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M I S T I C I S M O l C I Ê N C I A l A R T E l C U L T U R A

PRIMAVERA 2014
Nº 290 – R$ 10,00

ISSN 2318-7107
Para o rosacruz, o Natal simboliza a vinda
da Consciência Crística; é o arquétipo da
verdadeira experiência. Sua belíssima história
brota da esperança eterna. A história do Natal
cria fé e desperta amor na consciência do Ser
Humano, que colhe da fonte interior da alma a
força do amor do próprio Deus.
Do mesmo modo que Maria guardava em
seu coração as palavras e as experiências do
Menino Jesus, assim também devemos guardar
em pureza e sinceridade os nossos momentos
mais sublimes de exaltação, amor e iluminação.
O nascimento do Cristo no coração
ocorre no silêncio da eternidade da alma – a
profunda quietude em que todas as faculdades
da natureza humana acham-se equilibradas e
em harmonia com a divindade. Esse momento
é o objetivo de todo o empenho místico.
A consciência do silêncio é produzida pela
quietude da mente que está receptiva a vinda
do Espírito Santo, o Espírito de Deus, que irá
penetrar no coração do Homem e, no ventre
da alma, produzir a Consciência Crística.

– Adaptado do texto de A. A. Taliaferro, FRC

A Grande Loja da Jurisdição


de Língua Portuguesa, através do seu
Grande Mestre, Diretores e Colaboradores,
almeja a todos um abençoado Natal e
um 2015 de muitas realizações.
Inaugurações
dos novos espaços da
GLP que ocorreram
durante a XXIII Convenção
Nacional Rosacruz

Frater Claudio Mazzucco,


Grande Mestre da Itália,
Imperator e Frater
Hélio na inauguração do
edifício da URCI-GLP

Inauguração do Estúdio
Édith Piaf e entrevista
com o Imperator para o
programa Presença
e Harmonia

Inauguração da sede
da OGG – Ordem
Guias do Graal, sala de
recepção, escritório e
Grande Templo
n MENSAGEM

Prezados Fratres e Sorores,


© AMORC

Saudações nas três pontas do nosso Sagrado Triângulo!

A XXIII Convenção Nacional Rosacruz foi um sucesso.


Marcada pelo alto nível das palestras, fóruns interativos e
Convocações místicas, a nota tônica foi a harmonia. Um ver-
dadeiro congraçamento de Fratres e Sorores de mentes afins.
Agradeçamos ao Cósmico pela oportunidade de vivenciar a
fraternidade.
Por outro lado, é com sentimento de pesar e saudade que
informamos a transição do Grande Mestre Emérito, Frater Charles Vega Parucker. O
Frater Charles era um amigo por quem sempre nutri admiração e respeito. Sua Grande
Iniciação ocorreu em 06 de outubro de 2014.
Esta edição de “O Rosacruz” traz artigos muito bons. O pensamento do mês de nosso
Imperator Frater Christian Bernard faz um paralelo entre o avanço da tecnologia e o ca-
ráter do ser humano. Alguns estudiosos, como é o caso do francês Edgar Morin, afirmam
que progredimos sobremaneira com a revolução tecnológica, mas o mesmo progresso
não se deu no campo ético, humano e educacional. Uma dicotomia que, como habitantes
da Terra na contemporaneidade, precisamos amenizar através de uma sociedade mais
humana, espiritualizada e responsável pelo planeta. O artigo se intitula Tudo melhorou! e
sugere como podemos fazer a nossa parte neste contexto.
No artigo Buscando a nós mesmos, o Frater Raymund Andrea insta o estudante rosa-
cruz a encontrar seu caminho pela busca interior, consciente de que se trata de uma em-
preitada fascinante e não por isso fácil. É possível encontrar uma recompensa para cada
etapa do caminho percorrido.
É possível a paz na Terra? pergunta o Frater Serge Toussaint, que discorre sobre as
causas que levam os seres humanos a optar pelas guerras. Aponta os interesses econômi-
cos, políticos e religiosos como principais responsáveis pelos conflitos. Frater Serge nos
mostra que só virtudes como humildade, tolerância, perdão, benevolência e amor podem
corresponder ao estado ideal de paz. Embora pareça utópico, só a evolução humana fará
a humanidade transcender seus defeitos que estão na origem dos conflitos.
Em Nossos ancestrais e nós, o Frater Bernard Baudras, conferencista da AMORC da
Jurisdição de Língua Francesa, relata a importância do conhecimento referente à descen-
dência de nossos familiares. A compreensão do passado pode evoluir e libertar a consci-
ência no presente. Frater Baudras nos traz ainda um breve histórico de como eram feitas
as cerimônias fúnebres e as honras para os nossos ancestrais.
O que é Microfisioterapia? Esta pergunta nos é respondida pela fisioterapeuta
Francine Mayuri Sano, que nos apresenta uma nova técnica de trabalho na área da cura

2 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


das agressões sofridas pelo organismo humano. Numa visão holística do Ser, é posto
que através da identificação da origem dos traumas é possível o seu desbloqueio. Assim,
o próprio corpo se livra do que deve ser descartado e busca o equilíbrio restaurando e
mantendo a saúde.
O simbolismo das flores, de Ralph M. Lewis, destaca as particularidades das flores em
seus formatos, cores e fragrâncias. O perfume de uma flor tem seu próprio simbolismo.
As flores tornaram-se símbolos das verdades morais de uma consciência humana em
contínua evolução.
Gibran Khalil Gibran é um dos escritores mais celebrados do mundo, principalmente
pelo seu livro “O Profeta”, uma das obras mais republicadas depois da Bíblia. Mas
quem foi este libanês que nos legou palavras de grande sabedoria? Gibran, essa voz do
Líbano…, de Attar Al-Haffar, descreve a história deste escritor.
Em seu artigo O Animal – Uma consciência silenciosa, o Frater Jean-Guy Riant faz
um relato sobre a consciência animal, sobre a forma de pensar destes seres e o modo
como os indivíduos de cada espécie se relacionam entre si, com as demais espécies e com
o ser humano. Há uma ligação forte entre os domesticados e seus donos. O instinto de
sobrevivência e a cooperação mútua são características de proteção.
O artigo Viagem ao Oriente – A história de Hermann Hesse, do Frater David Kariuk,
remete ao livro “Viagem ao Oriente” de Hermann Hesse, que faz uma reflexão sobre a
busca pela maturidade moral e espiritual. O estudante rosacruz identificará assuntos co-
nhecidos que são similares à simbólica jornada interior encontrada no Fama Fraternitatis.

Desejo a todos os nossos Fratres e Sorores um Natal com a presença do Espírito


Crístico entre os seus e um Ano Novo repleto de conquistas e realizações.

Feliz Natal e Próspero Ano Novo!

Com votos de Paz Profunda, sou

Sincera e Fraternalmente!
AMORC-GLP

Hélio de Moraes e Marques


Grande Mestre

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


3
n SUMÁRIO

06 Tudo melhorou!
Por CHRISTIAN BERNARD, FRC – Imperator da AMORC

10 Buscando a nós mesmos


06
Por RAYMUND ANDREA, FRC

12 É possível a paz na Terra?


Por SERGE TOUSSAINT, FRC

15 Reunião Anual da Suprema Grande Loja

12
OUTUBRO 2014

16 Nossos ancestrais e nós


Por BERNARD BAUDRAS, FRC

24 O que é Microfisioterapia?
Por FRANCINE MAYURI SANO

26 O simbolismo das flores


Por RALPH M. LEWIS, FRC

26
34 Gibran, essa voz do Líbano…
Por ATTAR AL-HAFFAR

36 Charles Vega Parucker – Missão Cósmica Cumprida!


Por JAMIL SALLOUM JR., FRC

41 Liberdade!
Por VICTOR HUGO

42 O Animal – Uma consciência silenciosa


Por JEAN-GUY RIANT, FRC

50 Viagem ao Oriente – A história de Hermann Hesse


Por DAVID KARIUKI, FRC
42
4 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014
Propósito da O Rosacruz é uma publicação trimestral
da Juris­dição de Língua Portu­guesa da
Antiga e Mística Ordem Rosae Crucis. As
Ordem Rosacruz demais juris­dições da Ordem Rosa­cruz
editam uma revista do mes­mo gênero:
A Ordem Rosacruz, AMORC é El Rosacruz, em espanhol; Rosicru­cian
uma organização interna­cio­nal de Digest e Rosicrucian Beacon, em inglês;
caráter templário, místico, cul­tural
Rose+Croix, em francês; Crux Rosae, em
alemão; De Rooz, em holandês; Ricerca
e fraternal, de homens e mulheres
Rosacroce, em italiano; Barajuji, em
dedicados ao estudo e aplicação japonês e Rosenkorset, em línguas nórdicas.
prática das leis naturais que regem Seus textos não representam a palavra oficial da AMORC,
o universo e a vida. salvo quando indicado neste sentido.
O conteúdo dos artigos representa a palavra e o pensa­mento dos pró-
Seu objetivo é promover a evolu- prios autores e são de sua inteira respon­sabilidade os aspectos legais e
ção da huma­nidade através do de- jurídicos que possam estar interrelacionados com sua publicação.
senvolvimento das potencia­lidades Esta publicação foi compilada, redigida, composta e impressa na Ordem
de cada indivíduo e propiciar ao Rosacruz, AMORC – Grande Loja da Jurisdição de Língua Portuguesa.
seu estudante uma vida harmo- Todos os direitos de publicação e repro­dução são reservados à
Antiga e Mística Ordem Rosae Crucis, AMORC – Grande Loja da
niosa que lhe permita alcançar
Jurisdição de Língua Portu­guesa. Proibida a reprodução parcial ou
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Neste mister, a Ordem Rosacruz n Coordenação e Supervisão: Hélio de Moraes e Marques, FRC
oferece um sistema eficaz e com- n Editor: Mercedes Palma Parucker, SRC – MTb-580
provado de instrução e orientação
n Colaboração: Estudantes Rosacruzes e Amigos da AMORC
para um profundo auto­conheci­
n Assinaturas: Ligue para (0xx41) 3351-3060
mento e compreensão dos proces-
1 ano: R$ 40,00 – 2 anos: R$ 70,00 – Exemplar: R$ 10,00
sos que conduzem à Iluminação.
Essa antiga e especial sabedoria
foi cuidadosamente preservada
desde o seu desenvolvimento pelas
Escolas de Mistérios Esoté­ricos e
como colaborar
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A aplicação destes ensinamentos concor­dância com a pauta da revista.
está ao alcance de toda pessoa n Enviar apenas cópias digitadas, por e-mail, CD ou DVD. Originais
sincera, disposta a aprender, de não serão devolvidos.
mente aberta e motivação positiva n No caso de fotografias ou ilustrações, o autor do artigo deverá
e construtiva. providenciar a autorização dos autores, necessária para publicação.
n Os temas dos artigos devem estar relacionados com os estudos e

práticas rosacruzes, misti­cismo, arte, ciências e cultura geral.

nossa capa
O Cristograma, também chamado de Lábaro (labarum), é um
monograma de Jesus Cristo. Formado em diversas maneiras a partir
Rua Nicarágua 2620 – Bacacheri das letras gregas Chi (X) e Ró (P), iniciais da palavra Cristo em grego,
82515-260 Curitiba, PR – Brasil
Tel (41) 3351-3000 / Fax (41) 3351-3065
o Cristograma é também um símbolo esotérico para a Consciência
www.amorc.org.br Crística no interior do homem.

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5
n COMPORTAMENTO

Tudo
melhorou!
Por CHRISTIAN BERNARD, FRC
Imperator da AMORC

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T
udo melhorou! Tecnicamente. Os avan-
ços da ciência e da medicina triunfaram
sobre velhas doenças e adiaram a idade
da morte. A eletricidade ilumina o mun-
do. O avião, o trem e o automóvel reduziram as
distâncias. A agricultura produz mais. A infor-
mática acelerou as comu­nicações. Tudo vai, por-
tanto, mais rápido, tem melhor desempenho e é
mais confortável. Podemos então dizer que tudo
melhorou nas sociedades modernas? Não, por-
que o homem não progride ou, então, progride
pouco. Depois de sua misteriosa aparição, ele não
cessou de se enriquecer de descobertas materiais
que melhoraram, aparentemente, suas condições
de existência. Ele se abriu à cultura, educou-se,
observou, leu e escreveu. Mas, lamentavelmente,
permaneceu um bárbaro.
Quanto tempo, quantas encarnações serão ne-
cessárias para realizar uma profunda tomada de
consciência? O homem segue em marcha, apesar
dele mesmo, nesta direção, mas o caminho é ár-
duo! Para além das reflexões a que somos levados
a fazer, há uma reação instintiva que nos obriga a
olhar diretamente aquilo o que são capazes de fa-
zer, em nossa época dita moderna, homens contra
outros homens, mulheres e crianças. Os tempos
atuais são particularmente violentos e essa violên-
cia nada tem a ver com a geografia ou a cultura.
Ela está cruelmente ligada ao homem. Por certo,
falar disso nada resolve, mas esquecer o assunto
seria um erro de não-assistência à humanidade.
Naturalmente, devemos permanecer positivos,
e seria meu dever não falar senão de coisas belas.
Mas, enquanto habitante deste planeta, não posso
senão constatar, como também você sem dúvida
faz, a gravidade e o horror de certos acontecimen-
tos. Seria uma falta de compaixão querer ignorá-
-los e de um angelismo bastante inocente assim
afirmar: “Tudo melhorou!”.
Depois de uma tragédia, nossa primeira rea-
ção deve ser a assistência espiritual. Quando
tomamos ciência de ter ocorrido uma tomada de
reféns, um atentado, uma catástrofe natural etc.,
devemos, tão breve quanto possível, trabalhar

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n COMPORTAMENTO

espiri­tualmente pelas vítimas. Por


mais humilde e insignificante que
possa parecer este trabalho face ao
drama em curso, ele tem um poder
extraordinário. Em um instante,
todos os nossos pensamentos se
tornam forças que, unidas a todas
as outras, formam uma espécie de
“curativo universal” e aliviam o so-
frimento. Elas são a mão que segura
a de um moribundo, os braços da
mãe que acalenta a criança que cho-
ra e mil outras sensações de doçura
e serenidade. Cumprido este dever,
conforme o local onde nos encon-
tramos, segundo nossas convicções
filosóficas, espirituais ou religiosas,
deve-se seguir nas próximas horas,
dias e meses, uma ação que eu qua-
lificaria como mais exterior.
De acordo com nossos meios,
nossas aptidões e o lugar onde nos
encontramos, é preciso que nos
esforcemos para fazer um gesto
concreto de apoio às vítimas, ou
com relação às causas do drama.
Por exemplo, se você está próximo
ao lugar de uma catástrofe ou de
um atentado, ou se tem meios de
chegar até lá, leve materialmente
ou fisicamente seu socorro. Se você
se sente mais à vontade para escre-
ver, redija uma carta, um artigo
ou um livro, nos quais você possa
exprimir seu modo de pensar. Você
também pode, simplesmente, ten-
tar mudar as coisas positivamente
discutindo com outras pessoas.
Você pode ainda, seguramente,
fazer uma doação ou, por que não,
participar de uma manifestação.
Para resumir, de uma maneira ou
de outra, não permaneça passivo!
Não aceite o inaceitável!
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Desde 1971, ano em que come-
cei a trabalhar para a AMORC,


nas diferentes funções que exerci,
fui levado a ler milhares de car-
tas e a reencontrar milhares de
homens e mulheres, membros
Sejamos homens
da fraternidade rosacruz ou
não, e dividi com eles dúvi-
e mulheres de boa
das e sofrimentos, mas tam- vontade, para que
bém momentos de alegria e
de esperança. possamos dizer, enfim,
Não sei se tudo isso
me tornou sábio, porque um dia, em toda a
imagino que se eu fosse
sábio minhas reações
verdade, sem cinismo
seriam diferentes face os e sem ironia: ‘Tudo
acontecimentos da vida. Eu
sem dúvida saberia relativizar as melhorou!’


provas e olhar o mundo com mais
desprendimento. Este, infelizmente,
não é o caso, pois sempre fui muito
sensibilizado pelo infortúnio dos outros e
pela visão frequentemente apocalíptica das
tragédias das quais são vítimas muitos dos
meus irmãos e irmãs humanos. Os serviços de nossos Estados e de nossas
Um sociólogo afirmou que a época que administrações estão à disposição e a serviço
atravessamos é tão importante, em matéria do povo? Como despertar as consciências e
de mudança de ética, de política, de men- fazer nascer o amor e a coragem no coração
talidade, de cultura etc., quanto aquela que dos homens?
a Europa conheceu no fim da Antiguidade Você tem certamente suas próprias res-
e através do Renascimento. A diferença é postas a essas legítimas indagações que
que agora nosso planeta ficou “pequenino” formulamos enquanto cidadãos do mundo.
e que todos os países e todos os seres hu- Eu nada tenho de um contestador. Sou sim-
manos são afetados. Se as boas invenções se plesmente um militante do direito à vida, ao
propagam rapidamente, o mesmo acontece respeito, à liberdade, à verdadeira justiça e
com as más, e estas não afetam mais um à paz. Então, quem quer que você seja, onde
país ou um povo por vez, mas o conjunto quer que esteja, trabalhe pelo bem de acordo
dos cidadãos do mundo. com suas competências. Trabalhe material-
Ainda há, sobre a Terra, um refúgio mente, fisicamente, moralmente e espiritual­
de paz? Por certo, alguns lugares são mais mente onde o “acaso” lhe colocar.
aprazíveis de habitar do que outros, mas por Sejamos homens e mulheres de boa
quanto tempo ainda? Existe um governo no vontade, para que possamos dizer, enfim, um
qual não impere nenhuma forma de corrup- dia, em toda a verdade, sem cinismo e sem
ção? A justiça dos homens é, de fato, justa? ironia: “Tudo melhorou!”. 4

