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Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e

Secretaria Municipal de Cultura apresentam:

SABERES E PRÁTICAS:
AGROECOLOGIA NA ZONA OESTE
DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
FICHA TÉCNICA
SUMÁRIO
Saberes e práticas: Agroecologia na zona

4 Agradecimentos
oeste da cidade do Rio de Janeiro

Autoria: Ana Carolina Souza e Juliana


5 Introdução
SABERES E PRÁTICAS: AGROECOLOGIA NA ZONA OESTE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Sarcinelli Menezes
Organização: Ana Carolina Souza e
Juliana Sarcinelli Menezes
8 da Pedra Branca - AGROPRATA
Associação de Agricultores Orgânicos
Colaboração: Luisa Ferrer
Ilustrações: Carmen Paixão

18 de Vargem Grande - AGROVARGEM


Assuntos - agroecologia; resgate de Associação de Agricultores Orgânicos
saberes, patrimônio imaterial

Número da Edição: 1

Rio de Janeiro, 15 de Janeiro de 2023


28 Quintais Produtivos da Colônia
Juliano Moreira
58 Páginas
36 Quilombo do Camorim
44 Quilombo Cafundá Astrogilda
50 Quilombo Dona Bilina

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INTRODUÇÃO
AGRADECIMENTOS
O Rio de Janeiro é uma cidade mundialmente conhecida por
A agroecologia é uma ciência, filosofia e movimento que possui suas belezas naturais. Além das praias, a cidade possui diversos
como base a diversidade e valorização dos saberes. Dessa forma, parques e áreas de conservação. Contudo, apesar de suas belezas
gostaríamos de agradecer aos núcleos agroecológicos e seus naturais, o Rio de Janeiro possui a imagem de uma cidade comple-
representantes por compartilharem seus saberes e memórias tamente urbanizada. Essa imagem é legitimada pelo Plano Diretor,
conosco. datado de 1992, que decretou a extinção das áreas rurais na cidade
e desta forma o não reconhecimento da capital fluminense como
Sendo assim, obrigada Rita Caseiro, Bernardete Montesano,
um território que produz alimentos.
Leonídia Isfran, Adilson Almeida,Fátima da Silva, Sandra dos
Santos, Sarah Rúbia, Francisco Caldeira, representantes dos Apesar de pouco reconhecida pela população, a capital flu-
núcleos AGROPRATA, Quilombo Dona Bilina, Quilombo do minense possui atividades de agricultura urbana e periurbana.
Camorim, Quintais Produtivos da Colônia Juliano Moreira, Há quintais orgânicos e hortas comunitárias espalhadas pela
AGROVARGEM e Quilombo Cafundá Astrogilda. cidade, além de inúmeros sítios exercendo atividades agrícolas,
Agradecemos à equipe do Instituto Permacultura Lab, pela ajuda principalmente, na zona oeste. Agricultores familiares produzem
na realização das atividades necessárias para a conclusão deste frutas, verduras,legumes e ervas medicinais que são comerciali-
material. zados em feiras orgânicas e agroecológicas em diversos bairros
da cidade. Ainda que presente em diversos territórios da cidade,
Agradecemos à Rede Carioca de Agricultura Urbana pela parceria o comércio de produtos agroecológicos ainda é pouco conhecido
e auxílio durante o processo de realização deste projeto, e invisibilizado, representando uma resistência às pressões socio-
especialmente à Luisa Ferrer, por todo apoio na realização das econômicas e políticas da cidade. A agricultura urbana na cidade
entrevistas conduzidas. do Rio de Janeiro resiste à especulação imobiliária, grandes redes
Agradecemos aos profissionais e parceiros que estiveram de supermercados e avanço da urbanização.
conosco durante todo o processo de elaboração deste material.
Nesse contexto, está inserido o maciço da Pedra Branca,
localizado na zona oeste da cidade e parte de uma das maiores
florestas urbanas do mundo: o Parque Estadual da Pedra Branca. O
O projeto tem patrocínio da Prefeitura do Rio de Janeiro, por maciço está localizado entre os bairros do Recreio dos Bandeiran-
meio do FOCA - Fomento à Cultura Carioca, promovido pela tes, Barra da Tijuca, Camorim, Vargem Pequena, Vargem Grande,
SMC - Secretaria Municipal de Cultura. Guaratiba, Campo Grande, Santíssimo, Senador Camará, Bangu,
Padre Miguel, Realengo, Taquara, Jardim Sulacap, onde há forte
presença de atividades agrícolas.
Nesse material, foi realizado o levantamento de práticas e
saberes de 6 núcleos agroecológicos, situados nos bairros do en-
torno do Parque Estadual da Pedra Branca, realizando atividades
de plantio agroecológico, resgate e difusão de saberes tradicio-
nais. Os núcleos são: Quilombo do Camorim, Quilombo Cafundá
Astrogilda, Quilombo Dona Bilina, Quintais Produtivos da Colônia
Juliano Moreira, Associação de Agricultores Orgânicos da Pedra
Branca - AGROPRATA e a Associação de Agroecologia de Vargem
Grande - AGROVARGEM.
Nos 6 núcleos abordados há presença de agricultores agroeco-
lógicos, que tiram seu sustento da terra e garantem a produção de
alimentos saudáveis. As práticas realizadas por esses agricultores,
não garante apenas a saúde física da população, como também
auxilia na manutenção de serviços ecossistêmicos essenciais para
a população e conservação dos ecossistemas. Além das atividades
relacionadas ao meio ambiente e produção agrícola, os núcleos
possuem expressões culturais e saberes singulares, que represen-
tam uma importante parte do patrimônio cultural da cidade do Rio
de Janeiro e da cultura local desses territórios.
Reconhecer que a cidade também planta é sonhar uma outra
cidade, um sonho praticado no dia a dia de centenas de agricul-
tores familiares. Parte dessas histórias estão aqui documentadas.
(Associação de Agricultores
Orgânicos da Pedra Branca)

1. Agroprata - Formalização e relações com o


território

A Associação de Agricultores Orgânicos da Pedra Branca


(AGROPRATA), está localizada no Rio da Prata, sub-bairro de Campo
Grande, na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. O sub-bairro
é conhecido por suas atividades agrícolas tradicionais e agroe-
cológicas, além de sua proximidade com o Parque Estadual da
Pedra Branca. A associação foi fundada em 2002 por agricultores
tradicionais do território, Madalena Gomes, Arnaldo A. da Costa,
Claudino A. da Costa, Idercínio R. de Oliveira (Sininho), Antonio
AGROPRATA

Cardoso de Paiva (Coquinho), Luiz Carlos Santana, Sampaia do


Rosário, dentre outros.
O parque Estadual da Pedra Branca foi criado em 1974 e por
lei, não poderia haver presença humana dentro dos limites do
parque. Contudo, grande parte dos agricultores do sub-bairro
do Rio da Prata estavam situados dentro da área do recém cria-
do parque há muito anos e assim, começaram a conviver com a
ameaça de despejo dos seus lares e território, assim como o risco
de abandonar sua cultura, práticas econômicas e meio de vida.
Buscando se resguardar de uma possível remoção, os pro-
dutores localizados dentro da área do parque buscaram amparo
legal, através da lei de proteção à população tradicional. As famílias
agricultoras residentes possuíam antepassados que já ocupavam o
território e desenvolviam atividades agrícolas há pelo menos 300
anos e também faziam parte do grupo indígena “Picinguaba”, que
habitava a região. Por meio do levantamento de documentos e
pesquisas sobre o histórico das famílias da região, foi descoberto
que seus antepassados possuíam origens similares. Em grande
parte as famílias eram compostas por negros escravizados e imi-
grantes que constituíram família com as mulheres indígenas do

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grupo Picinguaba. Dessa forma,amparados pela lei, os agricultores AGROPRATA não envolvem somente o cultivo de alimentos, as
tradicionais do território do Rio da Prata, localizados dentro dos práticas e saberes do território englobam as esferas sociais, po-
limites da área do parque Estadual da Pedra Branca, se mantiveram líticas e ambientais da agroecologia.
na área e seguiram com suas atividades agrícolas. Além das práticas de plantio de alimentos, os agricultores da
Mais tarde, em 1998, a ONG Roda Viva começou a desenvol- Agroprata realizam o aproveitamento integral e beneficiamento
ver o projeto “Eco-intercâmbio Brasil-Canadá” que possuía como dos alimentos que produzem. O caqui in natura produzido pela
objetivo a conservação dos corpos d’água do Parque Estadual AGROPRATA é comercializado para toda a cidade do Rio de Janeiro.
da Pedra Branca, onde eram realizadas análises da qualidade da Além da fruta, parte dos agricultores, faz o beneficiamento do
água junto a estudantes da rede pública do bairro do Rio da Prata. caqui, transformando-o em caqui- passa e vinagre de caqui. A
Como estratégia de conservação dos corpos hídricos e qualidade agricultora Sampaia do Rosário foi a primeira a produzir o vinagre
da água, a ONG passou a desenvolver junto aos agricultores do de caqui, hoje, amplamente produzido por outros agricultores da
território a implementação de atividades de agricultura orgânica AGROPRATA e muito apreciado pela ecogastronomia. O vinagre
(embora tenham reconhecido que muito de sua forma de pro- atualmente passa por processos de melhoramento com parcerias
dução já se assemelhava a esta nova técnica apresentada, tanto em torno da Embrapa, Universidade Rural e outras organizações.
que o período de transição foi muito rápido, pois não utilizavam A AGROPRATA também produz o caqui-passa, já conhecido por
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nenhum tipo de agrotóxicos ou produto químico).O projeto rea- alguns. Além do caqui, também é produzida a banana passa or-
lizava o acompanhamento da produção dos agricultores, visando gânica.
a certificação orgânica dos alimentos. Ao longo do projeto foi Anualmente, a Rede CAU produz o “Tira Caqui”, colheita so-
desenvolvido um curso de capacitação em agricultura orgânica, lidária da fruta realizada pelos agricultores e consumidores, no
na casa de Madalena, agricultora do território, durante 1 ano. Os território do Maciço da Pedra Branca, intercalando entre Rio da Prata
agricultores participaram de vivências onde puderam conhecer o e Vargem Grande, além da celebração da safra, que acontece todo
trabalho da Rede Ecovida no sul e o trabalho de Seu Zé Ferreira ano. Durante as festividades, são realizadas oficinas de reaprovei-
em Paraty. Assim, tiveram o primeiro contato com os conceitos da tamento integral do caqui, além de atividades culturais e resgate
agroecologia, já que as práticas agroecológicas estavam presentes de saberes tradicionais.
nas atividades realizadas pelos agricultores.

