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Nº4

– revista de cinema e teatro –

tema
Dramaturgia
Contemporânea
Entrevistas
além do tema
Perfil
Jean-Pierre Sarrazac Suso Cecchi D’Amico
Jorge Silva Melo Entrevista
Juan Mayorga John Logan
Tim Crouch
José Maria Vieira Mendes
Panoramas
Dramaturgia portuguesa
e brasileira
DRAMA
revista de cinema e teatro
N.º 4 | Março 2012

-
Editores
Daniel Ribas e Pedro Flores

Editor Convidado
Jorge Palinhos

Colaboram neste número


Joaquim Paulo Nogueira, Jorge Louraço
Figueira, Armando Nascimento Rosa, Carlos
Costa, Jorge Feliciano, Sandra Pinheiro,
Renata Portas, Cláudia Lucas Chéu, Rui Pina
Coelho, Cláudia Marisa Oliveira, Ana Mendes,
Luís Miguel Gonçalves, Ana Barroso, Pedro
Faria, António Cardoso, Denise Duarte.

Grafismo
sergio-alves.com

Paginação
Ângela Ribeiro
Imagem de capa
Thomas Aurin

Tipografia
Dharma Slab e Lato

-
Online
http://drama.argumentistas.org

Contactos
drama@argumentistas.org

APAD
Travessa da Rua dos Pentes, 27 - r/c
1250-105 Lisboa Portugal

Uma revista publicada pela APAD -


Associação Portuguesa de Argumentistas
e Dramaturgos

Os artigos seguem a ortografia


preferida pelos respetivos autores

2
ENTREVISTA JOAQUIM PAULO

EDITO-
RIAL
Apesar de ser uma arte milenar, o termo «dramaturgia» como hoje o conhecemos
surgiu com o romantismo alemão, através de Gotthold Ephraim Lessing. Este, no
século XVIII, juntou várias reflexões sobre o teatro em A Dramaturgia de Hamburgo,
usando a palavra para designar o conjunto de textos que serviam de base para uma
peça de teatro, uma ópera ou ballet, vistos de um ponto de vista crítico e teórico.
O termo acabou assim por designar tudo o que dá forma, coerência e dinamis-
mo narrativo e linear à obra dramática, pelo que se ajusta perfeitamente ao mo-
por Jorge Palinhos delo clássico do teatro ocidental, fundado desde os primórdios na determinação
aristotélica de que o drama era, antes de tudo, imitação e representação. Deste
modo, o texto funcionava como um meio de aproximação racional à experiência
humana que o teatro aspirava a emular.

No entanto, a partir do século XX, com a expansão do cinema e do audiovisual, com a descoberta do in-
consciente, com a crescente desconfiança para com a racionalidade, a abordagem mimética do teatro
começou a ser posta em causa. Autores como Antonin Artaud e Bertolt Brecht, entre outros, começaram
a rejeitar a imitação e o realismo, procurando novas formas de escrita dramática. Uns promovendo o uso
do género épico no teatro, como no caso de Brecht, outros advogando o fim da representação, em favor
de uma presença não-mediada e autêntica do intérprete, como no caso de Artaud.

Estas ideias transformaram a dramaturgia contemporânea num campo de muitas


práticas e polémicas diferentes, com géneros como a performance, o teatro docu-
mental, o teatro in-situ a reivindicarem o seu lugar como dramatizações da experi-
ência humana no mundo. Foi para dar conta dessas muitas ideias e práticas que de-
cidimos dedicar o quarto número da revista Drama à Dramaturgia Contemporânea.
Entrevistámos conhecedores profundos da dramaturgia contemporânea, como é
o caso de Jean-Pierre Sarrazac e Jorge Silva Melo, e alguns dos seus autores mais
emblemáticos, como Juan Mayorga, Tim Crouch e José Maria Vieira Mendes, que
nos falaram de algumas das suas propostas e perplexidades.
Publicamos ainda variados testemunhos, análises e perfis de dramaturgos,
com olhares na primeira e na terceira pessoas sobre diferentes modos de escre-
ver e encenar obras dramáticas que conversem com os dias de hoje.
Nas rubricas permanentes, entrevistamos ainda John Logan - argumentista de
O Último Samurai, O Gladiador, ou O Aviador - publicamos um perfil da guionista
italiana Suso D’Amico - assídua colaboradora de Visconti, de Sica e Zefirelli - e
apresentamos as habituais secções de Crítica e Livros.
Porém, esta edição da revista é essencialmente dedicada ao tema Dramaturgia
Contemporânea. Neste sentido, julgamos que este número representa um bom
ponto de partida para um maior debate sobre a escrita para teatro na revista Dra-
ma, e uma maior compreensão dos vários caminhos que hoje se abrem à escrita
dramática, permitindo assim um maior intercâmbio entre as áreas que dela partem
para tentar representar a humanidade pelo prisma da presença e do presente.

3
Índi
ce
4
ENTREVISTA JOAQUIM PAULO

1/
TEMA
editorial
Jorge Palinhos perfis
60 Valère Novarina
panorâmicas Renata Portas
10 Viagem pela Escrita 64 René Pollesch
Teatral em Portugal Cláudia Lucas Chéu
Joaquim Paulo Nogueira
14 Dramaturgia dos Brasis análises
Jorge Louraço Figueira 70 Narradores, actores e
contadores de histórias
entrevistas Rui Pina Coelho
22 Jean-Pierre Sarrazac 76 Agir num
24 Jorge Silva Melo mundo imprevisível
28 Juan Mayorga Cláudia Marisa Oliveira
32 Tim Crouch 78 A ficção que
36 José Maria já foi realidade
Vieira Mendes Ana Mendes
82 A vida é sonho
testemunhos Luís Miguel Gonçalves
42 Teatro Mitocrítico
Armando

2/
Nascimento Rosa

PARA
46 Imagina que perfil
isto é um jogo 86 O legado de Suso
Carlos Costa Cecchi D’Amico
52 Dramaturgia, visão
política do mundo entrevista
Jorge Feliciano 90 John Logan
56 Processo criativo Pedro Faria

ALÉM
de escrita de teatro
Sandra Pinheiro livros
94 Sobre “On
Film-making — an
introduction to the
craft of the director” de
Alexander Mackendrick

DO TEMA
António Cardoso

análise
96 O corpo e o sentido
do trágico em Elephant
de Gus Van Sant
Ana Barroso

100 Cidade de Deus


António Cardoso

5
6
ENTREVISTA JOAQUIM PAULO

Tema

7
8
ENTREVISTA JOAQUIM PAULO

9
panorâmicas

Viagem
pela
Escrita
Teatral
em
Portugal
10
viagem pela escrita teatral em portugal

por Joaquim Paulo Nogueira


dramaturgo e investigador

H
á muitas formas possíveis de falar da mudança de
paradigma na escrita para teatro nos últimos dez
anos, em Portugal, como o comprovamos pelos dois
últimos encontros realizados sobre este tema, Novas
Dramaturgias, no Teatro São Luiz, pelo Colectivo 84,
em Novembro de 2010, e Escritas de Cena, em Maio
de 20111, e todas elas reforçam a ideia de que algo mudou, O que nos permite olhar os anos 904 e descobrir práticas de
de forma radical, na escrita de teatro em Portugal. superação deste impasse. E que não são muito diferentes
Não desvalorizando a importância de todas as diferen- daquelas que indicam o grau de desenvolvimento da escrita
tes formas de problematizar estes contextos de mudança, teatral noutros países: edição de textos, divulgação e leitura
vou propor um recuo até à segunda metade da década de dos textos teatrais, experimentação, produção e montagem
90. É minha convicção de que aí encontraremos o primei- de textos, intercâmbio internacional e investigação.
ro quadro de ruptura com uma situação de impasse que Também é certo que poderíamos recuar um pouco
há muito se instalara na escrita para teatro em Portugal2. mais a algumas iniciativas nos anos 805 com importân-
cia para o desenvolvimento da escrita teatral. Mas foram
CONDIÇÕES DO IMPASSE intervenções muito marcadas por uma defesa, algo ro-
NA ESCRITA TEATRAL NOS ANOS 80 mântica, da escrita teatral enquanto património literário
e artístico6, distanciando-a do processo teatral. Havia
Impasse que todos nós, que nesta altura já escrevíamos excepções7, claro, e de todas elas destaco o apoio para
para teatro, conhecíamos bem, porque o vivemos na pele, a integração de dramaturgos nas companhias, por parte
convivendo com um negativismo crónico sobre as reais do Serviço de Teatro da Gulbenkian, já que foi precursor
capacidades da nossa escrita dramática e que Eugénia na valorização da ideia de que o dramaturgo deve estar
Vasques desmontou, com um levantamento das mais “sig- junto da produção teatral.
nificativas explicações que têm sido avançadas como razões
da mediocridade da nossa literatura dramática”. 3
Levantamento que, para além de assinalar a fragilidade 4  Mais concretamente a segunda metade desta década. Na primeira
e até algum preconceito de muitas das teses que justifi- tinham surgido dois projectos: “Dramaturgias”, da Convenção Teatral Eu-
ropeia (que praticamente não chega a sair do papel), pretendendo, entre
cavam a debilidade da nossa escrita dramática, permitiu
outras coisas, criar uma plataforma de divulgação dos textos por várias
também uma identificação das principais condições que
companhias europeias, e o Círculo Dramatúrgico da Barraca, cujo prémio
afectavam o desenvolvimento da nossa escrita para tea-
em 1994 nos traz o texto revelação do actor Francisco Pestana, Não há
tro: a não inserção dos dramaturgos no processo de criação nada que se coma.
teatral, o desconhecimento dos textos escritos pelos autores 5  Destaque para o Ciclo de Teatro de Autores Portugueses realiza-
portugueses, a escassa montagem da dramaturgia portugue- do pelo Teatro Passagem de Nível, reunindo na Amadora autores como
sa contemporânea e a incipiente investigação sobre teatro e Norberto Ávila, Jaime Gralheiro, Jaime Salazar Sampaio, Augusto Sobral,
escrita teatral. Romeu Correia, Fernando Augusto, Fernando Dacosta, Luiz Francisco
Rebello, entre outros. O que se compreende, já que era no teatro amador
que a maior parte dos seus textos eram feitos.
6  A segunda metade dos anos 80 foi dominada pelo fenómeno Miguel Ro-
1  Na Escola Superior de Teatro e Cinema, numa organização de Armando visco (Prémio Nacional de Teatro 1986 (e 87, este postumamente) e que se
Nascimento Rosa e Rui Pina Coelho. suicida no ano seguinte. Rovisco, que dizia que escrevia teatro fechado no
2  Uma convicção construída durante a investigação sobre a “Escrita Tea- seu quarto, é um caso flagrante de dissociação em relação à prática teatral.
tral nos Anos 90”, projecto de tese de mestrado com orientação pelo Prof. 7  O Teatro Semeador de Portalegre começou nos anos 80 um projecto
Doutor Paulo Filipe Monteiro (cuja orientação acompanha também o meu de encomendas a dramaturgos (entre outros, Norberto Ávila e Jaime Sa-
projecto de doutoramento). lazar Sampaio). A Comuna tinha Abel Neves como dramaturgo residente.
3  Em Jorge de Sena, Uma Ideia de Teatro, Lisboa, Cosmos, 1998. Vasques é O TELA tentou em 1986 um projecto de escrita dramatúrgica que se ficou
autora também de Mulheres que escreveram para Teatro no Século XX. pelo primeiro espectáculo, A Noite Antes da Festa.

11
panorâmicas

A SEGUNDA METADE No campo da divulgação, sublinhe-se os vários prémios


DA DÉCADA DE 90 literários destinados à escrita para teatro e o trabalho no
campo editorial8. E a emergência de um trabalho crítico e
É neste período que a actividade cultural beneficia de um de investigação – que a criação do Observatório de Activi-
forte incentivo (Manuel Maria Carrilho, com Rui Vieira dades Culturais vem também valorizar – através do Centro
Nery e depois com Catarina Vaz Pinto, esteve à frente de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universi-
do Ministério da Cultura neste período). De norte a sul dade de Lisboa, que se torna num eixo da investigação tea-
surgem novos grupos que procuram uma identidade que tral no nosso país.
os singularize no campo da produção teatral. Aparecem E se grande parte das iniciativas apareciam desligadas
novos autores. Começa a surgir um novo de um contexto explícito de desenvolvimen-
compromisso criativo, assente no diálogo, to da actividade da escrita para teatro (em-
em que o texto é chamado a participar, com
os outros elementos cénicos, na escrita do
o DRAMAT – Centro bora criassem um lastro que começou a ser
mediatizado com alguma insistência como o
espectáculo. No Porto o Teatro Bruto (com
Vânia Cosme) e Assédio (em colaboração
de Dramaturgias surgimento de uma nova dramaturgia), hou-
ve também projectos que se propunham
estreita com Paulo Eduardo de Carvalho),
em Aveiro a Efémero (com quem, entre ou-
Contemporâneas, que, intervir de forma integrada no campo da
escrita para teatro.
tros, Luís Mourão e eu colaborámos), o Te-
atro Regional da Serra de Montemuro (com nos seus poucos anos É o caso dos projectos da Efémero –
Companhia de Teatro de Aveiro, dirigida
uma forte ligação a Abel Neves), em Leiria o
Nariz-Teatro de Grupo (com Luís Mourão),
em Almada o Teatro Extremo (que aposta na
de existência, conseguiu por Carlos Fragateiro. Fronteiras, 1996, e
Cenas de Amor e Guerra, 1997, são assentes
em práticas experimentais de escrita em
criação colectiva) e o Ninho de Víboras (com
José Luís Peixoto), em Sintra, a Utopia Tea-
tornar-se uma referência ateliers orientados por Daniel Simon, es-
critor e dramaturgo belga. Os textos aca-
tro (com Rui Brás e Nuno Vicente) e teatro-
mosca (direcção de Paulo Campos dos Reis
nacional enquanto projecto bam por ser editados com o apoio do IPLB
e há leituras públicas dos mesmos. Ou o
e Pedro Alves), Teatro Não (com Miguel Cla-
ra Vasconcelos), Artistas Unidos (com Jorge
de desenvolvimento da trabalho dos Artistas Unidos, uma compa-
nhia criada em 1996 e liderada por Jorge
Silva Melo e José Maria Vieira Mendes),
Teatro Lilástico (com Jacinto Lucas Pires), A escrita teatral. Silva Melo. A sua acção incluía a montagem
de novos textos, a edição através de proto-
Escola de Mulheres (com Isabel Medina) e colos com editoras, seminários de escrita,
Útero (direcção de Miguel Moreira). leituras teatrais, uma publicação regular
Estes novos grupos juntam-se a outros sobre as actividades do grupo, a participa-
como Inestética Teatral (Alexandre Lyra Leite), Teatro do ção em redes internacionais e a divulgação de reportório
Tejo (José Mora Ramos), Teatroesfera (José Carretas e Te- contemporâneo.
resa Faria), Teatro da Garagem (Carlos J. Pessoa), e, claro, a
Barraca (Hélder Costa). Sem falar das duplas formadas en-
tre encenadores e dramaturgos (Celso Cleto/Jaime Rocha, 8  Destaque para os prémios da SPA/Novo Grupo (onde surge João San-
tos Lopes com Às vezes neva em Abril) e do Circulo Dramatúrgico da Bar-
José Neves/Tiago Torres da Silva) ou à ligação da Cassefaz
raca, que melhor deram resposta à necessidade de levar a cena os textos
com Maria do Céu Ricardo. A par com este rejuvenesci-
premiados. Nas edições, especialmente as Edições Cotovia, mas também
mento na escrita para o teatro, autores como António Tor- a Dom Quixote, Campo das Letras, Salamandra, Edições Tema. Ou o em-
rado, Jaime Salazar Sampaio, Norberto Ávila, Hélia Correia, penhamento neste campo do IPLB, Ministério da Cultura, da Sociedade
Luísa Costa Gomes e Fernando Augusto continuavam a Portuguesa de Autores, do Teatro Nacional S. João e do DRAMAT e de
trabalhar e a ver as suas peças montadas. companhias como, entre outras, o Novo Grupo, Artistas Unidos, Efémero
- Companhia de Teatro de Aveiro e o Teatro Circo de Braga.

12
viagem pela escrita teatral em portugal

bruça sobre as suas próprias experiências de criação.


E NO FINAL DA DÉCADA,
O DRAMAT – TNSJ… O contexto de produção e programação está também
cada vez mais esclarecido10. A internacionalização da nos-
Foi preciso chegarmos ao último ano da década de 90 para sa escrita teatral é feita tanto numa perspectiva europeia
vermos surgir, num Teatro Nacional, o DRAMAT – Centro como numa perspectiva lusófona (com destaque para o
de Dramaturgias Contemporâneas, que, nos seus poucos Brasil e Cabo Verde). No quadro europeu assistiu-se a um
anos de existência, conseguiu tornar-se uma referência movimento muito forte com Espanha que envolveu gru-
nacional enquanto projecto de desenvolvimento da escrita pos, instituições, autores e outros criadores11. Houve uma
teatral. Criado por Fernando Mora Ramos9 organizou ofi- participação em redes europeias de edição, de tradução12.
cinas de escrita (a mais importante com António Mercado, A investigação sobre a escrita cénica deu um salto13. Des-
e de onde surgiram Pedro Eiras, João Negreiros, Fernando de 2000 surgiram novos colectivos 14 e novos autores15.
Moreira, Jorge Louraço Figueira e Ângela Marques), via- A década fechou com um importante encontro no São
gens pela dramaturgia europeia (com Joseph Danan, Maria Luiz e, meses depois, um novo encontro, agora na ESTC,
Helena Serôdio, Paulo Eduardo de Carvalho, Jean-Pierre era um sinal muito forte de que os diferentes envolvidos
Sarrazac), produção de espectáculos (Sexto Sentido, de no desenvolvimento da escrita teatral estão muito aten-
vários autores, Supernova, de Abel Neves, e Arranha-Céus, tos à necessidade de deixar um rasto no que se faz, de
de Jacinto Lucas Pires), dinamização de práticas de leitura ligar, de criar vínculos entre as diferentes realidades de
dos textos criados nestas oficinas, representação e edição criação, produção, divulgação e investigação. —
dos textos teatrais (em parceria com a Cotovia), relação es-
treita com as escolas artísticas do Porto, a criação de um
conselho de leitura do TNSJ. Tudo isto foram faces de uma
intervenção global e coerente que, poucos anos depois do 10  Algumas referências indispensáveis: o projecto Urgências, no Teatro
novo milénio, desapareceu sem deixar rasto, como se nun- Maria Matos, PANOS, na Culturgest, e Absurdos Contemporâneos (es-
ca tivesse existido (no historial do site oficial do TNSJ não pectáculo e seminário), da Qatrel, que desafiou nove autores a escreve-

encontramos qualquer referência a este projecto). rem pequenas peças. E também o trabalho do CENDREV com Armando
Nascimento Rosa, que entre 2004 e 2008 estreou todos os anos um es-
pectáculo deste autor. E as encomendas do Bando a Carlos Alberto Ma-
A ESCRITA TEATRAL
chado, Jaime Rocha e Jacinto Lucas Pires.
NO NOVO MILÉNIO 11  A própria APAD, com o apoio da sua congénere espanhola, assegu-
rou a participação portuguesa no Salão do Livro de Teatro em Madrid,
Dei-me ao trabalho deste esforço evocativo para cha- de 2003 a 2005. Em Évora o CENDREV lançou os Encontros de Teatro
mar a atenção para um dinamismo, surgido nos anos Ibérico. Os Encontros Internacionais de Escrita Dramática de Valdigna-
90, de superação de uma situação de impasse na escrita -Valência contaram também com a presença de autores portugueses. As
para teatro, acreditando que esse recuo nos ajudará a revistas Alhucema (Teatro mínimo) e Puertas del Drama (Associação de
perceber melhor a intensa actividade que encontramos Autores de Teatro) dedicaram um dos seus números a Portugal.

nesta primeira década do milénio. 12  Jaime Rocha, Pedro Eiras, José Maria Vieira Mendes, Teresa Rita Lo-
pes, Hélia Correia, Armando Nascimento Rosa, Abel Neves, Jaime Salazar
Consolidaram-se muitas experiências, criaram-se
Sampaio, Augusto Sobral são apenas alguns dos nomes que foram traduzi-
condições para afastar a questão do desenvolvimento
dos em várias línguas. De registar aqui, na tradução, o trabalho incansável
da escrita cénica no quadro de mal entendidos cada vez de Alexandra Moreira da Silva (Atelier Europeu de Tradução, Solitaires
menos produtivos sobre as querelas entre o texto e o te- Intempestivs, Maison Antoine Vitez, Éditions Théâtrales) ou da tradutora
atro, sobre a tensão entre autores e encenadores. Hoje e investigadora Tatjana Manojlovic.
há uma cena emancipada de todos esses problemas que 13  Carlos Costa escreve Os Escritores de Cena na primeira década do séc.
pareciam insanáveis até ao final dos anos 90. Nas suas XXI (tese de mestrado) e neste momento há vários doutorandos (José
diferenças de sentido e de estilo, o Teatro Praga, o Vi- Mascarenhas, Helena Simões, Guilherme Mendonça, Jorge Louraço Fi-
sões Úteis, o Teatro do Vestido, a Panmixia, o Colectivo gueira, Jorge Palinhos e Mickael de Oliveira) que, em diferentes perspec-

84, o Teatro da Garagem, a Mala Voadora, a Karnart, en- tivas, realizam investigações sobre a escrita teatral.
14  Como, entre outros, Primeiros Sintomas, Teatro Mínimo, Panmixia,
tre outros, trazem-nos um discurso sobre a cena que,
Mala Voadora, A Máquina Agradável, o Teatro Praga, Visões Úteis, Teatro
mais ou menos frágil, mais ou menos canonizado, se de-
Plástico, Colectivo 84, Teatro do Vestido, a Qatrel e a Karnart.
15  Filomena Oliveira, Tiago Rodrigues, Cláudia Lucas Chéu, Luís Mestre,
9  Cujo projecto de trabalho é interrompido por José Wallenstein, director Rui Pina Coelho, Jorge Palinhos, Ana Mendes, Luís Mário Lopes, Carlos
do TNSJ, que o substitui por Maria João Vicente, do Teatro da Garagem. Costa, Patrícia Portela, Miguel Castro Caldas, Mickael de Oliveira e André
Murraças, entre outros.

13
entrevista joaquim paulo

Dramaturgia dos

BRA
14
dramaturgia dos brasis

desespero de classe no cais de Santos e nas quelhas de


São Paulo. Dias Gomes (1922-1999), apesar de não ser
tão representado actualmente, é o autor de peças fun-
damentais da história da dramaturgia brasileira, como O
Pagador de Promessas (1960), cuja versão cinematográfi-
ca ganhou a Palma de Ouro em Cannes, ou A Revolução
dos Beatos (1962), por exemplo. Além destas obras foi
também um dos principais inventores da teledramatur-

ASIS
gia brasileira, com séries e novelas como O Bem-Amado
ou Roque Santeiro, que emblematizam o carácter nacional
brasileiro. Ariano Suassuna (1927), outro autor bastan-
te presente, escreveu uma mão cheia de farsas brilhan-
tes, que congregam as tradições nordestina e ibérica,
entre as quais se encontra o mundialmente famoso Auto
da Compadecida (1955). Suassuna foi também a figura
principal do Movimento Armorial, um dos mais influen-
tes movimentos da criação artística brasileira contem-
porânea, lançado no Recife em 1970.  
Estes quatro dramaturgos principais não estão so-
zinhos. Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), com
Eles Não Usam Black-Tie (1958); Oduvaldo Vianna Fi-
lho (1936-1974), o Vianinha, com Chapetuba Futebol Clu-
be (1959); e Augusto Boal (1931-2009), com Revolução
na América do Sul (1960), são os três principais autores
do Seminário de Dramaturgia do Arena, movimento de
escrita teatral que buscou retratar a realidade do país,
ao mesmo tempo que pretendia inovar formalmente. Os
mesmos autores escreveram, respectivamente, Um Gri-
to Parado no Ar (1972) e Ponto de Partida (1976); Papa Hi-
ghirte (1968) e Rasga Coração (1972); Arena Conta Zumbi
por Jorge Louraço Figueira (1965) e Arena Conta Tiradentes (1967); peças que reflec-
dramaturgo e encenador tiram as contradições da sociedade brasileira, tomando
partido contra o regime político. Em 1968, Boal monta

A
origem de um dos maiores mananciais da dramatur- a Primeira Feira Paulista de Opinião, com textos curtos de
gia de língua portuguesa é o Brasil, em particular São vários autores, entre os quais ele próprio, Guarnieri e
Paulo e o Rio de Janeiro, onde estrearam as mais rele- Plínio Marcos, mas também Lauro César Muniz (1938)
vantes peças teatrais e os mais brilhantes dramatur- e Jorge Andrade (1922-1984), recém-saídos do curso
gos. A importância dessa produção para a dramatur- de dramaturgia da Escola de Arte Dramática, onde se
gia ocidental ainda está por avaliar. Com este artigo formou também Renata Pallottini (1931). Maria Clara
pretende-se dar um primeiro passo nessa avaliação, fazen- Machado (1921-2001) é o nome de referência no teatro
do um sumário de obras e autores recomendáveis. para crianças. A esta geração nascida nos anos 20 e 30
do século XX podem juntar-se os escritores modernistas
Os dramaturgos mais célebres do Brasil, de quem o vi- Oswald de Andrade (1890-1954) e Mário de Andrade
sitante actual encontrará sempre uma peça em cartaz, (1893-1945), o primeiro porque é autor da peça O Rei
são Nelson Rodrigues (1912-1980), autor de Boca de da Vela (1937), que fez a fortuna crítica do Teatro Oficina
Ouro (1959), Beijo no Asfalto (1961) e A Serpente (1978); e de José Celso Martinez Correa, numa versão afamada
e Plínio Marcos (1935-1999), que escreveu Dois Perdi- de 1967 que se tornou um marco da encenação no Bra-
dos Numa Noite Suja (1966), Navalha na Carne (1967) sil; o segundo porque escreveu Macunaíma (1928), que
ou Querô (1979). O primeiro autor retrata as neuroses Antunes Filho encenou numa adaptação igualmente cé-
sexuais dos moradores do Rio de Janeiro, o segundo o lebre, em 1978, e o libreto da ópera Café (1942).