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9
n ROSACRUCIANISMO

Por RAYMUND ANDREA, FRC*

Q
uando Heráclito disse, “Busquei nho que isso aconteça porque eles escreveram
por mim mesmo”, ele produziu há tanto tempo que, pela própria antiguidade,
uma das mais férteis máximas seus ensinamentos parecem ter pouca aplica-
e, no que concerne ao místico, ção para os dias atuais, já que as pessoas estão
uma diretiva para todos os tempos, pois hipnotizadas pelas descobertas e experiências
estudante algum da Senda está totalmente da ciência em todo o campo da vida exotérica.
desperto para o significado dessa busca até Quanto a nós, contemplamos esses pri-
que chega à decisão de buscar por si mesmo. meiros pioneiros do pensamento com reve-
Não importa que ensinamentos sejam rência. E aqueles que atingiram certo estágio
colocados em suas mãos ou que professores em nossos estudos sabem que tudo vem de
ele possa ter tido, vai acabar se deparando lá. Não que maiores ensinamentos e ajuda
exatamente com essa mesma injunção do invisível sejam negados a eles, mas um aspi-
filósofo grego de 500 a.C. rante tem que se voltar para si mesmo para
É surpreendente pensar o quanto os anti- colocar em prática a instrução que recebeu;
gos nos deixaram da verdade interna da vida e e ele acaba percebendo que isso significa
do eu, e quão pouco as gerações que se segui- procurar dentro de si mesmo o caminho do
ram parecem ter-se beneficiado disso. Supo- Mestre, pois existem estágios definidos do
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caminho em que o aspirante precisa en-
contrar sua própria senda. O verdadeiro
desenvolvimento interior não consiste
em simplesmente ir empilhando conhe-
cimento e mais conhecimento de várias
fontes de instrução. Vem de uma compre-
ensão e de uma aplicação mais profunda
e sincera daquilo que é disponibilizado
para a vida e para ação no mundo. Ele Contudo, há uma recompensa para
precisa deliberadamente se submeter cada espiral de caminho percorrido com
a testes na vida e nas circunstâncias e propósito e compaixão inabaláveis. Para
aprender lições que não podem ser apren- cada aspirante, cada espiral tem uma his-
didas de outra forma. tória e carma individual diferentes e, se
O mesmo princípio se aplica em qual- aceitado no silêncio e na alma da pessoa
quer arte ou ciência. Chega o momento em que ora, traz uma percepção cada vez
que o estudante tem que dar as costas para mais forte de que estamos chegando cada
os livros-textos de fatos acumulados e pro- vez mais perto do mundo do Mestre.
var seu valor em sua própria vida através Buscar a nós mesmos, em seu sentido
da meditação e da experimentação. mais verdadeiro, significa entrar cada
Heráclito enuncia a mesma verdade de vez mais na vida de abnegação e de uma
sua própria maneira quando diz: “Viajan- liberação das amarras que nos detêm; e
do por todas as estradas, não vamos conse- alcançar isso será de fato maravilhoso, se
guir descobrir as fronteiras da alma… ela pudermos nos entregar ao fogo no altar
tem um logos tão profundo”. As ‘fronteiras secreto de nosso coração. 4
da alma’ não estão na diversidade de ins-
* Reimpresso da edição de novembro de 1963 do Boletim
trução, mas dentro de nós; e o propósito do Capítulo Francis Bacon – Publicado no livro “A Flor da
da instrução é nos esclarecer e fortalecer Alma”, editado pela GLP.
suficientemente para pesquisarmos inter-
namente as fronteiras do eu interior, nos
esforçarmos para conhecer nossa missão
individual na vida e nos comprometermos
com um serviço dedicado.
Sei que, para alguns, isso pode pare-
cer simplesmente um ideal esperançoso
dentro do quadro mundial com que nos
deparamos atualmente. Mas não podemos
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ignorá-lo se nossa intenção é ir para fren-


te e para o alto. Sei também que manter e
alimentar esse ideal, com tanta oposição
que nos quer desviar dele, nos leva a jul-
gamento de muitas formas e, muitas ve-
zes, torna o caminho mais duro. Mas todo
avanço tem seu preço, e este é um avanço
especialmente forte e pessoal.

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n REFLEXÃO

É possível a
paz na Terra?
Por SERGE TOUSSAINT, FRC – Grande Mestre da Jurisdição de Língua Francesa
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A Bandeira da Paz

12 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


Q
uando consideramos a história
da humanidade, desde suas ori-
gens até os nossos dias, constata-
mos que ela está cheia de confli-

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tos e de guerras. Via de regra esses conflitos
e essas guerras tiveram e ainda têm origem
em interesses econômicos, políticos ou reli-
giosos: apropriar-se dos bens de uma nação;
impor uma outra sua maneira de governar;
converter ao seu Deus uma outra ainda…
Nota-se também que, se as guerras são feitas
geralmente pelos militares ou por pessoas do
povo, são mais frequentemente decididas e
estimuladas por aqueles que justamente diri-
gem o mundo econômico, político ou religio-
so, ficando entendido que muito raramente
eles são vistos no meio dos combates e menos
ainda no front. Mas quer se trate daqueles
que decidem as guerras ou daqueles que as
fazem, todos são seres humanos. São eles en-
tão que são responsáveis pelos horrores que
elas acarretam e não a fatalidade e menos ain-
da o próprio Deus. No entanto, muitas delas
foram realizadas e ainda o são em Seu nome,
o que mostra a que ponto o mero fato de se
crer Nele absolutamente não é um critério de
inteligência e de sabedoria. Todos os fanatis-

“ Admitindo-se
mos e integrismos religiosos são infelizmente
provas disto. Isto posto, a História mostra
também que numerosos conflitos foram e
ainda são causados por ideologias políticas.
que a guerra resulta
Como são os seres humanos que decidem
as guerras e as fazem, pode-se perguntar se o
fundamentalmente
próprio ser humano é um ser agressivo, con-
flituoso e guerreiro. Infelizmente, acho que é
da imperfeição dos
este realmente o caso, pelo menos enquanto
ele age sob a impulsão dos aspectos mais ne-
seres humanos,
gativos do seu ego, os quais correspondem às deduz-se que a
necessidades de possuir, dominar, convencer,
subjugar etc. É verdade que existem fatores paz só pode ser
“exteriores” que favorecem os conflitos, sendo
a pobreza provavelmente o mais importante. o fruto do seu


Dito isto, muitas nações pobres não são no
entanto belicosas e, ao contrário, aspiram a aperfeiçoamento.

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


13
n REFLEXÃO

viver em paz. Inversamente, a História está


cheia de exemplos de nações ricas e podero-
sas que não cessaram de querer estender sua
dominação e sua hegemonia. Assim, pois, a Contribuição
causa profunda das guerras que sempre vêm
assolando o mundo está no próprio ser huma-
para a Paz
no, mais precisamente em seus defeitos e em Por RALPH M. LEWIS, FRC
suas fraquezas, as quais decorrem da sua ig- ex-Imperator da AMORC
norância do momento e da sua falta de evolu-
ção espiritual. Por extensão, elas resultam do
fato de que ele tem o livre-arbítrio e o poder Contribuo para a Paz quando
me esforço para manifestar
de empregá-lo de maneira negativa e destruti- o melhor de mim em meus
va. É justamente isto que o distingue dos ani- relacionamentos com os outros.
mais, os quais geralmente só matam por ra-
Contribuo para a Paz quando
zões de sobrevivência e em nenhum caso sob
uso minha inteligência e minhas
o efeito do ódio. De fato a espécie humana é a aptidões a serviço do Bem.
única que se autodestrói com tanta fúria.
Admitindo-se que a guerra resulta fun- Contribuo para a Paz quando sinto
compaixão pelos que sofrem.
damentalmente da imperfeição dos seres
humanos, deduz-se que a paz só pode ser o Contribuo para a Paz quando tenho
fruto do seu aperfeiçoamento. Quer dizer que a mesma consideração por todos os
ela corresponde a uma condição ideal que meus irmãos e irmãs, independente
de raça, cultura ou religião.
eles devem criar por si mesmos sob o efeito
de sua própria vontade e de seus próprios Contribuo para a Paz quando fico
esforços. Ela só será então possível se eles feliz com a felicidade dos outros
trabalharem em si mesmos para transcender e rezo pelo seu bem-estar.
os defeitos que se encontram na origem da Contribuo para a Paz quando
maior parte dos conflitos, como o orgulho, a ouço com tolerância as opiniões
intolerância, o ciúme, o rancor, a agressivi- que diferem das minhas ou
dade e, naturalmente, o ódio. Vista sob este que são contrárias a elas.
ângulo, a paz só será possível quando todos Contribuo para a Paz quando
os seres humanos, tanto entre os governados recorro ao diálogo em vez da força
quanto entre os governantes, tiverem desen- para dissipar qualquer conflito.
volvido uma grande ética pessoal e manifes- Contribuo para a Paz quando
tarem no seu comportamento virtudes como respeito a Natureza e a preservo
a humildade, a tolerância, o desprendimento, para as futuras gerações.
o perdão, a benevolência e, é claro, o amor. Contribuo para a Paz quando
Isto implica que eles estejam, senão perfeitos, não procuro impor aos outros
ao menos próximos da perfeição tal como o meu conceito de Deus.
ela pode ser concebida no plano humano.
Contribuo para a Paz quando
Esta perspectiva pode naturalmente parecer faço da Paz o alicerce dos meus
utópica, mas ela corresponde ao estado ideal ideais e da minha filosofia.
para o qual a humanidade deve tender se
queremos que a paz um dia reine na Terra. 4

14 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


n AMORC NO MUNDO

Reunião anual da Suprema Grande Loja


Como acontece todos os anos, os dirigentes da AMORC se reuniram em Lachute, Québec, no
Canadá, de 06 a 10 de outubro de 2014. Nessa reunião são tomadas importantes decisões sobre o
destino da AMORC, bem como são feitos os planejamentos, sempre sob a orientação do Imperator,
Frater Christian Bernard. A maioria dos dignitários esteve presente.
© AMORC

Na foto podemos observar, da esquerda para a direita:

Frater Ilkka Laaksonen – Administrador geral para a Finlândia


Frater Hélio de Moraes e Marques – Grande Mestre para a Língua Portuguesa
Frater Iakovos Giannakopoulos – Administrador geral para a Grécia
Frater Atsushi Honjo – Grande Mestre para a Língua Japonesa
Frater Sven Johansson – Grande Mestre de Língua Inglesa para Europa e África
Soror Marie Metzler – Administradora geral para a Polônia
Frater Kenneth Idiodi – Grande Administrador para a Nigéria
Frater Klaas-Jan Bakker – Grande Mestre para a Língua Holandesa
Frater Maximilian Neff – Grande Mestre para a Língua Alemã e Diretor-Tesoureiro da Suprema Grande Loja
Frater Christian Bernard – Imperator da AMORC
Frater Akos Ekes – Administrador geral para a Hungria
Frater Zaven Paul Panikian – Grande Mestre de Língua Inglesa para Austrália, Ásia e Nova Zelândia
Soror Julie Scott – Grande Mestre de Língua Inglesa para as Américas
Frater Claudio Mazzucco – Grande Mestre para a Língua Italiana
Frater Serge Toussaint – Grande Mestre para a Língua Francesa
Frater Hugo Casas Irigoyen – Grande Mestre de Língua Espanhola para Europa, África e Australásia
Soror Live Söderlund – Grande Mestre para as Línguas Escandinavas
Frater Frederick Henry Roland Brisson – Grande Mestre de Língua Espanhola para as Américas
Frater Michal Eben – Grande Mestre para as Línguas Tcheca e Eslovaca
Frater Vladimir Koptelov – Administrador geral para a Rússia

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


15
n HISTÓRIA

(30) Jesus Cristo de Nazaré Então brotará um


Maria: (Lucas 3) rebento do toco de
Heli: (Lucas 3)
Matã (Lucas 3)
Jessé, e das suas raízes
Levi: (Lucas 3) um renovo frutificará.
Melqui: (Lucas 3)
Janai: (Lucas 3)
Isaías 11, 1
José: (Lucas 3)
Matatias: (Lucas 3) (16) Roboão: (Mateus 1)
Amós: (Lucas 3) (15) Salomão: (Mateus 1)
Naum: (Lucas 3)
Esli: (Lucas 3) De David ao Exílio: (Mateus 1)
Nagai: (Lucas 3)
Maáte: (Lucas 3) (14) David: (casado com Betsabá, Mateus 1)
Matatias: (Lucas 3) (13) Jessé: (Mateus 1)
Simei: (Lucas 3) (12) Obede: (Mateus 1)
José: (Lucas 3) (11) Boaz: (casado com Rute, Mateus 1)
Jodá: (Lucas 3) Salmom: (casada com Raabe, Mateus 1)
Joanã: (Lucas 3) Naassom: (Mateus 1)
Resá: (Lucas 3) Aminadabe: (Mateus 1)
Zorobabel: (Lucas 3) Arão: (Mateus 1)
Salatiel: (Lucas 3) Esrom: (Mateus 1)
Perez: (Mateus 1)
(29) José: (Mateus 1) (10) Judá: (Mateus 1)
(28) Jacó: (Mateus 1) (9) Jacó: (Mateus 1)
Matã: (Mateus 1) (8) Isaque: (Mateus 1)
(27) Eleazar: (Mateus 1) (7) Abrão: (casado
Eliúde: (Mateus 1) com Sara, Mateus 1)
Aquim: (Mateus 1)
(26) Sadoque: (Mateus 1) De Abrão a David
Azor: (Mateus 1)
Eliaquim: (Mateus 1) Terá: (Gênesis 11)
Abner: (Mateus 1) Naor: (Gênesis 11)
(25) Abiúde: (Mateus 1) Serugue: (Gênesis 11)
(24) Zorobabel: (Mateus 1) Reú: (Gênesis 11)
Salatiel: (Mateus 1) Pelegue: (Gênesis 11)
Éber: (Gênesis 11)
Do Exílio ao Mashiach Selá: (Gênesis 11)
(Mateus e Lucas) Arpachade: (Gênesis 11)
(6) Sem: (Gênesis 11)
(23) Jeconias: (Mateus 1) (5) Noé: (Gênesis 5)
(22) Josias: (Mateus 1) Lameque: (Gênesis 5)
Amom: (Mateus 1) (4) Metusalém: (Gênesis 5)
(21) Manassés: (Mateus 1) (3) Enoque: (Gênesis 5)
(20) Ezequias: (Mateus 1) Jarede: (Gênesis 5)
Acaz: (Mateus 1) Maalalel: (Gênesis 5)
Jotão: (Mateus 1) Cainã: (Gênesis 5)
(19) Uzias: (Mateus 1) Enos: (Gênesis 5)
Jorão: (Mateus 1) (2) Sete: (Gênesis 5)
(18) Josafá: (Mateus 1) (1) Adão: (casado com Eva, Gênesis 5)
(17) Asa: (Mateus 1)
Abias: (Mateus 1) De Adão a Abrão

Árvore Genealógica de Jesus

Por BERNARD BAUDRAS, FRC*

16 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


“É um passatempo entre os idosos montar genealogias e
o quadro das faltas e aventuras dos ancestrais”
– Jean Rogissart, Hurtebise aux Griottes, 1954

U
m ancestral é definido como uma exemplos são muitos e variados e seu impac-
pessoa da qual se descende, por seu to depende das crenças e dos preconceitos do
pai ou sua mãe, e a qual é anterior meio. Há coisas que outrora não se faziam e
aos pais ou aos avós. Denomina que era preciso esconder vergonhosamente,
também todos aqueles que nos precederam, mesmo no seio da própria família.
qualquer que seja sua etnia, assim como ain- O passado não pode ser modificado, é
da uma pessoa idosa da dita “terceira idade”. verdade, mas a compreensão daquilo que se
“Não é preciso viver no passado. A verda- passou pode evoluir, com o tempo, e pode
deira vida é no presente!”. Exprimida assim, libertar a consciência no presente. Em certos
essa proposição parece incontestável, pois é casos, uma justa reparação poderá completar
bem no instante presente que se age e é ape- este processo. Aqueles que não puderam levar
nas no presente que se pode criar o futuro, esse trabalho a cabo se viram muitas vezes
tirando-se partido do passado. Todavia, na obrigados a guardar em segredo aquilo que
vida as coisas nem sempre são tão simples. viveram, e não poucos levaram isso consigo
As vítimas de estresse pós-traumático, por “para o túmulo”. É dessa forma que nasce a
exemplo, são duplamente impactadas: uma maioria dos segredos de família. O problema,
primeira vez por ocasião do acidente, de qual- ao que parece, é que o passado delas não pas-
quer natureza que seja, e uma segunda vez no sa! Tudo acontece “como se” a memória do
presente, que não pode mais ser vivido nor-
malmente. Esse tipo de estresse, se hoje é cada
vez mais e melhor cuidado, não o era quase
.com

absolutamente até o final do século XX.


