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“...ASSENTOU-SE UM POUCO COM O ROSTO PARA O RIO” (S. Inácio, Aut.

30)
“Uma vez ia, por devoção, a uma igreja que estava mais de uma milha de Manresa.
Creio que se chama São Paulo, e o caminho vai junto do rio.
Indo assim em suas devoções, assentou-se um pouco com o rosto para o rio, o qual ficava bem em baixo.
Estando ali assentado, começaram a abrir-se-lhe os olhos do entendimento.
Não tinha visão alguma, mas entendia e penetrava muitas verdades, tanto em assunto de espírito, como de
fé e letras. Isto, com uma ilustração tão grande que lhe pareciam coisas novas.
Não se podem declarar os pormenores que então compreendeu, senão dizer que recebeu uma intensa
claridade no entendimento. (Nisto ficou com o entendimento de tal modo ilustrado, que lhe parecia ser
outro homem e ter outro entendimento, diferente do que fora antes)” (S. Inácio, Aut. 30).

Este texto da Autobiografia de S. Inácio nos remete à experiência mais


importante de sua vida. Ele que havia buscado o sentido da sua vida nas honras
do mundo, e que pouco a pouco foi rompendo com os moldes de uma sociedade
que determinava seu destino, encontra-se na solidão de seu caminho, com uma
manifestação de Deus impossível de abarcar.
Junto ao rio Cardoner este inquieto caminhante “assentou-se um pouco com o rosto
para o rio”.
Para S. Inácio, a experiência da estrada lhe era familiar e cotidiana: era lugar de encontro, escuta,
reconhecimento e revelação. No espaço entre a estrada e o rio dá-se a interiorização do caminho do
Amor de Deus rumo ao ser humano. Esta interiorização é abertura, é dilatação do coração na fé, que
parte sempre de Deus (Fonte do rio da vida) e volta para Deus (rio que mergulha no Mar).
No fundo do seu coração, S. Inácio acolhe, escuta e reconhece o murmúrio da voz de Deus, que, como
um rio calmo e ao mesmo tempo vivaz, o acompanha da nascente ao mar aberto.
Na música da torrente que se precipita ressoa a alegre certeza: “Eu me tornarei o mar!”.
O rio pode e acaba se tornando o mar. A água menor que se movimenta é atraída em direção à água
maior do Oceano. Precipitando-se sempre para a frente, o rio se move através de mil obstáculos, e seu
movimento encontra a sua finalidade e o seu repouso quando alcança o mar.
A experiência de S. Inácio à margem do rio Cardoner o conduz à outra fonte, aquela que brota do
coração, e que estava ressequida, impedindo-o de reconhecer o murmúrio da água viva.
“Uma água viva murmura dentro de mim e me diz: Venha para o Pai” (S. Inácio de
Antioquia)

Algo disto é o que todos e cada um vivemos ao percorrer os caminhos deste


mundo. Uma e outra vez em nossas vidas, depois de haver buscado em vão por
rincões e encruzilhadas o sentido de nossas existências, nos “assentamos um pouco
com o rosto voltado para o rio da história”.
Ali deixamos de buscar nosso próprio caminho para deixar que Aquele que é o Caminho, nos busque;
ali deixamos de perguntar por nossas inquietudes para deixar que Aquele que é a Verdade, nos inquiete
com suas perguntas;
ali deixamos de viver para nós mesmos para deixar que Aquele que é a Vida comece a viver em nós,
para comunicar uma vida abundante aos demais.

