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WALTER BENJAMIN: POR UMA EDUCAÇÃO DA EXPERIÊNCIA

Márcio Jarek*

Introdução

Poderíamos encontrar diferentes formas para abordar a temática da educação no


pensamento de Walter Benjamin (1892-1940). Algumas dessas formas são mais diretas,
como em trabalhos sobre a universidade, a vida dos estudantes, os livros e brinquedos
infantis, a pedagogia, o universo mesmo da criança e da juventude ou sobre a filosofia e seu
ensino. No entanto, são as formas mais “subliminares”, as continuidades e descontinuidades
estranhas, as alegorias, os fragmentos e as imagens visionárias, que talvez possam
apresentar melhores, mais profundas e mais agudas contribuições sobre a educação e,
mesmo, sobre o educar em nosso tempo.
Há um bom número de livros sobre a relação das ideias do pensador berlinense
Walter Benjamin com o tema da educação. Alguns, como é o caso do livro Política,
Educação, Cidade: itinerários de Walter Benjamin (2009) organizado pelas pesquisadoras
cariocas Solange Jobin e Souza e Sônia Kramer, mostram alternativas de percursos para
esse tipo de incursão na leitura da obra do autor.
Tentando adotar no presente trabalho um princípio metodológico apontado por
Benjamin na obra Passagens1, mais especificamente um princípio epistemológico que
defende o desvio como método, a coleção como procedimento e o ensaio como obra,
partimos para a observação, monadológica2 talvez, de possíveis relações do pensamento
benjaminiano com as discussões inesgotáveis e sempre pertinentes em torno da educação.

1
Muitos pesquisadores da obra de Walter Benjamin, tais como Willi Bolle e Jeane-Marie Gagnebin, apontam
para a “Seção N” - “Teoria do Conhecimento, Teoria do Progresso” da obra Passagens e para o capítulo
introdutório da obra Origem do Drama Barroco Alemão como significativos da apresentação de um original
procedimento para a atividade filosófica. Proposta crítica que tenta se colocar como uma alternativa aos
tradicionais métodos racionalista, historicista e, mesmo, marxista.
2
Cf. Olgária C. F. Matos (1993, p.61), “Com a noção de mônada, Benjamin recusa a alternativa
razão/imaginação, decorrência da fé que a época clássica nutriu na auto-suficiência da razão. Benjamin
observa: ‘a idéia é mônada – o que, resumidamente, significa: toda idéia contém a imagem do mundo. A
tarefa da apresentação da idéia não é outra coisa senão desenhar essa imagem reduzida do mundo”.
Para compreendermos suas opções filosóficas, suas visões sobre a cultura e a
história e os desdobramentos deste na temática da educação, algumas notas biográficas
sobre Walter Benjamin são relevantes. Nascido em Berlim no ano de 1892, no seio de uma
família burguesa e judia, Benjamin, a partir da juventude flertou com o pensamento
kantiano, com a literatura do romantismo e do barroco e com a militância comunista,
obtendo, assim, uma formação ligada às diferentes correntes filosóficas, políticas, artísticas
e até mesmo religiosas, representativas da atmosfera intelectual das primeiras décadas do
século XX. Essa polissemia formativa é ilustrada pela relação de amizade que Benjamin
mantinha com amigos que, pelos traços de personalidade e atividades profissionais,
insistiam em se odiar: Theodor Adorno (importante e rigoroso filósofo social, músico e
também crítico musical); Berltold Brecht (dramaturgo marxista, polêmico e vanguardista);
e Gerschom Scholem (líder judaico e pensador/teórico do judaísmo). Benjamin foi um
destacado crítico literário, renomado tradutor, criterioso ensaísta e um obstinado
pesquisador. Recebeu, por vários pesquisadores de sua obra, o título de pensador da cultura,
de filósofo da história, de crítico da arte em tempos de reprodutibilidade técnica, entre
outros. No entanto, seguindo outro caminho (ou desvio como diria Benjamin) e servindo-
nos de recursos de escrita, tais como a criação de novos termos e o uso de trocadilhos, para
iniciar nossas especulações sobre a educação, resolvemos adotar a denominação não usual
para Walter Benjamin: como a de um filósofo da experiência.