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Todos os tipos de situações que nos ge-


lam a espinha só de escutarmos falar delas
podem continuar a atormentar aqueles que
as viveram como atores e/ou como vítimas.
Os fatos passaram, mas as consequências
permanecem tão perturbadoras que o pre-
sente é mais ou menos gravemente afetado
por elas. O mais difícil é não poder (ou não
poder mais) falar delas e de se obrigar a calar
e finalmente guardar em segredo uma prova-
ção que se viveu e que não se consegue mais
administrar. Essas provações podem ser de
toda espécie: um filho concebido fora do ca-
samento, a privação de recursos ou de afeto,
maus tratos sofridos, filho preterido em favor
de outro, e por vezes mesmo renegado… Os Chinês cultuando os
mortos em altar

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


17
n HISTÓRIA

.com
© thinkstock
estátua ou tabuleta que o representava era
então simplesmente retirada do altar e co-
locada numa caixa prevista para essa finali-
dade. Dizia-se que o ancestral trazia saúde,
prosperidade e sorte à família, ou à cidade,
conforme sua situação. Em nossos dias, seu
culto continua a ser praticado em muitas
regiões ao sul do rio Yangtzé.
Em Madagascar, muitas vezes chama-
da de “ilha dos Ancestrais”, espera-se que
eles abençoem seus descendentes e que
intervenham favoravelmente em suas vidas
cotidianas. Após a morte, o ancestral per-
feitamente integrado ao mundo invisível se
Túmulo tradicional do
s malgaxes torna um novo ser espiritual e eterno. Ele
passa a contar então com um poder sobre-
natural. Liberto do mundo material, ele viaja
finado tentasse se expiar, de diversas maneiras no espaço e tem o dever de visitar os vivos e
e muitas vezes sem que nos demos conta dis- abençoá-los. O ancestral é necessário, pois
so, por meio dos seus descendentes, diretos ou presta serviço aos vivos:
indiretos, em nossa vida cotidiana. A questão
é digna do nosso interesse e nos convida a “Uma criança que não brinca,
olhar ao nosso redor e em outras culturas. Que ele a conduza à classe dos jovens.
Na China, por exemplo, o culto dos an- Um jovem que não se diverte,
cestrais estava tão profundamente implan- Que ele o leve até os velhos.
tado nas famílias que a Revolução Cultural Um velho que não quer falar,
não conseguiu fazer com que desaparecesse. Que ele o recolha para junto dos ancestrais.
Pode-se escrever que esse culto, da Antigui- Um ancestral que não quer abençoar,
dade aos nossos dias, era talvez a única ver- Que o faça produzir batatas!”
dadeira religião chinesa. É preciso distinguir
o culto feito nos campos, cuja organização Há menos de um século, etnólogos pu-
era outrora mais matriarcal, daquele das ci- deram filmar as cerimônias malgaxes com
dades, patriarcais e organizados ao redor do seus cantos e danças bastante complexos, os
senhor considerado como um herói. No pri- quais acompanhavam o erguimento de me-
meiro caso, o respeito aos mortos não che- nires e a construção de túmulos destinados
gava necessariamente a constituir um culto a honrar os defuntos. É tentador estabelecer
a eles. É com o herói, protetor da cidade, que um elo com nossos menires, dolmens e ou-
esse culto se desenvolveu de verdade. tros túmulos que apenas tardiamente ser-
Eram necessários três anos para que viram como sepulturas, tendo inicialmente
um defunto valoroso atingisse o status de sido concebidos como templos.
ancestral pleno e, salvo exceção, ele conser- Na África negra, sobretudo entre os Do-
vava esse status apenas entre uma e quatro gons do Mali, as coisas são diferentes: os
gerações. Depois, tornava a ser um defunto defuntos precisam dos vivos para renascer
ordinário aguardando a reencarnação. A no outro mundo. Há portanto duas cerimô-

18 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


nias fúnebres: a primeira com o corpo, que é
enterrado, e a segunda com o esqueleto exu-
mado intencionalmente. Em razão do custo
muitas vezes elevado, haja vista que é neces-
sário convidar e dar comida a toda a aldeia
e a toda a família, esta segunda cerimônia
pode ser postergada por longos anos, sob
o risco de ver o defunto “importunar” os
vivos, pois, enquanto espera, ele permanece

.com
bloqueado num mundo intermediário…

© thinkstock
Esse período transitório faz pensar no
Purgatório das sociedades ocidentais cris-
tianizadas. Algumas famílias mandam rezar
Altar para o Dia dos
missas para seus mortos: depois de uma se- Mortos mexicano
mana, por exemplo, depois de quarenta dias,
um ano etc. Houve mesmo, até o final do
século XX, uma comunidade religiosa única no mundo que rezava pelas almas do Purga-
tório. Ela estava sediada em Notre-Dame-de-
-Montligeon, na Normandia.
Os cultos dos ancestrais era uma prática
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comum em todas as religiões, independente-


mente do deus. Abandonada em sua forma
primitiva em muitas partes, ela subsiste ainda
na China, no Vietnã, na Coreia, na Indonésia,
na Oceania, na África, em Madagascar, no
México, no País Basco… Na Europa, perdu-
rou de modo geral em ligação com o Cris-
tianismo. As religiões orientais a integraram
desde sua origem, mas o Islã não a reconhece.
Por que tais diferenças de uma grande religião
à outra? É fácil compreender que a dificuldade
de comunicação de um continente ao outro e
de uma língua à outra engendrava diferenças
de compreensão e, portanto, de expressão.
Trata-se de uma herança muito antiga,
remontando à época em que os homens
pré-históricos ainda eram pouco numero-
sos e começavam a enxamear em todas as
direções possíveis em nosso planeta? Ou
trata-se de uma experiência direta, comum
a todos os grupos humanos e renovada em
intervalos de tempo, que deixa supor que os
desaparecidos possam servir de intermedi-
Tribo Dogon e seu ritual de dança, em Mali, na África ários entre o Divino e os homens?

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


19
n HISTÓRIA

© thinkstock.com
suas comunas e paróquias e editam listas de
nascimento, batismo, casamento e mesmo
de falecimento em atenção dos pesquisado-
res, que são cada vez mais numerosos. Para
melhor se comunicar, elas organizam salões
em que se pode consultar livrarias especia-
lizadas e editores de árvores genealógicas…
Lá se encontram também heraldistas, cartó-
filos, rendeiras, filatelistas e colecionadores
de tudo aquilo que pode ajudar a revalorizar
nossos ancestrais no âmbito daquilo que foi
suas vidas. É nosso jeito moderno de nos
apropriarmos novamente de nossos ances-
trais, sem cultos e nem ritos, de modo bas-
tante prosaico e laico.
Para os Antigos, a residência dos mortos era Uma nova categoria de terapeutas, os
sobre a Terra, daí o uso de túmulos e cavernas… psicogenealogistas, se incumbiu da missão
de ajudar a encontrar, na árvore genealógica,
o ancestral que legou, sem que o saibamos, o
Os homens pré-históricos tinham uma “segredo de família” cuja memória nos inter-
compreensão da morte que nos é difícil de pela. Após haver identificado de qual falecido
apreender com nossos meios de hoje. Pode- se trata, será necessário tentar descobrir seu
mos apenas constatar, desde o Homem de segredo e revelá-lo. Somente assim, através
Neandertal, a existência de sepulturas e de da tomada de consciência em nosso presen-
práticas funerárias elaboradas. O sítio pré- te, que a reparação poderá se produzir. Por
-histórico de Regourdou, por exemplo, vizi- vezes, um rito simbólico a ser imaginado e
nho imediato das cavernas de Lascaux, reve- realizado especificamente ajudará na conse-
lou uma interessante sepultura em forma de cução desse processo.
caixa datando de 70.000 anos. O crânio está Esse verdadeiro inquérito é regido por
ausente e os dois fêmures foram substituídos regras precisas:
pelos de um urso. Seria preciso ver, nesses
ritos antigos, uma maneira de honrar um – O segredo deve ser desconhecido para
membro do clã que era tido como um herói, os descendentes em questão, senão está
ou então a tentativa de se religar (do latim inativo para eles;
religare) graças a ele ao mundo desconhecido
para onde ele teria ido? O uso de cavernas ou – A repetição, de geração em geração, de
de túmulos nos lembra que, para os Antigos, datas de aniversário de nascimento, de
a residência dos mortos era sob a Terra – no acidentes e de mortes é importante e deve
Inferno. Mais tarde, o paradigma cristão os ser pesquisada sistematicamente;
abrigou no Céu.
Há algumas dezenas de anos, a gene- – O mesmo se aplica a acontecimentos no-
alogia se tornou moda, e uma moda que táveis que se produzem numa mesma ida-
dura. Muitas associações, familiares ou não, de de uma geração para outra: nascimento
foram criadas. Elas compilam registros de do primeiro filho, doença, morte etc.

20 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


.org
.wikimedia
A pesquisa é feita em duas ou três gera-
ções que nos precedem, e às vezes em quatro.

© commons
A consulta a ascendentes, se ainda houver,
pode indicar o bom caminho. Alguns podem
conhecer fragmentos do segredo, circunstân-
cias ou índices que podem nos dar alguma
pista. As verificações cruzadas e as intuições
são importantes… Uma vez que o segredo
é captado, a tomada de consciência libera a
memória ferida ou lesada e libera toda a fa-
mília desse tipo de trabalho inacabado…
É um verdadeiro trabalho de reconhecimento.
À margem de todas essas constatações,
é legítimo formular algumas indagações.
Como compreender ou apenas situar essas
“memórias” que chegam até nós? Esse fenô-
meno parece não ter ligação com a reencar-
nação, uma vez que todos os descendentes de
um determinado ramo podem estar relacio-
nados a ele. Uma personalidade-alma reen-
.com

carnada só poderia, em princípio, relacionar-


© thinkstock

-se a um único indivíduo. Por outro lado, os


casos de reencarnação revelados mostram
que, se ela pode por vezes acontecer no seio
de uma mesma família, é mais comum que
se produza fora dela.
Tratar-se-ia de memória genética? Cer-
tamente não, uma vez que esta é essencial-
mente uma biblioteca de respostas biológicas
.org

para problemas de meio ambiente já encon-


.wikimedia

trados e resolvidos num passado mais ou


menos distante, tais como variações climá-
© commons

ticas maiores, epidemias e acontecimentos


de natureza ameaçadora para a sobrevida
de uma população nos nichos ecológicos Exemplos de
árvores gene
alógicas
que ela ocupou sucessivamente. Em minha
opinião, essas tentativas de situar a memó-
ria de nossas lembranças nos genes tinham
por objetivo a redução dos seres vivos a uma ao contrário, fora dele, tendo por consequ-
dimensão unicamente material. Mais tarde, ência a possibilidade de se acessar, por erro,
o trabalho reconhecido dos neurologistas acidentalmente uma lembrança que não nos
norte-americanos mostrou, no homem, que diz respeito. Podemos facilmente imaginar
tudo se passa como se nossas lembranças não as dificuldades de compreensão que esse tipo
fossem armazenadas no nosso corpo, e sim, de incidente pode acarretar!

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


21
n HISTÓRIA

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Noutra pers- cultura, além disso,
pectiva, alguns elas muitas vezes ne-
místicos puderam cessitam ser confor-
experienciar a tadas em sua impres-
consciência atem- são antes de serem
poral – um estado verdadeiramente
de consciência no reconfortadas pela
qual o passado, o mensagem, tamanho
presente e o futuro é o desconhecimento
se fundem num e a repulsa a esse tipo
eterno presente. O de experiência. A
mesmo se aplica mensagem, em geral
àqueles que foram curta e bem simples,
suficientemente lon- pode ser completada
ge numa experiên- ou substituída por
cia de quase-morte uma impressão sen-
(EQM ou NDE sorial particular que
– abreviação ingle- lhe dá mais credibi-
sa para near-death lidade do que a voz
experience). Eles nos ouvida “em nossa ca-
relatam ter dessa forma beça”. O perfume de uma flor
podido conhecer os futuros possíveis para de que o finado gostava é um grande clássico
si próprios e para seus próximos. e pode se renovar de tempos em tempos.
Por conseguinte, se aquilo que resta da Temos ciência também de casos mais
consciência dos nossos ancestrais se encontra complexos, como aquele contado por Marie
fora do corpo e fora do tempo, é mais fácil Metrailler em La Poudre de Sourire, obra
imaginar que suas lembranças, positivas ou escrita a conselho de Marguerite Yourcenar
negativas, podem causar impressões à cons- e prefaciado por ela. Esse livro, que conta a
ciência de seus descendentes. Naturalmente, vida difícil dos montanheses nos Alpes, fala
isso depende da sensibilidade psíquica destes também das relações de boa vizinhança entre
e, necessariamente, da existência de um elo os aldeões e o “povo pequeno” das fadas, não
harmônico além das gerações, numa mesma mais altas do que os cogumelos, e os gno-
família. Em alguns casos, pessoas estranhas a mos, mas também com os mortos. Ele relata
essas famílias que se propõem a ouvir um dos notadamente a aventura de um jovem pastor
descendentes podem ajudar na compreensão que entabula uma conversa com um ancião
daquilo que ocorre e na solução do problema. sentado à orla de um bosque. Este lhe pede
Outra questão se impõe e é comum a to- que transmita uma informação muito impor-
das as grandes culturas que evocamos: existe tante a uma habitante da aldeia. De regresso
mesmo um modo de comunicação, de qual- à sua casa, o jovem pastor comenta o assunto
quer tipo que seja, entre nossos ancestrais e com sua mãe e eles decidem ir ambos ao en-
nós? Alguns testemunhos permitem pensar contro daquela habitante, uma viúva. Forte-
que sim. Diversas pessoas dizem ter recebi- mente emocionada pela descrição das vestes
do uma mensagem tranquilizadora do pai do ancião, ela confessa com vergonha que o
amado que acabaram de perder. Em nossa havia enterrado com suas velhas roupas usa-

22 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


das ao invés de lhe vestir as melhores como – daquilo que somos no presente. Da mes-
era devido! Convencida, ela faz o que lhe ma forma, contribuímos por nossa vez para
havia dito o falecido: despendura o quadro a elaboração da personalidade de nossos
que havia sobre a chaminé e descobre assim, filhos, netos e de todas as pessoas de nosso
no verso, um documento que atestava que ela meio cuja educação recebe a contribuição
era a proprietária de sua casa. Não sabendo daquilo que nós somos: através de nossa ex-
onde o documento se encontrava, ela seria periência, de nossas qualidades humanas, de
despejada nos meses seguintes! nossos conhecimentos e de nosso exemplo.
As raras comunicações existem, pois, de É assim que nossas sociedades humanas e a
parte de certos finados, mas emanam de seu humanidade progridem e que as consciências
mundo, e não do nosso, e não devem ser bus- individuais se elevam no respeito esclarecido
cadas. Todavia, muitos humanos gostariam aos nossos antepassados. É preciso portanto
de obter mensagens e mesmo provocá-las. ter os olhos abertos, pois nos compete fazer
Essas tentativas são vivamente desaconselha- distinção entre as qualidades e os defeitos
das, pois muitas vezes estão fadadas ao fra- daqueles que nos fizeram crescer, como tam-
casso e são, portanto, desencorajadoras, ain- bém cabe a nós escolher entre os elementos
da mais porque algumas podem emanar de de compreensão obsoletos e aqueles que ain-
fontes malévolas e serem mal vividas. O úni- da são adaptados àquilo que vivemos.
co meio legítimo de esperar um contato ou Tenhamos orgulho de nossos ancestrais
uma mensagem auxiliadora é elevando nossa quando eles o merecerem. Demos prova de
consciência ao nível vibratório da consciên- compreensão quando seus erros mascara-
cia de nosso finado e lhe deixar a liberdade rem aquilo que eles puderam fazer de bom e
de se manifestar ou não. A existência de um esforcemo-nos para nos tornarmos por nossa
elo real de amor entre o desaparecido e nós vez bons ancestrais, dignos do respeito e do
é imperativa, assim como o respeito à sua amor de nossos descendentes. Se a luz de
liberdade no plano em que está, aguardando nossa compreensão e nosso exemplo podem
eventualmente a sua reencarnação. esclarecê-los e ajudá-los, isto será a bênção
Para concluir, nossos ancestrais são uma que nós legaremos a eles.
realidade para a nossa consciência. Eles im- “Esquecer seus ancestrais é o mesmo que
pressionaram suficientemente os nossos sen- ser um córrego sem nascente e uma árvore
tidos e os de nossos pais quando estavam em sem raiz”, diz um provérbio da sabedoria
vida, de forma que sua lembrança permanece chinesa, inscrito sobre uma pequena estela
viva por muito tempo em nossa memória. Por colocada ao pé de uma árvore da Paz na
vezes, alguns deles podem nos proporcionar entrada de uma escola. 4
a experiência de uma mensagem enviada,
quando houve efetivamente um elo de amor Nota: A psicogenealogia é uma teoria desenvolvida nos
consigo. Podemos honrar os nossos ances- anos 70 por Anne Ancelin Schützenberger (Universidade
de Nice) segundo a qual os acontecimentos, traumatismos,
trais, seja através de ritos em sua honra ou segredos e conflitos vividos pelos ascendentes de um indivíduo
através do respeito que demonstramos para condicionariam seus problemas psicológicos, suas doenças e
seus comportamentos inexplicáveis. Para elaborar essa teoria,
com sua memória e as obras que eles nos le- Anne Ancelin Schützenberger fundou-se sobre suas próprias
garam, enquanto permanecerem pertinentes e observações e sobre conceitos oriundos da psicanálise,
da psicologia, da psicoterapia e da sistêmica. Hoje essa
úteis. Não devemos porém tentar invocá-los. abordagem originou muitas práticas psicoterapêuticas bastante
Se fazem parte de nosso passado, eles diferentes, das quais algumas são muito controversas.

são elementos de nossa construção pessoal * Bernard Baudras é conferencista da AMORC

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


23
n SAÚDE

Por FRANCINE MAYURI SANO*

A
Microfisioterapia é uma técni- Tendo conhecimento disso, Benini e
ca criada em 1983 por Patrice Grosjean desenvolveram mapas corporais
Benini e Daniel Grosjean, dois (similares aos meridianos da Medicina
osteopatas franceses que tinham Oriental) que, associados a micropalpações
conhecimentos em embriologia e filogênese e por gestos manuais específicos e suaves em
que, através desses estudos, perceberam que cada camada do corpo, vão permitir a iden-
o corpo tem a capacidade de armazenar nas tificação da causa primária de uma doença
células tudo aquilo que vivenciamos, conse- ou disfunção podendo ter origem em fase
guindo dessa forma se adaptar, se defender e intrauterina, na infância, na adolescência ou
corrigir os agentes traumáticos, emocionais, até mesmo na fase adulta.
tóxicos, microbianos ou ambientais que pos- Através dessa identificação da origem dos
sam vir a afetá-lo. traumas, é possível o desbloqueio dos mesmos
Contudo, existem agressões que são maio- também pelas palpações, que dão ao corpo a
res do que as defesas do nosso organismo. informação de que ele não precisa mais conter
Em consequência disso, os tecidos corporais aquele trauma em determinada memória celu-
são prejudicados, havendo assim a memori- lar. Assim, o próprio corpo automaticamente
zação dessa agressão nas células. A vitalidade entra em processo de liberação (reações), o
do corpo então diminui, gerando desse modo corpo se livra do que deve ser descartado.
doenças que o corpo não consegue eliminar. Consequentemente, o organismo inicia o pro-

