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Nessa Guerra, Quem É o Inimigo - SPG 40 PDF
Nessa Guerra, Quem É o Inimigo - SPG 40 PDF
1. Introdução
Em agosto de 2020, uma decisão da justiça chamou a atenção da mídia nacional por
conter, de forma explícita, fundamentação racista para condenar e dosar a pena do réu. Na
sentença, a magistrada assevera que o réu era “seguramente integrante do grupo criminoso,
em razão da sua raça”2. Embora a raça não seja um elemento legítimo para sustentar a ação
repressiva ou punitiva no Estado Democrático de Direito, ela se mostra como um marcador
fundamental para entender o funcionamento do sistema de justiça, já que essa variável
sociodemográfica desponta como característica da maioria dos presos no Brasil (SISDEPEN,
2020).
Apesar disso, as pesquisas sobre sistema de justiça criminal tendem a focalizar em
outras searas das desigualdades sociais (anos de escolaridade, renda, sexo e faixa etária). De
modo que ainda são relativamente tímidas as pesquisas que tomam a raça como fator
substantivo de análise e mobilizam as relações raciais para compreender a desigualdade nas
práticas judiciárias e nos processos de incriminação diferencial (AZEVEDO; SINHORETTO,
2018, p. 208).
O Brasil vivencia um processo de encarceramento massivo de pessoas negras,
sustentado por discursos punitivos como o de “guerra às drogas” e a necessidade de
manutenção da ordem nas grandes cidades. Na prática, os efeitos de tais narrativas recaem
sobre determinados corpos e territórios, marcados por um passado de exclusão social. Assim,
1
Trabalho apresentado ao SPG 40 "Questão Racial: Cultura, Discriminação, Políticas Públicas e Agenda
Antirracista Contemporânea”, durante o 44º Encontro Anual da ANPOCS.
2
Notícia acerca da decisão está disponível em: https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2020/08/12/juiza-diz-em-
sentenca-que-reu-negro-era-seguramente-integrante-de-grupo-criminoso-em-razao-da-sua-raca.ghtml. Acesso
em 13/10/2020.
1
este artigo busca compreender como a condição racial dos sujeitos interfere no fluxo do
processamento do delito de tráfico, compreendido desde o seu registro na polícia até o
sentenciamento pelo judiciário (RIBEIRO; SILVA, 2010).
Ressaltamos que a pesquisa reporta-se à processos de tráfico julgados durante o
período de 2007 a 2017. Assim, foi possível analisar em retrospecto as fases do
processamento do delito, a fim de investigar assimetrias na condução de processos de negros
(pretos e pardos) e de não-negros (brancos, amarelos e indígenas). Com este estudo
pretendemos investigar os mecanismos do sistema de justiça criminal buscando identificar se
há incriminação diferencial ou seletiva de negros, quando analisamos o processamento do
delito por tráfico de drogas em Belo Horizonte. Assim, almejamos entender em que medida
tais mecanismos estão estruturados em uma racionalidade racista que concebe o negro como
traficante, inimigo. É o que vamos tratar nas linhas que se seguem.
3
No século XIX teóricos buscavam explicações na composição racial brasileira para entender os entraves do
Brasil como nação moderna. As premissas da escola positivista de criminologia, que tinha como expoentes
Cesare Lombroso, Raffaele Garofalo e buscava explicações biológicas para justificar o comportamento
criminoso foram fecundas no Brasil. Teóricos como Nina Rodrigues e Oliveira Viana foram responsáveis por
difundir a perspectiva de que a mestiçagem era sinônimo de degenerescência, já que o negro era dotado de
inferioridade racial que, por sua vez, repercutia em propensão ao crime (SCHWARCZ, 1999)
2
diariamente a sociedade representa o negro negativamente, como “suspeito”, é de se esperar
que as estruturas jurídico-policiais também o enxerguem dessa forma (ALMEIDA, 2018).
A identificação de “prováveis criminosos” se fundamenta em estereótipos sociais
acerca de quem é o “bandido”. No contexto brasileiro, Misse (2010) argumenta que esta não é
uma categoria sinônima daquele que pratica ato legalmente previsto como crime, mas envolve
a aproximação de práticas que geram a insegurança da vida social com determinados tipos
sociais, “demarcados (e acusados) socialmente pela pobreza, pela cor e pelo estilo de vida”
(MISSE, 2010, p. 18). Para o autor, tais sujeitos despertam na população os sentimentos mais
negativos, aos quais seriam canalizados um maior desejo de punição. O sistema de justiça
criminal, inserido nesse contexto, não estaria imune a essas percepções.
