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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

DO ÓPTICO AO HÁPTICO
TRÊS CASOS EXEMPLARES

Joana Tomé

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA ARTE E DO PATRIMÓNIO

2012
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE BELAS-ARTES

DO ÓPTICO AO HÁPTICO
TRÊS CASOS EXEMPLARES

Joana Tomé

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA ARTE E DO PATRIMÓNIO


Dissertação Orientada pelo Prof. José Carlos Francisco Pereira

2012
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador, Professor José Carlos Pereira, pela orientação, paciência,
interesse e prontidão que teve sempre para comigo e o meu trabalho.
Agradeço ao Professor Doutor Fernando António Baptista Pereira pelo profícuo espaço
de discussão e aprendizagem, e ao CIEBA pela oportunidade de me ver envolvida nas
conferências da Arte & Género, tema que tão me é caro.
Agradeço ao Professor Doutor José Fernandes Pereira, pelo ânimo e incentivo, desde a
primeira aula, e por ter acreditado sempre no meu trabalho.
Agradeço, em última instância, à minha família, pelo amor, preocupação e carinho com
que me recebem, sempre que Lisboa não o faz.
RESUMO

Propõe-se investigar uma série de obras de Fernanda Fragateiro, Ana Vieira e Helena
Almeida, à luz do trabalho teórico de Deleuze e Irigaray, com o intuito de se poder esboçar,
desse modo, um quadro de análise adequado a uma subjectividade feminina e, em última
análise, a uma subjectividade feminina da mulher artista.

PALAVRAS-CHAVE: artistas contemporâneas portuguesas, feminismo, Deleuze,


Irigaray, háptico, óptico, simulacro, rizoma, diagrama

2
ABSTRACT

The present dissertation is intended to investigate art works from Fernanda Fragateiro,
Ana Vieira and Helena Almeida in light of Deleuze’s and Irigaray’s theoretical work, in hopes
that such investigation will provide the adequate framework for a female subjectivity and,
above all, a female artist subjectivity.