24 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


cesso de autocura, promovendo assim a res-
tauração das funções do corpo, seu equilíbrio
e, por conseguinte, a manutenção da saúde.
Na Microfisioterapia, para o trata-
mento descrito acima, considero que
cada paciente tem seu próprio tempo
de funcionalidade. Em outras palavras,
há pessoas que melhoram com apenas
uma sessão, ao passo que outras não
apresentam melhora ao cabo de três
sessões, conseguindo eliminar o con-
flito que permanecia no corpo numa
quarta sessão. Logicamente, é preciso
considerar o tempo entre uma sessão
e outra, algo em torno de 45 dias, pois o
corpo precisa de um tempo para a elimi-
nação, as reações e as restaurações durante o
qual o organismo se utiliza da própria ener-
gia vital para se autocurar.
A Microfisioterapia é indicada para o
tratamento de fibromialgia, vitiligo, psoríase,
dermatites, alergias, distúrbios (de aprendiza- Os profissionais habilitados a atuar com
gem, de comportamento, sexual), síndrome essa técnica são somente os fisioterapeutas
do pânico, depressão, dores físicas (lombal- graduados, os quais desempenham a ativida-
gias, ciatalgias, cervicalgias), traumas físicos de em clínicas especificas, as quais podem ser
(torções, luxações, acidentes, derrames), trau- encontradas em qualquer região do Brasil.
mas emocionais (perdas, rejeições, depres- Quanto ao futuro da Microfisioterapia,
sões, assaltos, medos), rinites, sinusites, ansie- acredito no seu pleno desenvolvimento em
dades, fobias, falta de atenção e concentração, todo o mundo. O objetivo dos microfisiote-
problemas urogenitais e infertilidade. rapeutas é levar às pessoas um tratamento
Atualmente, essa técnica, existente há rápido, eficaz e que possibilite modificar toda
apenas 8 anos no Brasil – país onde há o informação em nível celular somente pelo to-
maior índice de profissionais atuantes –, está que. Faz uso, para tanto, da física quântica (o
em plena fase de crescimento. Em Curitiba, que os olhos veem o corpo sente), mudando o
por exemplo, estamos há 5 anos tendo uma modo através do qual cada pessoa vê o mun-
grande aceitação por parte dos pacientes, os do e seus traumas. A consequência disso é a
quais nos chegam sem conhecer a técnica cura de doenças que são, na realidade, produ-
mas com o principal requisito: o desejo de tos da maneira errada com que vivemos. 4
chegar à cura. Geralmente são pessoas que já
passaram sem sucesso por vários tratamen- * Francine Mayuri Sano é fisioterapeuta especialista em Terapia
tos. Lembramos que a Microfisioterapia não Manual e Postural. Aprimorou-se nos cursos Internacional
em Microfisioterapia e Leitura Biológica, Internacional em
é uma técnica que se pretende substituta das Naturopatia e Terapia Crânio-Sacral.
demais, sendo simplesmente um tratamento Site: www.drafrancinesano.blogspot.com.br
possível de ser utilizado em paralelo a outros. E-mail: drafrancinesano@hotmail.com

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


25
n LEITURA COMPLEMENTAR

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Por RALPH M. LEWIS, FRC

J
á foi dito que há um sermão nas pedras. meio para a sua germi­nação. Muito antes
Há também histórias nas flores. destas características físicas serem compre-
Os contos que as flores narram são endidas, as flores eram uma fonte de grati-
aqueles que foram primordialmente ficação para os sentidos da visão e do olfato
concebidos pelo homem. Esses contos vie- do homem. O agradável perfume das flores
ram refletir os mais profun­dos pensamentos representa uma das duas qualidades gerais
e mais transcendentes ideais do homem. do sentido do olfato. As flores, por isto,
Em botânica, uma flor pode ser apenas uma tornaram-se o ideal físico do sentido olfativo
planta, a florescência de uma planta ou o e símbolos de sua satisfação. Um estado har-

26 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


monioso ou agradável ao olfato seria aquele harmonia na perspectiva e na cor. Uma vez
que incluísse o aroma das flores e, obviamen- que a visão humana é capaz de discernir vá-
te, estivesse livre de odores desagradáveis. rios comprimentos de onda do espectro solar,
Outros cheiros são igualmente agradáveis uma existência monocromática produ­ziria
para o homem, mas não do mesmo modo uma condição de monotonia e fadiga ocular
que a fragrância das flores. Psicologicamente, para nós. Certas combinações, ou certos con-
os aromas de frutas, de vegetais e de alimen­ trastes de cor, consequentemente tornam-se
tos cozidos podem exercer uma atração exci- ideais físicos, em função da satisfação que
tante. No entanto, proporcionam uma forma proporcionam. O hábito também participa da
negativa de prazer. Estimulam o apetite e, nossa apreciação pela cor. Acostumamo-nos
quando de sua gratificação, per­dem seu atra- às combinações de cores do nosso ambiente,
tivo. O cheiro de madeira recém-serrada, ou que se tornam nossos arranjos preferidos.
mesmo o cheiro acre de um estábulo, podem Ao contrário do sentido do olfato, a visão
proporcionar sensações olfativas satisfatórias identifica imediatamente as flores com outras
para algumas pessoas. Essas satisfações, po- formas e experiências. As cores de algumas
rém, são antes de tudo resultado do desper- flores lembram ao homem a cor do mar, a
tar de lembranças agradá­veis, ou devem-se palidez da morte e o calor intenso do sol do
a que o odor se enquadra num padrão da meio-dia. A coloração e o cheiro das flores
experiência habitual. muito cedo atraíram a admiração do homem
A fragrância duma flor é abstrata. Vale e provocaram um íntimo exame das mesmas.
pelo que é em si mesma. A satisfação dela A simetria de sua forma, bem como a sua es-
decorrente não depende de que nos lembre- trutura geométrica, sugeriram ordem. Para o
mos de alguma outra coisa. O perfume de homem, aquilo que se apresenta numa com-
uma flor primaveril não é menos estimulante binação facilmente compreensível e numa
por não estar associado a boas lembranças. O ordem regular é um exemplo de inteligência.
perfume de uma flor, portanto, não simboli­za A estrutura variada das flores, sua cor, a
necessariamente coisas ou eventos espe­ciais, fragrância e as circunstâncias de seu cresci-
e sim o estado mental de imperturbabilidade mento serviram para objetivar, ou retratar na
– ausência de irritações. forma, os conceitos abstratos espirituais ou
A plena gratificação de cada um de nossos místicos do homem. As flores tornaram-se
sentidos físicos não se realiza na fonte de seus então símbolos das verda­des morais de uma
estímulos, e sim nas próprias sensações. Em consciência humana em contínua evolução.
última análise, o que buscamos não é aquilo Como expressou Wordsworth:
que produz sons harmoniosos ou agradáveis “Para mim, a mais humilde das flores pode
fragrâncias, e sim a própria experiência extáti- proporcionar pensamentos que amiúde são
ca. A flor cheirosa pode assim representar um profundos demais para lágrimas.”
estado de ânimo intenso, ou um momento de Qualquer tentativa de revisão, mesmo
enlevo, independentemente da sua espécie. parcial, de todo o simbolismo que tenha sido
Sendo a cor uma das propriedades domi­ atribuído a nossas flores comuns, constitui­ria
nantes dos sentidos físicos, é perfeitamente um árduo empreendimento. Por isto, selecio-
compreensível que o homem seja atraído nei apenas três flores, que são espe­cialmente
pelas tonalidades vivas das flores. A beleza ricas em significado. Hoje, elas influenciam
física é uma gratificação para o sentido da da mesma forma a religião, o misticismo, a
visão. Consiste naquilo que é percebido como filosofia e a arte.

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


27
n LEITURA COMPLEMENTAR

sentasse ressurreição. Há uma lenda hebrai-

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ca (hagadah) segundo a qual a rosa não pos-
suía espi­nhos antes da queda do Homem.
Nessa mesma lenda, a juventude era descrita
como uma coroa de rosas e a velhice como
uma coroa de espinhos. Conta-se que a
rosa fazia parte da coroa do noivo na antiga
Jerusalém. De acordo com as leis rabínicas
(halakha), o óleo da rosa era extraído e usa-
do pelas classes mais altas, ao invés do óleo
comum. A água de rosas por muito tempo
foi o perfume favorito do Oriente.
No Sepher Har Zohar (Livro da Cabala),
Rosa a rosa representa a comunidade de Israel. Sua
cor, que é vermelha ou branca, faz referência
à severidade e à misericórdia que se alternam

Rosa
na vida de Israel. Suas cinco pétalas aludem
aos cinco caminhos da salvação, bem como
aos cinco portais da graça. Conta-se tam­bém
que Maimônides, famoso erudito judeu me-
dieval, usava um preparado de rosas em sua
A Rosa dieta e o recomendava a outros.
Finalmente, os hebreus atribuíam à rosa
Segundo a tradição, os antigos egípcios o simbolismo do Paraíso. O alvorecer é o
usavam a rosa como um símbolo em seus reflexo da rosa do Paraíso, assim como o pôr
ritos e a ela atribuíam uma função sagrada. do sol reflete as chamas do inferno. Uma
Sustenta-se que a rosa era consagrada a Ísis, antiga tradição hebraica diz que oitocentas
a deusa da mãe-natureza, e era um símbolo dessas flores adornam a tenda de cada ho-
de regeneração. Nada há porém, nas inscri- mem piedoso no Céu.
ções antigas, que confirme esta tradição. Haja
vista que, como veremos, o Egito influenciou
fortemente o simbolismo das flores, conside­
raremos muito daquilo que hoje se fala sobre
a rosa como se lá tivesse origem.
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A rosa-de-Jericó é natural da Arábia,


da Pérsia e do Egito. Ela é na verdade uma
pequena erva da família das Crucíferas.
Com a maturação das sementes durante a
estação seca, as folhas caem e os ramos se
curvam para dentro. Isto faz com que ela
assuma a forma globular. Quando a erva se
torna úmida, os ramos então se estendem e
ela assume temporariamente a aparência de
uma planta viva. Isto fez com que ela repre­ Rosa-de-Jericó

28 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014



A mitologia grega relata que a rosa era
consagrada à deusa Vênus. Era também um … a mais bela
símbolo sagrado da escola de mistério da
Trácia. A narrativa mitológica declara que
e mais perfeita flor,
a rosa branca tornou-se vermelha porque
Cupido, desajeitadamente, emborcou sobre
protegida, como
ela uma taça de néctar durante uma apresen­ uma virgem, por


tação de dança ante os deuses.
Os romanos reverenciavam a rosa dando, seus espinhos.
em sua homenagem, seu nome a um festival
estadual. Rosalia, ou o Festival da Rosa, era
realizado em memória dos mortos. As cata- rosas era suspensa no teto das salas de banque-
cumbas de Roma tornaram-se símbolo da tes, em reuniões secretas, como um lembrete
esperança da bem aventurança futura porque para não se divulgar o que fosse conversado
os que estavam ali sepultados abrigavam tais em nenhum lugar. Talvez a rosa tenha se tor-
ideias quando em vida. Subsequentemente, o nado símbolo do silêncio porque ela encerra
desenho de rosas nos túmulos veio a repre- dentro de suas pétalas a fonte de sua fragrância
sentar o Paraíso ou a vida futura. e alguns de seus mais belos matizes, mostrando
Entre os muitos títulos dados à Virgem assim que a virtude e as nobres intenções de-
Maria nos tempos medievais, encontramos vem ser cuidadosamente protegidas.
o de Santa Maria della Rosa. Por estar a rosa Michael Maier, Grande Mestre da Ordem
consagrada a ela, tornou-se na Idade Média o Rosacruz da Alemanha no século dezesseis,
símbolo da virgindade. Dante escreveu: dava grande valor ao significado místico da
“Aqui está a rosa, onde a Palavra Divina rosa. Ele falava da rosa como a mais bela e
se fez encarnada”. mais perfeita flor, protegida, como uma vir-
O Naometria, publicado em 1614 por gem, por seus espinhos. Também dizia que
Simon Studion, um rosacruz, era uma crôni- ela existia em grande quantidade no Jardim
ca do primeiro conclave da Militia Crucífera da Filosofia, sendo isto um “nome poético
Evangélica, levado a efeito em 27 de julho de para a Ordem da Rosa-Cruz”. Afirmava que,
1586. Esse conclave era formado principalmen- assim como a rosa natural é encantadora e
te por rosacruzes para proteger a cruz e para perfumada, assim a rosa filosófica inebria o
evitar que ela se transformasse num instru- coração e dá força ao cérebro. Assim como
mento para a perseguição daqueles que não se a rosa real se volta na direção do Sol, ou se
conformavam com o catolicismo romano. O revigora com a chuva, assim a rosa metafísica
Naometria faz referência ao significado místico se nutre da luz até alcançar a perfeição.
da rosa. De fato, na página 271 do livro há uma Os alquimistas rosacruzes frequente-
ilustração da “Junção da Rosa com a Cruz”. mente associavam a palavra rosa com o
Acompanhando essa ilustração há a frase latina orvalho, uma vez que a palavra latina rosa
“Hierichuntis Rosa ex quotuor ins Partes”. é semelhante à palavra rocio, que significa
A expressão sub rosa (sob a rosa) vem do orvalho. A rosa colocada no centro da cruz,
fato que a rosa foi por muito tempo símbolo que repre­sentava para os alquimistas as qua-
do silêncio entre as escolas místicas da Idade tro princi­pais manifestações da natureza (ou
Média. Nos primeiros séculos, após o advento seja: ar, terra, fogo e água) tornou-se o sím-
do Cristianismo na Alemanha, uma coroa de bolo da regeneração.

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


29
Lótus
n LEITURA COMPLEMENTAR

O Lótus que uniríamos duas bandeiras para indicar a


unidade política duma região. A razão exata
Entre a flora do Egito, assim nos é revela- pela qual o lótus representava o Alto Nilo não
do por um egiptólogo, “a única espécie que foi ainda descoberta. O lótus, como o papiro,
deveria ser considerada sagrada é o lótus”. também desempenhou parte importante nos
Alguns de seus contemporâneos, como projetos e ornamentações arquitetônicos.
Wilkins, não concordam com ele. No en- Quase toda arte primiti­va começa com
tanto, há indicações que apoiam fortemente cópias das manifestações próprias da natu-
a conclusão de que o lótus era um símbolo reza: flores, peixes, fenômenos astronômicos
sagrado no Egito antigo. Ele é flagrantemente e animais. Os incas que viveram ao longo da
mostrado no simbolismo do Egito. Da copa costa do Peru e do Equador usavam motivos
da flor do lótus, vemos brotando o menino marinhos nas decorações de sua cerâmica e
Hórus, “o Sol nascente”, símbolo da ressur- de sua tecelagem. Os que viviam no interior
reição. Em esculturas e pinturas dos altares usavam animais peculiares àquelas regiões.
de oferendas, vemos uma profusão de flores O lótus e o papiro, sendo comuns no Nilo,
de lótus. Na réplica de uma tumba egípcia do influenciaram os desenhos do Egito remoto
Museu Egípcio Rosacruz, temos uma estátua de modo semelhante. As colunas egípcias
da deusa do Nilo segurando uma bandeja têm formato de papiros ou de hastes de lótus,
de suas oferen­das para a humanidade. Esta atadas em intervalos por faixas que lhes dão
bandeja possui abundante inscrição de aves e a aparência de feixes. Os capitéis das colu-
frutos, bem como um baixo-relevo de nume-
rosas flores de lótus. Num antigo ritual men-
fita, há a saudação: “Salve! O lótus, símbolo
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do deus “Nefer-Tem”. O lótus, como de fato


sabe­mos, era símbolo deste deus.
Plutarco nos conta que os egípcios espo-
savam a ideia de que o Sol nascia da planta
do lótus. Os egípcios indubitavelmen­te não
acreditavam que o Sol viesse das flores de
lótus, mas criaram este simbolismo por cau-
sa do fenômeno de abertura desta flor com
o nascer do sol e fechamento com o pôr do
sol. No entanto, são muitas as inscri­ções que
mostram Ra, o símbolo do Sol e da eterna
energia criativa do universo, elevan­do-se da
flor do lótus nos pântanos. Há também uma
inscrição hieroglífica em que se lê, em parte:
“o lótus às narinas de Ra”, revelando a ligação
dos dois.
O lótus veio a representar o Alto Nilo; e
a planta do papiro, o Baixo Nilo. Os dois, o
lótus e o papiro, eram associados num em-
blema simbólico que representava o poder do
rei sobre as duas regiões, da mesma maneira

30 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


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nas geralmente acompanham a forma do


lótus, quer aberto ou fechado. Quando
aberto, o capitel tem a forma de um
sino invertido. O botão de lótus tornou-
-se padrão convencio­nal, isto é, um
desenho geométrico equilibra­do
que era usado como friso ou pedes-
tal ao longo das paredes dos templos
ou em decora­ções de túmulos.
Deve-se compreender, natural-
mente, que o lótus existe em várias cores.
O lótus branco era colocado sobre as mú-
mias. A flor de lótus sobre a qual o deus
Hórus é sempre visto sentado é o seshni,
que significa “lótus branco”. O lótus é men-
cionado no mais antigo dos Vedas. Ali, não devemos deixar de
ele é considerado como um emblema da mencionar a famosa ora-
beleza, que se compa­ra à beleza das faces ção sagrada dos budistas do
das semideusas. Na Índia, ele aparece nos Tibete, “Om mani Padme Hum” (Ó
mais velhos monumen­tos arquitetônicos Joia do Lótus. Amém).
e, também, como um padrão em escultu- Para os antigos arianos, o lótus

Criação
ras. No Atharva-Veda, o coração humano simboliza­va nascimento sobre-humano
é comparado ao lótus. É mencionado em ou divino. Não podemos deixar de notar a
outro lugar como “a flor nascida da luz das semelhança no simbolismo da flor do lótus
constelações”. na Índia e no Egito. Embora os arianos,
em sua migração para o sul, da Europa e