15
panorãmicas

Para os dramaturgos que cresceram nos anos 70 e 80,


viram as suas peças estrear nos anos 90 ou 2000, e
escrevem o que se pode chamar, em sentido próprio, a
dramaturgia nova, contemporânea ou emergente, esta
herança pode ser considerada ora pesada, ora leve. Por
um lado, as realizações do teatro brasileiro desde o final
dos anos 50 ao início dos anos 70 são admiráveis. Em
particular, os autores citados conseguiram sintetizar em
dramas individuais, concretos e reconhecíveis, as tragé-
dias e comédias colectivas de toda uma nação, muitas
vezes alegoricamente, com uso da metáfora, o que enri-
queceu a poética e a universalidade das suas obras. Por
O senso comum tem considerado que o primeiro es- outro lado, as tradições de excelência e de engajamen-
pectáculo em português vernáculo do Brasil foi Vestido to foram interrompidas à força, em especial no período
de Noiva (1943), e consequentemente atribuído ao seu de vigência do Acto Institucional n.º 5, de 1968 a 1978,
autor, Nelson Rodrigues, nascido nos anos 10, o papel de deixando as novas gerações sem correia de transmissão:
pai fundador de uma dramaturgia especificamente bra- sem espectáculos, sem textos, sem mestres. Os novos
sileira. Porém, tanto O Rei da Vela como Café precedem autores tanto podem tentar reclamar a herança como
Vestido de Noiva na tentativa de uma escrita teatral au- decidir fazer tudo de novo. 
tóctone. Em qualquer dos casos, a dramaturgia brasilei- A poética dramática de Hegel e a dramaturgia épica
ra contemporânea parece estar associada de Brecht, nacionalizadas, constituem um
a um projecto de formação de literatura dos lotes dessa herança, que teve em todos
nacional, sonhado já no final do século XIX,
mas somente desenvolvido no início do sé-
culo XX. (Este tópico mereceria um estudo
Em qualquer estes autores, mesmo Nelson Rodrigues,
admiradores mais ou menos confessos. O
trabalho de Stanislavski, por outro lado, en-
próprio, que excede em muito o âmbito
deste artigo.)
dos casos, a controu o seu caminho para o teatro brasi-
leiro através da imigração de artistas de te-

mente atacada nas décadas de 60 e 70. A


dura repressão de que o teatro brasileiro
dramaturgia brasileira
Esta tradição – ou tradições – foi severa- atro dos países do leste europeu, como por
exemplo Eugénio Kusnet; mas também dos
estudos dedicados de Vianinha e Boal. O
foi vítima até ao fim dos anos 70 tem como
exemplo a proibição, na véspera da estreia,
de O Berço do Herói (1965), de Dias Gomes,
contemporânea parece cuidado na realização plástica e cénica pa-
rece ter vindo com os criadores italianos. As
influências portuguesas revelaram-se nas
uma peça que denunciava o falso heroísmo
de um militar da Força Expedicionária Bra-
estar associada a um tradições populares, mais rurais, como nos
Autos Nordestinos, ou mais urbanas, como
sileira. Nos anos de chumbo da ditadura mi-
projecto de formação
litar brasileira todas as peças de Plínio Mar-
cos chegaram a estar censuradas. E apesar
no Teatro de Revista ou no Circo-Teatro
(melodramas rasgados apresentados em
tendas, na segunda parte de espectáculos
das célebres posições de direita, Nelson
Rodrigues parou de escrever teatro entre
as peças Toda Nudez Será Castigada (1965)
de literatura nacional. circenses). Porém, as influências dos con-
temporâneos vivos vêm também de outros
lugares de drama e narrativa: a literatura, o
e Anti-Nelson Rodrigues (1973). Álbum de Fa- cinema, a televisão, a música popular, a per-
mília, ao contrário, censurada desde 1945, formance, os videojogos, a internet, enfim,
estreou em 1967. Em 1971, Boal vai para o exílio, onde todos os produtos de circulação global que, mal ou bem,
formulará o seu Teatro do Oprimido. Vianinha morre pre- são consumidos em todo o mundo. O teatro brasileiro é
maturamente aos 36 anos, em 1974. Guarnieri pratica- mundial na sua constituição.
mente abandona os palcos depois de 1976. 

16
dramaturgia dos brasis

Trabalhando a partir de fontes documentais e orais, num


processo de pesquisa partilhado, Abreu é um bom exem-
plo, entre vários, de um modo de trabalhar que se gene-
raliza a partir dos anos 80 e conhece o seu apogeu nos
anos 90 e 2000, com o chamado Teatro de Grupo, inspi-
rado em várias experiências similares na América do Sul.
Este movimento adopta um modo de produção coope-
rativo, encontrado para viabilizar a criação de espectá-
culos, e que usa uma retórica do trabalho colectivo, por
vezes mais eficaz na teoria do que na prática. No Teatro
de Grupo, uma parte da produção dramatúrgica não se
separa da encenação, em especial quando os espectácu-
los são apresentados na rua ou em espaços não conven-
cionais. As obras são criadas em regime de improvisação
colectiva ou ‘devising’, casos do Núcleo Bartolomeu,
dirigido por Claudia Schapira, ou do grupo XIX, condu-
zido por Luiz Fernando Marques; mas também de auto-
res premiados individualmente como é o caso de José
Fernando de Azevedo, do Teatro de Narradores, com
Estes métodos foram adoptados conforme a visão de Cidade Desmanche (2010); e ainda de Grace Passô, do
mundo dos artistas de teatro. Num país dilacerado por Espanca!, com Por Elise (2005). A colaboração de Reinal-
desigualdades sociais – como quase todos os países – as do Maia com Marco Antonio Rodrigues no grupo Folias
obras teatrais revelam invariavelmente vínculos entre e a encenação e escrita de Márcio Marciano e Sérgio de
ideologia e militância políticas, por um lado, e práticas Carvalho no Latão devem ser vistos à luz desse concei-
artísticas, por outro. Neste sentido, segundo José Fer- to de ‘processo colaborativo’. De facto, mesmo quando
nando Azevedo, encenador e dramaturgo de São Paulo, se afirmaram como autores individuais, cujas obras têm
o teatro brasileiro é mundial não só pelas influências e autonomia literária e são montadas por outras compa-
contribuições estrangeiras à sua formação, mas também nhias, os melhores dramaturgos brasileiros criaram em
porque se dá numa sociedade constituída por e constitu- contextos teatrais desenvolvidos, experimentando e dis-
tiva das relações desiguais do capitalismo global. cutindo ideias em grupo ou parceria.
Entre a geração nascida nos anos 20 e 30, de Gomes, Dramaturgos aparentemente mais convencionais
Suassuna, Andrade, Boal, Pallottini, Vianinha, Guarnieri, nos métodos de trabalho e na atribuição de autoria são
Marcos e Muniz (Rodrigues nasceu nos anos 10), e a gera- Bosco Brasil (1960), de Budro (1994) e Novas Directri-
ção nascida nas décadas de 60 e 70, de que falarei de ime- zes em Tempo de Paz (2001); Fernando Bonassi (1962),
diato, parece haver um hiato. Os dramaturgos e as obras de Apocalipse 1,11 (2000), com o Teatro da Vertigem, e
a assinalar correspondentes a esse período são Naum Al- São Paulo É Uma Festa (2001); o profícuo Mário Borto-
ves de Souza (1942), com as peças No Natal a Gente Vem lotto (1962), com Medusa de Rayban (1997) e Nossa Vida
Te Buscar (1979), Aurora da Minha Vida (1981), e Suburba- Não Vale Um Chevrolet (1994), entre muitas outras. Um
no Coração (1989), com músicas de Chico Buarque; e Luiz pouco mais novos, Samir Yazbek (1967), de O Fingidor
Alberto de Abreu (1952), com Bella Ciao (1980), a partir (1999), sobre Fernando Pessoa, e As Folhas do Cedro
de documentos e depoimentos de imigrantes anarquistas (2010), sobre as origens libanesas do autor; Newton
italianos, Lima Barreto ao Terceiro Dia (1984), cruzando Moreno (1968), com Agreste (2004) ou VemVai, O Ca-
biografia e ficção, ou O Livro de Jó (1995), criado em pro- minho dos Mortos (2007), e Gero Camilo (1970), com
cesso colaborativo no Teatro da Vertigem. Abreu escre- Aldeotas (2004) e A Casa Amarela (2011), evocam um
veu ainda uma quinzena de peças, no âmbito do projecto nordeste saudoso trazendo a poética do regional para o
Comédia Popular Brasileira, para a Fraternal Companhia seio do urbano. Roberto Alvim (1973) dirige um estúdio
de Arte e Malas-Artes, entre 1994 e 2006. As suas obras dedicado à dramaturgia contemporânea em São Paulo, o
mais recentes são Em Nome do Pai e Um Dia Ouvi a Lua. Club Noir, onde estreou a sua peça Pinokio (2011).

17
entrevista

18
dramaturgia dos brasis

No final dos anos 90, incentivados por um programa de


dramaturgia desenvolvido pelo Royal Court Theatre, vá-
rios dramaturgos criaram uma companhia em São Paulo,
da qual fizeram então parte Cássio Pires (1972), Claudia
Pucci (1974), Fábio Torres (1973) e Paula Chagas (1975),
entre outros. Na mesma época, em Fortaleza, o curso de
dramaturgia do Instituto Dragão do Mar formou autores
como Edilberto Mendes (1968) e Marcos Barbosa (1977).
Nos últimos anos, surgiram dramaturgos que trabalham
com dispositivos que estabelecem regras de jogo para ac-
tores e espectadores diferentes das regras convencionais
da ficção, mais ou menos épica, e ainda do processo cola- cial. Ainda assim, um mapa precisa de uma Rosa dos Ven-
borativo. Nestes espectáculos, o conteúdo é apresentado tos, sob pena de ser lido de pernas para o ar, e enviar o
de forma dinâmica e interactiva, com alguns aspectos dra- leitor no sentido contrário ao da cova do tesouro. Qual-
matizados, é certo, mas sobretudo recorrendo à narrati- quer espectador ou leitor mais assíduo de dramaturgia
va, à exposição de documentos, imagens ou pessoas, ou contemporânea constata facilmente a sua diversidade.
à participação de outros não actores. São exemplo disso, As poéticas do discurso, do movimento e da acção são
no Rio de Janeiro, A Falta que Nos Move (2005) e Corte muito diferentes de peça para peça e de autor para au-
Seco (2010), dirigidos por Christiane Jatahy (1968); ou tor. Mas os textos e os dramaturgos estão normalmente
Ele Precisa Começar (2005) e Ninguém Falou que Seria Fácil mais a norte ou mais a sul, mais a leste ou mais a oes-
(2011), de Felipe Rocha (1972), dirigidos por Alex Cassal te. Uns põem as personagens a fazer mais referências
(1967), ambos do grupo Foguetes Maravilha. ao próprio mundo, outros menos. Uns têm vocabulário
O leitor pode fazer download das obras de alguns des- mais rural, outros mais urbano. Uns têm um tom confes-
tes autores nos sites sional, autobiográfico, outros um registo documental, de
Catálogo da Dramaturgia Brasileira [www.kuhner. testemunho. Algumas peças são mais dramáticas, outras
com.br/catalogo/], Dramaturgia Contemporânea [www. mais narrativas. Algumas personagens são como as pes-
dramaturgiacontemporanea.com.br] e @dramaturgia soas, inconstantes e incoerentes, outras quase não exis-
[www.novasdramaturgias.com]. O site Teatro Para Al- tem, são apenas os próprios autores a falar por elas. A
guém apresenta textos escritos para a internet [www. crítica e a academia revelam a atenção dos novos auto-
teatroparaalguem.com.br]. res ao pós-dramático, aos retratos do quotidiano ou aos
O Núcleo Bartolomeu organiza todos os meses uma dispositivos metafóricos. Será?
prova de dramaturgia, o Dramaturgia Concisa Contem- Alguns dramaturgos fazem questão de reatar os la-
porânea, ao jeito das poetry slams, em que os autores ços quebrados com a tradição do Teatro de Arena: es-
têm um tempo limitado para escrever um texto, depois pectáculos como Orestéia (2007), do Folias; Ópera dos
submetido à votação do público. O grupo Satyros, de São Vivos (2010), do Latão; e Cidade Fim (2011), dos Narra-
Paulo, organiza anualmente o Drama Mix, no âmbito do dores; fazem uma retrospectiva da história recente da
evento Satyrianas, convidando cerca de 50 autores para linguagem teatral no Brasil, em relação dialéctica com os
apresentarem textos curtos. Vários grupos e instituições meios de comunicação de massas, ao mesmo tempo que
promovem leituras encenadas ou montagens modestas expõem as suas versões da luta de classes na América do
de textos inéditos. Os prémios de dramaturgia mais im- Sul. As experiências aparentemente pósdramáticas, que
portantes do Brasil são os Shell, em São Paulo e no Rio de expõem o próprio jogo teatral e invocam directamente
Janeiro, e o prémio da Associação Paulista de Críticos de as autobiografias de vários autores e companhias, avan-
Arte, para peças estreadas. Para textos inéditos, o con- çam porque têm um ponto de partida anterior. Seja como
curso mais importante é o prémio António José da Silva, for, é em diálogo com a herança linguística, técnica e ar-
da Funarte e do Instituto Camões. tística dos autores anteriores, e partindo das circunstân-
Uma caracterização de cada um dos dramaturgos ou de cias do país, que os dramaturgos brasileiros farão a sua
grupos deles, por temas, formas, pensamento, está fora própria herança para legar aos vindouros. Não perca as
do âmbito deste artigo, que apenas propõe um mapa ini- cenas do próximo capítulo. —

19
20
21
entrevista joaquim paulo

Jean-Pierre
Sarrazac
Jean-Pierre Sarrazac é dramaturgo,
encenador, professor da Univer-
sidade de Paris - Sorbonne III e de
Lovaina e é tido como um dos prin-
cipais especialistas europeus na po-
ética do drama moderno. Algumas
das suas peças já foram encenadas
em Portugal e tem três livros pu-
blicados em português: O Futuro do
Drama, A Invenção da Teatralidade e
O Outro Diálogo.
Jean-Pierre Sarrazac teve a amabi-
lidade de arriscar algumas respostas
às perguntas que lhe colocámos – e
de nos dizer logo que qualquer uma
delas daria um longo estudo – com as
quais procurámos contextualizar o
lugar do drama contemporâneo.

por Jorge Palinhos

22
jean-pierre sarrazac

Em termos gerais, o que é que distingue a dramatur-


gia contemporânea da dramaturgia clássica?
«Desconstrução», creio que essa é a palavra-chave. As
formas dramáticas canónicas, tal como foram definidas
desde Aristóteles até Hegel, são alvo de uma descons-
trução: colocadas em causa e despedaçadas – frag-
mentadas – desde as noções de fábula, personagem e
diálogo. Extinguiu-se a sacrossanta «progressão dramá- O problema é que Lehmann concluiu, de uma forma teleo-
tica»: pelo contrário, as peças funcionam com base na lógica – neo-hegeliana, digamos assim, ou adorniana, – pela
retrospecção, por um regresso maciço do passado para morte do drama. Tal é desmentido por uma parte significa-
o presente. A catástrofe já não encerra a peça; antes a tiva das escritas dramáticas que hoje se fazem. Penso, por
inaugura. A personagem já não tem um rosto identificá- exemplo, no caso de Koltès, de Vinaver, de Kane, de Fosse
vel; tende para o anonimato, para a coralidade de uma de que já falei. Na verdade, à noção de pós-dramático prefi-
polifonia de vozes anónimas. O diálogo é minado pelo ro, pela sua claridade, a noção de paradramático, que exclui
monólogo, o solilóquio, os equivalentes do «fluxo da a ideia – na minha opinião, falsa – da morte do drama. Não,
consciência» romanesco. O espaço e o tempo dramáti- não acabámos com o dramático, mesmo que contaminado
co vacilam. O espaço, por exemplo, no caso de Beckett, pelo épico, pelo lírico ou mesmo pelo rapsódico. O dramá-
torna-se uma marca do tempo. tico remete-nos para o encontro catastrófico com o outro,
mesmo que este outro esteja em nós mesmos. Tal catástro-
Num contexto de hiperinformação e hiperoferta fe continua bastante presente na trama das nossas vidas e
cultural, o que é que o teatro e a dramaturgia ainda temos necessidade de a ver em cena.
podem proporcionar que nenhum outro meio de co- O excessivo favor que hoje é atribuído à noção de pós-
municação permite? -dramático fez-me pensar no reconhecimento que obte-
A presença. Uma presença real do actor em relação com ve na altura a do «teatro do absurdo». Martin Esslin, o
o virtual de uma personagem que não é mais, como diria seu teorizador, escreveu sobre as origens do teatro do
Michel Foucault, que um «rosto de areia». absurdo, que, segundo ele, remontavam à própria tra-
gédia grega; hoje, há quem nos diga que o teatro pós-
O futuro director do Festival de Avignon, Olivier Py, -dramático remonta a Ésquilo!
anunciou a sua intenção de que este festival voltasse
a valorizar o texto como elemento essencial da cena. Na sua opinião, quais são os autores que transforma-
Será que o texto hoje é menos importante para o es- ram mais radicalmente a cena dramática europeia
pectáculo teatral? dos últimos trinta anos?
Antoine Vitez dizia que um verdadeiro autor dramático Em relação aos autores –já mencionei dois ou três, mas
era aquele que transportava um universo consigo. Este seria necessário mencionar mais de trinta, como Kroetz
universo está presente – ou não – no texto. Mas está –, mas também os encenadores, que são verdadeiros au-
presente segundo o modo do vazio, da incompletude. O tores de espectáculos. Tivemos, segundo esta perspectiva
texto teatral contemporâneo deve aceitar este estado de «paradramática», Antoine Vitez e os seus teatros-narra-
incompletude, que significa a abertura para a cena. Um tivos. Hoje são muitos aqueles que podemos qualificar
grande texto de teatro – e estou a pensar em Strindberg, como autores de espectáculos ou «escritores de palco».
Pirandello, Brecht, Jean Genet, Jon Fosse – é aquele que Na minha actividade como autor dramático, eu próprio
convoca poderosamente a cena, que cria o jogo no drama. pratiquei este teatro paradramático. E aqui, em Portugal,
onde encenei um texto não-dramático, O Lavrador da Bo-
Hans-Thies Lehmann propôs a noção de teatro pós-dra- émia (Cendrev, 1997), ou ainda, há alguns anos, no Can-
mático e há um interesse crescente na performance. O tiga para jà, Place de la Révolution (Companhia de Teatro
que é que tudo isto traz de novo ao teatro de hoje? de Braga e Centro Dramático Galego, 2003) a escrita de
O grande mérito de Lehmann é o de ter em conta as um espectáculo – e não de uma peça – sobre aquilo que
inovações trazidas por Bob Wilson e de propor análises resta hoje da Revolução dos Cravos … —
perspicazes e subtis de espectáculos onde o teatro se li-
berta do drama. Tem em conta a separação entre teatro
e a forma dramática que ocorreu nos primeiros decénios
do século XX, nomeadamente com Artaud.

23
entrevista joaquim paulo

Jorge
Silva Melo
ttt
Dispensa apresentações, e é quase
impossível descrever na totalida-
de, o percurso de Jorge Silva Melo,
uma das figuras mais conhecidas da
cultura portuguesa actual. Estudou
cinema na London Film School, fun-
dou o Teatro da Cornucópia com Luís
Miguel Cintra, foi assistente de direc-
ção de Peter Stein, Giorgio Strehler,
João César Monteiro, Paulo Rocha,
António-Pedro Vasconcelos e Alber-
to Seixas Santos. Em 1995 fundou
a companhia Artistas Unidos, que
desde então tem vindo a descobrir
e a montar alguma da melhor dra-
maturgia contemporânea europeia.
Pedimos-lhe que respondesse a al-
gumas questões que lhe colocámos
sobre esta.

por Jorge Palinhos


fotografia Sara Matos

24
jorge silva melo

Grande parte da carreira do Jorge Silva Melo foi feita


a encenar, descobrir e acompanhar a dramaturgia con- de qualidade”, espero nunca (mas nunca, mesmo) fazer tal
temporânea, quer portuguesa, quer europeia. O que coisa, nem ter que ir apresentar os textos ao Instituto da
é que há nesta dramaturgia que tanto fascina o Jorge dita… Aquilo que me interessa é o que cria novas regras
Silva Melo e que a distingue da dramaturgia clássica? para si próprio. Ou, como dizia o grande Robert Voisin,
Não diria “grande parte”, nem diria “carreira”. Sim, trabalho editor: “só quero fazer aquilo que mais ninguém quer”.
sobre o teatro contemporâneo desde 1974, mal a censura
caiu. Com efeito, no Teatro da Cornucópia revelei Jean Jour- Nos últimos anos tem havido um interesse crescente
dheuil/Bernard Chartreux, Kroetz, Fiama Hasse Pais Bran- em relação às chamadas “escritas de cena”, em que a
dão, Michel Deutsch, Jean-Paul Wenzel. E quando saí estava palavra passa a submeter-se à cena e à visão do ence-
a escrever textos com Almeida Faria, Nuno Júdice e Maria nador. O que de novo traz esta tendência ao teatro?
Velho da Costa. Tal como depois nos Artistas Unidos, tam- Errado. Esse “interesse” é velho como a “commedia dell’arte”
bém aí recorri àquilo a que chamo os clássicos dos contem- e, no século XVIII, Goldoni deu cabo dessas “escritas espe-
porâneos. E se agora regressei a Pinter, Orton, Heiner Mül- cificamente teatrais”. A especificidade teatral assim como
ler ou Beckett, nos anos 70 revelei Horváth, o jovem Brecht, a visão (ou miopia?) do encenador são coisas que de todo
Karl Valentin - os que estavam na base do teatro que então não me interessam, não gosto e nem quero saber. Também
se fazia de mais interessante. Provavelmente, o facto de a não gostava da D. Palmyra Bastos que tinha “olho” (ou seria
minha formação ser o cinema faz-me respeitar quem agora “visão”?) para o efeito teatral contra a disciplina literária. Só
escreve, os argumentistas (que também sou). Nada distin- me interessa o teatro que se trabalha, na bela formulação
gue a dramaturgia contemporânea da dramaturgia clássica: de William Gaskill, “from the text outwards”. A actual forma-
apenas o facto de ainda não ter encontrado a sua forma. tação de espectáculos de festival que circulam pelo mundo
E é isso o que me interessa, procurar a forma para o meu proclamando a autonomia cénica e a submissão da palavra
dia de hoje (que espero sempre seja o de, pelo menos, mais (essa coisa que definitivamente nos separou do macaco-nos-
cem pessoas...), estar com quem procura, estar perto de quem so-santo-pai) é um das modas mais reaccionárias, estúpidas,
ainda não sabe como será a imagem que terão de nós. Mas preguiçosas, marciais, desistentes, arranjistas, economicis-
tal como me interessa o teatro que se faz ao mesmo tempo tas que já vi. É que, depois de Tadeusz Kantor...
que escrevo, interessa-me acima de tudo o teatro que não en-
contra solução nas soluções cénicas existentes - e isso agora Fazer dramaturgia contemporânea implica lidar com
como antes. Como poderia eu então explicar porque estou a autores vivos, que assistem às encenações dos seus
fazer Musset (não representado a não ser 60 anos depois da textos e podem reagir melhor ou pior a estas. Em que
sua morte), ou Büchner (um século a aguardar a cena possí- medida tal pode condicionar, enriquecer ou compli-
vel). Aquilo que me interessa é tornar possível o que parece car o trabalho do encenador?
impossível: vozes fora da norma (de qualquer norma). Os autores vivos com quem trabalhei não assistem às
encenações dos seus textos (encenação é um trabalho
No início do século XIX, Almeida Garrett afirmava hermenêutico muito íntimo que se passa com os acto-
que, fora Gil Vicente, não existia dramaturgia por- res); assistem aos espectáculos (e alguns assistem a al-
tuguesa. Apesar de todas as medidas que Garrett e guns ensaios). Sempre adorei trabalhar com outros, dis-
sucessores tomaram para a fomentar, hoje continua cutir, não tenho nem quero ter “visão”, sou argumentista
a afirmar-se a mesma coisa. Qual é, afinal, o problema e às vezes enceno ou realizo, o que faço é sempre com
da dramaturgia portuguesa? outras pessoas. E tenho o maior prazer em ter o Jon Fos-
Nenhum, a não ser este: não há teatro em Portugal, por- se ou o David Lescot ou o José Maria Vieira Mendes ou o
que havia de haver autores? Sim, há umas casas abertas Spiro Scimone na plateia. São camaradas, andamos nisto.
em regime de franchising, mas prefiro sanduíches feitas
à mão e sem luvas de plástico. Ao longo da sua longa carreira, o Jorge Silva Melo já en-
cenou muitos textos e autores, uns mais famosos do que
Os Artistas Unidos ocuparam um novo espaço, o Tea- outros. Quais desses textos e autores se lhe entranha-
tro da Politécnica, tendo alguns jornais dito que este ram debaixo da pele e ainda o acompanham até hoje?
passaria a ser uma “casa de autores”, assente numa Georg Büchner, pai de todos nós, sim. E Heiner Müller,
dramaturgia de qualidade. Será que o dramaturgo meu amigo. E Jon Fosse, esse imenso escritor. Claro que
ainda continua a ser o principal autor de teatro? os que mais me ficam debaixo da pele e me acompanham
Não conheço outro, conhecem? E não sei o que quer di- são os meus, que escrevi alguns... —
zer “principal”; se for isso, não quero. Quero uma casa de
autores. Principais ou figurantes... Quanto à “dramaturgia