Caminhando por estradas desconhecidas ou sentados às margens de um riacho


ruidoso, podemos atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou
reconhecer, através do murmúrio das águas, “vozes novas”, e, ao mesmo
tempo, inexplicavelmente familiares. Em outras palavras, pode acontecer que
nos sintamos conduzidos ou atraídos para lugares diferentes, conhecimentos
novos, experiências surpreendentes...
Tal como o peregrino basco, iluminado por Deus às margens do rio Cardoner, nós não podemos nos
deter para saborear da experiência maravilhosa do amor de Deus manifestado a cada um de nós.
O caminho não se deteve para Inácio e não se detém para nenhum de nós. Ele não obteve ali todas as
respostas; poderíamos dizer que foi precisamente uma imensa explosão de perguntas que o fizeram
manter-se sempre caminhando e buscando o que mais e melhor podia fazer pelo serviço aos outros.
Segundo a tradição oriental, quanto mais baixo estiver o corpo, mais feliz fica a
mente.
O ocidente deseja que as pessoas pensem no céu, e alonguem a cabeça no ar
para fazê-las olhar para cima e ver as nuvens. O oriente sabe que a melhor
maneira de chegar ao céu é estar solidamente na terra, e por isso convida as
pessoas a se agacharem ou se assentarem. A postura cômoda, literalmente na
terra, é condição para a paz interior. As pessoas são devolvidas às fontes
terrenas.
Ao encontrar-se com a mãe-terra a pessoa é impulsionada para as experiências
transcendentais.
Quanto mais proximidade e intimidade com a terra mais profunda é a
experiência espiritual.

Na Índia, quando as pessoas se levantam, sua primeira oração é juntar as mãos e pedir perdão à Mãe
Terra por pisá-la. Que não haja ofensa no contato necessário, mas intimidade.
Em casa, as pessoas sempre andam descalças. O pé nú acaricia a terra que pisa, agradecendo o apoio e
mostrando sua confiança. Cada passo deve ser uma oração e cada caminhar é um rosário de contas que
marcam os caminhos da vida com a fé do caminhante.
Dá força e inspiração sentir-se junto à terra, palpar sua firmeza, medir sua imensidade.
É o altar cósmico sobre o qual celebra-se diariamente a liturgia da vida.

Quando o amor nos habita tudo se torna sagrado. Não há “Terra Santa”, há
uma maneira santa de caminhar sobre a terra. É a nossa maneira de caminhar
sobre a terra que a torna sagrada.
É nossa maneira de habitar nossa casa que faz dela um templo.
A terra não só dá segurança e sustenta o ser humano, mas também enche de
alegria o seu coração, porque o seu contato é mais do que um contato físico – é
uma presença viva.
Quando o ser humano não percebe o seu parentesco com a terra, vive numa casa-prisão cujas paredes
lhe impedem uma comunhão cósmica.
Quando sente a presença de Deus em todas as coisas, seu coração se emancipa e se dilata, sua mente se
abre, seus horizontes se ampliam... O universo passa a ser o seu grande lar e o “lar é lá onde está o
coração”. E o seu primeiro lar, a terra, é onde ele encontra o coração de Deus. Em tudo pode-se
vislumbrar um lampejo da divindade.

Acreditar nisso desperta em nossos corações uma grande consolação e uma


enorme identificação com tudo o que vive e cresce.
“Abaixo dos vulcões, ao lado das montanhas cobertas de neve, entre os enormes lagos, a floresta
chilena cheirosa, silenciosa, emaranhada... Eu me originei desta paisagem, desta lama, deste
silêncio, para vagar, para sair cantando pelo mundo” (Pablo Neruda).
“Minha profissão é estar sempre alerta para encontrar Deus na natureza, conhecer os lugares onde
Deus está à espreita, assistir a todos os oratórios e todas as óperas... na natureza” (John Muir).

Textos bíblicos: Atos 16,13-16 Jo. 7,37-39 Ez. 47,1-12

Na oração: Acolher a Palavra, para quem tiver a coragem de assentar-se ao longo do “rio”, significa aceitar a
abertura do coração e deixar desabrochar a vida nova que vem de Deus.
Na oração, mergulhamos no “rio” que corre, descemos às águas do amor do Pai, deixamo-nos mo-
lhar pelas palavras do Filho e recebemos a força e a luz do Espírito.

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