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Tradição ou interpretação?

Orlando Fedeli
No Discurso à Cúria Romana, em 22 de Dezembro de 2005, o Papa Bento XVI condenou a
“hermenêutica da ruptura”, isto é, a interpretação ou leitura dos textos do Concílio Vaticano II, conforme o
chamado “espírito do Concílio”. Bento XVI defendeu a hermenêutica da continuidade, isto é, uma leitura dos
textos do Concilio segundo a letra em continuidade com os ensinamentos tradicionais da Igreja. Falou ainda
que uma recepção correta do Vaticano II ainda não fora feita.
Ao católico comum – e mesmo àqueles que, como nós, estão pouco afeitos à terminologia da
Fenomenologia – essas afirmações normalmente escapam a uma compreensão completa.
Que significa a expressão “recepção” do Concílio Vaticano II usada por Bento XVI nesse discurso
acima citado?
Como até agora não houve uma “recepção do Vaticano II”, quando todo mundo fala dele?
Para compreender essas expressões é preciso conhecer o que a Fenomenologia entende por esses
termos e expressões.
Bento XVI usou a terminologia fenomenológica para a qual a recepção de um texto, segundo as
teorias de Hans Jauss, é algo muito pessoal.
Foi Hans Jauss quem elaborou a doutrina da crítica fenomenológica, “crítica literária que privilegia
as experiências humanas no estudo do texto literário, o que significa que a busca do sentido se deve fazer
não só por aquilo que ele comunica diretamente mas também avaliando todas as respostas que esse texto
recebeu e provocou” (Carlos Ceia, Crítica Fenomenológica,
http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html)
O mesmo autor deste texto, Carlos Ceia, cita outra autoridade em estética da recepção, mostrando
como todas as leituras de um texto são pessoais, subjetivas:
 
“E. D. Hirsch (Validity in Interpretation, 1967) diz que o sentido de um texto não corresponde à
intenção do autor, salientando que o sujeito (leitor) e o objeto (texto lido) são inseparáveis e que todas as
afirmações de sentido são o resultado da consciência humana e não da linguagem em si mesma (na
suposição de que existe fora do sujeito, inscrita no texto pela intenção do autor, por exemplo)”. (Carlos Ceia,
Crítica Fenomenológica, http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html
 
“No contexto da Teoria da Resposta do Leitor, David Bleich, partindo do caráter intersubjetivo da
obra literária e da possibilidade da ocorrência de várias interpretações de um mesmo texto, considera a
interpretação como uma construção da mente do leitor, pelo que a literatura adquire significado a partir
dessa mesma construção. A obra literária é então vista como um objeto simbólico e as várias
interpretações são aceites como “verdadeiras”, porque refletem os valores subjetivos de uma dada
comunidade de leitores. (Sofia Paixão – Intersubjectividade. Destaques meus).
 
Que o Vaticano II assumiu a linguagem da fenomenologia subjetivista é reconhecido pelo teólogo
jesuíta, Padre J.B. Libânio, ao escrever:
 
“m) Mudança da teologia fundamental
“O Concílio significou um novo paradigma teológico, em comparação com a teologia comum
postridentina e pré moderna. Cl. Geffré o formulou como a passagem da teologia dogmática à
hermenêutica ( ). Consistiu ele na mudança da concepção de verdade que antes vinha toda do lado
do objeto. Primeiro se estabelecia a tradição, depois o sujeito envolvido nela. No horizonte longínquo
estava o mundo rural com a matriz da natureza. O sujeito se inseria numa tradição sem tomar distância dela
e sem olhá-la como objeto de análise. Algo anterior ao cogito de Descartes.
“A teologia dogmática se preocupava em conhecer a essência e a substância das coisas, a
verdade imutável. Os conceitos se elaboravam abstratamente, do mesmo modo que suas relações
mútuas, e suas implicações. Desses conceitos se deduziam muitas conseqüências teóricas, por
meio sobretudo da lógica formal e da argumentação silogística. Recorria-se à autoridade dos antigos
para estabelecer as verdades. Foi a leitura teológica amplamente usada na neo escolástica,
especialmente pós tridentina, redigida principalmente em latim.
“O Vaticano II assumiu a perspectiva hermenêutica, que centra a sua atenção na
interpretação das verdades dogmáticas na mentalidade de cada época, de cada cultura. O sujeito se
aproxima da realidade com uma pré compreensão subjetiva e histórica. Interpreta, portanto, a
realidade, e esta, por sua vez, modifica sua pré compreensão.
“De modo simples e direto, a natureza do connhecer humano é interpretar, isso ocorre
também a respeito da revelação e das verdades dogmáticas. Todo conhecimento conjuga o
elemento objetivo da verdade, a realidad que se conhece, e o aspeto subjetivo de quem conhece. Na
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construção da verdade se faz necessário o diálogo para alcançá-la mais plenamente e não a
imposição feita pela autoridade. (Padre J. B. Libanio, S.J., Caminhando para a V Conferência de
Aparecida, Teologado de Belo Horizonte, Brasil. http://www.sjsocial.org/crt/libanio.html)
 
