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Humberto de Araújo, Mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará

Junho de 2021

UM DIZER , MAIS QUE UM NÃO - DIZER

1
NO ÁLBUM
DO MEU AMIGO J.A. DA SILVA SOBRAL.

Amigo. . .
Pedes um canto na lyra,
A quem apenas lhe tira
Sons de viola chuleira?
Insistes d’essa maneira?
Não sabes que, por desgraça,
Por mais esforços que faça
Por ser vate é sempre em vão?
Não vês que mente o rifão:
Quem porfia mata caça?
(F. X. DE NOVAES.)

1 Se tu queres, meu amigo,


2 No teu alb’’um pensamento
3 Ornado de phrases finas,
4 Dictadas pelo talento;

5 Não contes comigo,


6 Que sou pobretão:
7 Em cousas mimosas
8 Sou mesmo um ratão.

9 Não fallo das flores,


10 Dos prados não fallo,
11 Nem tracto dos sinos
12 Porque teem badalo;

13 Da rola que geme,


14 A’ borda do ninho,
15 Do tênue regato
16 Que corre mansinho;

17 Nem das travessuras


18 Do terno Cupido,
19 Que faz do beato
20 Janota garrido.
Humberto de Araújo, Mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará
Junho de 2021

21 Mas se queres que alinhave


22 Palavras desconchavadas,
23 Desculpa, com paciência,
24 Sandices que vão rithmadas.

25 Desprenda-se a veia,
26 Comece a festança,
27 Mordendo, cortando—
28 Com toda chibança.

29 Ateie-se a Musa,
30 Na magra cachola,
31 Com phrases flammantes
32 De chôcho pachola.

33 E qual estudante,
34 Campando de sábio,
35 Que empunha a luneta,
36 Que é seu astrolabio:

37 Eu pego na penna,
38 Escrevo o que sinto;
40 —Seguindo a doutrina
41 Do grande Filinto.

42 Que estou a dizer?!


43 Bradar contra o vicio!
44 Cortar nos costumes!
45 Luiz, outro officio…

46 Não luctes com isso,


47 Trabalhas em vão;
48 E podes tocar
49 N’algum paspalhão.

50 Vai lá para a tenda


51 Pegar na sovela,
52 Coser teus sapatos
53 Com linha amarella.
Humberto de Araújo, Mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará
Junho de 2021
54 Mordendo na sola,
55 Empunha o martello,
56 Não queiras, com brancos,
57 Metter-te a tarelo.

58 Que o branco é mordaz,


59 Tem sangue azulado;
60 Se boles com elle
61 Estás embirado.

62 Não borres um livro,


63 Tão bello e tão fino;
64 Não sejas pateta,
65 Sandeu e mofino.

66 Sciencias e lettras
67 Não são para ti
68 Pretinho da Costa1
69 Não é gente aqui.

…………………………………2

70 Ouvindo o conselho
71 Da minha razão.
72 Callei o impulso
73 Do meu coração.

74 Se o muito que sinto


75 Não posso dizer,
76 Do pouco que sei
77 Não quero escrever.

78 Não quero que digam


79 Que fui atrevido;
80 E que na sciencia
81 Sou intromettido.

1 Seguimos aqui a forma com que se encontra este verso na 1ª e na 3ª edições e não
“Cost” como se encontra na segunda por ser evidente gralha tipográfica.
2 Cotejando as três edições disponíveis, consideramos que esta solução gráfica, usada na
primeira edição, parece a melhor para marcar uma pausa dramática no poema do que o
simples aumento do espaço entre as estrofes usado na segunda e terceira edições, que
pode ter sido devido a falta de tipos na caixa tipográfica.
Humberto de Araújo, Mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará
Junho de 2021
82 Desculpa, meu caro amigo,
83 Eu nada te posso dar;
84 Na terra que rege o branco,
85 Nos privam té de pensar!…

