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1 - O Processo Saúde-Doença E A Dependência Química:

Interfaces E Evolução
A dependência química na atualidade corresponde a um fenômeno amplamente divulgado e discutido,
uma vez que o uso abusivo de substâncias psicoativas tornou-se um grave problema social e de
saúde pública em nossa realidade. Entretanto, falar sobre o uso de drogas, particularmente sobre a
dependência química, traz à tona questões relacionadas diretamente ao campo da saúde, o que
implica na necessidade de realizar uma reflexão sobre esse fenômeno no âmbito das concepções
sobre saúde e doença, vigentes ao longo da história do homem, bem como no momento atual. Isso
porque temas como saúde, doença e drogas sempre estiveram presentes ao longo da história da
humanidade, embora cada período apresente uma maneira particular de encarar e lidar com esses
fenômenos, de acordo com os conhecimentos e interesses de cada época.
No que diz respeito ao uso de substâncias psicoativas, ao contrário do que se pensa, esse não é um
evento novo no repertório humano (Toscano Jr., 2001), e sim uma prática milenar e universal, não
sendo, portanto, um fenômeno exclusivo da época em que vivemos. Pode-se dizer, então, que a
história da dependência de drogas se confunde com a própria história da humanidade (Carranza &
Pedrão, 2005), ou seja, o consumo de drogas sempre existiu ao longo dos tempos, desde as épocas
mais antigas e em todas as culturas e religiões, com finalidades específicas.
Isso porque, o homem sempre buscou, através dos tempos, maneiras de aumentar o seu prazer e
diminuir o seu sofrimento (Martins & Corrêa, 2004). Entretanto, é importante pontuar que os hábitos e
costumes de cada sociedade é que direcionavam o uso de drogas em cerimônias coletivas, rituais e
festas, sendo que, geralmente, esse consumo estava restrito a pequenos grupos, fato esse que
apresentou grande alteração no momento atual, pois hoje se verifica o uso dessas substâncias em
qualquer circunstância e por pessoas de diferentes grupos e realidades.
Por outro lado, em relação à saúde e à doença, estas também despertaram a atenção do homem
desde a Antiguidade, uma vez que estão diretamente relacionadas a questões que fazem parte da
condição humana, como é o caso da reflexão sobre a vida e a morte, o prazer e a dor, sofrimento e o
alívio, trazendo à tona, a inerente fragilidade do homem. Analisando a evolução histórica do ser
humano é possível verificar que cada época apresenta uma maneira particular de lidar com esses
elementos, ou seja, com a saúde e a doença.
No caso das doenças, é possível notar que as concepções que se apresentaram ao longo da história
caminharam do sobrenatural para o natural e, consequentemente, para o social (Ornellas, 1999). Ao
longo dos tempos nota-se uma mudança de foco no que se refere à compreensão e valorização
destes eixos (saúde - doença), partindo de um paradigma que tem por finalidade a manutenção da
saúde até chegar a um novo paradigma que apresenta como centro a questão da doença.
Esse último permaneceu durante muito tempo como modelo adequado para compreender questões
referentes à saúde e à doença, e hoje passa por um período de crise. Assim, tomando-se por base o
referencial acima mencionado, o presente estudo visa mostrar os alicerces teóricos conceituais de
três eixos saúde, doença e uso de substâncias psicoativas e suas interseções, de forma a ativar e
manter uma reflexão crítica das ideias e valores relacionados aos mesmos. Para tanto, três objetivos
específicos permeiam esta reflexão.
São Eles:
(a) discutir as mudanças nas concepções sobre saúde e doença e suas implicações no que se refere
ao uso de substâncias psicoativas, considerando-se os principais momentos históricos;
(b) refletir sobre as influências do modelo biomédico, hegemônico na área da saúde, na discussão e
no atendimento dispensado ao usuário de drogas a partir do século XX;
(c) abordar a questão da dependência química e do tratamento da mesma, tendo por base o modelo
de produção social da saúde, enfatizando a importância da promoção e da prevenção nesse contexto.
2 - O Processo Saúde-Doença E O Uso De Drogas: Uma
Visão Histórica

Discutir questões ligadas aos conceitos, à compreensão e à elaboração de modos de encarar a


