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Revista Drama 4 - Dramaturgia Contempora
Revista Drama 4 - Dramaturgia Contempora
tema
Dramaturgia
Contemporânea
Entrevistas
além do tema
Perfil
Jean-Pierre Sarrazac Suso Cecchi D’Amico
Jorge Silva Melo Entrevista
Juan Mayorga John Logan
Tim Crouch
José Maria Vieira Mendes
Panoramas
Dramaturgia portuguesa
e brasileira
DRAMA
revista de cinema e teatro
N.º 4 | Março 2012
-
Editores
Daniel Ribas e Pedro Flores
Editor Convidado
Jorge Palinhos
Grafismo
sergio-alves.com
Paginação
Ângela Ribeiro
Imagem de capa
Thomas Aurin
Tipografia
Dharma Slab e Lato
-
Online
http://drama.argumentistas.org
Contactos
drama@argumentistas.org
APAD
Travessa da Rua dos Pentes, 27 - r/c
1250-105 Lisboa Portugal
2
ENTREVISTA JOAQUIM PAULO
EDITO-
RIAL
Apesar de ser uma arte milenar, o termo «dramaturgia» como hoje o conhecemos
surgiu com o romantismo alemão, através de Gotthold Ephraim Lessing. Este, no
século XVIII, juntou várias reflexões sobre o teatro em A Dramaturgia de Hamburgo,
usando a palavra para designar o conjunto de textos que serviam de base para uma
peça de teatro, uma ópera ou ballet, vistos de um ponto de vista crítico e teórico.
O termo acabou assim por designar tudo o que dá forma, coerência e dinamis-
mo narrativo e linear à obra dramática, pelo que se ajusta perfeitamente ao mo-
por Jorge Palinhos delo clássico do teatro ocidental, fundado desde os primórdios na determinação
aristotélica de que o drama era, antes de tudo, imitação e representação. Deste
modo, o texto funcionava como um meio de aproximação racional à experiência
humana que o teatro aspirava a emular.
No entanto, a partir do século XX, com a expansão do cinema e do audiovisual, com a descoberta do in-
consciente, com a crescente desconfiança para com a racionalidade, a abordagem mimética do teatro
começou a ser posta em causa. Autores como Antonin Artaud e Bertolt Brecht, entre outros, começaram
a rejeitar a imitação e o realismo, procurando novas formas de escrita dramática. Uns promovendo o uso
do género épico no teatro, como no caso de Brecht, outros advogando o fim da representação, em favor
de uma presença não-mediada e autêntica do intérprete, como no caso de Artaud.
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Índi
ce
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ENTREVISTA JOAQUIM PAULO
1/
TEMA
editorial
Jorge Palinhos perfis
60 Valère Novarina
panorâmicas Renata Portas
10 Viagem pela Escrita 64 René Pollesch
Teatral em Portugal Cláudia Lucas Chéu
Joaquim Paulo Nogueira
14 Dramaturgia dos Brasis análises
Jorge Louraço Figueira 70 Narradores, actores e
contadores de histórias
entrevistas Rui Pina Coelho
22 Jean-Pierre Sarrazac 76 Agir num
24 Jorge Silva Melo mundo imprevisível
28 Juan Mayorga Cláudia Marisa Oliveira
32 Tim Crouch 78 A ficção que
36 José Maria já foi realidade
Vieira Mendes Ana Mendes
82 A vida é sonho
testemunhos Luís Miguel Gonçalves
42 Teatro Mitocrítico
Armando
2/
Nascimento Rosa
PARA
46 Imagina que perfil
isto é um jogo 86 O legado de Suso
Carlos Costa Cecchi D’Amico
52 Dramaturgia, visão
política do mundo entrevista
Jorge Feliciano 90 John Logan
56 Processo criativo Pedro Faria
ALÉM
de escrita de teatro
Sandra Pinheiro livros
94 Sobre “On
Film-making — an
introduction to the
craft of the director” de
Alexander Mackendrick
DO TEMA
António Cardoso
análise
96 O corpo e o sentido
do trágico em Elephant
de Gus Van Sant
Ana Barroso
5
6
ENTREVISTA JOAQUIM PAULO
Tema
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ENTREVISTA JOAQUIM PAULO
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panorâmicas
Viagem
pela
Escrita
Teatral
em
Portugal
10
viagem pela escrita teatral em portugal
H
á muitas formas possíveis de falar da mudança de
paradigma na escrita para teatro nos últimos dez
anos, em Portugal, como o comprovamos pelos dois
últimos encontros realizados sobre este tema, Novas
Dramaturgias, no Teatro São Luiz, pelo Colectivo 84,
em Novembro de 2010, e Escritas de Cena, em Maio
de 20111, e todas elas reforçam a ideia de que algo mudou, O que nos permite olhar os anos 904 e descobrir práticas de
de forma radical, na escrita de teatro em Portugal. superação deste impasse. E que não são muito diferentes
Não desvalorizando a importância de todas as diferen- daquelas que indicam o grau de desenvolvimento da escrita
tes formas de problematizar estes contextos de mudança, teatral noutros países: edição de textos, divulgação e leitura
vou propor um recuo até à segunda metade da década de dos textos teatrais, experimentação, produção e montagem
90. É minha convicção de que aí encontraremos o primei- de textos, intercâmbio internacional e investigação.
ro quadro de ruptura com uma situação de impasse que Também é certo que poderíamos recuar um pouco
há muito se instalara na escrita para teatro em Portugal2. mais a algumas iniciativas nos anos 805 com importân-
cia para o desenvolvimento da escrita teatral. Mas foram
CONDIÇÕES DO IMPASSE intervenções muito marcadas por uma defesa, algo ro-
NA ESCRITA TEATRAL NOS ANOS 80 mântica, da escrita teatral enquanto património literário
e artístico6, distanciando-a do processo teatral. Havia
Impasse que todos nós, que nesta altura já escrevíamos excepções7, claro, e de todas elas destaco o apoio para
para teatro, conhecíamos bem, porque o vivemos na pele, a integração de dramaturgos nas companhias, por parte
convivendo com um negativismo crónico sobre as reais do Serviço de Teatro da Gulbenkian, já que foi precursor
capacidades da nossa escrita dramática e que Eugénia na valorização da ideia de que o dramaturgo deve estar
Vasques desmontou, com um levantamento das mais “sig- junto da produção teatral.
