Você está na página 1de 8

Integralidade da Missão em Escritos Paulinos

Introdução

Paulo, em suas cartas, costuma falar a respeito do seu próprio ministério, da sua
visão da missão que Deus lhe confiara (p. ex.: Gl 1,10ss; Ef 3,1ss; Rm 1,8-15; 15,14-29; I Ts
2,1ss), dando a seus leitores testemunho do seu comprometimento com o evangelho de Jesus
Cristo. Aos coríntios, em particular, ele teve de debater longamente a respeito da validade de
seu apostolado, contestada por seus oponentes (v. II Coríntios). Nesses testemunhos, Paulo
apresenta sua compreensão e prática da missão. A partir de seu testemunho, podemos cons-
truir critérios teológico-práticos para a missão da igreja hoje, em uma ótica da integralidade
do Evangelho do Reino de Deus. É essa integralidade da missão que está na base de uma
teologia pública evangélica (ou evangelical) no Brasil e América Latina.

1. Dimensões da integralidade da missão


(a) A missão integra todo o universo
No hino cristológico, Deus é louvado porque, em Cristo, reconciliou consigo
mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus (v. 20) – assim como, em Cristo,
criara todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis (v. 16). O par
c us e terra , na mentalidade judaica de então, era o equivalente ao nosso termo universo,
a totalidade das coisas que existem, as quais foram criadas por Deus. O alcance da obra re-
conciliadora de Deus é igual ao alcance de sua obra criadora. A tudo quanto criou, Deus
reconcilia. Em Efésios 1,9-10 o mistério de Deus, seu plano salvífico, é assim descrito: des-
vendando-nos o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito que propusera em Cristo,
de fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do
céu como as da terra .
O termo grego traduzido por convergir é, literalmente, colocar debaixo de uma só
cabeça , ou seja, o propósito eterno de deus é colocar debaixo do senhorio de Cristo toda a
criação, todas as coisas nos céus e na terra. Esse mistério é que nos foi revelado, para que
sejamos parceiros de Deus na sua concretização. Nossa parte é a submissão integral ao se-
nhorio de Cristo, seguindo o seu exemplo de submissão integral ao Pai, conforme

1
encontramos em I Co 15,20-28, que conclui afirmando que quando, porém, todas as coisas
lhe estiverem sujeitas, então o próprio Filho também se sujeitará àquele que todas as coisas
lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos.
A mesma ideia está presente em II Co 5,19: Deus estava em Cristo, reconciliando
consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões e nos confiou a palavra
da reconciliação . Estão presentes neste verso, a cosmicidade da obra reconciliadora, o seu
caráter perdoador e a exigência da fé – já que Deus, para que o seu perdão viesse a ser aceito,
comissionou o seu povo e lhe confiou a palavra, a pregação da reconciliação. Noutros tem-
pos, a cosmicidade da obra reconciliadora de Deus foi confundida com um universalismo
salvífico, que despersonalizou a resposta ao ato reconciliador de Deus. O universalismo é
uma interpretação inadequada do propósito universal de Deus. Em Cristo, Deus demonstra a
toda a criação o seu contínuo e eterno amor. Tendo criado todo o universo pelo seu amor,
pela palavra do seu poder, Deus também oferece a todo o universo a sua reconciliação. Às
criaturas que têm a capacidade de relação pessoal com Deus, o ato reconciliador exige a
resposta da fé, a aceitação da paz com Deus mediante a fé em Cristo Jesus. Às demais cria-
turas, o ato reconciliador de Deus se concretizará, na consumação dos tempos, em uma nova
criação, em novos céus e nova terra (cf. I Co 15,20-28; II Pe 3,9-13; Ap 21,1-22,20).

(b) A missão integra a natureza criada


Porque Deus é amor, toda a sua criação é pessoal e solidária. A pessoalidade não
pode ser reduzida à parcela humana da criação. A diferença entre o ser humano e os seres
não-humanos da criação divina não pode mais ser concebida nos termos modernos dualistas
e antropocêntricos, mas em termos holistas e teocêntricos. Ainda que somente o ser humano
tenha sido criado à imagem e semelhança de Deus, a pessoalidade solidária é uma caracte-
rística de toda a criação, o que pode se perceber claramente em Rm 8,18-24, pelo menos.
Hoje, mais do que nunca, devemos nós cristãos saber que toda a criação a um só tempo
geme e suporta angústias (Rm 8,22). Personificada na linguagem poética de Paulo, a natu-
reza é colocada dentro do alcance da visão missionária do povo de Deus. A missão cristã
integra seres humanos e natureza, rompendo com a maldição edênica contra o pecado hu-
mano.