saúde, a doença e os cuidados, ao longo do contexto histórico, coloca em evidência “a questão da
evolução histórica da [própria] prática médica como instituição que detém a legitimidade hegemônica
do domínio desse cuidado e dos saberes relativos à doença e à saúde” (Ornellas, 1999, p. 20). Assim,
seguindo os trâmites da história em seus principais momentos, é necessário começar a falar sobre
saúde e doença retomando reflexões e conhecimentos que foram produzidos na Antiguidade.
Segundo Sevalho (1993), as primeiras representações de saúde e doença estavam ligadas a uma
questão mágica, como no caso das concepções dos antigos povos da Mesopotâmia, uma vez que
para eles as doenças eram provocadas por influências de entidades sobrenaturais, com as quais o
ser humano não podia competir. Posteriormente, a doença passou a ser explicada no âmbito das
crenças religiosas, sendo, portanto, determinação dos deuses. Essa visão começou a mudar a partir
dos conhecimentos desenvolvidos pelos egípcios, os quais evidenciaram uma naturalização das
doenças, aliada às crenças sobrenaturais, religiosas e mágicas que os mesmos possuíam.
Os gregos, um povo considerado avançado para seu momento histórico e que apresentava uma
característica particular, a preocupação em compreender a natureza do homem, produziram um rico
conhecimento mitológico e filosófico, os quais embasaram as explicações sobre saúde e doença
nessa época. Assim, em um primeiro momento, as explicações para as doenças entre os gregos
tinham uma fundamentação religiosa.
Nesse período, existia no ideário popular a concepção de que o sobrenatural (no caso, os deuses) era
responsável pela manifestação das doenças, ou seja, existia a ideia de sacralização das doenças,
uma vez que o homem tinha por costume curvar-se às divindades e se submeter aos mais diversos
tipos de sacrifícios com a finalidade de livrar-se de alguma enfermidade, do castigo e das impurezas
(Toscano Jr., 2001). Essa visão sofreu mudanças a partir das ideias de Hipócrates, o qual foi o
primeiro a formular um conceito de causas naturais para os eventos presentes em nosso mundo
(Sevalho, 1993).
Segundo sua concepção, o homem era constituído de quatro humores corporais sendo estes o
sangue, a bílis amarela, a bílis negra e a fleuma, os quais eram oriundos de quatro qualidades
específicas da natureza: calor, frio, umidade e aridez. Dentro dessa visão, a saúde resultaria da
harmonia, do equilíbrio entre esses quatro humores e, por outro lado, a doença teria origem no
excesso ou na escassez de um deles ou na falta de mistura dos mesmos no organismo, sendo a cura
ligada à busca do equilíbrio (Cairus & Ribeiro, 2005). Assim, a medicina de Hipócrates apresentava
uma preocupação clara com a doença individual e com a forma de curá-la, bem como com a
manutenção da saúde.
Além disso, a emergência da escola hipocrática, considerando a doença e a cura como resultados de
processos naturais (MacRae, 2001; Toscano Jr., 2001), levou a nova medicina a receitar o pharmakón
(palavra que significa remédio ou veneno) para o tratamento das enfermidades em busca da cura
(Toscano Jr., 2001). Assim, para os gregos, que empregavam vários tipos de drogas, a ação dessas
era vista de maneira relativa, pois uma determinada substância poderia ser utilizada,
simultaneamente, como remédio ou veneno, dependendo de sua dosagem. Isso porque era essa
dosagem que determinava o efeito curativo de uma determinada substância utilizada e o
envenenamento provocado pela mesma (MacRae, 2001; Toscano Jr., 2001).
Os romanos, que sofreram grandes influências dos gregos, também compartilhavam dessa posição,
encarando as drogas como basicamente neutras, isto é, seus efeitos, sejam estes positivos ou
negativos, dependiam da dosagem e da maneira de uso das mesmas (MacRae, 2001; Toscano Jr.,
2001). No final da Antiguidade e durante toda a Idade Média (século V ao XV) retoma-se a concepção
de doença como algo sagrado, provocado pelo sobrenatural, embora a mesma também continuasse
sendo encarada como a manifestação de alterações globais do organismo na sua relação com o meio
físico e social (Queiroz, 1986). Pode-se dizer, assim, que até esse momento, de uma forma ou de
outra, a maioria dos terapeutas levava em consideração a interação corpo e alma, buscando tratar
seus pacientes a partir do meio social e espiritual no qual os mesmos se encontravam (Capra, 1982).
Nesse período, os hospitais criados no Ocidente eram caracterizados como casas de assistências e
abrigos, bem como funcionavam como instrumentos de exclusão ao isolar os doentes do restante da
população (Sevalho, 1993). Em relação ao uso de drogas, durante a Idade Média, é necessário
pontuar que a Igreja Católica, que possuía um grande poder nesse período, tanto em termos
religiosos quanto em termos econômicos e sociais, passou a condenar o uso das plantas
consideradas como “diabólicas”, as quais eram vistas como sinônimo de feitiçaria (Toscano Jr., 2001).
Essas plantas passaram a ser estigmatizadas, gerando perseguições tão intensas que, no século X, o
emprego de drogas para fins terapêuticos tornou-se sinônimo de heresia, uma vez que o sofrimento
era concebido como uma maneira de aproximação a Deus (MacRae, 2001). É importante esclarecer
que durante a Idade Média a única droga permitida pelo Cristianismo era o álcool, mais precisamente
o vinho, o qual até hoje é considerado um elemento relevante dentro dessa religião, uma vez que
simboliza o sangue de Jesus Cristo (Toscano Jr., 2001).
O uso de qualquer outro tipo de droga, como unguentos e poções, era condenado pela Igreja Católica
e os indivíduos que os utilizavam eram punidos com torturas e morte pelos tribunais da Inquisição
(MacRae, 2001). Apesar dessas restrições e das perseguições constantes realizadas pela Igreja
Católica, a Idade Média conseguiu acumular “todo um saber herbário, alquímico e secreto, bem como
de uma prática popular sobre as plantas” (Toscano Jr., 2001).
No final da Idade Média, a Europa é assolada pela peste negra peste bubônica, que provocou uma
grande mudança na realidade da época, evidenciando o medo do sofrimento e da morte. Nesse
período, o pensamento da morte tornou-se evidente. Os princípios da medicina galênica não
conseguiram dar conta dessa nova vivência, o que levou Sydenhan a apoiar-se nas obras dos
empiristas, “especialmente Bacon e Locke, e [iniciar] um novo modo de conceber a doença, através
de dois elementos importantes: o empirismo clínico, que se apóia na observação, e uma nova
classificação das doenças, agudas e crônicas, ainda hoje utilizada” (Ornellas, 1999, p. 20).
A partir desse momento, essa nova forma de conceber a doença, associada a um conjunto de outros
fatores da época, levou à emergência de um novo olhar sobre a questão da saúde e doença e da
relação entre as mesmas, bem como no que diz respeito ao uso de drogas. Desta forma, com o
Renascimento final do século XV ao início do XVI, que levou à queda gradativa do poder e da
influência exercidos pela Igreja Católica em todos os âmbitos da sociedade, é possível notar grandes
transformações na realidade da época.
Por exemplo, a possibilidade de um contato mais íntimo com as culturas orientais, em que antigos
conhecimentos farmacológicos haviam sobrevivido melhor, possibilitou uma retomada gradual do uso
de drogas (MacRae, 2001). Por outro lado, nesse período ocorreu um grande avanço científico,
evidenciando-se a necessidade de laicização do saber, o que levou ao nascimento da ciência
moderna. A ciência, que durante toda a Idade Média, sofreu um processo de estagnação, retomou
aqui seu papel, com uma nova roupagem. A ciência moderna passou a exigir a sistematização do
conhecimento, seguindo para isso normas e regras específicas para a produção do mesmo, o que fez
com que a observação, a descrição e a classificação delimitassem o paradigma da mesma. Com isso,
as ideias da experiência e da intervenção incorporaram-se ao pensamento moderno (Ornellas, 1999).
Frente a esse contexto, a partir do século XVII, a evolução da medicina acompanhou de perto o