nificativas explicações que têm sido avançadas como razões
da mediocridade da nossa literatura dramática”. 3
Levantamento que, para além de assinalar a fragilidade 4 Mais concretamente a segunda metade desta década. Na primeira
e até algum preconceito de muitas das teses que justifi- tinham surgido dois projectos: “Dramaturgias”, da Convenção Teatral Eu-
ropeia (que praticamente não chega a sair do papel), pretendendo, entre
cavam a debilidade da nossa escrita dramática, permitiu
outras coisas, criar uma plataforma de divulgação dos textos por várias
também uma identificação das principais condições que
companhias europeias, e o Círculo Dramatúrgico da Barraca, cujo prémio
afectavam o desenvolvimento da nossa escrita para tea-
em 1994 nos traz o texto revelação do actor Francisco Pestana, Não há
tro: a não inserção dos dramaturgos no processo de criação nada que se coma.
teatral, o desconhecimento dos textos escritos pelos autores 5 Destaque para o Ciclo de Teatro de Autores Portugueses realiza-
portugueses, a escassa montagem da dramaturgia portugue- do pelo Teatro Passagem de Nível, reunindo na Amadora autores como
sa contemporânea e a incipiente investigação sobre teatro e Norberto Ávila, Jaime Gralheiro, Jaime Salazar Sampaio, Augusto Sobral,
escrita teatral. Romeu Correia, Fernando Augusto, Fernando Dacosta, Luiz Francisco
Rebello, entre outros. O que se compreende, já que era no teatro amador
que a maior parte dos seus textos eram feitos.
6 A segunda metade dos anos 80 foi dominada pelo fenómeno Miguel Ro-
1 Na Escola Superior de Teatro e Cinema, numa organização de Armando visco (Prémio Nacional de Teatro 1986 (e 87, este postumamente) e que se
Nascimento Rosa e Rui Pina Coelho. suicida no ano seguinte. Rovisco, que dizia que escrevia teatro fechado no
2 Uma convicção construída durante a investigação sobre a “Escrita Tea- seu quarto, é um caso flagrante de dissociação em relação à prática teatral.
tral nos Anos 90”, projecto de tese de mestrado com orientação pelo Prof. 7 O Teatro Semeador de Portalegre começou nos anos 80 um projecto
Doutor Paulo Filipe Monteiro (cuja orientação acompanha também o meu de encomendas a dramaturgos (entre outros, Norberto Ávila e Jaime Sa-
projecto de doutoramento). lazar Sampaio). A Comuna tinha Abel Neves como dramaturgo residente.
3 Em Jorge de Sena, Uma Ideia de Teatro, Lisboa, Cosmos, 1998. Vasques é O TELA tentou em 1986 um projecto de escrita dramatúrgica que se ficou
autora também de Mulheres que escreveram para Teatro no Século XX. pelo primeiro espectáculo, A Noite Antes da Festa.
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panorâmicas
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viagem pela escrita teatral em portugal
encontramos qualquer referência a este projecto). rem pequenas peças. E também o trabalho do CENDREV com Armando
Nascimento Rosa, que entre 2004 e 2008 estreou todos os anos um es-
pectáculo deste autor. E as encomendas do Bando a Carlos Alberto Ma-
A ESCRITA TEATRAL
chado, Jaime Rocha e Jacinto Lucas Pires.
NO NOVO MILÉNIO 11 A própria APAD, com o apoio da sua congénere espanhola, assegu-
rou a participação portuguesa no Salão do Livro de Teatro em Madrid,
Dei-me ao trabalho deste esforço evocativo para cha- de 2003 a 2005. Em Évora o CENDREV lançou os Encontros de Teatro
mar a atenção para um dinamismo, surgido nos anos Ibérico. Os Encontros Internacionais de Escrita Dramática de Valdigna-
90, de superação de uma situação de impasse na escrita -Valência contaram também com a presença de autores portugueses. As
para teatro, acreditando que esse recuo nos ajudará a revistas Alhucema (Teatro mínimo) e Puertas del Drama (Associação de
perceber melhor a intensa actividade que encontramos Autores de Teatro) dedicaram um dos seus números a Portugal.
nesta primeira década do milénio. 12 Jaime Rocha, Pedro Eiras, José Maria Vieira Mendes, Teresa Rita Lo-
pes, Hélia Correia, Armando Nascimento Rosa, Abel Neves, Jaime Salazar
Consolidaram-se muitas experiências, criaram-se
Sampaio, Augusto Sobral são apenas alguns dos nomes que foram traduzi-
condições para afastar a questão do desenvolvimento
dos em várias línguas. De registar aqui, na tradução, o trabalho incansável
da escrita cénica no quadro de mal entendidos cada vez de Alexandra Moreira da Silva (Atelier Europeu de Tradução, Solitaires
menos produtivos sobre as querelas entre o texto e o te- Intempestivs, Maison Antoine Vitez, Éditions Théâtrales) ou da tradutora
atro, sobre a tensão entre autores e encenadores. Hoje e investigadora Tatjana Manojlovic.
há uma cena emancipada de todos esses problemas que 13 Carlos Costa escreve Os Escritores de Cena na primeira década do séc.
pareciam insanáveis até ao final dos anos 90. Nas suas XXI (tese de mestrado) e neste momento há vários doutorandos (José
diferenças de sentido e de estilo, o Teatro Praga, o Vi- Mascarenhas, Helena Simões, Guilherme Mendonça, Jorge Louraço Fi-
sões Úteis, o Teatro do Vestido, a Panmixia, o Colectivo gueira, Jorge Palinhos e Mickael de Oliveira) que, em diferentes perspec-
84, o Teatro da Garagem, a Mala Voadora, a Karnart, en- tivas, realizam investigações sobre a escrita teatral.
14 Como, entre outros, Primeiros Sintomas, Teatro Mínimo, Panmixia,
tre outros, trazem-nos um discurso sobre a cena que,
Mala Voadora, A Máquina Agradável, o Teatro Praga, Visões Úteis, Teatro
mais ou menos frágil, mais ou menos canonizado, se de-
Plástico, Colectivo 84, Teatro do Vestido, a Qatrel e a Karnart.
15 Filomena Oliveira, Tiago Rodrigues, Cláudia Lucas Chéu, Luís Mestre,
9 Cujo projecto de trabalho é interrompido por José Wallenstein, director Rui Pina Coelho, Jorge Palinhos, Ana Mendes, Luís Mário Lopes, Carlos
do TNSJ, que o substitui por Maria João Vicente, do Teatro da Garagem. Costa, Patrícia Portela, Miguel Castro Caldas, Mickael de Oliveira e André
Murraças, entre outros.