Tem razão, então, o Padre J.B. Libânio S.J. ao afirmar que “Tradição se opõe a interpretação”
(Padre J.B. Libânio S.J, A Volta à Grande Disciplina, Edições Loyola, São Paulo, 1983, p. 128).
A Tradição católica é dogmática, fixa, e objetiva. 
A interpretação fenomenológica é subjetiva, pois seria fruto do encontro da visão de mundo do autor
com a de seu leitor, resultando desse encontro, uma leitura pessoal.
Daí a crítica fenomenológica aceitar todas as leituras.
Por isso, afirma J.B.Libânio:
 
“O sentido mais profundo do Concílio Vaticano II não foi brindar a Igreja um texto terminado, mas
criar novo espírito, nova mentalidade, introduzindo no interior da Igreja, a dimensão histórica, hermenêutica,
dialética. Ater-se à materialidade de sues textos é contradizê-lo, é desconhecê-lo. Pois ele mesmo anuncia
a sua superação ao aceitar o duplo princípio fundamental da perspectiva pastoral e ecumênica. Com a
dimensão pastoral quer-se dizer que se faz necessário contínuo diálogo com a realidade social. Ora, essa
não parou em 1965. De lá para cá correu muita água no rio da história. E o esforço do diálogo, de confronto
interpretativo deve continuar sua tarefa. Perspectiva ecumênica: também as igrejas evangélicas, ortodoxas,
não- cristãs deram passos, cresceram em autoconsciência. E, por isso, o diálogo tem de avançar. Parar no
texto do Concílio Vaticano II é esquecer o espírito que o animou.” (Padre J.B. Libânio S.J, A Volta à Grande
Disciplina, Edições Loyola, São Paulo, 1983, p. 149).
 
Portanto, a tradição católica dogmática, objetiva e imutável é inconciliável com o espírito do
Vaticano II, que é o espírito da Fenomenologia, que é um espírito subjetivo, evolutivo, relativista, historicista
e dialético, para o qual todas as leituras da realidade, ou de um texto, são válidas.
A Tradição católica, assim como não admite o livre exame da Bíblia, não admite também a leitura
fenomenológica – isto é, subjetiva -- dos textos do Magistério da Igreja. Um Magistério que admite leituras
subjetivistas não é Magistério Ordinário, e muito menos pode ser Magistério Extraordinário.
Vê-se bem, pelos textos citados, que o Padre J.B. Libânio S.J., padre da “Teologia da Escravidão”,
é adepto da hermenêutica da ruptura, que Bento XVI condenou no citado discurso á Cúria.
Bento XVI condenou só a leitura do “espírito do concílio” ou condenou o próprio Espírito do
Concílio Vaticano II, isto é, a Fenomenologia como chave para se entender o muito ambíguo, e até
fenomenologicamente polissêmico, Vaticano II?
Bento XVI usou, nesse discurso citado, palavras próprias da crítica fenomenológica: hermenêutica,
leitura, recepção... Portanto, parece evidente que Bento XVI aceita a crítica fenomenológica.
Por outro lado, a crítica fenomenológica aceita toda e qualquer leitura, sem condenar nenhuma.
Para a Fenomenologia não há uma leitura correta de um texto. Todas as leituras seriam corretas e
válidas. E foi desse princípio relativista da Fenomenologia e da Estética da Recepção que nasceu o
ecumenismo do Concílio Vaticano II. Todas as religiões teriam certa interpretação do divino, e nenhuma
delas poderia se declarar a única detentora da verdade. Cada interpretação do mundo divino ou da
revelação aproximaria os homens do conhecimento real, sem jamais alcançá-lo. Por isso os modernistas do
Vaticano II diziam, e dizem, que a Igreja está em busca da Verdade através do diálogo ecumênico.
Assim como Lutero pregou o livre exame das Escrituras, Kant pregou o livre exame da realidade, e
a Fenomenologia aceitou isso, acrescentando que toda leitura do mundo, ou de um texto, é uma leitura
pessoal, única, subjetiva, na qual se encontram a cosmovisão do escritor com a cosmovisão do leitor. Toda
leitura é subjetiva e correta. Nenhuma leitura pode ser excluída.
 