KEYWORDS: portuguese contemporary artists, feminism, Deleuze, Irigaray, haptic,


optic, simulacrum, rhizome, diagram

3
ÍNDICE

INTRODUÇÃO

Considerações Iniciais p. 6

O quadro teórico p. 7

Deleuze em contexto p. 8

O projecto estético em Deleuze p. 10

A heterogénese da obra de arte p. 11

PARTE I: Deleuze e Irigaray – Uma Reconciliação p. 13

Leituras feministas de Deleuze p. 13

A superação do falogocentrismo p. 14

a) O Rizoma p. 15

b) A Morfo-lógica p. 16

A mulher-simulacro p. 19

A diferença e o devir-mulher p. 23

a) Alice: o arquétipo do devir-mulher p. 24

O Corpo Sem Órgãos p. 27

As repercussões na Arte p. 28

PARTE II: O Háptico em Fernanda Fragateiro p. 30

A recusa do sistema perspéctico clássico por meio do háptico p.30

O carácter emancipador do háptico na teorização

da sexualidade feminina p. 33

O derrubar da lógica falogocêntrica subjacente à

perspectiva clássica p. 36

4
O carácter eminentemente nómada do espaço háptico p. 37

O espaço enquanto possibilidade p. 42

PARTE III: O Simulacro em Ana Vieira p. 44

A Caverna-Ventre p. 44

O simulacro na sua condição feminina p. 45

O feminino liberto dos constrangimentos da forma p. 47

A evasão ao Logos p. 50

A reminiscência da Caverna p. 53

PARTE IV: Helena Almeida, o Diagrama e a queda da Pintura p. 56

A queda da Narrativa p. 57

O Diagrama p. 62

A deformação p. 65

O reverso da Pintura p. 70

Contra a Interpretação p. 73

Corpo aberto p. 76

O rizomático conceber de um entre p. 77

CONCLUSÃO p. 81

BIBLIOGRAFIA p. 89

ANEXOS p. 94

5
INTRODUÇÃO

Considerações Iniciais

O presente trabalho de investigação tem com fim último a leitura e análise de um


conjunto de obras de artistas portuguesas contemporâneas à luz da filosofia de Gilles Deleuze
(Paris, 1925 – 1995) e das teorias feministas da diferença sexual com particular incidência na
figura de Luce Irigaray (Bruxelas, 1932).
Perscrutando, no presente momento introdutório, o quadro teórico a orientar a
investigação, investigar-se-ão as linhas gerais da produção teórica de Deleuze, e o contexto das
mesmas, com especial atenção ao projecto estético do autor.
Ensaiar-se-á, no capítulo seguinte, uma conciliação de Deleuze com as teorias
feministas da diferença sexual e do seu reflexo – e importante contributo – para uma teoria da
arte e prática artística contemporâneas. Esboçar-se-á, num primeiro momento, uma atenta
reflexão cuidando dos pontos de contacto entre os postulados essenciais da filosofia de
Deleuze e os postulados outros da teoria feminista da diferença sexual. Perscrutar-se-ão
cruciais figuras da crítica feminista, quais Irigaray, no seu empenho numa firme defesa da
diferença sexual, na qual o feminino se olha como força capaz de romper com o eterno
retorno ao mesmo e aos seus clássicos outros. O legado de Deleuze tomar-se-á, neste ponto,
como contributo fulcral para a redefinição da subjectividade feminina liberta do sistema
hegemónico de pensamento polar e binário ao qual foi confinada pela filosofia ocidental. Já
num segundo momento, se perscrutarão os pontos em que os dois parecem divergir e colocar-
se-ão algumas questões e tensões fundamentais. A prioridade que estão dispostos a conceder
à elaboração de formas adequadas de representação da subjectividade – a diferença
conceptual e política em que se centra o devir-mulher – parece ser muito diversa. Encontra-se
por resolver a tensão entre, por um lado, o devir-mulher generalizado como pré-requisito de
todos os demais devires e, por outro, a chamada ao seu abandono por Deleuze,
aparentemente incompatível com as teorias feministas da diferença sexual que apresentam,
de modo idêntico, dificuldade em aceitar a noção deleuzeana de corpo sem órgãos, olhando-a
como reminiscente de uma posição historicamente associada à feminilidade enquanto marca
simbólica de ausência, que importaria ultrapassar.

6
Conduzir-se-ão, por fim, as principais linhas de argumentação dos dois momentos
anteriores, a um entendimento da diferença e, particularmente, da diferença sexual, como
possível afectação significativa da forma como pensamos a própria filosofia e, em última
instância, a teoria e prática artísticas. Aí estaremos finalmente em condições de levar a cabo a
análise dos objectos artísticos que se propõem nos capítulos seguintes.

O quadro teórico

Vem-se assistindo, no universo das artes plásticas e performativas, a um lançar de


sérios desafios à lógica falogocêntrica. Como se perscrutará em capítulos posteriores, à mulher
se liga a noção de simulacro; e o simulacro, implicando dimensão, profundidade e distância
que o Pai – o Logos – não consegue dominar, mostra-se heterogéneo, diferencial, sexualmente
diferente e isento de limites e medida, aproximando-se do trabalho de diversas mulheres
artistas: puro, sem limites, do devir e anómico. Este sensível de contornos femininos nunca
atingirá, como defende Irigaray (IRIGARAY, 1985b: p. 342), a perfeição do tipo, da forma,
carecendo, pois, de padrões de medida que lhe permitam ser pensado por analogia à Ideia;
ora, o trabalho marginal e marginalizado de muitas mulheres artistas contemporâneas é-o
precisamente na carência de um quadro teórico adequado à análise de uma arte criada por
mulheres: um imaginário que se deixe de encontrar mediado e medido pelo falo.
A intencionalidade dos trabalhos parece perder-se, em dadas ocasiões, num público
que os interpreta, condenatoriamente, como excesso ou que não os consegue interpretar de
todo, fazendo transparecer a inexistência de uma simetria no sistema de linguagem e lógica, a
par da cópia. Trabalhos desta índole vêem-se, deste modo, frequentemente silenciados ou
tomados como um esforço naive e embaraçosamente emocional: a manifestação de uma
morbidez pós-moderna ou uma romântica celebração de esquizofrenia (JUNO e VALE, 1991:
73). É neste âmbito que a presente análise de Deleuze oferece um contributo inesgotável e
inestimável: ela parece poder fornecer os quadros de análise de que se carece.
Assim, visaremos perscrutar um quadro de análise em cruciais figuras deleuzeanas,
quais o rizoma, o devir-mulher, o nomadismo filosófico, o háptico, o simulacro, o diagrama e o
corpo sem órgãos, que se desenvolverão em sede oportuna.
De notar é ainda a importância da presente noção de figuração: faz-se referência a um
modo de pensamento que evoca ou expressa uma fuga da visão falogocêntrica do sujeito; é
uma consideração politicamente informada de uma subjectividade alternativa. Tal elaboração

7
de considerações alternativas, de novos quadros, novas imagens, novos modos de
pensamento, mostram-se fulcrais num romper com o dualismo e a monológica do
falogocentrismo – são profundamente rizomáticos.