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entrevista joaquim paulo
Dramaturgia dos
BRA
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dramaturgia dos brasis
ASIS
gia brasileira, com séries e novelas como O Bem-Amado
ou Roque Santeiro, que emblematizam o carácter nacional
brasileiro. Ariano Suassuna (1927), outro autor bastan-
te presente, escreveu uma mão cheia de farsas brilhan-
tes, que congregam as tradições nordestina e ibérica,
entre as quais se encontra o mundialmente famoso Auto
da Compadecida (1955). Suassuna foi também a figura
principal do Movimento Armorial, um dos mais influen-
tes movimentos da criação artística brasileira contem-
porânea, lançado no Recife em 1970.
Estes quatro dramaturgos principais não estão so-
zinhos. Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), com
Eles Não Usam Black-Tie (1958); Oduvaldo Vianna Fi-
lho (1936-1974), o Vianinha, com Chapetuba Futebol Clu-
be (1959); e Augusto Boal (1931-2009), com Revolução
na América do Sul (1960), são os três principais autores
do Seminário de Dramaturgia do Arena, movimento de
escrita teatral que buscou retratar a realidade do país,
ao mesmo tempo que pretendia inovar formalmente. Os
mesmos autores escreveram, respectivamente, Um Gri-
to Parado no Ar (1972) e Ponto de Partida (1976); Papa Hi-
ghirte (1968) e Rasga Coração (1972); Arena Conta Zumbi
por Jorge Louraço Figueira (1965) e Arena Conta Tiradentes (1967); peças que reflec-
dramaturgo e encenador tiram as contradições da sociedade brasileira, tomando
partido contra o regime político. Em 1968, Boal monta
A
origem de um dos maiores mananciais da dramatur- a Primeira Feira Paulista de Opinião, com textos curtos de
gia de língua portuguesa é o Brasil, em particular São vários autores, entre os quais ele próprio, Guarnieri e
Paulo e o Rio de Janeiro, onde estrearam as mais rele- Plínio Marcos, mas também Lauro César Muniz (1938)
vantes peças teatrais e os mais brilhantes dramatur- e Jorge Andrade (1922-1984), recém-saídos do curso
gos. A importância dessa produção para a dramatur- de dramaturgia da Escola de Arte Dramática, onde se
gia ocidental ainda está por avaliar. Com este artigo formou também Renata Pallottini (1931). Maria Clara
pretende-se dar um primeiro passo nessa avaliação, fazen- Machado (1921-2001) é o nome de referência no teatro
do um sumário de obras e autores recomendáveis. para crianças. A esta geração nascida nos anos 20 e 30
do século XX podem juntar-se os escritores modernistas
Os dramaturgos mais célebres do Brasil, de quem o vi- Oswald de Andrade (1890-1954) e Mário de Andrade
sitante actual encontrará sempre uma peça em cartaz, (1893-1945), o primeiro porque é autor da peça O Rei
são Nelson Rodrigues (1912-1980), autor de Boca de da Vela (1937), que fez a fortuna crítica do Teatro Oficina
Ouro (1959), Beijo no Asfalto (1961) e A Serpente (1978); e de José Celso Martinez Correa, numa versão afamada
e Plínio Marcos (1935-1999), que escreveu Dois Perdi- de 1967 que se tornou um marco da encenação no Bra-
dos Numa Noite Suja (1966), Navalha na Carne (1967) sil; o segundo porque escreveu Macunaíma (1928), que
ou Querô (1979). O primeiro autor retrata as neuroses Antunes Filho encenou numa adaptação igualmente cé-
sexuais dos moradores do Rio de Janeiro, o segundo o lebre, em 1978, e o libreto da ópera Café (1942).
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panorãmicas
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dramaturgia dos brasis
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entrevista
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dramaturgia dos brasis
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entrevista joaquim paulo
Jean-Pierre
Sarrazac
Jean-Pierre Sarrazac é dramaturgo,
encenador, professor da Univer-
sidade de Paris - Sorbonne III e de
Lovaina e é tido como um dos prin-
cipais especialistas europeus na po-
ética do drama moderno. Algumas
das suas peças já foram encenadas
em Portugal e tem três livros pu-
blicados em português: O Futuro do
Drama, A Invenção da Teatralidade e
O Outro Diálogo.
Jean-Pierre Sarrazac teve a amabi-
lidade de arriscar algumas respostas
às perguntas que lhe colocámos – e
de nos dizer logo que qualquer uma
delas daria um longo estudo – com as
quais procurámos contextualizar o
lugar do drama contemporâneo.
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jean-pierre sarrazac
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entrevista joaquim paulo
Jorge
Silva Melo
ttt
Dispensa apresentações, e é quase
impossível descrever na totalida-
de, o percurso de Jorge Silva Melo,
uma das figuras mais conhecidas da
cultura portuguesa actual. Estudou
cinema na London Film School, fun-
dou o Teatro da Cornucópia com Luís
Miguel Cintra, foi assistente de direc-
ção de Peter Stein, Giorgio Strehler,
João César Monteiro, Paulo Rocha,
António-Pedro Vasconcelos e Alber-
to Seixas Santos. Em 1995 fundou
a companhia Artistas Unidos, que
desde então tem vindo a descobrir
e a montar alguma da melhor dra-
maturgia contemporânea europeia.
Pedimos-lhe que respondesse a al-
gumas questões que lhe colocámos
sobre esta.
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jorge silva melo
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entrevista joaquim paulo
Juan
Mayorga
Juan Mayorga é um dos mais concei-
tuados dramaturgos espanhóis da
actualidade. Formou-se em filosofia
e matemática, sendo autor de vários
estudos sobre Walter Benjamin. É
membro do conselho de redacção da
revista de teatro Primer Acto e docen-
te na Real Escuela Superior de Arte
Dramático de Madrid. Várias peças
suas, como Cartas de Amor a Stalin,
Hamelin, O Rapaz da Última Fila, etc.,
estão traduzidas para português.
Na seguinte entrevista colocá-
mos-lhe algumas questões sobre o
labor da escrita e a influência que o
seu percurso exerce sobre as peças
que tem vindo a escrever.
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juan mayorga
que procuro.
Não há nada de tão misterioso e fascinante
todos estes casos é que algumas persona- como a criação de uma personagem que se
gens te assaltam e te pedem que lhes dês impõe aos poucos ao seu criador até que um
corpo, espaço, tempo, linguagem: teatro. dia se torna mais real do que o próprio cria-
Quando quis escrever a partir de um tema dor.
(Animais nocturnos, A paz perpétua, 581 ma- De onde é que surgem as minhas perso-
pas), não o consegui fazer até dar com essa situação ou nagens? Primeiro da minha própria vida e das vidas das
essa personagem capaz de arrastar a ideia pelo espaço pessoas com quem me tenho cruzado. Também a partir
e pelo tempo. da minha vida como leitor e espectador.
