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Corpo-Dispositivo - Subjetividade e Cruação PDF
Corpo-Dispositivo - Subjetividade e Cruação PDF
Corpo-dispositivo:
Jardel Sander
Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/ PUC-
SP. Professor do Departamento de Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa
Catarina (Udesc). jardelss@gmail.com
Corpo-dispositivo: cultura, subjetividade e criação artística
Jardel Sander
resumo abstract
Este trabalho procura fornecer uma This work looks for to supply a perspective
perspectiva sobre o corpo em suas rela- about the body and its relations to the
ções com os processos de subjetivação, process of subjectivity, culture and artistic
a cultura e a criação artística. Partindo creation. From the definition of the body
da definição de corpo como dispositi- as a device, it is possible to visualize its
vo, torna-se possível visualizar tanto historical inscriptions and its possibili-
suas inscrições históricas, quanto suas ties to resist. Beyond the contemporary
possibilidades de resistência. Para além understanding of the body (it’s evidence),
da evidência que o corpo assumiu em this research seeks to understand its deeper
nossa contemporaneidade, buscam-se potentiality and effects. Thus, some ways of
suas condições de possibilidade e seus living the subjectivity are discussed in this
desdobramentos. Neste sentido, são work related to artistic creation, mainly
abordados modos de subjetivação na contemporary arts. The focus searches the
interface com a criação artística, prin- body’s experimentations (performances),
cipalmente na arte contemporânea. O and its strength to create, by drawing a
foco recai sobre as experimentações path that shows us its potentiality and
corporais (performances), em sua força its losses. We conclude by indicating that
de criação, traçando um percurso que the approach to the body as devenir claims
nos mostra potências e despotencia- experimentation, challenge and risk.
lizações, capturas e linhas de fuga,
chegando-se à conclusão de que a
aproximação a um corpo em devir nos
convoca à experimentação, ao desafio
e ao risco.
palavras-chave: corpo; arte contem- keywords: body; contemporary arts; pro-
porânea; processos de subjetivação. cess of subjectivity.
Artigos
mento”. Isto é, frente ao risco de esvaziarmo-nos, fomos preenchidos. O
corpo recheia o humano. Talvez mesmo — a crer nas propagandas — lhe
dê algum sabor... Senão, no mínimo, lhe confere algum saber.
O corpo nos ocupa. Mas não só: invade-nos, está presente a todo o
momento. Suas imagens, suas transformações, sua saúde, sua beleza, seu
prazer. É quase opressiva a presença do corpo no nosso dia-a-dia, princi-
palmente através da mídia. O que poderia levar-nos a perguntar: o que se
pode ainda falar sobre o corpo?
Mesmo porque, a se julgar pelo excesso de exposição e sua onipre-
sença, o corpo parece ter se transformado numa entidade: objeto de culto
e zelo. Como se não o tivéssemos descoberto, cuidado e trabalhado o
suficiente. Enfim, como se o corpo, meio evidente meio encoberto, fosse a
nossa mais própria matéria-prima existencial.
Mas a forma pela qual o corpo tem sido propalado — sobretudo nos
meios de comunicação de massa — parece constituí-lo com uma renovada
coerência, como se a já citada entidade-corpo viesse reinstaurar uma velha
dicotomia (mente x corpo), apenas invertendo os termos. Não é isso o que
se pretende aqui.
Neste trabalho, o foco no corpo pretende dar conta tanto do esta-
belecimento da imagem de um corpo unitário ou identitário; quanto das
multiplicidades que atravessam nossa visibilidade do corpo, situando-o
como processualidade aberta, como corporeidades exercidas através dos
modos de experimentação. Mas, para tanto, é necessário que façamos,
primeiramente, uma breve caracterização de diferentes perspectivas que
compõem nosso entendimento do que seja o corpo, ou melhor, os corpos,
em sua pluralidade irredutível.