Deleuze em contexto

Figuras como a diferença, a repetição ou o simulacro, caras ao pós-modernismo,


apresentam-se de contornos caracteristicamente deleuzeanos e mostram-se cruciais a um
conjunto de práticas críticas, estratégicas e retóricas que visam desestabilizar noções quais a
da presença, identidade, progresso histórico, certeza epistémica e univocidade de sentido.
O pós-estruturalismo de base francesa deve bastante à revolução estruturalista em
Paris, entre a década de 1950 e a de 1960 (BLACKBURN, 1996), sendo fortemente influenciado
pelas leituras estruturalistas de Marx e Freud – como se notará na produção teórica de
Deleuze –, assim como pelos eventos marcantes que rodearam o Maio de 68. Parece, contudo,
não existir um verdadeiro corte com a modernidade, mas antes uma continuação da mesma
em moldes diversos.

A noção pós-moderna de diferença enquanto mecanismo de produção em detrimento


da identidade apresenta-se fulcral na obra de Deleuze e transversal à mesma, iniciando o seu
desenvolvimento em Nietzsche et la philosophie, de 1962 (DELEUZE: 2008), onde o autor
incumbe Nietzsche de uma oposição radical aos modelos de pensamento kantiano e hegeliano.
Neste sentido, se propõe um pensar contra a razão enquanto resistência à autoridade
auto-justificativa da razão kantiana (DELEUZE, 2008: p. 93); ou seja, a crítica da razão a que
procede Deleuze pretende-se simbiose entre o pensamento e aquilo que o força, tornando-a
uma questão de sensibilidade em detrimento de um auto-julgamento da razão segundo leis
por ela própria forjadas. O pensamento, incapaz, na óptica de Deleuze, de se auto-activar
pensando, deve submeter-se a uma violência que o fará entrar em movimento: a arte, a
ciência e a filosofia providenciarão, se transformativas e experimentais, tal violência.
Também a dialética hegeliana, estruturada pela negação e oposição de uma dada
identidade, é contraposta, em Deleuze, a uma diferença que se mostra princípio único da
génese da produção (DELEUZE, 2008: p. 157). A dialética existe num único plano lógico
enquanto a diferença se move entre planos e níveis e em direcções múltiplas; a negação é o
poder motor da dialética enquanto a diferença é pensada enquanto repetição da própria
repetição, qual eterno retorno nietzscheano: a diferença difere eternamente de si mesmo.

8
A sensação introduz, no entender deleuzeano, o aleatório no desenvolvimento do
pensamento oferecendo condições aleatórias e contingentes para o pensar, frustrando a
identidade lógica e posicionando o limite do pensar para lá de qualquer sistema dialético.
Evidencia-se o postulado deleuzeano, transversal a toda a obra do autor, da crítica do
pensamento representacional, do logos, da identidade, oposição, analogia e semelhança.
Deleuze dissolve, deste modo, o sujeito, fracturando a consciência em estados
múltiplos não atribuídos a um sujeito singular. Opondo-se à unidade representacional kantiana
do espaço e tempo, fundada na unidade formal da consciência, a individualidade não mais se
caracteriza, em Deleuze, por um eu ou ego, mas por um diferencial em permanente alteração
de configuração (DELEUZE, 1994: p. 246). O eu não mais se refere a uma unidade de
consciência mas a uma multiplicidade de efeitos decorrentes das qualidades intensivas que
povoam o espaço e o tempo. Postulando uma subjectividade de faculdades múltiplas, abraça-
se o involuntário destas e, por conseguinte, o empírico. A diferença condu-las aos seus limites
– o pensamento depara-se subitamente com o impensável, a sensibilidade perante o
imperceptível, e por aí adiante. Este fracturar e multiplicar do sujeito corrobora, em última
análise, a esquizoanálise proposta pelo autor: um promover da noção de esquizofrenia a
possibilidade de pensamento1.

As implicações sociais da dissolução deleuzeana do sujeito abordam-se em


profundidade no primeiro volume de Capitalismo e Esquizofrenia, Anti-Édipo (DELEUZE e
GUATTARI, 2004a). De efeito marcadamente performativo, forçando o pensamento no leitor, é
ele mesmo produção-desejante, cruzando Marx e Freud num trazer do desejo para o âmbito
social da produção e da produção para o âmbito inconsciente do desejo, em detrimento de
uma síntese reducionista de Marx e Freud – que opera sempre a sobreposição de um dos
autores em detrimento do outro – ainda embebida num pensamento representacional2.
Deleuze e Guattari pensam a sociedade enquanto série de territorializações, de
inscrições no corpo sem órgãos que trazem das sociedades primitivas um marcar do corpo. A
terra da tribo, o corpo do déspota do império e o capital do sistema capitalista mostram-se
três formas de corpo social encarregues da produção. As sociedade tribais marcam corpos em
cerimónias de iniciação por forma a que os produtos de um órgão sejam reconduzidos a um
clã, que é, por sua vez, misticamente reconduzido à terra. Fluxos materiais são, deste modo,
territorializados – reconduzidos à terra –, a fonte de toda a produção. Os impérios

1
Mostra-se fulcral, neste ponto, o contributo de Artaud; tal servirá, por fim, de base para o corpo sem
órgãos deleuzeano.
2
Veja-se, a título de exemplo, Louis Althusser ou Jacques Lacan.