Quando me coloco diante do papel, penso em cada
De que forma é que estrutura o texto e a trama dra- personagem em relação com as demais – nos seus pos-
mática até à sua forma final? síveis conflitos, nas suas possíveis alianças, nas suas se-
Geralmente resisto ao impulso de escrever, deixando melhanças, nos seus contrastes. E procuro, sobretudo, a
que o motivo inicial me acompanhe durante meses e ferida e a luz da personagem.
se vá associando a outros. Desse modo vão surgindo
situações, personagens... Deste modo vai aparecendo
também a forma da obra. A dado momento, detenho-me
para pensar sistematicamente na obra que estou a pro-
jectar, e é nessa altura que tomo decisões sobre as per-
sonagens, os espaços, os tempos, a linguagem verbal e a
linguagem teatral, a estrutura... Tento ter em conta a par-
te sétima da Poética de Aristóteles, segundo a qual, se eu
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entrevista joaquim paulo
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juan mayorga
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entrevista joaquim paulo
Tim
Crouch
Actor e dramaturgo britânico, Tim
Crouch tem vindo a afirmar um per-
curso singular na busca de novos
temas e formas de fazer teatro e
performance. Várias das suas peças
já foram apresentadas e tiveram as-
sinalável sucesso um pouco por todo
o mundo ocidental. Algumas foram
apresentadas em Portugal, e estão
publicadas na colecção «Livrinhos
de Teatro», como é o caso de Um
Carvalho e O Autor. Fomos tentar
perceber como é que Tim Crouch
escreve e o que é que o inspira no
seu trabalho de escrita e encenação.
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tim crouch
Normalmente, qual é a inspiração para escrever um Enquanto autor, como é que nascem e se desenvol-
texto e como é que desenvolve a ideia inicial? vem as suas personagens?
Na verdade só tenho uma ideia (ou fascínio) – e cada uma As minhas personagens representam mais ideias do que
das minhas peças constitui uma forma diferente de ex- “outras pessoas” vivas e dinâmicas. O meu trabalho é de-
plorar essa ideia. Essa ideia para mim existe no potencial safiar a perspectiva representacional da interpretação
que se pode obter entre o palco e o público – que trans- de uma personagem. Estou interessado na ideia de que
formações se podem obter sem alterações fí- uma personagem ser negociada entre o actor
sicas. Por exemplo, a minha próxima peça de- e o público. Isso torna-se claro na minha peça
bruça-se sobre a forma como representamos
pessoas – reais – no palco – como é que nós, Normalmente O Autor, onde cada um dos actores represen-
ta uma personagem com o seu próprio nome,
de forma ingénua, procuramos uma transfi-
guração física nessa representação. Poderia
escrever um panfleto com esses meus pensa-
há uma dança uma personagem próxima da sua própria
personalidade. Eu desempenho um homem
chamado Tim Crouch que é dramaturgo e en-
mentos, mas prefiro contar uma história que
os explore. E, associada a essa história, sus-
tentada nessa história, estará a forma como
entre ideia cenador. Uso as minhas próprias roupas, falo
com a minha voz normal. A única coisa que
distingue o eu real do eu ficcional é a divisão
a história é contada. Desse modo, a forma e
o conteúdo orientam-se para explorar algo
e narrativa. narrativa entre as acções que desempenho na
ficção e na minha própria vida. Não preciso de
de semelhante. A inspiração para começar a demonstrar essa diferença através da repre-
escrever normalmente surge após um longo sentação de ‘outra’ personalidade. O público
processo de leitura e anotações. É entre a é convidado a fazer essa distinção.
bruma das notas que as coisas começam a ganhar forma. A minha peça que mais assenta numa personagem é
O meu trabalho enquanto escritor é procurar essas for- a minha peça para jovens, I, Malvolio, porque estou a
mas e testá-las em relação à minha ideia. responder a uma personagem muito vívida criada por
Shakespeare. Na peça não sou claramente eu. Mas tam-
Como é que estrutura o texto e o enredo até à sua bém não me sinto obrigado a ser fiel à personagem. Pos-
forma final? so saltar entre actor e personagem facilmente e isso não
As minhas peças não são peças tradicionais – estruturadas vai afectar a identificação do público com essa persona-
em torno da acção psicológica. Por vezes as personagens gem. Se tanto, vai até aumentar essa identificação, pois
não têm nomes ou são veículos para um estudo ideológi- este compreende a natureza da criação.
co, e não códigos regidos por personagens. A estrutura
nasce da própria escrita. Alguns autores estruturam tudo
antes de começarem a escrever cenas ou diálogos. Eu
não. Eu começo com um palpite associado a uma ideia e
história. Trabalho de forma intuitiva – seguindo uma linha
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tim crouch
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entrevista joaquim paulo
José Maria
Vieira Mendes
Nascido em 1976, José Maria Vieira
Mendes tem já um longo percurso no
teatro. Frequentou a Internacional
Summer Residency do Royal Court,
de Londres, traduziu Samuel Beckett,
Jon Fosse, Harold Pinter, Heiner
Müller, Rainer Werner Fassbinder e
Bertolt Brecht, e é autor de uma obra
dramática considerável, premiada e
publicada em várias línguas. Em Por-
tugal trabalhou fundamentalmente
com as companhias Artistas Unidos
e Teatro Praga. Acedeu a responder
a algumas perguntas sobre o seu tra-
balho de criação e sobre a sua visão
da dramaturgia contemporânea.
36
josé maria vieira mendes
Qual costuma ser o ponto de partida dos seus textos e O José Maria Vieira Mendes já colaborou com os Ar-
como é que estes se desenvolvem? tistas Unidos, que praticam um teatro mais literário, e
Tenho tido um percurso de mais de dez anos de escrita para hoje integra o coletivo Teatro Praga, mais influencia-
teatro que passou por várias fases. Desliguei-me entretan- do por uma estética da performance e das artes plás-
to de uma escrita para um teatro de texto e concentrei-me ticas. Quais os desafios e atrativos de escrever para
no meu trabalho com a companhia Teatro Praga, da qual estas duas diferentes formas de fazer teatro?
faço parte. E dentro deste coletivo tenho trabalhado de Neste momento não escrevo para nenhuma forma de
diferentes formas, seja escrevendo textos com um grupo teatro. Apenas faço espetáculos com o Teatro Praga. E
de pessoas, durante os ensaios, tentando preencher uma nem todos os espetáculos que faço enquanto membro
estrutura e conceito de espetáculo amadurecida, em con- do Teatro Praga têm textos escritos por mim. Às vezes
junto e recorrendo a diferentes materiais, seja propondo nem sequer uma frase escrevo. O Teatro Praga faz te-
um texto meu como objeto literário que pretendo que seja atro. Não faz performance nem artes plásticas, mas
lido pelos restantes membros da companhia e entendido trabalha com essas influências como trabalha com as in-
como estímulo para um espetáculo que não se pode fazer. fluências da música, do teatro, da televisão e do cinema,
ou seja, de tudo o que se passa à nossa volta. Teatro é
De que forma é que estrutura o texto e a trama dra- um termo suficientemente abrangente apesar de tanta
mática até à sua forma final? gente o tentar reduzir.
