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A arte do encantamento

Reverendo Matthew Ellenwood @2005 (publicado na revista Circle)

Encantar. Adoro pronunciar essa palavra devagar e saborear a forma como a sinto na minha
língua. A própria palavra evoca vários pensamentos e imagens na minha cabeça. Encantar vem
do latim incantare, “cantare” é cantar, e também está relacionada a encantamento. Aplicada a
um contexto pagão, em geral a palavra significa lançar sua magia através das palavras que são
ritmadas ou cantadas. Como ator, músico e bruxo, sou constantemente lembrado do poder
das palavras que são casadas a um ritmo e melodia. Elas têm o poder de nos transportar a
lugares distantes, induzir estados de transe e trazer à tona um manancial de emoções
profundas. Este uso aplicado do encantamento, tal como o defini acima, é central à minha
prática mágica e o que desejo partilhar com vocês neste artigo.

Na prática mágica, com frequência falamos sobre o estado limiar, quando nos encontramos
“entre mundos” e em geral usamos metáforas para capturar a essência desses estados. Nós os
descrevemos como uma zona de crepúsculo, um espaço fora do tempo, e o limiar. Para um
encantador, a boca em si é o limiar. A boca recebe comida, tritura para torna-la nutrição
enquanto os sentidos do gosto e do olfato criam a experiência sensual e alquímica. Mas a boca
também oferece. Toma nossos pensamentos e os recorta em sons específicos que são paridos
ao mundo para dar sentido e efetivar mudanças. As palavras são nossos pensamentos
enunciados e manifestos. Quando as palavras são escolhidas com cuidado e ganham voz, a
mágica acontece.

Um encantador deve primeiro tornar-se ciente das palavras. Nunca tente usá-las de forma fútil
ou despretensiosa, pois isso drena o poder delas. Em seguida, deve tomar consciência da
respiração. O alento é energia, é vida e é uma troca com o mundo ao seu redor. O processo de
absorver o ar vital é chamado de inspiração. Pense nisso. Imagine que cada vez que puxa o ar
pode ser inspiração para você. O que devolve ao mundo, a expiração, é inspiração para os
outros. Conecte-se ao poder da respiração ao associá-la aos ciclos ao seu redor. Inspire a lua
crescente, prenda o ar nos pulmões como a lua cheia, expire como a minguante e segure os
pulmões vazios como a lua escura. Visualize o luar em seus ciclos completos – entrando e
saindo de você. Pode relacionar sua respiração às quatro estações, os estágios da vida –
nascimento, crescimento, maturidade e transição, e qualquer variedade de ciclos que possa
imaginar. Inspire-se e crie poder dentro e fora de você.

Nosso corpo é a terra, o sangue é a água, nosso alento, o ar, fogo é a essência que nos anima,
e Espírito é o que dirige e equilibra os quatro. A magia está presente dentro e fora. Pense na
Terra. Evoque imagens de cavernas e locais escuros e férteis. Ocos e receptivos, no entanto
forte além de qualquer conceito humano de resistência. O som do chamado solitário e escuro
de uma coruja captura a essência da Terra. Para produzir esse som, a boca precisa se tornar
cavernosa. A mandíbula se fecha um pouco e os lábios se unem para formar um redondo,
como uma pequena abertura para uma gruta. A língua sobre um pouco no fundo, tocando de
leve nos molares, como o piso de uma caverna que com um leve aclive. A vibração é sentida
perto da estalactite da úvula, ao fundo da garganta e o som produzido é sombrio e oco.
Visualize como se estivesse em uma caverna. Invoque a Terra para o seu corpo pela inspiração
e lance-a para fora com o cantar de um místico “uuu”. Sinta a presença da Terra ao seu redor.
Pense na Água. Imagine uma poça rasa de água fazendo círculos como uma fonte que brota da
terra. Não é possível ver o fundo por conta do lodo e areia que se movimentam na fonte
borbulhante. Sempre em movimento, sempre misteriosa. Abra o maxilar um pouco e forme
com os lábios o contorno redondo dessa poça. Imagine que seria possível englobar a poça com
os lábios e ao fazê-lo, bebe da água, fresca e refrescante, enquanto se pega suspirando de
prazer. A vibração sobe até onde o palato duro encontra o mole. A terra encontra e apoia a
água. Visualize a poça na sua boca. Invoque a Água para o seu corpo pela inspiração e lance-a
com um misterioso “ôo”. Sinta a presença da Água ao seu redor.