desenvolvimento ocorrido na ciência, principalmente na biologia, a qual apresentava uma concepção
mecanicista da vida, concepção esta que passou a dominar, consequentemente, a atuação dos
médicos em relação à saúde e à doença (Capra, 1982). Tomando como base esse paradigma,
Descartes (século XVII) desenvolveu o conceito de dualismo mente e corpo, passando a encarar o
corpo como uma máquina, o qual poderia ser explorado e estudado (paradigma mecanicista).
Essa visão quebrou a concepção predominante na Idade Média, do corpo como algo sagrado e
inviolável, por ser considerado o “depósito” da alma. Consequentemente, essa visão criou uma
concepção de doença como um mau funcionamento das “peças” da máquina humana, o qual poderia
ser reparado por meio de uma intervenção específica da medicina, desde que esta desenvolvesse
conhecimentos pontuais das leis que regem o funcionamento dessa máquina (Ornellas, 1999;
Sevalho, 1993), e uma concepção de morte como a paralisação total da mesma (Capra, 1982).
A função do médico, a partir de então, seria a de intervir “física ou quimicamente, para consertar o
defeito no funcionamento de um mecanismo enguiçado” (Capra, 1982, p. 116), ou seja, como um bom
mecânico, devendo, portanto, reparar o que não estava adequado. Nota-se, assim, uma mudança
epistemológica na medicina, a qual passou de uma arte de curar os indivíduos, portanto, uma prática,
para uma disciplina das doenças (o saber componente da prática é organizado e sistematizado
segundo determinados padrões) (Ornellas, 1999).
Além disso, a divisão entre corpo e mente, proposta por Descartes, levou os médicos a direcionarem
sua atenção para a máquina corporal, para o biológico, deixando de lado aspectos psicológicos,
sociais e ambientais da doença (Capra, 1982), o que demonstra uma visão reducionista da doença.
Teve início, assim, o modelo biomédico, que se constituiu no alicerce conceitual da moderna medicina
científica, permanecendo na área da saúde aproximadamente quatro séculos após Descartes. No
âmbito dessa nova concepção, ganha força a interpretação do sinal físico, ou seja, do sintoma, sendo
desenvolvido todo um sistema de classificação das doenças de uma forma ordenada e sistematizada.
A doença passou a ser identificada a partir de uma realidade concreta e começou a ser localizada no
corpo, sendo evidenciada a partir da lesão anatômica. Buscava-se, portanto, a relação entre lesão e
sintomas dentro de uma perspectiva anatomopatológica (Capra, 1982; Ornellas, 1999). Procurava-se,
no doente ou no laboratório, evidências que apontassem para uma patologia específica, ocorrendo
uma objetivação do corpo, o qual se tornou interessante por ser a sede das doenças, e por outro lado,
uma objetivação das próprias doenças, que se transformaram em entidades patológicas a serem
exploradas e compreendidas (Ornellas, 1999).
Dentro desse contexto, a teoria da medicina assumiu a concepção biológica da doença, passando a
ser a teoria das doenças. A saúde, a partir desse foco, passou a ser encarada como a ausência de
doenças e o processo de cura, como a eliminação dos sintomas evidenciados. Assim, o médico, em
sua atuação, era dotado de cada vez mais poder e controle sobre a questão da doença e o seu
tratamento, uma vez que passou a ter um saber e uma prática socialmente valorizados. Segundo
Queiroz (1986) a partir da Revolução Industrial (século XVIII), identificou-se uma “ruptura fundamental
entre saúde e medicina, com uma hegemonia flagrante desta última.
Esta ruptura veio acompanhada da [cisão] entre corpo e mente, eu e outro, pessoa e contexto,
relações econômicas e comunitárias dentro de um mundo em intenso processo de burocratização e
desencanto” (p.311). Destaca-se, ainda, que nas discussões sobre essa questão, os graves
problemas sociais do início do capitalismo industrial (jornada de trabalho, urbanização, pobreza etc)
em nenhum momento eram relacionados aos problemas de saúde vivenciados na época (Sevalho,
1993). No que diz respeito ao uso de drogas, no decorrer do século XVIII, ocorreu uma diminuição na
perseguição aos indivíduos considerados hereges, fato que propiciou uma volta do uso médico e
lúdico das drogas (MacRae, 2001), ou seja, os próprios avanços científicos começaram a apontar a
necessidade de se explorar a questão medicamentosa quando se discute a questão da doença dentro
dos parâmetros em voga.
No início do século XIX desenvolveu-se a filosofia positiva, a qual teve um impacto direto no que diz
respeito ao método científico ao ressaltar que todo e qualquer fenômeno deve ser explicado de uma
forma objetiva, experimental. Nesse sentido, segundo Ornellas (1999), todo conhecimento produzido
deve ser submetido ao que o Positivismo denominava de princípio da neutralidade do sujeito. Esse
princípio levou a uma nova concepção de saúde e doença, uma vez que a medicina incorporou o
conceito de função, desenvolvendo, a partir desse, a visão de saúde como um processo.
Também no início desse mesmo século, cientistas conseguiram isolar os princípios psicoativos de
inúmeras plantas, passando a produzir determinados fármacos como a morfina, a codeína, a cafeína,
a cocaína, os barbitúricos entre outros (MacRae, 2001; Toscano Jr., 2001). MacRae acrescenta,
ainda, que foi desenvolvido também nesse período, o uso anestésico do éter, do clorofórmio e do
óxido nitroso. Destaca-se, ainda, que no século XIX houve o surgimento da Psiquiatria, a qual foi
considerada como um ramo secundário no âmbito da medicina.
A Psiquiatria incorporou o modelo biomédico vigente, procurando discutir a questão dos problemas
mentais a partir da descoberta de causas orgânicas, ou seja, da busca da lesão, no caso, da lesão
cerebral (Capra, 1982). O tratamento oferecido, na primeira metade do século XX, era advindo desse
modelo com ênfase no biológico. Como a Psiquiatria seguiu a visão positivista predominante na
época, a mesma contribuiu para encobrir valores e poderes presentes nesse cenário, como o caso da
exclusão e morte social, uma vez que o paciente era retirado do convívio social e encarcerado,
perdendo muitas vezes seus vínculos e sua própria identidade. Houve uma eclosão de hospitais
psiquiátricos nesse período.
Os mesmos atendiam os mais diversos tipos de problemática relacionados ao campo da saúde
mental ou de pessoas que deveriam ser retiradas do convívio social, segundo os interesses vigentes
na época (mendigos, leprosos, tuberculosos, portadores de sífilis, usuários de drogas etc). Assim, a
partir do século XIX a moderna medicina científica passou a apresentar um grande avanço, que teve
início a partir dos grandes progressos efetuados na biologia. Dentre esses, pode-se mencionar o
rápido desenvolvimento na compreensão dos processos fisiológicos, levando médicos e biólogos a se
preocuparem com entidades cada vez menores, como por exemplo, aquelas de interesse da biologia
celular e da teoria microbiana da doença (Capra, 1982).
Esses conhecimentos deram à medicina um status diferenciado, conferindo-lhe um poder específico
para controlar as doenças e uma visão individualista em relação ao objeto da saúde, ou seja, o foco
de interesse passou a ser cada vez mais o indivíduo e não a população (Queiroz, 1986). Segundo
Capra (1982), os grandes avanços da biologia durante o século XIX foram acompanhados pela
grande evolução na tecnologia médica. Por outro lado, os conhecimentos produzidos no século XIX
foram aplicados de maneira diferenciada no século XX, gerando o desenvolvimento de uma série de
medicamentos e vacinas para o combate de doenças infecciosas, e descobertas importantes como a
penicilina em 1928 e a produção de medicamentos psicoativos a partir da década de 50.
Esse desenvolvimento tecnológico e científico embasado no modo de produção capitalista vigente no
final do século XIX pode ser caracterizado como um dos pontos que contribuíram para a tendência à
especialização médica, que teve seu apogeu no século XX. Nesse século, a visão reducionista
permaneceu na ciência biomédica, atingindo direta ou indiretamente todas as profissões da área de
saúde e orientando a formação e atuação das mesmas.
2 - Entre A Cervejinha E O Alcoolismo