86 Ao peso do captiveiro
87 Perdemos razão e tino,
88 Soffrendo barbaridades,
89 Em nome do Ser Divino!!

…………………………………

90 E quando lá3 no horisonte


91 Despontar a Liberdade;
92 Rompendo as férreas algemas
93 E proclamando a igualdade;

94 Do chôcho bestunto
95 Cabeça farei;
96 Mimosas cantigas
97 Então te darei.—

Numa primeira e desavisada leitura este poema de Luiz Gama poderia


passar por um simples poema de ocasião, expectativa criada por seu título,
que remete aos álbuns de autógrafo, que se tornaram comuns no século
XIX: livros bem encadernados nos quais se recolhiam frases, pensamentos,
poemas, ilustrações de amigos e/ou pessoas famosas e importantes. Um
bom exemplo desses álbuns pode ser visto em um exemplar digitalizado
pela Biblioteca Nacional e que pode ser visto aqui.
Mas não estamos diante de um poema de ocasião, mas de uma ocasião
poética que o autor aproveita para usar a palavra de forma coerente com
sua luta abolicionista, desculpando-se por não poder oferecer versos do
tipo que se espera em álbuns desse tipo e, nas duas últimas estrofes, ex-
plicitando quando e em que situação poderia fazê-lo:

90 E quando lá no horisonte
91 Despontar a Liberdade;
92 Rompendo as férreas algemas
93 E proclamando a igualdade;

3 A segunda edição — que utilizamos aqui — omite o acento, evidente erro tipográfico
que não ocorre nas outras duas.
Humberto de Araújo, Mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará
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94 Do chôcho bestunto
95 Cabeça farei;
96 Mimosas cantigas
97 Então te darei.—

É comum que quanto mais distante de nós temporalmente seja o poema,


mais esclarecimentos filológicos acerca de palavras ou expressões se façam
necessários, o que ocorre algumas vezes neste poema de Luiz Gama. Mas
mesmo sem saber que bestunto significa “cabeça”, o sentido geral destas
duas últimas estrofes permanece muito claro.

2
Excetuando-se a epígrafe de F.X. de Novais, todo o poema é composto
em redondilhas. Das 24 estrofes, apenas 4 são em redondilhas maiores e
as restantes em redondilhas memores. Mas como a utilização desses me-
tros contribui para a estruturação do poema?
As estrofes em redondilha maior (verso de 7 sílabas) respondem pelo
caráter dialógico do poema, isto é, são utilizadas pelo poeta para tratar
diretamente com o seu amigo e marcam o início de cada uma das 4 partes
de tamanhos desiguais do poema. Observe-se ainda que o ritmo dessas
estrofes não segue um esquema fixo:

Se | tu | que | res, | meu | a | mi | go, ˘ ˘¯ ˘ ˘˘¯


No | teu | al | b’’um | pen | sa | men | to ˘ ˘¯ ˘ ˘˘¯
Or | na | do | de | phra | ses | fi | nas, ˘ ¯˘ ˘ ¯˘¯
Dic | ta | das | pe | lo | ta | len | to; ˘ ¯˘ ˘ ˘˘¯
Essa falta de ritmo fixo reforça o coloquialismo destas estrofes, em con-
traste com as estrofes em redondilha menor (5 sílabas) que as seguem, que
mantêm um andamento iâmbico anapéstico constante.

3
Na primeira parte, que funciona como um preâmbulo ou introito, o po-
eta explicita o pedido do amigo na primeira estrofe em redondilha maior
(que escandimos logo acima), mas em seguida explica que não fará um
poema como se espera por não falar de flores, prados, sinos, pássaros
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canoros, regatos ou do Cupido, isto é, temas e figuras caras ao Romantismo
vigente no seu tempo. A crítica é ainda mais profunda, pois ao afirmar que
não o faz por ser “pobretão”, coloca a estética Romântica como algo da
elite, contra a qual o personagem satírico, Getulino (pseudônimo derivado
de Getúlia, território do Norte da África), assim como Luiz Gama se insur-
gem, e se apresenta como excêntrico, cômico (“ratão”, v. 8).
Assim, é nesse dizer o que não vai dizer, que o eu-lírico tece seu discurso
crítico à sociedade de seu tempo, ao mesmo tempo que assume um lugar
de fala, como um negro que tem orgulho de sua origem, como se vê no
seu poema “Quem sou eu”:

Ham de chamar-me—tarello,
Bode, negro, Mongibello;
Porém eu que não me-abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.

