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Márcio Jarek*
Introdução
1
Muitos pesquisadores da obra de Walter Benjamin, tais como Willi Bolle e Jeane-Marie Gagnebin, apontam
para a “Seção N” - “Teoria do Conhecimento, Teoria do Progresso” da obra Passagens e para o capítulo
introdutório da obra Origem do Drama Barroco Alemão como significativos da apresentação de um original
procedimento para a atividade filosófica. Proposta crítica que tenta se colocar como uma alternativa aos
tradicionais métodos racionalista, historicista e, mesmo, marxista.
2
Cf. Olgária C. F. Matos (1993, p.61), “Com a noção de mônada, Benjamin recusa a alternativa
razão/imaginação, decorrência da fé que a época clássica nutriu na auto-suficiência da razão. Benjamin
observa: ‘a idéia é mônada – o que, resumidamente, significa: toda idéia contém a imagem do mundo. A
tarefa da apresentação da idéia não é outra coisa senão desenhar essa imagem reduzida do mundo”.
Para compreendermos suas opções filosóficas, suas visões sobre a cultura e a
história e os desdobramentos deste na temática da educação, algumas notas biográficas
sobre Walter Benjamin são relevantes. Nascido em Berlim no ano de 1892, no seio de uma
família burguesa e judia, Benjamin, a partir da juventude flertou com o pensamento
kantiano, com a literatura do romantismo e do barroco e com a militância comunista,
obtendo, assim, uma formação ligada às diferentes correntes filosóficas, políticas, artísticas
e até mesmo religiosas, representativas da atmosfera intelectual das primeiras décadas do
século XX. Essa polissemia formativa é ilustrada pela relação de amizade que Benjamin
mantinha com amigos que, pelos traços de personalidade e atividades profissionais,
insistiam em se odiar: Theodor Adorno (importante e rigoroso filósofo social, músico e
também crítico musical); Berltold Brecht (dramaturgo marxista, polêmico e vanguardista);
e Gerschom Scholem (líder judaico e pensador/teórico do judaísmo). Benjamin foi um
destacado crítico literário, renomado tradutor, criterioso ensaísta e um obstinado
pesquisador. Recebeu, por vários pesquisadores de sua obra, o título de pensador da cultura,
de filósofo da história, de crítico da arte em tempos de reprodutibilidade técnica, entre
outros. No entanto, seguindo outro caminho (ou desvio como diria Benjamin) e servindo-
nos de recursos de escrita, tais como a criação de novos termos e o uso de trocadilhos, para
iniciar nossas especulações sobre a educação, resolvemos adotar a denominação não usual
para Walter Benjamin: como a de um filósofo da experiência.
Experiência e Formação
Comparação das tentativas dos outros com empreendimentos de navegação (...). O que são
desvios para os outros, são para mim os dados que determinam minha rota. – Construo meus
cálculos sobre os diferenciais de tempo – que, para outros, perturbam as “grandes linhas” da
pesquisa. (BENJAMIN, 2006, p.499. N 1, 2)
Nessa “rota de pesquisa”, uma das primeiras vezes em que a preocupação com a
palavra experiência ocorreu, foi em um escrito raivoso, cheio de indignação e de
preocupação do período de juventude de Walter Benjamin. Como que prenunciando a
passagem dolorosa da Europa pelas trincheiras da 1ª Guerra Mundial, no artigo intitulado
“Experiência” de 1913, Benjamin denuncia certo tipo de perda com o rigor na exigência
formativa dos estudantes alemães pelos adultos e destaca, por sua vez, como consequência
desta, o perigoso e crescente empobrecimento espiritual da juventude de sua época.
Travamos nossa luta por responsabilidade contra um ser mascarado. A máscara do adulto
chama-se “experiência”. (...) O que esse adulto experimentou? O que ele nos quer provar?
(...) Assim são os bem-intencionados, os esclarecidos. Mas conhecemos outros pedagogos
cuja amargura não nos proporciona nem sequer os curtos anos de “juventude”; sisudos e
cruéis querem nos empurrar desde já para a escravidão da vida. Ambos, contudo,
desvalorizam, destroem os nossos anos. E cada vez mais, somos tomados pelo sentimento de
que a nossa juventude não passa de uma curta noite (viva-a plenamente, com êxtase!);
depois vem a grande ‘experiência’, anos de compromisso, pobreza de idéias e lassidão.
Assim é a vida, dizem os adultos, eles já experimentaram isso. (BENJAMIN, 2002, ps.
21-22, grifos nossos) 3
Num primeiro momento essa luta contra o adulto, contra a “experiência” do adulto,
parece-se com um mero resmungo de típica rebeldia juvenil, um reclame compreensivo da
eterna relação conflituosa entre gerações, no entanto, a fala contundente do jovem
Benjamin neste artigo dirige-se como crítica à ideia de formação e de cultura estabelecidas
nas sociedades capitalistas ocidentais, principalmente após o período iluminista. Essa
característica marcará boa parte dos trabalhos posteriores do pensador berlinense. A título
de exemplo, em uma nota do ano de 1929, ao respectivo artigo, Benjamin destaca que a
palavra experiência havia se tornado “um elemento de sustentação” em muitas de suas
3
O termo experiência utilizado pelo autor e em destaque nesta citação foi traduzido do termo alemão Erlebnis
(Vivência) e contrapõe-se ao termo Erfahrung (Experiência coletiva).
atividades e que o ataque juvenil “cindiu a palavra sem a aniquilar”.4 (Ibdem, p. 22)
Benjamin rejeita a compreensão habitual do termo experiência, aquela entendida
como conhecimento da vida pelos que possuem mais idade, concebida desta maneira, a
experiência seria vista como mera repetição do passado. O jovem seria aquele “sem
experiência” que obteria a “experiência” dos adultos e, que, quando fosse mais velho e
“experiente” a transmitiria novamente para os mais jovens que o sucedessem. Para a
pesquisadora Kátia Muricy (2009, p.195):
Essa “outra experiência”, exigida por Benjamin já em seus escritos juvenis e que
norteou as suas reflexões até os seus últimos trabalhos, remete à necessidade de uso de um
conceito de experiência que, por quebrar os domínios do “sempre igual” com o novo,
recupere o seu significado original de tentativa, de erro e, sobretudo, de risco.