Experiência e Formação

O tema da experiência transcorre toda a obra de Benjamin perpassando todo seu


fragmentário e diversificado pensamento. A ideia de experiência, assim como a figura
infantil do Corcundinha, uma entidade que, citada várias vezes pelo pensador, assombrava
crianças, fazendo-as cometer pequenos acidentes domésticos, pequenos descuidos e sustos,
ora se apresenta mais vivaz e bisbilhotando a linha de argumentação do autor, ora esconde-
se por de traz de citações enigmáticas, imagens dialéticas e passagens de teor quase
profético. Tal qual a função do Corcundinha, a ideia de experiência quando aparece, ou
quando apenas se insinua, provoca uma série de caseiros e importantes “acidentes” que, por
sua vez, ocasionam “planejados” desvios nas reflexões de Walter Benjamin. Afinal,
segundo o pensador: “Método é desvio”.

Comparação das tentativas dos outros com empreendimentos de navegação (...). O que são
desvios para os outros, são para mim os dados que determinam minha rota. – Construo meus
cálculos sobre os diferenciais de tempo – que, para outros, perturbam as “grandes linhas” da
pesquisa. (BENJAMIN, 2006, p.499. N 1, 2)

Nessa “rota de pesquisa”, uma das primeiras vezes em que a preocupação com a
palavra experiência ocorreu, foi em um escrito raivoso, cheio de indignação e de
preocupação do período de juventude de Walter Benjamin. Como que prenunciando a
passagem dolorosa da Europa pelas trincheiras da 1ª Guerra Mundial, no artigo intitulado
“Experiência” de 1913, Benjamin denuncia certo tipo de perda com o rigor na exigência
formativa dos estudantes alemães pelos adultos e destaca, por sua vez, como consequência
desta, o perigoso e crescente empobrecimento espiritual da juventude de sua época.

Travamos nossa luta por responsabilidade contra um ser mascarado. A máscara do adulto
chama-se “experiência”. (...) O que esse adulto experimentou? O que ele nos quer provar?
(...) Assim são os bem-intencionados, os esclarecidos. Mas conhecemos outros pedagogos
cuja amargura não nos proporciona nem sequer os curtos anos de “juventude”; sisudos e
cruéis querem nos empurrar desde já para a escravidão da vida. Ambos, contudo,
desvalorizam, destroem os nossos anos. E cada vez mais, somos tomados pelo sentimento de
que a nossa juventude não passa de uma curta noite (viva-a plenamente, com êxtase!);
depois vem a grande ‘experiência’, anos de compromisso, pobreza de idéias e lassidão.
Assim é a vida, dizem os adultos, eles já experimentaram isso. (BENJAMIN, 2002, ps.
21-22, grifos nossos) 3

Num primeiro momento essa luta contra o adulto, contra a “experiência” do adulto,
parece-se com um mero resmungo de típica rebeldia juvenil, um reclame compreensivo da
eterna relação conflituosa entre gerações, no entanto, a fala contundente do jovem
Benjamin neste artigo dirige-se como crítica à ideia de formação e de cultura estabelecidas
nas sociedades capitalistas ocidentais, principalmente após o período iluminista. Essa
característica marcará boa parte dos trabalhos posteriores do pensador berlinense. A título
de exemplo, em uma nota do ano de 1929, ao respectivo artigo, Benjamin destaca que a
palavra experiência havia se tornado “um elemento de sustentação” em muitas de suas

3
O termo experiência utilizado pelo autor e em destaque nesta citação foi traduzido do termo alemão Erlebnis
(Vivência) e contrapõe-se ao termo Erfahrung (Experiência coletiva).
atividades e que o ataque juvenil “cindiu a palavra sem a aniquilar”.4 (Ibdem, p. 22)
Benjamin rejeita a compreensão habitual do termo experiência, aquela entendida
como conhecimento da vida pelos que possuem mais idade, concebida desta maneira, a
experiência seria vista como mera repetição do passado. O jovem seria aquele “sem
experiência” que obteria a “experiência” dos adultos e, que, quando fosse mais velho e
“experiente” a transmitiria novamente para os mais jovens que o sucedessem. Para a
pesquisadora Kátia Muricy (2009, p.195):

Presa ao passado, a compreensão da experiência dos mais velhos é o domínio de um


‘sempre igual’ paralisante do qual Benjamin quer fazer emergir, libertar, a novidade do
presente, a que chama de ‘uma outra experiência’ (‘eine andere Erfahrung’) que
questionará sempre o passado como repetição mitológica do mesmo.

