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A s P olíticas E ducacionais no
C ontexto dos L imites A bsolutos
do E stado e do C apital em C rise
Diagramação: Ana Nascimento e Zilas Nogueira
Revisão: Sidney Wanderley
Capa: Ana Nascimento e Ranny Belo
Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição
4.0 Internacional. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecom-
mons.org/licenses/by/4.0/. Esta licença permite cópia (total ou parcial), dis-
tribuição, e ainda, que outros remixem, adaptem, e criem a partir deste tra-
balho, desde que atribuam o devido crédito ao autor(a) pela criação original.
1º Edição 2017
Coletivo Veredas
www.coletivoveredas.com
Aline Soares Nomeriano
Renalvo Cavalcante Silva
Vicente José Barreto Guimarães
Organizadores
A s P olíticas E ducacionais no
C ontexto dos L imites A bsolutos
do E stado e do C apital em C rise
1º Edição
Coletivo Veredas
Maceió 2017
Sumário
APRESENTAÇÃO����������������������������������������������������������������������������������������� 7
Karl Marx1*
1 * Karl Marx, Critica del Programa de Gotha. Ed. Progreso, Moscou, s/d, p.
27.
ma sociometabólica do capital, mas também e principalmente para que
possamos buscar coletivamente alternativas, no âmbito de uma proposta
pedagógica enquanto Paidéia revolucionária e transformadora, que pos-
sa se constituir como alternativa e solução de práxis, na contraposição à
concepção manipulatória e pragmática de uma educação para o capital.
O referencial marxista nos permite resgatar exatamente o funda-
mento marxiano que ressalta o homem como resultado de sua ação in-
trínseca e que, em sua concepção, não limitou essa ação ao mero aspec-
to manipulatório da transformação, tampouco restringiu a mera razão
prática sua relação com a natureza. Ao contrário, o elemento decisivo
para Marx situa-se na articulação dialética entre ação-pensamento/pen-
samento-ação do homem, enquanto ser singular e particular, conectado
umbilical e dialeticamente com o ser social. A ideia de práxis coloca no
campo educacional a noção de aprendizado permanente, quer dizer, a
automediação que a sociedade faz consigo mesma. Esta tem como pres-
suposto o permanente processo do conhecimento que se objetiva em
dois momentos antiteticamente articulados: a apreensão racional ime-
diata do real e, como seu desdobramento dialético, a compreensão ra-
cional-mediativa do mundo; em suma, a conexão entre o imediato e o
mediato, como elemento constitutivo do aprendizado permanente posto
pela práxis. Nesse sentido, o mundo imediato é a cotidianidade, o mundo
pragmático-operativo do ser social; o mundo mediato dá-se quando o
ser social sai do plano de sua imediaticidade e passa a refletir sobre a sua
própria cotidianidade. Isto significa dizer que a mediação nada mais é que
o pensamento e a abstração que o ser social faz sobre si mesmo, a partir
de sua cotidianidade.
Portanto, a mediação é a conexão entre o mundo imediato e prag-
mático em que vivemos e a reflexão permanente que os homens reali-
zam através da sua práxis. A partir desses pressupostos, podemos dizer
que tanto a mediação como a ação pragmática constituem momentos de
aprendizado dialeticamente conectados.2 Por isso, Engels, remetendo a
2 Antonio Carlos Mazzeo, Marx: El Metodo como Solución de Praxis in Magda R.
Monsalve (org.). El Pensamineto de Marx en el Siglo XXI – Memorias del Primer Semi-
nario Internacional El Capital 150 Aniversario (1867 – 2017), Bogotá, Nueva Editorial
Teoria e Praxis, 2015, p. 133.
8
Hegel, acentuava que há na práxis uma conexão dialética e permanente
entre o quantum socialmente realizado e as qualidades geradas e con-
quistadas por essas realizações3 – a conhecida relação entre quantidade
e qualidade –, assim como a possibilidade dos saltos ontológicos pro-
venientes dessa relação que, por sua vez, propiciam novas conquistas
societais. Esse é o elemento ontológico que define o vínculo da ação ao
aprendizado permanente, como resultado da práxis humana.
É nessa perspectiva que os textos presentes neste trabalho tra-
tam as questões candentes da educação. Em sua estrutura, o livro está
composto de três partes, que abordam, respectivamente, as políticas
educacionais no contexto da crise do tardocapitalismo, as formas ma-
nipulatórias da concepção burguesa de uma educação para o capital e,
finalmente, o papel e os limites do Estado para a construção de uma
educação voltada para a emancipação humana. Sua importância evi-
dencia-se ao direcionar-se aos problemas da educação no Brasil hodier-
no, em que a ofensiva liberal-burguesa contra os trabalhadores apresen-
ta-se sans frase, em sua ação mais incisiva e violenta realizada após o
período da vigência da autocracia burguesa militar-bonapartista, entre
1964 e 1985.
A leitura desses textos é fundamental para que possamos nos
qualificar na luta, a partir de sólidos argumentos conceptuais que nos
permitirão efetuar o que Marx reclamava, nas Teses Contra Feuerbach,
em sua 11ª argumentação, quando enfatiza: “Os filósofos se limitaram a
interpretar o mundo; diferentemente, cabe transformá-lo”.
Agora, a palavra é a do leitor.
3 Cf. Friedrich Engels. A Dialética da Natureza. RJ, Paz e Terra, 1979, p. 34 e s.
9
PARTE I
AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS NO
CONTEXTO DA CRISE DO CAPITAL
A POLÍTICA EDUCACIONAL BRASILEIRA
E AS DIRETRIZES DO PROGRAMA EDU-
CAÇÃO PARA TODOS: NOTAS CRÍTICAS
Deribaldo dos Santos
Doutor em Educação. Professor da Faculdade de Educação,
Ciências e Letras do Sertão Central (FECLESC /UECE). Professor
do Curso de Mestrado Acadêmico Intercampi em Educação e Ensino
(MAIE) e do PPGE da UECE. Pesquisador do Instituto de Estudos e
Pesquisas do Movimento Operário (IMO/UECE).
16
A Política Educacional Brasileira e as Diretrizes do Programa Educação Para Todos
17
Vale elucidar, com Rio (2013, p. 237), “que o capitalismo constitui
a variante histórica por excelência do capital, isto é, o modo produtivo
que tem levado às últimas consequências a sede exacerbada de lucros do
capital”.
A lógica do capital sob a armadura do capitalismo, por ser essen-
cialmente destrutiva, para que possa resguardar sua crise mais hodierna,
subordina radicalmente o valor de uso ao valor de troca. Essa lógica faz
emergir o que Mészáros (2002) chama de “taxa decrescente do valor de
uso das mercadorias”, cuja finalidade é reduzir a vida útil dos produtos.
Essa tendência de diminuição da vida útil dos produtos é uma das estra-
tégias principais para a expansão e a acumulação de lucros (RIO, 2012).
Contudo, no quadro de crise que a atual quadra histórica presencia, para
que o capitalismo continue a garantir o lucro para o capital, é preciso
que os produtos produzidos pelo esforço humano e transformados em
mercadoria pelo capitalismo contemporâneo atendam à tendência de
taxa zero de utilização das mercadorias. Isto é, para que o capital possa
se tornar mais atraente, aquelas mercadorias devem ser utilizadas, no
máximo, apenas uma vez. Desse modo, como muito bem conclui Rio
(2012, p. 238), “o capitalismo contemporâneo aprofundou, sobremanei-
ra, o fosso entre a produção para a satisfação das necessidades humanas
e a produção para a autorreprodução do capital”.
De acordo com Mészáros (2002), o capital alcançou os seus limi-
tes absolutos mediante a intensificação da produção destrutiva. A partir
de então, a dinâmica de expansão do capital torna trivial a destruição
maciça das forças produtivas, através da produção da destruição, finan-
ciada pelo Estado e consubstanciada por meio do complexo industrial
militar. Para tanto, ainda de acordo com o que escreve esse filósofo, o
capital põe em curso inúmeras medidas, de ordens diversas, cujo inte-
resse incessante é o de reformar o Estado, a fim de que este favoreça os
mecanismos de exploração do capital sobre o trabalho.
A crise do capital é marcada, sobretudo, pela tendência decres-
cente da taxa de lucro e pela destrutividade das forças produtivas, pro-
vocando desdobramentos nos demais complexos sociais, sendo aquelas
reconfiguradas sob a lógica do capital.
Nesse contexto de profunda crise estrutural do capital, a educação
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A Política Educacional Brasileira e as Diretrizes do Programa Educação Para Todos
é chamada para assumir tamanha intervenção, uma vez que esta, desde
a gênese do capitalismo, constituía uma bandeira da classe trabalhado-
ra. Assim sendo, as políticas públicas direcionadas ao complexo edu-
cacional recebem uma atenção diferenciada por parte dos organismos
internacionais, com vistas a uma recomposição do papel da escola. É
nesse panorama que o Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Inter-
nacional (FMI) e a Organização das Nações Unidas para a Educação,
Ciência e Cultura (UNESCO), para citar apenas esses três, investem
financeiramente nos países periféricos, tendo como objetivo principal
erradicar a pobreza com o auxílio da escola.
Segundo Leher (2010, p. 22), o Banco Mundial “volta-se para
programas que atendam diretamente as populações possivelmente sen-
síveis ao ‘comunismo’”. Esse autor acrescenta, ainda, que “por meio de
escolas técnicas, programas de saúde e controle de natalidade, promo-
vem-se mudanças estruturais na economia desses países”, o que possi-
bilita determinado controle social, como meio de assegurar a governa-
bilidade.
Ancorados nas novas exigências do mercado de trabalho, o dis-
curso do BM impõe à educação dos países pobres a necessidade de
renovar seus métodos, currículos e propostas pedagógicas. Conforme
entendem os intelectuais dessas agências, as novas tecnologias deman-
dam, cada vez mais, novas exigências da formação dos indivíduos. Ca-
beria à escola, nesse suposto novo cenário, preparar o indivíduo para
operar as novas ferramentas advindas de uma imaginária era tecnoló-
19
gica2, sociedade do conhecimento3, ou algo que a valha.
Como destaca Santos (2009, p. 2-3), “a educação é chamada a dar
conta de problemas muito além de seu escopo, os quais se enraízam na
própria trama de contradições do capital em crise”. A lógica é totalmen-
te invertida pelo capital, que atribui à educação, mediante a construção
de novos paradigmas pedagógicos, elementos de competências à classe
trabalhadora, capaz de alcançar êxito no mercado de trabalho, ou seja, a
educação ofereceria “a possibilidade de criar postos de trabalho, quando,
na verdade, estes vêm sendo materialmente reduzidos de modo drástico,
no quadro da referida crise” (SANTOS, 2009, p. 3).
Toda essa engenharia educativa ocorre por meio de ações estraté-
gicas das agências internacionais que orientam e monitoram as políticas
educacionais dos países periféricos, em conformidade com as necessida-
des de acumulação do capital mundial. Para usarmos mais uma vez as
reflexões de Mészáros (2002), tais necessidades seriam produzidas para
conter a crise, aprofundada no final do século XX, que demanda, mais
2 Para o filósofo Álvaro Vieira Pinto (2008), em decorrência da evolução acentuada
das bases materiais, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, com o crescimento ace-
lerado da produção industrializada, a tecnologia passou a tomar assento no debate filosó-
fico, assumindo, contudo, majoritariamente, uma posição problemática. Rigorosamente,
sustenta o autor, não se pode estudar a técnica sem posicioná-la dentro do valor funda-
mental e exato do seu locus: a tecnologia. Tecnologia é a teoria, a ciência, o estudo, a dis-
cussão, o debate da técnica. No entendimento mais comum e popular, todavia, a tecnolo-
gia aparece como sendo pura e simplesmente equivalente à técnica, ao conjunto de todas
as técnicas ou, ainda, como sinônimo da variante americanizada, bastante recorrente no
cotidiano, a charmosa expressão know how, ligada à coisa estrangeira, o que, por sua vez,
transmite a ideia de tratar-se, irrevogavelmente, de algo superior. Segundo Vieira Pinto
(2008), há uma confusão conceitual praticada pela epistemologia burguesa que confere à
técnica e à tecnologia papéis contrapostos e contraditórios. Se, por um lado, apresentam
essas categorias como salvadoras maiores da humanidade, por outro, atribuem-lhes a cul-
pa pelos maiores problemas da contemporaneidade. O filósofo brasileiro considera que
essas duas categorias são construções históricas da humanidade e, portanto, não possuem
vida própria; dependem das contradições existentes na sociedade capitalista.
3 Recorrendo a Lukács, Lessa (2008, p. 25-26) situa tais teses no quadro de um
fenômeno ideológico típico do que o filósofo húngaro teria denominado de “o falso
socialmente necessário”. Esse fenômeno ocorreria “quando, numa dada conjuntura, há a
necessidade de ideias rigorosamente falsas para se justificar uma dada formação social.”
Em que reside o poder dessas ideias, rigorosamente falsas, vale repetir, de aparentar a
verdade? Lessa (2008, p. 26) esclarece: “Como essas ideias se referem à vida cotidiana e
aparentemente a explicam, elas terminam ganhando um estatuto de verdade”.
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A Política Educacional Brasileira e as Diretrizes do Programa Educação Para Todos
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encontro em questão teve como objetivo principal prorrogar mais uma
vez o prazo para a universalização do ensino fundamental, agora amplia-
do para o ano de 2015.
Vejamos o que consta do relatório da Conferência de Dacar:
Não tenho dúvida de que, aqui em Dacar, conseguiremos ado-
tar uma estrutura de trabalho global que representará o com-
promisso claro e irreversível da comunidade internacional,
no sentido de, até 2015, satisfazer as necessidades básicas de
aprendizado de todas as crianças, jovens e adultos, indepen-
dentemente de onde vivam. (UNESCO, 2000, p. 41).
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A Política Educacional Brasileira e as Diretrizes do Programa Educação Para Todos
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Baseado numa visão de mundo em que vivenciamos uma inédita
“sociedade do conhecimento”, essas concepções defendem a ideia de que
se faz necessário o indivíduo dominar as inovações tecnológicas para ser
inserido nessa sociedade dita engenhosa. Desse modo, a classe trabalha-
dora precisa adquirir qualificação e competência para ser incluída num
mercado de trabalho que demanda mudanças e evoluções constantes des-
se novo trabalhador, sem necessariamente ter de absorver os conteúdos
clássicos produzidos ao longo da história.
O mais importante, no atual processo de formação para o trabalho,
é aprender a conviver com os outros e, ao mesmo tempo, “vestir a camisa
da empresa”. Sintetizando, a formação do novo trabalhador tem como
premissa transformá-los em pessoas pacíficas e passivas, que convivam
como cidadãos de bem, em defesa de sociedade que estimula o individu-
alismo e a competitividade6.
Fica evidente, portanto, que esses elementos constituiriam a essên-
cia e a existência do homem contemporâneo, circunscrito na lógica de
mercado. O paradigma do aprender a aprender, que restringe o conheci-
mento a “saberes” úteis e necessários a uma sociedade apregoada como
planetária, molda um novo modelo de homem, capaz de se responsa-
bilizar pelas crises do capital, tornando-se um importante instrumento
econômico e ideológico no processo de reversão da queda das taxas de
lucros.
As “pedagogias do aprender a aprender”, assim denominadas por
Duarte (2001), são teorias centradas nos posicionamentos valorativos,
em que as aprendizagens que os indivíduos realizam por si mesmos são
mais significativas e ricas que os conhecimentos e experiências transmi-
tidos por outros indivíduos. Nessa perspectiva, aprender sozinho contri-
buiria para a autonomia e a formação de indivíduos criativos.
Ainda segundo Duarte (2001, p. 38), é importante atentar para um
detalhe fundamental: “essa criatividade não deve ser confundida com
busca de transformações radicais na realidade social”. Essa proposta pe-
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A Política Educacional Brasileira e as Diretrizes do Programa Educação Para Todos
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tomador de seus empréstimos, uma declaração de compromisso com o
desenvolvimento econômico e a aceitação do monitoramento na defini-
ção de suas políticas setoriais”.
Para Rabelo, Mendes Segundo e Jimenez (2009), a situação entre
os sujeitos sociais em condição de precariedade ao acesso à educação de
qualidade é mesclada por teorias de cunho economicista, impostas pelos
organismos transnacionais que, em vez de garantir, ou ao menos apontar
para uma formação escolar condigna para a transformação da sociedade,
acenam com políticas educativas restritivas. Dessa forma, em nome da
adequação às demandas do mercado, são apresentadas concepções pe-
dagógicas utilitaristas, instrumentais e neopragmáticas. Como observam
as referidas autoras, opera-se, nesse contexto, o esvaziamento de conte-
údos e proclama-se o desenvolvimento “de habilidades, aptidões e valo-
res apegados ao plano da imediaticidade [...] temperados com abstrações
mistificadoras, deslocados de suas determinações ontológicas” (RABE-
LO; MENDES SEGUNDO; JIMENEZ, 2009, p. 10). Assim, aqueles que
têm acesso a essa educação de caráter eminentemente mercadológica são
desprivilegiados quanto à formação intelectual humanística; tornam-se
apenas e, quando muito, aptos ao mercado de trabalho, pois com as trans-
formações constantes da inserção da ciência e da tecnologia na esfera
produtiva, os parâmetros da chamada empregabilidade mudam com a
mesma velocidade com que se aprofunda a crise do capitalismo contem-
porâneo.
Como se vê, os discursos das propostas da política educacional vi-
gente apresentam a retórica de que todos os indivíduos têm acesso a uma
educação de qualidade. Porém, o que se percebe é um ensino restrito a
treinamentos para a execução de atividades setoriais diversas, voltadas ao
mercado.
Enquanto planos, leis7 e propostas pedagógicas mascaram a re-
alidade da educação brasileira, agudizando a precariedade existente no
ensino do país, podemos verificar – ao contrário do discurso burguês
7 Cada um a seu modo, dispositivos legais como, por exemplo, Plano Decenal de
Educação para Todos (1993), Plano Nacional de Educação (PNE1 2001, PNE2 2011), Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) nº 9.394/96, entre outros, acabam
por sintetizar interesses das agências internacionais e dos empresários da educação.
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A Política Educacional Brasileira e as Diretrizes do Programa Educação Para Todos
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gação do conhecimento, como o ensino a distância, a fragmentação dos
currículos, a redução do tempo de duração dos cursos, ou o treinamento
docente em serviço”. O Banco Mundial, interessado na inserção dos pa-
íses pobres na almejada globalização e no desenvolvimento sustentável,
argumenta que os preceitos de gestão devem ser implantados na adminis-
tração dos recursos na educação. Nessa direção, a normalização do Banco
é a redução de investimentos para o sistema público, recomendando-se
o aligeiramento, a privatização, o empresariamento e o neopragmatismo
no ensino, cabendo à educação “contribuir para a erradicação da pobre-
za, melhor dizendo, para a redução pela metade da pobreza extrema” (JI-
MENEZ; MENDES SEGUNDO, 2007, p. 125).
Para melhor entender aquela prerrogativa constitucional do direi-
to à educação, é importante observar o texto da Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, de 1789: “estes escritos foram elaborados na
intenção de apontar quais os direitos básicos de todos os membros que
compõem a sociedade e, mediante a especificação destas leis, cobrar a
efetivação das mesmas.” De acordo com o artigo 6º:
Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou
através dos seus representantes, para a sua formação. Ela deve
ser a mesma para todos, quer se destine a proteger, quer a pu-
nir. Todos os cidadãos são iguais aos seus olhos, são igualmente
admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos,
segundo a sua capacidade, e sem outra distinção que não seja a
das virtudes e de seus talentos.
