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A reconstrução da política externa


brasileira - Política - Estadão
7-9 minutos

Assinam o artigo abaixo: Fernando Henrique Cardoso, Aloysio


Nunes Ferreira, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Rezek,
José Serra, Rubens Ricupero e Hussein Kalout*

Apesar de nossas distintas trajetórias e opiniões políticas, nós, que


exercemos altas responsabilidades na esfera das relações
internacionais em diversos governos da Nova República,
manifestamos nossa preocupação com a sistemática violação pela
atual política externa dos princípios orientadores das relações
internacionais do Brasil definidos no Artigo 4.º da Constituição de
1988.

Inovadora nesse sentido, a Constituição determina que o Brasil


“rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes
princípios: I- independência nacional; II- prevalência dos direitos
humanos; III- autodeterminação dos povos; IV- não intervenção; V-
igualdade entre os Estados; VI- defesa da paz; VII- solução
pacífica dos conflitos; VIII- repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX-
cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X-
concessão de asilo político”.

“Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a


integração econômica, política, social e cultural dos povos da
América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-
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americana de nações.”

É suficiente cotejar os ditames da Constituição com as ações da


política externa para verificar que a diplomacia atual contraria
esses princípios na letra e no espírito. Não se pode conciliar
independência nacional com a subordinação a um governo
estrangeiro cujo confessado programa político é a promoção do
seu interesse acima de qualquer outra consideração. Aliena a
independência governo que se declara aliado desse país,
assumindo como própria uma agenda que ameaça arrastar o Brasil
a conflitos com nações com as quais mantemos relações de
amizade e mútuo interesse. Afasta-se, ademais, da vocação
universalista da política externa brasileira e de sua capacidade de
dialogar e estender pontes com diferentes países, desenvolvidos e
em desenvolvimento, em benefício de nossos interesses.

Outros exemplos de contradição com os dispositivos da


Constituição consistem no apoio a medidas coercitivas em países
vizinhos, violando os princípios de autodeterminação e não
intervenção; o voto na ONU pela aplicação de embargo unilateral
em desrespeito às normas do direito internacional, à igualdade dos
Estados e à solução pacífica dos conflitos; o endosso ao uso da
força contra Estados soberanos sem autorização do Conselho de
Segurança da ONU; a aprovação oficial de assassinato político e o
voto contra resoluções no Conselho de Direitos Humanos em
Genebra de condenação de violação desses direitos; a defesa da
política de negação aos povos autóctones dos direitos que lhes
são garantidos na Constituição, o desapreço por questões como a
discriminação por motivo de raça e de gênero.

Além de transgredir a Constituição Federal, a atual orientação


impõe ao País custos de difícil reparação como desmoronamento

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da credibilidade externa, perdas de mercados e fuga de


investimentos.

Admirado na área ambiental, desde a Rio-92, como líder


incontornável no tema do desenvolvimento sustentável, o Brasil
aparece agora como ameaça a si mesmo e aos demais na
destruição da Amazônia e no agravamento do aquecimento global.
A diplomacia brasileira, reconhecida como força de moderação e
equilíbrio a serviço da construção de consensos, converteu-se em
coadjuvante subalterna do mais agressivo unilateralismo.

Na América Latina, de indutores do processo de integração,


passamos a apoiar aventuras intervencionistas, cedendo terreno a
potências extrarregionais. Abrimos mão da capacidade de
defender nossos interesses, ao colaborarmos para a deportação
dos Estados Unidos em condições desumanas de trabalhadores
brasileiros ou ao decidir por razões ideológicas a retirada da
Venezuela, país limítrofe, de todo o pessoal diplomático e consular
brasileiro, deixando ao desamparo nossos nacionais que lá
residem.

Na Europa ocidental, antagonizamos gratuitamente parceiros


relevantes em todos os domínios como França e Alemanha. A
antidiplomacia atual afasta o País de seus objetivos estratégicos,
ao hostilizar nações essenciais para a própria implementação da
agenda econômica do governo.

A gravíssima crise de saúde da covid-19 revelou a irrelevância do


Ministério das Relações Exteriores e seu papel contraproducente
em ajudar o Brasil a obter acesso a produtos e equipamentos
médico-hospitalares. O sectarismo dos ataques inexplicáveis à
China e à Organização Mundial da Saúde, somado ao desrespeito
à ciência e à insensibilidade às vidas humanas demonstrados pelo

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presidente da República, tornou o governo objeto de escárnio e


repulsa internacional. Criou, ao mesmo tempo, obstáculos aos
esforços dos governadores para importar produtos
desesperadamente necessários para salvar a vida de milhares de
brasileiros.

O resgate da política exterior do Brasil exige o retorno à obediência


aos princípios constitucionais, à racionalidade, ao pragmatismo, ao
senso de equilíbrio, moderação e realismo construtivo. Nessa
reconstrução, é preciso que o Judiciário, guardião da Constituição,
e o Congresso Nacional, representante da vontade do povo,
cumpram o papel que lhes cabe no controle da constitucionalidade
das ações diplomáticas.

A fim de corresponder aos anseios do nosso povo e corresponder


às necessidades reais do Brasil, a política externa precisa contar
com amplo respaldo na opinião pública, e a colaboração na sua
concepção de todos os setores da sociedade. Requer também o
engajamento do nosso corpo de diplomatas: uma política de
Estado e não uma ação facciosa voltada para excitar os ânimos e
exacerbar os preconceitos de uma minoria obscurantista e
reacionária. Nossa solidariedade e decidido apoio aos diplomatas
humilhados e constrangidos por posições que se chocam com as
melhores tradições do Itamaraty.

A reconstrução da política exterior brasileira é urgente e


indispensável. Deixando para trás essa página vergonhosa de
subserviência e irracionalidade, voltemos a colocar no centro da
ação diplomática a defesa da independência, soberania, da
dignidade e dos interesses nacionais, de todos aqueles valores,
como a solidariedade e a busca do diálogo, que a diplomacia
ajudou a construir como patrimônio e motivo de orgulho do povo

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brasileiro.

*FHC é ex-presidente da República e ex-ministro das Relações


Exteriores. Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Celso Lafer,
Francisco Rezek e José Serra são ex-ministros das Relações
Exteriores. Rubens Ricupero é ex-ministro da Fazenda, do
Meio Ambiente e ex-embaixador do Brasil em Washington.
Hussein Kalout é ex-secretário especial de Assuntos
Estratégicos da Presidência.

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