Essa “outra experiência”, exigida por Benjamin já em seus escritos juvenis e que
norteou as suas reflexões até os seus últimos trabalhos, remete à necessidade de uso de um
conceito de experiência que, por quebrar os domínios do “sempre igual” com o novo,
recupere o seu significado original de tentativa, de erro e, sobretudo, de risco.
No campo da educação, mais especificamente nos debates atuais sobre o saber e
sobre a escola, é digna de nota a forma como o pensador espanhol Jorge Larossa Bondía
resgata de modo “benjaminiano” a noção original de experiência para pensar a educação
em nosso tempo. Conforme Bondía (2002, p.20), o constante pensar a educação, por
inúmeros pesquisadores, apenas no par ciência/técnica e também, por outros inúmeros
pesquisadores, apenas no par teoria/prática, tem reduzido a discussão da educação como
mera formação técnica e como ciência aplicada ou, por outro lado, apenas como práxis
política e como partidarismo político. Para Bondía, certamente como para Walter
Benjamin, a educação poderia ser entendia pelo par experiência/sentido. Não a forma de
“experiência” que não passa de mera vivência técnico-científica ou mera vivência política,
mas a experiência, que segundo o pesquisador, em várias línguas, remete a um “passar
por”, ao “atravessar” e ao “correr risco” com essa passagem, significados que resgatam o
sentido original da palavra experiência:

4
Essa cisão da palavra experiência indicada por Walter Benjamin refere-se a redução do uso enquanto
Erfahrung e o constante uso enquanto Erlebnis. Algo que pode ser melhor verificado nos artigos Experiência
e Pobreza e O Narrador disponíveis na coletânea Obras Escolhidas, volume I.
A palavra experiência vem do latim experiri, provar (experimentar). A experiência é em
primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. O
radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. A raiz indo-européia é per,
com a qual se relaciona antes de tudo a idéia de travessia, e secundariamente a idéia de
prova. Em grego há numerosos derivados dessa raiz que marcam a travessia, o percorrido, a
passagem: peirô, atravessar; pera, mais além; peraô, passar através, perainô, ir até o fim;
peras, limite. Em nossas línguas há uma bela palavra que tem esse per grego de travessia: a
palavra peiratês, pirata. O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe
atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele
sua oportunidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de
exílio, de estranho e também o ex de existência. A experiência é a passagem da existência, a
passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente
“ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Em alemão,
experiência é Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo alto-alemão fara
também deriva Gefahr, perigo, e gefährden, pôr em perigo. Tanto nas línguas germânicas
como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e
perigo. (BONDÍA, 2002, p.25)

O resgate, buscado por Benjamin, do sentido original de travessia e de perigo da


palavra experiência, mune de potencialidades muito ricas e intensas a crítica, por parte do
autor, à ideia de cultura nas sociedades ocidentais. Cultura, que na língua alemã, é expressa
por Bildung, e que significa ao mesmo tempo formação, formação cultural, etc. Para a
pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rosana Suarez (2006,
p. 192), o conceito de Bildung, a ideia mais importante do século XVIII, é o conceito que
designa o aspecto que unificou as ciências do espírito do século XIX. O conceito de
Bildung torna evidente a profunda transformação cultural dos últimos séculos a partir do
Iluminismo e que ainda marca nossa época. No momento histórico iluminista, os conceitos
e termos decisivos com os quais ainda hoje atuamos adquiriram seu significado. Como um
“termo de caráter bastante dinâmico, Bildung se impõe a partir da segunda metade do
século XVIII, exprimindo, ao mesmo tempo, o elemento definidor, o processo e o resultado
da cultura”, comenta a pesquisadora.