2
Diante do cativeiro da criação à vaidade, a igreja cristã cresce em esperança. Espe-
rança essa que não pode ser apenas a esperança pela nossa restauração como imagem de
Deus, mas é esperança pela restauração de toda a criação divina, a criação de novos céus e
nova terra. A esperança cristã é a matriz de uma espiritualidade integral que, por sua vez, é
companheira da missão integral. Essa esperança produz em nós, na linguagem de Moltmann,
o amor pela vida de toda a criação:
Iremos interpretar vitalidade como amor pela vida. Este amor pela vida
vincula os seres humanos com todos os demais seres vivos, que não estão
apenas vivos, mas querem viver. Desafia, também, os seres humanos em
sua estranha liberdade para a vida; pois a vida, que pode ser deliberada-
mente negada, tem de ser afirmada antes de poder ser vivida. O amor pela
vida diz sim à vida a despeito de suas doenças, deformidades e enfermida-
des, e abre a porta para uma vida contra a morte. (MOLTMANN, J. The
Spirit of Life. A universal affirmation. Minneapolis: Fortress Press, 1992,
p. 86)

(c) A missão integra os poderes nas regiões celestiais


Na carta aos colossenses, aprendemos que os poderes espirituais (a) foram criados
por Deus em Cristo e subsistem nele (Cl 1,15ss); (b) alguns dos poderes se afastaram de Deus
e do senhorio de Cristo, e foram despojados de seu poder na cruz de Cristo (Cl 2,15); (c)
apesar de despojados do seu poder, ainda influenciam a vida humana e a dos cristãos que não
estão ligados a Cristo, cabeça do corpo (Cl 2,6-11. 16-23); (d) em Cristo, foram reconciliados
por Deus (Cl 1,19-20). Note-se que essa reconciliação não pode ser entendida em sentido
salvífico, mas em sentido escatológico: Deus colocará novamente todo o mundo debaixo de
Sua soberania e comando.
Já em Ef 3,9-11 Paulo acrescenta um elemento novo, de implicação missiológica: A
intenção dessa graça era que agora, mediante a igreja, a multiforme sabedoria de Deus se
tornasse conhecida dos poderes e autoridades nas regiões celestiais, de acordo com o seu
eterno plano que ele realizou em Cristo Jesus, nosso Senhor. De que maneira a igreja torna
conhecida aos principados e potestades a sabedoria de Deus?
O tema só ocorre aqui na teologia paulina, e seu significado é bastante discutido
entre os especialistas. Descartada está a ideia de que a igreja deveria evangelizar tais poderes
e autoridades, pois nas regiões celestiais não se dá a atividade missionária, além do fato de
que seria totalmente inusitada essa ideia no conjunto da teologia bíblica. A resposta deve