No campo da educação, mais especificamente nos debates atuais sobre o saber e
sobre a escola, é digna de nota a forma como o pensador espanhol Jorge Larossa Bondía
resgata de modo “benjaminiano” a noção original de experiência para pensar a educação
em nosso tempo. Conforme Bondía (2002, p.20), o constante pensar a educação, por
inúmeros pesquisadores, apenas no par ciência/técnica e também, por outros inúmeros
pesquisadores, apenas no par teoria/prática, tem reduzido a discussão da educação como
mera formação técnica e como ciência aplicada ou, por outro lado, apenas como práxis
política e como partidarismo político. Para Bondía, certamente como para Walter
Benjamin, a educação poderia ser entendia pelo par experiência/sentido. Não a forma de
“experiência” que não passa de mera vivência técnico-científica ou mera vivência política,
mas a experiência, que segundo o pesquisador, em várias línguas, remete a um “passar
por”, ao “atravessar” e ao “correr risco” com essa passagem, significados que resgatam o
sentido original da palavra experiência:
4
Essa cisão da palavra experiência indicada por Walter Benjamin refere-se a redução do uso enquanto
Erfahrung e o constante uso enquanto Erlebnis. Algo que pode ser melhor verificado nos artigos Experiência
e Pobreza e O Narrador disponíveis na coletânea Obras Escolhidas, volume I.
A palavra experiência vem do latim experiri, provar (experimentar). A experiência é em
primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. O
radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. A raiz indo-européia é per,
com a qual se relaciona antes de tudo a idéia de travessia, e secundariamente a idéia de
prova. Em grego há numerosos derivados dessa raiz que marcam a travessia, o percorrido, a
passagem: peirô, atravessar; pera, mais além; peraô, passar através, perainô, ir até o fim;
peras, limite. Em nossas línguas há uma bela palavra que tem esse per grego de travessia: a
palavra peiratês, pirata. O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe
atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele
sua oportunidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de
exílio, de estranho e também o ex de existência. A experiência é a passagem da existência, a
passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente
“ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Em alemão,
experiência é Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo alto-alemão fara
também deriva Gefahr, perigo, e gefährden, pôr em perigo. Tanto nas línguas germânicas
como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e
perigo. (BONDÍA, 2002, p.25)
Esta experiência singular era, pois, como já se insinuou, temporalmente limitada, e desde
essa forma que de certo modo compartilha com toda experiência, e que podemos no sentido
mais pleno chamar concepção de mundo, foi a experiência do Iluminismo. Diferencia-se dos
precedentes séculos da era moderna no que são aqui traços essenciais, e ainda assim, não
tanto como pudera parecer. Foi além do mais uma das experiências ou concepções de
mundo de mais baixo nível. (BENJAMIN, 2006, p. 2)
a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras
pessoas que sabem narrar devidamente. (...) É como se estivéssemos privados de uma
faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.
Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e
tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos
um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca (...)
o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos
outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista
segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar
exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem
sabe dá-los. (...) Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a
profunda perplexidade de quem a vive. (Ibidem, p. 201)
(...) seguramente todos já ouvimos que vivemos numa “sociedade de informação”. E já nos
demos conta de que esta estranha expressão funciona às vezes como sinônima de “sociedade
do conhecimento” ou até mesmo de “sociedade de aprendizagem”. Não deixa de ser curiosa
a troca, a intercambialidade entre os termos “informação”, “conhecimento” e
“aprendizagem”. Como se o conhecimento se desse sob a forma de informação, e como se
aprender não fosse outra coisa que não adquirir e processar informação. (BONDÍA, 2002, P.
22)
Considerações finais
Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências.
Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam
ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa
resultar disso. (Ibidem, p. 118)
6
Adaptando a expressão utilizada por Benjamin em suas “Teses sobre o conceito de história” para se referir à
tarefa do historiador: “escovar a história a contrapelo”. (1994 a, p.225)
Referências:
________. Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. Tradução de Rubens Rodrigues
Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1994 b.
KRAMER, Sônia. JOBIN & SOUZA, Solange. (Orgs.) Política, Educação, Cidade:
itinerários de Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2009.
*Márcio Jarek
Mestre em filosofia com pesquisa sobre a relação entre melancolia, barroco e literatura no
pensamento de Walter Benjamin. Foi também dirigente municipal de educação, professor
de filosofia da rede pública estadual e da Universidade Tecnológica Federal do Paraná –
UTFPR. Atualmente é professor das disciplinas de filosofia e ética em diferentes cursos na
Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Desde o ano de 2002 tem se
dedicado ao estudo e a interpretação da obra dos filósofos da chamada Escola de Frankfurt,
com ênfase nas relações entre método, ética e política na obra de Walter Benjamin.