Vou escrevendo. Tenho ideias. Penso. Manipulo. Não me Continuo a escrever peças de teatro. Acabei de escrever
interessa a “trama”. Só trabalho com ela para mostrar uma peça a que chamei Terceira Idade, uma comédia. Vamos
que ela não interessa para nada. Interessam as ideias. A tentar fazer um espetáculo em que esse texto seja dito. Ou
trama apenas serve para dizer coisas como “Adensa-se a parte dele. Se mais alguém quiser fazer qualquer coisa com
trama. E fica tramado.” E fujo da forma. A sete pés. este texto, não me oponho. É pouco provável que vá ver o
espetáculo ou participar nos ensaios. Mas, atenção, o texto
Como nascem e crescem as personagens nos seus textos? é uma peça de teatro. E não teatro.
Ninguém nasce nem ninguém cresce. O teatro não é a A minha relação com os Artistas Unidos, que é uma re-
vida. O teatro é o teatro. Ou é aquilo que torna a vida lação neste momento com o Jorge Silva Melo, tem por um
mais interessante do que o teatro. Nascer e crescer são lado que ver com o passado, e, no presente, com uma espé-
metáforas que a mim não me dizem nada. Trabalho com a cie de prolongamento do passado no presente. Parece-me
ideia de ator. Um ator a dizer um texto. E o texto pode ter mais difícil os Artistas Unidos interessarem-se por aquilo
umas personagens ou não. (Quando as tenho em textos, que ando a escrever agora. Mas não quero ajuizar por eles.
só lá estão para mostrar que as personagens não inte-
ressam para nada.) Mas não pode deixar de ter ideias. Tendo trabalhado como dramaturgo, tradutor de te-
Pensamento. São pessoas a pensar em palco. Pessoas a atro, formador de escrita dramática e júri de prémios
fazer coisas para outras pessoas. Pessoas que entrem e de dramaturgia, que visão tem sobre a dramaturgia
saem, não nascem e morrem. portuguesa contemporânea?
Nenhuma. E também não sei o que é “dramaturgia”. —
37
entrevista
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josé maria vieira mendes
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40
ENTREVISTA JOAQUIM PAULO
41
entrevista joaquim paulo
TEATRO
MI-
«As afinidades compulsivas entre a
forma filosófica e a forma poética, o
seu nascimento geminado no impulso
primordial em direcção ao significado,
em direcção à tentativa da consciência
humana de encontrar alojamento no
mundo conhecido – tentativa a que
podemos chamar “mito” – provocaram
esses conflitos de que a República de
Platão continua a ser um exemplo.»
George Steiner,
Paixão Intacta (2003)
TOCRÍTI-
CO
Uma breve introdução «A mitologia é a verdade dispersa, tú-
nica rasgada de um deus morto a quem
só podemos ressuscitar juntando com
paciência piedosa todos os pedaços.
Esta tarefa é superior às nossas forças.
Por isso os egípcios confiavam a Ísis
a missão divina de caminhar sozinha
através da noite para fazer da seara
cintilante das estrelas o corpo único
do seu esposo ressuscitado, Osíris, o
sol brilhante.»
Eduardo Lourenço,
Ísis ou a Inteligência (2008)
42
teatro mitocrítico
T
al como o sonho para Freud, na sua centenária teo- terpretativa do «delírio mítico» do poeta-xamã. Renun-
ria da interpretação dos sonhos, também para mim a ciando à radicalização do seu mestre, que expulsava os
escrita de uma peça teatral tem por base um desejo poetas da cidade ideal, Aristóteles identifica um lugar
primordial: o desejo de ver a transformação daquele discursivo de meio termo onde se fundem poesia e filo-
guião de palavras e ideias com potenciais imagens sofia num casamento inesperado: nos três géneros tea-
num espectáculo de gente viva e actuante no lugar trais cultivados pelos gregos (tragédia, comédia e drama
da cena. Mas esse desejo, que preside à escrita do sonho satírico), a criação dramática configura o terceiro termo
de acordados que o teatro é, consiste num desejo explí- que proporciona uma síntese para a antítese platónica
cito, cuja latência é inteiramente manifesta, contrariando entre poesia e filosofia. Porque é conveniente não es-
freudianas censuras, mesmo sabendo que a raiz desse quecer que o alvo de estudo da Poética - esse que ficou
desejo tem uma natureza que se estende por uma vasta sendo conhecido como o primeiro tratado de teoria lite-
paisagem que os olhos da consciência já não alcançam, rária no Ocidente - é precisamente a poesia dramática e
mas apenas intuem. a destinação cénica a que esta está votada. Na Poética,
Com estes mesmos olhos da consciência dirigidos surpreende-nos Aristóteles ao afirmar que a poesia dra-
para o que faço, tanto na escrita dramática como nas mática é algo mais filosófico do que a História porque,
incursões do ensaio (tendo o teatro por horizonte), ve- ao contrário dos particularismos factuais desta, o drama
rifico que uma designação me será comum a ambas es- visa a representação do universal através dos caracteres
tas modalidades de produção estética e hermenêutica: que integram a acção teatralizada. Esta declaração, que
refiro-me a uma constante mitocrítica, dinamizadora decerto faria estremecer Platão, seu mestre, é uma to-
simultânea de imaginário e pensamento. mada de posição que legitima por inteiro a abordagem
Que é isso de teatro mitocrítico? É a pergunta que mitocrítica vista nestes moldes, uma vez que reconhece
coloco a mim mesmo no arranque deste artigo. Come- uma vocação filosófica nos modos com que o drama-
ço pelo termo mitocrítico. Ele ocorre-me num exercício turgo concebe os mitos para serem expostos no palco
de imaginação conceptual, não obstante estar ciente do da pólis. E é o mesmo Aristóteles que fala do mito como
contexto semântico e metodológico influente com que o alma do drama, ainda que a acepção aristotélica de mito,
na Poética, seja eminentemente secular, mais abstracta
(ou conceptual) do que sincrética, e se reporte ao que
entendemos por estória, enredo, narrativa que a cena
dramatiza. Esse mito de que fala o filósofo não é neces-
sariamente a matéria-prima elementar dos sistemas de
crença religiosa, embora possa com ela coincidir, visto
43
testemunhos
44
teatro mitocrítico
à criação dramatúrgica
origens, de maneiras mais ou me-
nos explícitas. E talvez seja apenas STEINER, George [1996]. Paixão Intacta. En-
uma simples tautologia reclamar a saios 1978-1995. Trad. de Margarida Periquito
legitimidade da designação de tea-
tro mitocrítico. Persisto porém em
fazê-lo, uma vez que clarifica para
descobre a sua dimensão e Victor Antunes. Lisboa: Relógio d’Água, 2003.