E o faz também enquanto se apropria das formas e palavras do outro e


as subverte incorporando-as ao seu discurso satírico, como o termo
“bode”, utilizado de forma pejorativa para referir-se a negros, do poema
acima e que também aparece no espaço do não dito, do poema sobre o
qual nos debruçamos:

9 Não fallo das flores,


10 Dos prados não fallo,
11 Nem tracto dos sinos
12 Porque teem badalo4;

Após esse primeiro momento em que o poeta, ao dizer o que não vai
dizer, diz muito, a segunda parte principia com o poeta dizendo, na estrofe
em redondilha maior que abre a seção, o que pode oferecer, isto é, “pala-
vras desconchavadas” e “sandices ritmadas” (versos 21 a 24). E inicia então
com uma paródica invocação às musas, arremedo da literatura clássica
(versos 25 a 41). A invocação termina com o poeta dizendo:

37 Eu pego na penna,
38 Escrevo o que sinto;
40 —Seguindo a doutrina
41 Do grande Filinto.

4 Grifo nosso.
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Mas após invocar Filinto Elísio – poeta arcádico português que escreveu
Da Arte Poética Portuguesa, em que codifica normas e conceitos acerca da
poesia e da língua portuguesa –, o poeta volta ao jogo de dizer no não dito
(ou no interdito?):

42 Que estou a dizer?!


43 Bradar contra o vicio!
44 Cortar nos costumes!
45 Luiz, outro officio…

Perceba-se que neste poema não é o personagem satírico Getulino quem


nos fala, mas o próprio Luiz Gama que aí aparece, não apenas com seu
nome, mas também com sua experiência de vida, como o ofício de sapa-
teiro aprendido nos tempos de escravidão, mas principalmente no silêncio
que os “brancos” queriam lhe impor:

54 Mordendo na sola,
55 Empunha o martello,
56 Não queiras, com brancos,
57 Metter-te a tarelo.

[…]

66 Sciencias e lettras
67 Não são para ti
68 Pretinho da Costa
69 Não é gente aqui.

Mas meter-se a tagarela (“tarelo”) é justamente o que esse filho de uma


africana livre vinda da Costa de Mina, apesar do discurso da elite branca
de que ciências e letras não seriam para si, discurso que o poeta deixa
entender que acaba sendo assumido mesmo pelos negros:

70 Ouvindo o conselho
71 Da minha razão.
72 Callei o impulso
73 Do meu coração.

74 Se o muito que sinto


75 Não posso dizer,
76 Do pouco que sei
77 Não quero escrever.
Humberto de Araújo, Mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará
Junho de 2021

78 Não quero que digam


79 Que fui atrevido;
80 E que na sciencia
81 Sou intromettido.

É contra esse cerceamento da palavra que se insurge Luiz Gama, to-


mando-a para si, subvertendo o discurso arraigado na sociedade e escan-
carando, mesmo quando diz não dizer, a sofrimento físico e mental de que
sofrem os negros no Brasil:

82 Desculpa, meu caro amigo,


83 Eu nada te posso dar;
84 Na terra que rege o branco,
85 Nos privam té de pensar!…

86 Ao peso do captiveiro
87 Perdemos razão e tino,
88 Soffrendo barbaridades,
89 Em nome do Ser Divino!!

É nesse jogo de dizer não dizendo que o poeta subverte o silêncio que a
elite branca tenta impor aos negros através de sua poesia, assim como no
seu trabalho de jornalista e advogado, nos quais usou a palavra escrita,
aprendida apenas aos 17 anos de idade, para buscar o seu lugar de fala e
lutar pela liberdade dos negros. Liberdade essa, condição sine qua non para
que ele possa escrever as “mimosas cantigas” a ele pedidas:

90 E quando lá no horisonte
91 Despontar a Liberdade;
92 Rompendo as férreas algemas
93 E proclamando a igualdade;

94 Do chôcho bestunto
95 Cabeça farei;
96 Mimosas cantigas
97 Então te darei.—

Humberto de Araújo
Graduando em Letras Inglês
TEORIA DA LITERATURA I
Prof. Atílio Bergamini

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