O álcool é uma droga legalizada e seu consumo não só é aceito pela sociedade como incentivado por
intensa propaganda. Entretanto, é importante salientar que o uso pesado de bebidas alcoólicas é o
caminho mais curto para o alcoolismo. Calcula-se que 10 a 12% da população mundial é dependente
de álcool, o que caracteriza o uso abusivo de bebidas alcoólicas como um grave problema de saúde
pública em todo o mundo. No Brasil, o álcool é responsável por mais de 90% das internações por
dependência química, e está associado a mais da metade dos acidentes de trânsito, principal causa
de morte na faixa etária de 16 a 20 anos.
O álcool é, seguramente, a droga que mais danos traz à sociedade como um todo. Além disso, no
caso particular de adolescentes e jovens, o consumo de álcool também está diretamente relacionado
a doenças sexualmente transmissíveis, uso de outras drogas, abuso sexual, baixo desempenho
escolar, danos ao patrimônio, comportamento violento e confrontos entre gangues.
Quando ingressa na universidade, o jovem transpõe uma fase de sua vida, ”deixa de ser adolescente”
e inicia uma nova vida, “mais adulta”. Nesse momento, o contexto sociocultural pode funcionar como
reforçador para o consumo de bebidas alcoólicas, que representa um dos aspectos do mundo adulto.
Dessa maneira, o “calouro” universitário é estimulado, pelo grupo, a beber. A bebida assume um
caráter não só de integração, mas também de socialização desse estudante no universo acadêmico,
tido como formador do jovem para a vida adulta.
Além disso, fatores relacionados à dinâmica psíquica podem contribuir decisivamente para o consumo
de doses cada vez maiores de álcool pelos jovens universitários, como, por exemplo, dificuldades no
relacionamento com os pais e/ou relacionamentos afetivos, dificuldades financeiras etc. Assim, o uso
abusivo de álcool por adolescentes e adultos jovens constitui um sério problema de saúde pública
cuja prevenção, para ser efetiva, deve levar em consideração tanto fatores socioculturais quanto
aspectos da subjetividade do jovem. Por isso, o trabalho preventivo envolve não só a ação educativa,
mas implica também uma psicoprofilaxia, uma atitude clínica, no sentido mais amplo do termo.
Quando destinado a estudantes das áreas de saúde e educação, esse trabalho reveste-se ainda de
uma importância adicional. Nesse caso, os aspectos formativos são prioritários, uma vez que os
profissionais dessas áreas irão se deparar, no seu trabalho cotidiano, direta ou indiretamente, com
questões relacionadas ao uso/abuso de drogas. Em São Paulo, a USP e a UNESP vêm
desenvolvendo programas preventivos ao uso de álcool e outras drogas em seus campi. Por iniciativa
da Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), vem sendo desencadeada a Campanha Nacional
Antidrogas nas escolas superiores. Essa campanha tem o apoio técnico do Grupo Interdisciplinar de
Estudos de Álcool e Drogas (GREA) e é coordenada pelo Centro de Integração Empresa-Escola
(CIEE). Essas iniciativas indicam que a questão do uso de drogas por estudantes universitários
começa a ser percebida, em nível nacional, como relevante.
Alguns indicadores, como o grande número de bares instalados ao redor dos campi universitários, as
cervejadas patrocinadas por fabricantes de bebidas, o atendimento médico a jovens embriagados e a
presença de traficantes nas proximidades dos campi mostram que o uso abusivo de álcool e drogas
por universitários demanda um trabalho preventivo específico.
A Prevenção Ao Uso Abusivo De Álcool
O uso abusivo de álcool não começa na universidade, mas representa a continuidade e, por vezes, o
agravamento de um padrão de uso estabelecido anteriormente. A grande maioria dos jovens
abandona o hábito de beber pesadamente e supera os problemas relacionados ao álcool sem
assistência ou tratamento, porém, enquanto isso não acontece, eles são vulneráveis a uma miríade
de conseqüências perigosas. Por isso, um objetivo importante dos programas de prevenção deve ser
ajudar os jovens a atravessar mais seguramente essa janela de risco.
O enfoque de redução de danos, difundido em nosso país a partir da epidemia de AIDS, vem sendo
ampliado para outros comportamentos de risco, como abuso de álcool e outras drogas. A redução de
danos lida, de modo efetivo, com indivíduos que têm algum tipo de comportamento de risco, e opta
pela saúde e pela responsabilidade pessoal, ao invés da doença e da punição. Pode ser aplicada a
toda a população que se distribui ao longo de uma escala contínua de risco de baixo a moderado e
alto. A redução de danos configurou-se, nos Países Baixos, como uma política definida “de baixo para
acima”, baseada na defesa do dependente.
Não surgiu através de políticas autoritárias, formuladas pelos órgãos oficiais. Para o uso e a
dependência de drogas, o modelo de redução de danos representa uma alternativa de saúde pública
para os modelos moral/criminal e de doença. Assume o fato de que muitas pessoas usam drogas e
promove acesso a serviços de baixa exigência. Sua ideia central é encontrar o indivíduo onde ele
está, e não onde ele deveria estar (Marlatt, 1999). Por isso, embora reconheça a abstinência como
resultado ideal, a redução de danos aceita alternativas que possam reduzir os danos associados ao
uso de drogas.
Embora possam reconhecer que seu padrão de uso de álcool leva a certos perigos ou riscos, os
jovens que bebem excessivamente podem ser incapazes de reduzir seu consumo e controlar esses
riscos. Para isso, precisam desenvolver estratégias e habilidades para neutralizar as pressões que os
motivam a beber. Programas que os auxiliem a desenvolver essas estratégias e habilidades podem
modificar significativamente seu comportamento de beber de alto risco. Dimeff, Baer, Kivlahan &
Marlatt (1998) desenvolveram, na Universidade de Washington, Seattle, um programa de triagem e
intervenção breve para bebedores de alto risco (BASICS - Brief
Alcohol Screening and Intervention for College Students), que obteve como resultado uma redução
significativa dos problemas associados ao uso de álcool e dos sintomas de dependência ao álcool.
Estudos longitudinais mostraram que essa redução se manteve mesmo após cinco anos da
participação no programa. Esse programa leva em consideração aspectos do desenvolvimento,
aspectos motivacionais e elementos de informação. É um programa de redução de danos, portanto,
seu objetivo primário não é a abstinência ou a diminuição do uso de bebidas alcoólicas, mas a
redução dos comportamentos de risco e dos danos produzidos pelo álcool.
Os Principais Pressupostos Que Nortearam O Desenvolvimento Do BASICS São
Sintetizados A Seguir:
● Alguns momentos do desenvolvimento contribuem para o beber em excesso, como, por exemplo, o
início de uma nova fase na vida escolar e o afastamento da família.
● Fatores que mantêm o comportamento de beber excessivamente nos jovens são diferentes dos que
mantêm esse comportamento nos adultos.
● Fatores pessoais (como mitos sobre o álcool) e fatores sociais (pressão do grupo, convivência com
amigos que bebem muito) contribuem para o uso excessivo de bebidas alcoólicas e devem ser
levados em conta no delineamento de ações preventivas.
● Metas definidas pelos próprios jovens em relação ao seu comportamento de beber são mais
efetivas do que os objetivos estabelecidos ou cobrados pelos outros.
● A redução dos riscos associados ao uso abusivo de álcool é, em si mesma, um objetivo válido para
uma intervenção preventiva.
ESTRATÉGIAS DE PREVENÇÃO APLICADA À DEPENDÊNCIA DE
ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS MATERIAL PARA AVALIAÇÃO