3. Agricultura
2. Saberes do território
No contexto da agricultura, a sustentabilidade diz respeito,
Os saberes agroecológicos são uma constelação de conheci- basicamente, à capacidade de garantir a permanência da produti-
mentos, técnicas e práticas que estão diretamente relacionadas vidade, ao mesmo tempo em que se mantém a base de recursos
às condições ecológicas, econômicas, técnicas e culturais de (Moura et al. 2013). Dessa forma, a agricultura urbana, realizada
cada território e população. Estes saberes e estas práticas não pela AGROPRATA auxilia na difusão de alimento de qualidade
se unificam em torno de uma ciência: as condições históricas de para a população do Rio de Janeiro, enquanto reduz os impactos
sua produção estão articuladas em diferentes níveis de produção da produção nos ecossistemas, visto que não fazem uso de agro-
teórica e de ação política, que abrem o caminho para a aplicação químicos e há menor emissão de CO2 relacionado ao transporte
de seus métodos e para a implementação de suas propostas dos alimentos.
(Machado & Machado Filho, 2014).Os saberes que emergem da

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A AGROPRATA já produziu e ainda produz uma grande diver- uso de agrotóxicos. Dessa forma, a realização e participação em
sidade de cultivos, frutas como laranja, banana e caqui, hortaliças, feiras agroecológicas permitiu que os produtores acessassem um
ervas, tubérculos e verduras. Integra o circuito carioca de feiras novo público. Assim, passaram a difundir seu conhecimento e
orgânicas, em quase todo o Rio de Janeiro, estando presente em forma de produção para outras pessoas interessadas em consumir
bairros como Copacabana, Recreio, entre outros, comercializando alimento de qualidade, produzido de maneira justa e ecológica.
alimento agroecológico e de qualidade para a população.
Além de participarem do circuito de feiras, fazem parte de 4. Agricultura e conservação da natureza
redes de comercialização e agroecológicas como a Rede Carioca
de Agricultura Urbana (Rede CAU) e a Rede Ecológica. Também
participaram de eventos diversos como o “Terra Madre Brasil”, em A agroecologia é uma prática, ciência e movimento social
2009, promovido pelo Movimento Sloowfood - Brasil, onde repre- e tem como premissa a contraposição às práticas e conceitos
sentaram os produtores de alimentos da Região Sudeste, junto a hegemônicos (Wezel et al. 2009). Agroecologia busca conheci-
representantes de diversos países. Em 2012, durante a Rio +20, mentos de diferentes fontes, seja o conhecimento empírico ou
receberam a presença da ministra da economia da Groenlândia, o as contribuições de muitas disciplinas científicas para, a partir da
então vice-presidente da Microsoft, dentre outras personalidades. integração desses distintos saberes e conhecimentos, adotar um
enfoque holístico e uma abordagem sistêmica (Caporal, 2013).
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De 2014 a 2017 realizaram a Festa do Caqui, onde receberam


a visita de chefs renomados que elaboraram pratos utilizando o A proteção ambiental e conservação de ecossistemas são ele-
caqui produzido pela Associação. Também durante a última Festa mentos basilares no conceito de Agroecologia e o trabalho desen-
do Caqui, receberam a medalha Pedro Ernesto, maior honraria volvido pela AGROPRATA tem contribuído para a conservação das
concedida pela câmara municipal do Rio de Janeiro, pelas ativi- áreas de borda do Parque Estadual da Pedra Branca. Agricultores
dades realizadas. e moradores do território apontam que a área florestada aumen-
tou com o passar do tempo. Animais que eram vistos apenas nas
áreas mais preservadas do Parque tem sido avistados nos quintais
dos agricultores. O modelo agroecológico de produção utilizado
Atualmente, nós fazemos parte do circuito pelos agricultores da AGROPRATA, que consiste em consórcios
carioca de feiras orgânicas em quase todo o de diversas espécies, permitiu que as áreas de borda do parque
Rio de Janeiro. Aonde você chega tem uma fossem reflorestadas, auxiliando a potencialmente aumentar o
barraquinha da AGROPRATA. Então, quando habitat para os animais.
falam que não existe agricultura no Rio de
O manejo agroecológico das áreas de cultivo mimetiza pro-
Janeiro, não, nós estamos aqui. cessos ecológicos naturais, conservando recursos naturais, au-
Rita Caseiro - presidente AGROPRATA xiliando a aumentar a ciclagem de nutrientes, assegurando con-
dições favoráveis do solo para o desenvolvimento das plantas
e integridade das interações ecológicas (Reinjnjes et al., 1992).
A AGROPRATA possui uma forte relação com os ecossistemas
A valorização do trabalho e saberes dos agricultores é de naturais presentes em seu território, pois compreendem que a
extrema importância para a Associação. Inicialmente, os produ- saúde do solo e conservação dos ecossistemas são fundamen-
tores da AGROPRATA participavam de feiras de comercialização tais para a manutenção de suas atividades. Ações de educação
convencionais, onde eram vendidos alimentos produzidos sob ambiental junto a moradores da área e empresas são realizadas

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pela AGROPRATA, onde discutem a agroecologia e a importância
negócios locais, redes entre comerciantes, geração de empregos
da conservação ambiental.
e renda para a população local.
As atividades da associação incentivam a troca de saberes en-
tre diferentes atores sociais. Grupos oriundos de outros territórios
Eu acredito que quando você entende, através da buscam a AGROPRATA para participar de vivências e atividades
agricultura, que o solo precisa estar saudável pra realizadas pelos agricultores que integram a associação. Os grupos
te dar um bom alimento, que você precisa cuidar participam de cursos sobre alimentação, onde discutem sobre a
da árvore pra manter a água e que tudo está alimentação de qualidade, usos,histórico e formas de cultivo de
interligado, você acaba aprendendo a preservar não alimentos. Essas atividades auxiliam na difusão e troca de saberes
só pelo amor à preservação, mas pela necessidade. locais para indivíduos que vivenciam realidades sociais distintas.
Rita Caseiro - presidente AGROPRATA
6 - Agroecologia, Mulheres e juventude

5 - Agroecologia e bem-estar social Em suas ações, o coletivo busca promover o desenvolvimento


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intelectual dos jovens camponeses para a luta social e a ocupação


de espaços de decisão em seu território, que sofre os impactos
A dimensão social da agroecologia pressupõe o respeito à sociais e ambientais da especulação imobiliária, a mineração de
condição humana. Os benefícios oriundos da produção precisam empresas do ramo cimenteiro, monoculturas de cana-de-açúcar
ser compartilhados horizontalmente, trazendo bem-estar social e o amplo uso de agrotóxicos.
àqueles que permitem que a produção ocorra (Machado & Ma-
Historicamente, o cultivo da terra foi tido como uma atribuição
chado, 2014).
feminina. Da mesma forma, o cultivo das sementes e plantações,
A valorização do trabalho do agricultor é parte do trabalho a transmissão do conhecimento tradicional nas famílias,a obser-
realizado pela AGROPRATA, que ressalta a importância da valori- vação dos processos naturais e cósmicos,permitiram às mulheres
zação e divulgação do trabalho e saberes de seus integrantes. A desenvolver valorosos conhecimentos sobre o corpo, os ritmos e
partir do trabalho realizado, os agricultores que integram a as- os ciclos. A Agroecologia é um projeto em defesa da vida e nesse
sociação, puderam acessar novos mercados, enquanto adquirem sentido, é importante refletir sobre o posicionamento e o papel
e difundem os saberes e práticas agroecológicas. A AGROPRATA que as mulheres podem e devem cumprir nos territórios. No ter-
já realizou e ainda realiza eventos e atividades de grande porte e ritório do Rio da Prata, as mulheres ainda são minoria em espaços
extrema relevância, articulando a rede local com atores de outros de tomada de decisão, apesar de integrarem a cadeia produtiva.
territórios e países. É necessário buscar promover a participação e a emancipação
Além do bem-estar dos agricultores, as atividades também efetiva das mulheres, em suas dimensões econômica (geração e
beneficiam seu próprio território, visto que a realização de even- apropriação da renda), política (participação e tomada de decisões)
tos como feiras e festas, fomentam a movimentação da economia e humana (com a elevação da cultura e dos níveis de consciência
local, permitindo assim, que os benefícios da produção sejam de homens e mulheres). Outro importante desafio é o de avançar
acessados pela população do território. A feira agroecológica do nos processos de cooperação, em suas diferentes formas e sen-
Rio da Prata foi se desenvolvendo ao longo do tempo e atraindo tidos, pois ela é uma necessidade para a agroecologia e para a
mais pessoas para o território, auxiliando na criação de novos emancipação das mulheres e da classe trabalhadora.

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A agroecologia é um novo paradigma, determinado por novas
relações, e esse é um desafio e um processo para as famílias. A *
participação das mulheres enriquece, embeleza e engrandece as
organizações. Por isso, mulheres, mães, camponesas, companhei-
ras, militantes, dirigentes, todas essas facetas e qualidades desen- Referências
volvidas pelas mulheres devem ser potencializadas e colocadas no
sentido da organização e do fortalecimento da participação delas CASTRO, E. G. Juventude rural no Brasil: processos de exclu-
a começar pelo rompimento com a organização convencional da são e a construção de um ator político. Revista Latinoame-
divisão de tarefas no campo e a desvalorização dos trabalhos ditos ricana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, Vol. 7, nº. 1,
femininos, pois as mulheres devem ser valorizadas pelos traba- jan-jun 2009).
lhos de produção de alimentos saudáveis e podem transformar
tal tarefa em geração de renda para toda a família (MST, 2021). WEISHEIMER, N. Juventudes rurais: mapas de estudos recen-
A AGROPRATA também se esforça em fomentar a participação tes. Brasília: MDA, 2005.
da juventude em suas atividades, contudo, poucos jovens estão
envolvidos nas ações da associação. No Brasil temos 51,3 milhões MACHADO, L.C.P, MACHADO FILHO, L.C.P. 2014. A dialética da
Agroecologia: Contribuição para um mundo com alimentos
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de jovens, destes 8,6 milhões são jovens camponeses, segundo


levantamento realizado pelo último censo do IBGE, em 2010. sem veneno. 2 ed. São Paulo.
Quando voltamos o nosso olhar para o debate acerca da Juventude
Camponesa, dois problemas chamam a atenção dos pesquisado-
res deste segmento, a migração e a invisibilidade da juventude
rural, (Weisheimer, 2013). Os jovens estão deixando as atividades
agrícolas,tal fenômeno contribuiu para um acentuado processo
de envelhecimento e masculinização das populações rurais e as
que desempenham atividades agrícolas. A permanência dessas
juventudes no campo, pode significar a garantia da segurança
alimentar do nosso país, a continuidade da agricultura familiar,
a conservação do patrimônio cultural e tradições nas comunida-
des camponesas, indígenas e tradicionais. A agricultura familiar
é quem alimenta a população brasileira, e ela tem disputado a
produção de alimentos de forma agroecológica.
Não podemos mais fixar os jovens no campo sem criar con-
dições para que permaneçam com a oferta de serviços públicos,
condições de moradia, de mobilidade, de geração de renda. Sendo
assim, a juventude precisa ser constituída por atores políticos e
organizados em movimentos sociais do campo de diversas ordens
tem reafirmado a sua identidade e as suas bandeiras de lutas
(CASTRO, 2009, p.183) para que possam promover transforma-
ções sociais profundas na sociedade.