9
reconduzem, por sua vez, a produção ao déspota, desterritorializando os fluxos materiais –
não mais os reconduzindo à terra: são imediatamente reterritorializados no corpo do déspota,
que assume crédito por toda a produção. O capitalismo é, por último, o radical
desterritorializar dos fluxos materiais que as prévias máquinas sociais haviam codificado na
terra ou no corpo do déspota. A produção é agora creditada ao corpo do capital; conectam-se
fluxos desterritorializados de trabalho e capital extraindo-se daí um excedente. Os órgãos
sociais e estatais são apropriados pelo capital e o humano torna-se secundário.
Deleuze e Guattari admitem uma inerente esquizofrenia no capital, consistindo esta,
porém, no seu limite externo, e é precisamente contra tal limite que o pensamento pode
submeter o capitalismo à crítica filosófica – por meio da esquizoanálise, numa apropriação do
palco da representação pela produção-desejante. Aqui se localiza o revolucionário potencial da
arte moderna e da ciência: um trazer do novo, fazendo circular fluxos sociais
desterritorializados sem que estes se reterritorializarem automaticamente em capital, qual o
capitalismo.

O projecto estético em Deleuze

No capítulo VII de Qu’est-ce que la Philosophie (DELEUZE e GUATTARI, 1991b),


apresenta-se um processo criativo descrito, por Deleuze e Guattari, a partir da formação da
obra de arte moderna, cujo fim último será a produção de signos que nos arranquem dos
nossos hábitos de percepção e nos lancem para as condições de criação.
Propondo uma estética de plano único, Deleuze empenha-se num reconciliar das duas
metades em que a cisão kantiana havia dilacerado a estética: a estética da sensação no
conhecimento e a estética da sensibilidade na arte. Ter-se-ia, por um lado, a estética
cognitiva/sensível, teoria da sensibilidade enquanto forma da experiência possível – a “estética
transcendental” em Crítica da Razão Pura (KANT, 1994) –; por outro lado, a estética artística, a
teoria da arte enquanto experiência possível, enquanto reflecção sobre a experiência real – a
“crítica do julgamento estético” na Critique of Judgment (KANT, 2008). Postulando uma
estética enquanto teoria do sensível, Deleuze reunifica estas duas metades. Para tal é
necessário que as condições da experiência se tornem condições da experiência real. Não se
pretende uma estética unificadora, que tome a diferença a partir de uma unidade
convergente, mas que a tome a partir de uma divergência primeira (GODINHO, 2007: p. 18),
determinando-se as condições da experiência real e não já da experiência possível. As

10
coordenadas em que habitualmente se pensam os elementos do sensível não mais aí cabem –
a significação, relação, interpretação ou representação não mais têm lugar.
A obra de arte moderna abandona, assim, o domínio da representação e torna-se
experimentação, implicando, deste modo, uma estética que recolhe a realidade do real: pela
arte e ontologia deleuzeana se chegará a uma heterogénese do mundo, a um caosmos –
génese do cosmos (Idem).

A heterogénese da obra de arte

Em Diferença e Repetição (DELEUZE, 2000), Deleuze apresenta como único problema


verdadeiramente estético a inserção da arte na vida quotidiana: a primeira deve ligar-se a esta
última, arrancando dela diferença.
O excesso, salto libertador, permite que quem devém – a criança, o louco, o artista –
exceda os estados perceptivos e as passagens afectivas do vivido. A percepção deve submeter-
se, deste modo, a uma mutação, deve passar por uma zona de devir, por este excesso, por
forma a autonomizar-se e a oferecer, em última análise, consistência a um plano. A forma de
pensar estética postulada por Deleuze, um pensar por sensações que se apresenta sem
objecto, sem referência, cria, afim de proceder a uma transmutação da percepção, novos
processos e exige um método segundo o qual se arrancam perceptos às percepções de objecto
e aos estados de um sujeito de percepção, e se arrancam afectos às afecções como passagem
de um estado a outro. O percepto distancia-se da percepção – o recebido, o percebido – na
medida em que não remete para um objecto, existe sem referência e sem sujeito, tornando
sensíveis as forças insensíveis que existem no mundo e nos afectam. Já os afectos, devires não-
humanos do homem, se mostram força que excede o sentimento e a afecção – são, a título de
exemplo, os tons e as cores na música e pintura, respectivamente.
Tal pensar estético isola, extrai, amplifica e cria um material expressivo que não se
encontra na memória ou na habilidade do artista mas depende, sim, de um poder de fundo
capaz de dissolver as formas e de impor a existência de uma zona onde não mais se distingue o
animal do humano (DELEUZE, 2004b: p. 382) e de onde, como refere Ana Godinho, «resulta o
poder de acrescentar novas variedades ao mundo» (GODINHO, 2007: p. 167).
O artista torna sensíveis as forças, escondidas ou pressentidas, que fazem devir,
pintando-as, escrevendo-as, esculpindo-as, etc. Tais forças, correspondentes ao devir, tornam-
se, deste modo, sensações estéticas: vêem-se arrancadas e encontram a zona favorável à sua
revelação. O artista cria, deste modo, blocos de perceptos e afectos: cria, por meio da