Ao considerar as diferentes linhas de pensamento do direito em processos criminais
tramitados entre 1900 e 1930, Costa Ribeiro (1995) aponta para um uso diferenciado de
concepções de responsabilidade penal. Segundo o autor, a responsabilidade podia ser
entendida conforme diferentes doutrinas do direito penal, seja a clássica, embasada no livre
arbítrio, ou a positivista, segundo a qual a prática do crime seria prevista conforme o biótipo
da pessoa. Nesse processo, a interpretação dessas doutrinas era combinada com a
classificação dos sujeitos e tinha por consequência a discriminação de pretos e pardos. Em
suas palavras, "ser preto ou pardo não era sinônimo de criminalidade, mas os funcionários
jurídico-policiais pareciam não acreditar nisto e tratavam com mais severidade quem não
fosse branco" (COSTA RIBEIRO, p. 144, 1995).
Para Alvarez (2006), o florescimento da criminologia positivista no Brasil no início do
século XX serviu, apesar da falta de respaldo legal, como forma de legitimar cientificamente
diferenças raciais, concedendo tratamento e penas distintas a depender do fenótipo dos
sujeitos. O uso dessas teorias científicas para diferenciar seres humanos, coloca o racismo não
no campo do preconceito ou da ignorância individual, mas "algo que tem a racionalidade
embutida na sua própria ideologia" (ALMEIDA, p. 55, 2018). Assim, embora a criminologia
positivista já tenha sido superada, permanece latente essa racionalidade na naturalização da
desigualdade racial e na (re)criação de associações de características biológicas com práticas
de determinados sujeitos (ALMEIDA, 2018).
Desse modo, ainda hoje, seria possível compatibilizar um arcabouço institucional de
processamento de crimes com a permanência das lógicas de poder construídas historicamente
como desiguais e destinadas a proferir tratamentos racialmente diferenciados (LIMA, 2004).
Se a adoção do discurso político da lei e da ordem pelas instituições repressivas do sistema de
justiça tem sido uma estratégia para lidar com a ineficácia das políticas de controle do crime
3
(GARLAND, 2002), a promessa de diminuição da violência a partir do aumento do rigor
punitivo não tem sido uma mensagem jurídica neutra, pois a identificação e a vigilância dos
sujeitos não se dá conforme a prescrição legal, de igualdade perante a lei. Pelo contrário, ela
tem “alvos” racialmente delineados e delitos reprimidos como toda a força que o pânico é
capaz de mobilizar. É nesse contexto que se opera a guerra contra as drogas.
4
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal,
drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes
4
para imputar advertências, prestação de serviço à comunidade e medidas educativas; (ii) e o
traficante de drogas (art. 33 da Lei 11.343/06)5 ao qual cabe punições mais severas,
notadamente a pena de reclusão.
Os parâmetros normativos6 de diferenciação entre usuários e traficantes contém
elementos que demandam uma apreciação subjetiva, sobre a droga e sobre quem deve ser tido
como criminoso. Isso porque, os aplicadores do direito devem observar: se a droga destinava-
se ao consumo pessoal ou à comercialização; a natureza e a quantidade da substância; o local
e às condições em que se desenvolveu a apreensão; as circunstâncias sociais e pessoais, bem
como à conduta e aos antecedentes do indivíduo. Assim, a distinção entre quem é usuário ou
traficante será definida a partir das concepções da polícia e dos operadores de justiça sobre
qual a quantidade e tipo de droga são próprias de usuários e quais condições sociais e pessoais
caracterizam o traficante. Todos são critérios que revolvem a moralidade e estereótipos
socialmente construídos (CAMPOS; ALVAREZ, 2017).
Assim, a construção social em torno do tráfico leva a crer que o “problema das
drogas” é exclusivo de uma parcela específica da sociedade: que tem cor, classe social e,
endereço certo. Conforme elabora Valois (2016) construiu-se um estereótipo do traficante que
serve como “bode expiatório” para que a incriminação não recaia sobre a parcela dominante:
branca e elitizada. Para o autor, há uma “democracia de fachada que impede a investigação
aprofundada do envolvimento das elites com o tráfico”. Desse modo, paira a concepção de
que tráfico é sustentado por essa camada específica da população sobre a qual recai o rótulo
de criminosa. E, obedecendo a essa lógica, essa população seria ao mesmo tempo
comercializadora e consumidora de drogas.