Kant, o Iluminismo e as limitações à experiência

Após o período iluminista, a modernidade passou a ver os conceitos de cultura e de


formação como correlatos em seu significado e em seu processo de obtenção. Desta forma,
o conceito de Bildung nos liga diretamente a ideia de esclarecimento, de Aufklärung. O
conceito de esclarecimento, por sua vez, refere-se à própria humanização do homem
concebido como ser que não nasce pronto, mas que deve necessariamente buscar um
estágio de maioridade racional. Assim, a formação defendida a partir do Século das Luzes
pode ser caracterizada como a de um devir humanizador, mediante o qual o indivíduo
natural “se transforma” num ser cultural. Não é de se estranhar que no seu percurso de
crítica à cultura/formação (Bildung) do ocidente, em seu ímpeto de ampliar o significado da
experiência, Walter Benjamin tenha dedicado boas observações sobre o pensamento
iluminista de Immanuel Kant.
Em um ensaio de 1918, “Sobre o programa da filosofia futura”, Benjamin reconhece
em Kant conquistas indispensáveis para a moderna teoria do conhecimento, e se são
conquistas neste aspecto o são também para a compreensão das teorias sobre a educação da
modernidade, contudo, destaca que Immanuel Kant formulou sua noção de experiência, e o
mesmo poderia ser dito de todo seu sistema filosófico, sem a devida consciência da
estrutura global de uma limitada experiência temporal5. Kant e outros filósofos da época
compartilharam de um mesmo horizonte histórico como sendo a única base dada e possível
para a produção filosófica. Um horizonte mecanicista extremamente dominado pelas
ciências, pelas inovações da física e da frieza matemática. Assim, Kant e seus
contemporâneos universalizaram suas reflexões a partir de uma restrita e particular
experiência histórica.

Esta experiência singular era, pois, como já se insinuou, temporalmente limitada, e desde
essa forma que de certo modo compartilha com toda experiência, e que podemos no sentido
mais pleno chamar concepção de mundo, foi a experiência do Iluminismo. Diferencia-se dos
precedentes séculos da era moderna no que são aqui traços essenciais, e ainda assim, não
tanto como pudera parecer. Foi além do mais uma das experiências ou concepções de
mundo de mais baixo nível. (BENJAMIN, 2006, p. 2)

Benjamin observava o “baixo nível” da experiência do período iluminista como o


momento que sofreu um impedimento decisivo para se tornar “verdadeiramente consciente
de seu tempo e da eternidade”. Este impedimento se situa, sobretudo, segundo Benjamin,
(Ibidem, p. 2), “na realidade, a partir de cujo conhecimento Kant quis fundar o
conhecimento em geral sobre certeza e verdade, é uma realidade de nível inferior, se não a
mais inferior de todas”. Esta realidade tenta declarar a certeza de um conhecimento
5
Cf. BENJAMIN, Walter. El Programa de La Filosofia Venidera. p.1.
duradouro e de vigência intemporal e universal sem levar em conta a dignidade de um
conhecimento com base nas experiências de diferentes e fragmentárias naturezas. O
pensamento de Immanuel Kant ateve-se ao caráter raso da experiência, uma experiência
reduzida a um mínimo de significação. Ou seja, uma ideia de experiência que concebe o
conhecimento como uma relação simples entre “um qualquer sujeito” e “um qualquer
objeto”, dessa maneira a noção de formação inerente ao esclarecimento iluminista passou a
se orientar apenas para o cientificismo e a técnica, para as matemáticas e para a mecânica.
Essa limitação da experiência no Iluminismo, segundo Benjamin, pode ser
identificada até mesmo no imperativo categórico do dever kantiano. O dever moderno
divulgado por Kant profere um rigor moral muito longe daquele relacionado ao prazer e à
felicidade defendidos pela ética na Antiguidade Clássica. Deixando de ser condição que se
“aprende” com o exercício, com a “formação” virtuosa do caráter, o dever apresentado nas
obras kantianas Crítica da Razão Prática e na Fundamentação da Metafísica da Moral se
impõem como pura forma, pura lei universal e intemporal independente de todo objeto ou
fim da vontade. Esse “dever” obriga a ação moral como uma coerção, como violência sobre
todas as inclinações e deve ser seguido como mandamento, ou seja, imperativamente. O
que falar então das teorias educacionais que adotam o racionalismo como fundamento e a
noção kantiana de autonomia moral como finalidade, como objetivo.
Esse completo enquadramento da vida, uma intensa e racional experiência voltada
ao ordenamento e a classificação de tudo ao rigor científico, é observado por Walter
Benjamin, como sintoma, na angústia do interior burguês no qual está assentado todo o
Iluminismo. Essa angústia, segundo Benjamin, tem sua origem na forçada limitação do
campo de experiência imposta inicialmente como esclarecimento, como formação cultural
pela razão. Conforme observa Olgária Matos (1993, p. 135), o indivíduo do período
iluminista “é impotente para reconhecer a totalidade da experiência, o exterior ao eu, o
externo desse mísero interno”. A intenção de Benjamin, segundo a pesquisadora, é a
exploração de outras formas de experiência, como os campos das experiências religiosas,
linguísticas, estéticas e históricas, em compensação ao individualismo extremado imposto
pela experiência unicamente matemática e mecânica proposta a partir do Iluminismo.
A pobreza de experiências