imaginação dramática e a
tes, Universidade de São Paulo, pp. 73-84.]
e a compaixão que experienciei pe-
rante uma tragédia contemporânea
assistida à distância, através dos
media: o desastre nuclear ocorrido
no Brasil, na cidade de Goiânia, em imaginação dramática como
1987, e que daria origem a Goiânia
– Uma Nova Caixa de Pandora, obra
dramaturgicamente ambiciosa que
potenciadora de sentidos
pretendia, na experimentação ju-
venil da minha escrita para teatro,
aferir a possibilidade de abordar em teatro o trágico da
condição contemporânea, de habitantes num planeta vivo
com futuro ameaçado. —
45
entrevista joaquim paulo
Imag
é um
jOgO Paisagem, viagem, participação
e tecnologia na dramaturgia do
Visões Úteis – 1999/2011
:
46
imagina que isto é um jogo
gina
por Carlos Costa
Co-director artístico
e de produção do Visões Úteis
que isto
entre pinhais e montanhas. O Projecto Umbigo repetiu-
-se por mais dois anos, acabando por ser absorvido pelo
ritmo padrão dos novos processos criativos a partir daí
adoptados – baseados numa metodologia colaborativa
e direcção partilhada – que passaram a forçar períodos
longos de reflexão em que a ausência do Porto era subs-
tituída pelas novas possibilidades oferecidas pelas tec-
nologias da comunicação.
Em 2001, no âmbito do projecto Visíveis na Estrada atra-
vés da Orla do Bosque, o VU desenvolvia o que terá sido
um dos primeiros blogues portugueses; Tanto mais que
E
m 1999 os directores artísticos do Visões Úteis tecnicamente não se tratava de um blogue (a tecnologia
(VU) refugiavam-se numa aldeia da Beira Alta para ainda não estava disponível), mas sim de um sítio em que
o primeiro Projecto Umbigo, que se traduzia em al- o Webmaster inseria quotidianamente não só informação
gumas semanas de retiro para trabalho não enqua- e imagens sobre o andamento do projecto, mas também
drado em nenhum processo de produção. Nestas os contributos e comentários de toda a equipa, como se
semanas alternavam-se momentos diversos como cada um tivesse a possibilidade de o fazer. Na verdade era
o estudo individual, apresentações teóricas, exercícios a prefiguração de uma tecnologia ainda inexistente, mas
de escrita e encenação e training de actor. E, ao longo das que ficaria disponível pouco depois e que passaria a mar-
corridas matinais, íamos apontando lugares que “só por car grande parte dos processos criativos até à actualidade.
si” pareciam sustentar a encenação de determinado tex- Assim, e sempre que se trata de processos de escrita ori-
to e imaginando – sem qualquer espírito prático - uma ginal, procede-se, com muitos meses de antecedência (às
megaprodução que convocasse o público a uma pere- vezes um ano ou mais), à abertura de um blogue interno
grinação por encenações de textos “clássicos”: entre o – só acessível à equipa – no qual se desenvolvem as pre-
pôr do sol e o nascer do sol, em quatro pontos perdidos ocupações, formas e temas que sustentarão o projecto. A
tecnologia foi vital para potenciar o encontro, a partilha
e a democratização dos processos – logo dos produtos –
convidando cada cocriador a responsabilizar-se pela sua
maior ou menor participação. E, ao longo desta última
década, o rasto destes processos foi-se acumulando numa
série de ruínas que sobrevivem escondidas em www.viso-
esuteis.pt - onde a generalidade dos originais produzidos
são disponibilizados sob licenças de creative commons.
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testemunhos
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imagina que isto é um jogo
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Dramaturg
visão política
do mundo
dramaturgia, visão política do mundo
É
famosa a frase em que Marx afirmava “os filósofos tar-se o que é que tem tudo isto a ver com arte, teatro
têm interpretado o mundo de diferentes maneiras. ou dramaturgia.
Mas o que importa hoje é transformá-lo”. Esta frase, Nos dias que correm a ideologia dominante continua a
contendo todo um programa, teve repercussões em separar as artes da política, fazendo-nos crer que temos
todas as áreas da vida. de optar por uma ou por outra.
Milénios de idealismo dissipavam-se no ar. Portanto se assumimos que o nosso trabalho tem uma
Obviamente as artes e o teatro não podiam passar ao perspectiva política então não estamos a fazer arte, e se
lado do materialismo marxista. Ao perguntarem-lhe se estamos a fazer arte então não podemos assumir uma
poderia o teatro reproduzir o mundo, Brecht respondeu perspectiva política.
“creio que o mundo de hoje pode ser reproduzido, mes- Normalmente a classe dominante considera deprecia-
mo no teatro, mas somente se for concebido como um tivamente que é política, ou de intervenção, a obra que
mundo susceptível de ser transformado”. coloca em causa os seus interesses, a sua visão do mun-
Brecht apontava assim aquilo que seria o novo papel do, porque à classe dominante interessa que o mundo
do teatro na sociedade do seu tempo, um tempo de agu- seja imutável, porque este mundo, tal como está, serve
dização da luta de classes, de ascensão do socialismo, de na perfeição os seus objectivos predatórios.
enorme crise do capitalismo, que, em desespero de cau-
sa, arrancou a máscara e lançou as garras de fora numa
deriva fascista.
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entrevista joaquim paulo
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dramaturgia, visão política do mundo
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Processo
na escrita
de teatro
U
por Sandra Pinheiro ma peça de teatro surge de uma ideia. Muita gente
Dramaturga diz-me frequentemente perante alguma situação
mais caricata ou estranha: “Devias escrever uma peça
sobre isto”. E todos os textos que escrevi para teatro
partiram da realidade e de acontecimentos concre-
tos que me marcaram profundamente. Quando isso
acontece, e quando realmente começo a sentir vontade de
escrever uma peça sobre o assunto, mergulho no tema e
tento recolher o máximo de informação possível para per-
ceber a situação e que tipo de história poderá debruçar-se
sobre essa situação. É uma fase complicada porque estou
a pensar num tema e muitas vezes penso no tema em abs-
tracto. É nesta altura que habitualmente me surgem algu-
mas ideias, começam a aparecer as personagens e a missão
destas e finalmente a história final. Só depois disto é que
começa o processo de escrita.
processo criativo na escrita de teatro
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ENTREVISTA JOAQUIM PAULO
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perfis
Valère
Novarina
Biografia
Valère Novarina nasceu em 1947 em
Chêne - Bougeries, filho de Manon Trolliet,
actriz, e Maurice Novarina, arquitecto.