1 - Drogas, Por Quê?

O tema fascina os jovens, angustia os pais e preocupa os educadores. Os meios de comunicação


veiculam, diariamente, informações sobre o assunto, muitas vezes num tom dramático, de catástrofe
iminente. A literatura científica enfatiza a importância de se enfrentar a questão do abuso de
substâncias através de medidas de prevenção adequadas. Por que o uso de drogas vem, cada vez
mais, apresentando-se como uma questão do nosso tempo? O consumo de substâncias psicoativas
existe desde os primórdios da história do homem, em praticamente todas as culturas conhecidas.
Curiosidade, desejo de transcendência, busca da imortalidade, do prazer, da sabedoria, são alguns
dos motivos que aparecem, desde sempre, associados ao desejo por alguma droga. Drogas ou
substâncias psicoativas “... são aquelas que modificam o estado de consciência do usuário. Os efeitos
podem ir desde uma estimulação suave causada por uma xícara de café ou chá até os efeitos
...produzidos por alucinógenos tais como o LSD...” (Seibel e Toscano Jr., 2001, p.1).
Masur & Carlini (1989) definem drogas como substâncias que interferem com o funcionamento dos
neurotransmissores, provocando alterações e distúrbios no comportamento. Ao longo da história da
humanidade, o uso de drogas insere-se em vários contextos. Desde o místico, associado aos rituais e
à busca de transcendência, até o econômico, do qual a Guerra do Ópio e a economia paralela de
países como a Colômbia são alguns exemplos (Totugui, 1988). Em nosso meio, praticamente todas
as pessoas fazem uso de algum tipo de droga. Medicamentos, álcool e tabaco são drogas legalmente
comercializadas.
Cada cultura determina quais drogas devem ser consideradas legais e ilegais. Isso está mais
relacionado a aspectos antropológicos e econômicos do que a morais ou éticos, ou mesmo aos
efeitos ou características farmacológicas das substâncias em questão (Bucher, 1992). O aumento
verificado nos últimos anos no consumo de drogas dos países desenvolvidos é, sem dúvida,
alarmante. Por um lado, o narcotráfico organizou-se de forma mais eficiente, expandindo a oferta de
produtos; pelo outro, cresceu a demanda de psicotrópicos por uma parcela cada vez maior da
população (Bucher, 1996).
A Dimensão Do Problema No Brasil
Embora no Brasil o padrão de consumo de drogas não seja comparável ao que se verifica nos países
desenvolvidos, sua evolução recente torna esse tema uma preocupação obrigatória dos profissionais
da área de saúde. O estudo mais amplo sobre o consumo de drogas no País (Carlini, Galduróz, Noto
& Nappo, 2002) envolveu as 107 maiores cidades do Brasil (com mais de 200 mil habitantes). Foram
entrevistadas 8.589 pessoas, com idades de 12 a 65 anos, de todas as classes sociais. Os objetivos
desse estudo foram estimar a prevalência do uso e da dependência de drogas lícitas e ilícitas, além
de avaliar a percepção da população sobre as drogas, a facilidade de obtê-las, seus efeitos e seus
riscos.
Seus resultados retratam o comportamento dos brasileiros que moram nas grandes cidades: para o
álcool, o uso na vida foi relatado por 69% dos sujeitos pesquisados e a prevalência de dependentes
foi estimada em 11%, maior nos homens (17%) do que nas mulheres (6%). Em relação ao tabaco, o
uso na vida é de 41%, e o número de dependentes chega a 9% da população. A maconha já foi
utilizada por 7% dos entrevistados, os solventes por 6% e a cocaína por 2% dos sujeitos estudados.
Chamam a atenção as diferenças de comportamento entre homens e mulheres. Embora todos sejam
expostos da mesma maneira ao consumo de drogas, com o tempo, os homens passam a usar muito
mais essas substâncias do que as mulheres. No caso do álcool, um em seis homens torna-se
dependente. Já para as mulheres, essa razão é de uma para dezessete.