1
O conceito de visibilidade,
Perspectivas sobre o corpo que nos remete aos trabalhos
da arqueologia foucaultina, diz
respeito ao regime do visível de
Detenhamo-nos um pouco na diversidade de “corpos”, ou seja, nas cada momento histórico, que
não é simplesmente o que se
diversas perspectivas específicas que sobre ele podem ser aplicadas — e vê, mas aquilo que se pode (o que
que aparecerão no decorrer do texto. se consegue) ver, pois deriva de
Primeiramente há que se ressaltar que, se falamos em corpo, não uma complexa e intricada rede
de relações de forças que se
é porque ele goze de algum privilégio em relação à mente, ou alma, ou compõem, que se confrontam,
psique. Como veremos adiante, é uma questão de visibilidade1. Portanto, que se eliminam. A visibilidade
corpo é, pois, o campo de forças
quando se trata de um corpo-identitário ou unitário, como falávamos em que nos situamos, contem-
acima, é na medida em que ele nos remete às subjetividades identitárias, poraneamente, e que, aqui, é
que se caracterizam por um fechamento das subjetividades sobre algum pensado especificamente na
composição com os modos de
território, pelo estancamento do processo vital no plano atual e visível, e subjetivação. Sobre regimes de
pela denegação da processualidade. Essa noção pode ser aproximada à de visibilidade cf. FOUCAULT,
Michel. Arqueologia do saber.
corpo-organismo ou organizado: é o corpo habitual que, nas palavras de Rio de Janeiro: Forense Uni-
José Gil, “é formado de órgãos que impedem a livre circulação da energia”2, versitária, 2002; e, do mesmo
o que nos situa próximos ao atávico dualismo cartesiano. autor: O Nascimento da Clínica.
6.ed. Rio de Janeiro: Forense
Atualmente, devido a um maciço investimento imagético podemos universitária, 2004.
falar de uma entidade-corpo, ou ainda de um corpo-vedete ou corpo-espe- 2
GIL, José. Movimento total:
táculo, caracterizado por cristalizações das experimentações corpóreas o corpo e a dança. São Paulo:
contemporâneas, centradas, sobretudo, na superexposição através da mídia. Iluminuras, 2004, p. 60.
De um modo geral, tanto não nos cabe negar o corpo, quanto pa-
rece arriscado transformá-lo num mais novo oráculo. Antes, cabe-nos
compreender o que compõe a nossa experiência dessa suposta entidade
em que se tornou. Afinal, a partir do que foi dito, podemos entender o
corpo como um dispositivo6, e, como tal, estudá-lo em suas linhas de es-
tratificação e sedimentação (sua história); e em suas linhas de atualização
Artigos
um campo de forças, e que, tal qual é próprio aos dispositivos, a ele per-
tencemos e nele agimos8.
Dessa forma, situamos a discussão em suas implicações com a his-
tória e com nossa atualidade. Por ora, pensemos esse corpo inserido num
determinado registro histórico, social e cultural, em que potências são
convocadas, resistências articuladas, fluxos liberados, drenados, barrados.
Pois, longe de qualquer evidência tranqüilizadora, o corpo é paradoxal9.
Voltemos à idéia de dispositivo. Segundo Michel Foucault, um dispo-
sitivo se caracteriza por um conjunto heterogêneo de elementos (“discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais, filantrópicas”10), bem como a rede que se estabelece entre eles; é o
jogo no interior desta rede; mas tem também sua função estratégica, como
formação que responde a uma urgência. É, em suma, uma maquinaria
que funciona e faz funcionar, e que opera no tríplice registro saber-poder-
subjetivação.
Seguindo a leitura de Deleuze, os dispositivos são compostos por
várias dimensões ou linhas: “Os dispositivos têm por componentes linhas
de visibilidade, linhas de enunciação, linhas de força, linhas de subjetivação,
linhas de brecha, de fissura, de fractura, que se entrecruzam e se misturam,
acabando umas por dar noutras, ou suscitar outras, por meio de variações
ou mesmo mutações de agenciamento.”11
As linhas (ou curvas) de visibilidade são caracterizadas pelos re-
gimes de luz, pela distribuição do visível e do invisível. As linhas (ou
curvas) de enunciação distribuem variáveis, são compostas pelos regimes
de enunciados. Estas duas linhas (visibilidade e enunciação) compõem a
dimensão do saber.
Já as linhas de força, “vão de um ponto singular a um outro, nas linhas
de luz e nas linhas de enunciação”, retificam-nas, entrecruzam, estabele-
cendo um “vai e vem entre o ver e o dizer”12. São a dimensão do poder.