25
27
entrevista joaquim paulo

Juan
Mayorga
Juan Mayorga é um dos mais concei-
tuados dramaturgos espanhóis da
actualidade. Formou-se em filosofia
e matemática, sendo autor de vários
estudos sobre Walter Benjamin. É
membro do conselho de redacção da
revista de teatro Primer Acto e docen-
te na Real Escuela Superior de Arte
Dramático de Madrid. Várias peças
suas, como Cartas de Amor a Stalin,
Hamelin, O Rapaz da Última Fila, etc.,
estão traduzidas para português.
Na seguinte entrevista colocá-
mos-lhe algumas questões sobre o
labor da escrita e a influência que o
seu percurso exerce sobre as peças
que tem vindo a escrever.

por Jorge Palinhos

28
juan mayorga

Quando está a escrever ou a ler um texto, como é que


reconhece nele potencial ou qualidade dramatúrgica?
Um texto teatral deve provocar um desejo de reunião.
Primeiro, de alguns actores que queiram converter esse
texto numa experiência no espaço e no tempo. Em segui-
da, de alguns espectadores que se reúnam com aqueles
actores num dado lugar e dada hora para partilhar e
completar essa experiência.
Como escritor e como leitor, é essa capacidada de
convocar que me leva a reconhecer um texto como sen- não a tiver compreendido mal, uma obra de arte é mais
do autenticamente teatral. Quando desejo que a palavra bela quanto mais complexa, sempre que essa complexi-
escrita seja pronunciada por um ser humano perante dade não confunda o seu destinatário. Esta complexida-
outros; quando desejo que a acção escrita seja realizada de sensata é aquilo que procuro. No entanto, qualquer
por um ser humano perante outros, então sinto que es- uma das decisões que mencionei podem ser revogadas
tou perante um texto para teatro. durante o processo de escrita.
O trabalho até obter uma primeira versão pode ser
Qual costuma ser o ponto de partida dos seus textos e relativamente breve (Cartas de amor a Stalin) ou demorar
como é que estes se desenvolvem? anos (Los yugoslavos). Todavia, nunca dou por terminado
Os meus pontos de partida são muito diversos. Uma ex- um texto. O texto está atravessado pela minha vida, e
periência pessoal (O rapaz da última fila, El atravessa-a. A vida – bem como as encena-
cartógrafo), uma fotografia (La tortuga de Da-
rwin), uma notícia de jornal (O jardim queima-
do, Últimas palavras do gorila albino, Hamelin),
Esta complexidade ções – levam-me a entender de novos mo-
dos o texto, e amiúde a reescrevê-lo.

um facto histórico (Cartas de amor a Stalin,


Caminho do céu)... Noutras ocasiões a origem
é mais obscura (Los yugoslavos). O comum a
sensata é aquilo Como nascem e crescem as personagens nos
seus textos?

que procuro.
Não há nada de tão misterioso e fascinante
todos estes casos é que algumas persona- como a criação de uma personagem que se
gens te assaltam e te pedem que lhes dês impõe aos poucos ao seu criador até que um
corpo, espaço, tempo, linguagem: teatro. dia se torna mais real do que o próprio cria-
Quando quis escrever a partir de um tema dor.
(Animais nocturnos, A paz perpétua, 581 ma- De onde é que surgem as minhas perso-
pas), não o consegui fazer até dar com essa situação ou nagens? Primeiro da minha própria vida e das vidas das
essa personagem capaz de arrastar a ideia pelo espaço pessoas com quem me tenho cruzado. Também a partir
e pelo tempo. da minha vida como leitor e espectador.
Quando me coloco diante do papel, penso em cada
De que forma é que estrutura o texto e a trama dra- personagem em relação com as demais – nos seus pos-
mática até à sua forma final? síveis conflitos, nas suas possíveis alianças, nas suas se-
Geralmente resisto ao impulso de escrever, deixando melhanças, nos seus contrastes. E procuro, sobretudo, a
que o motivo inicial me acompanhe durante meses e ferida e a luz da personagem.
se vá associando a outros. Desse modo vão surgindo
situações, personagens... Deste modo vai aparecendo
também a forma da obra. A dado momento, detenho-me
para pensar sistematicamente na obra que estou a pro-
jectar, e é nessa altura que tomo decisões sobre as per-
sonagens, os espaços, os tempos, a linguagem verbal e a
linguagem teatral, a estrutura... Tento ter em conta a par-
te sétima da Poética de Aristóteles, segundo a qual, se eu

29
entrevista joaquim paulo

30
juan mayorga

Qual a sua intervenção e relação com o encenador, acto-


res e restante equipa na passagem do texto para a cena?
Se o encenador me pede que colabore na montagem do
texto, faço-o com todo o gosto, como mais um elemento
da sua equipa. É o encenador que deve determinar os li-
mites dessa colaboração. Em nenhum dos casos assumo
o papel de juiz da encenação. O texto sabe coisas que o Tem feito várias versões teatrais de textos clássi-
seu autor desconhece e que o encenador e os actores cos do teatro, de autores como Shakespeare, Ibsen,
poderão descobrir. O melhor que pode suceder a um au- Tchekhov, etc. O que é que o trabalho sobre textos
tor é que a encenação revele aspectos do texto que este clássicos traz às peças originais de Juan Mayorga e o
ignorava ter escrito. E eu já tive a sorte de receber esse que é que o Juan Mayorga pode trazer a estas peças
presente mais do que uma vez. clássicas?
Entre os meus trabalhos, distingo aqueles em que par-
O Juan Mayorga tem formação em Filosofia e Mate- ti de um texto alheio e desenvolvi outro que considero
mática. Em que medida é que esta formação influen- próprio (Palavra de Cão, Fedra, Primera noticia de la ca-
cia as peças que escreve? tástrofe, La lengua en pedazos), de experiências em que
Os matemáticos são capazes de expressar, com apenas fui mediador entre um texto clássico e o espectador
alguns signos, realidades muito complexas – por exemplo, contemporâneo. Neste último caso considero-me um
a idea de elipse ou o teorema de Fermat. A Matemática é tradutor, inclusivamente se trabalho no espaço da minha
uma extraordinária criação da imaginação humana e uma própria língua – por exemplo, quando adapto Lope de
formidável linguagem de síntese, e conhecê-la ajudou-me Vega ou Calderón de la Barca. O tradutor é, certamente,
a evoluir nessa arte de imaginação e síntese que é o tea- um criador, mas é-o dentro da obra de outro, à qual deve
tro, em que um objecto, um gesto, uma frase, devem dar ser fiel mesmo quando parece atraiçoá-la.
conta de uma personagem, de uma situação, de uma épo- Deixem-me acrescentar que a adaptação de textos
ca. Costumo dizer que o teatro deve ser uma linguagem clássicos foi a minha melhor escola como dramaturgo.
sem gorduras e que o seu órgão é a imaginação, e ambas Não só porque me permitiu entrar em relação íntima
as coisas também se podem dizer sobre a Matemática. com os segredos de enormes autores, como também
Não reconheço qualquer separação entre o meu porque me proporcionou um duplo ensinamento moral:
trabalho como filósofo e o meu trabalho no teatro. É trabalhar com os grandes textos da literatura dramática
verdade que a filosofia e o teatro parecem ter âmbitos universal tornou-me muito mais humilde – sei que tudo
infinitamente separados, visto que uma é o reino do abs- o que escrevi nada vale perante a cena da fraga de Dover
tracto – as ideias – e o outro é o do concreto – os corpos de Rei Lear –, mas também mais ambicioso – ao dar-me a
no espaço –, mas pelo menos desde Sófocles – e estou a ver até que ponto a velha arte teatral é capaz de guardar
pensar na Antígona –que alguns homens de teatro foram e alargar a experiência humana. —
capazes de tornar concreto o abstracto. A filosofia e o
teatro nascem do assombro perante o mundo e a vida;
ambos vivem do conflito e têm um carácter constituti-
vamente dialéctico. O teatro pode tornar visíveis pro-
blemas e paradoxos que interessam à filosofia; inclusa-
mente pode dar a ver problemas para os quais o filósofo
ainda não tem palavras.

31
entrevista joaquim paulo

Tim
Crouch
Actor e dramaturgo britânico, Tim
Crouch tem vindo a afirmar um per-
curso singular na busca de novos
temas e formas de fazer teatro e
performance. Várias das suas peças
já foram apresentadas e tiveram as-
sinalável sucesso um pouco por todo
o mundo ocidental. Algumas foram
apresentadas em Portugal, e estão
publicadas na colecção «Livrinhos
de Teatro», como é o caso de Um
Carvalho e O Autor. Fomos tentar
perceber como é que Tim Crouch
escreve e o que é que o inspira no
seu trabalho de escrita e encenação.

por Jorge Palinhos

32
tim crouch

Quando está a ler ou a escrever um texto, como é que re-


conhece nele o potencial de se tornar uma peça teatral?
Esse é o processo mais lento. É um processo de testar
uma ideia para garantir que é mais do que apenas a ideia.
Normalmente há uma dança entre ideia e narrativa. Que-
ro explorar uma ideia e quero contar uma história. Ide- de investigação narrativa. Desenvolve-se uma cena. Esta
almente quero que seja uma boa história, que contribua pode ficar na montagem final ou pode ser combinada com
para a ideia, sem que isso prejudique o prazer da história. outra cena. Estou sempre a pensar no texto em palco. Não
Por isso, a minha abordagem nunca parte da personagem. escrevo textos “literários”. Os meus textos são roteiros
Sei que alguns escritores dizem que se limitam a juntar as para o espectáculo ao vivo. A forma como a peça funciona
personagens e ver para onde vão. Eu não o faço. ao vivo determina a sua estrutura final.

Normalmente, qual é a inspiração para escrever um Enquanto autor, como é que nascem e se desenvol-
texto e como é que desenvolve a ideia inicial? vem as suas personagens?
Na verdade só tenho uma ideia (ou fascínio) – e cada uma As minhas personagens representam mais ideias do que
das minhas peças constitui uma forma diferente de ex- “outras pessoas” vivas e dinâmicas. O meu trabalho é de-
plorar essa ideia. Essa ideia para mim existe no potencial safiar a perspectiva representacional da interpretação
que se pode obter entre o palco e o público – que trans- de uma personagem. Estou interessado na ideia de que
formações se podem obter sem alterações fí- uma personagem ser negociada entre o actor
sicas. Por exemplo, a minha próxima peça de- e o público. Isso torna-se claro na minha peça
bruça-se sobre a forma como representamos
pessoas – reais – no palco – como é que nós, Normalmente O Autor, onde cada um dos actores represen-
ta uma personagem com o seu próprio nome,
de forma ingénua, procuramos uma transfi-
guração física nessa representação. Poderia
escrever um panfleto com esses meus pensa-
há uma dança uma personagem próxima da sua própria
personalidade. Eu desempenho um homem
chamado Tim Crouch que é dramaturgo e en-
mentos, mas prefiro contar uma história que
os explore. E, associada a essa história, sus-
tentada nessa história, estará a forma como
entre ideia cenador. Uso as minhas próprias roupas, falo
com a minha voz normal. A única coisa que
distingue o eu real do eu ficcional é a divisão
a história é contada. Desse modo, a forma e
o conteúdo orientam-se para explorar algo
e narrativa. narrativa entre as acções que desempenho na
ficção e na minha própria vida. Não preciso de
de semelhante. A inspiração para começar a demonstrar essa diferença através da repre-
escrever normalmente surge após um longo sentação de ‘outra’ personalidade. O público
processo de leitura e anotações. É entre a é convidado a fazer essa distinção.
bruma das notas que as coisas começam a ganhar forma. A minha peça que mais assenta numa personagem é
O meu trabalho enquanto escritor é procurar essas for- a minha peça para jovens, I, Malvolio, porque estou a
mas e testá-las em relação à minha ideia. responder a uma personagem muito vívida criada por
Shakespeare. Na peça não sou claramente eu. Mas tam-
Como é que estrutura o texto e o enredo até à sua bém não me sinto obrigado a ser fiel à personagem. Pos-
forma final? so saltar entre actor e personagem facilmente e isso não
As minhas peças não são peças tradicionais – estruturadas vai afectar a identificação do público com essa persona-
em torno da acção psicológica. Por vezes as personagens gem. Se tanto, vai até aumentar essa identificação, pois
não têm nomes ou são veículos para um estudo ideológi- este compreende a natureza da criação.
co, e não códigos regidos por personagens. A estrutura
nasce da própria escrita. Alguns autores estruturam tudo
antes de começarem a escrever cenas ou diálogos. Eu
não. Eu começo com um palpite associado a uma ideia e
história. Trabalho de forma intuitiva – seguindo uma linha

33
tim crouch

Costuma também encenar e interpretar os seus tex-


tos. Como é que trabalha com o resto da equipa no
processo de adaptação do texto para o palco?
Trabalho com dois colaboradores – Andy Smith e Karl
James. Não trabalhamos sempre juntos. O Andy e o Karl A maior parte das suas peças jogam com as conven-
têm as suas próprias carreiras. O início do nosso proces- ções do teatro. Um Carvalho exige a participação de um
so de trabalho dá-se quando começo a escrever algo. actor convidado que nada saiba da peça, e O Autor é
Partilho as minhas ideias iniciais com o Karl e o Andy. As contado do ponto de vista do público. Porquê essa ne-
suas respostas irão guiar os meus pensamentos sobre o cessidade de explorar os limites do teatro e do drama?
rumo do trabalho, mas eles não têm qual- Não me proponho a explorar limites. Talvez
quer interferência na escrita. As minhas me limite a tentar não colocar restrições
peças não assentam no devising. No en-
tanto, nas nossas discussões, nós falamos
Não me proponho àquilo que posso fazer em termos de forma.
Mas julgo que deve acontecer o mesmo com
do que cada peça precisa para poder ser
encenada. Cada peça tem necessidades
diferentes. Por exemplo, a minha pró-
a explorar limites. todos os escritores. Deixar a forma ir atrás
daquilo que o conteúdo determina. E deixar o
conteúdo ir atrás do que a forma determina.
xima peça vai exigir um designer – algo
que nenhuma das minhas outras peças Talvez me limite a Nesse aspecto, todas as obras de arte devem
ser experimentais. Nenhum artista deve ter a

tentar não colocar


para adultos necessitava. Por isso, vamos intenção de se repetir a si próprio. O segundo
precisar de um designer com quem cola- actor de Um Carvalho não sabe nada sobre a
borar. A equipa varia consoante as neces- peça em que participa porque esta sensação
sidades da peça. No caso de O Autor, es-
crevi para actores específicos. Só tivemos
de fazer uma audição para uma persona-
restrições àquilo que de perda tem uma ligação narrativa com a
personagem que está a interpretar na peça.

gem, a jovem mulher, Esther. No caso de


Um Carvalho, o segundo actor era cedido posso fazer em termos Algumas das peças do Tim Crouch pa-
recem ser bastante influenciadas pelas
pelo teatro ou festival onde decorria a
apresentação. Eu não quero escolher
aqueles actores, mas apenas conhecê-
de forma. artes plásticas. O que pensa que a escrita
dramatúrgica pode aprender com as artes
plásticas contemporâneas?
-los pela primeira vez uma hora antes do As artes plásticas estão menos sujeitas ao
espectáculo. Desse modo posso manter o realismo figurativo. As ideias podem ser
processo vivo – um processo que foi dis- mais fluídas, mais imediatas, mais abstrac-
cutido e pensado por mim e pelos meus colaboradores. tas. As artes visuais também exigem mais do seu público.
Não temem o espaço em branco ou o deixar coisas por
dizer. O teatro é difícil porque assenta na forma humana,
e essa forma transporta consigo uma certa literalidade –
um realismo inato que, creio, deve ser questionado pelo
teatro. O realismo que fique para o cinema e para a tele-
visão – o teatro deve acompanhar as artes visuais para
novos territórios de expressão. —

35
entrevista joaquim paulo

José Maria
Vieira Mendes
Nascido em 1976, José Maria Vieira
Mendes tem já um longo percurso no
teatro. Frequentou a Internacional
Summer Residency do Royal Court,
de Londres, traduziu Samuel Beckett,
Jon Fosse, Harold Pinter, Heiner
Müller, Rainer Werner Fassbinder e
Bertolt Brecht, e é autor de uma obra
dramática considerável, premiada e
publicada em várias línguas. Em Por-
tugal trabalhou fundamentalmente
com as companhias Artistas Unidos
e Teatro Praga. Acedeu a responder
a algumas perguntas sobre o seu tra-
balho de criação e sobre a sua visão
da dramaturgia contemporânea.

por Jorge Palinhos

36
josé maria vieira mendes

Qual a sua intervenção e relação com o encenador, ato-


res e restante equipa na passagem do texto para a cena?
Não trabalhamos com encenador nem com qualquer
Quando está a escrever ou a ler um texto, como é que tipo de hierarquia, tanto nas funções dentro do grupo
reconhece nele potencial ou qualidade dramatúrgica? como entre os vários elementos (cenografia, atores,
Não acredito em potencial ou qualidade dramatúrgica música, iluminação) que constituem o espetáculo. Tra-
de um texto. Gosto ou não gosto do que estou a escrever balhamos num coletivo. E o texto não passa para a cena.
ou a ler. O “potencial dramatúrgico” tem sido responsá- O texto é o texto. A cena é a cena. São dois elementos
vel por uma estagnação de uma certa dramaturgia que distintos e de convivência difícil. E tentam encontrar-se
se fixou numa ideia de que o texto prevê um espetáculo. num espetáculo. Em alguns espetáculos. Tal como os res-
A mim interessa-me hoje escrever para um teatro que tantes elementos. É tudo o mesmo. E o texto tanto pode
não sei o que é ou pode ser. E não espero com o meu ser o princípio (cronológico) da criação do espetáculo,
texto que o teatro encontre uma resposta, antes um es- como aparecer no meio ou no fim. Não há regras. Não há
tímulo para se continuar a perguntar. método. Não há hierarquia predefinida.

Qual costuma ser o ponto de partida dos seus textos e O José Maria Vieira Mendes já colaborou com os Ar-
como é que estes se desenvolvem? tistas Unidos, que praticam um teatro mais literário, e
Tenho tido um percurso de mais de dez anos de escrita para hoje integra o coletivo Teatro Praga, mais influencia-
teatro que passou por várias fases. Desliguei-me entretan- do por uma estética da performance e das artes plás-
to de uma escrita para um teatro de texto e concentrei-me ticas. Quais os desafios e atrativos de escrever para
no meu trabalho com a companhia Teatro Praga, da qual estas duas diferentes formas de fazer teatro?
faço parte. E dentro deste coletivo tenho trabalhado de Neste momento não escrevo para nenhuma forma de
diferentes formas, seja escrevendo textos com um grupo teatro. Apenas faço espetáculos com o Teatro Praga. E
de pessoas, durante os ensaios, tentando preencher uma nem todos os espetáculos que faço enquanto membro
estrutura e conceito de espetáculo amadurecida, em con- do Teatro Praga têm textos escritos por mim. Às vezes
junto e recorrendo a diferentes materiais, seja propondo nem sequer uma frase escrevo. O Teatro Praga faz te-
um texto meu como objeto literário que pretendo que seja atro. Não faz performance nem artes plásticas, mas
lido pelos restantes membros da companhia e entendido trabalha com essas influências como trabalha com as in-
como estímulo para um espetáculo que não se pode fazer. fluências da música, do teatro, da televisão e do cinema,
ou seja, de tudo o que se passa à nossa volta. Teatro é
De que forma é que estrutura o texto e a trama dra- um termo suficientemente abrangente apesar de tanta
mática até à sua forma final? gente o tentar reduzir.
Vou escrevendo. Tenho ideias. Penso. Manipulo. Não me Continuo a escrever peças de teatro. Acabei de escrever
interessa a “trama”. Só trabalho com ela para mostrar uma peça a que chamei Terceira Idade, uma comédia. Vamos
que ela não interessa para nada. Interessam as ideias. A tentar fazer um espetáculo em que esse texto seja dito. Ou
trama apenas serve para dizer coisas como “Adensa-se a parte dele. Se mais alguém quiser fazer qualquer coisa com
trama. E fica tramado.” E fujo da forma. A sete pés. este texto, não me oponho. É pouco provável que vá ver o
espetáculo ou participar nos ensaios. Mas, atenção, o texto
Como nascem e crescem as personagens nos seus textos? é uma peça de teatro. E não teatro.
Ninguém nasce nem ninguém cresce. O teatro não é a A minha relação com os Artistas Unidos, que é uma re-
vida. O teatro é o teatro. Ou é aquilo que torna a vida lação neste momento com o Jorge Silva Melo, tem por um
mais interessante do que o teatro. Nascer e crescer são lado que ver com o passado, e, no presente, com uma espé-
metáforas que a mim não me dizem nada. Trabalho com a cie de prolongamento do passado no presente. Parece-me
ideia de ator. Um ator a dizer um texto. E o texto pode ter mais difícil os Artistas Unidos interessarem-se por aquilo
umas personagens ou não. (Quando as tenho em textos, que ando a escrever agora. Mas não quero ajuizar por eles.
só lá estão para mostrar que as personagens não inte-
ressam para nada.) Mas não pode deixar de ter ideias. Tendo trabalhado como dramaturgo, tradutor de te-
Pensamento. São pessoas a pensar em palco. Pessoas a atro, formador de escrita dramática e júri de prémios
fazer coisas para outras pessoas. Pessoas que entrem e de dramaturgia, que visão tem sobre a dramaturgia
saem, não nascem e morrem. portuguesa contemporânea?
Nenhuma. E também não sei o que é “dramaturgia”. —

37
entrevista

38
josé maria vieira mendes

39
40
ENTREVISTA JOAQUIM PAULO

41
entrevista joaquim paulo

TEATRO
MI-
«As afinidades compulsivas entre a
forma filosófica e a forma poética, o
seu nascimento geminado no impulso
primordial em direcção ao significado,
em direcção à tentativa da consciência
humana de encontrar alojamento no
mundo conhecido – tentativa a que
podemos chamar “mito” – provocaram
esses conflitos de que a República de
Platão continua a ser um exemplo.»

George Steiner,
Paixão Intacta (2003)

TOCRÍTI-
CO
Uma breve introdução «A mitologia é a verdade dispersa, tú-
nica rasgada de um deus morto a quem
só podemos ressuscitar juntando com
paciência piedosa todos os pedaços.
Esta tarefa é superior às nossas forças.
Por isso os egípcios confiavam a Ísis
a missão divina de caminhar sozinha
através da noite para fazer da seara
cintilante das estrelas o corpo único
do seu esposo ressuscitado, Osíris, o
sol brilhante.»