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(Associação de Agroecologia
de Vargem Grande)

1. AGROVARGEM- Formalização e relações com


AGROVARGEM

o território

O bairro de Vargem Grande fica localizado na zona oeste da


cidade do Rio de Janeiro, e faz parte dos bairros que se desen-
volveram próximo ao Maciço da Pedra Branca, que hoje abriga o
Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB). É um bairro tradicional-
mente agrícola, construído por agricultores que tinham como seu
principal cultivo a banana. Atualmente, estas produções ficam
localizadas em áreas limites do Parque, que têm como um dos
elementos de caracterização a presença de nascentes de água. Além
disso, a paisagem destas áreas é marcada pela vegetação de Mata
Atlântica em diferentes estágios de recuperação consorciada com
espécies de árvores frutíferas, além dos bananais (Prado, 2012).
O território tradicionalmente agrícola possui como um dos
principais problemas socioambientais, a especulação imobiliária.
A presença de condomínios gera conflitos territoriais e problemas
ambientais como desmatamento e alagamentos provocados por
construções feitas em áreas próximas ao leito de rios. A criação
do PEPB trouxe desafios para a permanência dos agricultores em
seu território, que tiveram suas atividades agrícolas restringidas,
devido a visão conservacionista de que ser humano e natureza não

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podem coexistir para garantir assim a permanência das espécies Agroecológica de Fitomedicamentos, mais tarde renomeado como
e a diversidade local. Ainda que o modo de produção dos agricul- Núcleo de Gestão em Biodiversidade e Saúde, da Farmanguinhos/
tores não cause impactos ambientais negativos ao ecossistema, Fiocruz, o projeto seria desenvolvido com o foco em quatro temas:
foi prevista a retirada dos mesmos da área do PEPB. Apesar dos o primeiro, referindo-se à capacitação dos agricultores sobre formas
conflitos territoriais, em Vargem Grande resiste uma agricultura de plantio de plantas medicinais; o segundo, à disponibilização de
pautada na agroecologia, que tem em suas bases a coletividade, informação técnica permanente; o terceiro, à certificação institu-
valorização da diversidade, o associativismo, promoção de rela- cional; e o quarto, à criação de redes de comunicação, informação
ções justas e luta pela garantia de direitos para os agricultores. entre atores e instituições (Prado, 2015).
A partir do envolvimento dos agricultores nas atividades
promovidas pelo programa, os mesmos organizaram-se em as-
sociações, a fim de formalizarem sua busca por direitos através
Hoje a gente ta junto da articulação carioca pela
da luta por políticas públicas. Os objetivos definidos pela AGRO-
justiça socioambiental que é um coletivo, um grupo
VARGEM em seu estatuto envolvem: a preservação e recuperação
que reúne diversos coletivos da cidade que passam
ambiental; promoção do bem estar dos associados; promoção do
pelo mesmo problema que são as federações de
associativismo e do desenvolvimento social, cultural e econômico
condomínio autorizando a derrubada de 300,
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sustentável; desenvolvimento, expansão e adoção da agricultu-


400, 200, cada área tem uma quantidade absurda
de árvores e aqui em vargens especialmente, a ra orgânica pelos associados, desde que a renda obtida com a
construção desses condomínios favorecendo o venda dos produtos seja revertida para melhorias e manutenção
alagamento das comunidades que estão próximas da associação; desenvolvimento da produção, comercialização e
aos alagados, né. consumo de produtos orgânicos; difusão de informações atinen-
tes à produção agrícola aos associados; integração dos jovens
Sarah Rúbia - integrante da AMAVAG e das mulheres nas atividades socioeconômicas; representação
dos agricultores e desenvolver modelos estratégicos de políticas
públicas e privadas a fim de fomentar geração de trabalho e renda
A Associação de Agroecologia de Vargem Grande foi fundada e o desenvolvimento socioeconômico (Prado, 2015).
em dezembro de 2007 no contexto do programa PROFITO. O pro-
grama consistia na realização de um levantamento de espécies e
cursos para a produção de plantas medicinais. O foco do projeto Nós, agricultores do maciço, ficávamos espalhados
era gerar renda a partir da produção de plantas medicinais para uso pela área até que participamos do projeto PROFITO,
fitoterápico pelos agricultores de Vargem Grande. Inicialmente, o que além de outras atividades, ofereceu o curso de
programa foi chamado “Projeto de Plantas Medicinais do Entorno plantas medicinais. A partir do curso apareceram
do Parque Estadual da Pedra Branca”, mais tarde foi rebatizado tantas questões políticas que os agricultores se
como Profito, designação também utilizada pelos agricultores uniram para entender o funcionamento do Estado,
quando se referem ao projeto. O PROFITO foi desenvolvido com e entenderam que precisavam se organizar
outras duas associações já existentes no entorno da Pedra Branca, em associações e fundamos a AGROPRATA e a
a AGROPRATA e a ALCRI (Associação de Lavradores e Criadores de AGROVARGEM .
Jacarepaguá). O projeto era inicialmente organizado em três fases: Francisco Caldeira, agricultor e integrante da
diagnóstico, implantação e capacitação. Idealizado na Plataforma AGROVARGEM.

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Segundo o agricultor Francisco, ex-presidente da AGRO- Pedra Branca, que abriga a importante área de preservação do
VARGEM, a gestão é feita de modo colaborativo, o ambiente da PEPB, os agricultores desenvolvem suas atividades tendo como
associação é um lugar de confiança e ajuda mútua. É através desta objetivo a preservação da natureza e da biodiversidade. Dessa
gestão participativa que a AGROVARGEM atua e estabelece o diálogo forma, não fazem uso de agroquímicos e buscam realizar uma
entre seus cerca de 30 associados e instituições parceiras (ONGs, produção diversificada, por meio do uso de consórcios entre es-
universidades e redes da sociedade civil), a fim de garantir a conti- pécies, desenvolvendo sistemas agroflorestais complexos, que
nuidade da política de assistência aos agricultores do território que cultivam um conjunto de espécies arbóreas e outros tipos vegetais.
resistem e lutam pela implementação de políticas públicas que os Os sistemas agroflorestais possuem como objetivo mimetizar
auxilie a assegurar seus direitos. As principais organizações com os ciclos naturais e interações ecológicas que ocorrem de forma
quem a AGROVARGEM dialoga são: Rede Carioca de Agricultura espontânea na natureza,facilitando o crescimento mútuo das es-
Urbana (Rede CAU); Rede Ecológica; ONGs como a AS-PTA, Capina pécies vegetais plantadas. As frutas representam a maior parte
e PACs; FIOCRUZ e universidades como UERJ, UFF, UFRJ e princi- da produção da AGROVARGEM, sendo a principal delas banana
palmente, com a UFRRJ. Além destas, possui uma extensa relação seguida pelo caqui, também muito característico das produções
de parceria com a Associação de Moradores e Amigos de Vargem do Maciço da Pedra Branca. Além destes, os principais cultivos
Grande (AMAVAG), que possui um papel fundamental na defesa são: aipim, batata doce, abacate, jaca e grumixama. Outro tipo
do patrimônio ambiental e do modo de vida dos agricultores da de cultivo muito comum é o de ervas medicinais e plantas alimen-
SABERES E PRÁTICAS: AGROECOLOGIA NA ZONA OESTE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

região. Fundada em 1982, tem também em seu estatuto a defesa tícias não convencionais (PANCs), como a taioba.
do meio ambiente e dos modos de vida dos agricultores como Ainda que muitas das espécies frutíferas cultivadas não se-
objetivos. É também na AMAVAG que os mesmos encontram um jam espécies nativas da Mata Atlântica, são espécies que fazem
espaço para poderem comercializar seus produtos. parte da cultura alimentar e que sustentam os agricultores da
Estas articulações permitem o diálogo direto com o poder região. Como é o caso da banana, historicamente produzida de
público; desenvolvimento de estratégias de comercialização e forma agroecológica. O beneficiamento dos alimentos é exercido
acesso à feiras; e o desenvolvimento de projetos que garantem tradicionalmente no bairro através da produção de doces como
assessoria técnica, formação e apoio em questões burocráticas bolos e geleias, que é exercida principalmente pelas mulheres,
para os agricultores. A atuação em parceria com a Rede CAU per- é também uma forma de geração de renda.
mitiu, por exemplo, a presença de agricultores familiares na ALERJ,
que puderam levar suas reivindicações ao poder público, além
da luta pela implementação da Política Estadual de Agroecologia
e Produção Orgânica (PEAPO). Devido a questões burocráticas, a Aqui a banana sempre foi diferente de todo lugar.
AGROVARGEM ficou com CNPJ inativo, atualmente, com o auxílio [...] Eu não consigo comer uma banana que não
da AS-PTA, a associação reativou seu cadastro de pessoa jurídica. seja de vargem grande. Eu dou uma mordida e eu
já sei.
Sarah Rúbia - integrante da AMAVAG
2. Agricultura e Agroecologia em Vargem Grande

A produção de alimentos no território de Vargem Grande é


A produção pautada na agroecologia vai muito além de uma
conhecida, historicamente, por ser realizada por meio do uso de
produção livre de venenos. Ela traz valores comunitários, de cole-
práticas agroecológicas. Devido a sua localização no Maciço da
tividade e cuidado e um entendimento da profunda relação entre