O Lótus e a Criação do norte da Ásia para a Índia, sem dúvida


tenham introduzido o simbolismo do ló-
Nos Brahmanas, “o lótus aparece pela primei- tus naquela terra, realmente não acho que
ra vez associado ao Criador, nos mitos cos- esse simbolismo fosse caracte­rístico deles.
mogônicos”. De fato, sua relação com o nasci- Como os arianos se dividiram como povo
mento divino e a Criação é digna de nota. O indo-europeu, alguns se estabele­cendo afi-
lótus é ainda, convencionalmente, considera- nal no que é hoje o Irã, seu contato com a
do como um assento ou pedestal sobre o qual grande civilização do Egito foi inevitá­vel.
se encontram divindades sentadas ou em pé. Assim como os arameus introduziram na
O exemplo mais notável é o da deusa hindu Índia uma escrita que se tornou o idioma
Laksmu. Ela é sempre vista em pé ou senta- sânscrito, do mesmo modo, com toda a pro-
da num lótus, segurando uma destas flores babilidade, o simbolismo do lótus chegou à
em cada mão. Depois que o Buda veio a ser Índia, do Egito, por intermédio dos arianos.
retratado em escultura, sua imagem é segui- Já fizemos a observação de que, no Egito, o
damente vista sentada de pernas cruzadas na lótus era apresentado como um assento para
posição de lótus, ou ele é visto num pedestal o deus Hórus. Seria mera coinci­dência o fato
que tem a forma desta flor. O número das pé- de o lótus ser igualmente um assento para
talas varia de quatro a seis. A propósito disto, as deidades indianas ou hindus? O Budismo

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


31
n LEITURA COMPLEMENTAR

indubitavelmente tomou esse simbolismo


emprestado dos arianos. A explicação tradi-
cional indiana e budista do glorioso lótus é
de que ele não parece brotar da terra suja, e
sim da superfície da água, e é sempre limpo
e puro, não importando o quanto impura
seja a água. Isto simboliza o fato de todas as
coisas criadas no começo terem surgido do
Lírio
O Lírio
Faz-se muita referência ao lírio na antiga
literatura egípcia. No entanto, parece que
o lírio e o lótus são sinônimos, pois muitas
vezes o mesmo simbolismo é atribuído a
ambos. Vimos que o lótus é o símbolo do
deus Nepher-Tem. Porém, notamos também
caos primordial - confusão e trevas. Em ou- o seguinte: “O abençoado se eleva como
tras palavras, das trevas vieram a luz, a bele- Ne­pher-Tem, como um lírio, às narinas de
za e a forma. A despeito do ambiente de um Ra. Ele aparece no horizonte todo dia e os
indivíduo, a verdade espiritual latente em deuses são purificados ao vê-lo”. Em outro
sua natureza pode florescer e permanecer lugar notamos que o lótus também estava
incontaminada se ele se voltar para a luz. “às narinas de Ra”. Budge, eminente egiptó­
Como símbolo do nascimento divino, o logo, referindo-se ao simbolismo do lírio,
lótus é o símbolo mais comum do Budismo. diz: “Lótus ou lírio”, em mais uma indicação
É sempre identificado com o Sol. Sem dúvi- de que eles eram usados como sinônimos.
da, a mesma razão natural que fez com que O lírio é também visto crescendo nos rios
os egípcios identificassem o lótus com o Sol e lagos, tendo a figura dos quatro filhos de
levou os budistas a fazerem o mesmo. O Hórus em pé sobre a flor.
fenômeno do Sol sugeria, simbolicamente Em “A Virgem do Mundo”, um fragmen­
ao menos, que o Sol residia na flor do lótus to do tratado perdido de Trismegistus, inti-
fechada sob a terra, à noite, e ressuscitava tulado O Livro Sagrado e tido como origi-
no dia seguinte. No Budismo mahayanista nado no Egito antigo, lemos: “Eu sou o lírio
(a interpretação budista do teísmo ou de puro, proveniente do Lírio da Luz. Eu sou a
um deus supremo), há uma escritura sa- fonte da iluminação e transmito o sopro de
grada muito importante conhecida como imortal beleza”. Isto simboliza, observamos
Lótus da Lei Verdadeira. Trata-se realmente nós, vida espiritual, beleza e iluminação. De
de uma representação dramática relativa à acordo com a mitologia, o lírio branco bro-
Criação, equivalente ao Livro do Gênesis do tou do leite de Hera, esposa de Zeus. Assim,
Velho Testamento. era ele um símbolo de pureza.
Como no Egito, a influência do lótus na
arte indiana foi considerável. Na literatura

“ Eu sou o lírio
tibetana há referência a três divindades do
lótus. “A ordem das deidades do lótus re-
presenta os princípios deificados de certas
funções dentro de nós”. Em outras palavras,
puro, proveniente do
as deidades do lótus são somente símbolos Lírio da Luz. Eu sou a
esotéricos de certas faculdades humanas.
No Dhammapada (O Caminho da Lei) há fonte da iluminação
um capítulo sobre o simbolismo das flores
e sua relação com as virtudes e fraquezas e transmito o sopro
de imortal beleza.

humanas. Não existe, no entanto, qualquer
referência especial ao lótus.

32 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


O Zohar da Cabala Hebraica fala das da Anunciação é normalmente retratado
treze folhas que envolvem o lírio como os portando lírios. E também, em Mateus
treze atributos de Deus que circundam Israel. 6:28, lemos: “Olhai para os lírios do cam-
Menciona também que as cinco pétalas da po, como eles crescem...” Interpreta-se isto
rosa são as primeiras cinco palavras do she- como significando que Jesus aludia ao fato
ma (pequenas passagens do Pentateuco). de que nenhuma riqueza ou vestimenta
Também nos é dito que a fisionomia dos vir- pode tornar o homem tão belo como a
tuosos é como o lírio. Os últimos cabalistas real natureza das flores do campo. A flor-
usavam o lírio como um símbolo de ressur­ -de-lis, ou o emblema do lírio da França,
reição. Os hebreus sustentavam que, “como tem-se afirmado, teve sua origem na antiga
um lírio murcha com a luz do Sol, e floresce “crux ansata” (cruz egípcia com um laço no
sob o orvalho, assim também a nação de alto), o símbolo da dualida­de das forças da
Israel fenece, exceto na medida em que Deus natureza. O lírio foi de igual modo usado
se torne orvalho para ela”. Um lírio, entre durante séculos nos brasões dos exércitos
eles, era comparado à “Rebeca que permane­ de Florença e da antiga Síria.
ceu pura num ambiente pernicioso”. A passa- Ao menos, devemos concordar com
gem dos Salmos 130: 1, “Das profundezas”, é Francis Bacon, que disse: “O Deus Todo-po­
explicada como uma alusão ao lírio-do-vale. deroso primeiro plantou um jardim, que é
O simbolismo do lírio passou dos ju- verdadeiramente o mais puro dos deleites
deus aos cristãos e talvez originalmente dos humanos; é o maior refrigério para o espírito
egípcios, se o lótus e o lírio eram considera­ do homem, e sem ele os edifícios e palácios
dos pelos últimos como sinônimos. O Anjo não passam de obras grosseiras”. 4

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PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


33
n FILOSOFIA

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Por ATTAR AL-HAFFAR

34 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


A
“pérola do oriente”, como o Líba- cendência são experimentados, o que, com
no era conhecido antes dos anos a justiça do tempo, colocará Gibran ao lado
de guerra destruidora, reúne uma de outros grandes pintores da história. Muito
história que remonta a mais de erudito, esse libanês apaixonado desde os seis
5000 anos, como o demonstrou o eminente anos por Leonardo da Vinci
historiador árabe Jawad Boulos. Já Henrique começou a escrever livros.
Paulo Bahiana, no livro “O Líbano Eterno”, E um deles entraria para a
nos informa que a palavra “Líbano” parece história como um dos mais
provir do hebraico “leben”, que significa belos de todos os tempos.
“branco”. De qualquer forma, o fato é que Gibran tinha como
esta terra maravilhosa, cujos cedros ma- maior desejo expressar a
jestosos tornaram-se famosos no mundo Verdade e a Beleza, tra-
todo, legou-nos uma série de personagens çando, assim, um roteiro
importantes, que conquistaram renome em para a vida do homem.
todos os continentes. E entre eles veio Gibran Seu livro “O Profeta”,
Khalil Gibran, certamente a mais brilhante quando publicado, mos-
pérola do Líbano contemporâneo. trou ser isso mesmo.
Gibran nasceu em 6 de dezembro de Como uma pequena
1883 em Bisharre, aldeia da região norte brisa que se transforma
do Líbano, circundada por cumes nevados em poderosa tempestade, o livro arreba-
e pelos inexoráveis cedros. Aos 11 anos foi tou, e ainda arrebata, almas no Oriente e
enviado aos Estados Unidos, retornando à no Ocidente, sendo um best-seller há mais
pátria três anos depois para completar seus de quatro décadas. É considerado um dos
estudos. Voltou em definitivo aos EUA pou- livros mais reeditados depois da Bíblia. Tão
cos anos após, onde iria permanecer até seu belo como as melhores obras artísticas que
falecimento. Desde cedo Gibran revelou-se conhecemos, tão simples como a natureza
uma criança extraordinária, o que fez sua e tão sábio como a Bíblia, o Bhagavad Gita,
mãe dizer: “Meu filho está fora da Psicolo- o Alcorão e outros, “O Profeta” conta a his-
gia”. Com raras qualidades artísticas inatas, tória do sábio Al Musthafa e suas últimas
destacou-se na pintura e na literatura, crian- lições à cidade de Orphalese. No livro ainda
do um estilo literário inteiramente novo e estão vários desenhos no inimitável estilo
ousado em sua terra. Suas ideias filosóficas místico de Gibran. Sobre essa obra, disse
criaram polêmica, pois estavam carregadas ele: “Se eu puder abrir o coração humano,
de um brilhante misticismo, que as eleva- não terei vivido em vão.”
vam acima dos dogmas religiosos. Do Líbano veio uma voz que, segundo a
Quando se instalou em definitivo nos biógrafa Barbara Young - amiga de Gibran -
EUA, Gibran iniciou uma carreira artística só surge uma vez a cada 1000 anos. Essa voz
que é pouco conhecida no mundo. Seu traba- morreu em Nova Iorque em 10 de abril de
lho em pintura é notável em estilo, compor- 1931. Uma caravana, primeiro em Nova Ior-
tando mesmo genialidade, o que lhe granjeou que e depois no Líbano, a partir de Beirute,
sucesso nos EUA. Na maioria das vezes em acompanhou seu corpo até a sua vila natal, a
grafite, os desenhos monocromáticos ainda montanhosa Bisharre. Ali ele repousa hoje,
hoje provocam curiosa catarse no público. num convento escavado nas rochas, sob a
Sensações de enlevo, mistério, temor e trans- inscrição: “Aqui, entre nós, dorme Gibran”. 4

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


35
n HOMENAGEM

N
a longa Saga Rosacruz mui-
tos foram e são escolhidos
pelo Cósmico para ocupar
as primeiras posições – a li-
nha de frente da Ordem. Tais posições
de destaque não constituem, como se
pode pensar a priori, algo repleto ex-
clusivamente de felicidade, mas acar-
retam frequentemente (e talvez mais
do que frequentemente) dor, sacrifício
e, em alguns casos, até injustiça. Sem-
pre foi assim, em todos os tempos,
com aqueles que aceitaram empunhar
o archote da Luz Esotérica.
Com estas linhas queremos prestar
nossa reverência a um desses vence-
dores da Rosa+Cruz, recentemente
elevado ao Cósmico pela Grande Ini-
ciação após toda uma vida de luta pelo
Ideal amado: o Frater Charles Vega
Parucker. Alguém que tudo fez, arris-
cou e sacrificou pela missão que lhe foi
confiada, beneficiando por 26 anos de

Por JAMIL SALLOUM JR., FRC

36 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


trabalho exaustivo milhares de buscadores Graças à sua dedicação, infatigável dispo-
rosacruzes no mundo. Alguém que foi sím- sição para o trabalho e fidelidade à Ordem,
bolo de toda uma era na AMORC. rapidamente Frater Charles tornou-se o braço
Natural de Belo Horizonte-MG, Frater direito da Soror Maria A. Moura, auxiliando-a
Charles nasceu em 1936 e formou-se como diretamente em múltiplas questões. Em fun-
engenheiro civil em 1960 pela Universidade ção de todo esse labor, no dia 16 de outubro
Federal do Paraná (UFPR). Cursou também de 1982 Frater Charles foi instalado como
o Instituto Tecnológico de Aeronáutica de Grande Mestre da GLB, sucedendo a Soror
São José dos Campos (ITA), e realizou diver- Maria A. Moura, em inspiradora cerimônia
sos cursos de liderança, gerenciamento e ad- que ocorreu no transcurso da 9ª Convenção
ministração geral. Sua ascensão profissional Nacional Rosacruz. O ritual, assistido por inú-
foi meteórica, tendo trabalhado em diversas meros rosacruzes, foi conduzido pelo Frater
empresas, algumas multinacionais, como a Arthur Piepenbrink, Supremo Secretário da
Refrigeração Paraná S/A, General Electric AMORC, designado especialmente pelo Im-
e Asea Brown Boveri S/A, participando das perator Ralph Maxwell Lewis para a missão.
negociações e da administração de contratos Frater Charles exerceu sua elevada fun-
de construção de usinas hidrelétricas, como ção com muita dedicação. Rosacruz incan-
Ilha Solteira, Foz do Areia, Parigot de Souza, sável e detentor de ilimitada energia, orien-
Balbina e Itaipu, no Brasil, além de outras no tou e estimulou os trabalhos da Grande Loja
México, República Dominicana, Paraguai, de Língua Portuguesa em várias linhas de
Colômbia e Libéria.  atuação, sendo o responsável pela moder-
Ainda no ano de 1960, Frater Charles, sem- nização e expansão desta Grande Loja até
pre um inquiridor, descobriu a AMORC e nela a posição que ocupa presentemente: a de
afiliou-se, dispondo-se a servi-la não só como maior Grande Loja da AMORC no mundo
membro, mas como Oficial. Foi, aliás, neste em número de afiliados.
mesmo ano que a Grande Loja mudou-se do Entre suas inúmeras realizações estão a
Rio de Janeiro para Curitiba. Frater Charles construção do Memorial Rosacruz (1987),
serviu como Cantor na Loja Curitiba e foi seu do Museu Egípcio e Rosacruz (1990), da
Mestre em 1965; foi ainda Mestre do Pronaos Biblioteca Alexandria-AMORC (1990), do
Osasco em 1970, Grande Conselheiro dos
estados de São Paulo e Mato Grosso de 1972
a 1978 e em 1977 assumiu o cargo de Diretor-
-Tesoureiro da então Grande Loja do Brasil.
Em 1975, a Grande Loja do Brasil teve a
honra de organizar e sediar uma Convenção
Mundial da AMORC, com a presença de 1800
rosacruzes de várias partes do mundo. O en-
tão Imperator, Frater Ralph Maxwell Lewis, e
sua esposa, Soror Gladys Lewis, além de vá-
rios Grandes Mestres do mundo, conferiram
um prestígio inolvidável ao evento. O Frater
Charles Vega Parucker foi escolhido pela en-
tão Grande Mestre da Grande Loja do Brasil,
Soror Maria A. Moura, para presidir o evento. Frater Charles e Soror Maria A. Moura

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


37
n HOMENAGEM

Inauguração da Morada do Silêncio Frater Charles e o Imperator numa Convenção da Ordem Juvenil

Espaço de Arte Francis Bacon (1997), da Frater Charles foi ainda Grande Mestre
Escola Rosacruz de Educação Integrada- da Grande Loja de Língua Hispana para
-ERCI (2000), a reforma e a ampliação das as Américas e seu Diretor-Presidente, au-
instalações da Grande Loja (gráfica, prédio xiliando e orientando a sua estruturação
administrativo e Auditório H. Spencer até que a mesma pudesse ter um Grande
Lewis), a aquisição de um terreno em área Mestre próprio.
urbana para futura expansão e aproveita- Desde a assunção do Frater Christian
mento das atividades da GLP, e aquela que é Bernard como Imperator da AMORC, em
considerada a sua maior obra – o seu maior 1990, este confiou muito na experiência
legado à AMORC: a Morada do Silêncio – exitosa e na lealdade do Frater Charles,
Chaminé da Serra, em Quatro Barras-PR delegando-lhe diversas missões e honran-
(1995), única do gênero e que em 2015 com- do-o com sua estreita amizade pessoal.
pletará 20 anos. Graças a seus inúmeros talentos, Frater
Frater Charles também organizou e Charles assumiu, diversas vezes, o cargo
acompanhou diversas viagens místico- de Vice-Presidente mundial da AMORC,
-iniciáticas ao Egito, Europa e Peru e foi deixando-o em 2013.
na sua gestão que o Martinismo templário Admirado em vários países e respeitado
foi introduzido no Brasil, com a instalação dentro e fora da AMORC por suas capa-
da Grande Heptada de Língua Portuguesa cidades profissionais e atuação altruística,
em 1993, tornando-se rapidamente a maior Frater Charles recebeu inúmeras honrarias
Grande Heptada do mundo em número de durante sua vida, entre elas a de Cidadão
Organismos Afiliados. Honorário da Cidade de Curitiba, em 24
Frater Charles Vega Parucker foi também de abril de 2008. Foi laureado perante uma
um grande incentivador das atividades da audiência de aproximadamente 220 pes-
Ordem Rosacruz Juvenil e sob sua supervisão soas, rosacruzes e amigos de várias partes
muitas Convenções Nacionais dessa Ordem do Brasil, toda a diretoria da Grande Loja e
ocorreram, propiciando congraçamento, alegria personalidades dos setores público e priva-
e enlevo aos jovens rosacruzes. Também surgiu do da cidade. Sempre recebeu todos esses
sob sua gestão o Centro Cultural AMORC, em títulos em nome da AMORC e do serviço
1991, objetivando reunir um feixe contínuo de que nela prestava.
atividades de âmbito místico, filosófico, cien- Frater Charles escreveu três livros, hoje
tífico e artístico, de modo a contribuir com o disponíveis na Biblioteca Rosacruz: “Você
embelezamento do espírito humano. Mudou?”, “Momentos de Reflexão” (com