Eduardo Lourenço,
Ísis ou a Inteligência (2008)

42
teatro mitocrítico

pós-junguiano Gilbert Durand cunhou o termo, a partir


dos anos 70 do século passado. Mas confesso que me
interessa agora antes de mais perseguir o sentido que a
etimologia desta palavra composta me suscita. Mitocríti-
co pareceu-me à partida uma expressão capaz de reunir
e conciliar operativamente as duas facções da querela
Armando Nascimento Rosa antiga que Platão instituiu, já bem patente no Íon, entre
dramaturgo e professor na filósofos e poetas: sendo que o mito se encontra do lado
Escola Superior de Teatro e Cinema da poesia; e a crítica é o ofício reflexivo da filosofia que
pode, se a tal se dispuser, intentar uma perspectiva in-

T
al como o sonho para Freud, na sua centenária teo- terpretativa do «delírio mítico» do poeta-xamã. Renun-
ria da interpretação dos sonhos, também para mim a ciando à radicalização do seu mestre, que expulsava os
escrita de uma peça teatral tem por base um desejo poetas da cidade ideal, Aristóteles identifica um lugar
primordial: o desejo de ver a transformação daquele discursivo de meio termo onde se fundem poesia e filo-
guião de palavras e ideias com potenciais imagens sofia num casamento inesperado: nos três géneros tea-
num espectáculo de gente viva e actuante no lugar trais cultivados pelos gregos (tragédia, comédia e drama
da cena. Mas esse desejo, que preside à escrita do sonho satírico), a criação dramática configura o terceiro termo
de acordados que o teatro é, consiste num desejo explí- que proporciona uma síntese para a antítese platónica
cito, cuja latência é inteiramente manifesta, contrariando entre poesia e filosofia. Porque é conveniente não es-
freudianas censuras, mesmo sabendo que a raiz desse quecer que o alvo de estudo da Poética - esse que ficou
desejo tem uma natureza que se estende por uma vasta sendo conhecido como o primeiro tratado de teoria lite-
paisagem que os olhos da consciência já não alcançam, rária no Ocidente - é precisamente a poesia dramática e
mas apenas intuem. a destinação cénica a que esta está votada. Na Poética,
Com estes mesmos olhos da consciência dirigidos surpreende-nos Aristóteles ao afirmar que a poesia dra-
para o que faço, tanto na escrita dramática como nas mática é algo mais filosófico do que a História porque,
incursões do ensaio (tendo o teatro por horizonte), ve- ao contrário dos particularismos factuais desta, o drama
rifico que uma designação me será comum a ambas es- visa a representação do universal através dos caracteres
tas modalidades de produção estética e hermenêutica: que integram a acção teatralizada. Esta declaração, que
refiro-me a uma constante mitocrítica, dinamizadora decerto faria estremecer Platão, seu mestre, é uma to-
simultânea de imaginário e pensamento. mada de posição que legitima por inteiro a abordagem
Que é isso de teatro mitocrítico? É a pergunta que mitocrítica vista nestes moldes, uma vez que reconhece
coloco a mim mesmo no arranque deste artigo. Come- uma vocação filosófica nos modos com que o drama-
ço pelo termo mitocrítico. Ele ocorre-me num exercício turgo concebe os mitos para serem expostos no palco
de imaginação conceptual, não obstante estar ciente do da pólis. E é o mesmo Aristóteles que fala do mito como
contexto semântico e metodológico influente com que o alma do drama, ainda que a acepção aristotélica de mito,
na Poética, seja eminentemente secular, mais abstracta
(ou conceptual) do que sincrética, e se reporte ao que
entendemos por estória, enredo, narrativa que a cena
dramatiza. Esse mito de que fala o filósofo não é neces-
sariamente a matéria-prima elementar dos sistemas de
crença religiosa, embora possa com ela coincidir, visto

43
testemunhos

A partir do último quartel do séc. XIX, dá-se, em me-


tamorfose, um retorno afirmativo do mito, esse recal-
cado na utopia unilateral que dominou o racionalismo
moderno. O seu regresso aloja-se num centro nevrálgi-
co do sujeito da cultura, difícil já de extirpar a partir daí;
que os mitos a que o teatro antigo recorre pertencem refiro-me à manifestação dos recursos mitológicos mo-
ao universo politeísta e xamânico, onde deuses e seus bilizados pela psicologia do inconsciente, que fornecem
poderes ou influências contracenam com personagens modelos de explicabilidade a uma possível hermenêutica
objectivamente mortais, que só o teatro da psique - o contributo de Nietzsche é também
dotará de imortalidade simbólica, na sua sintomático e significativo do regresso da ima-
efémera epifania. Esta ambiguidade está
por isso inerente às origens do teatro e
ao pensamento sobre ele no Ocidente; ou
Os mitos ginação mítica como expressão do recalcado no
discurso filosófico do Ocidente, com toda a (psi-
co)patologia inerente à violência do seu gesto.
seja, os mitos gregos que motivam a cria-
ção dramática emergem de dois afluentes psicanalisam-nos Os mitos psicanalisam-nos na nossa tentativa
mesma de os psicanalisar. Eles falam da plura-
distintos, mas oriundos porém de um rio
comum: o afluente numinoso e xamânico
das mitologias que alimentam o sentido e
na nossa tentativa lidade dramática da psique porque é neles que
a psique exprime a geografia profunda da sua
linguagem. Isto porque a psique humana possui
a forma dos rituais e das mundividências
que lhes estão associadas; e o afluente
poético-narrativo que está na base da au-
mesma de os uma natureza mitodramática, a começar pela
palavra grega que a nomeia, sinónima do nome
da jovem mortal Psique que contrai núpcias,
tonomia artística dessa actividade huma-
na a que o futuro viria a chamar literatura.
psicanalisar. sem o saber, com o deus Eros, esse estranho
amante que não quer deixar-se ver por ela à luz
A sobrevivência do mito no secularis- do dia. Uma actividade mitocrítica pode ver-se
mo estético das literaturas nem sempre é transfigurada na narrativa aventurosa deste ca-
tão estritamente secular, como é sabido, visto que servi- sal singular a que Apuleio deu forma literária: se aceitar-
rá, muitas vezes, para disfarçar credos heréticos ou sim- mos que Eros representa a função complexa inscrita na
plesmente incómodos (porque socialmente minoritários misteriosa sedução do mito; e Psique, por sua vez, repre-
e/ou reprováveis pelos poderes dominantes), sob os fi- sentará o desejo «crítico» da consciência que pretende
gurinos aparentemente inócuos da efabulação literária. conhecer o mistério dessa atracção de acordo com as vá-
No teatro, esta aparência inócua tende obviamente a rias dimensões que a experiência humana proporciona.
desfazer a sua camuflagem, exibindo em pleno os alvos Pela observação dos trabalhos árduos em que a humana
a que se destina, não obstante o despiste irónico e lúdi- Psique se vê implicada, percebe-se como o envolvimento
co de sentidos que a cena produz no espectador. Num íntimo com a natureza poderosa do mito se pode tornar
outro ângulo, também a literatura e a arte dramáticas, em motivo de sobrevivência ou aniquilação do humano.
portadoras do vinculo numinoso das suas origens (e digo Nos conteúdos de um «nada que é tudo», segundo a de-
numinoso na acepção etimológica do termo, visto que os finição pessoana de mito, reside um brilho fascinante e
numes ou daimónes eram humanamente invocados para perigoso, encantatório e mortífero, belo e abissal; como
a aparição no rito lúdico da cena), darão à luz novos com- bem o sabemos ao vivenciar o terror e a compaixão que o
plexos míticos, pela vias geminadas da imagética, da nar- espectáculo interactivo da História produz em nós, nes-
rativa e da acção. Complexos esses que se constituem ta dupla condição de agentes e pacientes dela. E o mito é
como verdadeiros atractores da psique, conjurados pela tema multiforme que passa a pulsar na circulação cultural
imaginação poética, a que Bachelard chamou complexos da modernidade tardia, com Freud e com Jung a incenti-
de cultura, ao identificar exemplos deles - como sejam o varem-nos a empreender diferentes mitanálises dela.
complexo de Ofélia ou o complexo de Swinburne (em A Não é espaço e lugar aqui para teorizar sobre o mito
Água e os Sonhos, 1942). enquanto polarizador de discussões no consciente co-
lectivo; e bem assim aos modos de entendê-lo nas suas
múltiplas acepções, antiga, moderna, contemporânea.
Mas na intenção de procurar extrair sentidos e leituras

44
teatro mitocrítico

de constelações míticas habita a pulsão mitocrítica que


resulta, como o nome indica, da aliança entre a fonte
magnética e esfíngica do mito e a vontade hermenêutica
de saber o que ele diz, o que ele é capaz de nos fazer ver
e dizer e que de outro modo não poderíamos exprimir.
Como o mito foi para os antigos matéria de inspiração
criativa, o enamoramento que a psicologia profunda fará
com o imaginário mitológico, para que a psique possa fa-
lar de si própria, manifesta uma força motriz desafiadora Referências ARISTÓTELES. Poética. Trad. de Eudoro de
bibliográficas
da imaginação simbólica na arte. Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 1986.

A pulsão que me conduz à criação dramatúrgica descobre


a sua dimensão mitocrítica neste jogo entre o mito como BACHELARD, Gaston [1942]. A água e os so-
motor da imaginação dramática e a imaginação dramática nhos. Trad. de Antonio de Padua Danesi. São
como potenciadora de sentidos que reconhecem na psi- Paulo: Martins Fontes, 1989.

que humana a natureza simbólica


do discurso mítico. O teatro e a LOURENÇO, Eduardo, «Ísis ou a Inteligência». In
dramaturgia são dinamizados por
materiais mitológicos desde as suas A pulsão que me conduz Relâmpago. Revista de poesia, n.º 22, pp. 27-29. Lis-
boa: Fundação Luís Miguel Nava, Abril de 2008.

à criação dramatúrgica
origens, de maneiras mais ou me-
nos explícitas. E talvez seja apenas STEINER, George [1996]. Paixão Intacta. En-
uma simples tautologia reclamar a saios 1978-1995. Trad. de Margarida Periquito
legitimidade da designação de tea-
tro mitocrítico. Persisto porém em
fazê-lo, uma vez que clarifica para
descobre a sua dimensão e Victor Antunes. Lisboa: Relógio d’Água, 2003.

[O presente artigo corresponde a um excerto


mim o que me traz na paixão pela
escrita para cena, desde a minha mitocrítica neste jogo entre inicial do ensaio «Notas para um teatro mitocríti-
co», publicado em São Paulo in Sala Preta. Revista

o mito como motor da


primeira peça, concluída em 1988, de Artes Cénicas, n.º 9, 2009, Programa de Pós-
na qual um motivo mítico me servia -Graduação em Artes Cénicas, Departamentos
de Artes Cénicas, Escola de Comunicações e Ar-
para transformar em teatro o terror

imaginação dramática e a
tes, Universidade de São Paulo, pp. 73-84.]
e a compaixão que experienciei pe-
rante uma tragédia contemporânea
assistida à distância, através dos
media: o desastre nuclear ocorrido
no Brasil, na cidade de Goiânia, em imaginação dramática como
1987, e que daria origem a Goiânia
– Uma Nova Caixa de Pandora, obra
dramaturgicamente ambiciosa que
potenciadora de sentidos
pretendia, na experimentação ju-
venil da minha escrita para teatro,
aferir a possibilidade de abordar em teatro o trágico da
condição contemporânea, de habitantes num planeta vivo
com futuro ameaçado. —

45
entrevista joaquim paulo

Imag
é um
jOgO Paisagem, viagem, participação
e tecnologia na dramaturgia do
Visões Úteis – 1999/2011
:

46
imagina que isto é um jogo

gina
por Carlos Costa
Co-director artístico
e de produção do Visões Úteis
que isto
entre pinhais e montanhas. O Projecto Umbigo repetiu-
-se por mais dois anos, acabando por ser absorvido pelo
ritmo padrão dos novos processos criativos a partir daí
adoptados – baseados numa metodologia colaborativa
e direcção partilhada – que passaram a forçar períodos
longos de reflexão em que a ausência do Porto era subs-
tituída pelas novas possibilidades oferecidas pelas tec-
nologias da comunicação.
Em 2001, no âmbito do projecto Visíveis na Estrada atra-
vés da Orla do Bosque, o VU desenvolvia o que terá sido
um dos primeiros blogues portugueses; Tanto mais que

E
m 1999 os directores artísticos do Visões Úteis tecnicamente não se tratava de um blogue (a tecnologia
(VU) refugiavam-se numa aldeia da Beira Alta para ainda não estava disponível), mas sim de um sítio em que
o primeiro Projecto Umbigo, que se traduzia em al- o Webmaster inseria quotidianamente não só informação
gumas semanas de retiro para trabalho não enqua- e imagens sobre o andamento do projecto, mas também
drado em nenhum processo de produção. Nestas os contributos e comentários de toda a equipa, como se
semanas alternavam-se momentos diversos como cada um tivesse a possibilidade de o fazer. Na verdade era
o estudo individual, apresentações teóricas, exercícios a prefiguração de uma tecnologia ainda inexistente, mas
de escrita e encenação e training de actor. E, ao longo das que ficaria disponível pouco depois e que passaria a mar-
corridas matinais, íamos apontando lugares que “só por car grande parte dos processos criativos até à actualidade.
si” pareciam sustentar a encenação de determinado tex- Assim, e sempre que se trata de processos de escrita ori-
to e imaginando – sem qualquer espírito prático - uma ginal, procede-se, com muitos meses de antecedência (às
megaprodução que convocasse o público a uma pere- vezes um ano ou mais), à abertura de um blogue interno
grinação por encenações de textos “clássicos”: entre o – só acessível à equipa – no qual se desenvolvem as pre-
pôr do sol e o nascer do sol, em quatro pontos perdidos ocupações, formas e temas que sustentarão o projecto. A
tecnologia foi vital para potenciar o encontro, a partilha
e a democratização dos processos – logo dos produtos –
convidando cada cocriador a responsabilizar-se pela sua
maior ou menor participação. E, ao longo desta última
década, o rasto destes processos foi-se acumulando numa
série de ruínas que sobrevivem escondidas em www.viso-
esuteis.pt - onde a generalidade dos originais produzidos
são disponibilizados sob licenças de creative commons.

47
testemunhos

Mas também é verdade que as novas possibilidades digi-


tais não apagaram a obsessão pelas viagens – que o Pro-
jecto Umbigo indiciava. Pelo que, em 2001 - e no referido
Visíveis na Estrada... –, o VU propunha-se trabalhar, entre
outros, precisamente o tema da viagem; e, para testar o
tema na própria forma, decidiu-se escrever/apresentar
um primeiro espectáculo e em seguida viajar com toda
a equipa numa carrinha durante um mês, pelas estra-
das da Europa, ao encontro de artistas, intelectuais e
políticos que, nas suas actividades, reflectiam sobre os
mesmos motivos do projecto. No regresso escreveu-se e
apresentou-se outro espectáculo (diferente do primeiro,
na medida em que a viagem teria alterado – e alterou –
a nossa percepção do mundo). Na altura este processo
criativo gerou reacções de perplexidade e desaprovação, Em Coma Profundo (Porto, 2002) assumia-se uma drama-
sendo considerado bizarro e irresponsável por diversos turgia imprecisa e extremamente política, que nascia da
agentes do sector. tensão urbanística entre uma comunidade que se sentia
Entretanto, e depois de vários anos em que as possi- expulsa do seu território pela especulação imobiliária e
bilidades de encontro digital parecem ter bastado em os novos habitantes que procuravam apenas um “sétimo
termos de processo criativo, o VU voltou em 2010 a andar com vista para o mar”. Já em Errare (Parma, 2004)
“perder-se” em viagens. Por um lado uma comedida (3 assumia-se uma estrutura romanesca articulada pelo
dias) incursão na rota dos moinhos de D. Quixote, segui- desencontro entre dois irmãos e claramente inspirada
da de uma residência de duas semanas na comunidade pela geografia da cidade (em que um rio separava o centro
piscatória da Afurada, tentando cruzar um imaginário histórico da zona da resistência antifascista e dos novos
universal e ficcional com um imaginário local e documen- emigrantes). Mas apesar das claras diferenças estruturais
tal, no âmbito do projecto Vento. Por outro lado uma “bi- marcava-se o fundamental denominador comum de ser a
zarra” viagem de duas semanas pela França, Itália, Suíça paisagem (leia-se a geografia, a arquitectura, o urbanismo,
e Alemanha na tentativa de uma cartografia espiritual as pessoas) a determinar a dramaturgia. Tudo isto através
do legado do projecto medieval da Ordem de Cluny, e de guiões definidos ao segundo e em que o olhar do parti-
que pressupunha pernoitar em cada uma das doze rotas cipante era subtilmente manipulado através da espaciali-
que há mil anos ligavam Cluny ao mundo, bem como mi- zação do som – que “forçava” o olhar numa dada direcção
croperformances nas respectivas ruínas e monumentos - e de pequeníssimas intervenções plásticas no percurso
- sendo que aqui o resultado final acabou por ser uma – que confundiam realidade e ficção.
instalação interactiva: A Língua das Pedras (Cluny, 2010). Posteriormente o formato sofre importantes desen-
Esta último projecto era já o reflexo de dez anos de volvimentos com os projectos Os Ossos de que é Feita
experimentação performativa em estreita ligação com a Pedra (Santiago de Compostela, 2009) e Viagens com
a paisagem, e que na maior partes das vezes não assu- Alma (Cête, Paço de Sousa, Santo Tirso e Vairão, 2011).
mia uma “forma teatral”, mas que, de um modo ou outro, No primeiro pelas condicionantes de um proto-espaço
forçava sempre o participante a uma viagem. Refiro-me público – o estaleiro da Cidade da Cultura da Galiza – que
fundamentalmente às experiências com o formato audio- forçava um assumir das intervenções plásticas e tam-
walk que se vão sucedendo numa constante reelabora- bém o “caminhar em grupo”. E, no segundo, pela frag-
ção do próprio conceito. mentação da dramaturgia por quatro minipercursos,
mas sobretudo pelo abandono do controlo obsessivo
dos tempos e olhar do participante, permitindo um espa-
ço de co-escrita (ainda não de diálogo) que era estranho
às experiências anteriores.

50
imagina que isto é um jogo

De referir também, como exemplo de fusão entre as ex-


periências de performance na paisagem dos audiowalks
e um registo teatral, o projecto O Resto do Mundo (Por-
to 2007) em que a subida do rio Zaire, ao encontro das
trevas, romanceada por Joseph Conrad, era adaptada a
um espectáculo in itinere, para três espectadores/partici-
pantes por sessão, a bordo de um táxi que se perdia no
trajecto entre o centro do Porto e os bairros da periferia.
Mais uma vez a dramaturgia era sobretudo imposta pela outro lado para uma reacção, eminentemente política,
descoberta do percurso, estruturando-se em função da ao modo de produção e programação dominante, nome-
paisagem atravessada (e dos seus ecos na banda sono- adamente em Boom & Bang (Porto 2010), um espectá-
ra), mas também de pormenores da con- culo em que toda a equipa e logística cabe
dução (uma aceleração, uma mudança de numa viatura vulgar e que foi apresentado

Mais uma vez a


caixa, um ponto de embraiagem hesitante por todo o país, atravessando circuitos de
numa subida, uma inversão de marcha programação diversos e não convencio-
“forçada” por um engano, um caminho apa- nais (circuitos em que a relação entre ar-
rentemente demasiado estreito para o ta-
manho do carro). Tudo isto numa sujeição
absoluta da ficção no interior do habitácu-
dramaturgia era tistas e público não necessita da mediação
de um “programador”). Tudo isto num mo-
vimento em que as opções estéticas – re-
lo aos ditames da realidade exterior (entre
outras, uma das sessões foi interrompida sobretudo imposta lacionadas com lugares, paisagens, modos
de participação, estruturas de linguagem –
por uma brigada da PSP que emboscou o
táxi numa rua sem saída; E noutra sessão
foi necessário empreender uma fuga de
pela descoberta incluem assumidamente a questão política
da inscrição da performance na comunida-
de respectiva; situação que parece condu-
um veículo de narcotraficantes que, por
sua vez, fugia de uma rusga policial). De re-
ferir que a generalidade destes processos
do percurso, zir a uma libertação da logística produtiva
normalmente associada à criação teatral
(recintos específicos com grandes possibi-
criativos acabou por gerar leituras-vídeo
que se assumiam como novos objectos ar-
estruturando-se em lidades técnicas).
Para terminar, em jeito de inutilidade
tísticos (e não como meros registos).
Finalmente – ainda que com menor
discernimento, dada a falta de uma pro-
função da paisagem arqueológica, recordo que o título de uma
das primeiras experiências aqui referidas
(Coma Profundo) foi “roubado” da versão
fundidade temporal mínima – temos a
deslocação destas motivações num duplo
sentido. Por um lado para paisagens de in-
atravessada.. portuguesa de uma obra de Douglas Cou-
pland, sendo esta pilhagem justificada com
a partilha de um fascínio pela celebração,
terior (também poderíamos dizer lugares) em Israel, do Dia da Memória. E dez anos
em associação com estruturas particula- depois, e com tantos desvios ao longo do
res de linguagem, nomeadamente em A Comissão (Porto, caminho, talvez seja este o sentido que permanece: a ten-
2011), um projecto para salas de reunião de hotel. Por tativa de construção de breves momentos de partilha que
– através do apelo a uma específica relação com espaços,
tempos, memórias, movimentos e modos de participação
– gravem um sentido na comunidade específica que inte-
gramos. —

51
Dramaturg
visão política
do mundo
dramaturgia, visão política do mundo

gia Os tempos de hoje, com a diferença de o socialismo não


se colocar ainda tão evidentemente como a alternativa ao
capitalismo, são muito idênticos aos tempos de Brecht,
particularmente dos anos entre a grande crise do capita-
lismo de 1929 até aos anos da Segunda Grande Guerra.
Hoje, a luta de classes agudiza-se, e o capitalismo, em cri-
se profunda, defende-se aguçando as suas garras fascistas.
De facto, em relação aos tempos de Brecht, a grande no-
vidade é que não há grande novidade, vivemos ainda num
sistema de exploração do ser humano pelo ser humano,
apenas com algumas evoluções em termos de refinamento
das suas formas de dominação, mas o essencial mantém-se.
É neste contexto mundial, com repercussões óbvias
em termos nacionais, que nós, trabalhadores das artes e
da cultura, tal como todos os outros trabalhadores, nos
deparamos.
Portanto, a grande questão do mundo, o derrube do
por Jorge Feliciano capitalismo e a edificação de um sistema social e econó-
Dramaturgo e encenador
do Teatro Fórum de Moura
mico alternativo, está ainda por resolver na prática.
Colocado que está o problema, chegou a parte em
que pelo menos alguns leitores devem estar a pergun-

É
famosa a frase em que Marx afirmava “os filósofos tar-se o que é que tem tudo isto a ver com arte, teatro
têm interpretado o mundo de diferentes maneiras. ou dramaturgia.
Mas o que importa hoje é transformá-lo”. Esta frase, Nos dias que correm a ideologia dominante continua a
contendo todo um programa, teve repercussões em separar as artes da política, fazendo-nos crer que temos
todas as áreas da vida. de optar por uma ou por outra.
Milénios de idealismo dissipavam-se no ar. Portanto se assumimos que o nosso trabalho tem uma
Obviamente as artes e o teatro não podiam passar ao perspectiva política então não estamos a fazer arte, e se
lado do materialismo marxista. Ao perguntarem-lhe se estamos a fazer arte então não podemos assumir uma
poderia o teatro reproduzir o mundo, Brecht respondeu perspectiva política.
“creio que o mundo de hoje pode ser reproduzido, mes- Normalmente a classe dominante considera deprecia-
mo no teatro, mas somente se for concebido como um tivamente que é política, ou de intervenção, a obra que
mundo susceptível de ser transformado”. coloca em causa os seus interesses, a sua visão do mun-
Brecht apontava assim aquilo que seria o novo papel do, porque à classe dominante interessa que o mundo
do teatro na sociedade do seu tempo, um tempo de agu- seja imutável, porque este mundo, tal como está, serve
dização da luta de classes, de ascensão do socialismo, de na perfeição os seus objectivos predatórios.
enorme crise do capitalismo, que, em desespero de cau-
sa, arrancou a máscara e lançou as garras de fora numa
deriva fascista.