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cultura e natureza. Para além do plantio, muitas outras práticas do conceito orgânico e apesar de pequena, conta com uma varie-
agroecológicas podem ser observadas no território da AGROVAR- dade grande de produtos.
GEM, como a compostagem, experiências com bioconstrução e a
adubação verde. Outra prática recorrente no território fundamental
Quando você comercializa um produto que você
para a manutenção da biodiversidade são as trocas de sementes e
cultivou, com amor, ele não é mais um produto,
construção de bancos de armazenamento das mesmas. Sementes
é um alimento.
Crioulas são variedades de espécies locais desenvolvidas e mane-
jadas pelos próprios agricultores, que são cultivadas e passadas Francisco Caldeira, agricultor e
de geração em geração e trocadas entre parceiros. Essa prática integrante da AGROVARGEM.
permite que as sementes se adaptem às condições ambientais
locais, permitindo uma maior diversidade alimentar e de espé-
cies (Benvegnú & Radomsky, 2020). A agroecologia promove um 3. Mulheres e Juventude
movimento constante e permanente em relação a valores e prá-
ticas. A realização de queimadas para o plantio, que costumava O território no qual está localizada a AGROVARGEM possui
ser comum na região, deixou de ser praticada pelos agricultores um histórico de protagonismo feminino nas lutas por melhorias
após o entendimento dos danos ao solo que esta prática trazia. no bairro e aumento da qualidade de vida da população local.
SABERES E PRÁTICAS: AGROECOLOGIA NA ZONA OESTE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

No passado, foram as mulheres do território que lutaram para


adquirir água encanada para a população do entorno, assim
A agroecologia mudou a vida da grande maioria como a mobilização para frear as causas de enchentes, que eram
dos agricultores. Quando começamos a aprender frequentes no território.
práticas agroecológicas, percebemos que muitas Os jovens do território, assim como muitos moradores de áre-
já eram realizadas nas áreas de Vargem Grande, as periféricas, enfrentam dificuldades para realizar suas atividades
mas as pessoas não chamavam assim. Esse básicas durante o dia, visto que há precarização dos transportes
aprendizado foi muito importante para construir públicos, instituições públicas de ensino e poucos espaços de
conhecimentos sobre segurança alimentar, difusão cultural. Atualmente, a juventude não está tão presente
bem estar animal, nascente, água, solo.[...] A nos espaços de tomada de decisão da AGROVARGEM, contudo,
agroecologia vem refazendo a forma como nós há um constante esforço de integrar os jovens às pautas e lutas
interagimos com a questão ambiental. do território. O racismo ambiental é uma pauta em discussão,
Francisco Caldeira, agricultor e onde tenta-se mostrar e discutir com os jovens as especificidades
integrante da AGROVARGEM e lutas dos diferentes territórios. A participação dos jovens nas
atividades relacionadas à agricultura também tem sido reduzida,
visto que a mídia contribui para a desvalorização dos agricultores
e as atividades que realizam. Dessa forma, é necessário combater
Os produtos produzidos pelos agricultores da AGROVARGEM o discurso midiático por meio da difusão e resgate de saberes
são comercializados principalmente na Rede Ecológica, na feira tradicionais e conectá-los com a cultura e as necessidades da
da Freguesia, em Jacarepaguá e na Feira da Roça. A Feira da Roça juventude atual. A agroecologia é diversa e abarca diferentes
acontece semanalmente, aos domingos, em Vargem Grande. Foi práticas, culturas e formas de viver.
criada em 2016 e é coordenada principalmente por mulheres. A
feira é independente e utiliza o conceito agroecológico ao invés

24 25
*

Referências

BENVEGNÚ, V.C.; RADOMSKY, G. Entre o sucesso e o fracasso:


desenvolvimento, sementes crioulas e transgênicas. Novos
Cadernos NAEA, v. 23, n. 1, p. 171-193, 2020.

PRADO, B.A. A construção de modos de vida sustentáveis em


torno da agricultura na cidade do rio de janeiro: Agricultores
do Maciço da Pedra Branca. Tese de doutorado. Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade. Rio de Janeiro. 2012. https://drive.
google.com/file/d/1yEXqZDmBZngt9pPXWzBQXRYfGXQYAP
SABERES E PRÁTICAS: AGROECOLOGIA NA ZONA OESTE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

3f/view

26 27
1. Constituição da Colônia e relação com o
Parque Estadual da Pedra Branca

A criação da Colônia Juliano Moreira se deu a partir da ne-


cessidade de reformar e ampliar o número de instituições de
assistência à pessoas com deficiências mentais. Nesta época,
crescia o investimento em pesquisa e desenvolvimento de técni-
cas de tratamento no âmbito da saúde pública. Acreditava-se no
potencial terapêutico que práticas agrícolas poderiam ter para
Colônia Juliano Moreira

os pacientes, devido ao contato com o meio rural e elementos


Quintais Produtivos da

naturais.As colônias agrícolas eram então uma proposta de ação


dentro da saúde pública, articulada com a assistência familiar
(Venâncio, 2011).
Em 1924, é criado o Hospital para homens psicopatas, que
mais tarde se tornaria a Colônia Juliano Moreira (Venâncio, 2011;
Leal, 2020). Com o intuito inicial de receber somente os pacientes
das instalações de saúde mental localizadas na Iilha do Governa-
dor, o atendimento era voltado somente para o gênero maculino
e tinha como principal linha de tratamento, o manejo agrícola.
Por sua proximidade com o Parque Estadual da Pedra Branca, a
implantação de unidades de cultivo era propícia. Com o passar dos
anos, houve a necessidade de ampliação devido à superlotação.
O atendimento foi estendido para o gênero feminino e houve a
criação de novos pavilhões. ( Leal, 2020).
Com esta ampliação, a Colônia Juliano Moreira passou a ser
considerada um Hospital-Colônia, um de seus principais trunfos:
a terapêutica pelo trabalho para os crônicos, que trazia algum
retorno orçamentário frente às despesas institucionais. De outro
lado se apresentava como uma instituição hospitalar, visando
empregar os tratamentos considerados de ponta na época. Nas
décadas iniciais do século xx, os movimentos antimanicomiais
crescem, fazendo com que a Colônia Juliano Moreira se dividisse
entre a unidade hospitalar e a unidade agrícola.

29
território que produzem dentro de suas residências, em seus
quintais. São oferecidos cursos de capacitação, acompanhamento
É, meu pai era agricultor há muito tempo. Quando e assessoria técnica nas produções, auxílio no manejo através de
a gente veio... Quando ele veio morar aqui ele mutirões e fornecimento de insumos como sementes. A equipe
começou a trabalhar e não morava aqui no campus, promove também encontros mensais para discutir estratégias de
morava lá fora. E como ele já vinha de uma família comercialização e a situação das produções. (Nascimento, 2018).
de agricultores ele sentia falta da terra. Aí o diretor Além disso, a ação em parceria com outros setores da so-
começou a trabalhar, era funcionário público aqui ciedade civil como a Rede Carioca de Agricultura Urbana e a
tomando conta dos pacientes porque era colônia ONG AS-PTA, possibilitou as agricultoras emitirem documentos
de doentes mentais e ele trabalhava lá, foi assim que permitem o acesso a políticas públicas para agricultura e
que começou aqui a colônia.Era vasto, plantava que também facilitam a comercialização de seus produtos,tais
abóbora, milho... tudo. A gente vivia do que ele como a certificação orgânica através do Sistema Participativo de
plantava praticamente. Garantia (SPG -ABIO) e o Documento de Aptidão ao Pronaf (DAP).
Fátima Leandro, agricultora em um dos O SPG envolve todos os componentes da rede de produção or-
Quintais da Colônia gânica. Agricultores, produtores, extrativistas, comerciantes,
SABERES E PRÁTICAS: AGROECOLOGIA NA ZONA OESTE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

consumidores e técnicos compartilham a responsabilidade pela


avaliação da conformidade das unidades de produção frente aos
regulamentos da agricultura orgânica. Os Grupos do SPG-ABIO
2. História da agricultura agroecológica no reúnem-se, no mínimo, bimensalmente, para avaliar os Planos
território da Colônia de Manejo Orgânico, os relatórios das Comissões de Verificação
que visitam as unidades de produção e os relatórios das Visitas
de Pares. Esses Grupos são acompanhados por técnicos da ABIO
Ao longo dos anos, o nome da instituição Colônia Juliano Mo- (ABIO, 2022). Já o DAP é o instrumento utilizado para identificar
reira, passou a identificar também o território no qual se localiza. e qualificar as Unidades Familiares de Produção Agrária (UFPA) da
Atualmente é conhecido como Colônia, um “sub-bairro” de Jaca- agricultura familiar e suas formas associativas organizadas em
repaguá que aos poucos foi sendo ocupado por famílias oriundas pessoas jurídicas (MAP, 2022).
de outros locais do Rio de Janeiro. Essas famílias tinham em suas
tradições o cultivo e uso de ervas medicinais para diversos trata- Para além do apoio burocrático, as agricultoras da Colônia
mentos além do cultivo de plantas alimentícias não convencionais encontram nesses espaços, cursos práticos para beneficiamento
(PANCs). Um exemplo são os relatos dados pela agricultora local do alimento, culinária, manejo, entre outros. Encontram também
Fátima Leandro sobre o uso da arruda para limpeza e o cultivo outras dimensões da atuação em rede: coletividade, cuidado, as-
de taioba e mastruz. O contato com a agroecologia veio a partir sistência, apoio, partilha, formação política, receitas, histórias e
de cursos para formação em produção de hortas oferecidos no fortalecimento de relações. E foi devido a essas relações de apoio
Quilombo do Camorim, e também através da ação de instituições e parceria que no território três quintais já receberam o certifi-
e redes no território. A Fiocruz - Mata Atlântica, localizada no cado pelo SPG-ABIO. O primeiro quintal a receber o certificado,
mesmo território, desenvolve em parceria com os moradores do teve sua proprietária reconhecida como a primeira produtora de
bairro o projeto Quintais Produtivos da Colônia Juliano Moreira. horta urbana no país . Esse registro afirma a qualidade do que é
O projeto tem como objetivo fomentar e dar assistência técnica, produzido nesse espaço de agricultura ecológica, livre de agro-
por meio de uma equipe multidisciplinar, aos agricultores do tóxicos e outros.