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A Política Educacional Brasileira e as Diretrizes do Programa Educação Para Todos
Considerações Finais
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ximos em relação à aprendizagem e à universalização da educação bási-
ca para todos, assegurando, ao mesmo tempo, a tão almejada cidadania,
precisamos pontuar algumas questões que consideramos importantes
para o desvelamento da lógica imposta às políticas educacionais nos pa-
íses membros da Unesco, sobretudo os países pobres, denominados em
vulnerabilidade social.
Inicialmente, atentamos para a constante prorrogação dos prazos
ou para a reedição das metas da EPT em eventos subsequentes, ano a ano,
o que revela a impossibilidade de concretização das metas preestabeleci-
das, haja vista que a lógica do capital em crise não permite a objetivação
de alteração do quadro de pobreza e desigualdade. As metas, as datas e
seus resultados são improváveis, contudo, os interesses dos organismos
internacionais funcionam como moeda de troca e pressão ideológica so-
bre os países que se submetem a tal controle, uma vez que estes são pobres
e dependem dos parcos recursos captados das agências transnacionais.
Nesse debate, podemos verificar que o interesse essencial das prer-
rogativas de inúmeros encontros sobre educação ao redor do mundo é
a reprodução do capitalismo em crise, via políticas socioeducativas. Os
trabalhadores e seus filhos, nesse cenário, são instruídos de forma mi-
nimamente qualificada, com conhecimentos fragmentados e apenas ne-
cessários à reprodução do sistema capitalista, para, assim, atenderem às
necessidades do mercado de trabalho no contexto do capital em crise
estrutural.
Uma educação de qualidade que aponte para além da sociabilida-
de atual e que possa formar omnilateralmente afasta-se do interesse capi-
talista. Nos planos da burguesia, inexiste a preocupação com a formação
do homem livre, que apontaria, necessariamente, para uma sociedade re-
almente emancipada, atendendo aos reais anseios da classe trabalhadora,
tal qual a educação omnilateral prescrita nos clássicos do marxismo, até
porque uma educação livre requer uma sociedade absolutamente livre.
Em meio à intensificação das políticas internacionais de reformular
os processos educativos dos países pobres, utilizando o falso argumento
de “ajudar” o desenvolvimento interno sustentável, os quais promovem
reformas pedagógicas que intentam favorecer a inserção imediata dos
trabalhadores e seus filhos no mercado de trabalho, o capitalismo usa o
30
A Política Educacional Brasileira e as Diretrizes do Programa Educação Para Todos
31
de, no âmbito da formação humana e revolucionária, como proposto por
Marx.
Lutar por uma educação para a emancipação humana é lutar pela
extinção do próprio capitalismo como modelo de sociabilidade. Nessa
perspectiva, importa-nos compreender agudamente esses entraves, para
que possamos combater coerentemente os fatores responsáveis pela crise
da educação e da própria humanidade, pois a barbárie nos salta aos olhos
cotidianamente.
REFERÊNCIAS
32
A Política Educacional Brasileira e as Diretrizes do Programa Educação Para Todos
33
S.%20et%20al.pdf>. Acesso em: 15 out. 2011.
RIO, Cristiane Porfirio. Baixos índices de proficiência no ensino básico público
cearense: primeiras aproximações. In: SANTOS, Deribaldo et al. (Orgs.).
Educação pública, formação profissional e crise do capitalismo con-
temporâneo. Fortaleza: EdUECE, 2013.
SANTOS, Deribaldo. Graduação tecnológica no Brasil: crítica à expansão do
ensino superior não universitário, 2009. Tese (Doutorado em Educação
Brasileira) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza, 2009.
TONET, Ivo. Educação, cidadania e emancipação humana. Ijuí: Unijuí, 2005.
VIEIRA PINTO, Álvaro. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contrapon-
tos, 2008.
34
O PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EN-
TRE O PÚBLICO E O PRIVADO: NO-
TAS CRÍTICAS
Cezar Amario Honorato de Souza
Mestrando em Educação Brasileira pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará
(PPGEB/UFC). Graduado em Matemática e Graduando em Pedagogia
pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Email: cezar.mat@hotmail.com
38
O Plano Nacional de Educação entre o Público e o Privado
39
Diretrizes e Bases da Educação nº 9.394/96, que o primeiro Plano Nacio-
nal de Educação, instituído por lei, se concretizou. Através de uma inten-
sa mobilização popular, especialmente por meio do Fórum Nacional em
Defesa da Escola Pública (FNDEP), a Constituição Federal de 1988, em
seu artigo 214, incorporou a obrigatoriedade de se efetivar um Plano Na-
cional de Educação que tivesse duração plurianual. Determinou também
que o PNE fosse elaborado em concordância com os princípios funda-
mentais da educação brasileira: I) a erradicação do analfabetismo; (II)
a universalização do atendimento escolar; (III) a melhoria da qualidade
do ensino; (IV) a formação para o trabalho; e (V) a promoção humana,
científica e tecnológica do país.
Já a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 determinou que
“A União, no prazo de um ano a partir da publicação desta Lei, enca-
minhará, ao Congresso Nacional, o Plano Nacional de Educação, com
diretrizes e metas para os dez anos seguintes” (art. 87, § 1º). Mesmo com
essa determinação, o Plano só foi aprovado depois de quatro anos da LDB
e teve como período de vigência os anos de 2001 até 2010.
O mesmo parágrafo informava que o PNE deveria estar “em sin-
tonia com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos”, fenômeno
que revelava a vinculação da Política Educacional brasileira à reforma
educacional que se estabelecia, em âmbito global, a partir da Conferência
Mundial de Educação para Todos, realizada em Jomtien (Tailândia), em
1990, que teve como promotores o Banco Mundial, a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (Unesco), o Pro-
grama das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Fundo
das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A referida reforma, tendo à
frente o Banco Mundial e sua proposta de vinculação da educação às ne-
cessidades do mercado capitalista globalizado, comporta vários eventos e
publicações que, em larga medida, definiram os caminhos que seguiria a
Política Educacional de nosso país2.
2 Para uma compreensão mais aprofundada destes elementos, ver: JIMENEZ,
Susana; RABELO, Jackline; MENDES SEGUNDO, Maria das Dores (Orgs.). O movimento
de educação para todos e a crítica marxista. Disponível em: http://livros.ufc.br/ojs/index.
php/posgraduacao/article/view/47
40
O Plano Nacional de Educação entre o Público e o Privado
41
Uma análise do conjunto do documento permite concluir que
a proposta do Plano se limitou a reiterar a política educacional
que vinha sendo conduzida pelo MEC e que implica a compre-
ensão dos gastos públicos, a transferência de responsabilidades,
especialmente de investimento, e a manutenção do ensino para
estados, municípios, iniciativa privada e associações filantrópi-
cas, ficando a União com as atribuições de controle, avaliação,
direção e, eventualmente, apoio técnico e financeiro de caráter
subsidiário e complementar. (SAVIANI, 2011, p. 171-172).
42
O Plano Nacional de Educação entre o Público e o Privado
43
ampla e orgânica, para interferir na educação, o já apresentado
TPE. Atuando na forma de partido, o movimento reuniu e agre-
gou as iniciativas burguesas na educação até então dispersas,
estabeleceu uma agenda na forma de metas e compromissos
de todos pela educação (inicialmente 10 Causas e 26 Compro-
missos, depois sintetizados) e organizou um robusto aparato de
circulação de suas ideias nos grandes meios de comunicação,
situação facilitada pela adesão deles ao TPE. (LEHER, 2014, p.
4).
44
O Plano Nacional de Educação entre o Público e o Privado
45
da classe dominante.
Assim, o Estado assume diferentes formas ativas para preservar o
projeto de reprodução do sistema do capital, estabelecendo, em campos
específicos, estratégias contributivas a tal objetivo. No que concerne à
educação e, mais especificamente, ao objeto aqui analisado (PNE e pri-
vatização da educação), tais estratégias foram acionadas considerando a
forma corrente como o capital se desenvolve: uma crise profunda que,
segundo Mészáros (2000), atinge a estrutura desse sistema4, alicerçando
uma nova dinâmica na relação entre trabalho e educação, na qual se en-
contram, ao lado da produção destrutiva, o desemprego e a precarização
do trabalho, a ampliação dos processos de privatização e a mercantiliza-
ção dos serviços sociais e da educação básica e superior, mais particular-
mente. Tudo isto coroado com a formação de um novo perfil de trabalha-
dor, condizente com o projeto em pauta.
Como revide à crise, o sistema do capital necessita expandir e
aprofundar sua lógica sobre todos os setores da vida social, incluído aí
o complexo educacional, no qual se encontram as políticas educacio-
nais alavancadas pelo Estado burguês, traçadas, porém, por agências
multilaterais servis ao capital em âmbito global, a exemplo do Banco
Mundial e da Unesco, entre outras.
O reformismo educacional dirigido por estes organismos desde
os anos de 1990, em especial, aos países periféricos do capitalismo, com
marcas profundas sobre a política educacional brasileira (na qual se
inserem o PDE e o PNE), é parte do conjunto de medidas processadas
para dar conta da reversão do quadro crítico que atingira o sistema do
capital. Convencionou-se, a partir daí, que a educação seria elemento
central no projeto reprodutivo da ordem social do capital, tanto por
4 A crise que o capital atravessa atualmente, definida por Mészáros (2000) como
de natureza estrutural, é uma crise diferente de todas as outras porque atinge a totalidade
da estrutura do próprio sistema. Em outras palavras, é uma crise marcada pelo aumento
da fratura entre a produção e seu controle, produção e consumo, produção e circulação
de produtos; cujo resultado é a produção destrutiva, o aumento do desemprego e a
precarização cada vez maior do trabalho, o financiamento da guerra, o antagonismo
crescente entre riqueza e pobreza, que põem em risco a existência da própria humanidade.
Essa crise atinge a totalidade do conjunto da humanidade tanto no que se refere às relações
estabelecidas na materialidade social, objetivas, quanto nos aspectos subjetivos.
46
O Plano Nacional de Educação entre o Público e o Privado
47
ternas, votação no plenário, envio ao Senado etc. Contudo, a exemplo da
elaboração e aprovação da última LDB e do PNE (2001-2010), o projeto
sofreu várias alterações, transformando-se num importante instrumento
de debate e disputas no âmbito do Congresso Nacional.
Entre as questões polêmicas envolvendo o Projeto de Lei, desta-
cou-se o financiamento e a sua destinação, ou seja, a especificação da
destinação pública dos recursos educacionais. Em relação ao financia-
mento, referia-se ao percentual do PIB que deveria ser aplicado na edu-
cação. Inicialmente, na proposta enviada ao Congresso, o governo previa
que deveria assegurar 7% do PIB para a educação. Além disso, não se
previa que este recurso destinava-se à educação pública. No entanto, por
pressões externas, envolvendo amplos setores da sociedade, o governo
e o TPE passaram a defender um novo percentual, de 10% do Produto
Interno Bruto (PIB). E, mais uma vez, não se especificava sua destinação
para a educação pública.
Foi somente em 2012 que a Câmara dos Deputados, depois de
muita pressão social, aprovou em plenário os 10% do PIB, estabelecen-
do que esse recurso fosse direcionado para a educação pública. Depois
de aprovado na Câmara, o texto foi enviado para o Senado, em 2013. O
relator, senador José Pimentel, cedendo à pressão da base governista, es-
tabeleceu que o percentual de 10% deveria ser direcionado à educação. O
texto deixava em aberto que os recursos destinados à educação poderiam
ser direcionados tanto à educação pública quanto à educação privada.
Como o Projeto de Lei 8.035/2010 foi modificado pelo Senado, a
casa revisora, teve de voltar para a Câmara dos Deputados. A redação
final dada pela Câmara contemplou as reivindicações dos movimentos
sociais, sobretudo os que defendiam a educação pública, pois reiterou os
10% do PIB e especificou sua destinação à educação pública, como fica
explícito na Meta 20:
Ampliar o investimento público em educação pública de forma
a atingir, no mínimo, o patamar de sete por cento do Produto
Interno Bruto (PIB) do país no quinto ano de vigência desta lei
e, no mínimo, o equivalente a dez por cento do PIB ao final do
decênio. (BRASIL, PNE, 2014).
48
O Plano Nacional de Educação entre o Público e o Privado
6 As escolas charter americanas são instituições privadas que recebem dinheiro
do Estado para oferecer educação gratuita para a população que não tem condições de
pagar os estudos em escolas particulares.
7 Os vouchers chilenos também podem ser verificados nos Estados Unidos. São
cheques ou incentivos financeiros que os alunos recebem do Estado para estudar em
escolas particulares.
49
são reconceituados como pertencentes ao rol do público. Com
isso, novas experiências de mercantilização poderão ser efeti-
vadas, como os vouchers e as escolas charter. (COLERMARX/
ADUFRJ, 2014, p. 9).
50
O Plano Nacional de Educação entre o Público e o Privado
51
ou seja, 50%, em instituições privadas, de acordo com a Meta 11 e as
estratégias 11.6, 11.7 e 11.8. Estas estratégias objetivam a ampliação de
ofertas de vagas em instituições privadas, vinculada ao Sistema Sindical
e instituições sem fins lucrativos, e ao financiamento estudantil à edu-
cação profissional técnica de nível médio em instituições privadas de
educação superior. Estas mesmas características encontradas na Meta 11,
no tocante à privatização da educação, podem ser verificadas nas metas
12, 13 e 14, relacionadas ao Ensino Superior, ao estabelecer a isenção de
Bolsas e financiamento estudantil em Instituições Privadas. Nestas metas
verifica-se a mesma política estabelecida no PDE, no que se refere à Edu-
cação Superior, em relação ao ProUni e ao Fies.
É importante destacar a Meta 15, referente à política nacional de
formação dos profissionais de Educação Básica, que deve ocorrer em re-
gime de colaboração entre União, Estados e Municípios. Ressalta-se que
essa formação pode se dar através de financiamento estudantil, com pos-
sibilidade de amortização da dívida, caso o devedor venha a exercer a
docência na rede pública de educação básica, de acordo com a estratégia
15.2.
As metas 16, 17 e 18 referem-se à valorização e aos planos de car-
gos e carreiras dos profissionais da educação básica. A Meta 17 estabelece
que o salário dos profissionais da educação básica seja equiparado ao dos
demais profissionais com a mesma escolaridade.
A Meta 19 refere-se à gestão democrática da escola, vinculada a
critérios técnicos e meritocráticos. Finalizando, a Meta 20 refere-se ao
financiamento da Educação, com destaque para os 10% do PIB direcio-
nado à educação pública.
Portanto, se analisarmos as metas separadamente dos artigos, ain-
da encontraremos algumas contradições internas. Pois, em várias metas
e estratégias, é ressaltado o financiamento e a oferta de vagas em institui-
ções privadas em contraposição à Meta 20, que, como visto acima, dire-
ciona os recursos para a educação pública, e não para a privada.
52
O Plano Nacional de Educação entre o Público e o Privado
Considerações finais
Ao analisarmos o PNE na sua totalidade, tentamos buscar os fun-
damentos estruturais da política educacional brasileira. Nesta perspec-
tiva, o objetivo foi identificar o processo de privatização e de mercanti-
lização da educação do país, tendo como síntese o atual PNE, fazendo
uma análise de leis voltadas à educação, aprovadas nos últimos anos.
Um aspecto importante, não abordado na sua totalidade, foi o
financiamento da educação. Porém, podem-se apontar alguns limites
presentes no atual PNE.
A meta 20 estabelece que no último ano de vigência do Pla-
no, o governo deve aplicar 10% do PIB para a educação. No entan-
to, Leher (2014), ao analisar essa projeção, ressalta que não foi espe-
cificado na lei do PNE de onde virão os recursos, que, segundo o
autor, seriam da ordem de, aproximadamente, 4,5% do PIB. Outro pro-
blema apontado pelo mesmo pesquisador é o Custo Aluno Qualidade
Inicial, da Meta 20. Esta estratégia estabelece o repasse de recursos de
acordo com a quantidade de alunos na escola, sem levar em considera-
ção os recursos globais necessários. Este procedimento já vinha sendo
adotado no Fundef9 e no Fundeb10, o que ocasionou o fechamento de
38 mil escolas do campo.
Por fim, consideramos que o PNE se insere num conjunto de
elementos que reforçam a educação como projeto ideológico da classe
dominante. Isto se dá desde as reformas no setor educacional iniciadas
53
com a Conferência de Jomtien (1990), aprofundadas pelas ideias defendi-
das pelo movimento Todos pela Educação, marcadamente vinculado aos
interesses de setores financeiros, culminando na reformulação da legis-
lação da área, que tende a ampliar o espaço da iniciativa privada na pro-
moção e execução de políticas educacionais em parceria com o Estado
capitalista brasileiro.
REFERÊNCIAS
54
A PRODUÇÃO E A GESTÃO DA POBREZA:
DAS RELAÇÕES ENTRE CAPITAL, ESTA-
DO E EDUCAÇÃO
Susana Jimenez
Estágio Pós-Doutoral em Educação na Unicamp; Doutorado em
Educação pela Aliant International University; Professora do Programa
de Pós-Graduação em Educação Brasileira –PPGEB da UFC; Diretora
Emérita do Instituto do Movimento Operário – IMO
58
A Produção e a Gestão da Pobreza: Das Relações entre Capital, Estado e Educação
59
trumentos de opressão foram o dinheiro e a usura. A velha organização
da gens foi destroçada pelo sistema monetário e os pequenos agricultores
foram engolidos pelos empréstimos, dívidas e hipotecas. Como a posse
do dinheiro e o poder político pertenciam à burguesia, não tardou o sur-
gimento de leis de proteção aos credores em detrimento dos devedores,
bem como de apoio à exploração dos pequenos agricultores pelos donos
do dinheiro (ENGELS, 2009).
Com a posse da propriedade privada, a produção para além das
suas necessidades e a troca de produtos, originou-se a mercadoria e o
sistema monetário, que se voltou contra o próprio indivíduo. Deu-se a
largada para um processo inimaginável de separação entre o trabalhador
e o produto do seu trabalho, bem como para o domínio do produto sobre
o produtor. “Ao inventarem o dinheiro, porém, os homens não suspeita-
vam que estavam criando um novo poder social, o poder universal único,
diante do qual a sociedade inteira iria se curvar” (ENGELS, 2009, p. 108).
Enfim, a sociedade gentílica vai sendo dissolvida com o progresso
das técnicas de produção e de comunicação, a divisão do trabalho e a se-
paração entre os diversos setores, como agricultores, artesãos, comércio,
navegação etc. A sociedade vai se complexificando, e o Estado vai ga-
nhando força. Os novos grupos que surgiram com a divisão do trabalho
e com a posse do dinheiro criam novos cargos, novos órgãos e novas leis,
com o intuito de proteger seus interesses (ENGELS, 2009).
Considerando as devidas especificidades, o Estado surge nas de-
mais sociedades nessa simbiose com a posse da terra, a divisão do tra-
balho, o intercâmbio de mercadoria, o desenvolvimento do sistema mo-
netário e a necessidades de garantir privilégios a determinados grupos.
Como afirma Engels (2009), o surgimento do Estado em Atenas assume a
forma característica da formação do Estado de modo geral.
Aqueles que detêm o poder econômico são os mesmos que se
apossam do poder político e comandam o Estado, de modo que o Esta-
do sempre disponibilizará seu aparato burocrático e jurídico àqueles que
dominam o processo produtivo. Na nossa sociedade, cujo fundamento
está na compra e venda da força de trabalho, a classe que detém o poder
econômico e político é a burguesia, geralmente favorecida pela legislação
em detrimento do trabalhador.