Para uma melhor compreensão da dimensão racial atrelada a atual política de combate
ao tráfico de drogas, importante fazer um resgate histórico de como esse o sistema de punição
se constituiu no Brasil. Há uma interação direta com a necessidade do grupo dominante impor
sua moralidade e controle em relação aos indivíduos apartados da nova ordem social que se
estabelece após declarado o fim da escravidão. A reforma do Código Penal brasileiro na
penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa
de comparecimento a programa ou curso educativo.
5
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter
em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas,
ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena -
reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
6
Art. 28. (...)
§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da
substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e
pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
5
década de 30 tratava, com ênfase, da figura do vadio. Mais da metade das prisões após a
vigência da nova legislação eram por crimes relacionados “ao existir” e não ao “fazer”.
Pessoas que simplesmente “vagavam” eram presas. Pequenas infrações, comuns entre os
sobreviventes diretos do regime escravagista, eram punidas com detenção7.
A aparente libertação dos corpos negros escravizados provocou alterações profundas
na estrutura econômica da sociedade brasileira. Entretanto, não foi capaz de mudar a lógica de
hierarquização racial que fundamentava o colonialismo e a escravidão. Os senhores de
engenho, agora desprovidos dos instrumentos de controle do antigo regime escravagista,
passaram a mobilizar o aparato burocrático e normativo para controle e contenção dessa
população “indesejada”. A repressão criminal, assim, acaba por ocupar um lugar de destaque
nesse arranjo social após declaração da abolição e a incorporação de métodos punitivos
direcionados e seletivos torna-se sua principal tecnologia. De modo que “a eficácia das
instituições de controle social se funda na capacidade de intimidação que estas são capazes de
exercer sobre as classes subalternas”. (NEDER; CONTIER, 1987, p. 5).
Essa caracterização do ex-escravizado como o “outro” viabilizou a permanência das
relações de poder de forma inalterada e assimétrica, mantendo a hegemonia do esquema “casa
grande e senzala”, induzindo a construção de um arranjo jurídico-penal higienista que
resultaria na marca prevista de quase um milhão de encarcerados no século XXI. Para tanto,
foi necessário idealizar e reproduzir esse terror gerado pela figura do “diferente”, do
“inverso”, negando-lhe a construção positiva da própria identidade e, assim como, dos demais
meios de exercício da plena cidadania. Abriam-se as portas para um consenso difuso por uma
política repressiva (BATISTA, 2007).
A seletividade do sistema penal brasileiro, tão evidente em 2020, se relaciona com
esse processo histórico de negação de direitos e construção social do negro como perigoso. O
escravizado de ontem é o “traficante” de hoje, antecipadamente punido pelo “delito de ser
negro”, conforme elabora Abdias do Nascimento (2016). Apenas alterou-se a formatação e
denominação para o “traficante”, mas o mesmo perfil de pessoas continua sendo retratado nas
manchetes (e mais recentemente também no texto das decisões judiciais) como sendo a
principal “causa” da insegurança.
7
É neste marco de referência que o Código Criminal do Império de 1830 é promulgado, na esteira do medo das
insurreições, nas expectativas de que à nação independente de 1822 sobreviessem os direitos plenos de seu povo
mestiço, nas contradições entre liberalismo e escravidão, na necessidade de unificação territorial e centralização
dos poderes imperiais. (BATISTA, 2008)
6
É nesse sentido que a advogada norte-americana Michelle Alexander (2017) chama
atenção para o modo como o sistema penal aplicado à política de guerra às drogas opera de
maneira “assustadoramente familiar” reificando um passado escravocrata e controlando os
mesmos alvos de sempre. Por meio da diferenciação de sentenças, da legitimação da
seletividade policial, da perversidade e discricionariedade dos atores do judiciário, a autora
assevera que estamos diante de uma renovação da segregação racial, viabilizada pelo sistema
de justiça criminal que foi remodelado para associar o marcador racial como um elemento
eficiente de controle social.
A partir dessa perspectiva e considerando que o Sistema de Justiça Criminal está
inserido numa ordem social que hierarquiza os sujeitos a partir da raça, este trabalho procura
entender como os processos de diferenciação acontecem nos processos criminais de tráfico de
drogas. Para tanto, a seguir, descrevemos a metodologia utilizada na produção dos dados.