53
entrevista joaquim paulo

54
dramaturgia, visão política do mundo

Neste novo tipo de relação de produção todos os parti-


cipantes ganham uma nova responsabilidade colectiva
Daí que a classe dominante não esteja minimamente sobre o seu trabalho, já que todos passam a ser agentes
interessada na ideia das artes reproduzirem o mundo activos da construção da visão política do mundo expres-
enquanto algo transformável. sa na peça, que deve ter ainda em conta a activação do
A sua luta é precisamente a oposta, à classe dominan- público nessa mesma construção.
te convém-lhe que mundo actual e as suas relações de Este processo de colectivização do trabalho teatral
opressão surjam, perante os espectadores passivizados, suscitará novas perguntas. Por exemplo sobre o papel do
como representações naturalizadas, intrín- dramaturgo nele, agora que não está mais
secas a uma mistificada natureza predefini- isolado no cubículo onde escreve.
da do ser humano.
Obviamente a classe dominante rara-
mente assume este combate, um dos seus
Representa um enorme Implica também repensar as técnicas de
ensaio, de improvisação, de discussão e acti-
vação ideológica da equipa. Implica repensar
truques mais eficazes é fazer-nos crer que
não está em luta. Desta forma a sua cultura atraso, no mundo de os próprios tempos de produção e as suas
formas de circulação e de relação com os pú-

hoje, não ser normal


é por si naturalizada como sendo apolítica, blicos. Implica repensar o ainda largamente
imparcial, interclassista. É esta a sua dra- dominante formato “à italiana”. Implica re-
maturgia, é esta a visão que lhe interessa pensar os modelos de pesquisa. Implica re-
passar do mundo, e essa visão é profunda-
mente política. os grupos de teatro pensar a própria formação das equipas.
Representa um enorme atraso, no mun-
do de hoje, não ser normal os grupos de
Que fazer?
terem dramaturgos teatro terem dramaturgos ou equipas de
dramaturgia residentes, que escrevem, que
Em primeiro lugar, todos aqueles que es-
tão interessados no papel activo do teatro
na transformação do mundo devem recu-
ou equipas de pesquisam, que contribuem em permanên-
cia para a dinamização filosófica e ideológi-
ca dos ensaios.
sar com clareza a separação entre arte e
política. As duas correlacionam-se tanto
na cultura dos actuais dominados como na
dramaturgia residentes A progressiva transformação dos mode-
los de produção actuais, esgotados e alie-
nantes, em modelos de produção colecti-
cultura dos actuais dominadores. vizados, implicará necessariamente uma
Depois, a tarefa mais importante: rees- mudança na dramaturgia, na visão política
truturar as relações de produção estabelecidas dentro do mundo dos colectivos e, claro, dos dramaturgos nele
dos grupos de teatro e/ou equipas de trabalho. envolvidos e na visão expressa nas peças produzidas.
Felizmente hoje, em Portugal, estão a desenvolver-se No Brasil são vários os grupos que estão bem cons-
novas formas de relação entre os vários trabalhadores cientes destas necessidades já com um bom caminho
que participam no trabalho colectivo que é montar uma percorrido; entre eles, a Companhia do Latão. Em Por-
peça de teatro. tugal, esse processo está ainda muito atrasado, mas exis-
É necessário cada vez mais que, em contraponto à tem vários sinais de transformação.
especialização, se assuma a colectivização do trabalho O nosso grupo, o Teatro Fórum de Moura, está per-
teatral, de forma a acabar com a barreira entre aqueles correndo esse trilho. —
que controlam a dramaturgia, isto é, a visão política do
mundo expressa em determinada peça, e aqueles que a
concretizam em cena.
Normalmente, no teatro actual, essa visão política do
mundo é controlada essencialmente pelo encenador, ou
pelo dramaturgo, ou pelos dois. À restante equipa cabe
apenas reproduzir o mais fielmente possível essa visão,
normalmente previamente definida e preparada ainda
antes de os ensaios começarem.

55
Processo

na escrita
de teatro
U
por Sandra Pinheiro ma peça de teatro surge de uma ideia. Muita gente
Dramaturga diz-me frequentemente perante alguma situação
mais caricata ou estranha: “Devias escrever uma peça
sobre isto”. E todos os textos que escrevi para teatro
partiram da realidade e de acontecimentos concre-
tos que me marcaram profundamente. Quando isso
acontece, e quando realmente começo a sentir vontade de
escrever uma peça sobre o assunto, mergulho no tema e
tento recolher o máximo de informação possível para per-
ceber a situação e que tipo de história poderá debruçar-se
sobre essa situação. É uma fase complicada porque estou
a pensar num tema e muitas vezes penso no tema em abs-
tracto. É nesta altura que habitualmente me surgem algu-
mas ideias, começam a aparecer as personagens e a missão
destas e finalmente a história final. Só depois disto é que
começa o processo de escrita.
processo criativo na escrita de teatro

O processo criativo na escrita de teatro é muito seme-


lhante ao usado noutras artes e segue basicamente os
quatro passos: preparação, incubação, iluminação e
verificação. No entanto, no caso da escrita de teatro, uma técnica que tem acabado por dar bons resultados e
quando chegamos ao momento da verificação voltamos que consiste em escrever o mesmo diálogo três vezes.
novamente atrás, porque para fazermos avançar a his- Dá mais trabalho, mas gosto mais da solução final. Na
tória é necessário criar cenas dialogadas primeira vez escrevo o que a personagem
e em cada uma dessas cenas temos de ter diz, e imprimo. Na segunda vez, escrevo
claro de que forma a acção das persona-
gens nos leva ao desenlace final. E aqui é
que começam as dificuldades, porque, para
Dependendo da o que a personagem sente e quer dizer.
Mais uma vez imprimo e guardo. Quando
vou escrever a terceira vez, leio o que es-
cada cena, e por vezes para cada diálogo, é
necessário passar por estas quatro fases,
minha relação com crevi das duas vezes anteriores e escrevo
finalmente o que a personagem vai dizer.
tendo sempre a atenção de conjugar vários
elementos: a acção dramática, o tempo, o
espaço, o texto e a intenção. E isto tem de
as personagens É muito importante escrever e verbalizar
o que a personagem sente; mesmo que
enquanto autores saibamos o que é, nem
ser pensado para cada uma das persona-
gens a cada minuto da peça. assumo diferentes sempre está claro que palavras a perso-
nagem usa, e como as usa, e o que faz en-

papéis quando estou a


É nesta fase que as coisas se tornam mais quanto usa essas palavras. Escrever essa
complicadas e que é necessário recorrer a cena ajuda a clarificar quem é aquela pes-
uma grande aliada no processo criativo na soa e o que a move.
escrita de teatro: a disciplina e a organiza-
ção do trabalho são fundamentais nesta fase
porque é muito fácil cair na tentação de par-
inter ogar. Posso ser É claro que há o risco, e muitas vezes
acontece, de, ao mudar determinada cena
ou diálogo, isso ter um impacto em toda a
tir para uma ideia que nos parece melhor e
muito menos complicada. Não é verdade. É o terapeuta, o polícia, acção dramática. Isso é normal, e significa
que o processo tem de voltar atrás e co-
uma armadilha colocada pelo nosso cérebro,
que começa a bloquear perante as situações
mais complicadas. Palavras como resistência
o médico, o padre. . meçar de novo. Voltar atrás não deve, no
entanto, ser visto como um retrocesso na
escrita. Antes pelo contrário. Sempre que
e persistência são fundamentais nesta fase, se volta atrás porque se descobriu um fac-
porque muitos textos em todo o mundo fi- to novo numa personagem ou na história
cam muitas vezes na gaveta por causa desta repetição significa que vamos fazer avançar o texto com um maior
constante do processo criativo. conhecimento da nossa peça.
O processo criativo na escrita de cena é mais compli-
Como se consegue ultrapassar este problema? cado do que noutras artes. É que em teatro ou em cine-
Em primeiro lugar temos de ver se é um problema de his- ma estamos a lidar com pessoas reais, ou que podem ser
tória ou se é um problema de diálogo. Se estivermos com reais. E o autor tem de conviver com todas essas pessoas
um bloqueio na história teremos de voltar novamente à dentro de si, inventar passados, criar situações, desco-
fase da incubação. No entanto existem alguns exercícios brir os sonhos e as angústias dessas personagens, definir
que podem ajudar a vermos a história com maior clareza. a forma como falam, como se mexem, como se movem.
O exercício que faço com maior frequência é interrogar as E tem de saber em todos os momentos que sentimen-
minhas personagens. Mas mesmo usando esta técnica po- tos têm e como se expressam, mostrando-o na acção e
demos ser criativos. Dependendo da minha relação com sugerindo-o nas palavras. É um processo extremamente
as personagens assumo diferentes papéis quando estou difícil e complexo, que requer criatividade, mas acima de
a interrogar. Posso ser o terapeuta, o polícia, o médico, o tudo muita persistência e dedicação. E requer que este-
padre... Um exercício interessante é interrogar a mesma jamos muito atentos à realidade, porque, se olharmos
personagem assumindo papéis diferentes. As respostas com cuidado, a maior parte das soluções para os nossos
serão naturalmente diversas e quase de certeza que no problemas de ficção estão lá: nas personagens reais que
final deste exercício terei a história muito mais clara. levamos emprestadas para protagonizarem os dramas e
No meu caso muitas vezes o problema está no diálogo. as comédias que escrevemos para os palcos. —
Trabalhar o subtexto é das coisas que acho mais difíceis
de fazer. Ao longo do tempo também fui desenvolvendo

57
58
ENTREVISTA JOAQUIM PAULO

59
perfis

Valère
Novarina
Biografia
Valère Novarina nasceu em 1947 em
Chêne - Bougeries, filho de Manon Trolliet,
actriz, e Maurice Novarina, arquitecto.
Em 1974 Jean- Pierre Sarrazac encena a
sua primeira peça L`Atelier Volant.

Na mesma altura, Marcel Maréchal


encomenda-lhe uma adaptação livre com
Retrato em base nas obras Henrique IV de Shakespeare
e Falstaff, que sobe à cena no Teatro
chiaro oscuro, Nacional de Marselha em 1976.

à maneira Le Babil des Classes Dangereuses é


finalmente publicado em 1978, graças ao
de Rembrandt esforço de Jean-Noel Vuarnet, que confia
o manuscrito a Christian Bourgois.

Boca e Ouvidos, os senhores do Teatro


As palavras trançam, formam entre elas quatros, cruzadas
simples, cruzaduras, cerziduras, pontos torcidos, alguns oito,
cruzes duplas, cruzes de oito, treliças, heptalhas, trepadeiras,
Valère Novarina, actor, autor, teórico, é um
fotografia Patrick Fabre

dos autores em evidência na dramaturgia


hexadrilhas, octametros, pentagramas, sextilhas, novenas, do-
decaedros, quadrilhas, dezenas deléforas, pontos do avesso e
Encenadora e actriz

contemporânea. Criador homenageado na


por Renata Portas

última temporada do Théâtre de l´Odéon, bordados; tecem a frase com todo o vazio em volta, traçando a
conta com inúmeros estudos sobre a sua três: o tempo, o espaço, o sopro; a coisa, a contracoisa, o vazio
obra, e com festivais inteiramente devota-
entre elas; o menos, o mais, o impulso do menos para o mais; a
dos ao seu trabalho – nos Estados Unidos,
no Brasil, na Suíça entre outros. Falar de limalha, o íman, a atracção – prendem duas coisas com o vazio
Novarina e da sua obra – onde a linguagem entre elas que é o lugar oco do amor; prendem entre as duas o
é o pilar do drama - é atraiçoá-lo. Há anos 3 que é sua relação soprada e de desejo.1
que Novarina se debruça sobre a linguagem
como matéria, origem e coisa primeira do
mundo, para lá do Homem, independente. A
No teatro novariniano duas personagens governam a
armadilha está em que, para falarmos deste, cena: a Boca e o Ouvido. A Boca, signo maior do actor,
e do seu universo, precisamos por instantes é relegada para uma função inferior – a boca de cima é
de abandonar o credo, e usar a linguagem comandada pela boca de baixo, pelos intestinos, pelos
como moeda de troca entre aquele que es-
órgãos inferiores. A linguagem não é um exercício de in-
creve e aquele que segura a página na mão
– em busca de compreensão, de mesura do telecto, é um jacto ejaculatório. É uma compulsão, uma
mundo – tarefa impossível. desordem, uma outra ordem do mundo que, acidental-
Tentemos. mente, foi doada ao Homem.

1  Excerto de Théâtre des Oreilles – Où habite le Théâtre, colagem de textos


de Valère Novarina, com dramaturgia de Renata Portas, para o espectáculo
com o mesmo título. Tradução de Angela Lopes, revisão e adaptação de Diogo
Dória e Renata Portas. Estreou na Fábrica da Pólvora – Lugar Comum (Agosto,
2006) e teve apresentações no Clube Literário do Porto (Out.2006) Festival
S´Esta Rua Fosse Minha (Out.2007) e Festa da Poesia (Dez.2007)

60
valère novarina

O teatro é um sítio para se ouver – ver com os ouvidos –, e


não o sítio da celebração visual, do festim dos olhos. “Ou-
ver” significa lembrar Santo Agostinho: “Vê-se a linguagem
mas ouve-se o pensamento”2, entrar no teatro e ouvir as lín- A linguagem musculada é frequentemente interpretada
guas que nos chegam de todos os lados, cegar para poder de forma musical nas suas encenações e em outras. Mas
ver, ver as línguas de fogo, línguas em festa, que assaltam a a musicalidade não é o fim que resume as suas intenções.
boca do actor e tomam o espectador de sobressalto. Como traduzir a linguagem, e o seu carácter autónomo
em palco, sem cair nesta armadilha? Algumas experi-
Práxis ências foram feitas utilizando marionetas, como Allen
Novarina é um fazedor de teatro. Constantemente inter- S. Weiss4, ou só com a gravação da voz do actor, como
pelando a teoria e a prática imiscui-as uma na outra. Não fizemos em 2006, tentando eliminar o corpo para que a
é a teoria, a dramaturgia, labor das mãos, labor do pensa- voz pudesse emergir sozinha. Mas são incompletas, na
mento? Não é toda a escrita algo que escapa ao autor? Algo medida em que é necessário ao actor que seja capaz de
que lhe foge das mãos de cada vez que ele imagina ter en- cumprir o desígnio da língua. O actor novariniano, pneu-
contrado o sentido? Qual o lugar do teatro? Em todo o lado, mático, tem de ser capaz de reunir técnica e abandono,
diria Novarina. Numa tela, o teatro está lá, coisa residual. rigor e humor, mestria e ausência da mesma. Tem de se
O teatro não é um lugar, nem uma disciplina, é uma reinventar constantemente, sair de si, existir para lá de si
presença, um modo de estar. Assinalámos que isto não mesmo, e dos outros, despir-se do corpo.
é um desejo de transdisciplinaridade, é antes uma con-
taminação do teatro, e uma interpelação das outras dis- Um teatro irmão da filosofia e do logos
ciplinas. Esta interpelação constante e a erudição do seu Novarina, licenciado em Filosofia e Filologia, vai beber a
teatro fizeram com que inicialmente o seu teatro fosse ambas as disciplinas para criar um teatro de línguas e de
recusado pelas editoras e pelos teatros. Foi em grande saber. Um teatro no qual a acção é a palavra, e o verbo é rei.
medida devido à vontade do director artístico de Avig- Apesar da unidade da obra, conseguimos dividir dois
non, de alguns actores, e de Jean- Pierre Sarrazac, que momentos: um primeiro, no qual a sua obra é inteiramen-
estreia a primeira peça sua em 1976, que este começa a te filosófica, quer na palavra escrita, quer na palavra dita, e
encenar textos seus (que hoje são amplamente encena- nas suas realizações: através do uso de aforismos, contami-
dos em França, e em vários pontos do mundo). nações, neologismos, e de um perpétuo questionamento
dialéctico entre actor/texto e espectador; num segundo
O actor novariniano, algumas armadilhas momento, o humor (que está sempre presente, no sentido
O actor é o homem menos o homem.(…). O nosso mais belo de minar a seriedade do teatro da linguagem, evitando cair
mito não é nem Fausto nem Don Juan, mas O MITO DE PI- numa retórica da palavra-gesto repudiado por Novarina
NOCCHIO. Somos Pinocchio ao avesso: somos de madeira no teatro francês) ganha espaço, e com a celebrização do
e temos que nos desfazer de nós – nos desfazer do homem e autor, que encena cada vez mais, o humor e a excessiva exu-
voltar a ser máscaras. (…) berância pictórica, musical, ganham terreno e de alguma
A antimatéria teatral é assim; representa visivelmente não- forma cristalizam a sua realização plástica.
-lugares: e entretanto o homem está ali – e o universo. O teatro
é um lugar muito físico onde um corpo vem dizer: nada me é Ce dont on ne peut parler, c’est cela qu’il faut dire
mais impossível do que um corpo.3 Esta proposição, formulada por Valère Novarina, serve
para resumir bem o seu pensamento e obra e encerrar-
O desafio maior que Novarina coloca é ao actor: mestre mos este brevíssimo perfil.
da respiração e da exegese vocal, mas sem fazer disto Haveria muito mais a dizer sobre Novarina: do seu
técnica oca, remetendo-a para o narcisismo, sacrificial entendimento do espaço e dos objectos à relação com a
no caminho da doação, do ritual, mas sem cair na lem- dramaturgia contemporânea, ou à forma como nele a pa-
brança do actor santo de que falava Grotowski – aqui há lavra se transfigura em corpo. E, no entanto, faltam-nos
recolhimento mas co-habitam contracção e expansão, sempre palavras para o encerrar, tal o espanto perante
movimentos complementares. o mesmo e as questões que nos provoca – e não é isto o
que ele nos diz? —

2  De Trinitate – Santo Agostinho 4  Allen S. Weiss, performer, criou com Gregory Whitehead o espectáculo
3  Excerto de Théâtre des Oreilles – Où habite le Théâtre, idem Theater of The Ears, em 2000, N.Y.

61
perfis

René
Pollesch
Coqueluche
Pós-Dramática Berlinense

Autor pós-dramático
A denominação teatro “pós-dramático” foi formulada pelo
crítico e professor de teatro alemão Hans-Thies Lehmann
na sua obra Postdramatisches Theater publicada em 1999
dramaturga e encenadora

René Pollesch é um dos mais prestigiados au- na Alemanha. Segundo este, desde o Teatro Isabelino ao
fotografia Thomas Aurin
por Cláudia Lucas Chéu

tores e encenadores do teatro alemão con- Teatro Burguês do final do século XX, a produção teatral
temporâneo. Nascido em 1962 em Frankfurt,
tem funcionado sempre dentro dos mesmos princípios
estudou no Instituto de Estudos Teatrais de
Giessen, foi aluno de Heiner Müller e Geor- aristotélicos. Contudo, Lehmann defende que existe uma
ges Tabori, estagiou no Royal Court Thea- nova forma teatral apoiada numa espécie de teatro do
tre de Londres, traduziu e adaptou Ovídio, acontecimento, que não se preocupa com a adesão do
Shakespeare, Joe Orton, entre outros, e di- espectador. Outro dos aspectos levantados por Lehmann
rigiu o Teatro de Lucerna e o Schauspielhaus
de Hamburgo. Entre 2002 e 2007 trabalhou
refere-se às características fragmentárias dos textos usa-
na Volksbühne como director artístico da dos nesta forma teatral e/ou às montagens várias/trans-
Sala Prater, e foi considerado pela prestigiada versais, que criam uma nova reescrita cénica. Surge então,
revista Theater Heute como um dos melhores um novo universo textual e/ou cenográfico e os proble-
dramaturgos alemães, após um inquérito re-
mas que são propostos aos criadores e ao espectador não
alizado junto dos leitores. Em 2001 e 2006,
Pollesch recebe o Dramatist Prize da cidade seguem a lógica do psicologismo tradicional.
de Mülheim, e, em 2007, é-lhe atribuído o É possível entender o teatro pós-dramático como uma ten-
Viennese Nestroy Prize. tativa de conceitualizar a arte no sentido de propor não uma
Pollesch distingue-se da maioria dos en- representação, mas uma experiência do real (tempo, espaço,
cenadores alemães e/ou europeus, sobre-
tudo porque contrariamente a estes (cuja
corpo) que visa ser imediata: teatro conceitual. A imediatidade
principal prática artística é escolher textos de toda e uma experiência compartilhada por artistas e públi-
clássicos e encená-los) apresenta sempre co se encontra no centro da arte performática”1
espectáculos da sua autoria, reescritos com
a colaboração dos elencos com quem traba-
lha (actores, bailarinos, e muitas vezes, com
elementos que não são artistas). 1  Lehmann, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático, trad. Pedro Süssekind,
Editora Cosac & Naif, São Paulo, 2007, p. 223.

64
rené pollesch

Ora os textos para cena de Pollesch (e os seus espectá-


culos) encaixam nesta nova forma teatral que descreve
Lehmann, pois uma das suas principais marcas é não
existirem códigos teatrais reconhecíveis: não há narra-
tiva, nem personagens, nem sinais de catarse (iminente).
Pollesch substitui todos estes elementos por um discur-
so político/filosófico (com uma forte componente refle-
xiva) em que os actores se transformam numa espécie
de actor-cantor-pop.
Não são os actores que se referem ao seu trabalho de modo
irónico e distanciado para destruir eventuais ilusões – como
na tradição do Teatro de Brecht. A sua posição ontológica é da
família dos performers de música pop: os actores (Darsteller)
não se colocam de forma perceptível no modo quotidiano da
auto-identidade, e a sua presença também não é tapada pelo Outras das razões que Pollesch aponta para que os seus
conceito do actor (Schauspieler). 2 textos não possuam personagens têm que ver com a in-
Pollesch assume nos seus textos muito mais as referên- fluência assumida de Gertrude Stein: As pessoas chegam
cias dos pensadores contemporâneos: Slavoj Zizek, Gilles e partem, mas a conversa na festa permanece igual. Pollesch
Deleuze, Jean Baudrillard, entre outros, do que propria- usa este princípio nos seus trabalhos: o texto “existe” na
mente as da linhagem dramatúrgica dos encenadores ou sala (havendo sempre a presença do Ponto na cena), os
dramaturgos em geral (excepção feita a Brecht e Müller). actores entram e saem, mas o texto não se altera.
Os discursos que constrói no seus textos são normalmen- Não acredito no diálogo, nem no plot, nem na narrativa,
te intercalados por manifestações coreográficas (sem acredito numa outra coisa: na comunicação. Não interpreto
pretensão de serem interpretadas como tal) acompanha- os meus textos, não uso metáforas. Os (nossos) textos são
das por música e/ou vídeos. Raramente os seus espectá- muito objectivos e directos. Tentamos e comunicamos com
culos excedem os 90 minutos de duração, possivelmente as pessoas na audiência.3
no seu entender o tempo de concentração adequado aos As criações de Pollesch são ainda, e também, conside-
tempos contemporâneos (à semelhança de uma sessão de radas uma espécie de “teatro do capitalismo”, pois este
cinema ou da própria resistência humana non stop – em mostra como a linguagem de gestão económica (concei-
estado sóbrio – numa aula/pista de dança). tos como outsourcing, marketing municipal, globalização
Talvez uma das razões que distinga tão claramente ou networking, entre outros) se encontra completamen-
Pollesch dos outros encenadores/autores alemães, te- te instalada no quotidiano das pessoas, ocultando desta
nha que ver com o facto de a sua formação ter sido ini- forma as grandes questões. As que lhe/nos interessam.
ciada pelo professor e crítico polaco, Andrzej Wirth, que, B Fico completamente à nora quando oiço toda a gente a fa-
vindo do sistema da Universidade Americana, lhe trouxe lar do amor! Devíamos obrigar os capitalistas a finalmente falar
uma outra forma de pensar a dramaturgia. Esta nova lei- de dinheiro, porque estão sempre a falar de amor e da família e a
tura dos acontecimentos assentava não sobre a História lamentar a perda do meu querido pai!/ C O fim da família é uma
do Teatro Alemão (como era habitual à data transmitir- tendência humana. E se a minha relação não é produtiva tenho
-se), mas na linha dos vários encenadores ao nível mun- de acabar com ela. Uma economia de mercado liberal não se
dial: Erwin Piscator, Bertolt Brecht e Robert Wilson; e na pode dar ao luxo de manter relações não produtivas./ B O que é
estrutura da performance em Nova Iorque dos anos 70. que queres dizer com “não produtivas”? Tu és a minha mãe.4 —

2  Diedrich Diedrichsen, “Maggies Agentur: Das Theather von René Pollesch”, 3  René Pollesch em entrevista ao The Wall Street Journal, “Theater With a Bi-
Stefan Tigges (org.), Dramatische Transformations, transcript Verlag, Bielefeld, ting View of Society” por J.S. Marcus, 7 de Agosto de 2007, (tradução minha).
2008, p.107; retirado do posfácio de José Maria Vieira Mendes, O Amor é mais 4  Pollesch, René, O Amor é Mais Frio Que o Capital, Trad. José Maria Vieira
Frio que o Capital e Outras Peças, Artistas Unidos, Livros Cotovia, 2001, p. 129. Mendes, Artistas Unidos/Livros Cotovia, 2011, Lisboa, p. 18.