60
A Produção e a Gestão da Pobreza: Das Relações entre Capital, Estado e Educação
61
É diante dessa incontrolabilidade do capital, explica Mészáros
(2011, p. 117), que surge o Estado como estrutura totalizadora de co-
mando político, como a “única estrutura corretiva compatível com os
parâmetros do capital”. Age diretamente nas lacunas do sistema, tentan-
do corrigir imperfeições que de alguma forma ameacem sua existência,
porquanto o capital não é apenas uma entidade material. Ao longo da
história, constituiu uma estrutura totalizadora de controle, a que tudo
deve se render e se adequar.
Desse modo, o sistema do capital globalmente totalizante pode ser
reconhecido como a mais dantesca das forças controladoras, que a tudo
subjuga. É reconhecidamente o primeiro a constituir uma força de tama-
nha abrangência, cujos imperativos se impõem de forma repressiva em
todos os lugares e a qualquer instante em que encontrar opositores.
Trata-se, conforme Mészáros (2011, p. 97), do mais dinâmico de
todos os sistemas; entretanto, “o preço a ser pago por esse incomensurá-
vel dinamismo totalizador é, paradoxalmente, a perda de controle sobre os
processos de tomada de decisão”. Essa perda de controle, que se evidencia
mais em relação aos trabalhadores, não se restringe a estes, visto que até
os mais abastados capitalistas devem se sujeitar aos imperativos objetivos
do capital. Caso contrário, deparar-se-ão com a ruína, pois em relação à
totalidade do sistema do capital, o poder de controle do indivíduo parti-
cular é totalmente irrelevante.
Devido ao caráter totalizador do seu metabolismo socioeconômi-
co, nasce uma correspondência jamais prevista entre economia e política.
Sobre esta base, sobre este imperativo objetivo, surge o Estado moderno,
igualmente totalizador. Deste modo, para que o sistema de controle do
capital funcione é necessário que toda a sociedade se submeta às suas
determinações. Para tanto, torna-se necessária a divisão da sociedade
em classes e a imposição do controle político. Nesse processo, a divisão
do trabalho posto numa posição hierarquizada é condição fundamental
para garantir o antagonismo de classes, uma vez que aparta as funções de
produção e controle que serão atribuídas a indivíduos de classes sociais
distintas (Mészáros, 2011).
Nesse sentido, segundo Mészáros (2011), uma das determinações
mais contundentes do capital é sua necessidade de expansão e acumula-
62
A Produção e a Gestão da Pobreza: Das Relações entre Capital, Estado e Educação
63
que a força de trabalho total da humanidade se sujeita (...) aos imperati-
vos alienantes do sistema do capital global” (MÉSZÁROS, 2011, p. 105).
O defeito estrutural do capital consiste exatamente na falta de uni-
dade nas relações anteriormente descritas, que se manifesta na forma de
antagonismos sociais. É justamente nesses defeitos do capital, na ausên-
cia de unidade dessas dimensões estruturais, que age o Estado moderno,
tentando corrigir – dentro dos seus limites – as falhas do sistema (Idem,
ibidem).
O Estado moderno surgiu com força implacável e expandiu as es-
truturas econômicas do capital; sua função é justamente complementar o
capital, assumindo as práticas totalizadoras do seu comando político. Seu
objetivo é garantir a produtividade, por isso se apresenta como o mais
inflexível instrumento de extração do trabalho excedente. Para tanto,
precisa assegurar o controle sobre as forças insurgentes que porventura
possam pôr em risco a produtividade do capital. Esse controle dá-se atra-
vés da instituição e supressão de leis; da difusão de ideologias, quando
determina a ilegalidade de greves, incluindo o uso da repressão, quando
necessário (Idem, ibidem).
No que se refere à oposição entre produção e controle, Mészáros
(2011) explica que o Estado moderno exerce uma importante função na
execução do controle tirânico sobre os trabalhadores nos locais de traba-
lho. Toda estrutura política e legal do Estado está voltada à proteção dos
meios de produção devidamente alienados dos trabalhadores. Além dis-
so, garante que as propriedades sejam repassadas de uma geração a outra
e intervém nos conflitos entre as unidades socioeconômicas particula-
res. Essa intervenção acompanha o ritmo do movimento de expansão
e acumulação do capital e, ao favorecer potencialmente os mais fortes,
contribui para a formação de enormes corporações transnacionais e de
monopólios industriais.
O processo de expansão do capitalismo, em termos globais, dos úl-
timos séculos cuidou não apenas de suprir as necessidades humanas, mas
tratou de gerar falsas necessidades para estimular o consumo necessário
à manutenção do sistema. O fato objetivo de grande parcela da socieda-
de ser alijada do controle do processo socioeconômico de reprodução é
substituído pela ideia de “soberania do consumidor” individual. Outra
64
A Produção e a Gestão da Pobreza: Das Relações entre Capital, Estado e Educação
65
quanto conveniente for, ou seja, enquanto o processo de expansão e acu-
mulação do capital se mantiver num ritmo confortável para garantir o
lucro necessário à manutenção do alto padrão dos trabalhadores, com
um nível de exploração razoável. Qualquer acontecimento que ponha em
risco a margem de lucro confortável para o capital, certamente rebaixará
a qualidade de vida dos trabalhadores (Idem, ibidem).
No que se refere ao plano internacional, o Estado assume a função
de favorecer o domínio monopolista das empresas economicamente im-
portantes com apoio político e, se necessário, também militar. Isto signi-
fica que o Estado não é apenas um instrumento de sustentação do capital,
porquanto se torna parte constitutiva de sua base material, já que assume
uma importante função no processo de constituição, consolidação e fun-
cionamento de todas as suas estruturas. Isso gera uma determinação re-
cíproca entre capital e Estado moderno e, do mesmo modo, entre ambos
e a pobreza.
Marx (1995) esclarece que, comumente, a burguesia, o governo e a
imprensa atribuem a causa do pauperismo à política de um modo geral, ou,
quando muito, à política do partido adversário, jamais à própria essência do
Estado. De modo algum mencionam a necessidade de uma reforma da so-
ciedade. Afirma que, mesmo a parcela da burguesia inglesa de sua época, que
tinha clareza dos perigos do pauperismo, o concebia de maneira ingênua,
pois reduzia os problemas do pauperismo a uma questão tão só de educação.
Outra questão que Marx (1995) destaca é a tendência a se atribuir
as causas do pauperismo a um problema de administração e de assistência.
Uma demonstração clara é a legislação inglesa, do governo de Elisabeth, so-
bre a pobreza. As famosas leis dos pobres envolviam todo um aparato admi-
nistrativo de gestão do pauperismo.
Similar ao que acontece em pleno século XXI, na época de Marx as
causas do pauperismo na Inglaterra eram atribuídas às leis de amparo aos
pobres, pois sendo o pauperismo um mal incorrigível determinado pela lei
da natureza, como reza a teoria malthusiana, a assistência se constituiria em
estímulo à preguiça e à manutenção da miséria.
Nesse sentido, Marx (1995, s/p) afirma:
A essa filantrópica teoria, o parlamento inglês agrega a ideia de
que o pauperismo é a miséria da qual os próprios trabalhadores
66
A Produção e a Gestão da Pobreza: Das Relações entre Capital, Estado e Educação
67
culares e universais.
Nesse sentido, afirma Marx (1995, s/p):
(...) ante consequências que brotam da natureza a-social desta
vida civil, dessa propriedade privada, desse comércio, dessa in-
dústria, dessa rapina recíproca das diferentes esferas civis, ante
estas consequências, a impotência é a lei natural da adminis-
tração.
68
A Produção e a Gestão da Pobreza: Das Relações entre Capital, Estado e Educação
69
do trabalhador, para assumir o controle dos meios produtivos e tomar
posse da riqueza.
Essa distinção entre a educação dos filhos da elite e a educação dos
filhos de trabalhadores foi continuamente evidenciada nos cargos que
cada um, a depender da sua classe e do investimento em educação, pôde
ocupar. A rigor, as determinações de classe permanecem efetivamente
válidas, e os poucos que conseguem romper o fazem pelos próprios mé-
ritos. Portanto, não podem se constituir numa legalidade como propõe o
pensamento meritocrático.
Outra questão a ser considerada é que o fim da trajetória histórica
de expansão do capital e a crise que em decorrência disso se instalou
a partir da década de 1970 pioraram significativamente o problema do
desemprego. Agora não se trata apenas de produzir um exército de re-
serva que será acionado ao menor sinal de necessidade do capital, como
ocorria no período de expansão desse sistema, minuciosamente descrito
por Marx (2013, 2014); segundo Mészáros (2003), a situação atual indica
que a face mais desumanizante do capital, que é o desemprego, assumiu
um caráter crônico.
Nesse contexto, a educação incorpora características qualitati-
vamente distintas. A realidade posta não é mais, como outrora, aquela
com dois modelos bem definidos de educação: uma escola para ricos,
que prepara para as atividades intelectuais, e outra para pobres, que pre-
para para as atividades manuais. A conjuntura mundial de incertezas e
inseguranças favorece a elaboração de políticas voltadas a garantir que
distintos modelos educativos se ocupem de atender às necessidades da
sociabilidade do capital em crise.
Deste modo, em um mesmo contexto, coexiste a educação que pre-
para os descendentes da elite para garantir a manutenção e o controle
do poder tanto econômico quanto político – a educação que garante a
formação de mão de obra qualificada, como, por exemplo, a formação
de indivíduos para o domínio das tecnologias, de cientistas que se encar-
regarão do produzir essas tecnologias e garantir o desenvolvimento dos
meios produtivos, bem como de intelectuais responsáveis por dissemi-
nar a ideologia burguesa – e escolas que preparam mão de obra barata
necessária para movimentar o sistema produtivo; e, ainda, aquelas que
70
A Produção e a Gestão da Pobreza: Das Relações entre Capital, Estado e Educação
Considerações Finais
71
adotadas pelo Estado na gestão da pobreza. As medidas assistencialis-
tas de caráter eminentemente compensatório, quando empreendidas,
permanecem apenas no âmbito das políticas, com todos os limites a ela
imputados. São medidas que não buscam as entranhas do sistema, nem
poderiam. Admitir que o problema da desigualdade social é a condição
necessária para alimentar a lógica do capital, como uma determinação
inerente à sua própria existência, e assumir que o Estado somente existe
enquanto organização burocrática cuja finalidade é tentar corrigir as im-
perfeições que ameaçam o sistema, seriam o mesmo que confessar sua
incapacidade. Nesse sentido, perderia sua razão de ser.
Como o Estado não pode admitir sua incoerência e incompetên-
cia, age pela via da política, da assistência, das medidas compensatórias,
e principalmente pela via da educação, uma importante e eficiente estra-
tégia de disseminação da lógica burguesa. Porém, como o processo não
é linear, pois existem contradições dentro do próprio sistema e o Estado
não pode se apossar por completo de todas as ações humanas, a educação
não deve ser vista apenas como meio de reprodução do capital. É possí-
vel, sim, uma educação que caminhe numa lógica contracapitalista; no
entanto, não podemos esperar que ela seja suficiente para romper com a
lógica do capital e resolver o problema da pobreza.
Como afirmam Lima e Jimenez (2011) – a partir de Lukács –, a
educação é um complexo fundado, e não fundante, e, como tal, possui
uma autonomia relativa e uma dependência ontológica em relação ao tra-
balho. Nesse sentido, o que o movimento da história tem revelado é que a
educação formal está atrelada ao desenvolvimento das forças produtivas,
podendo vestir-se com distintos modelos, que em tudo se diferenciam
quando o que está em jogo são os interesses de classes.
Portanto, é preciso ter clareza de que a educação enquanto comple-
xo social fundado, dependente da economia, que é o complexo fundante,
e gerida pelo Estado, que busca administrar as imperfeições do capital,
embora seja uma importante aliada na luta pela emancipação humana,
não pode ser a responsável por eliminar a pobreza e promover a transfor-
mação radical da sociedade.
72
A Produção e a Gestão da Pobreza: Das Relações entre Capital, Estado e Educação
REFERÊNCIAS
73
EDUCAÇÃO PARA O TRABALHO NO
ESTADO BURGUÊS: UMA PERMANENTE
ADEQUAÇÃO ÀS DEMANDAS DO CAPI-
TAL
Susana Jimenez
Pós-Doutora em Educação – UFC
Edna Bertoldo
Doutora em Educação – UFAL
Introdução
78
Educação para o Trabalho no Estado Burguês: Uma Permanente Adequação às Demandas do Capital
1 A divisão do trabalho, “[...] de certo modo, é dada com o próprio trabalho,
originando-se dele como necessidade orgânica. Atualmente, sabemos que uma forma
da divisão do trabalho, a cooperação, aparece em estágios bastante iniciais; basta pensar
no caso, já mencionado, da caça no Paleolítico” (LUKÁCS, 2013, p. 160).
2 A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes
Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-
1846), por circunstâncias imprevistas na época, somente foi publicada postumamente.
O fato de não terem conseguido publicar não causou nenhum constrangimento aos
autores; foi o que Marx afirmou no prefácio de Uma contribuição para a crítica da
economia política (1859): “entregamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos, de
muito bom grado, pois o nosso objetivo principal, esclarecer as nossas próprias ideias,
já estava alcançado”.
79
minação, os primeiros criaram o Estado, que é o conjunto for-
mado pelos funcionários públicos (a burocracia), a polícia, o
exército e o Direito.
80
Educação para o Trabalho no Estado Burguês: Uma Permanente Adequação às Demandas do Capital
81
possui em seu organismo corpóreo. [...] O trabalho mais com-
plexo vale apenas como trabalho simples potenciado ou, antes,
multiplicado, de modo que uma quantidade menor de trabalho
complexo é igual a uma quantidade maior de trabalho simples.
[...] Mesmo que uma mercadoria seja o produto do trabalho
mais complexo, seu valor a equipara ao produto do trabalho
mais simples e, desse modo, representa ele próprio uma quan-
tidade determinada de trabalho simples. (2013, p. 122, grifos
do autor).
82
Educação para o Trabalho no Estado Burguês: Uma Permanente Adequação às Demandas do Capital
83
balho abstrato, alienado; através deste
Dessa forma, que outra função pode ser exercida pelo Estado bur-
guês senão a de preparar a classe trabalhadora para transformar sua força
de trabalho em mercadoria como valor de uso para o capital? Ou seja,
adequar a força de trabalho às necessidades do modo de produção vi-
gente.
Nessa perspectiva, o modo como está organizado o trabalho é
determinante na definição do tipo de educação de classe. Na forma de
trabalho abstrato, alienado, em que “[...] o produto do trabalho não per-
tence ao trabalhador, é um poder alienado frente a ele [...]” (MARX,
2015, p. 315), a relação estabelecida entre o trabalho e a educação esco-
lar para a classe trabalhadora, ofertada pelo Estado burguês, não poderia
ser diferente. Cabe, então, ao Estado, captar as necessidades do capital
e organizar a educação em diversos formatos e graus de qualificação e
especialização.
Uma educação que especialize para funções complexas e qualifi-
que para atividades simples, que esteja dirigida para trabalhadores em-
pregados, mas também desempregados, subempregados etc. Trabalhado-
res pertencentes à massa de pessoas jovens e adultas pauperizada, que
dificilmente encontrarão comprador para sua força de trabalho, mas que
o capital precisa manter vivos, para desenvolver atividades braçais sim-
ples na indústria e no comércio, assim como nos setores de serviços em
geral (limpeza, transporte), terceirizados e no campo da informalidade.
Essa massa de trabalhadores desempregada é classificada por Marx
(2013), no século XIX, de “superpopulação relativa ou exército industrial
de reserva” (p. 704). Há algumas décadas com o capital em crise, o con-
tingente de trabalhadores sem perspectiva de emprego é cada vez maior.
Os pertencentes à classe trabalhadora em situação de maior grau de pau-
perização já nem vislumbram pertencer a um “exército industrial de re-
84
Educação para o Trabalho no Estado Burguês: Uma Permanente Adequação às Demandas do Capital
85
O campo educacional: do Estado de Bem-Estar Social ao Estado
Neoliberal
86
Educação para o Trabalho no Estado Burguês: Uma Permanente Adequação às Demandas do Capital
87
para algumas crianças das classes trabalhadoras são meios de
mobilidade social ascendente: afinal de contas, sociedades ca-
pitalistas avançadas precisam contar com um suprimento cada
vez maior de pessoal mais ou menos treinado. Para a enorme
maioria, contudo, a escola joga um papel crucial em confirmar
seu destino de classe e seu status. [...].
8 A pobreza que vitima milhões de pessoas no mundo inteiro revela o processo
de degradação da classe trabalhadora pelo capital. Nesse sentido, esclarecemos que
o que aparenta ser causa – para a escolha pelo trabalho em detrimento do estudo – é
consequência do modo de produção capitalista, como uma forma de sociabilidade das
sociedades de classes, verdadeira causa da pobreza e, consequentemente, das restritas
possibilidades de acesso à saúde, educação, cultura etc.
88
Educação para o Trabalho no Estado Burguês: Uma Permanente Adequação às Demandas do Capital
9 Cf. MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. Tradução Francisco Raul
Cornejo (et al.). 2. ed. rev. e ampliada. São Paulo: Boitempo, 2011 (p. 31-46).
10 O que faz parte da teoria da empregabilidade, ideologia disseminada pelo
neoliberalismo.
89
os princípios das demais correntes do pensamento econômi-
co de cunho liberal, tais como a igualdade, o individualismo, a
não intervenção do Estado na economia, na propriedade e no
contrato, sua concepção está calcada no mercado mundial, no
fluxo do capital, na tecnologia avançada, no mundo sem fron-
teiras, sob a égide das multinacionais e das corporações inter-
nacionais. Confere ao indivíduo o poder absoluto de decisão
no livre jogo do mercado, impondo-lhe a responsabilidade pe-
las suas condições no quadro socioeconômico.
90
Educação para o Trabalho no Estado Burguês: Uma Permanente Adequação às Demandas do Capital
Considerações finais
91
A prateleira diversificada de mercadorias – forças de trabalho –
com diferentes graus de preparação (especializada, com alguma qualifi-
cação ou sem nenhuma qualificação) já não fica exposta num ampliado
“exército industrial de reserva”, mas este12 ainda exerce forte influência
sobre a educação do Estado burguês para a classe trabalhadora.
Uma outra função exercida pelo Estado burguês atualmente é pro-
mover um processo educativo que prepare a maior parte da juventude
considerada em situação de vulnerabilidade social para o empreendedo-
rismo individual. Um exemplo explícito são as políticas de educação –
em forma de programas – no Brasil, destinadas a pessoas jovens e adultas,
que não tiveram acesso à educação básica durante a infância ou que da
escola foram expulsas com histórico de inúmeras reprovações. Para esse
grande contingente de pessoas que, de acordo com as estatísticas do pró-
prio Estado, não tiveram sequer condições objetivas de ser alfabetizadas
e concluírem o ensino fundamental13, cabe ao Estado (associado a orga-
nismos internacionais vigentes) fazer com que se ajustem às condições de
vida e trabalho, convertendo-se em empreendedores individuais.
Essa função está sendo efetivamente cumprida no Brasil, em espe-
cial na área da educação de pessoas jovens e adultas, visando adaptar e
readaptar a força de trabalho, principalmente da juventude em situação
de vulnerabilidade social, às demandas impostas pelo capital em crise.
REFERÊNCIAS
LESSA, Sérgio; TONET, Ivo. Introdução à filosofia de Marx. 1. ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2008.
de terceirização e as relações de trabalho deles decorrentes”, que tramita no Senado
Federal. Disponível em: < http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/
materia/120928>.