38 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


Homenagem e reconhecimento público Frater Christian Bernard e Frater Charles

CD) e “História da AMORC na Jurisdição Pai, esposo, amigo, irmão, conselheiro,


de Língua Portuguesa”. líder, místico, Charles Vega Parucker dei-
Mas como era o Frater Charles Vega xou sua marca na história da AMORC. Sua
Parucker no dia-a-dia? Os que o conhece- transição, a 06 de outubro de 2014, foi rece-
ram e conviveram com ele podem atestar bida com tristeza por rosacruzes no mundo
três qualidades marcantes de sua pessoa: todo, que encheram as redes sociais da GLP
compromisso absoluto com o trabalho e de mensagens, todas atestando a grandeza
com o serviço na Ordem, contra todos os da alma de Frater Charles, e desejando-lhe
obstáculos; simplicidade; e bom humor. Da uma feliz transição. No dia 08 de outubro,
sua presença imponente, segurança e cora- um Ritual Fúnebre Rosacruz foi conduzi-
gem ante os obstáculos mais difíceis, do seu do no Grande Templo da GLP, lotado com
bom humor constante, mesmo nas horas rosacruzes, amigos, parentes, autoridades
mais sombrias, e da devoção obstinada à políticas e representantes de várias orga-
AMORC, muitos podem também dar tes- nizações congêneres que compareceram
temunho. Frater Charles provou que para para uma última homenagem. Atuou como
ser mestre da alma é preciso ser também Mestre do Ritual o Frater Domingos Savio
mestre da matéria, e vice-versa, pois a rosa Telles, Diretor Vice-presidente da GLP, re-
só desabrocha na cruz. presentando o Grande Mestre, Frater Hélio
Como todo místico sincero na Senda de Moraes e Marques, então na reunião
Rosacruz, Frater Charles fazia questão de da Suprema Grande Loja da AMORC, no
reforçar a humanidade da sua posição, Canadá. Assim que foi informado da tran-
evitando qualquer idolatria. De grande sição, o Imperator da Ordem, Frater Chris-
franqueza e sinceridade cristalina, às vezes tian Bernard, conduziu no Canadá, com
chocava os acostumados a viver na falsida- todos os Grandes Mestres e Administrado-
de dos elogios e das máscaras sociáveis. Só res da AMORC, uma cerimônia em home-
a raros deixava transparecer, sempre sem nagem a Frater Charles. E quando no Brasil,
intenção, a grandeza de sua envergadura por ocasião da XXIII Convenção Nacional
espiritual, do que já conquistara. Rosacruz, Frater Christian fez questão de
Na pessoa terna, fiel e dedicada da Soror visitar o túmulo de Frater Charles, no Ce-
Mercedes Palma Parucker, sua esposa, e nos mitério do Abranches, em Curitiba, e ali
seus três amorosos filhos, Frater Charles meditar. Acompanhando o Imperator esta-
sempre encontrou o apoio e o carinho que o va o Grande Mestre, Frater Hélio Marques,
auxiliaram a cumprir bem a sua missão. e diretores da GLP.

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


39
n HOMENAGEM

Pelos laços
Frater Charles Vega da Ordem
Parucker será sempre
lembrado por todos Por MERCEDES PALMA PARUCKER, SRC
aqueles que o conhece-
ram como um infatigável

U
e fiel lutador do Ideal m laço branco foi selado por uma chama, unindo
Rosacruz, cumprindo duas vidas e fazendo de dois caminhos um só. Era
seus deveres de forma um casamento e um compromisso rosacruz marcando
irretorquível, com muita o início de um serviço que decidimos levar avante jun-
competência e exatidão. tos. E assim se fez.
Seu trabalho em prol Nosso convívio
da AMORC está inde- foi um permanente
levelmente registrado aprendizado, um
nos anais cósmicos e companheirismo
terrenos, perpetuando-se que ultrapassou os
na egrégora rosacruz. A interesses pessoais
Grande Loja de Língua em favor do rosacru-
Portuguesa permanece cianismo. Fizemos do
Servir um ideal único
como um reflexo tangível
que nos fortaleceu e
do seu brilhante trabalho. encorajou, dando-nos
Logo que assumiu o o necessário ânimo
cargo de Grande Mestre, para prosseguir até a
o Imperator da AMORC, conclusão da tarefa.
Ralph M. Lewis, fez- Concluída sua
-lhe um pedido: “Frater missão, Charles foi gradativa e conscientemente en-
Charles, cuide bem da trando num tranquilo silêncio e apaziguando sua men-
nossa Ordem.” E assim te. Passou os últimos anos de sua vida buscando trans-
ele fez, até seu último cender a superficialidade da matéria, sempre almejan-
dia de serviço. do encontrar valores místicos ainda mais elevados.
Obrigado, Frater Numa calma e ensolarada manhã de Primavera, ele
Charles, por tudo o que foi chamado a partilhar a Paz Profunda junto a tantos
fez pela nossa amada outros que o precederam na Pátria dos Bem-Aventu-
Ordem! Parabéns pela rados. A Rosa de sua grande Alma deixou a Cruz e foi
sua dedicação, fidelidade morar no Jardim Cósmico.
e pelo exemplo que deu Como legado deixou o exemplo de uma vida ínte-
gra, de seu modo transparente de ser, de sua total de-
a todos nós! Possa sua
dicação ao próximo e à família. Também pelo exemplo
alma descansar nas esfe-
ensinou que a beleza está contida na simplicidade e
ras de luz, preparando- que a vida consiste em nascer, servir e partir.
-se para sua próxima Que sua carinhosa lembrança possa guiar nossos
missão, pois esta, a que passos para que a Rosa de cada um de nós continue a
recentemente terminou, desabrochar com o mesmo frescor que o animou du-
foi uma Missão Cósmi- rante os 54 anos de afiliação rosacruz.
ca Cumprida! Que sua alma, Charles, permaneça na plena Luz e
Assim Seja! que agora, na nova e abençoada Morada, você encon-
tre a sua merecida recompensa.
Que Assim Seja! 4

40 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


n POESIA

Por VICTOR HUGO – em 12 de maio de 1856

Com que direito pões pássaros em gaiolas?

Que direito tens tu, que o das aves violas?


Por que as roubas das nuvens… auroras… nascentes?

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Por que privas da vida esses seres viventes?
Homem, tu crês que Deus, o Pai, faria nascer
Asas p’ra que à janela as fosses suspender?

Se não o fazes, hás de viver descontente?


Que é que te fizeram esses inocentes
Para que os condenasses, com a fêmea e seu ninho?
A desventura deles é o nosso caminho!
Talvez o sabiá, que do seu galho roubamos,
E o infortúnio que aos animais nós causamos
E a escravidão inútil que impomos às bestas
Qual Nero não cairão sobre nossas cabeças?
E se o cabresto então desprendesse os grilhões? Das treliças com fios de ouro nascem bastiões;
Oh! Quem sabe o desfecho de nossas ações, A perversa gaiola é a mãe das prisões.
E que fruto nefasto estarão produzindo Respeita o augusto cidadão do ar e do prado!
As cruezas que na Terra perpetramos rindo? Tudo aquilo que aos pássaros é confiscado
Quando aprisionas sob o ferro de uma grade O destino, que é justo, toma dos humanos.
Pássaros feitos para o azul da liberdade, Temos tiranos, pois somos também tiranos.
Os nadadores do ar que arribam por aqui Queres ser livre, ó homem? Pois pensa primeiro,
 – Pintassilgo, chopim, pardal ou bem-te-vi –, Se tens em casa um testemunho prisioneiro...
O bico ensanguentado deles – ouve bem! –
Ao se bater nas grades fere a ti também! A sombra ampara aquilo que parece instável.
A imensidade inteira a essa ave miserável
Tem cuidado com teu julgamento furtivo! Vem se prostrar; e te condena à expiação.
Deus olha em toda parte onde grita um cativo. É estranho, ó opressor, que grites: “opressão!”
És incapaz de ver que és sórdido e cruel? Tens sorte agora enquanto tua demência arrasa
A esses detentos abre a porta para o céu! A sombra desse escravo no umbral da tua casa;
Aos campos, rouxinóis! Aos campos, andorinhas! Porém essa gaiola com a ave infeliz
Perdoai o que fizemos às vossas asinhas! Encarna nessa Terra triste cicatriz.
E a ti, pois, da justiça as misteriosas redes,
Pois são masmorras que ornamentam tuas paredes! Tradução: Raul Passos, FRC

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


41
n ECOLOGIA

César, personagem
do filme O Planeta dos
Macacos: O Confronto –
Copyright 20th Century Fox

OUmaAnimal
consciência
silenciosa
Por JEAN-GUY RIANT, FRC

42 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


“Os problemas impostos pelos preconceitos raciais refletem em escala humana
um problema muito maior e cuja solução é ainda mais urgente: o das relações
entre o homem e as demais espécies viventes… O respeito que desejamos obter
do homem para com seu semelhante é apenas um caso particular do respeito
que ele deveria manifestar para com todas as formas de vida…”.
– Claude Lévi-Strauss

A
dificuldade em saber se o animal podendo existir senão se comparado com o
possui de fato uma consciência outro, o que levou certos autores a escrever
é uma questão tão antiga quanto que “sem os animais, o mundo não seria
a própria humanidade. O ho- humano”. Essa dicotomia profunda entre
mem jamais gastou tanta energia e jamais humanidade e animalidade tem sua fonte
demonstrou tanta vontade quanto para se naquela época. Procura-se diferenciar de
soltar de sua hipotética condição animal e, maneira absoluta o homem da besta, a civili-
paradoxalmente, jamais conseguiu se sepa- zação da barbárie e a “humanidade” daquilo
rar daquele que foi o companheiro de toda a que chamaremos de “animalidade”.
a civilização humana. Esse elo ancestral que As religiões monoteístas acentuarão por
fascina pensadores de todos os tipos, sejam sua vez essa tendência sacralizando o homem
eles filósofos, cientistas ou até mesmo teó- sem levar em conta por vezes a Criação. Ne-
logos, legou uma literatura abundante, por nhum versículo, a não ser o do Gênese bíbli-
vezes milenar, sobre o assunto da consciência co (Gn 1, 28), proporcionou tantas desculpas
animal, ponto principal que nos preocupa para os comportamentos mais inumanos
aqui. O animal sofre? Ele pensa? Pode refle- para com os animais. Lá está dito de fato que
tir? Pode sentir emoções? Está consciente da “Deus os abençoou [Adão e Eva] e lhes disse:
morte – ou de sua morte? sede fecundos e prolíficos, cobri a terra e a do-
Entre os povos primitivos – no sentido minai; subjugai os peixes no mar, os pássaros
de “primeiros”, e não de “subdesenvolvidos” no céu e todos os animais que se movem sobre
– o animal possui, se não uma alma, ao a terra”. Porém, muitas outras passagens
menos uma mente. É algo inconcebível para insistem na sabedoria animal. Nessa concep-
esses povos que o animal não seja um ser ção de sabedoria, a inteligência é absoluta: o
pensante. Estes seres misteriosos de pelos, animal nasce perfeito? Sim, de acordo com
penas ou escamas dão prova de tal inteli- os jesuítas, que inventaram a expressão “de
gência e tanto fascinam por suas aptidões instinto”, para não dizer que o animal era
que perturbam o homem em sua natureza inteligente, ou – suprema blasfêmia – cons-
mais interior e mais sagrada num magnífi- ciente. E sim também de acordo com René
co elo místico por natureza. Descartes, rosacruz que, querendo devolver
Entre os gregos antigos, essa questão da ao homem seu justo lugar numa Europa in-
consciência fascinava e animava os debates quietante e inquisitória, tentou mais uma vez
filosóficos, causando até mesmo repercussões efetuar a comparação, desta vez de ordem
sociais. Logo, era necessário definir o ani- metafísica: o homem é o pensamento, origi-
mal para saber quem era o homem, um não nando a palavra articulada.

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


43
n ECOLOGIA

Os partidários acirrados de Descartes,


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como Malebranche por exemplo, castraram


as mentalidades ocidentais quanto aos ani-
mais ainda mais do que o fez a própria filo-
sofia, pois seus defensores irão ainda mais
longe. No furor dogmático do sagrado que
reinava na época, acabar-se-á por afirmar
que apenas a alma reflexiva existe. Conse-
quentemente, os organismos de toda a Natu-
reza são rebaixados ao plano de autômatos,
certamente sutis, mas ainda assim autôno-
mos, desprovidos de qualquer forma de alma
– em outras palavras, de pensamento ou de
mente. Esta concepção redutora, amplamen-
te difundida pela Igreja por razões teológicas
(pois se resvalou no “Homem-máquina”),
justificará de alguma forma as piores cruel-
dades infligidas ao mundo animal.
Charles Darwin será o primeiro a de fato
lançar a pedra na lagoa ao publicar, no século
XIX, diversas obras nas quais as observações
comportamentais que ele fará quanto aos ani-
Charles Darwin mais causarão uma reviravolta nas relações
que o homem podia ter com o animal até en-
tão. O período industrial rebaixa ainda mais
Descartes não compreendia bem o furor o animal à categoria de objeto para justificar
contra sua concepção dos “animais-máqui- sua exploração e a vivisseção. Veremos nascer
nas”, que ele regularmente corrigiu ao longo as primeiras sociedades de defesa dos animais
de suas “objeções”, percebendo a imprecisão na Inglaterra. Infelizmente, o dogma lançado
que envolvia sua teoria. Em outras palavras, por nossa modernidade, não passível de dis-
para ele o animal tinha uma inteligência cor- cussão e ainda tenaz em nossos dias, perma-
poral e não reflexiva – isto sob influência da nece: apenas o homem possui uma alma no
poderosa igreja romana, que havia desposado sentido espiritual ou psicológico do termo,
a concepção de Aristóteles no nível de uma apenas o homem pensa, apenas o homem é
alma tripartida (nutritiva, sensitiva, refle- capaz de reflexão, de altruísmo, de
xiva). Apenas a nutritiva e a sensitiva ani- moral, de amor, de sentido de sa-
mariam os animais, perfeitos autômatos de grado… Essa breve recapitulação
Deus. Numa carta datada de 5 de fevereiro de histórica era necessária para que
1649, ele chegou a escrever o seguinte: “Toda- compreendêssemos um pouco
via, ainda que, como uma coisa demonstrada que fosse da relação tumultu-
que não saberíamos como provar, haja pensa-
.com
ada que o homem sem-
mentos nas bestas, não creio que se possa de- pre manteve com © thinkstock

monstrar o contrário, pois o espírito humano o reino


não pode penetrar o coração delas”. animal.

44 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


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O assunto da consciência animal deve ser
abordado com extrema prudência, inicial-
mente porque é difícil dar uma definição de Lucano, espécie de escaravelho

consciência por si mesma, e também porque


a consciência nos organismos vivos tem essa
particularidade de se encaixar à moda das geral do termo. Contudo, será preciso termos
matrioshkas russas. Para termos uma imagem em mente a extrema multiplicidade de for-
concreta disso, os cientistas reconhecem no mas que isso pode assumir, pois veremos que
homem a existência de um cérebro reptiliano certos animais, por mais simples ou peque-
e de um cérebro mamífero. Um será mais nos que sejam, encerram um tanto de surpre-
ligado aos instintos e o outro às emoções. sas para uma pessoa de espírito aberto.
Nesse contexto, o termo atualmente muito A primeira questão que poderia ser feita
empregado de “animalidade”, pressuposta- é sobre o sofrimento animal e que forma
mente destinado a ser a contraparte do termo este sofrimento pode ter. Durante muitís-
“humanidade”, deve ser utilizado com circuns- simo tempo, era costumeiro pensar que o
pecção. De fato, isso pode redundar em consi- sofrimento era submetido ao pensamento.
derar que a animalidade reúne em seus extre- O Ocidente, como vimos, tendo recusado o
mos todas as formas de vida e de consciência pensamento ao animal, recusou-lhe também
animal e as põe em pé de igualdade. Nesse ao mesmo tempo a sua capacidade de sofri-
caso, coloca-se no mesmo patamar, na escala mento. Citávamos Malebranche, e é ele quem
da consciência, uma ostra e um chimpanzé… manifesta a concepção mais redutora e a mais
É necessário prudência, pois generalizações desumana. A história relata que um homem
não podem ser feitas. Quanto mais a consci- se indignou ao ver Malebranche bater numa
ência se refina em suas manifestações, mais cadela grávida e foi interpelá-lo. Malebranche
difícil será se esquivar das generalizações, pois lhe respondeu que os gritos emitidos pelo
se haverá de convergir insensível e invariavel- animal eram apenas um mecanismo dos ór-
mente para o conceito de “Indivíduo”. gãos e do ar e que era absolutamente pueril
Assim sendo, somos mais sensíveis – é considerar o sofrimento animal como um
fato – aos animais biologicamente mais pró- sofrimento real. Como agora sabemos, o so-
ximos a nós. Talvez seja também por essa frimento é conduzido pelo sistema nervoso e,
razão que, quando falamos de animais, o ainda que o pensamento não esteja totalmen-
homem é naturalmente levado, por fenôme- te excluído do processo, ele não desempenha
no de empatia, a se representar como um o papel absoluto que se acreditava. Assim,
mamífero, assim como um cão, um gato, é preciso que levemos em consideração que
um cavalo, um elefante ou um leão, e muito todo animal dotado de sistema nervoso é
mais raramente como um réptil ou um pei- capaz de sofrer. É impossível negar essa evi-
xe. Desse modo, e a dência científica. É preciso no entanto levar
fim de estabelecer em conta igualmente o grau de sofrimento.
balizadores para Alguns insetos, como por exemplo o lu-
guiar esse estudo, cano (espécie de escaravelho), munido de
referiremo-nos re- impressionantes defesas, quando em combate
gularmente ao com outros machos por vezes têm a cabeça
“animal” decapitada: os dois segmentos do animal – a
no sentido cabeça separada do tronco – são ainda capa-