30 31
agentes tóxicos.(SOUZA et al, 2014). Todas as agricultoras do realizar o manejo das hortas por meio de mutirões. Os quintais
projeto se reúnem, juntamente com a FIOCRUZ e AS-PTA, uma vez possuem tamanhos e arranjos diferentes, são diversos assim
ao mês para discutir a situação dos seus Quintais, da produção e como sua produção. Dentre as variedades cultivadas encontram-
da venda dos produtos cultivados.(Nascimento, 2018; Leal, 2020). -se plantas medicinais, PANCs, hortaliças e árvores frutíferas. No
quintal de Sandra, agricultora residente da Colônia, são cultiva-
dos: pepinos, hortelã pimenta, hortelã miúdo, ora pro nobis,
pimentão, beldroega, oriri, pimenta, jiló, couve, maxixe, coen-
Agora eu sei que a sementinha é como um bebezinho trão selvagem, vinagreira, terramicina, tomate, bertalha, nirá,
que você coloca lá, aí ela vai crescendo, e daqui a pimentinha biquinha, manjericão verde e roxo, mamão, bertalha
pouco dá o fruto, e aí você pode se alimentar sem coração, maracujá, taioba, quiabo redondo, begonia, orelha de
agrotóxico, agroecologicamente, se alimenta bem. elefante, espada de são jorge, cactos, suculentas, dracena, pei-
Minha horta é pequena. Não faço muita questão xinho, chaya, almeirão, entre outros.
de vender, se alguém precisa de alguma coisa eu
não tenho muito mais compartilho, dou, se eu
tenho muito eu vendo na Barraca dos Quintais É um coletivo bem unido, a gente não vive de
da Colônia. Prefiro que alimente minha família. aparência. Se tiver alguma coisa de errado a gente
SABERES E PRÁTICAS: AGROECOLOGIA NA ZONA OESTE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Sandra Maria, agricultora em um dos discute ali aquele problema e acaba com ele. Então
Quintais da Colônia. vale a pena, é um coletivo bem bacana. Nem todo
mundo é perfeito, tem que ter muita paciência.
Vale a pena. Vale a pena ser agricultor no Rio de
Por fim, é possível perceber que o agir e pensar agroecoló- Janeiro.
gico promove profundas transformações nas formas de existir, Fátima Leandro, agricultora em um dos
trazendo uma visão holística do mundo. Essa perspectiva eviden- Quintais da Colônia
cia que a produção de alimentos está diretamente relacionada à
saúde integral e com a forma de se relacionar com os que estão à
nossa volta e com o território que ocupamos. A agroecologia se
fez presente na Colônia a partir da experiência com a cura, onde As práticas agroecológicas transformam a forma de produzir dos
seria possível obter melhorias na saúde das pessoas através do agricultores do território. Anteriormente, queimadas eram realiza-
manejo e cultivo de alimentos, na consequente mudança alimen- das frequentemente, o que causava o desgaste e empobrecimento
tar e no complemento de tratamentos de enfermidades através do solo a longo prazo. A partir da difusão dos saberes agroecoló-
plantas medicinais, tais como chás, tinturas ou simples o fato gicos, houve a inclusão de novas variedades de alimentos na dieta
de permitir que as pessoas tivessem contato com as atividades dos agricultores e o desenvolvimento de outras práticas sustentá-
agrícolas dentro de suas rotinas. veis, como a troca de sementes e compostagem.
A troca de sementes é uma prática fundamental para a manu-
tenção da biodiversidade. As sementes cultivadas e selecionadas
3. Produção agroecológica - saberes e práticas pelos agricultores são melhor adaptadas ao clima e condições
ambientais locais, o que permite que esses cultivos resistam em
O Manejo e gestão dos Quintais é protagonizado por mulheres, casos de ataque de pragas ou mudanças no clima. As trocas de
que contam com a parceria de suas famílias e comunidade para sementes também fomentam o encontro e parceria entre agri-

32 33
cultores e instituições. A produção nos Quintais da Colônia é
apoiada pela ONG AS-PTA que auxilia os agricultores fornecen-
do sementes, enquanto a FIOCRUZ fornece mudas Junto à Rede
CAU, os agricultores ficam responsáveis pelo armazenamento
das sementes e gerenciamento do banco onde são armazenadas.

Referências

ABIO. O SPG explicado. Disponível em: <https://abiorj.org/o-


-spg-explicado/>. Acesso em: 27 de dezembro de 2022.

LEAL, M.L. 2020. Um estudo de Quintais Agroecológicos em


espaços urbanos na zona Oeste do Município do Rio de Janei-
SABERES E PRÁTICAS: AGROECOLOGIA NA ZONA OESTE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

ro. Dissertação de mestrado.Programa de Pós-graduação em


Engenharia urbana e ambiental PUC-RIO. Riode Janeiro.

Ministério da Agricultura e Pecuária (MAP). Declaração de


Aptidão ao Pronaf (DAP). GOV.BR. 2022 Disponível em: < ht-
tps://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/agricultura-
-familiar/dap>. Acesso em: 27 de dezembro de 2022

NASCIMENTO, S.N. 2018. AGRICULTURA URBANA E SUA IN-


FLUÊNCIA NA SOCIEDADE: ALIMENTAÇÃO, SAÚDE E FONTE
DE RENDA. Trabalho de conclusão de curso. Especialização
em gestão da inovação em fitomedicamentos. Fiocruz. Rio de
Janeiro.

VENÂNCIO, A.T.A. 2011. Da colônia agrícola ao hospital-colô-


nia: configurações para a assistência psiquiátrica no Brasil
na primeira metade do século XX. História, Ciência, Saúde -
v.18. Manguinhos, Rio de Janeiro.

34 35
QUILOMBO DO CAMORIM

1. Quilombo do Camorim: Histórico

O quilombo do Camorim, — uma comunidade de vinte famí-


lias que autodefinem-se como descendentes de escravos africanos
fugidos— é um dos quilombos mais antigos do Rio de Janeiro e
foi constituído pela família de Adilson Batista Almeida. Adilson é
fundador, presidente e diretor da Associação Cultural Quilombo
do Camorim (ACUQCA), uma organização comunitária que repre-
senta as reivindicações dos moradores do Camorim pelo título
coletivo da terra, no intuito de preservar a história do território
como um quilombo.
A história do Camorim começa com os índios Tupi-Guaranis
que habitavam a área antes mesmo da colonização portuguesa.
O nome Camorim tem origem na palavra tupi que nomeava um
tipo de peixe capturado pelos habitantes locais. No fim do século
XVI, Salvador Correia de Sá, governador-geral do Rio de Janeiro,
reivindicou a área para sua plantação e engenho de cana-de-açúcar
e dividiu o território entre seus dois filhos. Em 1622, seu filho
Gonçalo de Sá construiu o engenho e manteve o nome indígena,
chamando-o de Engenho do Camorim. O reconhecimento do
território como quilombo se deu a partir de 1614. No Quilombo
do Camorim, os vestígios históricos materiais correspondem à
história colonial do Brasil, da qual também há inúmeros registros
de arquivos pesquisados pelos historiadores. Em termos materiais,
destaca-se a Igreja de São Gonçalo do Amarante que está em pé
e foi tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Artístico e
Cultural (INEPAC) em 1965. A igreja foi construída em 1625 por
Gonçalo de Sá Correia, filho do governador da cidade do Rio de
Janeiro, Salvador Correia de Sá (AS-PTA, 2022)

37
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) 2. Cultura
reconhece o Sítio Arqueológico do Engenho do Camorim como um
lugar de importância cultural e histórica. Desde 2017 a doutoranda O quilombo do camorim e a ACUQCA fazem um importante
Sílvia Peixoto tem ajudado a encontrar milhares de fragmentos trabalho de resgate de saberes ancestrais e promoção da cultura
de vasos de cerâmica usados para a produção de açúcar, assim afro. A associação realiza feijoadas e outros eventos como a Fes-
como louças, ferramentas e cachimbos usados por escravos e ta de Dandara e Zumbi, celebrada no domingo seguinte após a
cerâmicas indígenas. comemoração do 20 de novembro, dia da Consciência Negra. As
Buscando retomar a cultura e saberes de seus antepassa- feijoadas e festividades são realizadas em dias comemorativos
dos, nos anos 2000, Adilson começou a desenvolver aulas de referentes à história negra brasileira. Os eventos são práticas
artesanato com material reciclado para a comunidade. A partir educativas-culturais que tem como objetivo combater o precon-
das trocas com a comunidade, surgiu a ideia de formalizar uma ceito e a intolerância, assim como valorizar e preservar a história
instituição que buscasse proteger o patrimônio histórico, cultural de homens e mulheres que desenvolveram formas de resistir às
e ambiental do território através da arte, cultura, gastronomia e condições de cativeiro com seus saberes. Além das festividades, a
ecoturismo. Inicialmente, a proposta era de criar uma cooperativa ACUQCA realiza diversas outras atividades de cunho cultural como
chamada “ACUCA”. A partir do nome surgiu a ideia de transformar jongo, maculelê, rodas de coco, tambor de crioula e capoeira.
SABERES E PRÁTICAS: AGROECOLOGIA NA ZONA OESTE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

a cooperativa em uma associação cultural, Associação CUltural A capoeira, uma arte marcial afro-brasileira que combina
do CAmorim, posteriormente, a palavra quilombo foi adicionada cantos, ritmos e dança é realizada, principalmente, por Adilson
à sigla. Em 2004, membros do Camorim solicitaram o reconheci- Almeida, fundador da ACUQCA. Ele pratica a arte da capoeira desde
mento do território como quilombo através do Instituto Nacional criança, possui 41 anos de prática, e, atualmente também atua
de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).Em 2003, um decreto como mestre de capoeira. Ele é conhecido como “Mestre Guerrei-
presidencial dividiu o processo de reconhecimento do quilombo ro” pelos seus alunos. A partir da prática e ensino da capoeira,
em duas etapas. Primeiramente, a Fundação Cultural Palmares Adilson motivou-se a aprender, pesquisar e transmitir a história
(FCP) deve registrar e reconhecer a auto identificação da comuni- e a cultura dos africanos escravizados e dos quilombolas.
dade como quilombo e posteriormente a comunidade inicia um
processo junto ao INCRA para demarcar oficialmente o território, A ACUQCA também realiza oficinas educativas para a comu-
através de um relatório técnico. nidade e público geral, onde trabalham conceitos e práticas de
agricultura orgânica e expressões culturais afro-brasileiras. As
Embora a ACUQCA tenha ido diretamente ao INCRA em 2004, oficinas também possuem o objetivo de fazer com que a comu-
o caso foi arquivado em 2009. A ACUQCA só obteve o reconheci- nidade se intere e experiencie de forma mais profunda o espaço
mento de quilombo pela FCP em 2014 e seu processo original de do Quilombo do Camorim que é um importante espaço de pre-
2004 no INCRA foi recentemente reaberto, mas isso significa que servação histórica e ambiental. Além de atuar na preservação e
dez anos se passaram antes que as reivindicações de Camorim resgate de saberes do próprio território, a ACUQCA colabora com
fossem efetivamente acatadas pelo governo, devido à falta de a produção de conhecimento acadêmico de diversas universidades
informação acessível e à má gestão. e programas de pesquisa.
No território do Quilombo do Camorim está situado um sítio
arquealógico, onde foram encontradas peças que remetem ao pe-
ríodo colonial e nos ajudam a compreender um pouco a história
do engenho e seus habitantes. Em 2017, a pesquisadora Silvia
Peixoto, com a participação da comunidade, realizou pesquisa