12 Supomos, sob o mito da teoria da empregabilidade.
13 Conforme demonstram os dados do Censo Demográfico 2010, realizado pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE: da população de 190.755.799
habitantes, 9,6% da população de 15 anos ou mais ainda não sabe ler e escrever. Da
população de dez anos ou mais idade, 50,2% não concluiu o Ensino Fundamental e
apenas 7,9% têm o Ensino Superior completo. Essa situação é apresentada de forma muito
mais grave nas regiões Norte/Nordeste, onde o percentual de pessoas sem instrução e
fundamental incompleto chega a 56,5% (Norte) e 59,1% (Nordeste).
92
Educação para o Trabalho no Estado Burguês: Uma Permanente Adequação às Demandas do Capital
93
PARTE II
100
Relação Dialética ente Direito e Totalidade Social: Uma Abordagem Lukacsiana
101
universal que envolve todos os homens” (LUKÁCS, 1981, p. 12).
Vale rememorar aquilo que assinalava Marx acerca da noção de
história universal defendida por Hegel, quando destaca sua possibilidade
de elucidação somente no contexto histórico em que as fronteiras entre
os povos e as comunidades haviam sido devidamente dissolvidas pelo ca-
pitalismo. Antes disso, as comunidades vizinhas existiam de forma com-
pletamente estranhas e distantes uma da outra. É apenas no contexto das
relações mercantilistas, também conhecida como etapa da acumulação
primitiva de capital, que se torna possível falar na história universal. É no
interior dessa totalidade social determinada que se torna possível tratar
da literatura universal e entender a culinária como uma arte.
102
Relação Dialética ente Direito e Totalidade Social: Uma Abordagem Lukacsiana
103
vocos na finalidade de resguardar os interesses das dominantes.
Segundo Engels:
Esta força pública particular é necessária porque uma organi-
zação autônoma da população se torna impossível após a di-
visão em classes... Esta força pública existe em todo Estado e
não consta simplesmente de homens armados, mas também de
apêndices reais, prisões e institutos de castigo de todos os gê-
neros, os quais a sociedade gentílica nunca conheceu. Ela pode
ser bastante insignificante e quase inexistente em sociedades
com antagonismos de classe ainda pouco desenvolvidos e em
territórios remotos... Ela, porém, se reforça à medida que os
antagonismos de classe no interior do Estado se agudizam e os
Estados, entre si limítrofes, se tornam maiores e mais populo-
sos. (apud LUKÁCS, 1981, p. 61).
104
Relação Dialética ente Direito e Totalidade Social: Uma Abordagem Lukacsiana
105
quando os antagonismos sociais já adquiriram formas mais
mediadas, reduzir a regulamentação do agir ao puro uso da
força significaria chegar, sem mais, à destruição da sociedade.
Neste ponto deve assumir o predomínio aquela complicada
unidade de força explícita e força disfarçada, revestida com as
vestes da lei, que ganha forma na esfera jurídica. (1981, p. 62).
106
Relação Dialética ente Direito e Totalidade Social: Uma Abordagem Lukacsiana
107
desprezar os antagonismos de classe de outro tipo, que surgem
pelo trâmite das mediações econômicas, sobretudo se quere-
mos apreender as determinações específicas da esfera jurídica
como complexo social.
108
Relação Dialética ente Direito e Totalidade Social: Uma Abordagem Lukacsiana
1 Para Marx (1991, p. 44-45), “Nenhum dos direitos humanos ultrapassa,
portanto, o egoísmo do homem, do homem como membro da sociedade burguesa,
isto é, do indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse privado e dissociado
da comunidade. Longe de conceber o homem como um ser genérico, estes direitos,
pelo contrário, fazem da própria vida genérica, da sociedade, um marco exterior aos
indivíduos, uma limitação de sua independência primitiva. O único nexo que os
mantém em coesão é a necessidade natural, a necessidade e o interesse particular, a
conservação de suas propriedades e de suas individualidades egoístas”.
109
pode produzir uma liberdade abstrata, uma igualdade abstrata, uma de-
mocracia abstrata etc.
Nessa perspectiva, o direito assume como corolário regular as ati-
vidades sociais segundo o processo que pauta o movimento da produ-
ção e circulação das mercadorias, enquanto reconfigurações abstratas
que emergem do trabalho abstrato: mercadoria, dinheiro, capital. Ao seu
modo, o direito exprime a igualdade que decorre do tempo de trabalho
socialmente, como quintessência da teoria do valor e das relações de tro-
ca que perpassam a relação das mercadorias entre si. A sua igualdade
mimetiza a do mundo da produção de mercadorias, em que o trabalho de
um trabalhador é igual ao trabalho de todos os outros trabalhadores, ou
seja, é uma substância abstrata e destituída de corporeidade.
O trabalho que constitui a substância do valor é dispêndio da mes-
ma força de trabalho, é trabalho humano igual ou socialmente determi-
nado. Explica Marx (1983a, p. 48): “Tempo de trabalho socialmente ne-
cessário é aquele requerido para produzir um valor de uso qualquer, nas
condições dadas de produção socialmente normais, e com o grau social
médio de habilidade e de intensidade de trabalho”.
O valor de uma mercadoria está para o valor de outra mercadoria
como o tempo de trabalho necessário para a produção de uma merca-
doria está para o tempo de trabalho necessário para a produção de outra
mercadoria, pois enquanto valores, “todas as mercadorias são apenas me-
didas determinadas de tempo de trabalho cristalizado” (MARX, 1983a,
p. 48).
A igualdade abstrata oculta as relações de dominação e exploração
da relação entre vendedores e compradores da força de trabalho, por-
que diferentemente dos modos de produção precedentes, na sociedade
capitalista o trabalhador se acha livre para vender sua força de trabalho.
E o que ele recebe em troca de sua força de trabalho esconde o processo
de expropriação, porquanto a forma salário é uma forma de pagamento
integral do tempo de trabalho cedido àquele que compra sua força de tra-
balho – o capitalista. O processo de elucidação da exploração do trabalho
na sociedade capitalista é bem mais difícil de ser realizado porque esse
sistema socioeconômico constitui-se sob uma série de “fios invisíveis”.
Marx dedica uma parte substancial de sua obra fundamental, O capital, a
110
Relação Dialética ente Direito e Totalidade Social: Uma Abordagem Lukacsiana
111
trabalhadores2 e às diferentes tentativas de redução da jornada de traba-
lho, e do outro, ao aperfeiçoamento do processo de exploração da força
de trabalho mediante a passagem da mais-valia absoluta para a mais-valia
relativa.
Fica assim evidenciado que a possibilidade de eliminar o proces-
so de exploração da força de trabalho é impossível de ser realizado nos
marcos do capital, já que a essência do capital baseia-se na exploração da
mais-valia. Esse processo de expropriação é legitimado e garantido pelo
aparelho jurídico burguês. É impossível superar o estado de coisas do
lado do trabalho nos limites do tribunal burguês e nos limites da reforma
do sistema do capital; por isso o trabalho é interpelado a buscar outra
forma de legitimação de seus direitos e de sua liberdade, tendo em conta
que a essência do direito é servir aos interesses das classes dominantes. A
igualdade oferecida pelo direito não passa de uma igualdade abstrata, que
emana do trabalho abstrato.
Na Crítica ao Programa de Gotha, Marx destaca que em sua essên-
cia todo direito é direito da desigualdade, em que indivíduos desiguais
são mensurados sob um determinado ponto de vista com igual medida.
Escreve Marx: “O direito só pode consistir, por natureza, na aplicação de
uma medida igual; mas os indivíduos desiguais (e não seriam indivíduos
diferentes se não fossem desiguais) só podem ser medidos por uma mes-
ma medida sempre e quando forem considerados sob um ponto de vista
igual” (1984, p. 214).
Apenas quando o trabalho deixar de ser meio de vida para consti-
tuir uma primeira necessidade vital, quando os indivíduos deixarem de
ser submetidos à subserviência da divisão do trabalho, tornar-se-á possí-
vel o desenvolvimento omnilateral dos indivíduos e a fluência das fontes
de riqueza em toda a sua plenitude. Isso não pode ser alcançado nos limi-
2 Aplica-se aos direitos sociais, conquistados no decorrer do século XIX, a mesma
assertiva de Marx acerca da gênese e do desenvolvimento dos direitos humanos. Escreve
Marx (1991, p. 38): “Não é uma ideia inata ao homem, mas este a conquistou na luta
contra as tradições históricas em que o homem antes se educara. Os direitos humanos
não são, por conseguinte, uma dádiva da natureza, um presente da história, mas fruto da
luta contra o acaso do nascimento, contra os privilégios que a história, até então, vinha
transmitindo hereditariamente de geração em geração. São resultantes da cultura; só pode
possuí-los aquele que os soube adquirir e merecê-los”.
112
Relação Dialética ente Direito e Totalidade Social: Uma Abordagem Lukacsiana
Conclusão
113
talidade social é genuinamente aberta à interferência dos homens. Estes
fazem a história nem sempre de acordo com a sua consciência, mas se-
gundo as circunstâncias. Da mesma maneira que as circunstâncias fazem
os homens, os homens também fazem as circunstâncias.
A história é caracterizada por um desenvolvimento essencialmente
contraditório e desigual, pautada por avanços e recuos. Semelhantemente
à história dos homens, os complexos sociais não são eternos e imutáveis,
mas mutáveis e sujeitos ininterruptamente à lei do devir. Os complexos
também nascem, desenvolvem-se e morrem. Para Lukács, o complexo do
direito “nasce quando se torna socialmente importante, assim como a sua
superfluidade é o veículo de sua extinção” (1981, p. 73).
O direito e as relações sociais que lhe dão sustentação não desapa-
recerão por um tiro de pistola; da mesma maneira que apareceram pro-
gressivamente na história da humanidade, eles devem desaparecer com
a mudança das relações sociais que lhes dão sustentação. Enquanto rela-
cionado às condições especificamente fundadas no trabalho, às relações
de produção e à sociabilidade humana, o direito tende a desaparecer com
a constituição de novas relações sociais e o estabelecimento de uma nova
maneira de organizar a produção. O processo de transição da sociedade
capitalista para a sociedade comunista passa pela mediação do socialis-
mo, processo de produção em que ainda persistem velhos complexos,
como o Estado e o direito. Tais complexos baseiam-se ainda na existência
da desigualdade entre os homens.
Ao apontar a possibilidade de extinção do direito e dos outros
complexos parciais, Lukács combate as concepções filosóficas que ten-
dem a fetichizar a particularidade da esfera jurídica como complexo apa-
rentemente eterno e imutável. Indubitavelmente, esse é o modo como a
ciência positiva do direito tem tentado petrificar e calcificar o movimento
efetivo das coisas, adentrando cada vez mais no terreno privilegiado da
manipulação ideológica da consciência das massas. Mas nunca é tarde
para dizer como o menino do conto de Christian Andersen: “O rei está
nu!”, à medida que se intensifica a luta de classes e que o capital revela
seus limites absolutos e sua incapacidade para superar suas contradições
nos tempos hodiernos.
114
Relação Dialética ente Direito e Totalidade Social: Uma Abordagem Lukacsiana
REFERÊNCIAS
115
ESTADO, POLÍTICA, EDUCAÇÃO E
A DOUTRINAÇÃO IDEOLÓGICA DA
“NOVA” DIREITA NO BRASIL
120
Estado, Política, Educação e a Doutrinação Ideológica da "Nova" Direita no Brasil
121
o ser social. Portanto, toda a história humana é permeada por relações
que são constituídas por meios que garantem a continuidade da própria
espécie, e não se constroem por figurações mentais, mas sim na luta para
suprir as necessidades de sua existência biológica. A partir desse pres-
suposto, Marx e Engels afirmam que cada forma de consciência ganha
características e contornos do período histórico em que a sociedade hu-
mana se encontra:
As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias do-
minantes, isto é, a classe que é a força material dominante da
sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante.
A classe que tem à sua disposição os meios de produção mate-
rial dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo
que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo
os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios de produ-
ção espiritual. (Ibidem, p. 47, grifo dos autores).
122
Estado, Política, Educação e a Doutrinação Ideológica da "Nova" Direita no Brasil
123
O poder demonstrado pela ideologia dominante a partir de seu
aparato político-ideológico garante a supremacia sobre as classes domi-
nadas mediante a introdução de determinados valores, comportamentos
e intenções que paulatinamente conduzem a classe subjugada a aceitar
de forma passiva as condições postas pelo tirânico ordenamento social.
O sistema do capital difunde sua ideologia até que a população
assimile as regras, as leis e a política estabelecida como algo natural e in-
contornável. A naturalização das relações sociais encontradas no capital
leva a sociedade a atomizar os problemas como se estes não fossem pro-
duzidos pela própria realidade material instituída por um determinado
modo de produção.
124
Estado, Política, Educação e a Doutrinação Ideológica da "Nova" Direita no Brasil
125
Desse modo, a ideologia numa sociedade de classes torna-se ele-
mento fundamental para justificar todas as contradições e incoerências.
Como se percebe até o momento, o modelo de sociabilidade capitalista
necessita ainda mais desses fatores ideológicos, haja vista que os conflitos
das classes historicamente antagônicas se acirram à medida que o regime
econômico burguês alarga o abismo que separa os trabalhadores do con-
sumo dos bens, tanto materiais quanto intelectuais.
Para o “bom” funcionamento da ordem econômica capitalista, de-
ve-se convencer a qualquer custo que os momentos de crise repousam
na culpa do próprio trabalhador, já que, para os ideólogos burgueses,
as bases fundantes do desemprego também podem ser encontradas na
desqualificação profissional. O Estado, por meio da superestrutura po-
lítico-jurídica, procura despertar a sensação de que os indivíduos nes-
te modelo de sociabilidade possuem garantia de liberdade e relações de
igualdade estabelecidas por imparciais e justas normatizações legais, que
hipoteticamente asseguram os interesses de todas as classes.
Torna-se evidente, então, que o sistema econômico capitalista che-
gou aos limites últimos de sua reprodução social, não havendo mais pos-
sibilidades de contornar problemas que em outras fases seriam resolvidos
com políticas de assistência, expansão imperialista ou guerras que am-
pliavam a produção destrutiva e, ainda, garantiam o poder hegemônico
das economias centrais. Mészáros é categórico quando assevera que “O
sistema de dominação está em crise porque sua raison d’être e sua justi-
ficação histórica desapareceram, e já não podem mais ser reinventadas,
por maior que seja a manipulação ou a pura repressão” (MÉSZÁROS,
2002, p. 801, grifo do autor).
Assim, encontra-se uma maneira de conservar a classe trabalha-
dora “indiferente” às tempestuosas crises do capital ao fazer uso do oni-
presente aparato repressivo e ideológico deste modo de produção. Para
mover as armas contra uma “horda” de trabalhadores ou de nações in-
satisfeitas, torna-se necessário internalizar na cabeça daqueles que vão
empunhar as armas a crença de que a ação empreendida serve a uma
causa nobre, ainda mais quando muitos desses soldados ou policiais são
de origem proletária.
O que resta para os capitalistas, portanto, é uma forte propaganda
126
Estado, Política, Educação e a Doutrinação Ideológica da "Nova" Direita no Brasil
2 O termo utopia, aqui, se refere ao seu sentido original, que vem
127
do projeto de uma sociedade igualitária e verdadeiramente emancipada.
Ao partir desse pressuposto, teorias morais que se objetivam em
leis por via do aparato político-jurídico do Estado buscam determinar o
que é certo ou errado na sociedade, internalizando os valores burgueses
como essencialmente humanos, e que todos que estão em desacordo com
esses paradigmas são indivíduos transgressores dos valores universais da
moral e dos bons costumes. O imperativo do Estado é a conservação das
relações estabelecidas numa sociedade de classes, e numa sociabilidade
do tipo capitalista, procura controlar os conflitos entre as classes antagô-
nicas, assim como os conflitos entre as próprias unidades produtivas do
capital. Logo, não se pode simplesmente “equilibrar” essas forças contrá-
rias pelo caminho da opressão; daí o papel da ideologia na naturalização
de ideias e comportamentos relevantes para a manutenção do status quo.
Fazendo um recorte para o momento atual, na próxima e última
seção tratar-se-á, dentro dos limites de um artigo, do avanço ideológi-
co de extrema-direita no Brasil e do verdadeiro propósito de propostas
como a Reforma do Ensino Médio e o Projeto de Lei “Escola sem Parti-
do”, alcunhada no Estado de Alagoas de “Escola Livre”.
128
Estado, Política, Educação e a Doutrinação Ideológica da "Nova" Direita no Brasil
Inácio Lula da Silva quando afirmou por via midiática que a crise che-
garia ao Brasil como “uma marolinha que nem daria para esquiar”; po-
rém a “marolinha” descambou num tsunami que ajudou a arrastar do
Palácio do Planalto a sua sucessora Dilma Rousseff, juntamente com as
denúncias de corrupção que atingiram em 2014 nomes importantes do
PT, no chamado esquema da Lava-Jato. A partir daí, várias manifesta-
ções marcaram os últimos anos da presidente Dilma no poder, como
os chamados panelaços, comumente orquestrados pela classe dominan-
te e pelas principais redes de telecomunicações, especialmente a Rede
Globo. Lemas da direita como “Deus, Família e Liberdade”, slogan que
precedeu a ditadura militar de 1964, não mais representavam em sua
totalidade a face da nova direita brasileira.
De acordo com Anderson:
Recrutados a partir de uma geração mais jovem de militantes
de classe média, uma nova direita – e geralmente com orgu-
lho de afirmar-se assim – passou a falar menos em termos de
religiosidade, menos ainda em termos de família e reinterpre-
tou o sentido de liberdade. Para eles, o livre mercado era a
base necessária para todas as outras liberdades, concebendo
assim o Estado como uma espécie de hidra3 de muitas cabe-
ças. (ANDERSON, 2016).
129
ganhou notoriedade nacional em 2013, nas manifestações para redução
do valor das passagens de ônibus em São Paulo (ANDERSON, 2016).
Concomitantemente a tudo isso, um aumento significativo da bancada
evangélica conseguiu/consegue mover a opinião de multidões a favor dos
interesses privados dos conglomerados religiosos e empresariais, barga-
nhando o golpe parlamentar a troco de vantagens pessoais e, com isso,
ampliando de maneira significativa os preceitos defendidos pelo MBL
por todo o país.
Tudo que podemos dizer é que este é um movimento ideoló-
gico, em escala verdadeiramente mundial, como o capitalismo
jamais havia produzido no passado. Trata-se de um corpo coe-
rente, autoconsciente, militante, lucidamente decidido a trans-
formar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição estrutural
e sua extensão internacional. (ANDERSON, 2016).
130
Estado, Política, Educação e a Doutrinação Ideológica da "Nova" Direita no Brasil
ideológica provida a partir dos complexos sociais sob seu domínio con-
segue envolver as massas populares no ideário do capital, mesmo que a
estas estejam reservadas precárias condições materiais.
Para Mészáros,
[...] a sociedade capitalista resguarda com vigor não apenas
seu sistema de educação contínua, mas simultaneamente tam-
bém de doutrinação permanente. Mesmo quando a doutrina-
ção impregna tudo, não parece ser o que é, por ser tratada
pela ideologia vigente “consensualmente internalizada” como
o sistema de crença positivo compartilhado de maneira legíti-
ma pela “sociedade livre” estabelecida e totalmente não-obje-
tável. (MÉSZÁROS, 2008, p. 82, grifo do autor).
131
Essa realidade tornou-se muito objetiva no governo de Michel Te-
mer, em que se infligiu uma medida provisória (MP) para a educação,
cujo objetivo foi a reforma do ensino médio, de maneira que conteúdos
importantes para a formação humanista e crítica dos educandos são re-
tirados do currículo, ou tornados facultativos, privilegiando a formação
técnica, obviamente para os filhos da classe trabalhadora. Tais mudanças
no currículo têm aproximações com as propostas de educação do MBL,
já que o MP aponta para a possibilidade de coparticipação entre o públi-
co e o privado, e consequentemente um maior incentivo às instituições
particulares de ensino.
