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A pista e a razão: notas sobre

o gênero policial em Ricardo Piglia1

Júlio Pimentel Pinto

A história é um pesadelo de que tento despertar.


James Joyce
A história é o único lugar em que consigo
me aliviar do pesadelo de que tento despertar.
Ricardo Piglia

I.
Inúmeras vezes, Ricardo Piglia, o historiador, defendeu a história como
“o lugar em que as coisas podem mudar e se transformar. Nos momentos em
que parece que nada muda, que tudo está enclausurado e que o pesadelo do
presente parece eterno, a história mostra que houve situações iguais,
enclausuradas, nas quais se terminou por encontrar uma saída. Os rastros do
futuro estão no passado, o fluir manso da água da história gasta as pedras
mais duras.” (PIGLIA, 1993, p. 140)2
Outras tantas vezes, Ricardo Piglia, o crítico, escreveu ou falou sobre o
gênero policial, situou-o no centro da literatura do século XX e caracterizou-o
como uma metáfora das relações sociais. Mais de uma vez, Ricardo Piglia, o
ficcionista, disse que, ao escrever, “enfrenta enigmas, reconstrói fatos,
recolhe testemunhos, faz hipóteses”. Ou seja, percorre passos do relato
policial. De fato, certas matrizes do policial são sempre visitadas nos seus
romances e contos, de forma explícita, como em Dinheiro queimado, ou de
forma alusiva, como em Respiração artificial. Neles, assistimos a alguns
movimentos regulares: busca de pistas, construção de estratégias de
decifração, reconhecimento das diferentes vozes e perspectivas, combinações
de dados, construção de laços entre passado e presente, exercício da razão,
montagem de ensaios de compreensão, sintetização numa forma narrativa.
Mas, ao construir suas “narrativas policiais”, como Piglia concebe esse
lugar central que lhes atribui no fazer literário? Que concepção de literatura e
de seu papel no XX essa associação revela? Que diálogos Piglia estabelece
entre os “policiais” que escreve e registros clássicos do gênero? Ao perceber o
presente vivido por meio de uma espécie de “paradigma indiciário”, como
Piglia representa o passado, cria seus precursores e inventa a trama de
relações que suporta sua escritura e a vincula às tradições literárias
argentinas, por exemplo, de Borges e de Arlt? Como a literatura e a história,
formas narrativas distintas mas aparentadas, se encontram na escritura de
Piglia? Que verdade, afinal, se busca?
As investigações em seus livros muitas vezes respondem ao impulso da
curiosidade que, por sua vez, é ativada por um evidente desejo de verdade. A
verdade, porém, numa demostração de consciência rara em romances

1
Este texto foi originalmente publicado em Luiz Carlos Travaglia. (org.). Encontro na
linguagem. Estudos lingüísticos e literários. Uberlândia: EDUFU, 2006, p. 167-174.
2
Ricardo Piglia. Crítica y ficción. Buenos Aires, Fausto, 1993. p. 140.
2

policiais, sempre surge como relativa, conjuntural: sabe-se que não é


absoluta. Mais do que uma crítica à justiça e a seus erros, há o
reconhecimento da distinta perspectiva que orienta cada tratamento. Esse
talvez seja um dos diferenciais da narrativa policial de Piglia, cujo parentesco
possível é com alguns escritores europeus do gênero, como o espanhol Manuel
Vázquez Montalban ou os sicilianos Leonardo Sciascia e Andrea Camilleri.
Enxerga-se a variedade e a provisoriedade das verdades, e isso define o
método de análise e denuncia seu caráter de construção, e não de revelação.
Como em toda investigação, metaforiza-se o olhar, atribuindo-lhe o sentido
de buscar o detalhe para, a partir dele, chegar à verdade. Mas, em Piglia, o
olho inicia o processo de imaginação, fazendo com que brotem idéias sobre o
que pode ter acontecido num dado momento, num certo local. Recria-se,
imaginariamente, como cenário, uma situação passada. Construido o
contexto, é necessário achar o lugar de cada um dos que participaram da
cena, entender sua perspectiva, reconhecendo a variedade de olhares que
ocorre em qualquer situação. Ao investigador não basta, insiste Piglia,
estabelecer uma verdade e supô-la absoluta. Deve somar as várias verdades,
extraídas das distintas perspectivas, e compor uma verdade capaz de articular
esses muitos olhares. Em outras palavras, deve acrescentar ao cenário antes
montado uma linha de horizonte, combinação e mescla possível de muitas
verdades.
Interessante é que a noção repisada de verdade plena e incontestável
das histórias policiais não é substituida, nos livros de Piglia, por um
relativismo pleno, que aceita qualquer olhar e o toma por distinto, sem
hierarquizações ou sem limites. A linha do horizonte presta-se a orientar, é o
ponto para onde todos os olhares podem convergir e que os baliza. Seu
substrato é humano, ou seja, supõe variedade e mobilidade, respeita a
interferência do acaso, mas também inclui regras e valores universais e
universalizáveis. A verdade, afinal, mesmo quando criada ou entrevista na
ficção, associa-se a critérios e convenções de verossimilhança, que
estabelecem as referências de caracterização da narrativa. A própria
definição de ficção, para Piglia, remete a esse vínculo: “Interessa-me
trabalhar essa zona indeterminada onde se cruzam a ficção e a verdade. Em
primeiro lugar, porque não há um campo próprio da ficção. De fato, pode-se
ficcionalizar tudo. A ficção trabalha com a crença e, nesse sentido, conduz à
ideologia, aos modelos convencionais da realidade e, claro, também às
convenções que tornam verdadeiro (ou fictício) um texto. A realidade é tecida
de ficções.”3
Ao evitar o exagero lógico de boa parte das histórias policiais, os
policiais de Piglia expõem limitações, contradições e enganos de todos,
investigados ou investigadores. Essa explicitação é uma demonstração da
preocupação compreensiva – logo, interpretativa – e, num certo sentido, do
caráter de denúncia social da narrativa: realça as ambigüidades que cercam
as pessoas e suas relações, define a condição de verossimilhança do texto. Do
ponto de vista narrativo, interrompe-se o ritmo habitual das histórias policiais
(que caminham invariavelmente para um desfecho elucidador e o privilegiam)