11
sensação, seres que valem por si mesmos e excedem o vivido – conservam-se e conservam. A
arte é a única coisa do mundo que se conserva: que se sustem por si própria, autónoma de
modelos; é ser da sensação autónomo, bloco do percepto e afecto que surge como
reversibilidade entre aquele que sente e o sentido; surge de um isolamento, de uma
desterritorialização. E o que daí surge é monumento – não comemoração de passado, mas
bloco de sensações que se conservam a si próprias. É neste ponto que a percepção passa na
zona do devir.
O objectivo da arte é, deste modo, criar um monumento pela fabulação (Idem) – que
não é recordação nem memória, mas material que se encontra nas palavras, nos metais, nos
sons, etc; noção que Deleuze e Guattari bebem de Bergson: a faculdade visionária, diversa da
imaginação, que se dá à criação de gigantes e se exerce, em primeira instância, na religião,
mas se desenvolve de modo livre na arte e literatura (DELEUZE, 1991b: p. 151).
Somos, no encontro com a arte, forçados, em suma, a experienciar o sensível
encontrando algo que se nos apresenta impossível de reconhecer – re-conhecer –,
imperceptível. As faculdades são conduzidas aos seus limites e a sensibilidade, imaginação,
memória e pensamento comunicam violência de modo recíproco: não mais nos encontramos
no âmbito do senso comum, no qual todas as faculdades concordam em reconhecer o mesmo
objecto. Encontra-se, nesta violência, uma harmonia dissonante que dilacera o sujeito3 e que
nos permitirá, em última análise, esboçar um quadro de análise que ligará Deleuze e as teorias
feministas da diferença sexual, na construção de uma subjectividade feminina no âmbito da
obra de arte.

3
Veja-se a noção de crueldade que Deleuze recebe de Artaud.

12
PARTE I

Deleuze e Irigaray – Uma Reconciliação

«Sinto-me tentada a dizer que, em certo ponto, a relação entre Deleuze e teoria
feminista é simplesmente uma questão de afinidade, algo de carácter epidérmico».4
(BRAIDOTTI, 2005: p. 92)

Leituras Feministas de Deleuze

As referências a Deleuze na teoria feminista têm vindo a estabelecer-se


progressivamente: o legado do autor vem marcando uma inesgotável fonte de inspiração para
o feminismo. Envoltas, a princípio, num tom de contornos algo polémicos, por meio de
importantes nomes quais os de Luce Irigaray, Rosi Braidotti ou Karin Emerton, um tom mais
positivo tem vindo gradualmente a emergir, por meio de vozes quais Anne Bray, Claire
Colebrook ou Dorothea Olkowski, grosso modo ancoradas na ideia de que a obra de Deleuze
oferece ao feminismo a possibilidade de desenvolver uma ética positiva, activa e assertiva que
a filosofia tradicional não lhe permitia. A não-convencionalidade, o provocatório e o não-linear
do pensamento rizomático deleuzeano não podia deixar de se mostrar afim das teorias
feministas na sua fuga a uma relação mimética com o discurso dominante: a superação da
lógica binária radical – assente na imagem da raiz – em que se encerra o feminino numa
inexorável alteridade, expressa um compromisso fundamental no reformular da subjectividade
como processo intensivo, múltiplo e descontínuo de estabelecer relações – o sujeito como um
fluxo de sucessivos devires.

Aborda-se, neste ponto, um possível diálogo entre Deleuze e Irigaray por meio da
defesa da compatibilidade entre conceitos-chave da filosofia de ambos: o empenho no
derrubar do sistema epistemológico de oposições binárias legitimador de uma sociedade
falogocêntrica – Deleuze, por meio do rizoma; Irigaray, por meio da morfo-lógica;
complementando-se, as duas abordagens, por uma lógica dos fluxos/fluidos –; um reformular

4
«Me siento tentada a decir que, en cierto punto, la interrelación entre Deleuze y la teoria feminista es
simplemente una cuestión de afinidad, algo de carácter epidérmico».