8
5. Resultados da pesquisa e discussão dos dados
No levantamento de dados realizado, identificamos que negros correspondem a 74%
do total de indiciados por tráfico; ao passo que, na amostra, 17,1% são não-negros e, em 8,9%
dos casos, os processos não dispunham dessa informação. Este início do fluxo de
processamento diz muito sobre a política de guerra às drogas que engendra o policiamento e a
persecução penal de forma seletiva sobre os diferentes grupos raciais. No Gráfico 1 podemos
observar que, o quantitativo de pessoas negras que dão entrada no sistema de justiça criminal
pelo delito de tráfico de drogas chega a ser 4,3 vezes maior do que o grupo de pessoas não-
negras.
Gráfico 1: Distribuição em números percentuais de Indiciados por raça (%) - processos de tráfico
de drogas, arquivados em Belo Horizonte (2007 a 2017)
Uma vez que são as polícias (civil e militar) os atores que deflagram, por meio de
investigação ou do flagrante, o início do fluxo do sistema de justiça criminal, podemos dizer
que estes dados corroboram a tese de que há um padrão de vigilância e policiamento que
coloca um grupo racial como alvo prioritário das ações de repressão e controle estatal
(SINHORETTO et al., 2014 ).
A teoria de que o policiamento é voltado para vigilância de “classes perigosas”
(PAIXÃO, 1982), assim como a tese que aponta que a atividade da polícia se orienta pela
identificação de “elementos suspeitos” (RAMOS; MUSUMECI, 2005; REIS, 2002), dão
conta de explicar a presença massiva de pessoas negras no início do fluxo do processamento
por tráfico. Isso porque, essa alegação vaga usada para legitimar a abordagem policial permite
que sejam mobilizados elementos sociorraciais para caracterização daquele que deve ser alvo
da desconfiança policial, por estar imageticamente associado à figura do criminoso.
9
No mesmo sentido, os dados da Tabela 1 confirmam que o flagrante possui
centralidade para caracterização do delito de tráfico (JESUS et al, 2011). Observamos que
inquéritos policiais instaurados em razão da certeza visual da ocorrência do crime (flagrante)
são mais recorrentes (96,6% dos casos quando os indiciados são negros e 93,3% quando não-
negros) do que aqueles instaurados a partir de um ato administrativo (Portaria) do delegado de
polícia que apurou a ocorrência do tráfico (3,4% em se tratando de pessoas negras e 6,7%
quando não-negras). Assim, a ideia de “atitude suspeita” encontra ressonância quando nos
referimos ao delito de tráfico de drogas, já que o flagrante é eminentemente visual e permite
acionar as representações racistas que associam negritude à criminalidade (FLAUZINA,
2006).
A alegação imprecisa que a pessoa estava em “atitude suspeita” em muitos dos casos
fundamenta a abordagem policial e a prisão em flagrante e está ancorada na percepção social
do crime e nas marcas raciais trazidas por aqueles vistos como criminosos (REIS, 2002). Esta
é uma chave explicativa para o fato de encontramos nesta fase policial a primeira filtragem
que faz com que o número de indiciados negros seja muito superior do que indiciados não-
negros pelo delito de tráfico. E ainda, demonstra que negros estão mais suscetíveis à prisão
em flagrante.
Um dado interessante levantado por Semer (2019) dialoga com os resultados desta
pesquisa, já que também constatou a predominância do flagrante em processos de tráfico de
drogas, com uma média de 88,75% de processos iniciados por essa modalidade, contra
11,25% inquéritos instituídos por meio de Portaria (2019, p. 384). Além disso, o autor destaca
que cerca de 70% dessas prisões são fruto de patrulhamento de rotina e denúncias anônimas
10
(SEMER, 2019), evidenciando o papel da polícia ostensiva (polícia militar) como elemento
definidor da entrada dos indivíduos no sistema de justiça criminal.
Tendo ocorrido a prisão flagrante, há um procedimento crucial para definição da vida
da pessoa flagranteada: o juiz decidirá sobre os termos de sua liberdade ao longo da
investigação e do processo penal, em relação ao delito registrado na abordagem policial. É
sobre essa manifestação do juiz, que transforma o flagrante em prisão ou liberdade provisória,
que se trata os dados da Tabela 2, no qual observamos que, em se tratando do delito de tráfico
de drogas, o percentual de concessão da liberdade provisória é baixo tanto para negros (8,9%),
quanto para não-negros (4,9%).
Embora percentualmente negros recebam mais liberdade, este percentual perde relevo
quando observamos que o universo de negros na amostra é muito mais expressivo, conforme
se verifica na representação do Gráfico 2.
