Você está na página 1de 3

DIGNIDADE PROFISSIONAL

István Orkény

Eu sou um carácter forte!

Sei dominar-me.

Não o deixava transparecer, mas estavam em jogo o trabalho de longos anos, o


reconhecimento do meu talento, todo o meu futuro.

– Sou um artista imitador – disse.

– O que é que sabe? – perguntou o director.

– Imito o canto dos pássaros.

– Infelizmente – fez um gesto de renúncia com a mão –, isso já passou de moda.

– Como? O arrolhar da rola? O chilrear do milheiro nos caniçais? O gorjeio da codorniz? O grito

da gaivota? O cantarolar da cotovia?

– Passou – disse o director aborrecido.

Aquilo magoou-me. Mas penso que não o mostrei.

– Adeus – disse eu com cortesia, e saí a voar pela janela aberta.

[in Histórias de 1 minuto, vol. 1, trad. de Piroska Felkai, Cavalo de Ferro, 2004]
Mecânica Popular

De Raymond Carver, traduzido por Carlos Santos

Naquele dia, logo de manhã, o tempo mudou e a neve começou a derreter-se em água suja.

Escorria pela janela, à altura dos ombros, voltada para as traseiras. Carros enlameados

passavam na rua onde já começava a escurecer. Dentro de casa também já estava a ficar

escuro.

Ele estava no quarto, a meter roupa dentro de uma mala de viagem, quando ela chegou à

porta.

- Estou contente. Estou contente por partires, - gritou ela. – Estás a ouvir?

Ele continuou a pôr a suas coisas dentro da mala.

- Filho da puta. Estou tão contente por te ires embora. – Começou a chorar. – Tu nem

consegues olhar-me na cara, pois não?

Depois, reparou na fotografia do bebé em cima da cama e pegou nela.

Ele olhou para ela e ela limpou os olhos e encarou-o fixamente antes de se virar e regressar à

sala.

- Traz cá isso, - disse ele.

- Pega nas tuas coisas e põe-te a andar, - disse ela. Ele não respondeu. Fechou a mala, vestiu o

casaco e olhou à roda do quarto antes de apagar a luz. A seguir, dirigiu-se à sala.

Ela estava de pé, à entrada da pequena cozinha, com o bebé ao colo.

- Quero o bebé.

- Estás louco?

- Não, mas quero o bebé. Vou mandar alguém buscar as coisas dele.

- Tu não vais tocar no bebé, disse ela.

O bebé tinha começado a chorar e ela afastou-lhe o cobertor da cabeça.

- Oh, oh, - exclamou ela, olhando para o bebé.

Ele aproximou-se.

- Por amor de Deus, - disse ela. Deu um passo atrás, para dentro da cozinha.

- Quero o bebé.

- Põe-te na rua, - gritou ela. Voltou-se e segurou o bebé com mais força, num canto por detrás

do fogão.
Mas ele aproximou-se. Estendeu os braços por cima do fogão e agarrou no bebé.

- Larga-o, - disse ele.

- Vai-te embora, vai-te embora – gritou ela.

O bebé tinha o rosto vermelho de chorar. Durante a briga, atiraram ao chão um vaso que

estava pendurado atrás do fogão.

Ele encurralou-a contra a parede, tentando abrir-lhe os braços. Agarrou no bebé e puxou-o

com toda a força.

- Larga-o – repetiu ele.

- Não faças isso, - disse ela. – Estás a magoar o bebé.

- Não estou nada a magoar o bebé, - respondeu ele.

Não entrava claridade nenhuma pela janela da cozinha. No lusco-fusco, tentava abrir-lhe os

dedos com uma das mãos, enquanto com a outra garrava o bebé que gritava por debaixo dum

braço, junto ao ombro.

Ela sentiu os dedos abrirem-se. Sentiu o bebé a afastar-se dela.

Não gritou, no momento em que as mãos se abriram.

Mas ela havia de ficar com o bebé. Agarrou o outro braço do bebé, segurou-o pelo pulso e

puxou-o para trás.

Mas ele não o deixou ir. Sentiu o bebé escorregar-lhe das mãos e puxou para trás com toda a

força. Deste modo, a questão ficou resolvida.

Da obra De que falamos quando falamos de amor, publicado pela Editorial Teorema

Você também pode gostar