Posteriormente, nos artigos “Experiência e Pobreza” e “O Narrador”, ambos da


década de 30, o conceito de experiência volta a aparecer, agora de maneira mais crítica e
relacionada com os modos de intercambiar conhecimentos entre as pessoas. Especialmente
em “O Narrador”, Benjamin destaca a progressiva perda da experiência coletiva (no
sentido de Erfahrung) e assimilação de outra forma de experiência, mais individual e ligada
à vida nas sociedades capitalistas pós iluminismo (no sentido de Erlebnis – termo alemão
que está relacionado à vivência). No parecer de Jeanne Marie Gagnebin (1999, p. 57)
“Benjamin situa neste contexto o surgimento de um novo conceito de experiência, em
oposição àquele de Erfahrung, o do Erlebnis, que reenvia à vida do indivíduo particular,
na sua inefável preciosidade, mas também na sua solidão.”
Conforme anunciamos anteriormente, o termo alemão Erfahrung é utilizado por
Benjamin para se referir a uma forma de experiência semelhante a uma sabedoria coletiva
de vida referindo-se a um conhecimento comum às várias gerações que se sucedem. Ela
supõe, portanto, uma tradição compartilhada e retomada na transmissão da palavra de pai a
filho; uma continuidade e temporalidade típica das sociedades ‘artesanais’. Ou ainda, a
sabedoria coletiva passada de geração para geração pela narração, como são as narrações de
viagens. A palavra Erfahrung, observa Gagnebin (Ibidem, ps. 57-58), vem do radical fahr –
usado no alemão antigo no seu sentido literal de percorrer, de atravessar uma região durante
uma viagem.
No artigo “O Narrador” Benjamin indica para a substituição de experiências, ou
melhor, para o empobrecimento da experiência coletiva entre as pessoas (no sentido de
Erfahrung), como tendo seu indício mais marcante na forma de produção literária da
atualidade. Onde anteriormente reinavam absolutas formas de narrativas épicas e coletivas,
como é o caso das produções clássicas gregas, agora é território (lucrativo, diga-se de
passagem) para os solitários romances e para os “práticos” artigos de jornal. Benjamin
(1994 a, p. 198) acredita que, se pode perceber

a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras
pessoas que sabem narrar devidamente. (...) É como se estivéssemos privados de uma
faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.
Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e
tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos
um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca (...)

Segundo Benjamin (Ibidem, p. 201), a transformação das antigas narrativas, como


desaparecimento de uma forma de experiência coletiva, “tem se desenvolvido
concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas”. Um dos sinais
mais fortes desta “evolução” é a invenção da imprensa e do romance moderno. A
transformação da narrativa, que estava intrinsecamente ligada a uma tradição oral de
transmissão de uma sabedoria coletiva (experiência ou Erfahrung) e, por sua vez, de uma
cultura formativa pela tradição (Bildung), se dá com o surgimento do romance moderno na
forma de livro. O romance se distingue das narrativas porque nem procede da tradição oral
nem a alimenta. Segundo Benjamin:

o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos
outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista
segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar
exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem
sabe dá-los. (...) Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a
profunda perplexidade de quem a vive. (Ibidem, p. 201)