Em documento disponível no site do MBL, encontram-se as se-
guintes propostas para a educação:
132
Estado, Política, Educação e a Doutrinação Ideológica da "Nova" Direita no Brasil
133
tras épocas é que esta geração apropria-se avidamente da literatura neo-
liberal com essas características mais agressivas, especialmente quando
se refere às classes marginalizadas. Eles destilam ódio aos homossexu-
ais, aos negros, aos pobres, às mulheres, aos ateus e, sobretudo, aos mi-
litantes de alguma ideologia política de esquerda, chamados por eles de
“esquerdistas” e/ou “esquerdopatas”. Com muita frequência comparam o
pensamento comunista ao ideário nazista, não percebendo que são os
seus discursos pela preservação da propriedade privada, da ordem mo-
ral, social, familiar, religiosa, sexual etc., que mantêm fortes laços com o
nazifascismo. Desse modo, o senso comum dessas obras ganham status
científico e os discursos são incorporados pelos membros do MBL e por
uma horda de seus admiradores.
Para tomar um exemplo, no livro As seis lições, de Ludwig von Mi-
ses, resultado de uma série de conferências realizadas pelo economista na
Argentina, ele afirma:
Na Alemanha de Hitler havia um sistema de socialismo que só
diferia do sistema russo na medida, e ainda eram mantidos a
terminologia e os rótulos do sistema de livre economia. Ainda
existiam “empresas privadas”, como eram denominadas. Mas
o proprietário já não era um empresário; chamavam-no “geren-
te” ou “chefe” de negócios (Betriebsführer). (MISES, 2009, p.
53).
5 Certamente o “livre” tem relação com o MBL e com a própria ideologia da liberdade
134
Estado, Política, Educação e a Doutrinação Ideológica da "Nova" Direita no Brasil
135
inteligente, com neutralidade e evitando toda a controvérsia. É
obviamente o melhor plano, no entanto, dado o estabelecimen-
to das escolas públicas. (ROTHBARD, 2013, p. 59).
Considerações finais
136
Estado, Política, Educação e a Doutrinação Ideológica da "Nova" Direita no Brasil
cação não entende uma pedagogia que forma indivíduos isolados, mas
sim indivíduos vinculados à realidade social. Portanto, a educação em
sua plenitude, omnilateral, não tem espaço para uma ordem estrutural-
mente contraditória e excludente, em que o homem se acha submetido
a níveis de pobreza e alienação que o impedem de ter uma existência
essencialmente rica.
REFERÊNCIAS
137
MISES. Ludwig von. As seis lições. Tradução: Maria Luiza Borges. 7. ed. São
Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2009.
Movimento Brasil Livre. Propostas aprovadas no primeiro congresso nacion-
al do Movimento Brasil Livre. Disponível em: https://s3-sa-east-1.ama-
zonaws.com/mbl-wordpress-s3/wp-content/uploads/2016/05/26222920/
propostas-mbl.pdf>. Acesso em: 29 de outubro de 2016.
Movimento Passe Livre. Disponível em: http://tarifazero.org/mpl/. Acesso em:
29 de outubro de 2016.
ROTHBARD, Murray N. Educação: livre e obrigatória. Tradução: Filipe Ran-
gel Celeti. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013.
SADER, Emir. Apresentação de a ideologia alemã. In: MARX, Karl; ENGELS,
Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
TONET, Ivo. Introdução de A ideologia Alemã. In: MARX, Karl; ENGELS,
Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
138
“ESCOLA LIVRE” E “SEM PARTIDO”:A
INTERNALIZAÇÃO DA LÓGICA DO
CAPITAL
Edna Bertoldo
“Escola sem Partido” e “Escola Livre”, essas são duas das mais
novas expressões que centralizam o polêmico debate sobre a educação
no país que, extrapolando o âmbito das escolas e universidades, chega às
ruas, ao parlamento, à esfera jurídica e à mídia em geral.
O debate sobre a educação a partir desses “novos achados” tem
implicações sobre o currículo escolar, o livro didático, o papel da esco-
la e, sobretudo, a prática pedagógica do professor. Acham-se todos sob
a ameaça de um retorno ao passado, com suas concepções caducas e
amarrotadas, supostamente consideradas superadas.
No âmbito da esfera parlamentar, temos os recentes depoimen-
tos do deputado federal Jair Messias Bolsonaro, do Partido Progressista
(PP) do Rio de Janeiro, contra o atual currículo escolar que, na sua ava-
liação, segue a orientação do chamado “kit gay na escola” – uma alusão
ao caderno “Escola sem Homofobia” –, que estimularia “precocemente”
as crianças para a atividade sexual, “pervertendo-as” desde cedo e indu-
zindo meninas a gostarem de meninas, e meninos de meninos.1
Ao lado disso, assistimos, nos últimos tempos, a frequentes ata-
ques aos livros didáticos, notadamente os de História, descritos como
marxistas pelo fato de não difundirem a concepção a-histórica que é
baseada no culto aos heróis, às datas e fatos históricos – uma tendência
passada predominante no conteúdo histórico –, em contraposição à his-
tória real, aquela produzida pelos homens reais em suas relações sociais
de produção da existência humana.
Como afirmam Marx e Engels na obra A ideologia alemã, esta
concepção de história tem sido
sempre escrita segundo um padrão situado fora dela; a pro-
1 Cf https://www.facebook.com/groups/384578024926576/
permalink/1090564737661231/
dução real da vida aparece como algo pré-histórico, enquanto
o elemento histórico aparece como algo separado da vida co-
mum, como algo extra e supraterreno. Com isso, a relação dos
homens com a natureza é excluída da história, o que engendra
a oposição entre natureza e história. Daí que tal concepção veja
na história apenas ações políticas dos príncipes e dos Estados,
lutas religiosas e simplesmente teoréticas e, especialmente, que
ela tenha de compartilhar, em cada época histórica, da ilusão
dessa época. (MARX; ENGELS, 2007, p. 44-45, grifos do autor).
142
"Escola Livre" e "Sem Partido": A Internacionalização da Lógica do Capital
143
em eliminar definitivamente os critérios objetivos de realidade e, sob o
comando do neopositivismo, nega a relação da ciência com a realidade
e assume
uma posição de perfeita neutralidade em todas as questões
relativas à concepção de mundo, de deixar simplesmente em
suspenso todo o ontológico e de produzir uma filosofia que re-
move por completo de seu âmbito o complexo de problemas re-
ferente àquilo que é em si, tomando-o como pseudoproblema,
irrespondível por princípio. (LUKÁCS, 2013, p. 53-54).
144
"Escola Livre" e "Sem Partido": A Internacionalização da Lógica do Capital
145
divisória entre interesses de classes antagônicas, só pode ser encontrada
na análise ontológica de Marx e Engels que, partindo de sua gênese e de-
senvolvimento, encontraram a solução cabal para o problema: a extinção
do Estado, possível apenas com a superação do capital.
Todavia, esta tese, atualmente considerada “fora de moda”, tem so-
frido um grande influxo, sobretudo a partir da avaliação das experiências
revolucionárias de 1917, sob a compreensão de que com o advento desta
nova ordem societária, o chamado “Estado proletário” se efetivou.
Mas o Estado não é um ente abstrato, uma instituição exterior à
sociedade, como pretendem o Programa “Escola Livre” e a “Escola sem
Partido”; ao contrário, é totalmente integrado ao mundo dos homens.
A gênese do Estado, como demonstrou Engels (2012), não se con-
funde com a origem da humanidade, da sociedade, estando atrelada à
origem da propriedade privada. A sociedade comunal ou primitiva não
conheceu o Estado, o que significa dizer que ele era absolutamente desne-
cessário para aquela sociedade porque nela não existiam interesses anta-
gônicos e classes sociais, já que a propriedade era social, coletiva.
O Estado só surge quando o excedente do trabalho passa a ser apro-
priado por poucos indivíduos que não trabalham e cujo sentido maior da
vida passa a ser a acumulação privada dos bens socialmente produzidos.
Historicamente, nas sociedades de classes, o Estado tem sido um
instrumento poderoso, um órgão de regulamentação necessário aos mo-
dos de produção.
Com o surgimento do modo de produção escravocrata, a aquisição
da riqueza passou a ser uma das principais finalidades da vida. Como diz
Engels (2012, p. 212), “Uma sociedade desse gênero não podia subsistir
senão em meio a uma luta aberta e incessante das classes entre si”. Assim,
sob o domínio de um poder situado aparentemente por cima das classes
em luta, surge o Estado, buscando suprimir os conflitos de classes.
Na sua essência, o Estado também não se diferenciou no modo
de produção feudal, uma vez que enquanto na sociedade antiga ele “foi
o Estado dos senhores de escravos para manter os escravos subjugados”
(ENGELS, 2012, p. 216), no modo de produção feudal ele “foi o órgão de
que se valeu a nobreza para manter a sujeição dos servos e camponeses
dependentes” (Idem, ibidem). No modo de produção capitalista, o Esta-
146
"Escola Livre" e "Sem Partido": A Internacionalização da Lógica do Capital
147
prática e teoricamente o idealismo lógico-ontológico de Hegel.
Embora Marx tenha superado o idealismo hegeliano, Lukács ob-
serva que ele se apropriou das contribuições de Hegel para fundar a nova
ontologia. A descoberta de Hegel foi conceber a ontologia como uma his-
tória, em oposição a uma ontologia religiosa. Para Hegel, o homem era o
criador de si mesmo. Mas se Marx parte da premissa hegeliana do homem
como o criador de si mesmo, qual a diferença entre a ontologia de Marx e
a ontologia de Hegel?
Lukács responde que Marx afasta o elemento lógico-dedutivo e, no
desenvolvimento histórico, o elemento teleológico, o que faz com que seu
ponto de partida seja substantivamente diferente dos velhos materialistas
e de Hegel. Portanto, o ponto de partida de Marx não é dado pelo átomo,
como nos velhos materialistas; tampouco é dado pelo ser abstrato, como
em Hegel.
A perspectiva marxiana é radicalmente diferente do velho mate-
rialismo, tendo sido muitas vezes interpretada equivocadamente como se
fosse o velho materialismo. Isto gerou a falsa concepção de que Marx não
dava importância à consciência, apenas ao ser material.
No processo social, estes métodos de concepção da realidade bus-
cam exercer domínio sobre o pensamento filosófico e o mundo da práxis,
conforme o autor advertiu; contudo, sendo o processo social determina-
do pelas contradições entre classes, a concepção hegemônica acaba sen-
do daquela que ocupa um lugar privilegiado no processo de reprodução
social, a burguesia. Assim, o apelo à neutralidade é uma necessidade de
imposição da burguesia às demais classes.
Como diz Lukács,
O positivismo e, sobretudo, o neopositivismo ocupam [...] um
lugar especial somente na medida em que aparecem com a pre-
tensão de assumir uma posição de perfeita neutralidade em to-
das as questões relativas à concepção de mundo, de deixar sim-
plesmente em suspenso todo o ontológico e de produzir uma
filosofia que remove por completo de seu âmbito o complexo
de problemas referente àquilo que é em si, tomando-o como
pseudoproblema, irrespondível por princípio [...]. (LUKÁCS,
2012, p. 53, grifo nosso).
148
"Escola Livre" e "Sem Partido": A Internacionalização da Lógica do Capital
149
realizada por uma consciência – que, embora as guie em determinada
direção, pode movimentar apenas séries causais (LUKÁCS, 1978, p. 6).
Ocorre que as filosofias anteriores não reconheciam a posição tele-
ológica e inventavam um sujeito transcendente e uma natureza especial,
implicando com isto uma forma de atribuir à natureza, e à sociedade,
desenvolvimentos puramente teleológicos.
Na contramão deste pensamento, surge a ontologia marxista, com
a tarefa, segundo Lukács, de buscar a gênese e as contradições do de-
senvolvimento social, ao defender que o homem, produtor e produto da
sociedade, pode elevar-se, tornando-se um ser consciente de si mesmo.
O problema é que, na opinião do pensador húngaro, as ideologias,
em sua grande maioria, estiveram e estão a serviço da conservação e do
desenvolvimento da adequação ao gênero em si. Por isto coloca-se a ne-
cessidade de uma grande filosofia, de uma grande arte e de alguns indi-
víduos que, em suas ações, contribuam a fim de formar para a liberdade,
para o fazer-se homem do homem.
Neste sentido, a educação tem um papel importante porque, como
dito anteriormente, possui como função internalizar, nos indivíduos, a
legitimação da ordem social, buscando formas de condutas “certas”, indu-
zindo-os a adotar a perspectiva global da sociedade mercantilizada com o
fim de atingir aspirações necessárias ao sistema produtor de mercadorias.
Estas concepções servem grandemente de sustentáculo ao debate
educacional da atualidade, o que faz emergir a necessidade de outra for-
ma de conceber a educação e sua relação com a sociedade.
150
"Escola Livre" e "Sem Partido": A Internacionalização da Lógica do Capital
151
compreensão da particularidade das categorias mais complexas”, criando
entre as categorias fundadas e fundantes uma falsa hierarquia (op. cit., p.
117).
Lukács esclarece o significado do materialismo na ontologia crítica
marxista e afirma o seguinte: 1º) não apenas ela é purificada do turva-
mento provocado por categorias lógicas e gnosiológicas; 2º) como tam-
bém ocorre a separação inequívoca de pontos de vista ontológicos e pon-
tos de vista axiológicos.4
A velha ontologia tentou substituir filosoficamente uma religião
em decadência – a ontologia da Antiguidade –, tendo sido desenvolvida
diretamente a partir de pressupostos teológicos, a exemplo da ontologia
da escolástica, criando uma gradação hierárquica das formas do ser: o Ser
supremo (Deus), considerado o mais autêntico dos seres; portanto, Deus
constitui o ápice da hierarquia universal.
Para Lukács (2013, p. 196), “o materialismo histórico só adquire
a sua necessidade interna, a sua fundamentação cientificamente sólida,
com base numa ontologia materialista dialética”.
Portanto, a ontologia do ser social contradiz algumas tradições fi-
losóficas veneradas, que tomaram como ponto de partida os fenômenos
mais complexos, extremamente desenvolvidos, examinados isoladamen-
te nas dimensões metafísica, lógica e gnosiológica.
Em decorrência da natureza de tais perspectivas, Lukács (2013, p.
369) conclui que “jamais conseguiram avançar até a sua gênese, até o fun-
damento real do seu ser – até a chave para a sua decodificação ontológica”.
Uma vez definido o que é o ser social, Lukács passa a esclarecer a
especificidade do ser social, a partir de sua gênese: “um ser social só pode
surgir e se desenvolver sobre a base de um ser orgânico”. E prossegue:
“[...] entre uma forma mais simples de ser [...] e o nascimento real de
uma forma mais complexa, verifica-se sempre um salto; essa forma mais
complexa é algo qualitativamente novo, cuja gênese não pode jamais ser
simplesmente ‘deduzida’ da forma mais simples” (LUKÁCS, 1978, p. 3,
grifo nosso). Após o salto ontológico, a nova forma de ser se aperfeiçoa e
4 O livro de Ivo Tonet Método científico: uma abordagem ontológica (São
Paulo: Instituto Lukács, 2013) apresenta uma discussão bastante esclarecedora
sobre esta questão.
152
"Escola Livre" e "Sem Partido": A Internacionalização da Lógica do Capital
153
os acontecimentos, a começar por aqueles do seu cotidiano. Repetindo
Lukács (1978), “o homem é um ser que dá resposta”.
Analisando o uso da expressão a partir das concepções que ela
carrega em si, diríamos que a “Escola sem Partido” é a mais autêntica
representação dos ideais burgueses no campo da educação nos marcos
do capitalismo atual. Já quanto ao termo “Escola Livre”, temos aí o mais
grotesco falseamento da categoria liberdade. A escola passará a ser livre
de quê? Das concepções marxistas supostamente transmitidas no seu in-
terior por alguns professores?
Na verdade, isto não passa de um “método de manipulação” que
consiste em simular “para o homem manipulado a aparência consciente
de sua liberdade plenamente realizada” (LUKÁCS, 2013, p. 793).
A crítica aos marxistas por não concordarem com a “Escola Livre”
e a “Escola sem Partido”, baseada na justificativa de que eles são contra os
alunos terem acesso a diversas concepções de mundo, não passa de uma
visão completamente distorcida, equivocada e rebaixada do horizonte
marxista.
Autores como Lenin, e mais contemporaneamente, Lukács, em-
penharam-se na tarefa de resgatar o verdadeiro estatuto ontológico da
teoria social de Marx.
Se alguém que se diz seguidor do marxismo afirmar que o único
conhecimento válido é aquele produzido por Marx, está completamente
enganado ou se acha a rebaixar o estatuto ontológico marxiano.
Como esclarece José Paulo Netto, Marx:
[...] deixa bem claro que o conhecimento rigoroso da sua pro-
dução material não basta para esclarecer a riqueza das relações
sociais que se objetivam no marco de uma sociedade assim
complexa [...]. (NETTO, 2011, p. 38, grifo do autor).
154
"Escola Livre" e "Sem Partido": A Internacionalização da Lógica do Capital
5 Sobre esta questão, sugerimos o texto de Tonet, “Pluralismo metodológico: falso
caminho” (Edufal, 1997).
155
atividade docente?
O debate sobre política, religião, política partidária, racismo, entre
tantos outros temas, está presente na escola porque isto está posto na so-
ciedade e a escola é parte integrante da sociedade. O processo de luta de
classe que se desencadeia na sociedade reflete na escola; daí que alunos e
professores acabam se posicionando em face dos acontecimentos.
A escola é também espaço de formação e, neste sentido, posições
diversas acerca das questões postas pela sociedade também se desenvol-
vem, expressando conteúdos de classes radicalmente distintos. Isto por-
que a sociedade atual é marcada por um profundo antagonismo.
Por fim, concluímos, com Marx e Engels (2007, p. 43), que “não é
a crítica, mas a revolução a força motriz da história e também da religião,
da filosofia e de toda forma de teoria”. A crítica à educação atual, embora
pertinente, é insuficiente para resultar numa mudança substantiva neces-
sária e possível.
REFERÊNCIAS
http://reporteralagoas.com.br/novo/as-razoes-da-inconstitucionali-
dade-do-projeto-de-lei-escola-livre/http://ricardonezinho.com.br/
wp-content/uploads/2016/01/Projeto-Lei-escola-livre.pdf
Alagoas aprova Escola Livre de autoria de Ricardo Nezinho. Disponível em:
http://cadaminuto.com.br/blog/blog-do-vilar/278489/2015/11/19/ala-
goas-aprova-escola-livre-de-autoria-de-ricardo-nezinho. Acesso em: no-
vembro de 2015.
Assembleia Legislativa aprova projeto que institui o Programa Escola Livre. Disponível em:
http://aquiacontece.com.br/noticia/2015/11/17/assembleia-legislati-
va-projeto-que-institui-o-programa-escola-livre. Acesso em: novembro
de 2015.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade e do Estado. 3. ed.
Tradução de Leandro Konder. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
LUKÁCS, George. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do
homem. In: Temas de Ciências Humanas. São Paulo: Livraria Editora
Ciências Humanas, n. 4, 1978, p. 1-18.
LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. Tradução Nélio Schneider, Ivo
156
"Escola Livre" e "Sem Partido": A Internacionalização da Lógica do Capital
157
O PROJETO DE EDUCAÇÃO DA CLASSE
TRABALHADORA NA SOCIABILIDADE
CAPITALISTA: UMA ANÁLISE CRÍTICA
NO CENÁRIO BRASILEIRO
162
O Projeto de Educação da Classe Trabalhadora na Sociabilidade Capitalista
163
cado. A finalidade é profissionalizar os filhos dos trabalhadores através
de inúmeras escolas técnicas e de seus cursos profissionalizantes de curto
prazo, cabíveis no bolso dos trabalhadores. Estes servem para a obtenção
de um conhecimento básico e técnico, a fim de que esses sujeitos possam,
talvez, assumir uma função na rede de divisão social do trabalho.
A partir das mudanças na organização da produção, é possível
dizer que as alterações ocorridas no ensino brasileiro visam atender à
demanda produtiva do capital. Conforme Santos (2007, p. 41), “o debate
acerca da formação para o trabalho vai aparecer de forma pública e can-
dente no cenário político brasileiro durante o período da transição do
trabalho escravo para o trabalho livre”. Nesse período, havia por parte da
burguesia uma crítica ao governo, em relação ao descaso com a prepara-
ção da força de trabalho subserviente ao capital.
É apenas no início do processo de industrialização que se explicita
no país a necessidade de se pensar a formação do trabalhador para lidar
com o processo mecanizado. Assim, propunha-se uma formação que:
Deveria abarcar três dimensões: a instauração de um clima
favorável ao estabelecimento das relações sociais de produção
que se inauguravam (um ethos), a naturalização de uma forma
de organização e execução do trabalho de marca industrial (um
modus), mesmo que faltasse a essa mão-de-obra o domínio dos
princípios científicos do trabalho, visto o predomínio de tarefas
de conteúdo simples e de fácil assimilação (um sapere). (Id.,
2007, p. 43-44, grifos do autor).
164
O Projeto de Educação da Classe Trabalhadora na Sociabilidade Capitalista
165
do Estado o encargo de formar cidadãos”, o que contribuía para a forma-
ção de uma força de trabalho desqualificada (Ibid., p. 4). Dessa maneira,
o Estado formulou a Política Nacional de Educação de acordo com os
interesses internacionais do mercado, transformando o ensino em uma
atividade técnica e “desqualificada”.
Com a aprovação da LDB 9.394/96 abre-se um processo progres-
sivo de obrigatoriedade com a educação básica e o ensino médio passa
a ser obrigatório. Saviani (2009), ao tratar da organização do ensino na
LDB 9.394/96, assevera que, “no fundamental, a estrutura anterior [da
lei 5.692/71 se manteve], apenas alterando a nomenclatura ao substituir
as denominações de ensino de 1º e 2º graus, respectivamente por ensino
fundamental e médio” (Id., 2009, p. 36).
Saviani acrescenta que a nova LDB não conseguiu eliminar o dua-
lismo no ensino:
A persistência desse dualismo pode ser notada na política edu-
cacional resultante da nova LDB não apenas quando, na refor-
ma do ensino médio, se separa o ensino técnico do ensino mé-
dio de caráter geral e quando se advogam no ensino superior os
centros de excelência destinados a ministrar às elites um ensino
de qualidade articulado com a pesquisa, em contraste com as
instituições que ofereceriam ensino sem pesquisa. Esse dualis-
mo se manifesta também no entendimento fundamental ao se
propor para a rede pública um ensino aligeirado, avaliado pelo
mecanismo da promoção automática e conduzido por profes-
sores formados em cursos de curta duração. (Ibid., p. 37).
166
O Projeto de Educação da Classe Trabalhadora na Sociabilidade Capitalista
167
cia histórica da consolidação do capitalismo industrial. De um
lado, o desenvolvimento das forças produtivas demandava
trabalhadores com um mínimo de preparo intelectual e social
para ocuparem as diferentes funções nos centros produtivos.
Por outro lado, o ideário moderno de construção de uma ou-
tra ordem social implicava a formação de um novo homem.
Assim, a escolarização passa a ter um papel fundamental para
a construção de uma sociedade aberta, em contraposição à so-
ciedade cristalizada e fechada do modo de produção feudal.
(Id., 2008, p. 90).
168
O Projeto de Educação da Classe Trabalhadora na Sociabilidade Capitalista
169
soluções para uma melhor distribuição do que se gera com o
lucro.
170
O Projeto de Educação da Classe Trabalhadora na Sociabilidade Capitalista
171
mo considerando a diversidade existente de situações e postu-
ras por parte dos jovens em relação ao trabalho. (Ibid.).
172
O Projeto de Educação da Classe Trabalhadora na Sociabilidade Capitalista
173
Para os jovens que dispõem de pouca escolaridade, as oportunida-
des escolares são ofertadas por meio de programas do governo federal,
como Brasil Alfabetizado e Projovem Urbano. São programas desarticu-
lados, de baixa escolaridade e que reproduzem as desigualdades sociais. É
por meio desses programas que o governo diz estar construindo a política
pública de escolarização e qualificação da juventude. Esses programas são
patrocinados com receita federal, mas são executados por meio dos mu-
nicípios e estados.
Os programas de formação escolar e profissional ofertados atual-
mente à juventude são: Projovem Urbano e Projovem Urbano nas Pri-
sões, ambos sob o comando da Secretaria da Juventude; Projovem Cam-
po; Programa Brasil Alfabetizado; Proeja; EJA nas prisões. Esses seis
programas estão sob a responsabilidade do Ministério da Educação. Há
ainda o Pronera, supervisionado pelo Ministério do Desenvolvimento
Agrário (Ibid.).
São programas pontuais, com caráter desarticulador da política
nacional de educação; neles, muitos jovens transitam, mas não conse-
guem fazer relação com o ensino regular. Em vez de se promover uma
política de qualificação articulada com a escola, dificulta-se a apropriação
do saber integral. Esses programas evidenciam uma desarticulação típica
da política neoliberal assistencialista para os jovens carentes.
Segundo Corrochano (2011), as mudanças ocorridas no mundo
do trabalho nas últimas três décadas têm afetado a relação do jovem com
o emprego nos países centrais; essas mudanças têm alterado não só a en-
trada da juventude na vida adulta, mas também têm aumentado a preca-
rização nas relações de trabalho:
Uma série de acontecimentos das três últimas décadas, nesses
mesmos países [os centrais], acrescentou complexidade a esse
fenômeno [passagem da juventude para a vida adulta], tanto
do ponto de vista empírico quanto do ponto de vista analítico.
Assim, se as transformações juvenis tornaram-se mais comple-
xas, as mutações no universo do trabalho assumem um lugar,
ainda que não único, bastante significativo nesse processo: não
apenas as jovens gerações são mais fortemente atingidas pelo
desemprego e pela precarização dos postos de trabalho, como
também mobilizam um conjunto de respostas de suas institui-
174
O Projeto de Educação da Classe Trabalhadora na Sociabilidade Capitalista
Considerações Finais
175
A partir do que foi discutido é perceptível que a educação nos mol-
des da produção capitalista produz um dualismo no processo de forma-
ção. A classe trabalhadora vem sendo instruída para atender às demandas
do sistema produtivo vigente, visando à formação de uma força de traba-
lho precarizada e alienada para a divisão social do trabalho. Já os filhos
da burguesia são formados para assumir os futuros postos de comando.
Através dos diversos programas assistencialistas do Estado bur-
guês, a formação dos jovens trabalhadores vem sendo estruturada de
modo desigual, o que tem acentuado o caráter da divisão de classe.
Constata-se a urgência de transcender a lógica capitalista e cons-
truir uma alternativa de educação para além do capital: uma educação
que projeta uma ordem social qualitativamente diferente (MÉSZÁROS,
2008) e que desenvolva as potencialidades existentes no ser humano, e
não apenas as capacidades para o trabalho.
Enfatiza-se a importância de uma educação que aprimore os sujei-
tos para a vida social e para o processo de formação humana, ofertando
uma formação que não se produz estritamente nos aparatos burocráticos
de ensino, mas que se materializa na vida, no cotidiano e nas relações
sociais. Enfim, uma educação que contribua para as transformações radi-
cais da sociedade e que transcenda a manutenção do processo de valori-
zação da reprodução capitalista.
REREFÊNCIAS
176
O Projeto de Educação da Classe Trabalhadora na Sociabilidade Capitalista
177
SANTOS, G. S. A formação do ser social trabalhador no Brasil: ethos, modus e
sapere. In: SANTOS, G. S. (Org.). O estado da arte da formação do tra-
balhador no Brasil. Cascavel: EDUNIOESTE, 2007.
SANTOS NETO, A. B. Educação e trabalho. In: A. B. Universidade, ciência e
violência de classe. São Paulo: Instituto Lukács, 2014.
SAVIANI, D. A política educacional no Brasil. In: STEPHANOU, M.; BASTOS,
M. H C. Histórias e memórias da educação no Brasil. 3. ed. Petrópolis,
Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
178
A REIFICAÇÃO DA VIDA COTIDIANA
DOS HOMENS: UM PROCESSO DE CO-
OPTAÇÃO DA SUBJETIVIDADE DA
CLASSE TRABALHADORA PELA VIA DA
(DE) FORMAÇÃO HUMANA
Neila Reis
Professora da UFAL/Campus Arapiraca
Introdução
182
A Reificação da Vida Cotidiana dos Homens
183
mens também se transformem, e essa articulada transformação
da natureza e dos indivíduos permite a constante construção de
novas situações históricas, de novas relações sociais, de novos
conhecimentos e habilidades, num processo de acumulação
constante. [...] É esse processo de acumulação de novas situa-
ções e de novos conhecimentos que faz com que o desenvolvi-
mento do ser social seja ontologicamente (isto é, no plano do
ser) distinto da natureza. (LESSA; TONET, 2008, p. 26).
184
A Reificação da Vida Cotidiana dos Homens
185
Ao lado das necessidades e interesses para cuja defesa as cor-
porações gentílicas tinham competência e poder, a revolução
nas relações econômicas e a consequente diferenciação social
haviam criado novas necessidades e novos interesses, não só
estranhos, mas até opostos, em todos os sentidos, à antiga or-
dem da gens. Os interesses dos grupos de artesãos, surgidos em
virtude da divisão do trabalho, e as necessidades específicas da
cidade, em oposição às do campo, exigiram novos órgãos. (EN-
GELS, 1987, p. 189).
186
A Reificação da Vida Cotidiana dos Homens
187
Capital, Estado, Políticas Educacionais em tempos de crise e sua
reprodução no cotidiano dos homens na sociabilidade burguesa
188
A Reificação da Vida Cotidiana dos Homens
189
dual que logre cancelar a cotidianidade. O processo de homogeneização
não é algo meramente subjetivo, mas sim um processo de reprodução de
objetivações homogêneas. Essa pausa da cotidianidade pode dar-se pelo
trabalho criador, pela arte e pela ciência.
Esses complexos vão, segundo Netto (2012, p. 70), destacar-se das
objetivações cotidianas por “um longo processo histórico de complexa
diferenciação, adquirindo autonomia e legalidade próprias – processo
que, em si mesmo, é o da constituição do ser social”.
A partir dessa tensão dialética que se estabelece no cotidiano com
a sua breve pausa, o ser social, ao retornar à sua vida cotidiana, não volta
da mesma forma como se encontrava anteriormente. É um ser social mais
consciente da dimensão humano-genérica que, segundo Lukács (1966),
encontra-se subsumida à dinâmica do cotidiano.
Na vida cotidiana, o homem atua sempre no âmbito da singulari-
dade, como um homem inteiro. O ser social só pode superar a dimensão
da singularidade quando ascende à consciência humano-genérica e ob-
tém a possibilidade de objetivar um agir menos instrumental e, portanto,
mesmo imediato. Nesse sentido, o ser social se faz inteiramente homem,
sendo a particularidade o elemento de mediação entre o singular e o uni-
versal.
O cotidiano é uma condição inseparável do ser social; não exis-
te ser social sem cotidianidade e não pode existir cotidianidade sem o
homem. É na ontologia da vida cotidiana que os homens produzem e
reproduzem sua existência.
Carvalho (2012, p. 24), sobre a questão da vida cotidiana, afirma
que na “cotidianidade o homem se põe numa superficialidade fluida, ati-
va e receptiva que mobiliza sua atenção”. Para Heller (1985), o cotidiano é
a vida de todos os dias e de todos homens em qualquer tempo histórico.
Na vida cotidiana o maior desafio é a passagem do homem inteiro para o
inteiramente homem, que se caracteriza por uma unidade consciente do
particular e do genérico.
A vida cotidiana é o palco da produção e da reprodução da existên-
cia dos homens, em que o pensamento e a ação são guiados pelo prático,
pelo útil; o ser social vê-se como uma unidade singular e não como um
ser humano-genérico. Trata-se de um campo de grande importância para
190
A Reificação da Vida Cotidiana dos Homens
191
gular, para o ser humano-genérico?
Primeiro, devemos compreender a educação como um complexo
ontológico. Segundo Lukács (2010, p. 294), a educação é “um processo
puramente social, um formar e ser-formado puramente social”; também
sobre a educação, o filósofo húngaro (2010, p.295) observa que “a educa-
ção do homem é direcionada para formar nele uma prontidão para deci-
sões alternativas de determinado feitio”. Nesse caso, Lukács (2010) pensa
a educação em seu sentido amplo e não no seu sentido restrito, como
predomina na sociabilidade burguesa, no qual a função da educação é de
ordem unilateral, pois objetiva apenas o desenvolvimento de um conjun-
to de competências tecnicistas e pragmáticas para a formação da classe
trabalhadora e de seus filhos.
Do ponto de vista da política, Lukács (2010), em sua obra A onto-
logia do ser social, assevera que
não pode haver nenhuma comunidade humana, por menor
que seja, por incipiente que seja, na qual e em torno da qual não
aflorassem ininterruptamente questões que, num nível desen-
volvido, habituamo-nos a chamar de política. É impossível dar
uma definição, isto é, fixar em termos de pensamento formal os
limites, onde começa ou então termina a política. (LUKÁCS,
2010, p. 502).
192
A Reificação da Vida Cotidiana dos Homens
193
burguês, o Ministério da Educação (MEC) do governo golpista anunciou
a Medida Provisória nº 746, de 22/9/2016, que propõe uma reforma na
matriz curricular do ensino médio. Tal reforma traz a volta da dicotomia
entre a formação geral humanista e a formação profissionalizante, que já
havia sido proposta pelo governo FHC com o Decreto 2.208/97. Mas vai
adiante, quando propõe a separação entre as bases comuns nacionais e as
áreas de ênfase do conhecimento, entre elas a linguagem, a matemática e
as ciências humanas e da natureza e o ensino técnico profissional, além
da retirada de várias disciplinas da formação da classe trabalhadora.
Essas ações governamentais visam exclusivamente promover um
ajuste fiscal que favoreça a expansão e a reprodução do capital, com a
retirada dos direitos sociais da classe trabalhadora. Isso inclui, no caso
do Brasil, a reforma da Previdência e o fim da Consolidação das Leis
Trabalhistas (CLT), ampliando o processo de precarização do trabalho e
do trabalhador.
Do ponto de vista das políticas educacionais, o alto controle dos
espaços escolares, sobretudo em tempos de crise do capital, objetivando
uma formação unilateral e promovendo um processo de criminalização
da prática docente, pela via do projeto da escola sem partido. Chamam a
isso de “doutrinação”. É bom lembrar que a “doutrinação” só se dá quan-
do se coloca contra a ordem dominante.
Esse ataque aos direitos da classe trabalhadora que presenciamos
no Brasil após o golpe jurídico-parlamentar tem enfrentado profunda re-
sistência dos movimentos sociais, principalmente o movimento Ocupa
Tudo. Trata-se da Primavera Secundarista, que tem ocupado as escolas
secundaristas, as universidades e outras instituições públicas, como es-
tratégia dos movimentos sociais para promover ações concretas de resis-
tência ao arrocho fiscal que o governo golpista quer impor à classe traba-
lhadora. Essa ofensiva do capital é vivenciada na cotidianidade, marcada
por uma superficialidade extensiva e por uma imediaticidade que levam
os homens a considerar o somatório dos fenômenos sem levar em conta
as relações que os vinculam.
À medida que as relações sociais capitalistas tendem a supervalori-
zar a superficialidade e a imediaticidade da vida cotidiana, o aparato jurí-
dico-ideológico cumpre um papel fundamental na construção de valores
194
A Reificação da Vida Cotidiana dos Homens
Considerações Finais
195
REFERÊNCIAS
196
PA R T E I I I
O S L I M I T E S D O E STA D O E A
P E R S P E C T I VA E M A N C I PA D O R A
D E E D U CAÇ ÃO
REFLEXOS E DESDOBRAMENTOS
DA EXPERIÊNCIA COM O PETISMO:
AS REFORMAS QUE NÃO VIERAM
E OS DILEMAS DA ESTRATÉGIA
SOCIALISTA NO BRASIL
Juary Chagas1
Doutorando em Serviço Social pela UFRN
1 Autor do livro Nem classe trabalhadora, nem socialismo: o PT das origens aos
dias atuais, publicado pela Editora Sundermann (2014).
Reflexos e desdobramentos da experiência
com o Petismo: As reformas que não vieram e
os dilemas da estratégia socialista no Brasil
202
Reflexos e Desdobramentos da Experência com o Petismo
203
não é um salto no escuro. “Os homens fazem sua própria história, mas
não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha
e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e transmiti-
das pelo passado” (MARX; ENGELS, s. d. a, p. 203). Por isso, Marx não
concebe a possibilidade de saltar do capitalismo diretamente para uma
sociedade sem classes, sem que antes houvesse um período transitório de
dominação sobre a classe desalojada do poder, ou seja, sem que a classe
produtora (os trabalhadores) tomasse para si o poder político e o controle
sobre os meios de produção.
Essa luta, materializada na revolução socialista, obrigaria a classe
ascendente ao poder a construir uma ferramenta transitória de domina-
ção para impedir a contraofensiva da burguesia. Essa revolução necessita
também de “um período político de transição, cujo Estado não pode ser
outro senão a ditadura revolucionária do proletariado” (Idem, s. d. b,
p. 221, grifo do autor), rigorosamente necessário para alcançar a nova
sociedade, uma vez que será preciso que exista um poder organizado ca-
paz de, inicialmente, edificar uma máquina de opressão – como qualquer
aparelho estatal – que impeça as agressões das outras nações capitalistas
onde a revolução ainda não se deu e, por outro lado, impulsione a expe-
riência de poder dos trabalhadores para todo o mundo, até que toda a
exploração seja superada e, a partir da dissolução das classes, seja possível
disseminar e concretizar os valores comunistas.
Já em meados da década de 1980, esta estratégia era objeto de
profundas polêmicas no PT. Pode-se considerar o V Encontro Nacional
como um marco no que diz respeito a esses debates no interior do par-
tido. Duas pressões sociais determinaram o rumo das discussões desse
encontro, com resultantes contraditórias: o ascenso de massas, tendo à
dianteira o movimento sindical com protagonismo da CUT, e o desgaste
do governo Sarney. Enquanto o ascenso pressionava o PT para dar des-
taque às lutas e aos objetivos estratégicos, o declínio do governo Sarney
animava as possibilidades de o PT, que crescia em autoridade perante as
massas, consolidar-se como uma alternativa eleitoral viável.
Essas pressões aprofundaram uma divisão interna que já existia
no PT desde a sua fundação. De modo esquemático, era possível iden-
tificar que entre os grupos e correntes que se destacaram no interior do
204
Reflexos e Desdobramentos da Experência com o Petismo
2 Aqui é importante destacar que dentro do subconjunto das correntes trotskistas
também não existia homogeneidade e nem sempre todos os grupos ali presentes se
mantiveram no campo da revolução. Ao longo da trajetória do PT, algumas dessas
correntes oscilaram em diversos momentos entre posições no campo da revolução e
da reforma.