As Drogas Mais Usadas Pelos Estudantes Brasileiros


O estudo de Galduróz, Noto e Carlini (1997) reúne os resultados obtidos nos quatro levantamentos
sobre o consumo de drogas psicoativas por alunos do ensino médio e fundamental em dez capitais
brasileiras, realizados pelo CEBRID (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas)
em 1987, 1989, 1993 e 1997. Segundo esse estudo, o álcool é a droga mais amplamente utilizada
pelos estudantes, muito à frente do segundo colocado, o tabaco. O uso de álcool tem início bastante
precoce na vida desses jovens cerca de 50% dos alunos entre 10 e 12 anos já fizeram uso dessa
droga.
O uso frequente e o uso pesado vêm aumentando na maioria das capitais estudadas. Quase 30% dos
estudantes já utilizaram bebidas alcoólicas até embriagar-se. No último levantamento (1997), 11% da
população pesquisada relatou ter brigado e 19,5% faltado à escola depois de beber. Quando
comparado a drogas como maconha, cocaína, heroína ou tabaco, o álcool é a substância cujo uso
crônico leva a maior risco orgânico, entendendo-se como risco não só a probabilidade de ocorrência
de problemas, mas também a sua gravidade (Masur & Carlini, 1989).
Os principais danos orgânicos associados ao uso crônico de álcool são gastrite (em geral, é o
problema que aparece mais cedo), aumento da pressão arterial, pancreatite, miocardite, hepatite e
cirrose alcoólica, distúrbios neurológicos graves, alterações da memória e lesões no sistema nervoso
central. Entretanto, ao contrário dos efeitos orgânicos decorrentes do uso crônico de cocaína ou
mesmo do tabaco, os danos associados ao álcool levam um tempo mais longo para aparecer, da
ordem de cinco a dez anos. Por isso, raramente encontramos jovens alcoolistas, embora o aumento
de consumo de álcool que vem ocorrendo nas faixas etárias mais baixas possa modificar essa
situação.
O uso inicial de tabaco também é bastante precoce, sendo que, aos 10-12 anos de idade, cerca de
12% já experimentaram essa substância. Há tendência de aumento no uso freqüente e no uso pesado
em quatro das dez cidades estudadas. Os inalantes são substâncias presentes em produtos
industrializados como esmalte, cola de sapateiro, corretivos de tinta, fluidos de isqueiro, lança
perfume, entre outros. Em todos os levantamentos realizados, os inalantes só foram superados pelo
álcool e pelo tabaco.
Frequentemente associado a populações marginalizadas, como meninos em situação de rua, o uso
de inalantes tem sido muitas vezes compreendido como uma resposta a condições de vida
extremamente precárias. Entretanto, como salientam Dalla-Déa, Almeida, Silveira e Toledo (1999), o
uso dessas substâncias por jovens de classe média indica que esse fenômeno não se restringe à
influência de fatores como a fome, a miséria e a marginalização, mas também é influenciado por
pressões de grupo e por aspectos da subjetividade do usuário e de seus conflitos, tanto individuais
quanto familiares.
No último dos quatro levantamentos (Galduróz, Noto e Carlini 1997), a maconha mostrou uma
tendência de aumento do uso na vida. O uso frequente e o uso pesado também cresceram
significativamente. Os autores sugerem que esses resultados podem ser interpretados de duas
maneiras: ou o uso dessa substância realmente aumentou, ou a mudança de atitude da sociedade
frente à maconha, possibilitando os atuais debates sobre a sua descriminalização e seu uso
terapêutico fez com que os jovens passassem a relatar mais freqüentemente seu uso, que sempre foi
elevado.
Nos quatro levantamentos realizados, os ansiolíticos e os anfetamínicos (moderadores do apetite)
sempre apareceram entre as drogas mais consumidas pelos estudantes, com uma utilização
nitidamente maior no sexo feminino. Em algumas capitais, há tendência para o aumento do uso
freqüente e do uso pesado de ambos os tipos de drogas. Por se tratar de substâncias que
reconhecidamente induzem a dependência o sex uso sem controle médico é potencialmente perigoso.
Além disso, muitos casos de anorexia nervosa iniciam-se após a utilização de anfetamínicos em
regimes conduzidos incorretamente.
O uso de cocaína vem-se popularizando entre os estudantes das dez capitais estudadas, apenas no
Rio de Janeiro e em Recife não se observou tendência de aumento do uso na vida. O uso frequente
cresceu em oito capitais (inclusive em São Paulo). Da mesma forma, o uso pesado apresentou
aumento em quase todas as capitais. Por outro lado, o uso de “crack” aparece muito raramente - as
baixas porcentagens para uso de “crack” entre os estudantes possivelmente significam que, como a
dependência do “crack” é sempre muito severa, aqueles que começam a usar essa droga perdem
rapidamente o vínculo com a escola.
Mesquita, Bucaretchi, Castel e Andrade(1995), em seu estudo sobre o uso de substâncias psicoativas
por estudantes da Faculdade de Medicina da USP, verificaram que o álcool é a droga mais usada,
com taxas de prevalência de uso na vida de 82%, uso no ano, 76% e uso no mês, 69%. De maneira
geral, o álcool é a droga que mais conta com a aprovação dos alunos, tanto em relação à
experimentação quanto ao uso regular. Andrade, Bassit, Kerr-Corrêa, Tonhon, Boscovitz, Cabral,
Rassi, Potério, Marcondes, Oliveira, Dualibi e Fukushima (1997) avaliaram o consumo de drogas em
5225 alunos de nove escolas de Medicina do Estado de São Paulo.
Os resultados confirmam os achados do trabalho anterior a droga mais usada foi o álcool, seguida
pelo tabaco, solventes, maconha, tranquilizantes e cocaína. Não foram encontradas diferenças entre
os estudantes da capital e do interior. Um estudo preliminar sobre o uso de bebidas alcoólicas por
estudantes de Psicologia da PUCSP e suas atitudes em relação ao álcool obteve resultados
semelhantes, porém mais elevados do que os trabalhos anteriormente citados – o uso na vida foi
relatado por 97%, o uso no ano por 95% e o uso no mês por 79,9% dos sujeitos. A maioria (75,1%)
relata já ter bebido até a embriaguez, e 23,3% ter-se embriagado no último mês.
O conjunto desses resultados mostra que a prevalência do uso de álcool e outras drogas por
adolescentes e adultos jovens é mais elevada do que a observada na população geral. Assim, a
adolescência e o início da vida adulta caracterizam-se como um dos períodos de vulnerabilidade
aumentada uma “janela de risco”. Devido a fatores subjetivos e/ou culturais, nesses períodos (a
terceira idade é um deles) ocorre um aumento da probabilidade de consumo de álcool ou outras
drogas e, portanto, dos problemas associados a esse consumo.

