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O Método Õtzi: os fundos de arquivos unos e indivisíveis

No verão de 1991, nos Alpes austríacos, no Tirol, montanhistas descobriram o corpo de um homem

perfeitamente conservado no gelo do Vale de Ötsal, foi por isso, denominado Ötzi. Sua história,

cientificamente reconstituída, foi objeto de um documentário ficcional transmitido pela France 2 no dia 22 de

agosto de 2005, durante o programa Contre-courant, sob o título “O mistério de Ötzi: inquérito sobre uma

morte suspeita há 5 mil anos”. O filme relatava o estudo minucioso sobre Ötzi desenvolvido pelos

pesquisadores desde então.

Ötzi viveu numa era pré histórica (cerca de 5.300 anos), para a qual não dispomos de documentos escritos

anteriores a 4 mil anos; as únicas testemunhas desse período são os objetos materiais que os arqueólogos

conseguem descobrir na terra (por meio de escavações), sob a água no lago Paladru, região de Dauphiné,

França, por exemplo) ou sob as cinzas vulcânicas (do Vesúvio, Itália). Isto significa que nossos conhecimentos

da época se baseiam nesses “suportes de conservação”: a terra, a água ou o fogo, suportes que operaram,

cada qual à sua maneira, uma forma de seleção mais ou menos rigorosa. Ötzi, graças ao congelamento, é

uma testemunha completa e uma espécie de instantâneo.

Para explicar cientificamente tal descoberta de suma importância, dois métodos de estudo poderiam ser

adotados. A primeira solução seria repartir entre os museus e laboratórios competentes as vestes, as armas, o

corpo, efetuar uma dispersão, isto é, fragmentar esse todo orgânico num certo número de peças isoladas e

reuni-las a objetos similares. A raridade das fontes leva muitas vezes certos historiadores medievalistas a

constituir, como na prática da documentação, coleções de documentos isolados, e a confrontá-los para fins

de crítica e edição. É o beabá da erudição, da diplomática da alta Idade Média. Porém, quando se dispõe de

conjuntos orgânicos de documentos, esse confronto se torna desnecessário.

A outra solução consiste em aplicar o método da arquivística, o princípio do respeito aos fundos, isto é,

deixar junto tudo aquilo que foi encontrado com Otzi e estudá-lo como um todo. Foi o método escolhido. Os

especialistas das mais diversas disciplinas são convocados sucessivamente e cada qual dependendo da sua

área, analisa, diz o que vê, o que sabe, faz o comentário, se possível, e fornece o resultado aos outros. Ôtzi

possui utensílios de pedra polida, e também um rfiachado de bronze: será que isso significa que, naquela

altura do neolítico a passagem para a idade do bronze está em vias de se processar?

Ele veste roupas de couro: de que animais? Alguns são selvagens, outros domésticos - o que se pode deduzir

desse fato? Os restos de sangue encontrados numa flecha pertencem a dois grupos sanguíneos diferentes, a
dois homens diferentes - o que concluir? Suas vísceras nos mostram o que ele comeu e bebeu; os dentes e o

corpo revelam sua idade e seu estado de saúde; e os polens, a época em que morreu.

Eu poderia continuar enumerando os ângulos de estudo que não foram ainda explorados e levantar outros,

graças ao estado de conservação de Otzi. Os pesquisadores vão prosseguindo seu trabalho e, ano após ano,

cruzam dados novos com os anteriores, reduzindo as dúvidas e reforçando as certezas. Otzi continuará

fornecendo informações, o que não teria sido possível se esse “fundo" não houvesse sido respeitado, se os

objetos tivessem sido dispersados e os estudos, consequentemente, fragmentados, cada qual limitado a um

único objeto. A decisão de conservar Otzi como um todo e assim estuda-lo acrescentou um valor infinito a

essa descoberta e aos nossos conhecimentos sobre a época.

O exemplo ilustra o que diferencia os dois procedimentos, e assim ficam esclarecidas as diferenças

metodológicas que os separam e as limitações de ambos. A documentação, técnica de agrupar documentos

com uma finalidade específica, permite tornar conhecimento rapidamente de um assunto e fazer estudos

focalizados, úteis para a ação imediata. Em contrapartida, a manutenção da integridade do fundo oferece, ao

final de longo procedimento científico, uma reserva inesgotável de objetos de estudos e de conhecimento,

além de lhes proporcionar valor probatório. Os fundos de arquivos são unos e indivisíveis. Será essa premissa

sustentável ainda hoje?

DELMAS, Bruno. Arquivos para quê? Tradução de Danielle Ardaillon. São Paulo: Instituto Fernando
Henrique Cardoso (iFHC), 2010. 196p. ISBN: 978-85-99588-33-8.

(Pesquisador francês, Bruno Delmas, Professor Titular de Arquivística Contemporânea, da École Nationale
des Chartes (Paris, França))

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