3 Articulação é uma corrente interna do PT que se “oficializou” em 1983, a partir
da elaboração do Manifesto dos 113, mas que já tinha atuação política desde a fundação
do partido, ao redor dos setores que atuavam nos sindicatos, nas Comunidades Eclesiais
de Base e num setor da intelectualidade. Apesar da boa variedade de correntes no PT,
com exceção de períodos muito curtos, a Articulação praticamente ocupou uma posição
hegemônica dentro do partido durante toda a sua história – inclusive nos dias atuais,
sob o nome Construindo um Novo Brasil.
205
[...] o cumprimento da tarefa estratégica é inconcebível sem a
mais ponderada atenção a tudo, mesmo às questões táticas pe-
quenas e parciais. [...] À medida que as velhas reivindicações
parciais, “mínimas” das massas se chocam com as tendências
destrutivas e degradantes do capitalismo decadente – e isto
ocorre a cada passo –, a IV Internacional levanta um sistema
de reivindicações transitórias, cuja essência reside no fato de
que, cada vez mais aberta e resolutamente, elas estarão diri-
gidas contra as próprias bases do sistema burguês [...]. (Idem,
ibidem, p. 17-18, grifo nosso).
206
Reflexos e Desdobramentos da Experência com o Petismo
207
a uma única e só conclusão de caráter pedagógico: as principais reivin-
dicações dos trabalhadores só poderão ser plenamente atendidas quando
estes estiverem no poder.
O programa democrático-popular, por sua vez, não estabelece essa
ponte entre a conquista das reivindicações e a questão do poder. Ao con-
trário, a negação da consigna do poder para os trabalhadores em detri-
mento da defesa de “um governo que execute um programa, democrá-
tico, popular e anti-imperialista” traz subliminarmente a crença de que
esse governo não necessariamente precisaria ser dirigido e controlado pela
classe trabalhadora, para que tais reivindicações fossem atendidas. Em
outras palavras, para executar um programa avançado de reformas que
se choquem com a ordem capitalista (e, portanto, com um caráter “so-
cialista”), a luta para acumular forças tendo como objetivo a conquista do
poder poderia ficar para um futuro indefinido.
Ora, se para o atendimento dessas reivindicações bastaria “um go-
verno que executasse esse programa”, sem caráter de classe definido, por
que não acreditar que essa execução poderia ser feita por um governo
“eleito democraticamente” e que tivesse maioria do PT?
Se basta um governo que “conceda tais reivindicações”, sem deli-
mitar que tipo de governo poderia de fato concretizar esses compromis-
sos, para que mobilizar para, por exemplo, derrubar governos, se a força
das mobilizações, em tese, poderia “empurrá-los para a esquerda”, dentro
das regras da institucionalidade? Se não é preciso um governo de traba-
lhadores para executar um programa “democrático e anti-imperialista”,
qual a razão para não buscar pactos com a burguesia “democrática e não
imperialista”?
É importante destacar que até aquele momento, a Articulação ain-
da não havia defendido publicamente que eram estas as estratégias em
que apostava. Igualmente, as reivindicações e as consignas programáticas
progressivas, que de fato se chocavam com as bases do capitalismo (como
a reforma agrária sob o controle dos trabalhadores, a estatização do siste-
ma financeiro etc.), também foram mantidas no programa do PT.
Entretanto, a indefinição havia sido plantada. Levantar o conjunto
dessas reivindicações, que em sua quase totalidade conservaram o caráter
das consignas apresentadas pelo PT das origens, unificava praticamente
208
Reflexos e Desdobramentos da Experência com o Petismo
209
naquele momento não anulava o fato de que sua constituição teórica era
suficientemente ampla para ser ajustada a qualquer estratégia.
É um programa que pode se mostrar como aparentemente radical,
porque conserva praticamente todas as reivindicações mais vitais que se
chocam com a base do sistema capitalista, mas, diferentemente de um
programa de transição, a conquista de tais reivindicações não dependeria
da “mobilização sistemática das massas em direção à revolução proletária”
(TROTSKY, 2008, p. 18), e sim da subida ao poder de um governo com o
mesmo caráter do programa (democrático-popular), não necessariamen-
te de caráter operário, e tampouco resultado da insurreição das massas.
Embora o PT na década de 1980 não expressasse claramente em
nenhuma resolução partidária que sua estratégia era eleitoral e de colabo-
ração de classes, na prática o programa democrático-popular não estabe-
lece óbice algum para a conquista de reivindicações de caráter socialista
com um governo de conciliação de classes e eleito pelo mecanismo da
democracia burguesa. No fim, é isto que prevalece.
O programa democrático-popular, por mais radicais que sejam
suas consignas, não define claramente que a conquista dessas reivindi-
cações só poderia se dar mediante um enfrentamento sistemático e que
colocasse como condição a luta estratégica pelo controle operário sobre o
Estado e os meios de produção/circulação; jamais somente com exigên-
cias ou tentando “empurrar para a esquerda” algum governo – que pode-
ria, segundo as formulações petistas, se estabelecer por meio de eleições
e que nem mesmo precisaria ser da classe trabalhadora.
O mais grave ainda é que, se um governo democrático-popular é
apresentado como a estratégia para conquistar as reivindicações antica-
pitalistas, mas a correlação de forças na sociedade e dentro desse governo
não permitir o atendimento dessas demandas, torna-se “legítimo” que o
programa seja flexibilizado.
Fica claro, portanto, que o programa democrático-popular nada
mais é do que a forma “radical” de uma estratégia reformista e potencial-
mente eleitoral, uma espécie de “transição da transição” com uma rou-
pagem de esquerda, mas que difunde a utopia reacionária (mesmo que
subliminarmente), da possibilidade de conquistar reivindicações antica-
pitalistas sem revolução. Este é o horizonte assumido pelo PT ainda em
210
Reflexos e Desdobramentos da Experência com o Petismo
211
prefeituras e depois dos governos de estado tomaram as rédeas do PT
durante os anos 1990. Quase todos adaptados e a maioria corrompidos,
impuseram ao partido a lógica da sua própria vivência: negociatas, ardis,
bastidores. A resolução dos problemas políticos não era mais encontrada
na capacidade de luta da classe, mas no poder de articulação institucio-
nal.
Reproduzindo essa mesma ideia, o PT usou a autoridade ante a
classe trabalhadora – conquistada com muitas lutas durante o ascenso
operário – como mecanismo de conquista de influência eleitoral e mo-
eda de troca na mesa da burguesia por meio das câmaras setoriais, do
ingresso nos conselhos de administração dos fundos de pensão etc. Com
o tempo, passou a receber as moedas diretamente da mão da burguesia,
na verdade milhões, para financiar campanhas eleitorais cada vez mais
alinhadas com os interesses capitalistas.
Tudo isso se desenvolvia de forma articulada com um rígido con-
trole da direção sobre o conjunto do partido. Era preciso garantir o livre
curso das transformações do PT, anulando a reação dos insatisfeitos e, ao
mesmo tempo, mantendo uma atmosfera de “democracia”, em que todos
podiam se manifestar, e na qual a posição do partido era sempre a de
quem tinha as melhores condições (estrutura, acesso à imprensa, aparato
etc.) para se fazer ouvir.
Além da maioria ativa do partido conquistada com o peso dos apa-
ratos, estabeleceram-se também mecanismos de manutenção burocrática
da hegemonia do núcleo dirigente nos espaços de deliberação. Começou
com a restrição do direito de tendências e desembocou num Processo de
Eleições Diretas (PED), tão semelhantes às eleições da democracia bur-
guesa a ponto de conferir poderosas vantagens a quem tem a maior es-
trutura – no caso, os dirigentes e os mandatos institucionais. O resultado:
dia após dia as mutações desencadeadas no PT iam se tornando cada vez
mais irreversíveis. A transformação de um partido que nasceu como um
projeto independente da classe trabalhadora para lutar por suas aspira-
ções não se deu de forma imediata, mas foi impressionante. Em menos
de vinte anos, o PT que animou as greves gerais na década de 1980 e en-
cabeçou campanhas como a Diretas Já! foi o mesmo (com quase a mesma
direção inclusive) que chegou atrasado no Fora Collor e o mesmo que se
212
Reflexos e Desdobramentos da Experência com o Petismo
213
Mas abordá-las é inescapável.
Com o PT há quase 15 anos à frente do Governo Federal, qual deve
ser a postura da esquerda marxista em face da aplicação do projeto de
poder incorporado pelo partido? Esta é uma primeira questão relevante.
O fato de o PT ter chegado ao poder pelas eleições, de cara, apre-
sentou contradições. A primeira delas é tratar-se de um governo de
conciliação de classes, ou seja, um acordo político e programático en-
tre setores da burguesia e também da classe trabalhadora. Uma outra,
e talvez das mais importantes, é que apesar de a base social do PT ser
majoritariamente trabalhadora, em 2002 (como já visto) o seu programa
já era uma espécie de social-liberalismo – inclusive mais regressivo que
o keynesianismo.
Colocar-se ou não ao lado de um governo desse tipo foi um dilema
posto já nos primeiros momentos pós-chegada do PT à Presidência da
República. Setores organizados da classe trabalhadora brasileira, influen-
ciados pelos braços sindicais petistas, chegaram ao ponto de nos primei-
ros anos de governo defender, publicamente, que “contra o PT não se faz
greve”. “Como posso enfrentar um governo que é meu?”, diziam. Naquele
momento inicial, a trajetória e o legado do PT faziam valer o seu peso. A
presença de um operário na presidência da República foi um elemento
real que transfigurava, no terreno das aparências, a ideia de que finalmen-
te havia se instituído um governo dos trabalhadores.
Pouco depois o governo “democrático-popular” mostraria seu ca-
ráter. A Reforma da Previdência, o pagamento religioso da dívida públi-
ca, a manutenção integral da política econômica e, apesar das políticas
focais, a ausência de reformas progressivas revelaram uma prática que
não correspondia às promessas de um partido que havia se comprome-
tido a enfrentar a classe dominante e melhorar a vida dos trabalhadores.
Da direção do PT, a Articulação/Campo Majoritário, nenhuma autocrí-
tica era de se esperar, afinal, ela foi ao mesmo tempo o agente e o objeto
central do processo de transformação do partido em instrumento da or-
dem. Mas o bloco que defendia irrestritamente o governo do PT sofreu
fissuras, e a defesa incondicional deu lugar à ideia das “criticas pontuais”,
abraçada pela esquerda petista. Como governo de conciliação de classes,
era preciso fortalecer e empurrar à esquerda a sua “ala operária”, para
214
Reflexos e Desdobramentos da Experência com o Petismo
215
vimento (G-20), Obama se derreteu em elogios a Lula, a quem chamou
de “o cara”, numa clara intenção de destacar o quanto o desempenho do
presidente do Brasil na economia e na política agradava aos americanos.
Outros ícones do imperialismo, como a reacionária primeira-
-ministra alemã Angela Merkel, também ovacionavam Lula. E as razões
eram compreensíveis. A capacidade de Lula de garantir os interesses do
capitalismo no Brasil e internacionalmente parecia corresponder à sua
autoridade política diante das massas trabalhadoras – com quem, apesar
de algumas oscilações, sempre manteve alta audiência. Era o sonho de
qualquer governante.
Com essa popularidade – alicerçada não diretamente na política
de Lula, que foi no essencial semelhante à de FHC, mas no crescimento
econômico entre 2003 e 2008 e na retomada da estabilização pós-crise de
2009 – o PT consegue eleger Dilma Rousseff, a primeira mulher a ocupar
o posto máximo da República brasileira por duas vezes. Mas não signifi-
cou grandes mudanças no governo. A não ser para pior.
Não houve fortalecimento da educação, saúde e previdência pú-
blicas, e tampouco a reforma agrária. A política de superávit primário
e o pagamento da dívida foram mantidos. Como se não bastasse, Dilma
deu ainda passos à frente em relação a Lula, na aplicação de medidas
neoliberais. Entre 2012 e 2013 privatizou portos, estradas, aeroportos e
o maior campo de petróleo (Libra) do país, parte da recém-descoberta
“mina de ouro negro”, o Pré-Sal. Com o aprofundamento da crise a partir
de 2015, iniciou um violento ajuste fiscal que atacou duramente direitos
dos trabalhadores (restrições ao seguro desemprego, pensões, cortes nas
políticas sociais, etc.) e prometeu ainda mais – a exemplo do anúncio de
Reforma da Previdência.
Nem as mobilizações massivas que explodiram no mês de junho de
2013 conseguiram trazer algum traço do PT das origens, comprovando
mais uma vez a sua completa mutação. Pego de surpresa com a massifi-
cação de uma luta que se iniciou contra o aumento dos preços das tarifas
de transporte, o PT oscilou entre a repressão brutal ao movimento e o re-
conhecimento da “validade das manifestações democráticas”, desde que
“sem vandalismo”. A força do movimento derrubou praticamente todos
os aumentos de tarifas de transporte, conquistou o chamado “passe-li-
216
Reflexos e Desdobramentos da Experência com o Petismo
217
A probabilidade de as massas migrarem para a direita não é pe-
quena, pois os trabalhadores não vão ao encontro de quem não conhe-
cem, nem de quem não se apresenta. Pesa sobre os setores conscientes
que atrasaram a construção de uma proposta independente, em nome da
defesa do governo, uma responsabilidade sobre a ausência de alternati-
vas. Eis a razão pela qual enfrentar os governos de colaboração de classes
não tem nenhuma relação com “enfraquecer a esquerda”. A realidade tem
mostrado que é o apoio a esses governos que prepara, mais adiante (como
vêm preparando agora), o retorno da direita. Evidentemente, caso este
retorno aconteça, a esquerda precisa ser intransigente na luta contra este
tipo de rearticulação da burguesia. Mas o balanço do processo é inesca-
pável.
Consequentes com a estratégia de “governo democrático-popular”,
vários partidos e movimentos creditam a esse tipo de governo a possi-
bilidade de realização não apenas de reformas, mas do atendimento de
reivindicações que teriam o caráter de choque com as bases do capitalis-
mo. Consideram inclusive a possibilidade de o governo de conciliação de
classe realizar estas tarefas, desde que pressionado pela ação de massas.
Na “luta” contra esses governos só cabem, portanto, exigências, e nunca
denúncias.
Diante disso apresenta-se o problema do apoio às medidas “pro-
gressivas”, que também não é menor. Como caracterizam o governo do
PT como “em disputa”, estão sempre a postos para acreditar nas “boas in-
tenções” da sua “ala esquerda”. Assim, políticas compensatórias e parciais
(como o programa Bolsa Família, Mais Médicos etc.) são todas dignas de
apoio irrestrito, nunca de contraposição. Foca-se na aparência e abando-
na-se a análise da essência dessas ações.
Esta é uma questão muito importante, pois as reivindicações que
são levantadas não possuem um caráter progressivo nato, para sempre,
de forma atemporal. São relativas e se subordinam à análise histórica.
Reivindicações que hoje são progressivas podem deixar de ser amanhã.
São vários os exemplos que confirmam isto.
Durante um regime ditatorial, por exemplo, a reivindicação por
uma Assembleia Constituinte é progressiva. Num regime de democracia
representativa já estabelecido, levantar a bandeira de uma Constituinte a
218
Reflexos e Desdobramentos da Experência com o Petismo
219
projeto que este partido representa, revela-se aqui de forma categórica. A
depender das análises acerca desses dois aspectos, as conclusões políticas
podem se apresentar como radicalmente distintas.
As tendências internas e externas que de um modo ou de outro,
direta ou indiretamente, intencionalmente ou não, sustentam o projeto
de colaboração de classe e a administração capitalista do PT, partem do
pressuposto analítico de que o PT não se transformou e que se trata ape-
nas de posições políticas circunstanciais, influenciadas pela “conjuntura
desfavorável”. Mas é evidente que não podem afirmar que foram pegos de
surpresa, e a história da luta interna no PT, da qual praticamente todas
participaram, opõe-se a isto. Durante a década de 1990, a direção petista
preparou todo o terreno para a incorporação do vale-tudo eleitoral e do
rebaixamento programático a níveis subterrâneos dentro do PT, sem es-
conder isso de ninguém.
Sempre há, no entanto, os que preferem tentar escapar dos fatos.
Podem perfeitamente (como de fato a “esquerda” do PT majoritariamen-
te faz) afirmar que a direção petista foi longe demais na guinada à direita,
que passaram do ponto, e que, portanto, o que é preciso é tomar-lhe a
hegemonia, e não enfrentar o governo. Mas a análise apresentada aqui a
respeito da transformação do PT em instrumento de administração capi-
talista conduz a conclusões opostas pelo vértice.
A conversão de um partido originariamente independente da
classe trabalhadora numa ferramenta eleitoral que se apresenta como o
melhor gestor do capital, com um programa que segundo os próprios
discursos da sua representação máxima (Lula) “atende à direita e à es-
querda”, exige da esquerda uma postura de combate. Não faz nenhum
sentido, para os socialistas, sustentar um projeto de colaboração de clas-
ses que tem como objetivo último (no máximo, com meros atenuantes) a
conservação das relações sociais vigentes. É convencer os trabalhadores
de que confiar nas suas próprias forças e ir à luta não é necessário, pois
um governo desse tipo pode lhes conferir uma vida mais ou menos digna.
É apostar na passividade, na resignação, na submissão ao capitalismo. Os
dilemas acerca do ingresso ou não na sustentação do projeto de governa-
bilidade petista são, portanto, cada vez mais atuais. Não reconhecer que
o PT está convertido num instrumento a serviço de tal projeto conduz a
220
Reflexos e Desdobramentos da Experência com o Petismo
221
Tem-se aqui a síntese dessas duas ideias que em nenhum momento
podem se afirmar sem considerar as confusões, os ritmos das experiên-
cias, e até mesmo a dor de quem dedicou a vida a um projeto que, do
ponto de vista dos trabalhadores, deixou de servir.
Por outro lado, considerar isto não significa ser menos consequen-
te nas conclusões que decorrem das análises. Não se pode abrir mão do
que deve ser feito, à luz do exame da realidade. Quando o velho caduca
e degenera, é precisamente o momento em que o novo deve pedir passa-
gem.
REFERÊNCIAS
222
MARXISMO, EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA
SOCIALISTA
Ivo Tonet1
Doutor em Educação
226
Marxismo, Educação e Pedagogia Socialista
227
buições marxianas a respeito da educação, especialmente as que dizem
respeito às questões mais gerais, são fundamentais e devem ser levadas
em conta. Por outro lado, suas propostas concretas a respeito da educação
são datadas e não podem ser simplesmente transpostas para os dias atuais.
As transformações sofridas pela realidade social ao longo desses últimos
cento e cinquenta anos, embora não alterem essencialmente a sociedade,
são imensas e afetaram tanto a classe burguesa como a classe proletária e
as classes intermediárias. Também atingiram todas as dimensões da so-
ciedade – econômicas, políticas, sociais, ideológicas, educativas, etc.
A análise concreta da situação concreta que, enfatize-se, é sempre
uma unidade de essência e aparência, impõe que se levem em conta es-
sas transformações. A meu ver, então, o caminho mais apropriado seria
partir dos fundamentos – histórico-ontológicos – elaborados por Marx, e
orientados por eles tratar da problemática da educação. Procedimento,
aliás, necessário para abordar qualquer fenômeno social.