38 39
arqueológica na área do Quilombo do Camorim, outrora terras ao mesmo tempo que resgatam os saberes ancestrais do povo
do Engenho do Camorim. Como resultado, foi registrado o sítio escravizado e passam esse legado adiante.
arqueológico no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Na- Nas atividades de plantio são utilizadas sementes crioulas, ou
cional (IPHAN). O trabalho realizado pela pesquisadora incluiu, seja, sementes que não passaram por nenhum tipo de tratamento
além de escavações sistemáticas, o levantamento arquitetônico químico ou alteração genética. A utilização dessas sementes garan-
da casa de vivenda do antigo engenho, ainda de pé, localizada a te a variabilidade genética dos cultivos, muito importante para a
cerca de cem metros da Igreja de São Gonçalo do Amarante. manutenção da biodiversidade frente a um cenário de instabilidade
ambiental e mudanças climáticas (REF). As PANCs são um impor-
tante elemento pedagógico para abordar questões relacionadas
3. Agricultura e Saúde
à alimentação, saúde e biodiversidade, visto que, atualmente, a
dieta humana e a produção de alimentos abarca uma pequena
Existem diversos estudos que apontam os malefícios do uso diversidade de espécies (REF, WOOD?). Na horta são produzidos
de agrotóxicos na saúde humana e no meio ambiente. No Brasil guandu, serralha, hortaliças e legumes que são distribuídos para
são empregados nos cultivos, substâncias proibidas em outros a comunidade com o objetivo de reduzir o custo com a compra
lugares do mundo (Londres, 2012), sendo conhecido como o maior de alimentos, prevenir doenças, estimular a alimentação saudável,
consumidor de venenos para agricultura do mundo. Segundo a envolver a comunidade na produção do alimento que consome e
SABERES E PRÁTICAS: AGROECOLOGIA NA ZONA OESTE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

ABRASCO (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), um terço difundir saberes agroecológicos.


dos alimentos consumidos pelos brasileiros está contaminado
A ACUQCA vem desenvolvendo o projeto “ Escola Quilombola”,
por agrotóxicos (Orgtiz, 2012). Em 2013, a Fundação Oswaldo
onde recebe escolas da rede pública de ensino e trabalham os con-
Cruz, o Instituto Nacional do Câncer e a Associação Brasileira de
teúdos escolares em diálogo com a cultura e saberes quilombolas.
saúde coletiva emitiram uma nota intitulada “Uma verdade cien-
Por meio de aulas de campo e rodas de conversa são abordados
tificamente comprovada: os agrotóxicos fazem mal à saúde e ao
temas relacionados à história, meio ambiente e conservação e a
meio ambiente.” Diversas instituições e pesquisadores ao redor
relação do ser humano com essas dimensões. A conexão do ser
do mundo têm chamado a atenção para a influência negativa
humano com o meio ambiente é um tema central nos encontros,
dos agrotóxicos na saúde humana e meio ambiente, contudo, os
já que há, de maneira geral, uma dissociação entre humanos e
governos e tomadores de decisão ainda não tomaram medidas
natureza, quando na verdade o ser humano a integra. Assim, a
quanto à regulação ou redução do uso de agrotóxicos na agri-
ACUQCA vai passando seu legado para as próximas gerações,
cultura. Dessa forma, soluções locais precisam ser desenvolvidas
enquanto garante a conservação do meio ambiente e saúde da
visando garantir o bem-estar da população.
comunidade.
A ACUQCA também desenvolve uma horta orgânica, onde
além de realizar o plantio de espécies comestíveis e plantas me-
dicinais, trabalha o resgate de saberes tradicionais e conceitos e 4. Desafios
práticas da agroecologia. Atualmente, está desenvolvendo uma
agrofloresta e ações de educação ambiental. O objetivo dessas A apropriação do território, símbolos e narrativas são desafios
atividades é estimular a comunidade a ter uma alimentação sau- para os atores subalternizados pela colonialidade. Por se tratar de
dável e cuidar do seu bem-estar físico e mental. um quilombo urbano, o Quilombo do Camorim, enfrenta desafios
Na horta também são cultivadas ervas medicinais e plantas ligados ao uso da terra, avanço da urbanização, especulação imo-
alimentícias não-convencionais (PANC). Adilson Almeida e sua biliária urbana e falta de reconhecimento e valorização histórica
família utilizam as ervas medicinais para tratar e cuidar da saúde, como uma comunidade tradicional negra. Sendo assim, a luta se

40 41
dá no campo econômico, simbólico e político (Costa et al. 2009). Referências
O Quilombo do Camorim busca estabelecer diálogo com todos os
atores de seu território, contudo, existem barreiras que são criadas COSTA, V. de L. C. C.; FARIA, M.V.C.; SILVA, D. 2009. PENSANDO
pelo racismo, intolerância religiosa e a especulação imobiliária. GEOGRAFIAS DECOLONIAIS NO ESPAÇO URBANO CARIOCA: O
A partir de 2002, a região do Camorim teve um crescimento QUILOMBO DO CAMORIM. XIV Encontro Nacional de Pós-gra-
desordenado, o que acarretou no aumento do número de empre- duação e pesquisa em geografia.
endimentos imobiliários e igrejas neopentecostais no entorno do
território. Em 2015, foi realizada a construção do condomínio CÁCERES, L. S. R. 2022. CARTOGRAFIA PARTICIPATIVA “GUAR-
Verdant Valley Residence, edificado dentro da Área de Especial DIÕES DA SANKOFA”. Rio de Janeiro, ISBN 978-65-89039-21-1.
Interesse Ambiental, pertencente ao território do quilombo, criada Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1nJeXcZLR-
pelo decreto municipal Nº 37958 de 2013 para proteger os ecos- boJTB3t_JKP4lyUaYZhhEbqn/view
sistemas naturais da região. O objetivo do decreto foi congelar
Londres, F. Agrotóxicos no Brasil. Rio de Janeiro: ANA\RBIA,
as concessões de licenças ou projetos de construção no Camorim
2011.
e em outros bairros ao redor do Parque Estadual da Pedra Bran-
ca. No entanto, o mesmo continha uma brecha isentando todos Ortiz, F. Um terço dos alimentos consumidos pelos brasi-
os projetos de construção direta ou indiretamente relacionados
SABERES E PRÁTICAS: AGROECOLOGIA NA ZONA OESTE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

leiros está contaminado por agrotóxicos. Disponível em:


com os Jogos Olímpicos. A construção desse condomínio contou http:\\noticias.uol.com.br\saude\ultimas-noticias-\reda-
com o amparo e licenciamento da prefeitura do Rio de Janeiro e cao\2012\05\01\um-terco-dos-alimentos-consumidos-por-
também envolveu o levantamento de um extenso muro de tijolo e -brasileiros-esta-contaminado-por-agrotoxicos.htm. Acesso
concreto na floresta com o suposto objetivo de evitar que animais em 12 de janeiro de 2023.
entrassem no espaço condominial. O muro implicou não apenas
a lamentável remoção de 3 hectares de vegetação nativa da Mata
Atlântica, assim como o despejo de entulhos e outros materiais
(ASPTA, 2022).
Além do desmatamento, foi realizada a terraplanagem da
área, que destruiu a base da antiga senzala presente no território
e a potencial perda de artefatos históricos.
A intolerância religiosa também traz desafios constantes
para a ACUQCA e o Quilombo do Camorim. Apesar da tentativa
de estabelecer diálogo com as lideranças religiosas do entorno, o
quilombo sofreu e ainda sofre diversos ataques racistas por realizar
suas práticas educativas e culturais como as aulas de capoeira e
de jongo. Atualmente, o Quilombo desenvolve um projeto onde
convida os líderes religiosos do entorno para compor uma mesa,
a fim de dialogar e debater sobre religião e respeito, no intuito
de unir e dar fim ao preconceito e intolerância religiosa em seu
território.

42 43
QUILOMBO CAFUNDÁ ASTROGILDA

1. Histórico e formalização do Quilombo Cafundá


Astrogilda

O Quilombo Cafundá Astrogilda fica localizado no bairro de


Vargem Grande, na vertente sul do Maciço da Pedra Branca. Sua
constituição se deu a partir de descendentes de escravizados que,
com o fim dos engenhos, formaram núcleos familiares, espalha-
dos pelo maciço. Cada um desses núcleos recebeu o nome em
homenagem à sua matriarca. Astrogilda, a matriarca de um destes
núcleos, era rezadeira e conhecida por toda a região devido às
práticas de cuidado com a saúde que realizava. Astrogilda promovia
curas a partir do uso de plantas medicinais e por meio de rezas.
O núcleo da Astrogilda era amplamente conhecido em virtude do
Centro Espírita Pai Tertuliano, fundado por ela (Oliveira, 2016).
Os membros do Quilombo Cafundá Astrogilda ocupam a re-
gião há centenas de anos. Os núcleos familiares possuem relações
de parentesco que fazem parte da socialização desta comunidade.
Seu modo de vida foi se desenvolvendo em profunda conexão
com o maciço, desde o cultivo de alimentos realizado em meio a
floresta, até a circulação para outros territórios da cidade através
de trilhas (que eles chamam de caminhos). Estes caminhos foram
abertos por eles mesmos para sua própria circulação, transporte
de mercadorias e alimentos. (Serafim, 2018).
Em 2014, o Quilombo Cafundá Astrogilda recebeu da
Fundação Palmares a certidão de autodefinição de comunidade
remanescente de quilombo (Oliveira, 2016). Contudo, a delimi-
tação territorial e a regularização frente ao INCRA ainda estão
pendentes. Sendo assim, convencionou-se chamar o território