13
da subjectividade e, em particular, da subjectividade feminina – através da noção de devir –; e
a análise crítica da posição de simulacro a que foi remetida a mulher pela dualidade platónica
e falogocentrismo freudiano. Uma leitura desta índole parece poder oferecer um singular e
indispensável ponto de vista para o discurso feminista. Em sentido análogo argumenta
Olkowski (OLKOWSKI in BUCHANAN e COLEBROOK, 2001: p. 90), sustentando que um novo
quadro filosófico pode emergir deste diálogo: um quadro que aceite a multiplicidade sem
produzir relações binárias e sem o qual nenhuma leitura feminista de Irigaray ou Deleuze pode
ter sucesso. Será neste sentido que se esboçará o quadro de análise que se pretende tecer na
presente dissertação.

A superação do falogocentrismo

A tarefa última de derrubar as dicotomias seculares, em que se empreendem


importantes teóricas e correntes feministas, mostra-se peça chave da aliança que aqui se
ensaia entre o feminismo – e em particular, o da diferença sexual – e o pensamento rizomático
de Deleuze, na medida em que expressam o compromisso conjunto de reformular a
subjectividade como processo múltiplo e descontínuo de estabelecer relações, libertando-a
dos rígidos padrões de identificação impostos pelo sujeito falogocêntrico no processo de
edipização. De grande impacto na crítica feminista, o termo de Jacques Derrida5, combinando
falocentrismo e logocentrismo – falogocentrismo –, refere-se ao domínio do masculino,
manifesto na contínua aceitação do falo como único ponto de referência e único meio de
validação da realidade cultural. Ora, a sociedade dominada pelo falogocentrismo tomará,
invariavelmente, a mulher na sua relação com o homem, vincando os aspectos de que carece
por oposição à pretensa plenitude daquele; e o discurso, porque organizado exclusivamente
em torno dos sinais e marcas do masculino, apresentar-se-á igualmente falogocêntrico, no
vocabulário, na sintaxe, na gramática e nas regras da lógica discursiva (DELEUZE E GUATTARI,
2004b: pp. 21-49).

5
Conceito introduzido pelo autor na crítica às teses de Jacques Lacan num seminário sobre o conto de
Edgar Alan Poe, The Purloined Letter, que Derrida considera pecar por falogocentrismo.

14
a) O Rizoma

Na determinação em desmontar o pensamento ocidental assente na ideia do Ser


unívoco, Uno, na posição do mesmo, Deleuze (DELEUZE e GUATTARI, 2004b) ataca a lógica
binária do sistema falogocêntrico e propõe a superação de tal estrutura – por oposição a uma
intervenção nos termos da dicotomia, como fará a teoria feminista da diferença sexual que se
sondará no ponto seguinte. Ora, a noção clássica do sujeito trata a diferença como um
subconjunto dentro do conceito de identidade enquanto mesmidade, equiparando-a a uma
ideia normativa de um Ser que se mantém um e o mesmo em todas as suas diferentes
qualificações e atributos. O feminino e o masculino vêm, deste modo, sendo aprisionados num
mesmo molde dualista, diferenciados por desigualdades estruturais impostas, pela
mesmidade, numa série de relações hierárquicas. Deleuze define o
masculino/molar/maioritário como a norma e o feminino/molecular/minoritário como o outro,
desfazendo aquele modelo dualista por recurso à ideia de devir, pensando o sujeito como um
fluxo de sucessivos devires e postulando a ideia de uma consciência minoritária de que o devir-
mulher é, como se verá, emblemática.
Fulcral, neste ponto, se apresenta a ideia de rizoma (DELEUZE E GUATTARI, 2004b: p.
21-49) enquanto modelo epistemológico proposto por Deleuze e Guattari, desmontando
aquele outro, caro à modernidade, apoiado no elogio de raiz. Neste sentido, e defendendo
uma arte radicant, também Bourriaud se empenha na denúncia de um vicioso elogio da raiz na
arte moderna: «É coincidência que o modernismo tenha sido de ponta a ponta um elogio da
raiz? Foi radical. As manifestações artísticas (ou políticas) apelaram, no decurso do século XX, a
um retorno à origem da arte ou da sociedade, à sua apuração a fim de recapturar a essência.
Encarrega-se de cortar os ramos inúteis, de subtrair, de eliminar, de reiniciar o mundo a partir
de um princípio único, apresentado como a fundação de uma nova linguagem libertadora.
Apostamos que a modernidade do nosso século se inventará, precisamente, por oposição a
todo o radicalismo, referindo a má solução do re-enraizamento identitário e da
estandardização dos imaginários decretados pela globalização económica»6 .