Já expus, em inúmeros textos, o que considero serem esses funda-
mentos. Por isso farei, aqui, apenas um breve resumo. O cerne dos fun-
damentos histórico-ontológicos elaborados por Marx radica na categoria
do trabalho. Trabalho entendido como o intercâmbio do homem com a
natureza, através do qual o homem transforma a natureza para adequá-la
à satisfação das suas necessidades e, ao mesmo tempo, transforma a si
mesmo. Isto confere ao trabalho o estatuto de categoria fundante do ser
social. É a partir da análise dessa categoria que Marx responde à pergun-
ta: o que é o ser social. Por sua vez, a resposta a essa pergunta permite
fundamentar o caráter radicalmente histórico e social do ser social, seu
caráter de totalidade, de unidade entre essência e aparência (esta última
de caráter histórico e social e não metafísico). Também permite compre-
ender o ser social como uma peculiar síntese entre subjetividade e reali-
dade objetiva, a relação entre singular (indivíduo) e universal (gênero),
a existência de mediações e contradições no interior dele. A resposta à
pergunta a respeito da natureza do ser social é conditio sine qua non para
poder tratar de qualquer outro fenômeno social, no caso em tela, da ques-
tão da educação.
A partir do trabalho é que surgem, desde o início ou mais tarde,
todas as outras dimensões da realidade social. Por isso, repetimos o que
228
Marxismo, Educação e Pedagogia Socialista
229
da objetividade3; determinação recíproca entre subjetividade e objetivi-
dade, com a regência desta última.
No caso da regência da subjetividade, temos o idealismo, que afir-
ma prioridade das ideias sobre a realidade objetiva. O mundo é, em úl-
tima análise, o resultado das nossas ideias. O que significa que quanto
melhores forem estas, melhor será o mundo. No caso da regência da ob-
jetividade, temos o materialismo mecanicista, que afirma a prioridade da
realidade objetiva sobre as ideias. Neste caso, a realidade objetiva segue
leis próprias, nas quais as ideias não podem interferir. No caso da deter-
minação recíproca com regência da realidade objetiva, temos a dialética
marxiana. Esta relação implica que tanto as ideias quanto a realidade ob-
jetiva influenciam-se mutuamente, mas que esta última tem, em última
instância, a prioridade. Neste caso, as ideias jogam um papel ativo. Elas
não têm um caráter epifenomênico, mas sua intervenção ativa é essencial
para a efetivação do processo real. Todavia, a ação das ideias é limitada
pelo campo de possibilidades reais postas pela realidade objetiva. Na au-
sência dessas possibilidades a ação prática resvalará sempre para alguma
forma de idealismo.
Como se pode ver, essa relação dialética marxiana entre subjetivi-
dade e objetividade permite afastar tanto o idealismo como o materialis-
mo mecanicista. Isto é da maior importância para sustentar minha tese
inicial.
O que constataremos, então, se examinarmos a sociedade burgue-
sa? Em primeiro lugar, que ela é fundada pelo trabalho assalariado, res-
ponsável pelo caráter de mercadoria da produção e pelo capital. É a partir
dele, como seu fundamento, que surgem todas as outras dimensões des-
sa sociedade, inclusive a educação. Esta assumirá formas diferentes, em
termos de organização, de conteúdo e de normatização, tanto quando se
tratar de educação em sentido lato como em sentido estrito. Como as
teorias pedagógicas têm concentrado o seu foco na educação em sentido
restrito, ou seja, escolar, tratarei apenas dessa problemática.
Se o capital, cuja matriz é o trabalho assalariado proletário, é o
3 A palavra objetividade tem dois sentidos. Um: gnosiológico, expressando uma
relação cognitiva entre sujeito e objeto. Outro: ontológico, referindo-se à realidade que
existe independentemente da consciência. Aqui, está sendo usada no sentido ontológico.
230
Marxismo, Educação e Pedagogia Socialista
4 Ver, a esse respeito, meu artigo: Trabalho associado e revolução proletária.
231
munista. Acerca desta, podemos, neste momento, traçar os parâmetros
essenciais, pois estes têm a sua base nas categorias do trabalho, em senti-
do ontológico, e do trabalho associado, cujos elementos nucleares podem
ser abstraídos desde hoje do processo real. Não podemos, todavia, e nem
faria sentido, pretender explicitar como ela seria em sua concretude. Só
com a vigência efetiva do trabalho associado se poderá concretizar uma
pedagogia socialista. A meu ver, isso é comprovado até por todos aqueles
teóricos da educação que tomaram como pressuposto o trabalho nos paí-
ses ditos socialistas. Foi exatamente por pressuporem que aquela forma de
trabalho era, ainda que incipientemente e com muitas limitações, o em-
brião do trabalho associado que eles desenvolveram uma pedagogia que
pretendiam que fosse socialista.
Segunda: se tomarmos o conceito de socialismo como expres-
sando o momento de transição entre capitalismo e comunismo, após a
quebra do poder político da burguesia, então estaremos um pouco mais
próximos do processo concreto, visto que há elementos que podem ser
abstraídos das tentativas revolucionárias socialistas e auxiliar na elabora-
ção pedagógica. Vai, aqui, no entanto, uma observação importantíssima:
todas essas tentativas revolucionárias realizaram, quando muito, apenas
o primeiro momento da revolução, ou seja, a quebra do poder político
(Estado) da burguesia, mas, por circunstâncias que, por brevidade, não
posso mencionar aqui, viram-se impedidas de prosseguir em direção ao
segundo. Como sabemos desde Marx5, o segundo e essencial momento
da revolução é exatamente a entrada em cena do trabalho associado, ou
seja, uma transformação no processo de trabalho que faça avançar a pro-
dução no sentido do valor de uso e retroceder o valor de troca. Por isso
mesmo, essas tentativas revolucionárias não foram, a meu juízo, revolu-
ções efetivamente socialistas. Vale lembrar: supressão político-jurídica da
propriedade privada, planejamento centralizado da economia, autogestão
das fábricas e outros locais de produção, trabalho cooperativo, nada disto
configura trabalho associado. Por isso mesmo, qualquer elaboração teóri-
ca que pretenda levar em consideração essas experiências para construir
5 Ver, para isso, de Marx: Glosas críticas ao artigo O Rei da Prússia e a Reforma
Social. De um prussiano e A guerra civil na França.
232
Marxismo, Educação e Pedagogia Socialista
233
de todas as dimensões sociais, no caso em tela, da educação. Daí por que
a margem de manobra para se opor à perspectiva burguesa é cada vez
mais estreita. Não é por acaso que as grandes linhas da educação, que in-
teressam ao capital, são determinadas por organismos econômico-finan-
ceiros internacionais, tais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário
Internacional.
Em quarto lugar: outro elemento que demarca a situação é a per-
da, teórica e prática, da perspectiva revolucionária6. Esta perda, que é
resultado complexo de toda a luta ocorrida ao longo desses últimos cento
e cinquenta anos, entre capital e trabalho, teve como consequência a au-
sência – teórica e prática –, no momento atual, do sujeito fundamental
da revolução comunista – o proletariado. Ausência não no sentido do
“Adeus ao proletariado”, mas no sentido de não estar presente como clas-
se-para si, como classe dirigente da revolução com um projeto próprio
de sociabilidade e com uma organização independente tanto do capital
como do Estado. Mais do que isso, o atrelamento da classe operária aos
interesses da burguesia, tornando-a, no momento, profundamente refor-
mista. Ora, esta ausência do proletariado como classe dirigente – teórica
e praticamente – da revolução impacta profundamente todas as outras
dimensões sociais, no caso, a educação7. Como resultado disso, o clima
predominante geral é intensamente contrarrevolucionário e, na esquerda,
majoritariamente reformista.
Essa é a situação concreta. A perspectiva própria – revolucionária
– do proletariado, cujo objetivo fundamental é a emancipação humana,
está bloqueada tanto pelo recrudescimento do conservadorismo como
pelo reformismo que grassa na esquerda. Qualquer elaboração teórica,
no caso, educativa, tem de levar em conta essa situação. Não me parece
que esse seja o caso entre os teóricos de esquerda da educação. A meu
ver, essa situação impede inteiramente a elaboração de uma pedagogia
socialista no sentido de uma teoria da educação voltada a orientar a relação
6 A esse respeito, sugiro a leitura dos livros: A crise do movimento comunista, de F.
Claudín e Descaminhos da esquerda – da centralidade do trabalho à centralidade da políti-
ca, e do meu artigo “O Grande Ausente e os problemas da educação”.
7 Em referência a isso, ver meu artigo “O Grande Ausente e os problemas da
educação”.
234
Marxismo, Educação e Pedagogia Socialista
235
gógico-didáticos que movimentarão um novo éthos educativo
voltado à construção de uma nova sociedade, uma nova cultu-
ra, um novo homem, enfim.
236
Marxismo, Educação e Pedagogia Socialista
Conclusão
237
REFERÊNCIAS
238
A EDUCAÇÃO COMO PRÁXIS
EMANCIPADORA
242
Educação como Práxis Emancipadora
243
záros (2008, p. 27). Se a transformação não for substancial, melhor seria
chamá-la de mudança, sem nenhuma consequência para além do que
está posto, pois manteria os indivíduos armadilhados no círculo vicioso.
A práxis educativa adquire corpo e forma no mundo real dos ho-
mens, os quais vivem conflituosamente e submetidos a condições mate-
riais peculiares. Por isso, a educação é um dispositivo de luta capaz de
conservar a sociabilidade vigente ou levar ao seu questionamento e à
problematização. É neste segundo sentido que se torna possível pensar a
educação como práxis emancipadora substancial.
Vale ressaltar, enfim, que a educação disponibilizada nos últimos
anos pelo Estado para os trabalhadores e seus filhos atende aos interesses
da ordem do capital, tanto porque se tornou uma mercadoria lucrativa,
como também porque evita enveredar por caminhos contrapostos às prá-
ticas educativas condizentes com a natureza do capital.
O princípio do consenso
244
Educação como Práxis Emancipadora
da sociabilidade do capital.
Para justificar esse viés, segue a fala de Robert NacNamara:
Quando os privilegiados são poucos e os desesperadamente
pobres são muitos, e quando a diferença entre ambos os gru-
pos se aprofunda em vez de diminuir, só é questão de tempo
até que seja preciso escolher entre os custos políticos de uma
reforma e os riscos políticos de uma rebelião. Por este motivo,
a aplicação de políticas especificamente encaminhadas para
reduzir a miséria dos 40% mais pobres da população dos pa-
íses em desenvolvimento é aconselhável não somente como
questão de princípio, mas também de prudência. A justiça so-
cial não é simplesmente uma obrigação moral, é também um
imperativo político [...]. Mostrar indiferença ante a frustração
social equivale a fomentar seu crescimento. (McNAMARA
apud SILVA, 2015, p. 59).
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elaborado na Conferência de Jomtien, na Tailândia, em 1990, manteve o
consenso como princípio basilar articulado necessariamente com a pro-
dução de tecnologias comunicacionais, cuja utilização permanece presa
aos vultosos lucros das empresas prestadoras de serviços e à alienação
dos indivíduos denominados de “cidadãos consumidores”.
Depreende-se de tudo isso que a “justiça social é também um im-
perativo político”; como tal, o personagem central é o Estado, legalmente
encarregado de disseminar a referida justiça, consubstanciada no aten-
dimento dos mais pobres, sem, porém, eliminar as causas da pobreza.
Somente assim alcança apoio para subsistir, porque “favorece” em doses
homeopáticas grandes contingentes de seres humanos desumanizados,
sem perder as suas qualidades essenciais previamente estabelecidas: a
manutenção do lucro e da centralidade de capitais em poucas mãos. Para
alguns, a centralidade do capital sob o formato do modo de produção
capitalista é a racionalidade humana no seu mais elevado grau. Cabe aos
homens, através da ação estatal e de diversos organismos internacionais,
proceder a alguns ajustes inevitáveis.
A conferência de Jomtien foi o marco de comprometimento do
Banco Mundial com a educação dos países periféricos, tendo por objetivo
difundir na população estudantil o princípio do consenso, e consequen-
temente eliminar a contraposição capital versus trabalho. O consenso é
uma criatividade dialógica capaz de afetar determinados indivíduos de
existências desumanizadas, os quais são escolarizados “sob certos cuida-
dos” que os incapacitam de romper com o processo de desumanização.
Não se trata, porém, de mais um dispositivo alienante inventado pelos
arautos do capital, pois os indivíduos desumanizados entendem todo o
processo causador da desumanização. O que de fato ocorre agora é que o
Estado e diversos organismos internacionais se colocam como os únicos
solucionadores dos males sociais, como a fome, a miséria, a destruição
ambiental, a pobreza, as doenças e as guerras. Desse modo, o consenso
acalma os ânimos dos empobrecidos e os faz vítimas coniventes com a
própria miséria.
Esse círculo vicioso reproduz a sociabilidade vigente e renova os
tentáculos que dão sustentação ao capital. A educação para o consen-
so revitaliza a lógica da compra e venda da força de trabalho, reforça as
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Educação como Práxis Emancipadora
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material dispõe também dos meios de produção espiritual, de
modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo
tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios de
produção espiritual.
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Educação como Práxis Emancipadora
tuiu como reação positiva contra o mundo feudal, entendido este como
dilapidador da dignidade humana, portanto, essencialmente negativo.
A positividade do sistema capitalista esteve alicerçada no avanço das ci-
ências, no aprimoramento tecnológico, na obtenção de conhecimentos
e na descoberta de terras até então desconhecidas. Muitas doenças fo-
ram debeladas e os anos de vida da espécie humana mais que dobraram.
Toda essa evolução não foi capaz de superar a exploração desenfreada
de poucos homens sobre muitos. Atualmente é quase incontável o nú-
mero de pessoas famintas e desnutridas. As guerras infindáveis, o tráfico
de seres humanos, a sistemática concentração de riquezas em parale-
lo às necessidades primárias de água potável, de emprego, alimentação
com calorias suficientes para fazer o organismo funcionar normalmen-
te. A exagerada poluição do ar, dos rios, dos mares, o envenenamento de
quase todo o planeta em nome de plantios sustentáveis, a desenfreada
prática da corrupção, além de tantos males que não somente depõem
contra o projeto positivo desse sistema, como ainda anulam as vanta-
gens da evolução acima citadas, pois muitas delas foram coroadas com
a mais terrível escravidão, como fica evidenciado na obra Capitalismo e
Escravidão, de Eric Williams.
Atualmente o planeta está infestado por guerras de diversas espé-
cies. Guerras entre países onde as fronteiras foram destruídas, guerras
internas, dada a imensa quantidade de gente assassinada todos os anos.
A desumanização, característica peculiar do sistema capitalista, ecoa
por toda parte. O Estado fornece diversos remédios que não passam
de paliativos grotescos, muitos dos quais causam tantos males como as
doenças que propõem curar.
Diante desse quadro lúgubre, qual o caminho a ser trilhado pelo
educador quando da realização da sua práxis educativa? Três possibili-
dades estão disponíveis. A primeira é aquela que reproduzirá a sociabi-
lidade do capital e reforçará as suas trancas a qualquer mudança. A se-
gunda permanecerá a meio caminho: abordará criticamente a realidade,
mas sem indicativos para a sua superação. A terceira e última perseguirá
a superação do sistema. Será, portanto, uma práxis educativa substan-
cialmente emancipadora.
A práxis educativa emancipadora persegue algumas exigências,
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sem as quais poderá perder seu sentido. Trata-se inicialmente de assu-
mir uma postura socialmente reconhecida, voltada à superação da ordem
do capital, seguida de um método que conceda ao educador a apreensão
da realidade nos seus aspectos primordiais: totalidade, particularidade e
singularidade. Por último, a práxis será essencialmente revolucionária no
sentido de possuir como meta a alcançar a construção de uma sociabili-
dade substancialmente democrática. Noutras palavras, a práxis educativa
verdadeiramente comprometida com a emancipação humana, também
chamada de democracia substantiva, encontrará seu fundamento no ato
do trabalho, visto que o homem, “ser social, é, em sua integral totalida-
de, um ser histórico, vale dizer, o resultado de um processo que tem no
trabalho o seu ser originário” (TONET, 2005, p. 151). Portanto, essencial-
mente predisposto a construir a sua própria sociabilidade, livre de toda e
qualquer alienação.
Quanto ao conceito emancipação humana, Tonet (2005, p. 167)
ensina que “não é um estado, um ponto de chegada, mas um determina-
do patamar, uma determinada forma de sociabilidade [...] certamente [...]
é um valor e não um dado de fato”. O mesmo autor, à página 177, anota: “a
essência da emancipação humana está no domínio consciente e coletivo
dos homens sobre o seu processo de autoconstrução, sobre o conjunto do
processo histórico”. Daí a imensa importância da práxis educativa para a
formatação desse processo histórico, pois como os indivíduos estão sen-
do educados para, através do consenso, ter suas existências determinadas
pela ordem do capital, podem, ao contrário, ser educados para uma con-
vivência socialmente livre. Neste ponto, a práxis educativa emancipadora
tanto é fundamental como necessária, porque é através dela também que
se superará a intensa onda de alienação, coadjuvante do capital, atual-
mente vivenciada nas escolas e na sociedade em geral.
Ainda sobre a emancipação humana, diz Tonet (2005, p. 141):
Haverá, entretanto, diferenças fundamentais entre este reino
da necessidade (o trabalho) no capitalismo e no comunismo.
No primeiro é o produto que domina o produtor, que estabe-
lece o fim a ser atingido (a reprodução do próprio capital), que
lhe impõe formas concretas do trabalho, as condições gerais e
específicas da produção, o tipo de relações entre os homens e
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Conclusão
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como da apropriação de uma teoria capaz de apreender as movimenta-
ções do real do jeito que ele é. Por isso, “uma prática sem uma sólida
teoria que a ilumine é uma atividade cega. [...] E, para nós, teoria ilumi-
nadora é aquela que captura a trama do processo real e permite buscar
as mediações adequadas para atingir determinado fim” (TONET, 2005,
p. 205). Obviamente, não se trata aqui de qualquer teoria, mas daquela
que “captura a trama do processo real”, ou seja, que perceba o mundo
como ele é e não simplesmente como é noticiado ou visto fenomenolo-
gicamente; e ainda, que “permita buscar as mediações adequadas para
atingir determinado fim”.
Desse modo,
[...] pode a educação articular-se plenamente na construção da
sociedade sem classes. [...] Nesse sentido, o educador precisa
romper com as pedagogias escolares articuladoras dos interes-
ses da burguesia e vincular sua concepção e sua prática a uma
perspectiva revolucionária de homem e de mundo. Não se trata
simplesmente de aderir a uma concepção científica de mundo e
seu poder desvelador da realidade, mas de assumir, na teoria e
na prática, isto é, na práxis, uma concepção de vida, do homem
e do mundo. (LOMBARDI, 2005, p. 33).
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O processo educativo é essencialmente dialético. Ninguém “des-
peja” conhecimentos em ninguém. Ambos, educador e educando, edu-
cam-se dialogicamente. Porém, como o ato de educar é um ato político,
costumeiramente essa relação dos indivíduos no percurso do processo
educativo passa a ser influenciada por interesses de classe, pois a clas-
se proprietária dos meios de produção introduz nesse processo as suas
ideias, e todos passam a conviver com elas simplesmente porque são as
ideias dominantes. Mas são os próprios homens que como produto das
circunstâncias podem transformá-las. Semelhantemente ocorre no cam-
po educacional.
Se a educação tende a reproduzir as ideias dominantes e as cir-
cunstâncias estão estabelecidas para ser assim, os próprios homens po-
dem dar outro caráter à educação, imprimindo-lhe o caráter revolucio-
nário e emancipatório. Isso tudo é decidido na e durante a práxis. Assim,
a educação como práxis emancipadora depende da ação dos envolvidos.
A escolha determina a vontade.
REFERÊNCIAS
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