No artigo Experiência e Pobreza, certamente um trocadilho com a ideia de “pobreza


de experiências”, Walter Benjamin trata o tema da transformação das formas de troca de
experiências coletivas (Erfahrung) de maneira muito contundente e, por vezes,
estranhamente visionária. A pobreza agora é a pobreza das experiências comunicáveis e é
uma das marcas do tempo infernal preconizado pela sociedade capitalista a que Benjamin
se refere quando fala sobre a República Weimar, o período entre guerras e a ascensão
hitlerista.
Essa “pobreza de experiências”, a qual Benjamin se refere, deve-se muito a perda da
capacidade das pessoas de intercambiarem seus conhecimentos, de trocarem seus saberes
entre si. Processo indispensável para a formação/educação de sujeitos plenos do
conhecimento e mesmo enquanto sujeitos da história. Seguindo a perspectiva benjaminiana
de apontamento do crescente empobrecimento da experiência, o pensador da educação
Jorge Larossa Bondía, indica para o fato de que nos processos formativos atuais, na maioria
das vezes o intercâmbio de conhecimento passou a ser confundido como a mera aquisição
de informações:

(...) seguramente todos já ouvimos que vivemos numa “sociedade de informação”. E já nos
demos conta de que esta estranha expressão funciona às vezes como sinônima de “sociedade
do conhecimento” ou até mesmo de “sociedade de aprendizagem”. Não deixa de ser curiosa
a troca, a intercambialidade entre os termos “informação”, “conhecimento” e
“aprendizagem”. Como se o conhecimento se desse sob a forma de informação, e como se
aprender não fosse outra coisa que não adquirir e processar informação. (BONDÍA, 2002, P.
22)

Considerações finais

A perda da capacidade de intercambiar a experiência representa a perda da tradição.


Benjamin constatou que o fim das tradições orais, causou o surgimento de uma miséria das
experiências comunicáveis, um fato que pode ser percebido nitidamente na “volta
silenciosa” do campo de batalha dos combatentes da Primeira Guerra Mundial. Observa
Benjamin (1994 a, p. 198) que: “No final da guerra, observou-se que os combatentes
voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência
comunicável”. Esta nova forma de miséria surgida com o “monstruoso desenvolvimento da
técnica” e sua sobreposição ao homem demonstra a falta de esperanças em relação ao
possível retorno dos modos de expressão da experiência coletiva, o que resta para a
humanidade, destaca Benjamin, é apenas a pobreza de experiência.

Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências.
Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam
ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa
resultar disso. (Ibidem, p. 118)

Para o pensador berlinense, essa pobreza de experiência sentida inicialmente como


sendo de âmbito privado, agora é visivelmente de toda a humanidade. Assim indica
Benjamin o surgimento de uma nova forma de barbárie. No entanto, de modo polêmico, o
pensador defende a ideia de que esta barbárie necessita de uma nova e positiva
conceituação. “Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o
impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir
com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda” (BENJAMIN, 1994 a,
p.116). Seguindo essa definição de barbárie, Benjamin tenta demonstrar (Ibidem, ps. 116-
117) que “algumas das melhores cabeças” já estavam se ajustando a essa situação. Artistas
plásticos como Paul Klee ou os cubistas, escritores ao exemplo de Bertold Brecht e, até
mesmo, arquitetos como Le Corbusier, estavam começando a criar a partir do paradoxal
ponto de vista de que há uma “desilusão radical com o século e ao mesmo tempo uma total
fidelidade a esse século”.
A título de consideração final não poderíamos desprezar, em nossas especulações
sobre a educação, esse sentimento de “desilusão radical” e de “total fidelidade” à nossa
época. Desta maneira, o que nos incita após observar a relação do pensamento
benjaminiano com a temática da educação é a necessidade de sempre pensá-la a
contrapelo6.
Em outros termos, significa buscar incessantemente uma forma de experiência
educativa que não aquela ligada à mera formação técnico-científica, ou à mera vivência
política, é resgatar a experiência enquanto carregada de sentido histórico e buscar sentido
significa também pôr-se em perigo. Nisso consiste a original dimensão educativa do
significado do termo experiência. Nesse caminho, a “desilusão radical” com nosso tempo
representa sempre ter em mente que não devemos pactuar com a história, uma história dos
opressores, e sim buscar, mais uma vez, a compreensão do “progresso” como barbárie, tal
qual a imagem do anjo da história, o Angelus Novus. Por outro lado, a “total fidelidade”
com nossa época podem significar o reconhecimento de “conquistas” ou apenas
“mudanças”, tais como, o desenvolvimento da técnica, a transformação da tradição, o fim
das formas de narração, entre outros.
Por certo, o que o filósofo berlinense Walter Benjamin nos lega para o debate sobre
a educação é a necessidade de pensá-la sempre relacionada à noção de experiência e de
formação que é fornecida pela história e pela cultura. Sem essa observação, quem pensa a
educação, ficaria condicionado a ignorar que não houve um “monumento da cultura que
não fosse também um monumento de barbárie” (BENJAMIN, 1994 a, p. 225) e
perigosamente viria a pactuar com uma perspectiva da história que propõe a naturalização
daquilo que deveria ser considerado como constante “estado de exceção”.