Pense no Ar. Sinta uma rajada de vento passando por uma clareira. Vento que bate, brincando
com seus cabelos, bagunçando sua roupa. O poder do ar de transportar sementes, pássaros e
espíritos até os pontos mais distantes. O ar sem limites, que se expande até onde a mente
alcança. Deixe sua mandíbula abrir e sua língua plana como a planície. Sinta as brisas
refrescantes no rosto enquanto se banha com o ar em movimento. Sua mente está alerta, seu
poder aguçado e tudo dentro de você pede e grita “SIM”. A vibração empurra seu palato duro,
logo atrás das narinas como o vento em uma parede. Invoque o Ar para o seu corpo, pela
inspiração, então projete-o para fora com um confiante “ée”. Sinta a presença do Ar ao seu
redor.

Pense no Fogo. A faísca que cresce e consome. O raio que cai em um relâmpago dentado e
poderoso. O poder que transforma e anima, que aquece e destrói. O poder que quando
contido, opera milagres. Feche um pouco a boca e deixe as laterais da língua tocarem os
molares laterais e do fundo da arcada superior, como labaredas que levantam de uma
fogueira. Sinta o fogo ardendo. Imagine o fogo desejando saltar da sua boca. A energia cresce
no seu interior e sua Vontade se fortalece. Ela busca libertação e iluminação. Você está ciente
da força que lhe anima e alimenta sua paixão pela vida, seu “eu”. Deixe que a vibração foque
sua consciência no espaço entre seus dois dentes da frente enquanto o som é projetado como
um raio laser. Invoque o fogo para dentro de si pela inspiração e projete-o com um forte “ii”.
Sinta a presença do fogo ao seu redor.

Pense no Espírito. A essência da vida que tudo permeia. Sinta a teia do Espírito que reflete
todas as essências em seu corpo místico e invisível. A sensação de maravilhar-se toma conta de
seu ser. Esse é o mistério dos mistérios. Isso é TUDO e está acontecendo agora. Abra bem sua
mandíbula, com a magnificência do Espírito, e seu palato mole se ergue. A garganta se abre
enquanto o Entendimento toma conta de você. Sua língua levanta um pouco para tentar
controlar a sobrecarga de consciência, mas a visão de tudo é sublime. A vibração pressiona o
topo do céu da boca, entre os olhos e sai pelo topo da cabeça, pelo Sahasrara, a sefira Kether,
a coroa. Invoque o Espírito no seu corpo pela inspiração e projete com um alegre “áa”. Sinta a
presença do Espírito ao seu redor.

As vogais são os sons sempre presentes que podem ser alongados. Através delas, podemos
moldar energia e deixar que floresça e intumesça com nossa intenção. As consoantes são o
que corta e molda, oferecendo a finalização e resolução.

A polaridade dos dois dá luz ao significado e à magia. No entanto, esse significado vai além da
palavra compreendida comunicada no dia a dia. Basta escutar as evocações vocais de Lisa
Gerrard do grupo “Dead can Dance” ou Azam Ali do grupo “Vas”, ambos se apresentam num
estilo “cantando em línguas”. Esse estilo de cantar sempre esteve presente nas práticas de
gente que lida com magia. Desde os primeiros passos da invocação dos elementos do interior e
do exterior, o encantador precisa aprender a permutação das vogais e consoantes dentro da
estrutura das palavras deste mundo e daquelas dos espíritos. Deve estar aberto à inspiração e
iluminação e evitar a censura e sensação de constrangimento. Abra seus centro energéticos e
permita que cantem, falem e interajam com sua voz. Trabalhe diligentemente e com paciência
para ouvir internamente o que estão lhe dizendo. Desbloqueie e liberte os das doenças ao dar-
lhes voz. Deixe que usem sua língua, suas cordas vocais e o sopro da sua vida para contar suas
histórias. Cure a si e deixe seu espírito cantar. Assim, e apenas assim, será capaz de encantar
com o poder completo de uma encantatrice. Esse é meu encantamento e minha canção. Meu
espírito canta para você. Ta anosh te wah.

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