3
estar ligada à vida da igreja enquanto tal – a saber, a mera existência da igreja, enquanto a
nova humanidade gerada por Deus em Cristo, dá testemunho da sabedoria divina aos poderes.
Seja qual for o sentido exato desta expressão, ela influenciará a compreensão teológica e
prática da batalha espiritual de Efésios 6.
É sob esta luz que a passagem de Efésios 6,10-20 deve ser lida e interpretada. A luta
que os cristãos enfrentam é contra poderes já derrotados, mas ainda não aniquilados, que se
manifestam contrariamente ao reinado de Deus. Nessa luta, o papel dos cristãos é resistir (v.
11.13.14) e não se deixar enredar pelos esquemas, artimanhas do diabo e dos poderes celes-
tiais. A ênfase no resistir e a não menção a atacar devem levar os leitores da carta a considerar
os esquemas diabólicos de forma similar à usada com relação às filosofias e vãs sutilezas
(Cl 2,8) – são esquemas manifestados nas formas historicamente desenvolvidas de organiza-
ção pecaminosa da vida humana em sociedade e suas legitimações mais variadas. Enfrentar
a batalha espiritual, consequentemente, concretiza-se através de uma vida cristã autêntica na
sociedade não-cristã, em um estilo de vida efetivamente caracterizado pela liberdade em
Cristo, e não pela escravidão aos poderes deste mundo mau.
Daí porque os elementos componentes da armadura divina serem todos vincu-
lados à recepção da salvação, à prática da Palavra de Deus e ao discernimento da verdade: o
cinturão da verdade, a couraça da justiça (para estas duas partes da armadura, v. Ef 4,21-24),
sandálias do ardor evangelístico (v. Ef 6,18ss), o escudo da fé, o capacete da salvação (para
estas duas partes, v. Ef 2,8-10; cf. Is 59,17), e, por fim, a única arma que também poderia ser
usada para ataque (embora não o seja), uma palavra de Deus (o original grego é rhema, sem
artigo, o que aponta para algum dito ou fórmula, e não para a Escritura; provavelmente aqui
devamos ver o exemplo de Cristo ao ser tentado, que sempre achava uma palavra oportuna
na Escritura para resistir à tentação). O modelo para a batalha espiritual deve ser o de Cristo
enfrentando a tentação satânica (Mt 4,1ss e paralelos), e o objetivo dessa batalha é a fideli-
dade ao projeto do Reino de Deus que, neste texto de Efésios, é simbolizado pela intercessão
a favor do anúncio do Evangelho (cf. 6,18-20).

(e) A missão integra o ser humano como um todo


Por fim, a integralidade da missão incorpora a totalidade do ser humano, o ser hu-
mano como um todo. O alvo do trabalho missionário de Paulo e seus companheiros é descrito

4
como: a fim de que apresentemos todo homem perfeito em Cristo (Cl 1,28). A amplitude
do sentido do termo perfeito é mais bem percebida quando notamos a polêmica de Paulo
contra seus adversários em Colossos. Estes estavam ensinando à jovem igreja uma espiritu-
alidade mais completa do que a paulina, e assim negavam a plenitude da salvação que se
recebe em Cristo. Cristo e algo mais, para a plenitude era o lema dos mestres da espiritua-
lidade individualista e legalista em Colossos. Ao declarar o propósito de sua missão, Paulo
antecipa a sua proposta de espiritualidade integral em Cristo, pois nele a salvação é integral.
A perfeição, aqui, pode ser entendida na mesma direção da afirmação de que, mediante a
reconciliação, seremos apresentados a Deus santos, inculpáveis e irrepreensíveis (Cl 1,22).
Não é à toa que, no mesmo verso 28, Paulo descrevera os métodos de sua atividade
missionária, tendo como conteúdo o mistério revelado de Deus, nos seguintes termos: o qual
nós anunciamos, advertindo e ensinando a cada ser humano, em toda a sabedoria . A missão
integral se realiza, para alcançar a integralidade do ser humano, como proclamação do se-
nhorio de Cristo com toda a sabedoria. O termo proclamar, aqui usado, é um termo técnico
para o anúncio dos decretos e das decisões reais. Paulo, o ministro da igreja, o ministro do
evangelho, é o proclamador da vontade do Rei Jesus, e o faz sabiamente, ou seja, com toda
a habilidade possível e necessária (cf. Cl 4,3-6). Tal anúncio se caracteriza por admoestação
e ensino, cujo alcance se percebe na polêmica a seguir, onde Paulo insiste para que os colos-
senses não se deixassem enganar por ensinos contrários a Cristo, antes, se guiassem na vida
com um discernimento marcado pelo pleno conhecimento do mistério de Deus, Cristo, em
quem estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento (Cl 2,3). Retomando
a formulação do propósito da sua missão - apresentar o ser humano completo, em Cristo -
precisamos evitar uma interpretação antropocêntrica da mesma e entender a declaração pau-
lina como uma referência ao Messias: o ser humano completo no Messias, ou seja, indivíduos
e comunidades cristãs com estilo de vida messiânico.