Em 1974 Jean- Pierre Sarrazac encena a
sua primeira peça L`Atelier Volant.
última temporada do Théâtre de l´Odéon, bordados; tecem a frase com todo o vazio em volta, traçando a
conta com inúmeros estudos sobre a sua três: o tempo, o espaço, o sopro; a coisa, a contracoisa, o vazio
obra, e com festivais inteiramente devota-
entre elas; o menos, o mais, o impulso do menos para o mais; a
dos ao seu trabalho – nos Estados Unidos,
no Brasil, na Suíça entre outros. Falar de limalha, o íman, a atracção – prendem duas coisas com o vazio
Novarina e da sua obra – onde a linguagem entre elas que é o lugar oco do amor; prendem entre as duas o
é o pilar do drama - é atraiçoá-lo. Há anos 3 que é sua relação soprada e de desejo.1
que Novarina se debruça sobre a linguagem
como matéria, origem e coisa primeira do
mundo, para lá do Homem, independente. A
No teatro novariniano duas personagens governam a
armadilha está em que, para falarmos deste, cena: a Boca e o Ouvido. A Boca, signo maior do actor,
e do seu universo, precisamos por instantes é relegada para uma função inferior – a boca de cima é
de abandonar o credo, e usar a linguagem comandada pela boca de baixo, pelos intestinos, pelos
como moeda de troca entre aquele que es-
órgãos inferiores. A linguagem não é um exercício de in-
creve e aquele que segura a página na mão
– em busca de compreensão, de mesura do telecto, é um jacto ejaculatório. É uma compulsão, uma
mundo – tarefa impossível. desordem, uma outra ordem do mundo que, acidental-
Tentemos. mente, foi doada ao Homem.
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valère novarina
2 De Trinitate – Santo Agostinho 4 Allen S. Weiss, performer, criou com Gregory Whitehead o espectáculo
3 Excerto de Théâtre des Oreilles – Où habite le Théâtre, idem Theater of The Ears, em 2000, N.Y.
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perfis
René
Pollesch
Coqueluche
Pós-Dramática Berlinense
Autor pós-dramático
A denominação teatro “pós-dramático” foi formulada pelo
crítico e professor de teatro alemão Hans-Thies Lehmann
na sua obra Postdramatisches Theater publicada em 1999
dramaturga e encenadora
René Pollesch é um dos mais prestigiados au- na Alemanha. Segundo este, desde o Teatro Isabelino ao
fotografia Thomas Aurin
por Cláudia Lucas Chéu
tores e encenadores do teatro alemão con- Teatro Burguês do final do século XX, a produção teatral
temporâneo. Nascido em 1962 em Frankfurt,
tem funcionado sempre dentro dos mesmos princípios
estudou no Instituto de Estudos Teatrais de
Giessen, foi aluno de Heiner Müller e Geor- aristotélicos. Contudo, Lehmann defende que existe uma
ges Tabori, estagiou no Royal Court Thea- nova forma teatral apoiada numa espécie de teatro do
tre de Londres, traduziu e adaptou Ovídio, acontecimento, que não se preocupa com a adesão do
Shakespeare, Joe Orton, entre outros, e di- espectador. Outro dos aspectos levantados por Lehmann
rigiu o Teatro de Lucerna e o Schauspielhaus
de Hamburgo. Entre 2002 e 2007 trabalhou
refere-se às características fragmentárias dos textos usa-
na Volksbühne como director artístico da dos nesta forma teatral e/ou às montagens várias/trans-
Sala Prater, e foi considerado pela prestigiada versais, que criam uma nova reescrita cénica. Surge então,
revista Theater Heute como um dos melhores um novo universo textual e/ou cenográfico e os proble-
dramaturgos alemães, após um inquérito re-
mas que são propostos aos criadores e ao espectador não
alizado junto dos leitores. Em 2001 e 2006,
Pollesch recebe o Dramatist Prize da cidade seguem a lógica do psicologismo tradicional.
de Mülheim, e, em 2007, é-lhe atribuído o É possível entender o teatro pós-dramático como uma ten-
Viennese Nestroy Prize. tativa de conceitualizar a arte no sentido de propor não uma
Pollesch distingue-se da maioria dos en- representação, mas uma experiência do real (tempo, espaço,
cenadores alemães e/ou europeus, sobre-
tudo porque contrariamente a estes (cuja
corpo) que visa ser imediata: teatro conceitual. A imediatidade
principal prática artística é escolher textos de toda e uma experiência compartilhada por artistas e públi-
clássicos e encená-los) apresenta sempre co se encontra no centro da arte performática”1
espectáculos da sua autoria, reescritos com
a colaboração dos elencos com quem traba-
lha (actores, bailarinos, e muitas vezes, com
elementos que não são artistas). 1 Lehmann, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático, trad. Pedro Süssekind,
Editora Cosac & Naif, São Paulo, 2007, p. 223.
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rené pollesch
2 Diedrich Diedrichsen, “Maggies Agentur: Das Theather von René Pollesch”, 3 René Pollesch em entrevista ao The Wall Street Journal, “Theater With a Bi-
Stefan Tigges (org.), Dramatische Transformations, transcript Verlag, Bielefeld, ting View of Society” por J.S. Marcus, 7 de Agosto de 2007, (tradução minha).
2008, p.107; retirado do posfácio de José Maria Vieira Mendes, O Amor é mais 4 Pollesch, René, O Amor é Mais Frio Que o Capital, Trad. José Maria Vieira
Frio que o Capital e Outras Peças, Artistas Unidos, Livros Cotovia, 2001, p. 129. Mendes, Artistas Unidos/Livros Cotovia, 2011, Lisboa, p. 18.
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entrevista joaquim paulo
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entrevista joaquim paulo
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análises
Narradores,
actores e
contadores de
histórias Em Gatz (2006), o espectáculo de cerca de sete horas
dramaturgo e investigador
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narradores, actores e contadores de histórias
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análises
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narradores, actores e contadores de histórias
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análises
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actores, narradores e contadores de historias
Referências bibliográficas
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análises
Agir num
mundo
im Sabemo-nos habitantes de uma sociedade de consu-
por Claúdia Marisa Oliveira
previ-
é, na actualidade, um objecto privilegiado de todo o tipo
de prática artística, sendo alvo de discursos e metadis-
cursos suportados por construções teóricas diversas.