3
idem, p. 16.
3

e recusa-se a submeter o fechamento do texto à expectativa de um final


eloqüente ou decisivo. Reforça-se, dessa maneira, o caráter precário de toda
conclusão, de seus resultados ou implicações.
No lugar da linearidade lógica que marca a maioria das tramas policiais,
Piglia propõe um raciocínio “labiríntico”. Repete-se que idéia boa é idéia
móvel e que não há raciocínio que não padeça de falta de lógica e que não
sofra o impacto do tempo e de suas vicissitudes. Em vez dos ambientes
sórdidos em que transcorre a ação especialmente do romance negro
americano, Piglia oferece outro labirinto: o dos impasses intelectuais e das
dúvidas históricas. A matriz do policial convencional é redefinida, seja para
percebê-lo em suas variações e para ampliar as leituras possíveis (variando e
evitando o clássico protocolo de leitura do romance policial, que leva o leitor
à busca de explicações), seja para conectá-lo mais direta e explicitamente à
experiência histórica sobre que ele pretende refletir.

II.
Num conhecido ensaio, publicado em Mitos, emblemas, sinais4, Carlo
Ginzburg observa que o paradigma de conhecimento que o Ocidente privilegia
desde finais do XIX é fundado em referências indiciárias. O historiador torinês
parte da constatação de que, nesse momento, a semiologia médica assumiu
posição central nas indagações epistemológicas e que não é casual o fato de
três médicos ganharem destaque em áreas aparentemente tão distintas: a
nascente psicanálise, a história da arte e a literatura policial. Sigmund Freud,
Giovanni Morelli e Arthur Conan Doyle, independentemente de seus trabalhos
específicos, lançaram luzes sobre os detalhes, os traços aparentemente
baldios ou insignificantes, e, por meio de uma estratégia racionalizada de
exploração das pistas que esses detalhes deixavam, formularam um método
de construção de conhecimento, não importando se se tratava de notar os
impulsos do inconsciente, de redefinir a atribuição de obras de arte ou de
identificar um criminoso.
A proposta narrativa de Piglia não chega a enunciar propriamente um
método ou a ratificar o paradigma indiciário de que fala Ginzburg. Na prática,
a intenção é a de impedir que se estabeleça qualquer fixidez ou linearidade
na maneira de investigar ou de refletir. Em lugar de “método”, talvez seja
melhor, para esses policiais, falar em postura crítica, que permite
dimensionar a variedade de vozes e olhares e, por meio de sua mesclagem,
transpor o ocorrido no passado numa outra situação, traduzir para outro
código e sintetizar as verdades possíveis. Procedimento crítico não por acaso
assemelhado ao da história, como o próprio Ginzburg destacou em ensaios
posteriores ao citado, identificando a metodologia antes mencionada a uma
espécie de itinerário crítico.5
Dos policiais de Piglia surge a condição anfíbia do crítico, que é
historiador e é ficcionista, que se metaforiza na figura do detetive. Procura o