45
de Quilombo Cafundá-Astrogilda, dada a representatividade da básicos de assistência, outro desafio que a comunidade enfrenta
família Astrogilda na comunidade porém na realidade este é um é a falta de mão de obra. Apesar dos agricultores realizarem suas
núcleo entre outros grupos originários daquela mesma área; a atividades por meio de mutirões, houve um esvaziamento do
comunidade Cafundá-Astrogilda constitui, portanto, um dos 8 território do quilombo e atualmente, não há um número mínimo
núcleos do Quilombo Vargens. de pessoas que possa garantir que o manejo necessário seja rea-
Apesar do tempo de ocupação do território e do modo de lizado em todas as áreas de cultivo do quilombo. Além das áreas
vida, passado de geração para geração, profundamente relacionado de cultivo é necessário cuidar das trilhas que levam à essas áreas
com a natureza, em 1974, com a criação do Parque Estadual da e da embalagem e beneficiamento dos alimentos produzidos, o
Pedra Branca, os moradores passaram a temer por sua permanência que dificulta a produção dos pequenos agricultores. Parte desse
no local, assim como ocorreu com outras comunidades situadas esvaziamento ocorre devido a dificuldade de acesso a serviços
dentro da área do parque. Narrativas hegemônicas perpetuadas básicos, oportunidades de trabalho e estudo e entretenimento.
devido a especulação imobiliária e interesse financeiro, apontam
que a ocupação da área pela comunidade do Quilombo Cafundá 3. Agricultura
possui apenas em torno de 40 anos,colocando esta população
em uma posição de invasão do local. Muitos dos moradores não
possuem documentação que comprove a posse de seus espaços No Quilombo Cafundá Astrogilda, o entendimento da natureza
SABERES E PRÁTICAS: AGROECOLOGIA NA ZONA OESTE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

e que possam assim garantir sua permanência no local. se dá de forma diferenciada, ao considerá-la fonte de recursos
de existência e identidade. Tendo isto em mente, os agricultores
Somado a isso, seus meios de vida são constantemente do maciço, sejam eles homens ou mulheres, exercem papel fun-
ameaçados pela expansão urbana e especulação imobiliária, damental na manutenção de espécies biodiversas, ampliam as
principalmente pela construção irregular de condomínios e falta formas de manejo sustentável e promovem a soberania alimentar
de saneamento adequado. (Serafim, 2018).
A agricultura é uma atividade centenária no Quilombo, onde
2. Território e desafios socioambientais são passadas de geração para geração os saberes e práticas susten-
táveis oriundas da agroecologia e agricultura orgânica. A produção
O território do Quilombo Cafundá Astrogilda e a floresta do território é inteiramente agroecológica e o cultivo é realizado
em seu entorno vem sendo constantemente ameaçados pelo por meio de consórcios, manejados por meio de mutirões nas áreas
crescimento desenfreado do bairro de Vargem Grande. Áreas de cada agricultor. A forma tradicional de produção foi mantida,
anteriormente florestadas, deram lugar a condomínios de casas devido à compreensão que a comunidade possui de que práticas
e prédios, perdendo-se assim habitat para espécies endêmicas, agroecológicas garantem o equilíbrio dos ecossistemas naturais e
importantes serviços ecossistêmicos e diversidade. Devido ao au- manutenção da biodiversidade.
mento da população local, os rios, anteriormente, próprios para Além da forte relação com a natureza, a comunidade também
banho, encontram-se assoreados e poluídos, causando eventos de entende que produzir de forma agroecológica contribui diretamente
alagamento e enchentes no território. O crescimento desenfreado para a saúde e bem-estar da população. O cultivo e uso de ervas
impacta diretamente a qualidade de vida da população da região, medicinais é uma prática comum no território, onde os saberes e
visto que serviços como coleta de lixo e saneamento não suprem usos das plantas são passados de geração para geração.
as necessidades da população. Dessa forma, o Quilombo luta para Além das tradicionais roças, há a presença de agroflorestas
manter suas tradições e modo de vida em meio a expansão da no território. Agroflorestas são sistemas de produção onde há o
urbanização de seu território. Além da defasagem nos serviços cultivo de diversas espécies comestíveis ou de interesse junto a

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espécies arbóreas. Esse tipo de sistema tem como objetivo mime- de feiras convencionais, ou seja, feiras onde é comercializado
tizar os processos ecológicos naturais de florestas, dessa forma, alimento produzido sob uso de agrotóxicos. Nesse contexto, o
apresentam-se como importantes estratégias de conservação da escoamento da mercadoria acaba sendo mais lento, o que gera
biodiversidade enquanto geram comida e renda. Os agricultores perda de mercadoria e consequentemente de lucro para a comu-
apontam que após a implementação e expansão das agroflorestas, nidade.
e consequentemente, aumento da área florestada do território, O beneficiamento dos produtos também é realizado pela
a diversidade e abundância de espécies de animais aumentou. comunidade, que produz doces de banana preparados à maneira
O tipo de manejo realizado nas áreas diferem um pouco de um tradicional do território e são considerados uma iguaria por quem
núcleo familiar para outro, porém algumas práticas são bastante o prova. Os produtos beneficiados são comercializados em dois
semelhantes. A compostagem é parte intrínseca da produção nos quintais, onde são vendidos tanto os alimentos in natura, como
quintais, seja através somente da colocação de resíduos orgânicos processados em geleias, compotas e doces, sendo estas comer-
na terra para decompor e devolver nutrientes ou em ambientes cializações um item complementar de renda. (Serafim, 2018).
destinados somente a isto para geração de adubo. Embora a rotina
no Quilombo pareça simples,a realidade encontrada no quilombo
*
é extremamente complexa. É comum a manutenção do esquema
familiar onde o pai trabalha na roça ou na cidade e a mãe é quem
SABERES E PRÁTICAS: AGROECOLOGIA NA ZONA OESTE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

cuida da casa, filhos e, consequentemente, do quintal, dos ali- Referências


mentos e da saúde de todos (Fernandez, 2009).
FERNANDEZ, A. C. F. Do Sertão Carioca ao Parque Estadu-
4. Comercialização al da Pedra Branca: a construção social de uma unidade de
conservação à luz das políticas ambientais fluminenses e da
evolução urbana do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado) — Tese
O Quilombo Cafundá Astrogilda, apesar de possuir um longo
(Doutorado em Sociologia)–Programa de Pós-Graduação em
histórico de práticas agrícolas, ainda possui dificuldades para co-
Sociologia e Antropologia. Universidade Federal do Rio de Ja-
mercializar os produtos e alimentos oriundos do território. Apesar
neiro. Rio de Janeiro, 2009.
de alguns agricultores possuírem o DAP (Declaração de Aptidão
ao Pronaf), encontram dificuldades para escoar seus produtos. A
OLIVEIRA, L. A. REDES E MEDIADORES NO FORTALECIMENTO
comunidade já forneceu alimentos para merenda escolar, contu-
DA AGRICULTURA FAMILIAR NO MACIÇO DA PEDRA BRANCA,
do, devido a dificuldade de transporte da mercadoria e o valor
RJ. 2016. Dissertação de Mestrado apresentado ao Programa
baixo recebido com as vendas, foi necessário encerrar esse tipo
de Pós-graduação em Agroecologia e Desenvolvimento rural
de comercialização.
da Universidade Federal de São Carlos.
Apesar de possuírem o DAP, os agricultores do território
não acessam políticas públicas e outros benefícios destinados a SERAFIM, L. A. R. Quintais Quilombolas e a Soberania Alimen-
pequenos agricultores, sendo assim, os mesmos apontam que tar: Espaços Produtivos Familiares no Contexto da Expansão
fizeram uso do documento apenas duas vezes. Urbana do Rio de Janeiro. Monografia apresentada ao curso
Além da dificuldade no transporte da mercadoria, o valor de de Bachare- lado em Geografia, como requisito parcial para a
venda dos produtos é baixo, fazendo com que seja necessário obtenção do título de Bacharel em Geografia da Universidade
produzir e vender em grande quantidade para alcançar o lucro Federal Fluminense -UFF. 2018
necessário. Os agricultores do quilombo participam do circuito
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QUILOMBO DONA BILINA

1. Histórico e formalização da comunidade

O Quilombo Dona Bilina está localizado na vertente norte


do Maciço da Pedra Branca, na região do Rio da Prata, em Campo
Grande, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. A comunidade
recebe o nome “Dona Bilina” em homenagem a parteira e reza-
deira local.
A comunidade possui uma origem rural, tendo desenvolvido
e ainda desenvolvendo diversos tipos de atividades agropecuá-
rias. Cana, laranja e mamão eram produzidas principalmente por
portugueses que chegaram à região na década de 1920. Além
destes, foram de grande importância econômica para a região
os cultivos de tomate, chuchu, abacate, manga, banana, caqui e
hortaliças em geral.
O engenho do Cabuçu contém parte da importante história
da comunidade. A propriedade pertencia à Úrsula Martins, viúva
de Marcos Cardoso dos Santos, que possuía 87 escravizados em
1777 e 108 em 1797( Franco,2014). No ano de 1870, a Fazenda
Cabuçu desenvolvia a produção de café e aguardente.
Ao longo dos anos, a ocupação das terras de Campo Gran-
de aumentou exponencialmente, em decorrência do aumento
populacional e desenvolvimento econômico da região de Santa

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Cruz. A ocupação foi marcada pela coexistência entre grandes e terra, produzindo e vivendo na mesma, o que resguardava as fa-
pequenas propriedades rurais estabelecidas através do sistema mílias do território quanto à permanência em seu território. Assim,
de arrendamentos que abrigou a presença de um pequeno cam- Rita Caseiro e Alice Franco deram início a uma extensa pesquisa
pesinato na região composto por negros e mestiços oriundos das acerca do histórico das famílias residentes no território, famílias
relações interaciais estabelecidas entre agricultores e agricultoras que na área têm cerca de 300 anos ( Carvalho, no prelo). O reco-
da região, fossem eles pertencenetes a condição escrava, livres nhecimento pela Fundação Cultural Palmares dos agricultores de
ou alforriados. A partir de meados do século XIX, a área começou Dona Bilina como remanescentes de comunidades quilombolas
a se adensar com a implantação da Estrada de Ferro D. Pedro II. ocorreu em outubro de 2017. A comunidade ainda não iniciou
Após a crise do café, no final do século XIX, a região se voltou o processo de regularização fundiária no Instituto Nacional de
para uma nova atividade: a citricultura. Desde os primeiros anos Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e, portanto, a terra não
do século XX até os anos de 1940, os bairros de Campo Grande, está demarcada, nem titularizada de forma coletiva, de acordo aos
Realengo, Guaratiba e Santa Cruz, estiveram entre os maiores procedimentos do Decreto N. 4.887 de 2003, que protegem os
produtores de laranjas do país. Deste conjunto de bairros, Campo territórios quilombolas, os tornando inalienáveis, imprescritíveis e
Grande destacava-se entre os demais e assim, recebeu a alcunha impenhoráveis, uma vez titularizados em nome do coletivo. Além
de “Citrolândia” (AS-PTA, 2022). de Alice Franco e Rita Caseiro, também participaram do processo
Durante a segunda Guerra Mundial, o “ciclo da laranja” na de formalização os agricultores Bichinho e Luiz.
SABERES E PRÁTICAS: AGROECOLOGIA NA ZONA OESTE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Zona Oeste entrou em extrema decadência devido a dificuldade de