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Gráfico 2: Distribuição (em números absolutos e percentuais) da concessão de liberdade
provisória, segundo grupo racial - processos de tráfico de drogas, arquivados em Belo Horizonte (2007 a
2017) p-valor 0,04
8
De acordo com o Código de Processo Penal, em mudança legislativa de 2019, a prisão preventiva pode ser
decretada quando houver "perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado".
12
interrogatórios etc.) a produção de provas é reiterada perante o juiz e as partes (LIMA, 1989).
Os documentos produzidos no momento da apreensão, o perfil das pessoas presas em
flagrante, assim como a valor dado ao relato policial repercutem no desfecho dos casos. Jesus
(2011) destacou que em 74% dos processos de tráfico de drogas, a oitiva dos policiais
militares que realizaram a prisão em flagrante foi a única prova realizada. Semer (2019)
chegou a uma conclusão próxima, indicando que das testemunhas arroladas pelo Ministério
Público em processos de tráfico de drogas, 90,46% são policiais (58,17% militares e 22,12%
civis), bem como que nos processos, as testemunhas de acusação representam 71,34% de
todas as pessoas ouvidas.
Assim, o sistema de justiça criminal pode ser entendido como uma linha de montagem
(SAPORI, 1995) em que, sob a primazia da produtividade, os atos realizados nas fases
anteriores são aproveitados nas etapas seguintes, sendo orientadores da produção de decisões
pelo judiciário. Um esquema em que há homogeneidade no que se refere ao perfil dos sujeitos
na entrada e no desfecho dos casos no sistema (RIBEIRO; ROCHA; COUTO, 2017).
No que tange às decisões proferidas nos casos de tráfico e sua imbricação com a raça
dos sujeitos, importante destacar que o modo de operacionalizar conceitos e tratar as
“condições pessoais e sociais” que a própria lei determinou que fossem reconhecidas, abrem
margem para tratamento diferenciado aos réus (SEMER, 2019), já que serão enquadrados
como usuários de drogas ou como traficantes, a partir de elementos altamente subjetivos, cuja
análise demanda uma apreciação particular sobre o tipo de droga e as condições que
caracterizam os agentes do delito. Ou seja, se a lei não dispõe de critérios objetivos para
definição de quem é traficante, os operadores do direito precisam acionar suas visões de
mundo para interpretar e dar aplicabilidade à norma. Inclusive, podem mobilizar percepções
de cunho preconceituoso que, como brasileiros, forjados sob o mito da igualdade racial, temos
“preconceito” de reconhecer (FERNANDES, 1965).
A partir da Tabela 3, a seguir, apresentamos o desfecho dos processos no judiciário,
apontando se a sentença foi absolutória, condenatória ou se desconsiderou a conduta de
tráfico e para reconhecer o réu como usuário. Tal como no início do processamento, notamos
a presença preponderante de negros; dado que deve ser levado em consideração para
compreendermos a distribuição de sentenças de absolvição, condenação e desconsideração do
tráfico entre grupos de negros e de não-negros.
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Tabela 3 - Distribuição (em números absolutos e percentuais) dos resultados das sentenças,
segundo grupo racial - processos de tráfico de drogas, arquivados em Belo Horizonte (2007 a 2017) p-
valor: 0,02
Gráfico 3 – Distribuição (em números absolutos e percentuais) dos resultados das sentenças,
segundo grupo racial - processos de tráfico de drogas, arquivados em Belo Horizonte (2007 a 2017) p-
valor: 0,02
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representam em maior percentual as sentenças absolutórias e de desconsideração (Gráfico 3).
Entretanto, verificamos que, mesmo recebendo sentenças absolutórias e de desconsideração
do tráfico, em números absolutos, tais decisões repercutem pouco, haja vista o expressivo
número de pessoas negras que entram no fluxo do sistema de justiça criminal incriminadas
pelo delito de tráfico.
A Tabela 3, também permite a comparação dos dados na frequência em que ocorrem,
com os termos em percentuais. Assim quanto ao desfecho processual, há uma maior
representação percentual de negros nas sentenças absolutórias e nas que consideram haver uso
em detrimento de tráfico de entorpecentes, embora a quantidade de negros processados
criminalmente é muito superior que à de não-negros.