2 - Entre A Cervejinha E O Alcoolismo

O álcool é uma droga legalizada e seu consumo não só é aceito pela sociedade como incentivado por
intensa propaganda. Entretanto, é importante salientar que o uso pesado de bebidas alcoólicas é o
caminho mais curto para o alcoolismo. Calcula-se que 10 a 12% da população mundial é dependente
de álcool, o que caracteriza o uso abusivo de bebidas alcoólicas como um grave problema de saúde
pública em todo o mundo. No Brasil, o álcool é responsável por mais de 90% das internações por
dependência química, e está associado a mais da metade dos acidentes de trânsito, principal causa
de morte na faixa etária de 16 a 20 anos.
O álcool é, seguramente, a droga que mais danos traz à sociedade como um todo. Além disso, no
caso particular de adolescentes e jovens, o consumo de álcool também está diretamente relacionado
a doenças sexualmente transmissíveis, uso de outras drogas, abuso sexual, baixo desempenho
escolar, danos ao patrimônio, comportamento violento e confrontos entre gangues.
Quando ingressa na universidade, o jovem transpõe uma fase de sua vida, ”deixa de ser adolescente”
e inicia uma nova vida, “mais adulta”. Nesse momento, o contexto sociocultural pode funcionar como
reforçador para o consumo de bebidas alcoólicas, que representa um dos aspectos do mundo adulto.
Dessa maneira, o “calouro” universitário é estimulado, pelo grupo, a beber. A bebida assume um
caráter não só de integração, mas também de socialização desse estudante no universo acadêmico,
tido como formador do jovem para a vida adulta.
Além disso, fatores relacionados à dinâmica psíquica podem contribuir decisivamente para o consumo
de doses cada vez maiores de álcool pelos jovens universitários, como, por exemplo, dificuldades no
relacionamento com os pais e/ou relacionamentos afetivos, dificuldades financeiras etc. Assim, o uso
abusivo de álcool por adolescentes e adultos jovens constitui um sério problema de saúde pública
cuja prevenção, para ser efetiva, deve levar em consideração tanto fatores socioculturais quanto
aspectos da subjetividade do jovem. Por isso, o trabalho preventivo envolve não só a ação educativa,
mas implica também uma psicoprofilaxia, uma atitude clínica, no sentido mais amplo do termo.
Quando destinado a estudantes das áreas de saúde e educação, esse trabalho reveste-se ainda de
uma importância adicional. Nesse caso, os aspectos formativos são prioritários, uma vez que os
profissionais dessas áreas irão se deparar, no seu trabalho cotidiano, direta ou indiretamente, com
questões relacionadas ao uso/abuso de drogas. Em São Paulo, a USP e a UNESP vêm
desenvolvendo programas preventivos ao uso de álcool e outras drogas em seus campi. Por iniciativa
da Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), vem sendo desencadeada a Campanha Nacional
Antidrogas nas escolas superiores. Essa campanha tem o apoio técnico do Grupo Interdisciplinar de
Estudos de Álcool e Drogas (GREA) e é coordenada pelo Centro de Integração Empresa-Escola
(CIEE). Essas iniciativas indicam que a questão do uso de drogas por estudantes universitários
começa a ser percebida, em nível nacional, como relevante.
Alguns indicadores, como o grande número de bares instalados ao redor dos campi universitários, as
cervejadas patrocinadas por fabricantes de bebidas, o atendimento médico a jovens embriagados e a
presença de traficantes nas proximidades dos campi mostram que o uso abusivo de álcool e drogas
por universitários demanda um trabalho preventivo específico.
A Prevenção Ao Uso Abusivo De Álcool
O uso abusivo de álcool não começa na universidade, mas representa a continuidade e, por vezes, o
agravamento de um padrão de uso estabelecido anteriormente. A grande maioria dos jovens
abandona o hábito de beber pesadamente e supera os problemas relacionados ao álcool sem
assistência ou tratamento, porém, enquanto isso não acontece, eles são vulneráveis a uma miríade
de conseqüências perigosas. Por isso, um objetivo importante dos programas de prevenção deve ser
ajudar os jovens a atravessar mais seguramente essa janela de risco.
O enfoque de redução de danos, difundido em nosso país a partir da epidemia de AIDS, vem sendo
ampliado para outros comportamentos de risco, como abuso de álcool e outras drogas. A redução de
danos lida, de modo efetivo, com indivíduos que têm algum tipo de comportamento de risco, e opta
pela saúde e pela responsabilidade pessoal, ao invés da doença e da punição. Pode ser aplicada a
toda a população que se distribui ao longo de uma escala contínua de risco de baixo a moderado e
alto. A redução de danos configurou-se, nos Países Baixos, como uma política definida “de baixo para
acima”, baseada na defesa do dependente.
Não surgiu através de políticas autoritárias, formuladas pelos órgãos oficiais. Para o uso e a
dependência de drogas, o modelo de redução de danos representa uma alternativa de saúde pública
para os modelos moral/criminal e de doença. Assume o fato de que muitas pessoas usam drogas e
promove acesso a serviços de baixa exigência. Sua ideia central é encontrar o indivíduo onde ele
está, e não onde ele deveria estar (Marlatt, 1999). Por isso, embora reconheça a abstinência como
resultado ideal, a redução de danos aceita alternativas que possam reduzir os danos associados ao
uso de drogas.
Embora possam reconhecer que seu padrão de uso de álcool leva a certos perigos ou riscos, os
jovens que bebem excessivamente podem ser incapazes de reduzir seu consumo e controlar esses
riscos. Para isso, precisam desenvolver estratégias e habilidades para neutralizar as pressões que os
motivam a beber. Programas que os auxiliem a desenvolver essas estratégias e habilidades podem
modificar significativamente seu comportamento de beber de alto risco. Dimeff, Baer, Kivlahan &
Marlatt (1998) desenvolveram, na Universidade de Washington, Seattle, um programa de triagem e
intervenção breve para bebedores de alto risco (BASICS - Brief
Alcohol Screening and Intervention for College Students), que obteve como resultado uma redução
significativa dos problemas associados ao uso de álcool e dos sintomas de dependência ao álcool.
Estudos longitudinais mostraram que essa redução se manteve mesmo após cinco anos da
participação no programa. Esse programa leva em consideração aspectos do desenvolvimento,
aspectos motivacionais e elementos de informação. É um programa de redução de danos, portanto,
seu objetivo primário não é a abstinência ou a diminuição do uso de bebidas alcoólicas, mas a
redução dos comportamentos de risco e dos danos produzidos pelo álcool.
Os Principais Pressupostos Que Nortearam O Desenvolvimento Do BASICS São
Sintetizados A Seguir:
● Alguns momentos do desenvolvimento contribuem para o beber em excesso, como, por exemplo, o
início de uma nova fase na vida escolar e o afastamento da família.
● Fatores que mantêm o comportamento de beber excessivamente nos jovens são diferentes dos que
mantêm esse comportamento nos adultos.
● Fatores pessoais (como mitos sobre o álcool) e fatores sociais (pressão do grupo, convivência com
amigos que bebem muito) contribuem para o uso excessivo de bebidas alcoólicas e devem ser
levados em conta no delineamento de ações preventivas.
● Metas definidas pelos próprios jovens em relação ao seu comportamento de beber são mais
efetivas do que os objetivos estabelecidos ou cobrados pelos outros.
● A redução dos riscos associados ao uso abusivo de álcool é, em si mesma, um objetivo válido para
uma intervenção preventiva.

3 - “Bebidas Alcoólicas – Vamos Destilar Essa Ideia?”

A partir dos pressupostos acima, desenvolvemos a oficina “Bebidas alcoólicas – vamos destilar essa
idéia?” como parte das atividades do Aprimoramento Clínico Institucional “O Psicólogo e a Prevenção
ao Abuso de Álcool e Outras Drogas”, da Clínica Psicológica Ana Maria Poppovic, da Faculdade de
Psicologia da PUC-SP. Seu objetivo é reduzir os riscos associados ao uso excessivo de bebidas
alcoólicas pelos estudantes que acabaram de ingressar na universidade, de modo a auxiliá-los a
atravessar mais seguramente essa janela de risco, conforme o sentido atribuído acima.
A população-alvo foi constituída pelos alunos do primeiro ano da Faculdade de Psicologia da PUCSP
em 2001. A partir de um trabalho de divulgação feito em sala de aula, 28 alunos inscreveram-se para
participar da oficina. A oficina compõe-se de quatro módulos de duas horas de duração. O primeiro
módulo consiste em um sociodrama tematizado no qual os participantes são solicitados a criar e
dramatizar uma história relacionada ao álcool. A técnica utilizada foi a retramatização, que consiste
essencialmente em um trabalho coletivo cuja efetivação depende de contribuições individuais. Na
retramatização, a partir de pensamentos e sentimentos individuais (tramas), os participantes
trabalham em grupos na criação de um texto sociodramático (retramas), utilizando os recursos
teatrais e dramáticos (Liberman, 1995).
Essa atividade tem por objetivo trabalhar a vivência subjetiva de situações que envolvam o uso e/ou o
abuso de bebidas alcoólicas pelos jovens, preservando a intimidade individual, mas com acesso a ela.
Nem sempre a comunicação verbal expressa a realidade dos fatos relatados. Por outro lado, durante
uma vivência dramática, ocorre uma forte mobilização afetiva que cria um clima de compromisso,
dificilmente conseguido quando se utiliza apenas a comunicação verbal (Santos,1997).
“O tema possibilita que cada um enxergue, em cada papel sócio-dramático, alguma faceta individual
e, como em um caleidoscópio, forme uma visão, uma imagem crítica, emocionada e iluminada pela
cena dramática (Liberman, 1995, p. 39). A prática do sociodrama compreende três etapas:
aquecimento, dramatização e comentários. O trabalho começa pelo aquecimento, que possibilita uma
acomodação prévia das pessoas para a ação. A dramatização é a ação propriamente dita, que pode
consistir em um jogo, uma colagem, uma montagem etc., de acordo com a técnica utilizada.
“O comentário é a etapa do compartilhar, do processamento afetivo e técnico do que foi sentido,
percebido e vivido” (Santos, 1997, p.93). O sociodrama e o psicodrama utilizam essencialmente as
mesmas técnicas, mas, no sociodrama, o protagonista é sempre o grupo. No segundo módulo, é feito
um trabalho com grupos de seis a oito pessoas, sob a coordenação de um dos psicólogos
aprimorando. Nesses grupos, são mapeados e trabalhados os aspectos trazidos à tona no módulo
anterior.
No terceiro módulo, os participantes são os convidados de uma “festa virtual” , que simula as
situações geralmente encontradas em festas, como beber, dançar e namorar. O objetivo dessa
atividade é familiarizar os participantes com a possibilidade de administrar o uso de bebidas
alcoólicas, tentando minimizar os riscos decorrentes da ingestão de álcool. Isso pode ser obtido
através do conhecimento das relações entre os efeitos do álcool, sua dinâmica no organismo e sua
concentração no sangue. No último módulo, são explicitados e discutidos conceitos relativos ao uso
do álcool, sua fisiologia e seus efeitos.
Finalmente, os participantes são estimulados a fazer uma avaliação pessoal de sua relação com o
álcool e, se considerarem necessário, a modificar essa relação. O que se pretende é favorecer a
integração dos aspectos afetivos vivenciados no sociodrama aos aspectos cognitivos, trabalhados a
partir da festa virtual, de modo que os participantes aumentem sua percepção tanto dos riscos
associados ao abuso de bebidas alcoólicas quanto das possibilidades de reduzi-los.

