.
70 Ouvindo o conselho
71 Da minha razão.
72 Callei o impulso
73 Do meu coração.
86 Ao peso do captiveiro
87 Perdemos razão e tino,
88 Soffrendo barbaridades,
89 Em nome do Ser Divino!!
É nesse jogo de dizer não dizendo que o poeta subverte o silêncio que a
elite branca tenta impor aos negros através de sua poesia, assim como no
seu trabalho de jornalista e advogado, nos quais usou a palavra escrita,
aprendida apenas aos 17 anos de idade, para buscar o seu lugar de fala e
lutar pela liberdade dos negros. Liberdade essa, condição sine qua non para
que ele possa escrever as “mimosas cantigas” a ele pedidas:
90 E quando lá no horisonte
91 Despontar a Liberdade;
92 Rompendo as férreas algemas
93 E proclamando a igualdade;
94 Do chôcho bestunto
95 Cabeça farei;
96 Mimosas cantigas
97 Então te darei.—
Humberto de Araújo
Graduando em Letras Inglês
TEORIA DA LITERATURA I
Prof. Atílio Bergamini