4
Edição brasileira: São Paulo, Companhia das Letras, 1989 (original: 1986).
5
Por exemplo, em ensaios de Olhos de madeira (São Paulo, Companhia das Letras, 1998;
original: 2001), Relações de força (São Paulo, Companhia das Letras, 2000; original: 2002) ou
Nessuna isola è una isola (Milão, Feltrinelli, 2000).
4

passado, identifica “os desajustes do presente” e sugere a crítica social: “O


crítico é o que registra o caráter inatual da ficção, seus desajustes no
presente. As relações da literatura com a história e com a realidade são
sempre elípticas e cifradas. A ficção constrói enigmas com os materiais
ideológicos e políticos, os disfarça, os transforma, os põe sempre em outro
lugar. (...) muitas vezes vejo a crítica como uma variante do gênero policial.
O crítico como detetive que trata de decifrar um enigma ainda que não haja
enigma. O grande crítico é um aventureiro que se move entre os textos
buscando um segredo que às vezes não existe. É um personagem fascinante: o
decifrador de oráculos, o leitor da tribo. Benjamin lendo a Paris de
Baudelaire, Lönrot que segue para a morte porque acredita que toda a cidade
é um texto”.6
Marcelo Maggi, personagem de Respiração artificial, resume esse fazer
crítico e o traduz em atitude: depois de enxergar a irrealidade da Argentina
dos anos 1970 e o caráter quase ficcional das ações do Estado, parte em
viagem, aventura-se por outros lugares do mundo. Aventura-se sobretudo por
outros tempos, na busca da decifração, da compreensão do enigma do
presente que a história pudesse oferecer. A positividade de sua busca, porém,
diz Emilio Renzi em conversa com o narrador, é ilusória, sua viagem é
paródica. Para Renzi, não há, a princípio, saída: a história tornou-se
definitivamente o pesadelo joyceano do qual não conseguimos despertar e a
aventura crítica de Maggi é uma crença extemporânea de um pensador
inatual.7 Mas o mesmo Renzi, reconhecido e assumido alter-ego de Piglia,
segue Maggi, a princípio inadvertida e depois intencionalmente. O fascínio
que o leva ao passado talvez venha da impossibilidade de suportar o presente;
a vontade de investigar talvez revele a compulsão identitária que move os
latino-americanos, e especialmente os argentinos, desde o século XIX. E Renzi
recebe de Maggi – o passado falando com o presente, o presente deixando-se
ouvir o passado – a mensagem cifrada que reage à formulação niilista de Joyce
e repõe o lugar da história e do crítico.
Herdeiro de Maggi como Piglia é herdeiro de Borges e de Arlt, Renzi
inicia sua própria aventura, percorre documentos, estabelece relações entre
temporalidades e entre pessoas, investiga a origem de si e de tudo, visita e
inventa tradições, elege precursores, reinstitui memórias, percebe sentidos
possíveis nas trajetórias erráticas de indivíduos e de coletivos. Exerce, em
suma, a função crítica para encontrar alguma possibilidade de refundação,
algum espaço de instalação do novo. História e ficção encontram-se e
dialogam nesse trabalho crítico e investigativo, nesse policial peculiar que
Piglia construiu, explorando precisamente o ponto teórico de aproximação
entre história e literatura policial. Nele se dão os movimentos e variações da
narrativa policial, os enfoques epistemológicos que subterraneamente ela
propõe, as possibilidades de e os limites para tomá-la como exemplar da
produção de qualquer narrativa, o alcance da metáfora social que encerra.

6
Ricardo Piglia. Crítica y ficción. Buenos Aires, Fausto, 1993. p. 20.
7
Ricardo Piglia. Respiração artificial. São Paulo, Iluminuras, 1987. p. 103 (tradução: Heloisa
Jahn; original: 1980).
5

Da pista à razão, entre a pista e a razão, com a pista e com a razão: por
esse caminho surgiram os temas e os dilemas que marcaram a narrativa
policial do século XX, especialmente aquela que, pela matriz européia, evita o
excesso de violência e de ação e dedica-se mais atentamente aos
procedimentos de desvendamento, à constituição de formas compreensivas, à
formulação de uma possível, embora provisória, certamente consensual e
conjuntural, verdade. Da pista à razão, entre a pista e a razão, com a pista e
com a razão, Piglia afirma o gênero policial como central e inevitável: reúne
história e ficção, associa temporalidades, define o lugar privilegiado do
crítico. Afinal, “Definitivamente, não há nada além de livros de viagem ou
histórias policiais. Narra-se uma viagem ou se narra um crime. Que outra coisa
se pode narrar?”8

8
Ricardo Piglia. Crítica y ficción. Buenos Aires, Fausto, 1993. p. 21.

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