4 - Avaliação Dos Resultados

Durante o sociodrama, evidenciou-se a importância, para os participantes, do efeito desinibidor


produzido pelas bebidas alcoólicas, especialmente em situações de convívio social, como festas e
“baladas”. Nessa atividade, o uso de bebidas alcoólicas apareceu associado ao uso de outras drogas
(maconha, ácido, êxtase), brigas, acidentes de carro e sexo não planejado. Todos esses aspectos
foram discutidos no segundo encontro, quando foi realizado o trabalho com os grupos. Nessa
atividade, também foi trabalhada a preocupação dos participantes com o papel do profissional da
saúde em relação a essa questão.
Por suas características lúdicas, a “festa virtual” foi a atividade mais apreciada pelos alunos. Quando
inquiridos sobre o que haviam aprendido com ela, vários alunos referiram-se a aspectos como:
diferenças entre homem e mulher em relação aos efeitos do álcool e teor alcoólico das diferentes
bebidas. Vários perceberam que muito do que supunham ser conhecimento sobre o álcool não
passava de “mito”, como o de que café sem açúcar ou banho frio curam bebedeira, entre outros.
Ficaram interessados em compreender os fatores que influenciam a taxa de álcool no sangue e
surpreenderam-se ao perceber como duas pessoas que bebem a mesma quantidade de álcool podem
atingir concentrações sanguíneas diferentes, em função do seu sexo e/ou de seu peso.
No último encontro, essas questões conceituais foram discutidas e esclarecidas, e alguns
participantes já relataram modificações em seu comportamento de beber em função da participação
na oficina. O trabalho como um todo foi avaliado de forma muito positiva pelos participantes.

5 - Discussão E Conclusões

Um primeiro aspecto a chamar a atenção foi o interesse dos alunos em participar da oficina, que pode
estar relacionado, ao menos em parte, à estratégia utilizada na divulgação do trabalho, que salientou
o papel do psicólogo frente à questão do uso abusivo de álcool. As atividades interativas revelaram-se
instrumentos de importância crucial para o trabalho preventivo. Por outro lado, a ênfase na redução
dos danos associados ao uso de álcool, e não nos possíveis distúrbios ocasionados por seu uso, fez
com que as atividades se livrassem do “peso” que, muitas vezes, se associa ao trabalho de
prevenção.
Através do sociodrama, os participantes se sensibilizaram para a relação entre aspectos subjetivos e
sua forma de usar o álcool. Este manteve sua função socializadora, pois houve uma festa, mesmo
que virtual, na qual o trabalho se desenvolveu com características lúdicas e em clima de
descontração, o que favorecia a percepção mais clara dos riscos e das possibilidades de reduzi-los.
Outro aspecto digno de nota relaciona-se à aderência relativamente alta dos participantes ao trabalho,
que, ao contrário do inicialmente previsto, não pôde ser desenvolvido em quatro semanas
consecutivas, pois, em dois dos horários planejados para a oficina, os alunos foram solicitados pela
faculdade a resolver questões de matrícula.
Dessa forma, o trabalho acabou estendendo-se até meados de junho, período pouco favorável ao
desenvolvimento desse tipo de atividade em função da proximidade do término do semestre letivo.
Apesar disso, boa parte dos alunos continuou participando da oficina até o seu final. O presente
trabalho mostra que, quando estimulado a problematizar sua relação com o álcool de forma reflexiva e
não punitiva, o jovem interessa-se em conhecer melhor os efeitos do álcool sobre seu organismo e os
riscos que seu uso abusivo pode acarretar.

6 - Considerações Finais

O uso abusivo de álcool por adolescentes e adultos jovens vem-se constituindo, cada vez mais, em
sério problema de saúde pública em nosso país. O uso de bebidas alcoólicas é estimulado por intensa
propaganda e seu abuso é socialmente tolerado e, às vezes, até estimulado. Embora socialmente
aceito, o beber excessivo traz uma série de riscos que raramente são reconhecidos como tal,
especialmente na adolescência. Por isso, atividades preventivas que favoreçam o reconhecimento
desses riscos e o desenvolvimento de estratégias para minimizá-los assumem um caráter de
relevância e urgência em nosso país.
Ao levar em conta não só os fatores socioculturais como aspectos da subjetividade do jovem, esse de
tipo trabalho preventivo envolve não só uma ação educativa, mas implica também uma psicoprofilaxia,
uma atitude clinica, no sentido mais amplo do termo. A importância crucial da atuação do psicólogo
nessa área aponta claramente para a necessidade de capacitação dos profissionais de Psicologia
para esse tipo de trabalho preventivo e para o diálogo com profissionais de outras áreas em equipes
multidisciplinares voltadas para a promoção de saúde.
Envolve-se também na reflexão sobre sua própria forma de lidar com as bebidas alcoólicas e a
possibilidade de modificá-la, de modo a reduzir os riscos sociais e pessoais do uso abusivo de álcool.
O trabalho mostrou ainda que, para estudantes da área de Psicologia, essa atividade remete a uma
reflexão relativa ao seu futuro papel como profissionais da área de saúde no trato com essa questão.
A “oficina de álcool” revela claramente as potencialidades do desenvolvimento de estratégias
preventivas adaptadas à nossa realidade a partir dos princípios básicos da redução de danos.
Salienta ainda a contribuição essencial das técnicas e recursos da Psicologia e a urgência da
capacitação de profissionais dessa área para o desenvolvimento de estratégias de prevenção ao uso
abusivo de álcool e outras drogas. Consideramos a oficina de álcool o passo inicial para o
desenvolvimento de outros projetos na área de prevenção, pois, ao nosso ver, hoje a práxis do
psicólogo não se restringe ao atendimento clínico, mas é de suma importância para o
desenvolvimento de ações psico-profiláticas no campo social e no da saúde pública.

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