65
entrevista joaquim paulo

68
entrevista joaquim paulo

69
análises

Narradores,
actores e
contadores de
histórias Em Gatz (2006), o espectáculo de cerca de sete horas
dramaturgo e investigador

de duração dos nova-iorquinos Elevator Repair Service,


lia-se da primeira à última palavra o romance The Great
por Rui Pina Coelho

Gatsby, de Fitzgerald. O estratagema era inusitadamen-


te original. Um empregado de escritório chega ao seu
local de trabalho; ao deparar com o seu computador ava-
riado, abre displicentemente uma gaveta e de lá retira
um livro que começa indolentemente a ler. Progressiva-
mente, todos os seus colegas do escritório, que entre-
tanto foram chegando, tornar-se-ão as personagens do

70
narradores, actores e contadores de histórias

romance. Além de ser um espectáculo de uma frescura e


de uma beleza invulgares, tratava-se de um claro exem-
plo de como o teatro contemporâneo se apropria de ma-
térias textuais diversas e de como a experiência roma-
nesca e literária se misturam com a experiência teatral
e performativa. Gatz serve aqui para introduzir as rela-
ções que se poderão estabelecer entre alguma da cena
teatral contemporânea e o movimento de revivalismo
da narração oral, à luz das figuras do narrador, do conta-
dor de histórias e do actor. Sendo assim, procurarei aqui
cartografar alguns pontos de contacto entre o teatro e a
narração oral visando identificar as suas aproximações e
sublinhar as suas diferenças.
A relação entre narrador-actor e texto-cena serão
centrais para as noções de “epicização” de Peter Szondi,
que em Teoria do drama moderno (1956) debate a crise
do drama e as suas tentativas de salvamento; de “rap-
sodização” de Jean-Pierre Sarrazac, que em L’avenir do
drame (O futuro do drama, 1981) aponta para uma rein-
venção do modelo dramático; ou mesmo para a de “pós-
-dramático” de Hans-Thies Lehmann, que discute a supe-
ração do modelo dramático. Este último, numa das obras
mais influentes da moderna teorização teatral (Postdra-
matic Theatre, 1999), afirma: “O princípio da narração
é um traço essencial do teatro pós-dramático; o teatro
torna-se o local do acto narrativo” (Lehmann, 2006: 109,
t.m.). Argumentando que a narração se inscreve numa
teatralidade que privilegia a presença em detrimento
da representação e que muitas vezes se confunde com a
exposição de narrativas pessoais, aponta também para a Se, no que diz respeito a estes pontos de contacto, o
dimensão política do acto de contar: “Perdida no mundo actor-épico brechtiano é lugar de passagem quase obri-
dos media, a narração descobre um novo lugar no teatro” gatória, também o será o célebre ensaio de Walter Ben-
(Lehmann, 2006: 109, t.m.). jamin, de 1936, “Der Erzähler” / “O narrador” (que em in-
Será mais ou menos óbvio que todas estas noções glês recebe a elucidativa tradução de “The Storyteller”).
(epicização, rapsodização ou pós-dramático) – ainda que Benjamim discute o papel do contador na sociedade e a
em graus diferentes – devem em grande medida a sua natureza do acto de contar. Assim, lamentando o declí-
formulação ao autor que neste ponto é paradigmático: nio do narrador/contador de histórias nas sociedades
Bertolt Brecht, para quem “o acto de contar histórias mecanizadas, Benjamin reclama para esta figura uma di-
está no coração do teatro”. O teatro épico e o modelo mensão eminentemente política. Radicando o narrador/
de representação brechtiana são centrais para a relação contador numa tradição popular e encarando-o como
entre a narração e a representação e para a constituição um crítico social de carácter subversivo, perfeitamente
do modelo do contador de histórias contemporâneo, so- comprometido com a sua comunidade, encontra na fi-
bretudo no que diz respeito à maneira como o actor se gura do “agricultor sedentário” e na do “mercador dos
apropria da personagem. mares” os arquétipos do moderno contador.

71
análises

72
narradores, actores e contadores de histórias

Estes parecem ser os traços determinantes daquilo


que é o acto de contar uma história, entendido aqui na
sua dimensão performativa: representação a solo, ausên-
cia de adereços e figurinos, predomínio de uma dinâmica
vocal e o estabelecimento de uma relação informal e de-
mocrática com o público. E, portanto, não será de estra-
nhar que no final dos anos 60, primórdios dos anos 70, na
sequência da agitação do Maio de 68 e da consequente
contestação a todas as formas de autoridade, os jovens
artistas se tivessem interessado por modelos não-forma-
Patrice Pavis - distinguindo a figura do contador da do tados de representação teatral e por manifestações mais
narrador no teatro (ou do récitant) – declara que o narra- espontâneas de criação. Visando um combate ao mercan-
dor no teatro pode manifestar-se de várias maneiras: um tilismo da arte e à sua mediação pela crítica, e, sobretudo,
“narrador ou recitante que canta o recitativo”, por uma voz preconizando um ataque à alienação entre o intérprete e
off ou “numa personagem situada mais ou menos à margem o espectador, procurando experiências vividas em simul-
da acção” (Pavis, 1999: 258). Ainda de acordo com Pavis, tâneo pelos criadores e público, serão anos férteis para as
o narrador aparece preferencialmente associado ao sis- experiências em torno da performance e do happening.
tema épico ou a formas de teatro popular. Se atentarmos Impulsionados por um ímpeto anticapitalista e anti-
na constituição de um ponto de vista subjectivo, também -imperialista, formados ideologicamente nas manifesta-
o encenador pode ser visto como um narrador. Mas Pavis ções parisienses, na contestação à guerra do Vietname,
salienta que “só pode haver narrador sob a forma de uma nas lutas pelos direitos civis ou pelo desarmamento nu-
personagem que é encarregada de informar os outros ca- clear, uma geração de criadores provenientes do tecido
racteres ou o público, contando e comentando directamen- (ou das franjas) teatrais vai interessar-se por todos os
te os acontecimentos” (ibidem: 258). Contudo, o caso mais instrumentos de contracultura, e em especial por aque-
frequente será “aquele de uma personagem-narradora les que contrariassem as formas de cultura mediática, de
que, como no caso do relato clássico, narre o que não pôde mass media ou de grande escala e que se afastassem das
ser mostrado directamente em cena por razões de conve- narrativas e visões oficiais (Cf. Wilson, 2006). Esta “gera-
niência ou verosimilhança” (ibidem: 258). Por outro lado, e ção dos media” vai resistir através de várias formas artís-
ainda de acordo com Patrice Pavis, o contador de histórias ticas: do body art, da performance, do happening, da nova
é “[U]m artista que se situa no cruzamento de outras artes: dança, sempre sob o signo da experiência subjectiva, da
sozinho em cena (quase sempre), narra a sua ou uma outra não-formatação e da autobiografia. E, claro, uma das
história, dirigindo-se directamente ao público, evocando formas que também irá traduzir esta necessidade de re-
acontecimentos através da fala e do gesto, interpretando vitalização será o “storytelling”, expressão que também
uma ou várias personagens, mas voltando sempre a seu re- se inscreve no Zeittheatre (no teatro do momento). No
lato” (Pavis, 1999: 69). limite, tal como afirma Michael Wilson: “Por direito pró-
Deste modo, o objectivo desta figura será o de esta- prio, o movimento da narração oral é melhor entendido
belecer um contacto directo com o público, “reatando os como um ramo de um vibrante teatro alternativo. (Wil-
laços com a oralidade” (Ibidem: 69). E este é, com efeito, son, 2006: 16, tm.). Frutos desta aproximação do teatro
um dado importante: o estabelecimento de uma ligação à narração, são paradigmáticos os exemplos do italiano
mais próxima com o público permite que haja uma parti- Dario Fo, de John McGrath, fundador do grupo escocês
lha do tempo do espectáculo: estão ambos no tempo da 7:84, o actor inglês Ken Campbell (The Ken Campbell
narração. Um outro dado relevante será o de que o foco Roadshow) e o norte-americano Spalding Gray, ligado
do espectáculo transita da corporalidade do actor para a aos nova-iorquinos Wooster Group; o teatro-narração
imaginação do espectador. O objectivo será pois deixar do autor-intérprete italiano Davide Enia; e até mesmo
que o corpo do intérprete desapareça. algum do trabalho de Peter Brook.

73
análises

Assim a frutífera história


das contaminações entre
Sendo assim, a génese da moder-
na narração oral e de alguma da cena narradores, actores e
contemporânea tem uma origem
comum. Contudo, esta não é uma
história fácil de arrumar. Pois, se é no
contadores de histórias está
pós-Maio de 68 que se dá um reviva-
lismo da narração oral, tal como a co-
nhecemos hoje, esta actividade não
longe de estar terminada.
é de aí originária. Com efeito, trata-
-se de uma prática ancestral com
remotas tradições. E, por vezes, a
Mas, por agora: vitória, quentemente uma tradição mais antiga;
reivindicação da tradição, entendida
como sinónimo de verdadeira, pura
vitória, acabou-se a história. está centrada num performer a solo ou num
grupo de performers; os contadores traba-
e original (por oposição à moderna lham normalmente a partir de um repor-
narração oral, sinónimo de adultera- tório, tal como um cantor ou um músico; é
da ou contaminada) faz desequilibrar normalmente low-tech em luzes, som, ce-
esta aproximação. nário, adereço e figurinos; raramente trabalham com um
O esforço para classificar ou definir a narração oral con- encenador ou coreógrafo; e a principal dinâmica é a vocal.
temporânea pode revelar-se uma tarefa com um elevado Para classificar as proveniências dos contadores, Kay
grau de frustração. O enquadramento em que se apre- Stone, académica norte-americana, propõe três classi-
senta pode ser extremamente variado: desde altamente ficações: o contador tradicional; o contador urbano mo-
performativas ou baseadas em oficinas de trabalho; de derno; e o contador neotradicional. Parece-me, contudo,
site-specific; centradas em histórias tradicionais, contos de mais esclarecedora a divisão proposta por Wilson. Assim,
autor ou escritas pelo próprio contador; parte de progra- este propõe um modelo tridimensional, agrupado por “ba-
mas de terapia ou de consultadoria de empresas; como ckground”, “Modus operandi” e “Propósito”.
instrumento pedagógico ou de incentivo à leitura. Podem Segundo Wilson, de acordo com o seu “background”, os
ser interpretadas por contadores provenientes da tradição contadores de histórias poderão ser: tradicionais; conta-
ou por contadores profissionais – ou por contadores ou- dores que chegam de profissões não-performativas (pro-
trora da tradição oral e agora profissionalizados – ou por fessores, livreiros, etc…); actores que se tornam contado-
contadores que só contam para a sua comunidade. Já para res; e amadores entusiastas da narração oral.
não falar em todas as variantes dos “platform storytellers” Segundo o modus operandi, podemos encontrar: uma
(contadores de palco) e das suas variadíssimas maneiras de actividade tradicional; contadores que o fazem num con-
entender o exercício da sua actividade e da sua relação com texto de uma outra profissão; contadores autoemprega-
a projecção ou encobrimento da sua personalidade em pal- dos que fazem profissão do acto de contar; e contadores
co… (Cf Wilson 2006) não-remunerados que contam em festivais, bares, etc.
Procurando uma clarificação objectiva, Michael Wilson E, finalmente, de acordo com o propósito ou intuito, po-
identifica as seguintes características para o contador de demos identificar a narração oral no âmbito da tradição; da
histórias da actualidade: surgiu de um novo tipo de arte educação; do reforço da identidade cultural; do entreteni-
dos anos 60/70; apesar da sua “juventude” reclama fre- mento; da terapia; e da espiritualidade ou evangelismo.

74
actores, narradores e contadores de historias

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter (1992), “O Narrador:


Reflexões sobre a obra de Nikolai Lesskov”,
trad. Maria Amélia Cruz, in Sobre Arte,
Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio
de Água, pp.27-57 (1936).

BROOK, Peter / CROYDEN, Margaret


(2003), Conversations with Peter Brook (1970-
2000), New York & London, Faber and Faber.

COELHO, Rui Pina (2008), “Sem corpo, sem


problemas : Narradores e contadores de
histórias”, Sinais de cena, n.10, Dezembro,
18-21.

LEHMANN, Hans-Thies (2006), Postdramatic


Theatre, translated by Karen Jürs-Munby,
London & New York, Routledge (1999).

PAVIS, Patrice (1999), Dicionário de teatro,


trad. sob direcção de J. Guinsburg e Maria
Contudo, estas categorizações não dão conta das rela-
Lúcia Pereira, S. Paulo, Editora Perspectiva.
ções entre o contador de histórias e o actor. A fronteira
entre o contador tradicional (aquele da tradição oral) e o
SARRAZAC, Jean-Pierre (2002), O futuro
contador-actor é muito ténue e na cena contemporânea
do drama, trad. Alexandra Moreira da Silva,
há muitos focos de contaminação. Muitos contadores
Porto, Campo das Letras (1981).
recorrem a recursos teatrais, tais como microfones, lu-
zes ou música. Por outro lado, muitos actores trocam a
SZONDI, Peter (2001), Teoria do drama mo-
interpretação pela narração oral e a narração afirma-se
derno : 1880-1950, Trad. Luiz Sérgio Repa,
cada vez mais como um lugar-comum no teatro contem-
São Paulo, Cosac & Naify Edições (1956).
porâneo.
Enfim: este ressurgimento do fenómeno da narração
WILSON, Michael (2006), Storytelling and
oral no final dos anos 60, inícios de 70, e que sofreu pos-
Theatre: Contemporary Storytellers and their
teriormente um boom nos anos 80, em parte explicado
Art, London, Palgrave Macmillan.
pela abertura do sistema educativo (um pouco por toda
a Europa) aos contadores e pela consolidação dos incen-
tivos à leitura, vai influenciar determinantemente a cena
teatral contemporânea e vai, igualmente, receber o ímpe-
to renovador de actores que se deixam fascinar pelo acto
de contar. Assim a frutífera história das contaminações
entre narradores, actores e contadores de histórias está
longe de estar terminada. Mas, por agora: vitória, vitória,
acabou-se a história. —

75
análises

Agir num
mundo
im Sabemo-nos habitantes de uma sociedade de consu-
por Claúdia Marisa Oliveira

mo e de simulacro, em que tudo se julga em arenas de


aparência. Cada época constrói as suas armas secretas
e a sua vulnerabilidade; a nossa assenta numa ideologia
burguesa que transformou a arte em bem de consumo,
investigadora

sem antes ter tempo de a integrar na vida de todos os


dias. Consequentemente a representação do quotidiano

previ-
é, na actualidade, um objecto privilegiado de todo o tipo
de prática artística, sendo alvo de discursos e metadis-
cursos suportados por construções teóricas diversas.
A vantagem desta panóplia de modelos de reflexão é a
de poder oferecer, segundo as circunstâncias, modelos
alternativos de interpretação. Estas múltiplas teorias, na
sua base estruturante, procuram saber se a representa-
ção do quotidiano se constrói a partir da arte, e com a
sua ajuda, ou se será a própria arte que se contagia das
representações do quotidiano.
A produção contemporânea do estereótipo estético
e a homogeneização cultural fizeram com que a ambi-

sível
valência que caracteriza a metáfora artística desapare-
cesse. Desta forma, a representação precede já o acto
da interpretação, fazendo desaparecer a heteronomia
dos elementos socioculturais que estão na génese da
conceptualização dos discursos artísticos.
A representação cénica do quotidiano entra neste re-
gisto ambivalente, onde a representação do outro é vista
como imagem reflectida num espelho imaginário. É nes-
sa encenação de reflexos que vão surgindo imagens que
são mais imaginárias do que reais. Tomemos como exem-
plo a partitura cénica “ A hora em que não sabíamos nada
uns dos outros”, do dramaturgo Peter Handke, na qual

76
agir num mundo imprevisível

este regista aleatoriamente os transeuntes que observa


a atravessar uma praça. Encontramos neste exercício
dramatúrgico dois níveis: o olhar real de um quotidiano
(alguém que observa um outro que passa) e o olhar esté-
tico-cénico (construção dramatúrgica dessa passagem). vazio. O espaço privado surge como contrassenso a uma
Espelho múltiplo de funcionamento: alguém que passa; relação afectiva humana significativa. É um espaço povo-
alguém que observa; alguém que recria vida a partir des- ado de fantasmas que vive da memória de um outro que
sas imagens de corpos. Temos aqui a base de todo o jogo não existe. O espaço doméstico converte-se numa terra de
artístico: a vida como praça, onde nos projectamos todos ninguém, que reflecte a solidão e o medo ontológico das
os dias em espelho de nós ao outro; o palco como praça, personagens que o habitam. Todo o espaço privado pode
onde nos revemos ao ser espelho para o intérprete. converter-se, sob a existência dos objectos que nele habi-
A estetização do quotidiano põe em cena um corpo tam, num espaço de opressão e terror. É exemplo disto “la
sem expectativas, um corpo que apenas se preocupa em classe morte” de Kantor. O berço que inicialmente lembra
obter o olhar do acaso dos encontros entre si e o outro o espaço da infância, subitamente transforma-se, pelo seu
que passa. Esta cultura urbana é uma estética pública uso rítmico, num objecto sufocante e repressor. Depara-
com o objectivo último de demonstrar que na vida quo- mo-nos, então, com um espaço privado repleto de objec-
tidiana cabe uma multiplicidade de manifestações esté- tos familiares mas deserto de gente; o espaço acolhedor
ticas, que participam na idealização colectiva do prazer do privado activa um processo de despovoamento, insta-
de ser espectáculo. Não há sociabilidade sem sedução lando um processo de desagregação do sujeito, marca da
e, por consequência, sem um reconhecimento do outro ruína da vida afectiva. Neste sentido, o corpo separa-se da
como objecto estético. voz: enquanto que a voz continua submersa no mundo da
À visão de um universo artístico, fruto de uma série linguagem, o corpo desintegra-se num vazio e num caos
de influências e resultante de uma concentração de dissonante, numa construção de subtexto que tenta o re-
imaginários, corresponde o ideal da busca do quoti- torno biográfico numa perda progressiva de identidade.
diano pelo não-dito, através da desconstrução da vida. A cena contemporânea tende, igualmente, a alargar o
Nesse sentido, não se busca, tanto, a apresentação do campo da personagem: num primeiro momento, através
real mas a sua repetição, numa tentativa de o dotar de do corpo singular da personagem; depois, através do ter-
novos sentidos ou, pelo menos, de o mostrar caricatural ritório simbólico da figura. A noção da personagem mo-
e absurdo (como é exemplo o trabalho de Pina Bausch). derna surge, então, de uma dupla posição: a percepção
Note-se que esta repetição do real faz com que se dilate da forma gratuita e mesquinha como o homem habita o
a distância entre o jogo e a significação, abrindo portas mundo; a percepção de que há uma força, um poder que
para novos sentidos. Este fenómeno surge, provavel- lhe é superior e que o domina. As personagens da contem-
mente, quando estamos perante propostas que procu- poraneidade passam a ter como denominadores comuns:
ram a reprodução espectacular do quotidiano, sem que a somatização do corpo, a sombra e a monstruosidade. A
a metáfora esteja presente. Face a este contexto, a arte confusão consciente entre corpo social, corpo pessoal e
liberta-se da função de ser simulacro de vida para ocu- corpo de prazer é permanente; resta um corpo de ausên-
par um espaço de “ilusão”. Espaço branco, espaço vazio cia, em que os silêncios adquirem sentido cénico. Neste
onde se reinventa um novo humano. Não necessitamos contexto, a representação do quotidiano será sempre um
de ter vivido basta-nos a aparência desse vivido, a ima- simulacro de uma vida que já de si é um constante jogo
gem virtual na relação com a vida de todos os dias. de espelhos, onde cada momento é uma verdade provisó-
A representação artística do quotidiano apresenta ria à qual, cada um de nós, atribui um sentido. Em relação
duas linhas essenciais: uma primeira que busca formal- ao espectáculo que se denominou de quotidiano nota-se
mente uma pesquisa artística a partir do quotidiano; uma uma dificuldade em verbalizar. A palavra surge gratuita
outra que procura a transcrição desse quotidiano de for- e convencional e os silêncios crescem; o diálogo, quan-
ma linear como matéria-prima, não sujeita a metáfora. do existe, está repleto de estereótipos, e o corpo, nestes
Nesta “arte do quotidiano” constatamos que a repre- casos, suprime a ausência da palavra. Estes silêncios têm
sentação, em termos de concepção cénica, acontece em um valor psicológico, e encarregam-se de exprimir o “não
espaços privados, em não-lugares, potenciando relações dito”. Muitas vezes, o silêncio corresponde à constatação
íntimas entre as personagens. No entanto, face a este es- de um vazio: se nada é dito, é porque não há nada para
paço privado não está presente uma intensidade emocio- dizer. O silêncio revela um abismo, é um silêncio que se
nal de um universo acolhedor; frequentemente, ele surge alicerça no corpo e que encontra a sua razão de ser no
como antítese para convocar a não-pertença, o deserto, o gesto e no movimento. —

77
análises

A ficção
que já foi
realidade
Tal como o cinema, o teatro parece ter descoberto um
dramaturga e guionista

novo modo de expressão. Não é ficção, não é documentá-


rio. É uma ficção baseada na realidade. Desde o 11 de Se-
por Ana Mendes

tembro que assim é. O documentário ganhou uma pujança


nunca antes vista. Embora se diga que o teatro de docu-
mentário existe desde os gregos, foi com Brecht e Piscator
que este género mais se desenvolveu, naquilo que desig-
naram por ‘teatro da era científica”. Tratava-se de um tea-
tro de documentário “puro”, no sentido em que a história/
narrativa era recheada de imagens que pretendiam fazer
com que o espectador reflectisse acerca da realidade. Por
exemplo, a peça a Mãe Coragem de Brecht foi inspirada na
invasão da Polónia, e é um trabalho anti-guerra, em que se
procura despertar consciências para o avanço do nazismo
e fascismo. Assim, a uma história de ficção (Mãe Coragem),
adicionou-se um contexto real (a Guerra dos Trinta Anos
como uma metáfora para a Segunda Guerra Mundial) para
que os espectadores possam ver a peça como uma con-
sequência do capitalismo. Tantos anos depois, já ninguém
quer dar lições de capitalismo a ninguém, mas os artistas
voltaram-se de novo para a realidade, criando histórias-in-
ventadas-quase-reais. No entanto, as novas narrativas já
não são necessariamente épicas, nem têm a pretensão de
entender a humanidade em toda a sua vastidão. Centram-
-se mais no vizinho do lado ou num habitante longínquo da
Patagónia, logo que nos pareça familiar. São micronarrati-
vas. Contam, muitas vezes, histórias de pessoas simples,
aparentemente iguais a nós.