(e) A missão integra judeus e gentios em uma nova humanidade


Em primeiro lugar, a integralidade da missão tem a ver com a criação de uma nova
humanidade, na qual são rompidas todas as barreiras estabelecidas pelo pecado. Como após-
tolo aos gentios e sendo judeu, Paulo demonstrou especial preocupação pela unidade da
Igreja, a partir de sua compreensão da graça divina. Em várias de suas cartas ele aponta para

5
essa nova unidade criada em Cristo. Especialmente em Ef 2,11-22 encontramos uma ousada
afirmação da missão de Cristo como trazendo para um só povo tanto judeus como gentios.
Porque o Messias é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e tendo derrubado a parede da
separação que estava no meio, a inimizade, aboliu na sua carne a lei dos mandamentos na
forma de ordenanças, para que dos dois criasse em si mesmo um novo homem, fazendo a
paz, e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo
por ela a inimizade (Ef 2,14-16) – repare a presença dos mesmos termos que ocorrem no
hino cristológico de Cl 1,15-20: paz, reconciliação.
É parte integrante da compreensão paulina da salvação o rompimento das barreiras
estabelecidas entre os seres humanos pelo pecado, e a criação de uma nova humanidade em
Cristo. O novo homem é a realidade instaurada por Cristo na terra com sua ação salvífica, e
nele não pode haver grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo,
livre; porém Cristo é tudo em todos (Cl 3,11; cf. I Co 12,13; Gl 3,28). Se essa é a missio
Christi, também deve ser a missio ecclesiae – viver de tal forma que, em seu testemunho e
missão, seja instrumento de Deus para a construção de relações humanas justas, fraternas,
sem discriminações, preconceitos, divisões étnicas, econômicas, sociais, ou religiosas. Em
um mundo totalmente dividido e fragmentado pelo pecado, a igreja é a comunidade da uni-
dade em comunhão, na qual Cristo é tudo em todos, onde nenhum outro valor é mais dese-
jado, apreciado e buscado. A primeira dimensão da missão integral é a de alcançar toda a
humanidade com a pregação do Evangelho (cf. Mt 28,16-20) e, consequentemente, com a
nova comunidade que é primícias da nova humanidade desejada por Deus – esta comunidade
obedece a tudo o que o seu Mestre ensinou, que, em uma palavra se pode resumir: amar
como Ele amou (Jo 13,34-35).

2. Desafios da publicidade da missão – Debate


(a) Além da sustentabilidade, o cuidado integral do planeta

(b) Além das instituições, uma democracia integral

(c) Além do individualismo, o reconhecimento integral

6
(d) Além da concorrência e da acumulação, uma economia integralmente solidária

(e) Além do entretenimento, a integralidade das artes

(f) Além da identidade, uma subjetividade integralmente amorosa

Conclusão
Diante da integralidade da missão, precisamos afirmar, com Paulo, que a ação mis-
sionária é luta, esforço e trabalho incansáveis e incessantes (Cl 1,28; 2,1; I Co 15,58; cf. Rm
16,6.12; I Co 4,12; 15,10; 16,16; I Tm 4,10; Cl 2,1; 4,12), que realizamos segundo a sua
energia que em nós opera eficazmente a mesma energia e poder do Messias Jesus, que nos
é concedida mediante o derramar do Espírito Santo que faz de todos nós um só corpo (I Co
12,12-13) e testemunhas do Senhor (At 1,8). Não é à toa que aquelas pessoas que se dedicam
à vida cristã necessitam ser pessoas disciplinadas, subjugando seus corpos ao propósito de
Deus (I Co 9,24-27). Nada de moralismo ou legalismo aqui. Apenas suave e saudável disci-
plina, na graça do Senhor, cuidado amoroso do corpo e da vida, para que não caiamos nova-
mente na escravidão do pecado.
No contexto de sofrimento em que vivemos:
A teologia deve desafiar a comunidade de fé a desenvolver táticas
contextuais concretas para combater as raízes do sofrimento indivi-
dual, estrutural e cósmico, utilizando todos os recursos interdiscipli-
nares que lhe brinda a sua diversidade de dons espirituais, e também
a tomar em consideração as dimensões de consolação, prevenção,
cura e transformação do sofrimento. Sem esta compaixão concreta e
escatológica, sem este sofrer-com-o-mundo, o afã missiológico da
igreja não terá eficácia no sentido da grande comissão. (BEDFORD,
N. E. La misión en el sufrimiento y ante el sufrimiento in PADI-
LLA, C. R. (ed.) Bases bíblicas de la misión. Perspectivas latinoa-
mericanas. Buenos Aires e Grand Rapids: Nueva Creación & Eerd-
mans, 1998, p.402s.)

7
8

Você também pode gostar