escoar a produção. Neste período, os laranjais foram infectados
por pragas, dizimando as plantações da região. As terras dos la-
2. Cultura da comunidade Dona Bilina
ranjais, desvalorizadas, foram postas à venda por preços irrisórios
durante a década de 1950. Na década de 60, a especulação imo- A comunidade do Quilombo Dona Bilina realizou e ainda
biliária avançou sobre a região e produtores agrícolas que ainda realiza diversas atividades e manifestações culturais. Segundo
resistiam em suas práticas produtivas, perderam espaço para o Leonídia Insfran, a cultura local está intimamente relacionada à
parque industrial que se instalou nos bairros de Campo Grande, agricultura. Os produtores locais desenvolvem suas atividades
Santa Cruz e entorno. A urbanização e industrialização da região agrícolas de maneira tradicional, conservando assim, as práticas
apagaram traços da cultura rural das comunidades. e saberes ancestrais do território.
Em 1974 é fundado o Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB), O calango é uma expressão cultural marcante para a comu-
uma unidade de conservação (UC) integral, abrangendo o Maciço nidade Dona Bilina, trata-se de um seguimento musical de origem
da Pedra Branca a partir da cota dos 100 metros (Rio de Janeiro, mestiça, trazido primeiramente pelos negros de Angola com a
1974); incluindo assim parte dos territórios agrícolas do Rio da presença do Semba e dos Batuques. Podem ser acompanhados
Prata, entre outros bairros. A sobreposição entre a área da UC e de pandeiros e violas. Esse ritmo musical, pertencente à cultura
o território onde as comunidades agrícolas e tradicionais se en- popular, onde as pessoas rimam e cantam junto aos seus instru-
contravam gerou um cenário de insegurança, visto que a qualquer mentos desafiando uns aos outros cantando a própria realidade.
momento poderiam ser retirados do território que ocuparam por No passado, eram realizados encontros entre os moradores do
gerações. Visando solucionar a ameaça e evitar o apagamento território para cantar e tocar músicas relacionadas a essa expres-
cultural e memória da comunidade, Rita Caseiro, advogada e atual são cultural. Além do calango, eram comuns os festejos juninos
presidente da AGROPRATA (Associação de Agricultores Orgânicos e os forrós realizados pelos próprios moradores.
da Pedra Branca), identificou a possibilidade do reconhecimento
da comunidade como população tradicional, aquela que vive da

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Agora, relacionado a cultura, eu posso destacar o trocas e resgate de saberes, através de mutirões de manutenção
calango. Eu lembro do meu pai cantando calango, do espaço e outras atividades para a comunidade.
esses dias nós fomos na casa do Seu Quincas e ele Na horta são realizadas atividades de educação ambiental,
é famosíssimo cantando calango, no passado ele produção de alimentos saudáveis e oficinas para geração de renda
fez sucesso. Quando eu era criança, os homens da comunidade local, enquanto resgatam e difundem os saberes
sempre se reuniam para tocar e cantar calango, tradicionais das gerações anteriores. A horta recebe visitas de
essa era nossa diversão. Meu pai tocava triângulo, grupos e escolas, pesquisadores e movimentos sociais para dia-
tinha um que tocava pandeiro, tinha um moço que logar sobre preservação ambiental, alimentação e divulgação da
tocava sax. Isso ficou muito na minha memória. tradição agrícola da comunidade (Carvalho, no prelo).
Leonídia Isfran, presidente do
Quilombo Dona Bilina A gente descobriu, juntos, que a horta tinha
um grande potencial de mudança. Hoje, a gente
caminha nesse lugar da comida sem veneno, mas
Além das expressões culturais, a comunidade possui um a gente também pensa em agroecologia como
vasto conhecimento sobre o uso e cultivo de ervas medicinais. parte da educação ambiental. Pensar sobre o local
SABERES E PRÁTICAS: AGROECOLOGIA NA ZONA OESTE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Atualmente, a comunidade cultiva e divulga seus saberes para os que a gente vive, no potencial do local, potencial
moradores do entorno e grupos de outros territórios interessados de geração de renda.
em experienciar e aprender com a comunidade.
Outras figuras muito presentes no passado da comunidade Leonídia Isfran, presidente do
eram as parteiras e rezadeiras, como Dona Bilina e Dona Iara, Quilombo Dona Bilina
respectivamente. As rezadeiras atuavam no cuidado com a saúde
dos moradores do local, desenvolvendo xaropes, chás e outros
Durante o período de isolamento social decorrente da pan-
cuidados relacionados à espiritualidade (Carvalho, no prelo). As
demia de COVID-19, a produção da horta, junto a produção de
lendas folclóricas também estavam muito presentes no imaginá-
alimentos de outros parceiros foi distribuída para os moradores
rio dos moradores da comunidade, no passado. Crianças tinham
do território em situação de vulnerabilidade. A distribuição da
medo da Iara ao tomar banho no rio que passava por dentro do
produção da horta para os moradores segue como prática con-
território, adultos eram amedrontados pelas possíveis peripécias
tínua, contribuindo para a segurança alimentar, no uso de boas
do saci, que era capaz de trançar o rabo dos cavalos criados pela
práticas ambientais e na valorização dos produtores e histórias
comunidade, além da presença do boitatá e fantasmas na mata.
locais. Além do plantio de espécies comestíveis, há também o
plantio de espécies medicinais, comumente usadas para produção
3. Agricultura de xaropes, cremes, sabonetes, chás, emplastros, garrafadas etc.
(Carvalho, no prelo).
A agricultura é a base da comunidade Dona Bilina. Foi e ain- A horta também funciona como espaço de troca e cuidado
da permanece sendo o sustento de muitas famílias do território. entre as mulheres, às sextas-feiras são realizados mutirões, onde
Leonídia Isfran, bisneta de Candoca, junto aos demais moradores acontece um café coletivo e são discutidos diversos assuntos como
construiu uma horta para uso coletivo no terreno herdado de sua saúde da mulher, filhos, vacinação e sua importância, autonomia
bisavó. A horta tem como objetivo ser um espaço educativo, de e independência feminina. Há diversos jovens integrando o grupo

54 55
que está presente nas atividades da horta e buscando aprender A comunidade entende que a diminuição na abundância de
e difundir os saberes tradicionais das gerações anteriores do árvores, leva a perda de diversidade, impactando negativamente
território. a saúde e a qualidade de vida. E acreditam que o único caminho
para transformar essa realidade e alcançar melhoras significativas
nas condições socioambientais da população local é por meio da
educação ambiental.
4. Quilombo D. Bilina e conservação Ambiental
*
A conservação de ecossistemas naturais também faz parte
da cultura e práticas do Quilombo Dona Bilina. Os moradores
da comunidade, que residem dentro da área do Parque Estadual Referências
da Pedra Branca e tem uma relação muito próxima com os ecos-
sistemas do parque relatam como a especulação imobiliária e CARVALHO, Leonidia Insfran de Oliveira. DESENVOLVI-
crescimento populacional afetou e vem afetando a biodiversidade MENTO SOCIOAMBIENTAL SUSTENTÁVEL NO QUILOMBO DONA
local. Leonídia relata que quando criança tomava banho de rio e BILINA, EM RIO DA PRATA, CAMPO GRANDE, RIO DE JANEIRO.
pescava com seus amigos e familiares no território, após o cres-
SABERES E PRÁTICAS: AGROECOLOGIA NA ZONA OESTE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Gra-


cimento do bairro do Rio da Prata, os rios foram poluídos e parte duação de Ciência e Tecnologia Ambiental (PPGCTA) da UERJ
da fauna local desapareceu. ZO em andamento. 2022. Disponível em: (No Prelo)
A área de borda do parque é a mais impactada na região,
recebendo o descarte de lixo e esgoto da população do entorno. FRANCO, Alice Alves. Sertão Carioca Identidade e Memória
O crescimento desenfreado acarreta no desmatamento da área de da Comunidade Agrícola do Rio da Prata-RJ. Dissertação de
borda, devido a construção irregular de imóveis e consequente Mestrado UFRRJ Instituto de Educação Programa de Pós-gra-
perda de indivíduos de espécies arbóreas nativas e aumento do duação em Psicologia. 2014.
efeito de borda na área do parque (Carvalho, no prelo).
Buscando integrar a população às belezas naturais do ter-
ritório e realizar um trabalho de educação ambiental, resgate RIO DE JANEIRO. Lei Estadual nº 2.377 de 28 de junho
da memória e difusão de saberes, a comunidade Dona Bilina de 1974 cria o Parque Estadual da Pedra Branca e dá outras
desenvolveu quatro percursos culturais. Diferentemente de uma providências. Rio de Janeiro: Diário Oficial, 1974.
trilha, o roteiro cultural se trata de uma atividade museológica,
patrimonial, pedagógica e de envolvimento com o território por PEREIRA, Julia; CÁCERES, Luz Stella R; FRANCO, Alice A;
meio da seleção dos pontos de memória. Os roteiros contam a TREVIA, Clara e MORAIS, Flavio. 2022. CARTOGRAFIA PARTICI-
história da comunidade, abordada a partir de pontos geográficos PATIVA. Rio de Janeiro. ISBN 978-65-89039-16-7. Disponível em:
que estão relacionados ao patrimônio, natureza, agricultura, expe- https://drive.google.com/file/d/1nJeXcZLRboJTB3t_JKP4lyUaY-
riências de vida, crenças e vivências do lugar. Os roteiros podem ZhhEbqn/view
ser realizados junto aos condutores locais, que através de seu
conhecimento, irão detalhar a riqueza que os trajetos oferecem e
propor alternativas e atalhos de acordo às necessidades do grupo
de visitantes.

56 57
Para conhecer melhor os núcleos, comunidades e
instituições presentes neste trabalho, visite:

redeecologicario.org/areas-de-atuacao/in-
@colonia.quintais teracao-entre-produtores-e-consumidores/
produtores/agrovargem/

@quilombocamorim @agroprata

@quilombo_cafunda_astrogilda @quilombodonabilina

@redecariocadeagriculturaurbana @permalab_

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