A vantagem desta panóplia de modelos de reflexão é a
de poder oferecer, segundo as circunstâncias, modelos
alternativos de interpretação. Estas múltiplas teorias, na
sua base estruturante, procuram saber se a representa-
ção do quotidiano se constrói a partir da arte, e com a
sua ajuda, ou se será a própria arte que se contagia das
representações do quotidiano.
A produção contemporânea do estereótipo estético
e a homogeneização cultural fizeram com que a ambi-
sível
valência que caracteriza a metáfora artística desapare-
cesse. Desta forma, a representação precede já o acto
da interpretação, fazendo desaparecer a heteronomia
dos elementos socioculturais que estão na génese da
conceptualização dos discursos artísticos.
A representação cénica do quotidiano entra neste re-
gisto ambivalente, onde a representação do outro é vista
como imagem reflectida num espelho imaginário. É nes-
sa encenação de reflexos que vão surgindo imagens que
são mais imaginárias do que reais. Tomemos como exem-
plo a partitura cénica “ A hora em que não sabíamos nada
uns dos outros”, do dramaturgo Peter Handke, na qual
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agir num mundo imprevisível
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análises
A ficção
que já foi
realidade
Tal como o cinema, o teatro parece ter descoberto um
dramaturga e guionista
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a ficção que já foi realidade
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©Ana Mendes, still film National 03, 2008
a ficção que já foi realidade
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análises
A vida
intensidade dramática. A voz que volteia a mesa de jogo
quando este jogo parece adormecer.
Nesta peça de Jacinto Lucas Pires, Sagrada Família,
temos consciência de que “o melhor do mundo são
(mesmo) as crianças”. Isto porque temos a sensação de
que só a criança é o mais humano de entre os seres que
nela respiram. Tudo o que gira neste pequeno mundo
dramático, por Lucas Pires criado, não é mais do que a
?
vida perniciosa, vazia, e despojada de valores em que
é sonho
se tornou a sociedade contemporânea. Esta peça não
é, de todo, a elevação de um pensamento tipicamente
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a vida é sonho?
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entrevista joaquim paulo
Para Além
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entrevista joaquim paulo
do Tema
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análises
perfil
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a ficção que ja foi realidade
O legado de
Suso Cecchi
D’Amico
Breve biografia
Nascida Giovanna Cecchi, em Roma, a 24 de julho de
por Denise Duarte
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Suso Cecchi D’Amico
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análises
entrevista
John
Logan
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john logan
91
entrevista
92
john logan
93
análises
livros
On Film-
Making
– an introduction
por António Cardoso
of the director
Começando por nos relembrar que o cinema é um
meio, Mackendrick enfatiza o papel do filme como “uma
linguagem de comunicação que transmite um conceito da
imaginação do criador para o olho e o ouvido da mente
daqueles aos quais a mensagem é destinada”. Na opinião
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on film-making
95
análises
análises
O corpo
e o sentido
do trágico em
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a ficção que ja foi realidade
Elephant
por Ana Barroso
de Gus Van Sant
O sentido do trágico tem assumido diferentes contornos
ao longo do tempo, mas no cerne da tragédia, indepen-
dente do contexto cultural, está sempre uma crise. Por
isso, o conflito, a liberdade, o conhecimento ou a igno-
rância são modos primeiros de dizer o trágico. Embora se
A imagem do corpo enquanto elemento potenciador de refira muitas vezes o desfecho infeliz como típico da tra-
uma individuação física implica a herança metafísica da gédia, importa acentuar que o mais importante não é o
tragicidade: a par da libertação do indivíduo enquanto desfecho, mas o processo. A experiência revela-se através
ser que age sobre o mundo que o rodeia, impende “uma do corpo, na dificuldade enorme enfrentada pelo sujeito
‘sentença de morte’ que (des)organiza a chamada ‘vida’”1. na sua relação com a identidade, tanto na perceção da
O corpo, enquanto expressão de identidade do sujei- morte, como nos seus impulsos destrutivos. A destruti-
to, tem sido, ao longo da história, pulverizado por crises vidade e a fragmentação do corpo podem muito bem ser
cíclicas, iniciada pela dramática divisão entre corpo e compreendidos como sintomas visíveis da dilaceração
alma, ou seja, entre a finitude e a eternidade. Esta divisão interior (as balas que atingem as vítimas em Elephant,
clássica tornou-se frágil e instável para, cada vez mais, a para além de serem quase sempre mortais, são primeiro
organicidade do corpo por oposição à imaterialidade da objetos que deformam corpos. Antes da morte, temos
alma, ceder às pressões de um deslocamento da fronteira corpos mutilados, em pedaços). A visceralidade do corpo
que separa a vida da morte. A corruptibilidade inevitável exposta através da ferida, mutilação e desmembramento
do corpo deixou de ser redimida pela sublimação da alma é um dos traços mais marcantes da tragédia. A corpo-
para se constituir como um dilema humano irresolúvel. ralidade e a sua postura definem, mas também questio-
nam, os limites do Eu e, nessa luta entre a unicidade e a
cisão, ressoa o conceito de trágico que assombra o ser
1 Bragança de Miranda, J.A. Corpo e Imagem. Lisboa: Nova Vega, 2008: 14. humano desde a antiguidade clássica. Deste conflito ou
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análises
2 Medeiros, Margarida. Fotografia e Narcisismo. O Auto-retrato 3 Rocha Pereira, Maria Helena da. Estudos da História da Cultura Clássica.
Contemporâneo. Lisboa: Assírio e Alvim, 2000: 36. Cultura Grega. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986: 311.
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elephant
99
análises
filme
Sobre
Cidade
de Deus
por António Cardoso
“Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.” Esta
simples expressão típica do povo Brasileiro e verbaliza-
da por Buscapé, um jovem habitante da favela que tem
como nome o título da segunda longa metragem de Fer-
nando Meirelles (baseada no romance de Paulo Lins com
o mesmo nome), reflecte o tema principal de “Cidade de
Deus.” A primeira situação em que vemos Buscapé - en-
curralado entre criminosos e polícia - dá a entender de
forma puramente visual o dilema com que ele se depara
constantemente e do qual não consegue escapar: colo-
car-se ao lado da polícia e arriscar ser morto pelos crimi-
nosos, ou juntar-se a estes correndo o risco de sofrer as
mesmas consequências pelas mãos da autoridade.
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sobre cidade de deus
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a ficção que ja foi realidade
uma publicação da Associação Portuguesa
de Argumentistas e Dramaturgos