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AUTOPSICOGRAFIA MENDES, Murilo. "Os quatro elementos".

In:_____. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro:


Nova Aguilar, 1994.
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor Versos Íntimos
A dor que deveras sente. Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de sua última quimera.
E os que lêem o que escreve, Somente a Ingratidão – esta pantera –
Na dor lida sentem bem, Foi tua companheira inseparável!
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm. Acostuma-te à lama que te espera!
O homem, que, nesta terra miserável,
E assim nas calhas de roda Mora, entre feras, sente inevitável
Gira, a entreter a razão, Necessidade de também ser fera.
Esse comboio de corda
Que se chama coração. Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de
João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Lisboa: Ática, 1942
Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Quadrilha Escarra nessa boca que te beija!
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que
amava Lili Soneto 80
que não amava ninguém. Alma minha gentil, que te partiste
João foi pra os Estados Unidos, Teresa Tão cedo desta vida descontente,
para o convento, Repousa lá no Céu eternamente,
Raimundo morreu de desastre, Maria E viva eu cá na terra sempre triste.
ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Se lá no assento Etéreo, onde subiste,
Pinto Fernandes Memória desta vida se consente,
que não tinha entrado na história. Não te esqueças daquele amor ardente,
Que já nos olhos meus tão puro viste.
De Alguma poesia (1930), Carlos Drummond de
Andrade E se vires que pode merecer-te
Algũa cousa a dor que me ficou
O utopista
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Ele acredita que o chão é duro
Que todos os homens estão presos
Que há limites para a poesia Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que não há sorrisos nas crianças Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Nem amor nas mulheres Quão cedo de meus olhos te levou.
que só de pão vive o homem
que não há um outro no mundo. Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"

O açúcar
O branco açúcar que adoçará meu café Ferreira Gullar
nesta manhã de Ipanema Toda poesia (1950/1980)
Editora Círculo do Livro S.A
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por
milagre. I-Juca Pirama
No meio das tabas de amenos verdores,
Vejo-o puro Cercadas de troncos - cobertos de flores,
e afável ao paladar Alteiam-se os tetos d’altiva nação;
como beijo de moça, água São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
na pele, flor Temíveis na guerra, que em densas
que se dissolve na boca. Mas este açúcar coortes
não foi feito por mim.
Assombram das matas a imensa extensão.
Este açúcar veio São rudos, severos, sedentos de glória,
da mercearia da esquina e tampouco o fez Já prélios incitam, já cantam vitória,
o Oliveira, Já meigos atendem à voz do cantor:
dono da mercearia. São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Este açúcar veio Seu nome lá voa na boca das gentes,
de uma usina de açúcar em Pernambuco Condão de prodígios, de glória e terror!
ou no Estado do Rio (...)
e tampouco o fez o dono da usina. Gonçalves Dias

Este açúcar era cana


e veio dos canaviais extensos Poema tirado de uma notícia de jornal
que não nascem por acaso
no regaço do vale. João Gostoso era carregador de feira-livre
e morava no morro da Babilônia num
Em lugares distantes, onde não há barracão sem número
hospital Uma noite ele chegou no bar Vinte de
nem escola, Novembro
homens que não sabem ler e morrem de Bebeu
fome Cantou
aos 27 anos Dançou
plantaram e colheram a cana Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de
que viraria açúcar. Freitas e morreu afogado.

Em usinas escuras, BANDEIRA, Manuel. "Libertinagem". Estrela da


homens de vida amarga vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.
e dura
produziram este açúcar Amor
branco e puro Humor
com que adoço meu café esta manhã em Oswald de Andrade
Ipanema.

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