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


45
n ECOLOGIA

mesmo ocorre com o animal. Tentar compre-


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ender o animal unicamente segundo os crité-


rios do pensamento humano é um verdadeiro
caminho para aquilo que alguns tanto con-
denam: a antropomorfização, ou seja, a pro-
jeção dos afetos humanos sobre os animais.
Wittgenstein escreveu a esse respeito: “Se um
leão falasse, não poderíamos compreendê-lo”.
Os gregos já refletiam sobre a eventualidade
de o animal formular uma representação do
mundo que lhe seja própria. Para essa repre-
sentação do mundo, virtual ou abstrata, sa-
zes de viver independentemente um do outro lientamos, é preciso uma determinada forma
durante mais de uma semana. Podemos tam- – ainda que elementar – de reflexão.
bém elencar certos vermes que, cortados em Ora, essa faculdade que pensávamos até
dois, originarão dois indivíduos; ou ainda a aqui ser propriedade exclusiva do homem e de
raposa que, pega numa armadilha, não hesi- alguns mamíferos superiores está espalhada
tará em roer sua pata de modo a seccioná-la bastante amplamente pelo mundo animal.
e se livrar da emboscada… Estas situações, Um dos exemplos mais chocantes é o de um
incríveis do ponto de vista humano, não animal que acompanha o homem há milênios
excluem o sofrimento, mesmo que esses ani- – e não é o cachorro, o gato ou o cavalo, que
mais sobrevivam às mutilações. poderíamos todos evocar longamente –, mas
Mas qual é fundamentalmente o papel do um que nos acompanha de forma muito mais
sofrimento? Ainda que isso pareça paradoxal, modesta: a abelha. Os trabalhos de Frisch,
ele protege o corpo orgânico, suporte da vida. comentados por Sir John Eccles, são a esse
É um ferrão que indica o umbral que não respeito interessantes sob todos os ângulos.
deve ser cruzado para a preservação do corpo Ele não apenas pôs em evidência a existência
físico. E com que objetivo? Na filosofia rosa- de uma linguagem simbólica entre as abelhas,
cruz, a vida em geral e as diferentes formas de executada com a ajuda de uma dança que in-
existência em particular acumulam experiên- forma as outras abelhas quanto à presença de
cias para perfazer a expressão de uma consci- uma fonte de alimento, à distância e à direção
ência cada vez mais ampla. Para tanto, é pre- em que esta se encontra, como também ressal-
ciso que admitamos uma forma de memória, tou outro fato menos conhecido e que servirá
e essa memória se produz em ligação com aqui ao nosso propósito: o enxameamento.
o presente através do pensamento. Existem Quando o enxame é formado e as abelhas
memórias rudimentares, outras mais elabora- buscam um local para abrigar a colônia, vá-
das, e talvez mesmo uma forma de memória rias delas partem para explorar as cavidades,
ou de inteligência mais sutil que poderíamos grotas ou outros endereços suscetíveis de lhes
evocar, no que se refere ao instinto. oferecer um abrigo confortável, próximo às
O pensamento no animal não é mensurá- fontes de alimento, em que haja incidência
vel em estrito senso da mesma forma como de sol, umidade e que esteja a salvo dos pre-
o é no humano. Alguns cientistas medem o dadores. Quando as abelhas regressam, elas
pensamento em microvolts… Isso porém não executam a famosa dança destinada a infor-
revela informações sobre seu conteúdo. O mar suas congêneres. Fato extraordinário é

46 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


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que é preciso uma unanimidade para que o
enxame se desloque e, para tanto, é necessário
que as abelhas façam uma escolha. Para com-
plicar a situação, acontece de algumas delas
não estarem de acordo, cada qual dançando
para o endereço que encontrou. Nesse caso,
cada abelha se desloca até o outro local para
inspecioná-lo e verificar se ele é mais acolhe-
dor do que o seu. Algumas vezes ela insiste e
outras vezes muda de ideia. A abelha dá prova
de representação, de comunicação simbólica,
de comparação, de reflexão e, por fim, de es-
colha. Lembremos que a abelha possui apenas originando muitos exemplos de altruísmo, o
alguns milhares de neurônios, comparados que oferece aos filósofos debates suficientes
aos bilhões de um cérebro humano… sobre a moral e a ética entre os animais. As-
Essa consciência nascente do mundo ani- sim, as leoas tomam conta das mais idosas
mal é fácil de se identificar entre os animais entre elas, caçando em seu lugar e chegando
sociais, e ainda mais entre os mamíferos. até mesmo a pré-mastigar a comida para
A vida em sociedade exige que cada qual aquelas cuja dentição já esteja muito des-
encontre seu lugar e isso só pode se fazer gastada. Encontramos esse comportamento
evidentemente numa relação com um novo entre os cavalos selvagens, entre os elefantes
conceito. Esse tipo de organização é uma que tomam conta de seus semelhantes mais
mão estendida à consciência para uma nova fracos ou dos que foram mutilados, e ainda
progressão no animal, pois ela incita a con- em muitos outros casos…
siderar o outro e a cooperar com ele para Esse tipo de comportamento não oferece
a coesão e a sobrevida da microssociedade portanto nenhuma explicação puramente
estabelecida. Dessa necessidade nascerá a evolucionista satisfatória. Na filosofia rosa-
empatia – a capacidade de se colocar no lugar cruz, o altruísmo é um atributo potencial de
do outro e imaginar o que ele sente. Este é o certo grau de consciência, que aqui os ani-
caso, agora reconhecido, dos grandes símios, mais possuem. A empatia porém oferece tam-
dos elefantes, dos golfinhos e muito prova- bém, em estado embrionário, a consciência
velmente das baleias. Essa empatia oferece de si e de se fazer escolhas. Ora, revela-se que,
numerosas vantagens à consciência animal, como dizíamos, esse altruísmo é potencial e
só se desenvolve ao ser solicitado. A capacida-
de de imaginar aquilo que o outro pode sentir
também possui um lado contrário…
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Para ilustrar isso, citaremos os chimpan-


zés, que são extremamente hierarquizados.
A luta pelo poder preocupa o conjunto da
comunidade, originando coalizões que se
estendem por vezes durante vários anos. O
chimpanzé é agitado e por vezes muito agres-
sivo, sendo capaz de chegar a cometer uma
morte premeditada. Assim, Jane Goodall,

PRIMAVERA 2014 · O ROSACRUZ


47
n ECOLOGIA

primatologista célebre mundialmente, fez Foi observado que, muitas vezes, gazelas se
nos anos 1980 a seguinte observação, que ela amontoavam, arriscando suas próprias vidas,
hesitou em tornar pública, tamanha a pertur- parecendo fascinadas em contemplar um
bação que ela lhe provocou: leão devorando uma de sua espécie.
Todavia, a percepção da morte como mu-
Chimpanzés patrulhavam e velavam cio- dança de estado existe entre muitos animais,
samente pelo território de sua colônia. Um e especificamos mais uma vez que isso não
dia, um casal de chimpanzés estranhos ocorre unicamente entre os mais evoluídos.
à comunidade, tendo penetrado na zona As formigas, por exemplo, possuem no formi-
proibida, foi violentamente agredido. A gueiro uma câmara especial na qual deposi-
fêmea conseguiu escapar, refugiando-se no tam os cadáveres de suas congêneres. Não há
alto de uma árvore. O macho foi morto sem cultos observáveis, mas qual seria portanto o
cerimônias. Esta foi a primeira vez em que interesse evolutivo de se conservar os cadá-
o homem constatou no meio animal uma veres? Por que não se livrar deles no exterior
“deformidade” das especificidades “huma- do formigueiro? Os elefantes acompanham
nas”: o assassinato. E para perfazer a situa- seus mortos e conhecem um ritual fúnebre
ção, atraído pelo ruído do tumulto, o macho particularmente emocionante. Os macacos
dominante, vendo a fêmea, manifestou-se também fazem rituais e cobrem o corpo com
ruidosamente. Esta, descendo da árvore, fez galhos. As baleias ajudam até o último suspiro
o gesto de amizade e de submissão e ten- as suas congêneres no fim da vida e as man-
tou um abraço de reconciliação. O macho têm na superfície. Destacamos assim a grande
dominante se afastou violentamente dela e, emoção sentida pelos animais sabendo da
tomando uma folha de árvore, raspou pre- morte de seu mestre, indo até a tumba e por
cisamente o local em que havia sido tocado vezes mesmo deixando-se morrer também.
pela fêmea desconhecida… Uma primeira Tratamos até esse momento da morte do
forma de hostilidade? A fêmea porém, após outro. Mas poderia o animal ser consciente
diversas tentativas, foi finalmente admitida de sua própria morte? Para responder essa
no clã e não foi morta. Quando a consciên- pergunta seria necessário que penetrássemos
cia se afina, como no caso dos macacos, a a mente de um animal. Isso é materialmente
escolha se impõe a nós. impossível, contudo através da linguagem
isso poderia ser concebível. No momento, os
Terminaremos esse estudo com a consci- únicos animais capazes de se comunicar com
ência da morte entre os animais e o possível
nascimento do sagrado entre eles. Por muito
tempo também, e porque o homem honra
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seus mortos por meio de rituais fúnebres,


pensou-se que o homem era capaz de perce-
ber essa mudança de estado que é a morte.
Mais uma vez a observação atenta dos ani-
mais revelou o contrário. Quais são as razões
que levam uma gazela a fugir de um leão?
Seria simplesmente instintivo ou porque ela
seria capaz de pressentir sua morte iminente?
De fato, é difícil responder essa pergunta.

48 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


o homem por meio de uma linguagem co-
mum, a linguagem americana de sinais, são
os grandes símios. O caso que nos interessa
aqui é o de Koko, um gorila apaixonado por
gatos ao qual foi ensinada a linguagem dos
sinais. Eis o que Koko respondeu quando lhe
fizeram perguntas sobre a morte:

Pergunta: “Para onde vão os gorilas quando


morrem?”
Koko: – “Confortável – buraco – adeus”.
P.: “Quando morrem os gorilas?”
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Koko: – “Preocupações – velhos”.
P.: “Como os gorilas se sentem quando
morrem? Felizes, tristes, amedrontados?”
Koko: – “Dormir”.

Este não é o único caso espontâneo conhe- Essa proximidade emocional partilhada
cido que possa deixar presumir a consciência com os animais nos conduz irremediavel-
da morte num animal: é também conhecido mente à questão do sagrado. É bastante
agora o do gorila-de-dorso-prateado Michael, extraordinário ver que certos animais, como
órfão que foi criado com Koko. Perguntado os ursos por exemplo, ou os grandes símios,
sobre sua mãe, ele evocou a lembrança que permanecem por horas diante de um pôr-
tinha do seu massacre por caçadores na flo- -do-sol ou de uma belíssima paisagem,
resta africana quando era bebê, explicando: igualmente hipnotizante para o homem.
“desordem-[para]-carne-gorila, fazer careta- Esses animais possuiriam uma noção de
-batalha, gritar-de-dor, tumulto-ruidoso, estética? Essa contemplação produziria na
terror-mágoa-enfrentar-fazendo careta, cortar- consciência animal uma intensa emoção de
-o-pescoço, boca-mãe-[ficar]-aberta” (tradução beleza? Esse breve momento de harmonia
aproximada da ASL – Linguagem Americana exterior convocaria a harmonia da consci-
de Sinais). Relata-se por outro lado que quan- ência interior a se manifestar?
do os caçadores africanos penetram uma flo- Muitos pontos diferentes foram aborda-
resta e se deparam com uma mãe chimpanzé dos nesse texto, porém há outros que merece-
com seu filhote, caso o homem esteja armado, riam ser ditos ou salientados. Muitos de nós
ela coloca espontaneamente o pequeno à sua certamente vivenciamos momentos intensos
frente: estaria ela consciente do perigo de sua com os animais e deles temos compreensões
morte e, caso estivesse, esperaria a compaixão distintas. Cada qual é livre para formar suas
do caçador? Se for este efetivamente o caso, opiniões a esse respeito. 4
então as emoções que ela evoca são as mes-
mas no chimpanzé e no homem. Tradução: Raul Passos, FRC

“Olha teu cão nos olhos e não poderás afirmar que ele não tem alma”.
– Victor Hugo

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49
n personalidade

A história de
Hermann Hesse
Por DAVID KARIUKI, FRC

“Hermann Hesse 2” autor desconhecido – [1] [2] Arquivo Nacional da


Holanda, Haia, Coleção Geral de Fotografias do Fotopersbureau Holandês
(ANEFO), 1945-1989. Sob licença de Creative Commons Attribution – Share
Alike 3.0 – nl via Wikimedia Commons – http://commons.wikimedia.org/
wiki/File:Hermann_Hesse_2.jpg#mediaviewer/File:Hermann_Hesse_2.jpg

50 O ROSACRUZ · PRIMAVERA 2014


Em 9 de agosto de 2012 comemorou-
se o 50° aniversário de morte do
A história
Viagem ao Oriente foi escrita a partir do
escritor suíço Hermann Hesse, ponto de vista de um homem, que no livro é
outrora ligado aos rosacruzes. Hesse chamado de ‘H. H.’, e que se torna membro
ganhou o Prêmio Nobel de Literatura da “Confraria”, uma seita religiosa intem-
poral cujos membros incluem personagens
em 1946. Esse artigo é sobre um de célebres reais e fictícios como Platão, Mozart,
seus livros: “Viagem ao Oriente”. Pitágoras, Paul Klee, Dom Quixote, Tristram
Shandy, Baudelaire e o barqueiro Vasudeva,

Q
personagem de um dos primeiros livros de
uem são aqueles que viajam Hesse – Sidarta. Uma ramificação do grupo
para o Oriente? Onde começa parte numa peregrinação ao “Oriente” em
sua jornada? Por que eles fa- busca da “Verdade”. O narrador fala de via-
zem essa viagem e qual o seu gem através do tempo e do espaço por uma
objetivo? Essas perguntas irão se impor ao geografia imaginária e real.
longo da leitura daquele livro. O próprio Embora num primeiro momento alegre e
Hesse disse que, entre outras coisas, ele trata esclarecedora, a Viagem entra em crise numa
do isolamento e da aflição sentidos por um profunda garganta de montanha chamada
espiritualista. É sobre a ânsia de servir e o Morbio Inferiore quando Leo, aparentemente
pertencimento a uma comunidade. Outro um simples servo, desaparece, fazendo com
motivo central é a busca árdua pela matu- que o grupo descambe em ansiedade e dis-
ridade moral e espiritual. O estudante rosa- cussão. Leo é descrito como sendo feliz, sim-
cruz encontrará temas familiares a si a partir pático, bonito, amado por todos e tendo uma
de sua própria jornada ao longo da senda. relação com os animais. Para um leitor escru-
Aqueles que já foram mais adiante na puloso, ele parece uma figura mais importan-
senda encontrarão similaridades entre a te do que um simples servo, porém ninguém
viagem ao Oriente do livro de Hesse e a na peregrinação, inclusive o narrador, parece
simbólica jornada interior encontrada no perceber isso. Tampouco ninguém parece se
Fama Fraternitatis, o primeiro dos diversos perguntar por que o grupo se dissolve em
Manifestos Rosacruzes que apareceram na discórdia e picuinhas após o desaparecimen-
Europa a partir de 1614. Hesse menciona a to de Leo. Ao contrário, eles acusam Leo
Terra Santa, Damasco, a África, a princesa de ter levado consigo diversos objetos que
Fatima e a tumba do Profeta, ao passo que aparentemente estão faltando, todos os quais
no Fama encontramos menções a Damasco reaparecendo mais tarde. Eles inicialmente
e à tumba do Frater C. R. Todavia, a própria consideram esses itens como muito impor-
história parece se desenrolar fora do tempo
e do espaço e é focada no empenho humano
por transformação espiritual.