6
«Est-ce un hasard si le modernisme fut de bout en bout un éloge de la racine? Il fut radical. Les
manifestes artistiques (ou politiques) appelèrent, au cours du XXe siècle, à un retour à l’origine de l’art
ou de la société, à leur épuration afin d’en retrouver l’essence. Il s’agissait de couper les branches
inutiles, de soustraire, d’éliminer, de réinitialiser le monde à partir d’un principe unique, présenté
comme la fondation d’un nouveau langage libérateur. Parions que la modernité de notre siècle
s’inventera, précisément, à l’opposé de tout radicalisme, renvoyant dos à dos la mauvaise solution du
réenracinement identitaire et la standardisation des imaginaires décrétée par la globalisation
économique».

15
A imagem da raiz e da árvore operam, deste modo, no sentido da legitimação do
entendimento binário do mundo por meio de dicotomias quais masculino/feminino,
cultura/natureza, sujeito/objecto. Trata-se de um sistema a-centrado, privilegiando o meio, os
intervalos, as ervas daninhas, por oposição ao centro abraçado pela raiz e radícula num
constante decalque e retorno a ele. Aí se funda o totalitarismo e aquela divisão do mundo em
ramos binários. No rizoma, invocando a metáfora botânica, os brotos podem ramificar-se em
qualquer ponto, assim como engrossar e transformar-se em bolbo ou tubérculo e funcionar
como talo ou ramo, independentemente da sua localização no mapa da planta. O rizoma
assume-se, deste modo, estrutura do conhecimento que se elabora simultaneamente a partir
de todos os pontos; não havendo aí lugar para raízes, para preposições mais fundamentais que
outras. Ora, o conjunto de princípios primeiros que se ramificam segundo dicotomias estritas,
próprio da raiz, é, no rizoma, substituído por um sistema de múltiplas conexões estabelecidas
num constante fluxo de desterritorialização e reterritorialização – a base do nomadismo
filosófico de Deleuze.

b) A Morfo-lógica

Irigaray, à semelhança de Deleuze, examina e questiona o rígido e enraizado sistema


de subjectividade dominado pela lógica e linguística do órgão sexual masculino 7, no qual a
mulher «tende sempre para alguma outra coisa sem nunca se voltar para si mesma enquanto
elemento positivo *…+ ela permanece do lado do electrão, uma carga negativa dirigida sempre
para uma carga oposta»8 (IRIGARAY, 1989: p. 121).
Tal lógica falogocêntrica é notória no regime de repressão freudiano, no qual a infância
e desenvolvimento da rapariga são reduzidos a um desejo de funcionar ela mesma como
mercadoria por forma a apresentar-se mais atraente (IRIGARAY, 1985a: p. 24). A valorização
social, cultural e económica das características femininas é reduzida à maternidade e ao papel
de mãe – alimentando o filho e cuidando do homem. De acordo com tal teorização a rapariga
vê-se destituída de qualquer valor antes da puberdade (Idem: p. 25); perfeitamente
desconsiderada por quem é, pelo que sente e pelo que pensa, a sociedade apenas a tomará
em consideração por forma a servir o propósito de permitir o domínio do corpo masculino

7
Este reconhecimento parece haver-se já iniciado na teoria psicanalítica, contudo carece-se ainda de
um reconhecimento dos aspectos práticos de tal domínio fora do âmbito da psicanálise.
8
«always tend towards something else without ever turning to herself as the site of a positive element
*…+ she remains on the side of the electron, a negative charge always directed toward an opposite
charge».

16
heterossexual segundo o qual se erguem as super-estruturas materiais e consequentes
regimes de poder e sistemas de filosofia. Como Virginia Woolf tão eloquentemente o coloca:
«As mulheres têm servido, ao longo de todos estes séculos, enquanto espelhos possuidores da
magia e delicioso poder de reflectir a figura do homem no dobro do seu tamanho natural»9
(WOOLF, 2000: p. 35).
Face à hegemonia de tal modelo, e aliando os termos morfologia e lógica, Irigaray
propõe uma morfo-lógica da mulher, apropriada às especificidades do seu corpo (IRIGARAY,
1993, pp. 58-9). A ênfase que a autora deposita na fluidez e na mecânica dos fluidos, na
mucosidade e na humidade intersticial como a placenta, o sangue e outros fluidos corporais,
declara a necessidade de criação de figurações alternativas do eu e de para elas encontrar
expressões adequadas. Tal concepção de fluidez relaciona-se, deste modo, estreitamente, com
aquela da morfo-lógica – a lógica de fluidos que não se forçam em sólidos com vista a uma
avaliação científica de acordo com as limitações da mecânica daqueles sólidos. Irigaray
defende que o carácter ou morfologia do corpo da mulher é fluido e que uma morfo-lógica da
fluidez dos corpos pode de facto ser criada; porém, não o fazemos porque uma prática e
pensamento de tal índole foi já territorializado como patológico e erróneo, já que um sistema
de formalização que considera a fluidez dos corpos parece não ter lugar numa lógica que
apenas considera hierarquias rígidas e hegemónicas, obrigando a uma linguagem a elas
conforme. Tal lógica é tomada, pela autora, como equivalente à mecânica dos sólidos na
medida em que estes, conformes à normatividade e julgamento universalizado do sujeito,
oferecem séria resistência a toda a mudança de forma.
Irigaray propõe, neste ponto, a reapropriação feminina e feminista da linguagem e da
representação, defendendo a constituição de um imaginário alternativo que expresse
adequadamente os aspectos, até aí irrepresentáveis, da sexualidade feminina, quais a sua
fluidez, porosidade e mucosidade; sugerindo, deste modo, a possibilidade de existência de um
tipo impróprio de linguagem – uma linguagem e lógica capazes de exprimir multiplicidade e
fluidez. Segundo a autora, «se examinarmos as propriedades dos fluidos, notamos que este
‘real’ pode muito bem incluir, e em larga medida, uma realidade física que continua a resistir a
simbolização adequada e/ou que significa a impotência da lógica para incorporar na sua escrita
todos os traços característicos da natureza»10 (IRIGARAY, 1985b: p. 106). A resistência da
realidade física à linguística e simbolização lógica de que fala, reflecte a inadequação dos