6
Adaptando a expressão utilizada por Benjamin em suas “Teses sobre o conceito de história” para se referir à
tarefa do historiador: “escovar a história a contrapelo”. (1994 a, p.225)
Referências:

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução de


Sérgio Paulo Rouanet e prefácio de Jean-Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1994 a.

________. Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. Tradução de Rubens Rodrigues
Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1994 b.

________. Passagens. Tradução do alemão Irene Aron; Tradução do francês Cleonice


Paes. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2006.

________. Reflexões sobre a Criança, o Brinquedo e a Educação. Tradução,


apresentação e notas de Marcus Vinícius Mazzari. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34,
2002.

________. Sobre el Programa de la Filosofía Venidera. In: Página personal dedicada a


Estética i Filosofia, per Mateu Cabot [Online]. 2006. Disponível em: http://
inicia.es/de/m_cabot/Sobre_el_programa_de_la_filosofia_venidera.htm. Acesso em: 25 de
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________. Origem do Drama Barroco Alemão. Tradução, apresentação e notas de Sérgio


Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.

BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna. Representação da história em


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BONDÍA, Jorge Larossa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Tradução de


João Wanderley Geraldi. Revista Brasileira de Educação, nº 19, p. 20-28, Campinas,
Jan./Fev./Mar./Abr. 2002.
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo:
Perspectiva, 1999.

JAREK, Márcio. Entre a ação e a hesitação: A melancolia, o barroco e a literatura em


Walter Benjamin. 2006. 100 ps. Mestrado em Filosofia - Pontifícia Universidade Católica
do Paraná, Curitiba.

KRAMER, Sônia. JOBIN & SOUZA, Solange. (Orgs.) Política, Educação, Cidade:
itinerários de Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2009.

MATOS, Olgária Chain Feres. O Iluminismo Visionário: Benjamin, leitor de Descartes e


Kant. São Paulo: Brasiliense, 1993.

MURICY, Kátia. Alegorias da Dialética: imagem e pensamento em Walter Benjamin. Rio


de Janeiro: Nau Editora, 2009.

SUAREZ, Rosana. Nota sobre o conceito de Bildung (formação cultural). Revista


Kriterion, nº 112, p. 191-198, Belo Horizonte, Dez. 2005.

*Márcio Jarek
Mestre em filosofia com pesquisa sobre a relação entre melancolia, barroco e literatura no
pensamento de Walter Benjamin. Foi também dirigente municipal de educação, professor
de filosofia da rede pública estadual e da Universidade Tecnológica Federal do Paraná –
UTFPR. Atualmente é professor das disciplinas de filosofia e ética em diferentes cursos na
Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Desde o ano de 2002 tem se
dedicado ao estudo e a interpretação da obra dos filósofos da chamada Escola de Frankfurt,
com ênfase nas relações entre método, ética e política na obra de Walter Benjamin.

E-mail’s: m.jarek@hotmail.com e m.jarek@pucpr.br

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