Este cenário acerca do desfecho das decisões, aliado ao regime de pena que é
cominado ao grupo de réus negros e não-negros (análise que veremos adiante) permite
compreender o porquê o sistema carcerário brasileiro abriga um perfil populacional
racialmente delineado. Trata-se de um processo de encarceramento contínuo e em massa que
faz com que negros estejam encarcerados em maior número e sob regime de pena mais
gravoso (BORGES, 2018).
Nesse sentido, merece destaque também a análise que compara negros e não-negros no
que se refere ao regime inicial de cumprimento de pena pelo delito de tráfico de drogas. A
partir da análise representada na Tabela 4 é possível perceber que negros são penalizados de
forma mais severa que não-negros, uma vez que ficarão submetidos em (72% dos casos) ao
regime fechado como inicial para cumprimento de pena. Isso significa dizer que, durante a
fase de aplicação de pena, negros recebem penalidades que os submetem à experiência do
encarceramento como efeito imediato da pena. Entre os não-negros o percentual de
cumprimento inicial de pena sob regime fechado é de 63%. Esse padrão se reverte nos outros
regimes de cumprimento inicial de pena menos gravosos; nestes o percentual de negros é
sempre menor que de não negros: o percentual de negros sujeitos ao regime semiaberto é de
6% e ao aberto é de 18%. Ao passo que, no grupo de não-negros 8% foram sujeitos ao regime
semiaberto e 27% ao regime aberto.
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Tabela 4: Distribuição (em números absolutos e percentuais) do regime inicial de pena segundo
grupo racial - processos de tráfico de drogas, arquivados em Belo Horizonte (2007 a 2017) p-valor: 0,02
5. Considerações Finais
Conforme argumenta Valois (2016), ao contrário do discurso de proteção aos
cidadãos, a “guerra às drogas” tem se mostrado uma guerra real contra pessoas. Afinal, são
elas, e não a substância, que sofrem as consequências diretas do conflito instaurado.
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Revelando sua face mais brutal e desumana, essa batalha é utilizada para justificar
intervenções policiais arbitrárias, criminalizar e encarcerar determinados sujeitos. Se
inicialmente corpos negros são identificados como “suspeitos” pela polícia, no judiciário lhes
é atribuído o rótulo de traficante. Dois conceitos vagos, que não comportam critérios objetivos
e dão margem para que as preconcepções racistas, que estruturam a sociedade brasileira e
definem o lugar social de negros, emerjam no âmbito do sistema de justiça criminal.
Os resultados da pesquisa demonstraram que o processo criminal de tráfico de drogas
é marcado pela presença preponderante de acusados negros em seu início e em seu desfecho.
O início do fluxo de processamento deste delito é caracterizado pela centralidade da prisão
flagrante, que, por sua vez, na maior parte dos casos, não é convertida em liberdade
provisória. Já no desfecho, ao contrário do esperado, observamos que, percentualmente, há
uma maior representação de negros nas sentenças que os absolvem ou que consideram haver
uso em detrimento de tráfico de entorpecentes. Contudo, uma vez que a quantidade de negros
processados criminalmente é muito superior à de não-negros, temos que, no cômputo global,
há muito mais negros condenados pela justiça pelo crime de tráfico. Ademais, ao dosar a
pena, o judiciário (re)produz vieses e contribui para a seletividade racial do sistema: quando
condenados, os negros são em geral mais penalizados, pois ficam submetidos a penas mais
gravosas e iniciam o cumprimento de pena em regime fechado. O efeito consequente é o
encarceramento contínuo e em massa de um perfil populacional racialmente delineado.
Tendo em vista que o racismo é parte da ordem social estabelecida e tem como
elemento fundante as relações de poder e o controle de determinados grupos, sob o aparato
institucional (ALMEIDA, 2018) podemos concluir que o sistema de justiça criminal brasileiro
opera sob essa racionalidade, já que sua lógica e padrões de funcionamento acabam por
desprivilegiar o grupo racial negro.
Assim, observamos a influência da raça na criminalização por tráfico, desde a fase
policial até a aplicação da pena, ainda que esse marcador não seja explicitado na
fundamentação da sentença, como mais recentemente temos visto nos noticiários.
Sustentamos que estereótipos negativos que construíram a imagem do negro como “vadio”,
“desordeiro”, “bandido”, traficante; enfim, inimigo, tem raízes no período após a declaração
da abolição, mas trouxe consequências para a ordem jurídica não apenas daquele tempo, mas
também para os dias atuais. Sendo assim, conforme já previa o jurista abolicionista Joaquim
Nabuco, a escravidão permaneceria por muito tempo como marca nacional.
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