Como uma quarta componente, temos as linhas de subjetivação,
como “dimensão do ‘Si Próprio’ (Soi)”, como processo e linha de fuga,
escapando às precedentes. Nessa acepção, a produção de subjetividade
é um não-dado; é processual, um processo de individuação “(...) que diz 7
D e l euze , 1996, op.cit.,
p. 93.
respeito a grupos ou pessoas, que escapa tanto às forças estabelecidas
como aos saberes constituídos: uma espécie de mais-valia”.13 Além disso, 8
A citação de Deleuze é a
seguinte: “Pertencemos a dis-
outra característica das linhas de subjetivação é a de representarem um positivos e neles agimos”.
“extremo limite”. Desse modo, delineiam a passagem de um dispositivo (ibidem, p. 92)
a outro, predispondo às linhas de fratura. 9
Gil, José. O corpo paradoxal.
É, pois, na relação entre as linhas de subjetivação (sua processualida- In.: LINS, Daniel; GADELHA,
Sílvio. (Org.). Nietzsche e De-
de) e o corpo como dispositivo que nos cabe compreender como aquelas leuze: que pode o corpo. Rio
propiciam um limiar para este em nossa sociedade. Ou mesmo, num qua- de Janeiro; Fortaleza: Relume
Dumará; Secretaria da Cultura
dro atual em que o corpo, tão enaltecido e exposto, pudesse estabelecer e Desporto, 2002, p. 131 e ss.
relações de permeabilidade e troca com a subjetividade, ensejando ele 10
F o u c au lt, Michel. Mi-
mesmo algum limiar. crofísica do Poder. 22.ed. Rio de
Mas não sejamos tão apressados. Pois há, de saída, pelo menos dois Janeiro: Graal, 2006, p. 244.
modos distintos de se entender e experimentar o corpo: um, que o quer 11
D e l euze , 1996, op.cit.,
evidente e palpável, e, ao evidenciá-lo e materializá-lo, elide seu devir, p. 89.
Artigos
história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado pela história, e a história
arruinando o corpo.19
Artigos
A partir disso, podemos nos perguntar, em nossa história recente, sobre
algum ponto de viragem, uma mudança que toma forma e convoca outras
transformações.
Para Rolnik32, essas transformações nas subjetividades, referem-se às
formas de se lidar com o corpo vibrátil, e recrudescem no final do século 32
R o l n i k , Suely. Molda-se
XIX. Pois é no decorrer dos Oitocentos, marcados pela industrialização e uma Alma Contemporânea.
In.: Leão, L. (org.). Interlab –
desenvolvimento tecnológico, que uma dada configuração entrará em crise: Labirintos do pensamento contem-
é o princípio identitário, como regente da construção das subjetividades, porâneo. São Paulo: Iluminuras,
que rui, pois o que se observa são as subjetividades confrontadas a um rol 2002a..
Artigos
ganhando e invadindo as ruas.
Enfim, podemos afirmar que nossa dor latente e latejante, a busca por
matéria expressiva, é há muito tempo um desafio. Mas, sobretudo na segun-
da metade do século XX é que essa busca assume características específicas,
colocando-nos desafios que se estendem a nossa contemporaneidade. Por
exemplo, acompanhamos uma necessidade — principalmente a partir dos
anos 1950 —, cada vez mais presente em suas formas de produção, suas
temáticas e nos materiais utilizados, da arte sair do espaço especializado
dos museus, galerias e exposições, e transbordar para o cotidiano. Podemos
exemplificar essa desespecialização da arte — no caso, nas artes plásticas
— com a Arte Pop41, que vai trazer o cotidiano do consumo e do universo
da comunicação de massa para o território da arte, elementos estes que lhe
eram estranhos. É interessante notar que a obra-marco desse movimento
— uma colagem de Richard Hamilton, de 1956, intitulada O que exatamente
torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes? — mostra justamente um
exemplo máximo do cotidiano da classe média: um lar moderno de um
casal moderno.
41
Cf. M c Ca r t h y, David.
Arte Pop. São Paulo: Cosac
Naify, 2002. (Movimentos da
Fig. 1 – Richard Hamilton, Just what is it that makes today’s homes so different, so appealing?, 1956 Arte Moderna).
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Artigo recebido em novembro de 2010. Aprovado em maio de 2011.