78
a ficção que já foi realidade

A grande questão parece ser: porquê o documentário


aqui e agora? A resposta pode ser o 11 de Setembro, pois
os ataques terroristas nos EUA introduziram uma ruptu-
ra no mundo como o entendíamos até então. O impossí-
vel aconteceu, as torres ruíram, e ninguém até hoje con-
seguiu explicar o que aconteceu. Paradoxalmente, toda
a gente viu o acontecimento em directo pela televisão.
Consequentemente, há um retorno ao documentário
como forma de encontrar uma explicação para a realida-
de, que nem a arte nem o jornalismo conseguem forne-
cer. Nunca se fez tanto teatro de documentário - tribuna,
investigação, entrevista, verbatim - como agora. A guerra
do Iraque e do Afeganistão foram provavelmente um não-aristotélico, que não pretendia provocar empatia
dos temas mais representados, precisamente entre pa- com o espectador ou explorar as suas emoções. Antes
íses anglo-saxónicos, os mais envolvidos no conflito... pelo contrário, Brecht pretendia transformar o público
Mas não foi só através do teatro de documentário que num elemento crítico, um agente-interpretador da reali-
este retorno à realidade se fez sentir. Outros modos de dade. Brecht também introduziu um modo performativo
expressão surgiram ou evoluíram muito. Tal é o caso das de representação, em que os actores, em vez de encar-
peças de teatro que usam pessoas reais em palco, algu- narem os personagens, os demonstravam, olhando os
mas delas cruzando ficção com histórias pessoais. Um espectadores de frente, dizendo-lhes directamente: o
dos melhores exemplos é a companhia alemã Rimini Pro- que está aqui é um actor a representar para ti, não um
tokoll, que desenvolve peças de ensaio em que se anali- personagem. Todas estas inovações, e muitas outras,
sam temas reais em palco, colocando em cena especia- foram assimiladas pelos movimentos de performance
listas desse mesmo assunto. Por exemplo, na peça Cross que agora inspiram as novas gerações de profissionais
Word Pit Stop criaram um cenário de Fórmula 1 e colo- de teatro. É claro que a estas influências muitas outras
caram em palco senhoras de cerca de 80 anos de idade se juntam no campo da arte, som, música, cinema e etc.
que tinham de executar simples tarefas domésticas, tais Hoje, as companhias de teatro – notavelmente as de do-
como manobrar aparelhos caseiros, algo tão difícil para cumentário e performance – voltaram-se para a realidade,
elas como pilotar carros de Fórmula 1 para um cidadão interpretando-a numa pequena escala, na micronarrativa,
normal. Ao mesmo tempo que efectuavam as tarefas, as na história que cabe no universo individual de cada cida-
autoras-personagem contavam episódios da sua vida. dão. Quem se interessa hoje em dia por um épico sobre os
Estas microbiografias contavam as histórias das senho- EUA? Muito poucos. E sobre um agricultor perdido na fa-
ras isoladamente, mas tinham também uma função mais mosa 69 route nos EUA? Muitos. Há muito mais hipóteses
abrangente, pois permitiam entender um problema mais de criarmos empatia com o senhor, ainda que nenhum de
vasto, o envelhecimento da sociedade. Toda a gente se nós seja agricultor, do que com o calhamaço dos EUA.
emociona quando uma velhinha de 80 anos não se lem- Heiner Müller disse um dia que o acto de as pessoas se
bra do que tem de dizer a seguir. A ficção ultrapassa a debruçarem para a realidade tinha a ver com o facto de
realidade, criando um momento único em palco. estas reclamarem para si o direito de interpretar o mun-
Estes novos grupos de teatro receberam influências do, recusando os códigos impostos da Disney e simila-
dos movimentos de performance que nasceram nos anos res. É bem verdade. Todos sabemos que Hollywood não
de 1960, ou se desenvolveram a partir dessa data, enca- vende apenas filmes, mas uma visão do mundo. O mundo
beçados por Joseph Beuys e Pina Bausch. No entanto, tecnicolor, em que um homem é um cowboy e uma mulher
estes movimentos não seriam possíveis sem a obra de uma loira de vestido branco às pregas. Feios só em África,
Brecht, que, pela primeira vez, desenvolveu um teatro na Ásia ou na Índia. Fome, dor e sofrimento só no terceiro

79
©Ana Mendes, still film National 03, 2008
a ficção que já foi realidade

mundo; nos EUA os cidadãos não sofrem, estão prote-


gidos pelos media. Como Susan Sontag referiu, no livro
Olhando o Sofrimento dos Outros, nunca nos EUA o so-
frimento, a morte ou a decadência são expostos; tudo é
visto sempre à distância, ao longe. A cobertura do 11 de
Setembro parecia uma operação militar, o que não dei-
xa de ser estranho, considerando a imprevisibilidade do
evento. Os corpos caíam como penas, nunca se viam si-
nais de decomposição. Nas guerras em África, nos cata-
clismos na Ásia todos os corpos são esventrados. Estes
e outros códigos são impostos pelo cinema e pela arte
em geral. Ensinam-nos que o sofrimento só ocorre en-
tre os famintos no terceiro mundo. Também nos dizem o
oposto: o que é um pôr do sol, por exemplo. Não é aquele
que os nossos olhos vêem, mas aquele que Hollywood Quem perde com isto é o autor, pois há a ilusão de que
nos mostra. O que é um beijo, o que é um parto, como be- basta recortar páginas de jornal para se ter uma peça...
ber champanhe, o que são flores, o que é uma expressão mas, se calhar não basta, é preciso muito mais do que
triste ou alegre... está tudo codificado. E, se como Hei- isso para se ter um trabalho consistente, que não morra
ner Müller notou, pensarmos na Disney... o caso é mais na tendência do momento. Mas há bons exemplos e refi-
grave, pois mal nascemos já somos aculturados pela in- ram-se: a Need Company, por exemplo, uma companhia
dústria de desenhos animados... Por isso, a solução pode de teatro belga que, desde os anos 70, elabora peças que
passar por fechar os olhos a esta invasão de códigos e misturam teatro e performance, ou não fosse o fundador
olhar à volta, reimaginar o que vemos. Não me parece um artista plástico. Mas não é uma companhia de teatro
que se possa encontrar o sentido da realidade, mas é um documentarista. O que eles fazem é teatro puro e duro,
acto de liberdade imenso poder olhar à volta e recriar os com influências da performance, uma visão muito esté-
factos, reordená-los. tica, mas que usa uma narrativa, uma ficção que incor-
É claro que quando se chega à prática nada é tão belo pora elementos reais, muitas vezes da biografia de Jan
ou poético. Não faltam hoje em dia companhias que se co- Lawers, o fundador da companhia. E são lindas as peças.
piam umas às outras, clonando os trabalhos. O mundo glo- Perfeitas, estéticas, emocionantes, poéticas, bem escri-
balizado em que vivemos hoje faz com que as tendências tas, com movimento... intensidade.
sejam as mesmas, como na moda, em que uma agência Em Portugal, há bons exemplos apesar do negativismo
dita de que cores, botões ou fechos vamos gostar. E todos dominante, talvez pelo facto de existir ainda um certo iso-
os estilistas seguem, sem excepção. No caso do teatro, lamento que faz com que vozes individuais persistam de
este sentir global também é verdadeiro. É também ver- certa forma contra tendências mais globalizantes. A isto
dade que, neste novo género híbrido, é difícil saber quem acresce a natureza poética e contemplativa dos portugue-
é o quê, o que vemos exactamente em palco – realidade ses em geral, visível nos filmes – e não me refiro apenas
ou ficção? Uma personagem ou uma pessoa? Uma pessoa a Manoel de Oliveira. Há um certo vagar na imagem, nos
provavelmente. Penso que essa será uma das notas deste planos que não correm, e no tempo que, paradoxalmen-
novo teatro – as pessoas contam. O que todos procuram te, é algo que os portugueses não têm medo de gastar.
são as pessoas, é um momento de pretensa intimidade em Ao contrário do resto do mundo, que corre em ânsia de
palco, ver as regras ruir, algo que não pode ser repetido, qualquer coisa, os portugueses param, olham e escutam.
que nos faça sentir humanos num mundo de máquinas. E, Ficam à espera de algo que está para vir. Mas essa inacção,
é claro que é mais fácil sentir a pessoa quando se tem uma a contemplação pura e simples, faz parte da natureza do
história real, e não quando esta é ficcionada. teatro, pelo menos no teatro de memória. —

81
análises

Uma família. Um pai, uma mãe e um filho. Um Pedro,


uma Maria e um Filho. Uma Sagrada Família, em que o
filho não tem nome. A que este não pertence. Não tem
nome e não tem voz. Mas onde é a voz predominante.
Seja da razão, seja do cerne da questão, assim como da

A vida
intensidade dramática. A voz que volteia a mesa de jogo
quando este jogo parece adormecer.
Nesta peça de Jacinto Lucas Pires, Sagrada Família,
temos consciência de que “o melhor do mundo são
(mesmo) as crianças”. Isto porque temos a sensação de
que só a criança é o mais humano de entre os seres que
nela respiram. Tudo o que gira neste pequeno mundo
dramático, por Lucas Pires criado, não é mais do que a

?
vida perniciosa, vazia, e despojada de valores em que

é sonho
se tornou a sociedade contemporânea. Esta peça não
é, de todo, a elevação de um pensamento tipicamente

por Luís Miguel Gonçalves


actor e colaborador da Biblioteca Nacional de Portugal

82
a vida é sonho?

moralista. Ela espelha cruamente uma lógica de viver


social que revela, para além de tudo o mais, uma forma
de existir presa a uma profunda indiferença face à
sociedade e, até mesmo, do indivíduo em relação a si
sua vida. É a história de uma Maria que para ajudar o
próprio. Através de um discurso artístico marcadamente
seu “Pê” pede a um empresário António, vizinho do
contemporâneo, Lucas Pires espraia um rol de quadros,
casal, para entrar com uns dinheiros. É a história de um
de cenas de guião, de ficheiros informáticos guardados
António que para entrar com uns dinheiros se aproveita
em pastas ramificados em a), b), c)..., de árias de ópera,
sexualmente de Maria e fica com remorsos. É a história
de sonhos soltos, relembrando-nos constantemente em
de uma Arlete, mulher de António, que vive segundo a
que sociedade estamos inseridos. Uma sociedade de
conduta do “parece bem/parece mal” e acredita que
estímulos. Uma sociedade do marketing, das referências,
Pedro a salva de um tumor com a ajuda da religião. É
estéticas e outras, com frases feitas que algumas
a história de uma religião denominada “MERDA” que
personagem vão dizendo ao longo da peça; ou com o
se transforma em partido político. É uma história onde
teatro dentro do teatro, como um dos quadros/cenas
a culpa e a indiferença vão de mão dadas com o medo
desta peça, onde as personagens olham para o Mundo
e a desumanidade. É a história de um Filho que quer
que para eles possivelmente representa a televisão, mas
atenção e respostas por parte dos pais e acaba morto.
que para o espectador e o leitor da peça representa o
Um dos factos mais interessantes desta peça é,
público, pois as personagens olham em frente e nada
sem sombra de dúvida, a personagem do Filho. Tendo
existe no seu campo de visão a não ser o público; ou
o objectivo claro de pretender ser ouvido pelos pais
até como a ária/canção, rica em slogans publicitários e
e de obter respostas a todo o custo, é assaltado por
interrogações diárias que não passam disso mesmo,
pesadelos surrealistas e por desejos sexuais por Arlete.
interrogações diárias que possuem muita força nesse
Com um traço de uma nitidez surrealista ímpar, Lucas
determinado momento, mas no seguinte se dissolvem
Pires conduz-nos através da loucura sonhada de um
como a espuma das ondas do mar. Toda a peça é como
miúdo que deambula pela peça, qual fantasma de
uma viagem de montanha russa pelo viver e conviver
Hamlet, expondo a realidade dura e crua da vida das
na sociedade do 3D e da velocidade, já não de cruzeiro,
restantes personagens, bem como da sua própria. Uma
mas de fibra óptica. O mais ilustrativo dessa experiência
personagem que sofre realmente com a indiferença
de vida está contido nos diálogos das personagens.
de todos, e com a sua própria fraqueza e incapacidade
Podemos observar uma dinâmica primorosa no decorrer
perante as situações desumanas a que vai assistindo,
dos mesmos. Seja pela forma como falam, que mostra
consciente e inconscientemente, no desenrolar da peça.
bem as diferenças entre elas: caracterização, objectivos,
Pouco claro, porém, é a causa da sua morte. Lucas Pires
fraquezas, desejos, evolução dramática; seja pela forma
deixou essa questão demasiado em aberto. No entanto,
contemporânea como dialogam: sem ouvir realmente
esta pode ter algumas leituras possíveis. A primeira
o outro, tentando levar sempre a sua opinião avante,
prende-se com a solidão, a segunda com excesso de
interrompendo o raciocínio, desconversando, focando
perguntas que o levam à loucura e consequente morte,
o seu discurso em si próprios e nos seus problemas,
a terceira com o facto de o seu objectivo de vida estar
fugindo à responsabilidade de solucionar os mesmos,
cumprido, sendo esta última a consciencialização de
fugindo à realidade.
que a sua vida é um sonho e, tal como nas palavras de
Esta é a história de uma família desempregada e que
Calderon de la Barca: “(...) Qué es la vida? Un frenesí./ Qué
precisa de dinheiro para sobreviver. É a história de um
és la vida? Una ilusión,/ una sombra, una ficción,/ y el mayor
Pedro que decide acreditar que se formar uma religião
bien es pequeño,/ que toda la vida es sueño,/ y los sueños,
as coisas mudam, pois pode ganhar dinheiro com isso e
sueños son.” —
acreditar em algo maior do que o vazio em que se tornou

83
entrevista joaquim paulo

Para Além

84
entrevista joaquim paulo

do Tema

85
análises

perfil

Suso Cecchi D’Amico foi provavelmente a


mais importante guionista que o cinema
mundial conheceu. Uma das pioneiras do
guião neo-realista, trabalhou com grandes
guionistas e com os maiores diretores italia-
nos de meados dos anos 40 do século XX em
diante. Sua morte em 31 de julho de 2010
estabelece um marco para reviver seu legado
e sua contribuição para a história do cine-
ma mundial, herança que se traduz em uma
construção estilística de guião, não atrelada
a normas. Suso construiu um estilo próprio
de estrutura para seus guiões, fundado em
sólida pesquisa a partir da qual tecia uma
narrativa consistente, muitas vezes de base
histórica. Estilo este indiferente à estrutura
em três atos e não subjugado a cartilhas ou
normas pré-concebidas de escrita de guião.

86
a ficção que ja foi realidade

O legado de

Suso Cecchi
D’Amico
Breve biografia
Nascida Giovanna Cecchi, em Roma, a 24 de julho de
por Denise Duarte

1914, sua mãe, Leonetta Pieraccini, era pintora e o pai,


Emilio Cecchi, um renomado crítico e escritor em seu
país, sendo considerado por alguns estudiosos a mais
importante figura das letras italianas no século XX. Emilio
também trabalhou em cinema como guionista e produtor, Gênese de um movimento cinematográfico
vindo a administrar os estúdios Cinecittà no pós-guerra. Finda a 2ª Guerra Mundial, Suso e seus amigos (Cesare
Suso herdara, assim, bem mais que o apelido carinhoso, Zavattini, Roberto Rossellini, Vittorio De Sica, Luchino
diminutivo de Suzana, como o pai a chamava, mas igual- Visconti, Federico Fellini e outros) percorriam as ruas de
mente seu pendor pelas artes literárias e cinematográfi- Roma colhendo histórias junto à população. A idéia era fa-
cas. Em 1938, Suso casou-se com o famoso músico, crítico zer filmes tendo por base depoimentos, no intuito maior
musical e intelectual italiano Fidele d’Amico, passando en- de mostrar o sofrimento do povo italiano naqueles anos
tão a assinar Suso Cecchi d’Amico. difíceis. Inicialmente sem estúdios ou recursos para pagar
Profunda conhecedora de literatura, recebendo influên- equipe e equipamentos, valeram-se quase sempre de ato-
cias de Dostoievski e Tolstoi, Suso dedicou a vida ao cine- res não profissionais, das ruas da cidade e outras locações
ma. Entre 1946 e 2006 escreveu cerca de 118 obras, entre naturais como cenário. Se por um lado ressentiam-se das
argumentos e guiões para cinema e televisão. Com Luchino dificuldades que envolvia fazer cinema sem financiamen-
Visconti manteve parceria até a morte do diretor, tendo to, por outro desfrutavam de grande liberdade criativa ao
trabalhado, entre outros, com Mario Monicelli, Michelan- não se filiarem a grandes estúdios. Na prática, esses guio-
gelo Antonioni, Vittorio De Sica, Franco Zeffirelli, Federico nistas e diretores trabalhavam juntos no set de filmagem,
Fellini e Martin Scorsese, e com grandes guionistas, como sem dimensionar que gestavam um novo movimento ci-
Cesare Zavattini, Enrico Medioli e Tonino Guerra. nematográfico, o neo-realismo Italiano.

87
Suso Cecchi D’Amico

“Guião é trabalho de um artesão, não de um poeta. Eu


não sou poetisa, sou artesã”.1
A frase de Suso transformou-se em marca registrada de
seu pensamento sobre o ofício do guionista. Sua visão
era bastante pragmática ao não considerar o guião uma
arte: “A verdadeira arte é uma criação individual”2. Sendo
o filme uma obra coletiva, não considerava inteligente a
doutrina que perdura no cinema desde os anos 20/30
do século passado que predispõe somente ao diretor
os créditos pelo filme. Por outro lado, ela outorgava ao
guionista papel fundamental no processo, o único a me- tação de À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust,
recer ser chamado de autor. guião no qual Suso trabalhava em processo adiantado, foi
Suso seguia regras próprias na construção de seus interrompida pela morte de Visconti em 1976.
guiões. Uma delas determinava para cada cena três ele- Suso escreveu alguns dos mais importantes filmes da
mentos: o momento crucial de uma situação, seu final e o história do cinema para Visconti dirigir, incluindo guiões
início de uma nova situação. Avessa às convenções nar- de cunho histórico, melodramas e dramas psicológicos,
rativas hollywoodianas, a autora não seguia a tradicional um cinema que não guardava espaço para finais felizes. O
estrutura em três atos. No entanto, evitava indicar livros questionamento de seu lugar num mundo em transição,
ou normas para criação de guiões a seus alunos. A inten- sentimentos de decadência, fracasso e desesperança com-
ção era demonstrar que não há regras a serem seguidas. punham uma construção de personagens que primava pela
Suso também se dedicava à análise da estrutura de cer- densidade e expressividade dos conflitos interiores. Tal
tos filmes, como The magnificent ambersons (1942), de desenho estabelecia contrastes entre personagens de di-
Orson Welles, visto por ela inúmeras vezes no intuito de ferentes classes sociais e indicava que Suso possuía talento
aprender sua estrutura. incomum para construir tipos muito distintos. A decadên-
Suso temia pelo futuro do cinema e considerava me- cia da nobreza, à qual o próprio Visconti pertencia, e de
díocres os filmes de hoje. Sua proposta seria encarar seus valores ante o surgimento de uma nova classe, tanto
o cinema por prazer, como na época em que ela e seus quanto a vida de pessoas comuns eram temas que perme-
amigos saiam às ruas de Roma para fazer os filmes que avam grande parte da obra da autora. Seus personagens
queriam, sem pensar em lucros. eram seres em conflito com uma nova ética ou com uma
Recebeu 19 prêmios de guião, entre eles o Oscar de nova confluência de forças alheias a sua vontade. Não raro
Melhor Argumento de 1966 por Casanova ‘70, e o Leão revelavam espanto com os novos tempos e se resguarda-
de Ouro pelo conjunto de sua obra no Festival de Cine- vam muitas vezes com desdém, compondo em si mesmos
ma de Veneza de 1994. o retrato solitário de uma época que em breve não mais
Continuou escrevendo até 2006. Mas seu último tra- existiria, situados que estavam a beira do abismo histórico.
balho de sucesso foi o roteiro do documentário Il mio
viaggio in Italia (1999), de Martin Scorsese. Conclusão
O digital e a internet vieram impor novos caminhos para
Com Visconti a televisão e o cinema. O texto hipermidiático apresenta-
Foi com Luchino Visconti que firmou a mais constante e -se como possibilidade para o guião. Porém, nenhuma ino-
duradoura parceria. A partir do convite para escrever Be- vação técnica será capaz de sozinha comportar um bom
lissima (1951), Suso trabalharia com o diretor durante 25 guião. É preciso que o guionista domine a arte de escrever
anos, em 11 filmes. Em seguida viriam Senso (1954), Le notti boas histórias. E é sob este aspecto que o trabalho de Suso
bianche (1957), Rocco e i suoi fratelli (1960), Boccaccio ‘70, Cecchi D’Amico precisa ser estudado. Muito provavelmen-
episódio Il lavoro (1962), Il gatopardo (1963), Vaghe stelle te, a figura do guionista, como ela o desempenhou, já não
dell’Orsa (1965), Lo straniero (1967), Ludwig (1972), Gruppo exista nos próximos anos. Ainda assim, permanecerá como
di famiglia in un interno (1974) e L’innocente (1976). �������
A adap- inspiração. Uma indicação de que a história do cinema
precisa ser repensada no sentido de incluir e dimensionar
1  Tradução minha da entrevista de Suso Cecchi D’Amico a Mikael Colville-
a contribuição dos guionistas. O legado de Suso deve ser
Andersen, publicada no endereço http://zakka.dk/euroscreenwriters/ tomado como referência para essas questões e para indicar
screenwriters/suso_cecchi_damico.htm. a necessidade de se reservar um lugar de destaque para o
2  Idem. guionista nos estudos históricos de cinema e audiovisual. •

89
análises

entrevista

John
Logan
90
john logan

A sua paixão pelo teatro, conta, começou cedo. Foi criado


com os pais a lerem-lhe poesia. Mas um dia, tinha ele oito
por Pedro Faria anos, o pai levou-o ao cinema. O filme foi “Olivier”, o musical
realizado por Carol Reed. A luta com espadas deixou Logan
Os créditos cinematográficos de John Logan são mais apaixonado pela arte de contar histórias.Apercebendo-se
que suficientes para que ele seja nomeado como um dos da paixão do filho, o pai de Logan colocou a poesia de lado e
melhores guionistas da actualidade. Chegou à fama de- começou a ler-lhe Shakespeare. O dramaturgo admite que
pois do filme “Um Domingo Qualquer” (1999), que teve pouco percebia das histórias que o pai lhe lia, mas dava con-
Oliver Stone como realizador e Al Pacino no papel prin- ta que a estrutura daquelas histórias o mantinha curioso e
cipal. Mas foram as nomeações aos Oscars pelos filmes inspirado.Começou também a ir ao teatro e aquele espaço
“Gladiador” (2000) e “O Aviador” (2004) que o levaram a passou a ser a sua “casa”. Mais adulto, o próximo passo que
ser um dos mais requisitados guionistas de Holllywood, John Logan considerava natural para alguém que queria es-
na última década. A sua carreira inclui ainda os guiões de tar no teatro foi o de estudar para ser actor.
“Star Trek Nemesis” (2002), “O Último Samurai” (2003), Foi estudar para Chicago – Northwestern University
“Sweeney Todd: O Terrível Barbeiro de Fleet Street” - onde se apercebeu que ser actor não era de facto para
(2007), “Rango” (2011) e os filmes “Coriolanus” (uma ele. Manteve-se nos estudos mas começou a ter aulas de
adaptação da peça de Shakespeare realizado por Ralph escrita dramatúrgica. As aulas obrigavam-no a escrever
Fiennes, que também tem o papel principal), “Hugo” (re- uma peça num ano. E assim, aos 18 anos John Logan ti-
alizado por Martin Scorsese) e o tão adiado e aguardado nha escrito a sua primeira obra. “A partir desse momento
filme 23 da saga Bond (que terá a mão do realizador Sam sabia que a minha grande felicidade era escrever para
Mendes). Mas o que impressiona no discurso humilde actores”, recorda o dramaturgo norte-americano. Para
de John Logan é que, mesmo depois de tantos sucessos pagar as contas, de dia arrumava livros nas prateleiras da
no cinema, continua a considerar-se, antes de mais, um Biblioteca da universidade onde tinha estudado e à noite
dramaturgo. escrevia peças de teatro. Lá trabalhou durante 10 anos.

91
entrevista

E tanto escreveu e praticou a sua escrita que


um dia um produtor leu uma das suas peças e
Ao meu sinal,
o chamou a Los Angeles para apresentar 10
ideias de filmes. A viver do outro lado do país, libertem o inferno
Logan teve de pedir dinheiro emprestado ao Maximus
melhor amigo para pagar o voo. Na reunião, [Russel Crowe
apresentou a seguinte frase: “Rei Lear na NFL”. em Gladiador]
John Logan propunha colocar a personagem
principal de uma das obras-primas de William
Shakespeare na liga profissional de futebol
americano. Adoraram a ideia. Mas havia um último desafio:
escrever o guião do filme em 12 meses sem qualquer adian- Como dramaturgo e guionista, quais são, para si, as
tamento. Logan aceitou, mas teve de deixar o emprego a grandes diferenças entre os dois?
arrumar livros e pedir mais dinheiro emprestado a amigos. Eu acordo todas as manhãs e sinto-me um dramaturgo.
Viveu e respirou futebol americano durante um ano É o mundo em que me sinto confortável. Não sou um
e assim nasceu o guião para o filme “Um Domingo Qual- homem de Hollywood, e daquele mundo. Só me interessa
quer”, e um guionista no corpo de um dramaturgo. Uma ser um bom dramaturgo e escrever bem. E no teatro tudo
prova de que é necessária perseverança para se concre- roda à volta do escrever bem. Sinto-me mais inspirado
tizar um sonho. Apesar de não gostar de dar entrevistas e quando vejo um bom trabalho no teatro. Nos filmes
de lhe serem conhecidas poucas aparições públicas, John procura-se a metáfora visual enquanto no palco é a frase
Logan participou no passado mês de Setembro numa série do diálogo ou a interacção entre personagens. Quando
de palestras por guionistas organizada pelo British Aca- coloco o cérebro do cinema, penso: a personagem está a
demy of Film and Television Arts (BAFTA) e British Film sentir isto, por isso o que vou mostrar?
Institute (BFI). A DRAMA esteve presente e apresenta
algumas das perguntas a que John Logan respondeu. Pode falar um pouco das diferenças entre produzir
uma peça na Broadway e Londres?
Disse recentemente que para se ser guionista não Londres é o centro do mundo para o teatro. E assim tem
se devem ver filmes. Que se deve primeiro ser um sido desde o século XVI. Seja por causa de Shakespeare
dramaturgo. Quer explicar esse pensamento? ou John Osborne, War Horses ou Cameron Mackintosh.
O meu background é o teatro. Eu não andei em nenhuma Londres é o coração do teatro falado em inglês. Todos os
escola de cinema. E como se pode perceber pelo meu dramaturgos norte-americanos aspiram a nada mais que
percurso, durante 10 anos eu li e escrevi para o teatro. fazer parte desta tradição. O momento mais cativante
É esse o meu segredo. Ler Hamlet uma vez. E outra. E de toda a minha carreira foram os ensaios de “Red” [peça
outra. Até se perceber cada palavra da obra. E depois pela qual Logan ganhou um Tony] porque eu passei a
ler Rei Lear. E depois ler-se poesia. E depois Sófocles. E minha vida a sonhar trabalhar num teatro britânico.
perceber o que é ser dramaturgo. Perceber a forma em
que queremos trabalhar e o que existiu antes de nós. E só Já escreveu muitos filmes de acção, o que não é algo
depois, se quiserem, talvez se devam ver alguns filmes. que se espere de alguém que deriva do teatro. Quais
Há a noção de que o cinema é constituído por imagens. são os desafios de escrever acção para filmes?
Mas também é linguagem e personagens a exprimirem- É difícil. Escrever sequências de acção é a parte mais
se através do diálogo. E o diálogo tem sido muito difícil do meu trabalho. Tem tudo a ver com a metáfora
desvalorizado nos filmes, ultimamente. Ler livros sobre visual. Quando escrevo uma cena de futebol americano
guionismo é uma completa perda de tempo. O que esses em “Um Domingo Qualquer”, uma cena de luta no
livros ensinam é a forma estandardizada de escrever “Gladiador” ou “Último Samurai” ou uma sequência
e a famosa estrutura de três actos. Se queremos ser de acção em Bond, o que tento exprimir é a narrativa
escritores temos de seguir os estranhos caminhos da emocional que a personagem está a atravessar. E
poesia e da vida levada às áreas mais extremas possíveis, encontrar uma forma visual de apresentar isso. E leva
ofensivas e provocadoras. uma eternidade a fazê-lo.

