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COSTUMES E DIÁLOGOS – ASSOCIAÇÃO CULTURAL

“COISAS DA MINHA TERRA”


“Nossa Senhora de Belém”

Era bem novo, ainda de colo, mostraram-me um ponto branco, muito


branco, que se via, longe bem longe, na serra da Sicó, e diziam-me: - vês, vês
bem, é Nossa Senhora de Belém...
Jamais olvidei a impressão recebida, do branco, muito branco, que bem
longe, muito longe se avistava entre pedregulho; da serra escalvada, com um
tom acinzentado, característico dos terrenos áridos, agrestes, pedregosos em
que, só em pequenos espaços, se encontra, um ou outro, com alguma urze ou
erva de Santa Maria.
Os trabalhos escolares afastaram-me da minha terra, o que me fez olvidar
um tanto a impressão recebida em criança; mas já adolescente, - como a quase
todos sucede -; principiaram os passeios pelo campo, caçadas, etc. pretexto
para passar o tempo de férias, e então tive ensejo de reparar que o tal ponto
branco que se via da casa de meus pais, e a que chamavam capelinha da
Senhora de Belém, não passava de quatro muros assentes em rocha, muito
caiados, com um telhado e muito acachapado.
Esta vista – in loco – fez desvanecer ainda mais a curiosidade que
nascera com a forma como me mostravam o tal ponto branco, muito branco...
Decorreu a vida com normalidade habitual, e já casado e com um filho,
convidaram-me para dar um passeio até à Senhora de Belém, onde minha
mulher com outras pessoas de família iam almoçar.
O trabalho não me permitiu ir, e quando regressei para jantar – durante
este – não me falaram em outra coisa, a não ser, na beleza da vista, no que
viram que bastante os impressionou, do belo almoço que cozinharam, sendo
muito falado um enchido de sangue (morcela) que fora assada em fornalha
improvisada entre as pedras.

ILDEFONSO MONTEIRO LEITÃO


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Claro, que fui logo convidado para a nova festa com instância para não
faltar.
Como só Deus é que dispõe, bastantes anos passaram sem que lá
voltassem; mas a ideia estava fixa, até que lá foi uma caravana dar o passeio
mas já com o almoço preparado, regado com vinho e bom chá, bem quente,
transportado em frascos termus.
Comido o almoço, em plena falda da serra, aquecidos pelo sol, abrigados
da aragem cortante e fria que havia, depois de lembrados Amigos, que estavam
– longe, bem longe -; fomos ver a capela, tomar contacto com o povo e conhecer
da festa, com as suas originalidades.
Abeirámo-nos dela, onde entramos e oramos, mas nunca vi capela
semelhante; a impressão que tive quando por lá passei, foi ainda prejudicada,
pois que o vão era térreo, tinha dois altares laterais – pequenos – e um ao
centro, tudo feito a picão grosso, na própria rocha; o telhado muito baixo, e o da
sacristia tão baixo que o padre para se paramentar, se não tivesse cuidado,
bateria com a cabeça nos barrotes; limpeza pouca, deixava mesmo muito a
desejar.
Desolados com o que vimos, fomos ao arraial; muita gente, algumas
juntas de gado – fraco – dando voltas à roda da capela; na abada da serra que
fica para o norte e que é mais plana, dois cordões de gente, colocados
paralelamente onde se viam homens, mulheres e crianças, tudo em mistura.
Perguntei o que estava aquela gente a fazer?
- Estão à espera do mordomo com o carro das merendeiras. Os Senhores
ponham-se também na linha.
Passado algum tempo, houve-se o estralejar de foguetes e os desafinados
sons da gaita de foles, com o seu respectivo acompanhamento de caixa e
bombo, e a seguir a estes musiqueiros, vinha um carro de bois com um toldo
coberto com colchas encarnadas.
Um velhote volta-se para mim e diz: - lá vem o carro com as merendeiras,
o Senhor não saia daqui que também lhe dão.
Assim foi.
O casso foi lentamente passando por entre duas filas de povo, e atrás do
carro, homens que entregavam a cada pessoa uma pequena merendeira de pão

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ou um covilhete de tremoços. O carro seguiu fazendo a distribuição e acabada,


regressou para o casal do mordomo, depois de que, principiou a comesaina e a
dança.
Não quereriam representar com esta distribuição de pequenas
merendeiras para todos os presentes, uma pretensa alusão à multiplicação do
pão, por Cristo?...
Quem sabe?! – Foi todavia o que rapidamente me veio à mente.
Conhecido de quase toda aquela gente, alguns mais afeiçoados,
rodearam-me; ficando a atendê-los.
Um velhote já de noventa anos aproximadamente, é que – como
entendido – me prestou vários informes, a saber: - Não conhecem a origem da
capela e no seu modo de dizer – sempre ali existiu -; os povos de dois lugares
próximos, é que tomam conta dela, e todos os anos escolhem um mordomo que
se encarrega de tudo, e de fazer a nova festa no dia 8 de Dezembro. A chave,
fica entregue a uma pessoa das que vivem mais próximas dela e está sempre à
disposição de qualquer que a vá procurar. Dizia o velhote conhecido por Ganipo:
«Isto é nosso; aqui, só nós é que mandamos, quando queremos fazer uma festa,
procuramos o Sr. Prior e combinamos com ele o que for necessário; quando
queremos uma missa, só temos de falar e pagar a quem a venha dizer»!
Nesta altura, lastimaram-se de que não havia um sino, que fazia muita
falta, para quando havia missa ou para certos dias, ao anoitecer, em que faziam
a reza do terço, avisar o povo, principalmente os jornaleiros que regressam do
trabalho.
Dizia o velhote Ganipo: «Isto aqui é nosso, e em todos temos confiança;
às vezes qualquer pessoa lembra-se de fazer uma oração, por qualquer aflição
que tenha na sua vida, pede a chave, mete-se na capela e lá reza o tempo que
quer».
Fui ver o bailo como eles dizem e depois, durante o regresso a casa, vim
pensando no que vira e ouvira.
Que simplicidade e firmeza de fé!
Sim, porque àquela capela, só vai quem cheio de fé se deseja concentrar
em adoração. Ali; não há beleza, não há vaidade, não há música, não há
esculturas nem arquitecturas nem cerimonial a admirar, e muito menos,

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frequentadores sem fé, que vão para ver os outros ou porque não pareça bem
não ir, porque vai o Sr. F., etc.
Que diferença de pureza de crença, com a que vemos, por vezes, por
algumas vilas e cidades!
Com uma fé assim, tão pura e tão despretensiosa, que fácil seria com a
explicação das diferentes orações, em linguagem correntia, criar-lhes um
carácter e consciência religiosa, tornando-os humildes, cônscios do seu proceder
para com os outros e exemplares na prática do bem.
Os sermões que lhe pregam, com citações em latim e figuras de retórica,
que eles não compreendem; só serve, para passarem tempo.
Enfim, não é a mim, simples mortal, que me compete remodelar ou
insurgir-me com a forma como a nossa sociedade é constituída; só me compete,
acatar.
Todavia, todos estes pensamentos que me vieram à mente e o que por lá
ouvi, fez-me lembrar, a fé com que minha Mãe me dizia quando pequeno: - «Vês
aquele ponto branco, na serra, muito longe; vês, vês bem, é a Capela de Nossa
Senhora de Belém».
È que minha Mãe, logo de pequeno, me incutiu a adoração pela Virgem
Nossa Senhora, pela sua infinita bondade, como salvação e guia para toda a
nossa vida.
Não fora ela santa!

Autor: ILDEFONSO LEITÃO

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