Assim como a realidade, a Tradição e a Sagrada Escritura são objetivas e não podem ser
subjetivamente interpretadas, assim também, o Magistério da Igreja é objetivo e deve ser aceito como tal.
Não é possível existir um Magistério subjetivamente interpretável. O que pode ser interpretado livremente,
como já dissemos, não é Magistério nem Ordinário, e nem -- muito menos -- Magistério Extraordinário, Ex
Cathedra.
 
Para a Igreja, a verdade não é interpretável.
Para a Fenomenologia, toda leitura é válida.
 
 Bento XVI, usando a terminologia fenomenológica, ao condenar a leitura segundo o “ Espírito
do Vaticano II”, condenou a “hermenêutica da ruptura”.
Mas, fazendo isso, Bento XVI condenou também o princípio da Fenomenologia que defende
que toda interpretação é válida.
Mas então, condenando o “Espírito do Vaticano II “– a Fenomenologia ou o método fenomenológico
– Bento XVI deu razão à Tradição, ao dogma objetivo, que considera que há uma verdade objetiva e
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imutável, que é ensinada infalivelmente pela Igreja. Portanto, condenado a hermenêutica da ruptura, Bento
XVI se aproximou da posição dos lefebvristas e da posição de São Pio X.
 
Ocorre que Bento XVI defendeu uma leitura segundo a “Letra do Vaticano II”, como sendo
uma “hermenêutica da continuidade” com a Tradição.
Mas, sendo assim, do mesmo modo, e junto com a hermenêutica da ruptura, Bento XVI condenou o
dogmatismo da Tradição, e deveria aceitar então a tese da fenomenologia de que todas as leituras são
válidas, inclusive a da ruptura.
Portanto, ele não poderia condenar o “Espírito do Concílio”.
 
Se toda leitura é válida, não se poderiam condenar nem a leitura do “espírito do Vaticano II”, nem a
posição tradicionalista dogmática, e nem poderia propor a “leitura do Concílio segundo a sua letra”, que
pretende continuar a leitura da Tradição, sem ruptura. Bento XVI, aceitando os princípios da Fenomenologia
e da Estética da Recepção, não poderia propor uma leitura correta do Vaticano II, porque, para a
Fenomenologia, toda leitura é correta.
Contradição em todas as hipóteses.
Como João Paulo II, Papa que conhecidamente aplicava o método fenomenológico, e que por isso
mesmo era paladino do ecumenismo relativista, como pode ele condenar Dom Lefebvre, se toda leitura é
aceitável?
Maior contradição ainda é Bento XVI admitir e usar a terminologia da Fenomenologia e condenar a
hermenêutica da ruptura, pois para a Fenomenologia, toda nova leitura tem que romper com as anteriores.
A Fenomenologia exige sempre uma nova leitura conforme a época, não podendo nada se cristalizar em
fórmulas definitivas, nem mesmo o Vaticano II então poderia ter uma leitura certa e definitiva..
Condenado, então, o “Espírito do Vaticano II, Bento XVI condenou O espírito do Vaticano II, isto é, a
Fenomenologia.
Não há saída.
Condenando o “espírito do Vaticano II”, condenado a “hermenêutica da ruptura”, Bento XVI
escolheu – ainda que sem querer – a volta às condenações, e, portanto, a volta ao dogmatismo.
A Fenomenologia e suas hermenêuticas estão em xeque-mate.
E com elas também o Concílio Vaticano II foi posto em xeque-mate lógico,  por meio de um dilema
bicornuto.
Ainda que sem querer, -- só Deus o sabe... -- Bento XVI, providencialmente, o deixou sem
saída, num xeque-mate surpreendente.
Deo gratias!
 
São Paulo, 31 de Janeiro de 2006.
Orlando Fedeli

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