92
john logan

Quão diferente é o processo de uma adaptação, como


“Hugo” , em relação a uma história original?
Há quem diga que adaptar é mais fácil, mas para mim
é mais díficil. Quando escrevo algo original não tenho
obrigações para ninguém. Quando escrevo a adaptação
de “Coriolanus” tenho o Shakespeare no ombro. Quando
escrevo Hugo e sei que foi Brian Selznick - que é um
autor que respeito - quem escreveu a obra original o
meu trabalho é não os desapontar. Há algo na visão
deles que me inspirou, e eu só quero trazer essa visão
a um novo meio. Se há alguma coisa fácil é o esqueleto
da história. Mas tudo o resto é um grande sentido de
Eu não os quero
responsabilidade de um escritor para outro.

Como foi trabalhar com grandes actores como


subornados, Jack.
Johnny Depp, Leonardo Di Caprio, Russel Crowe ou
Tom Cruise?
Eu quero isto feito
Devido à minha experiência como dramaturgo, estou
habituado a falar com actores. Sinto-me confortável a
falar com eles. E parte do meu trabalho como dramaturgo
legalmente. Eu quero-
ou guionista é ajudar. É ouvir a sua linguagem e envolver-
me nela. Porque as palavras escritas não deixam de ser
palavras escritas. E as palavras só vivem quando faladas,
os «comprados».
expressas. Seja num palco ou em frente a uma câmara. Howard Hughes
[Leonardo Di Caprio
Preciso de ouvir as palavras vindas da boca do actor.
em O Aviador]
Com um actor como o Leonardo, em “O Aviador”,
sentamo-nos durante horas e horas apenas a falar de
História e a ler transcrições de notícias. Enquanto um
actor como o Tom Cruise já não tem essa proximidade.
Adoraria que os orçamentos dos filmes permitissem mais
ensaios, algo que raramente acontece. Porque os ensaios
são das poucas oportunidades que o guionista tem para
ouvir as palavras que escreveu exprimidas em voz alta.
Um realizador como o Sam Mendes, que vem do teatro,
já percebe essa necessidade. E é por isso que o novo Bond
teve duas semanas inteiras de ensaios. E quando se chega
ao cenário toda a gente sabe o que se quer comunicar. •

93
análises

livros
On Film-
Making
– an introduction
por António Cardoso

“Tendo estabelecido que ensinar as regras para fazer cine-


ma não é possível, eu vou agora, com a ajuda destas notas,
tentar fazer isso mesmo”, escreve Alexander Mackendrick
no final do prólogo de “On Film-Making – an introduction
to the craft of the director”. Este livro, editado pelo escri-
tor e documentarista Paul Cronin, é uma compilação de

to the craft notas de aulas e sketches produzidos por Mackendrick


durante os vinte e cinco anos que passou, após o seu apo-
sentamento de realizador de cinema em 1969, a ensinar o
seu ofício no Instituto das Artes da Califórnia.

of the director
Começando por nos relembrar que o cinema é um
meio, Mackendrick enfatiza o papel do filme como “uma
linguagem de comunicação que transmite um conceito da
imaginação do criador para o olho e o ouvido da mente
daqueles aos quais a mensagem é destinada”. Na opinião

de Alexander do ex-realizador Britânico, o “artista ou artesão”, antes de


introduzir qualquer inovação na sua área, deve começar
por compreender e dominar os princípios que ele preten-
Mackendrick de subverter, tal como “um especialista em demolições
tem de compreender todos os princípios de arquitectura
antes de conseguir fazer o seu trabalho”, correndo, caso
contrário, o risco de produzir na sua audiência um efeito
não pretendido ou de não conseguir criar o efeito preten-
dido. Mackendrick acrescenta ainda que “[s]e um filme
funciona nunca é simplesmente porque este seguiu as re-
gras. Se, no entanto, falha, é quase certo que a quebra de
uma ou mais regras é a raíz do problema.”

94
on film-making

Apesar de ter como subtítulo “Uma Introdução ao Ofi-


cio do Realizador”, o livro dedica cerca de dois terços
do seu conteúdo à arte da construção dramática. Nes-
ta primeira parte, Mackendrick começa por focar um
tema recorrente nas suas notas: a natureza pré-verbal
do cinema. Embora seja possível reproduzir diálogo
em grande quantidade num filme (na forma de som ou,
durante a época do cinema mudo, através de cartões
com legendas), este também é capaz – através de ima- munha Alada Ubíqua Imaginária Invisível, uma criatura
gens cinematográficas muitas vezes sincronizadas com desenhada para personificar o olho e ouvido da mente
efeitos sonoros – de contar histórias puramente em do realizador saltando pelo tempo e espaço de um mun-
movimento, em “acção e reacção”, tornando secundária do imaginário construído em frente à lente da câmara”.
a componente verbal. “Consequentemente”, escreve Armado com este seu novo conceito, o ex-realizador
Mackendrick, “o significado essencial e subjacente de di- de Hollywood responde a duas questões complexas de
álogo em filme é frequentemente transmitido de forma forma muito simples. Primeiro, à questão: “onde é que o
muito mais efectiva por uma complexa e intrincada orga- realizador coloca a câmara”, Mackendrick escreve que é
nização de elementos cinemáticos que são não só não- “no preciso ponto de onde em qualquer dado instante a
-verbais, mas também nunca podem ser completamente Testemunha consegue ver tudo o que é necessário ver e
analisados por meios verbais.” Por outro lado, o antigo só o que é necessário ver”, dentro, claro está, dos limites
cineasta acrescenta que o cinema chega ao seu auge de do mundo real em que as filmagens são feitas; a resposta
interesse e vigor quando as imagens jogam contra o sen- à segunda questão – “quando é que o realizador deve fa-
tido literal do diálogo, ou seja, quando ao que é dito pelo zer um corte na acção” – é igualmente simples: “quando a
actor se contrapõe o que esta a ser visto pela audiência. Testemunha quer ver algo que ainda não consegue ver”,
Neste caso, o diálogo consegue exprimir muito mais do ou seja, dentro de cada shot deve existir sempre algo que
que o significado literal das suas palavras, focando então cria na audiência o desejo de saltar no momento certo –
a atenção no ritmo do subtexto e tornando possível o re- no espaço e no tempo – para a próxima imagem.
lato de várias histórias em simultâneo. A segunda parte de “On Film-Making” continua então
“On Film-Making” dedica-se então à apresentação e com a exploração de temas essenciais para a compreen-
elaboração, baseando-se em várias obras – em particu- são do ofício de um realizador, tais como a importância
lar a antiga “Poética” de Aristóteles e a, mais recente, da imagem e do som como meios de dirigir a atenção da
“Play-Making” de William Archer – de teoria dramática, audiência, geografia mental e condensação do tempo de
de temas como a origem do drama, a importância da ten- ecrã, e inclui também um pequeno capítulo dedicado a
são dramática, as diferenças entre literatura e drama, as técnicas básicas de desenho (algo inestimável, na opi-
características de uma personagem em ficção, exposição nião de Mackendrick, para quem quer aprender a comu-
(ou seja, explicação através de diálogo) e ironia dramáti- nicar). Esta compilação termina com um estudo – como
ca, utilizando exemplos de filmes entre os quais “O Ter- modo de sumariar os capítulos anteriores – de algumas
ceiro Homem”, “Ladrões de Bicicletas”, e “Mentira Mal- cenas do clássico “Citizen Kane”, “visto por muitos”, diz o
dita” (este último realizado pelo próprio autor). Para os antigo cineasta, “como o filme mais importante de sem-
mais dedicados, a compilação presenteia-nos ainda com pre feito em Hollywood”.
um capítulo inteiramente constituído por exercícios para No seu epílogo, acabando como começou, Mackendri-
o estudante de construção dramática. A primeira parte ck relembra os seus estudantes de que a teoria não os vai
do livro termina com um capítulo sobre a relação de tra- em geral ajudar a produzir bom trabalho, mas é possível
balho entre o realizador e o actor, onde Mackendrick se que os ajude a identificar os seus erros. Modestamente,
centra na importante questão de quanto é que o actor o ex-realizador conclui: “como instrutor, as únicas coisas
precisa de saber sobre o trabalho do realizador. que eu posso ensinar são as que vocês já sabem, aquelas
A segunda parte – e último terço – desta compilação ideias e opiniões que se vocês parassem e considerassem
é dedicada ao tema da gramática de filme, onde Macken- por mais de dez segundos, iriam provavelmente perceber
drick começa por nos apresentar uma personagem que intuitivamente ao nível mais básico. Isto é, acredito eu, o
representa o realizador na fase de planeamento de set- que procurei respeitosamente fazer nestas aulas e notas.
-ups de câmara e encenação de performances: “a Teste- Espero que vocês as aproveitem ao máximo.”•

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análises

análises
O corpo
e o sentido
do trágico em

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a ficção que ja foi realidade

Elephant
por Ana Barroso
de Gus Van Sant
O sentido do trágico tem assumido diferentes contornos
ao longo do tempo, mas no cerne da tragédia, indepen-
dente do contexto cultural, está sempre uma crise. Por
isso, o conflito, a liberdade, o conhecimento ou a igno-
rância são modos primeiros de dizer o trágico. Embora se
A imagem do corpo enquanto elemento potenciador de refira muitas vezes o desfecho infeliz como típico da tra-
uma individuação física implica a herança metafísica da gédia, importa acentuar que o mais importante não é o
tragicidade: a par da libertação do indivíduo enquanto desfecho, mas o processo. A experiência revela-se através
ser que age sobre o mundo que o rodeia, impende “uma do corpo, na dificuldade enorme enfrentada pelo sujeito
‘sentença de morte’ que (des)organiza a chamada ‘vida’”1. na sua relação com a identidade, tanto na perceção da
O corpo, enquanto expressão de identidade do sujei- morte, como nos seus impulsos destrutivos. A destruti-
to, tem sido, ao longo da história, pulverizado por crises vidade e a fragmentação do corpo podem muito bem ser
cíclicas, iniciada pela dramática divisão entre corpo e compreendidos como sintomas visíveis da dilaceração
alma, ou seja, entre a finitude e a eternidade. Esta divisão interior (as balas que atingem as vítimas em Elephant,
clássica tornou-se frágil e instável para, cada vez mais, a para além de serem quase sempre mortais, são primeiro
organicidade do corpo por oposição à imaterialidade da objetos que deformam corpos. Antes da morte, temos
alma, ceder às pressões de um deslocamento da fronteira corpos mutilados, em pedaços). A visceralidade do corpo
que separa a vida da morte. A corruptibilidade inevitável exposta através da ferida, mutilação e desmembramento
do corpo deixou de ser redimida pela sublimação da alma é um dos traços mais marcantes da tragédia. A corpo-
para se constituir como um dilema humano irresolúvel. ralidade e a sua postura definem, mas também questio-
nam, os limites do Eu e, nessa luta entre a unicidade e a
cisão, ressoa o conceito de trágico que assombra o ser
1  Bragança de Miranda, J.A. Corpo e Imagem. Lisboa: Nova Vega, 2008: 14. humano desde a antiguidade clássica. Deste conflito ou

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análises

complementaridade, conforme a perspetiva, entende-se tenciam ao domínio do feminino. A força, a integridade


a necessidade da luta permanente entre a vida e a morte e poder pertenciam ao domínio masculino. Quando es-
para evitar o inevitável: o desaparecimento físico do Eu tas características são abaladas profundamente, então
no tempo. A representação através da fotografia “é sem- o homem assume a sua condição trágica. Em Elephant, a
pre uma forma de protesto contra o desvanecimento do confusão sexual de Alex e Eric é um elemento fraturante
Ser no tempo.”2 Será essa a função de Elias, o jovem fotó- da personalidade, encontrando-se os protagonistas per-
grafo de Elephant, que prefere “portraits… mainly”. Para didos de uma integridade sexual e identitária.
o homem contemporâneo existe uma sensação de vazio Na realidade é volúvel e vacilante o corpo do indivíduo
onde pessoas e coisas não passam de fantasmas, como assume-se como lugar de transformação, de metamor-
se não tivessem sustentação ontológica, daí o trágico. As fose. Se recuarmos à tragédia grega, o herói vive, agita-
fotografias de Elias permitem recuperar a sustentabili- -se e pensa. Essa reflexão é o logos, que o distingue do
dade e a identidade perdidas. No entanto, não se evita o herói épico. Do conflito entre a vontade individual e a
lamento e o sentimento de desolação perante perda da ordenação do mundo, surge o trágico: “que se aprende,
felicidade e da integridade, agora só possíveis através da sofrendo”3. Numa época em que se reflete sobre os va-
nostalgia pelo passado. lores que subjazem às sociedades democráticas ociden-
A tragédia ateniense sempre demonstrou uma gran- tais, retoma-se a marca indelével deixada pela figura do
de preocupação com as fronteiras do corpo, tanto a ní- trágico na antiguidade clássica grega. As personagens de
vel da sexualidade (masculino/feminino), como a nível Elephant ressoam as de Eurípedes: figuras do quotidia-
de humanidade (humano/animalesco) e da sua finitude no, que sofrem, discutem, reagem. O herói problemático
(mortalidade/imortalidade). A personagem manifesta-se e instável, que desafia a ordem social estabelecida, não
através do corpo do ator e do discurso. E aquilo que o de- pode assumir-se como poderoso e intocável, pelo con-
fine é o sofrimento, colocando o protagonista numa con- trário, será esmagado pela sua revelação, porque só as-
dição de extrema vulnerabilidade e insegurança. Neste sim conhecerá o seu verdadeiro íntimo, afastando-se da
sentido, a masculinidade é posta em causa: a emoção, a familiaridade integradora da sua personalidade para en-
instabilidade e incerteza eram características que per- contrar uma estranheza assustadora e fraturante. O Ser

2 Medeiros, Margarida. Fotografia e Narcisismo. O Auto-retrato 3  Rocha Pereira, Maria Helena da. Estudos da História da Cultura Clássica.
Contemporâneo. Lisboa: Assírio e Alvim, 2000: 36. Cultura Grega. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986: 311.

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elephant

que emerge desta experiência não mais se integrará nas


normas e nos valores que ousou desafiar, restando-lhe
uma irremediável solidão que, quase sempre, terminará desordenados e doentios, perturbadores da ordem do
com a morte. No quarto, enquanto Alex toca ao piano real. As tensões, as incertezas e o colapso da ordem so-
um excerto da Sonata ao Luar de Beethoven, a câmara faz cial são expostos através da ambiguidade, acima de tudo
uma panorâmica circular e vemos na parede um desenho no discurso verbal, frequentemente incapaz de revelar a
a preto e branco de um elefante. Alex, a quem ninguém complexidade dos actos e pensamentos humanos. A lin-
dá importância, será quem planeia o massacre. guagem pode revelar-se poderosa no controlo dos acon-
Não interessa uma abordagem didático-moralista do tecimentos, mas pode também conduzir a falácias. Reve-
significado da tragédia em Elephant. Desde logo, existe lador, mas também opaco, o discurso verbal pode bem
uma ambiguidade latente: os diálogos são improvisados e acentuar o trágico da condição humana7. Na ausência da
as personagens são interpretadas por actores não profis- organização estruturada da linguagem que possibilita
sionais4, reproduzindo no filme atitudes e comportamen- sentidos, irrompe o caos: o filme termina com a câmara a
tos típicos dos adolescentes americanos. O estilo visual afastar-se da cena em que Alex profere as palavras sem
do filme assenta em longos planos-sequência, no ritmo sentido do jogo “eeny-meeny-miny-mo” a um casal de
lento e numa estrutura narrativa não linear. A câmara é namorados para decidir quem vai matar primeiro…
distante, apenas observa. Esta estética de distanciamento O filme não explica a tragédia e recusa uma exposição
coloca as personagens e o espetador numa situação de retórica sobre as mentes e comportamentos psicóticos
crise, de insolubilidade.5 Um ato como o da perpetração de Alex e Eric. Os corpos dos jovens movimentam-se
de um massacre não pode ser reduzido a um ou dois mo- pelos espaços da escola, interagem, mas não existe uma
tivos, existem muitos, nem sempre claros ou lógicos. Se é verdadeira comunicação entre eles, apenas uma erupção
verdade que o ser humano necessita de encontrar razões inesperada de violência. Estudantes e professores mor-
para atos que escapam a qualquer racionalidade, muitas rem, outros conseguem escapar, mas por mero acaso. Ao
vezes essas razões não passam de bodes expiatórios que recusar dar-nos uma resposta fechada para encerrar um
pretendem apenas sossegar a perplexidade perante um problema, Van Sant solicita uma problematização de ca-
comportamento violento incontrolável. Nietzsche de- ráter mais filosófico.
fendeu que o nascimento da tragédia resulta da fusão do Tylksy evoca o mito do Minotauro, adaptando-o à rea-
espírito Apolíneo e o Dionisíaco. Se o primeiro representa lidade contemporânea - os corredores infindáveis e labi-
a moderação do sujeito e uma ética que respeita e não in- rínticos onde os adolescentes se perdem e estão prestes
fringe as leis do mundo, o segundo representa os instin- a ser devorados pela besta, mas onde também se podem
tos, a potência das emoções: a ilusão e a beleza escondem transformar em carrascos.8 A besta pode bem ser a so-
o sombrio, o desmesurado da existência humana. É no ani- ciedade, mas é dessa sociedade que nascem os que a
quilamento da aparência que o indivíduo se identifica com combatem e os que são engolidos por ela. Esta imagem
a vida em toda a sua exuberância para revelar a essência antropofágica reforça a importância do agir do corpo so-
do mundo. Sem retórica, sem lógica. É a disformidade que bre o mundo, uma luta física permanente por uma ética
se manifesta6. e por uma liberdade individual, uma questionação da
Aparentemente, são a arbitrariedade e o vazio social ordem social. Dessa necessidade ou insolência profun-
que se manifestam na exuberância dos actos insanos dos damente humanas (a hybris da tragédia grega) resulta
dois rapazes. Elephant não é um filme sobre o que trans- o sofrimento materializado em atos cometidos contra
forma dois adolescentes em assassinos. É uma reflexão os corpos. Alex e Eric são os heróis trágicos em conflito
sobre as pequenas coisas do quotidiano que podem des- com a ordem do Estado (representada aqui através de
troçar o interior de um ser humano levando-o a gestos uma das suas instituições mais importantes, a escola),
mas sendo um conflito insolúvel inevitavelmente arrasta
as personagens para a destruição. E no final, não existe
4  O corpo e a identidade do ator confundem-se com os da personagem: o
nenhuma purga ou libertação. •
nome da personagem é o mesmo do actor, as roupas e a maquilhagem que
usam são as que os actores usam no seu quotidiano.
5  McKibbin, Tony. “Too Cool for School: Social Problems in Elephant”.
Senses of Cinema, 2004. 7  Goldhill, Simon. Reading Greek Tragedy. Cambridge: Cambridge
www.sensesofcinema.com/contents/04/32/elephant.html 28/12/09. University Press, 1986:18-19.
6  Nietzche, Frederico. A Origem da Tragédia. Tradução de Álvaro Ribeiro. 8  Tylski, Alexandre.”Gus Van Sant et le Minotaure”. Cadrage. Août, 2003.
Lisboa: Guimarães Editores, 1988: 35-37. http://www.cadrage.net/films/elephant/elephant.html 31/12/2009

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análises

filme
Sobre
Cidade
de Deus
por António Cardoso
“Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.” Esta
simples expressão típica do povo Brasileiro e verbaliza-
da por Buscapé, um jovem habitante da favela que tem
como nome o título da segunda longa metragem de Fer-
nando Meirelles (baseada no romance de Paulo Lins com
o mesmo nome), reflecte o tema principal de “Cidade de
Deus.” A primeira situação em que vemos Buscapé - en-
curralado entre criminosos e polícia - dá a entender de
forma puramente visual o dilema com que ele se depara
constantemente e do qual não consegue escapar: colo-
car-se ao lado da polícia e arriscar ser morto pelos crimi-
nosos, ou juntar-se a estes correndo o risco de sofrer as
mesmas consequências pelas mãos da autoridade.

100
sobre cidade de deus

Outra ferramenta constantemente utilizada em “Ci-


dade de Deus” para expor informação é o voice-over, o
qual tem o mérito de restringir toda a acção do filme ao
ponto de vista observador e algo distante de Buscapé.
Sentindo-se ele próprio um outsider dentro de um mundo
violento e claustrofóbico do qual ele tenta a todo o custo
sair, Buscapé é um protagonista com o qual nos é parti-
cularmente fácil identificar. Através deste voice-over, as
várias personagens e as suas histórias particulares - as
quais estão ligadas entre si através da acção principal, a
história de Buscapé - ao longo de duas décadas vão-nos
sendo apresentadas durante o filme, sendo deste modo
criada uma narrativa não-linear que nos mantém envol-
vidos durante mais de duas horas.
Sendo o principal motor da acção deste argumento, a
vida de Dadinho (mais tarde Zé Pequeno) é desenvolvi-
da no ecrã - sob o olhar e lente fotográfica de Buscapé -
desde a sua infância e início de carreira como assaltante,
passando pela sua subida ao trono como traficante de
droga da favela, até, por fim, à sua morte. Em paralelo,
fortemente influenciada em vários pontos pela acção de
Zé Pequeno (envolvendo em particular a maquina foto-
gráfica oferecida por Bené, o seu braço direito, a Busca-
pé), a história do nosso jovem protagonista - a tentativa
contínua de fuga a uma vida de crime e, a certo ponto,
a própria incapacidade de entrar nela - é seguida na
primeira pessoa. Ironicamente, mas talvez sem grande
surpresa, a queda final de Zé Pequeno tem como con-
Apesar de ser visto por muitos cineastas e críticos de ci- sequência directa o salto de Buscapé para um início de
nema como um método demasiado óbvio de exposição, carreira como fotógrafo.
em “Cidade de Deus” o flashback é utilizado copiosa- A indecisão entre as duas últimas fotografias (exami-
mente e de modo extremamente eficiente, revelando à nadas à lupa) por parte de Buscapé - uma mostrando o
audiência informação previamente retida com o objec- embolso por parte da polícia do dinheiro acumulado por
tivo - sem dúvida alcançado - de criar suspense ao longo Zé Pequeno através dos seus negócios ilegais e a outra
do desenrolar da história. Bons exemplos são os homi- evidenciando o homicídio deste (cometido pelos “Caixa
cídios cometidos por Dadinho, na altura uma criança a Baixa,” um gang de crianças no início das suas vidas de
iniciar a sua vida de assaltante, e a repetição da morte delinquência) - e a sua escolha da segunda em detrimen-
do segurança do banco, desta vez encenada do ponto de to da primeira são mais um exemplo visual de outro dos
vista do seu filho (na altura em que este, após uma pri- temas do filme de Fernando Meirelles: o sensacionalis-
meira tentativa falhada, acaba por vingar o seu pai) por mo da comunicação social e a ameaça de uma polícia cor-
Mané Galinha, um honesto ex-militar e habitante da fa- rupta, que contribuem para a perpetuação da imagem da
vela. Por outro lado, o longo flashback inicial durante os favela como um núcleo de crime (devido à promoção
anos sessenta, quando Buscapé era ainda uma criança, involuntária de uma educação errada para os seus habi-
permite-nos - sem quebrar o ritmo da acção - assimilar tantes mais novos). Esta mesma perpetuação é tornada
as motivações das personagens principais desde o início óbvia pela última cena do filme, na qual observamos com
das suas vidas e de certo modo adivinhar as suas acções alguma inquietação os “Caixa Baixa” a deslocarem-se em
futuras. No final desta viagem ao passado torna-se mais grupo pelas ruas de uma “Cidade de Deus” temporaria-
ou menos claro que Buscapé sonha com uma carreira mente destronada. •
como fotógrafo, e Dadinho como criminoso.

101
a ficção que ja foi realidade
uma publicação da Associação Portuguesa
de Argumentistas e Dramaturgos

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