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51
n personalidade

Alguns dos membros da “Confraria”, seita religiosa presente na obra de Hermann Hesse

tantes, embora depois se mostrem comple- exaltada carta de “ressentimentos, remorso e


tamente insignificantes. Leo é não obstante súplicas” e a envia para ele naquela noite.
acusado pela consequente desintegração do Na manhã seguinte, Leo aparece na
grupo e pelo fracasso da Viagem. casa do narrador e lhe conta que ele tem de
Anos mais tarde, o narrador tenta escre- comparecer diante do Alto Trono para ser
ver sua história da Viagem, ainda que tenha julgado pelos oficiais da Confraria. Revela-
perdido contato com o grupo e acredite que -se, para surpresa do narrador, que Leo, o
a Confraria não mais exista. Porém, ele é in- simples servo, é na verdade o Presidente da
capaz de formalizar qualquer relato coerente Confraria e que a crise em Morbio Inferiore
dela; sua vida toda naufragou em desespero era um teste de fé no qual o narrador e todos
e desilusão desde o fracasso daquilo que era os demais falharam mui miseravelmente. O
mais importante para ele, que chegou até narrador descobre que seu “desvio” e perda
mesmo a vender o violino com o qual pro- de tempo à deriva era parte de seu processo
porcionava música para o grupo durante a e que ele poderá retornar para a Confraria se
Viagem. Por fim, por conselho de um amigo, passar por qualquer novo teste de fé e obe-
ele procura e encontra o servo Leo. Tendo diência. O que ele escolhe e o desenlace final
falhado em sua tentativa de restabelecer co- são uma mostra do misticismo tipicamente
municação com ele ou mesmo ser reconhe- ocidental de Hesse em sua melhor forma.
cido por ele quando o encontra num banco A seguir, relatamos um excerto dessa bela e
de parque, ele escreve para Leo uma longa e comovente obra…

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Excerto de
Viagem ao Oriente1
Leo era um de nossos empregados (natural- tenda e sem o Chefe do Grupo. Minha narrati-
mente, voluntário como nós). Ajudava a car- va torna-se cada vez mais penosa porque não
regar as bagagens e muitas vezes ficava a ser- vagávamos somente através do espaço, mas
viço pessoal do Chefe do Grupo. Este homem também do tempo. Nosso destino era o Orien-
simples tinha algo de tão agradável e discre- te, mas também viajávamos para a Idade
tamente atraente que atraíra a estima geral. Média e para a Idade do Ouro; percorríamos
Cumpria suas obrigações com alegria conta- a Itália ou a Suíça, mas muitas vezes passá-
giante, quase sempre cantando ou assobiando, vamos a noite no século X, em companhia dos
e jamais era visto, exceto quando dele preci- patriarcas ou duendes. Nas ocasiões em que
sávamos – em suma, o servidor ideal. Além permaneci só, revi lugares e personagens de
do mais, exercia enorme atração sobre os ani- meu próprio passado. Vagava com minha an-
mais. Quase sempre fazíamo-nos acompanhar tiga noiva pelas margens da floresta do Reno
de um cão, que a nós se incorporava por causa Superior, farreava com meus companheiros de
de Leo. Era capaz de domesticar pássaros e juventude de Tubingen, em Basle ou Florença,
atrair borboletas sobre seu corpo. Seu objetivo ou então saía a caçar borboletas, a observar as
era encontrar a chave de Salomão, com a qual lontras em companhia dos colegas de escola,
seria capaz de compreender a linguagem dos ou vagava com meus personagens preferidos
pássaros e que o conduzira ao Oriente. Em dos livros que lera: Almansor e Parsifal, Witiko
contraste com determinados aspectos de nossa e Goldmund caminhavam a meu lado, ou en-
Confraria, que – sem desmerecer-lhe o valor tão era Sancho Pança, ou éramos convidados
e a sinceridade – eram um tanto exagerados, das Barmekides. Quando retomava o caminho
bizarros, pomposos e fantásticos, Leo parecia que me conduziria ao nosso agrupamento, em
tão simples e natural, tão saudável, enfim, um um vale qualquer, e ouvia as canções da Con-
amigo inteiramente desinteressado. fraria, acampando próximo à tenda dos guias,
A gritante disparidade de minhas lembran- percebia com clareza que a incursão em minha
ças pessoais torna minha narrativa extrema- infância e os passeios com Sancho pertenciam
mente difícil. Como já mencionei, às vezes inteiramente à jornada, pois nosso objetivo
caminhávamos em pequenos grupos; outras, não era unicamente o Oriente, ou melhor, o
formávamos uma tropa e até um exército, Oriente não era apenas um país ou um fato
mas em certas ocasiões eu permanecia em
determinadas localidades em companhia de
uns poucos amigos, e até mesmo sozinho, sem

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n personalidade

geográfico. Era também o lar e a juventude da Mágico de Stocklin; fomos hóspedes do Templo
alma. Estava em toda parte e em parte nenhu- Chinês, com seus vasos de incenso reluzindo
ma. Era o conjunto de todas as eras. Contudo, sob a Maja de bronze, onde o rei negro tocava
sentia-me assim por breves instantes, daí o docemente sua flauta no tom vibrante do gon-
motivo de minha enorme felicidade então. go do templo. Encontramos, no sopé das Mon-
Mais tarde, quando a perdi, compreendi cla- tanhas do Dol, Suon Mali, uma colônia do Rei
ramente tais ligações, sem delas tirar o menor do Sião, onde, por entre os Budas de pedra e
proveito ou satisfação. Quando perdemos algo bronze, oferecemos libações e incenso em agra-
precioso e irrecuperável, temos a sensação de decimento à hospedagem.
haver despertado de um sonho. E isto se deu, Uma das mais belas experiências ocor-
em meu caso, de maneira estranhamente pre- reu durante as celebrações da Confraria em
cisa, pois na verdade minha felicidade nasceu Bremgarten; o círculo de magia cercou-nos
do mesmo segredo da felicidade dos sonhos; então de maneira envolvente. Recebidos por
nasceu da liberdade de experimentar simul- Max e Tilli, os senhores do castelo, ouvimos
taneamente tudo que imaginava, viver no Othmar executando Mozart no grandioso
mundo interior e exterior, manipular Tempo e piano do imenso salão. Os jardins estavam
Espaço como os cenários de uma peça teatral. povoados de papagaios e outros pássaros
À medida que nós, membros da Confraria, falantes. A fada Armida cantava à beira da
percorríamos o mundo sem automóveis e na- fonte. Com os fartos cabelos anelados, a cabe-
vios, conquistando os países arrasados pela ça do astrólogo Longus inclinava-se ao lado
guerra com a nossa fé, transformando-os em da amada figura de Henry de Ofterdingen.
paraíso, transportávamos o passado, o futuro e Os pavões faziam-se ouvir no jardim e Luís
o irreal para o momento presente. conversava em espanhol com o Gato de Botas.
Encontrávamos com frequência, na Suábia, Hans Resom, agitado após espreitar no jogo
em Bodensee, na Suíça, por toda parte, pessoas de cabra-cega da vida, jurava fazer uma pere-
que nos compreendiam ou que, de certo modo, grinação ao túmulo de Carlos, o Grande. Este
sentiam-se gratas pela existência da Confra- foi um dos períodos de ouro de nossa viagem;
ria, de nós e de nossa Viagem ao Oriente. Por acompanhava-nos um fluxo de magia que
entre as linhas férreas e ladeiras de Zurique tudo purificava. Os habitantes ajoelhavam-
encontramos a Arca de Noé, guardada por -se para adorar a beleza e o senhor do castelo
velhos cães que atendiam todos pelo mesmo recitou um poema que narrava nossos feitos
nome e que foram conduzidos sobre as águas do dia precedente. Os animais da floresta
rasas de um calmo período por Hans C. até o rondavam o muro do castelo e peixes cintila-
descendente de Noé, o amigo das artes. Segui- vam nas águas do rio, em cardumes agitados,
mos para Winterthur, penetrando no Armário alimentando-se de bolos e vinho.

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O ponto culminante dessas experiências,
que merece realmente ser narrado, revestiu-se
de uma característica que revela seu espírito.
Talvez minha descrição pareça pobre e até
tola, mas todos os que festejaram os dias pas-
sados em Bremgarten confirmariam os meno-

© thinkstock.com
res detalhes e acrescentariam os seus, ainda
mais belos. Jamais esquecerei o brilho mortiço A Arca de Noé
da cauda dos pavões sob o luar, surgindo en-
tre as árvores altaneiras, nem as sereias que
emergiam cintilantes, com o corpo prateado,
nas margens sombrias, por entre as rochas. haver passado meses sob aquelas profundezas
Dom Quixote, de pé sob a castanheira ao lado cintilantes; contudo, ao subir à tona e nadar
da fonte, em sua primeira vigília noturna, para a margem, inteiramente revigorado,
enquanto as derradeiras velas romanas do ainda podia ouvir Pablo tocando o órgão no
espetáculo pirotécnico caíam suavemente sob jardim e a lua ainda brilhava alta no céu. Vi
as torres do castelo, e meu companheiro Pablo, Leo que brincava com dois poodles brancos, o
ornado de rosas, tocava o órgão persa para as rosto infantil irradiando felicidade. Encontrei
donzelas. Mas – ah! – quem poderia imaginar Longus sentado no bosque. Escrevia caracteres
que o círculo de magia seria rompido tão cedo? gregos e hebraicos em um livro que colocara
Que todos nós – e também eu, até eu – nos sobre os joelhos; das letras pareciam saltar
perderíamos nos insondáveis desertos da rea- dragões e serpentes coloridas. Ele não me fi-
lidade planejada, exatamente como os funcio- tou; continuou pintando, absorto na escrita
nários e ajudantes de lojas que, após uma festa serpeante. Permaneci longo tempo observando
ou um passeio dominical, voltam à rotina de o livro por sobre seus ombros curvados. Vi as
mais um dia de trabalho. serpentes e os dragões que nasciam de suas
Nenhum de nós abrigava tais pensamentos mãos turbilhonar e desaparecer em silêncio,
àquela época. O aroma dos lilases nas torres na direção do escuro bosque. – Longus, meu
do castelo de Bremgarten penetrava em meu prezado amigo! – murmurei. Mas ele não me
quarto. Podia ouvir o rio correndo por sob as ouviu, tão distante estava seu mundo do meu.
árvores. Saltei a janela e penetrei na noite, Um pouco além, sob as árvores iluminadas
embriagado de felicidade e ternura. Passei fur- pelo luar, Anselmo passeava com uma íris nas
tivamente pelo cavaleiro de guarda e os con- mãos; fitava, sorrindo, absorto em seus pensa-
vivas do banquete, alcançando a borda do rio mentos, o purpúreo cálice da flor.
com suas mansas águas, e as alvas e reluzentes Voltei a impressionar-me de maneira um
sereias. Fui por elas transportado à sua fria, tanto dolorosa com um fato que observara di-
enluarada e cristalina morada, onde brinca-
vam languidamente com coroas e correntes
douradas de seu tesouro. Tive a sensação de

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n personalidade

versas vezes durante a viagem, sem que pudes- amamentá-los e torná-los belos e fortes, elas
se refletir profundamente a respeito, nos dias próprias passam à insignificância e ninguém
que passamos em Bremgarten. Havia entre mais por elas se inquieta.
nós muitos artistas, pintores, músicos e poetas. – Mas isto é muito triste – disse eu, sem
O ardente Klingsor, o irrequieto Hugo Wolf, refletir profundamente sobre o fato.
o taciturno Lauscher e o alegre Brentano lá – Não creio que seja mais triste que tudo o
estavam – mas, apesar de pessoas agradáveis mais – retrucou Leo. – Talvez seja triste e ao
e entusiasmadas, notei que, sem exceção, seus mesmo tempo belo. A lei assim o determina.
personagens imaginários eram mais vivazes, – A lei? – indaguei, curioso. – De que lei
belos, felizes e por certo mais perfeitos e reais está falando, Leo?
do que os poetas e seus próprios criadores. – A lei de servir. Quem desejar viver muito
Pablo irradiava inocência e contentamento deve servir, mas aquele que desejar governar
com sua flauta, mas seu poeta desvaneceu-se não viverá por longo tempo.
como uma sombra na direção do rio, quase – Então por que tantas pessoas lutam para
transparente sob o luar, buscando a solidão. governar?
Hoffman, cambaleante em virtude da bebida, – É que elas não compreendem. São poucos
corria por entre os convidados, falando muito, os que nascem para governar: estes vivem
com sua figura pequena e travessa, também sempre felizes e saudáveis. Todos os demais
me parecendo, como os demais, um tanto irre- que se tornam senhores através do esforço
al, quase ausente, como se não fosse palpável morrem sem nada.
e verdadeiro. O arquivista Lindhorst, simu- – Como nada, Leo?
lando uma luta com os dragões, lançava fogo – Em um hospital, por exemplo.
pelas narinas, como uma máquina a vapor. Não consegui compreendê-lo muito bem,
Indaguei a Leo, o criado, por que os artistas mas suas palavras ficaram-me na lembrança
geralmente pareciam semi-existir, ao passo e me fizeram julgar que Leo sabia todas as
que suas obras permaneciam tão incontesta- coisas, talvez mais do que nós, ostensivamente
velmente vivas. Leo fitou-me com surpresa, seus senhores.4
Deixou então escapar-lhe das mãos o cãozinho
Nota: 1. Excerto extraído de HESSE, Hermann – Viagem ao
com que brincava e respondeu: – Acontece o Oriente; tradução de Leda Maria Gonçalves Maia. 4ª edição.
mesmo com as mães. Ao gerarem os filhos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977.

“Você sabe muito bem, lá dentro de si, que existe apenas uma única magia,
um único poder e uma única salvação, e que se chama Amor”
– Herman Hesse

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Tradicional Ordem M artinista
Esoterismo - A Tríade Mística
“Onde quer que estejas, não te detenhas. É preciso que vás
incessantemente de Luz em Luz.” – S.I.
O esoterismo se caracteriza igualmente por três manifestações: o Sigilo, a transmissão de uma Tradi-
ção Primordial e a Iniciação. O Sigilo pode ser abordado de muitas maneiras diferentes. Em primeiro
lugar, o Sigilo mostra-se necessário para garantir a proteção dos ensinamentos e rituais. Pode-se falar,
então, mais exatamente, de confidencialidade. Ele visa preservar a integridade e a eficácia dos ensi-
namentos, a fim de reservar seu acesso não só aos que o procuram, mas também aos que o merecem.
O Sigilo se refere também aos textos e rituais que exigem interpretações simbólicas e meditações no
oratório. Assim, todo esoterismo verdadeiro remete a um princípio original que o Iniciado deve
decodificar para dar um sentido à sua vida. Para o Iniciado Martinista, essa história original deno-
mina-se Gênese, cujo sentido hierático ele deve penetrar à luz do Evangelho de João, que preserva ao
seu lado no altar, da Cabala e dos escritos de nossos Mestres Jacob Boehme, Martinès de Pasqually e
Louis-Claude de Saint-Martin. O sigilo é, em suma, o interior oculto das coisas, que o ser humano,
em sua busca de unidade, deve buscar e descobrir por si mesmo.
Segunda manifestação do esoterismo: a transmissão da Tradição Primordial. Desde sua primeira
Iniciação, o candidato se vê ligado à Tradição, à Luz original, fonte de todas as outras luzes.
A essa Tradição imemorial, única e transcendente, transmitida de Mestre a discípulo através das
eras, o Martinismo chama de “Luz Eterna da Sabedoria Divina”. Trata-se de um conhecimento não
-racional, intuitivo, pre­sente em todo ser humano, mas que deve ser despertado pela filiação espiritual
e pela iniciação. É uma herança cósmica que as ordens Iniciáticas autênticas receberam e têm a missão
de transmitir. Essas ordens autênticas estão em seu centro invisível, fora do tempo e unidas ao princí-
pio original que lhes dá força, vida e perenidade.
Última manifestação de todo esoterismo: a INICIAÇÃO. Na verdade, é a Iniciação que assegura a
transmissão da Tradição.
O verdadeiro buscador saberá então reconhecer onde encontrar a fonte. Ele estará de mãos vazias
e com o coração aberto. “Se eu desejo falar a DEUS, devo então aceitar a Paz”.
Neste sentido, a nossa busca pelos conhecimentos superiores está pautada em três atitudes básicas:
a ética, a cientí­fica e a místico-filosófica.
Portanto, amado buscador, seja prudente em sua busca. O seu primeiro compromisso é consigo mesmo.
Amados Irmãos, somos guardiães da Fé, da Esperança e do Amor. Obreiros da Tradição, Arautos
da Boa Nova: “Divino Mestre, o Teu sacrifício não foi em vão”.

S.I.
Fonte: Revista “O Pantáculo”, ano XI, nº 11 – edição 2003.
A
humanidade recebe de tempos em tempos personalidades-alma
que são “divisoras de águas”, ou seja, o mundo é um antes delas e
outro após elas.
Como verdadeiros mensageiros de Luz a serviço da humanidade, esses
seres receberam do Cósmico a missão de causar uma forte influência na
sociedade em que estavam inseridos, recebendo postumamente o reconhe-
cimento de sua visão, liderança e iluminação que abrangeram todo o nosso
mundo. Vieram para mudar, romper paradigmas e deixar os seus pensa-
mentos, palavras e ações como exemplos de seres humanos especiais.
Esta capa da revista “O Rosacruz” é dedicada a estes Seres de Luz
que, como Mestres, nos ensinaram o Sentido da Vida.

Helena Petrovna Blavatsky nasceu


em 31 de julho de 1831 em Ekaterinoslav, Rússia. Desde pequena
demonstrou capacidades psíquicas espantosas, que a tornaram muito
conhecida em seu país. Aos 17 anos “foi casada” com um velho
general russo, que logo abandonou para, sozinha, viajar o mundo.
Foi quando começou sua fascinante história.
Durante mais de 20 anos Blavatsky cruzou sozinha inúmeros países, vivendo insólitas experiências e
aprendendo muito. Foi em 1851, em Londres, no meio de suas viagens preparatórias, que Blavatsky, aos 20
anos, encontrou fisicamente o seu Mestre, o qual via psiquicamente desde criança e cujos olhos impactantes
sempre a impressionaram. O Mestre, conhecido como Mahatma Morya-El, a comissionou para o que seria a
missão de sua vida e intensificou o seu preparo oculto. Blavatsky foi a primeira mulher ocidental a penetrar no
Tibet e foi lá que recebeu a parte mais importante de seu treinamento, sendo iniciada nos Templos da Grande
Loja Branca e contatando outros Mestres, entre eles Kut-Hu-Mi, associado do Mestre Morya na missão que lhe
atribuíram. Os Mestres “M.” e “K.H.” tornaram-se seus Instrutores principais.
Como consequência, em 1875, em companhia do norte-americano Henry Stell Olcott e do irlandês William
Q. Judge, Helena Blavatsky fundou a Sociedade Teosófica, destinada a desvendar o conteúdo esotérico das religi-
ões e mostrar sua reciprocidade, bem como estudar algo dos mistérios da vida e do homem. A partir daí escre-
veu os monumentais livros “Isis Sem Véu”, “A Doutrina Secreta” e muitos outros, que a celebrizaram no mundo.
Dotada de extraordinários poderes psíquicos e personalidade imponente, Blavatsky fascinava todos os que
a conheciam, mesmo inimigos, pela sua personalidade magnética e conhecimento magistral. Não obstante,
foi martirizada implacavelmente pelas instâncias religiosas e científicas de sua época, cujos dogmas combateu.
Blavatsky faleceu em 8 de maio de 1891, em Londres.
Testemunhas contam que Blavatsky por vezes se apresentava portando uma magnífica Rosa+Cruz no
pescoço, fato confirmado décadas mais tarde pelo Dr. H. Spencer Lewis, Imperator da AMORC, que revelou um
pouco mais da verdadeira missão dessa mulher extraordinária, que foi rosacruz e é conhecida como “a grande
dama do esoterismo universal.”

“Há um caminho, íngreme e espinhoso, envolto em perigos de toda espécie, mas ainda assim um
caminho, e que leva ao próprio coração do Universo. Para aqueles que prosseguem vitoriosos há
uma recompensa indescritível – o poder de abençoar e salvar a humanidade; para aqueles que
falham, há outras vidas na quais o sucesso pode vir.”
– H. P. Blavatsky

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