9
«Women have served all these centuries as looking-glasses possessing the magic and delicious power
of reflecting the figure of man at twice its natural size».
10
«*…+ if we examine the properties of fluids, we note that this ‘real’ may well include, and in a large
measure, a physical reality that continues to resist adequate symbolisation and/or that signifies the
powerlessness of logic to incorporate in its writing all the characteristic features of nature».

17
rígidos e hegemónicos símbolos lógicos a esta realidade fluida, e à incapacidade da lógica em
incorporar tal realidade. Esta inadequação e incapacidade exigiram que o fluido físico se
conformasse às demandas da lógica dos sólidos, e assim se sujeitasse a uma idealização. Tal
reflecte-se na estrutura sujeito-predicado da lógica aristotélica, de acordo com a qual um
atributo é predicado de um sujeito. A autora propõe, neste sentido, uma deslocação da análise
dos termos (sujeitos e predicados) para uma análise das relações entre eles.
Tal lógica da fluidez e de mecânica dos fluidos apresenta fortes pontos de contacto
com a noção de máquinas desejantes com que Deleuze e Guattari abrem Anti-Édipo (DELEUZE
e GUATTARI, 2004a: pp. 7-52). Os autores recebem de Hume a relação constitutiva entre
artifício e crença – é acreditando no primeiro que se confere contorno e forma à vida: a
ontologia dá lugar à crença que é sempre operacional e probabilista. O que haveria no mundo,
seriam, assim, dispositivos, agenciamentos, redes – máquinas abstractas ligadas a desejos
particulares: máquinas desejantes, que exprimem vida através de uma construção. Tais
máquinas são o desmembramento lógico da noção de part-object – a sinédoque do corpo – no
qual não existe uma experiência do corpo como um todo, do indivíduo integral, mas dos
órgãos apenas, quais seios, bocas, falo, cada uma com as suas demandas próprias. As
máquinas desejantes, produzidas pelo intersectar do correr contínuo dos fluidos humanos,
quais leite, urina, sémen, fezes, interrompem esse fluxo para produzir outro: cada máquina
produz o fluxo objecto da demanda da próxima. São máquinas-seio, máquinas-boca,
máquinas-falo.11
As intervenções morfológicas de Irigaray reafirmam a ideia de que o sexo feminino é,
não uno, mas múltiplo em si mesmo – uma ideia transponível na linguagem do devir de
Deleuze, embora para o autor, como se verá, o feminino seja somente um ponto de partida de
uma multiplicidade de percursos. Para ambos, o fluxo – a totalidade aberta – se apresenta
como conceito primordial: para Deleuze, com o objectivo de evitar a sedentarização molar da
mulher num homem castrado; para Irigaray, incumbido da tarefa de repor a plenitude da
mulher e lhe infundir a força para iniciar um processo de expressão autónoma. Ambos aspiram
a desligar o feminino de uma ideia de patologia e a convertê-lo numa força dinâmica de
transformação da subjectividade.
Braidotti (BRAIDOTTI, 2005: p. 143) refere-se ao discurso pronunciado por David
Goicoechea na conferência Rizomatics, Genealogy, Deconstruction, no ano de 1999, sob o

11
A dinâmica de fluxos desloca a fantasia e o desejo da sua tradicional acepção psicanalítica de
idealidade – algo que se passaria no inconsciente, no sonho – para o domínio do material, tornando-se
algo que passa a ter lugar no real, contrariando a tendência freudiana e kleiniana de pensar a actividade
dos part-objects como puramente simbólica. O interesse de Deleuze e Guattari na esquizofrenia servirá
esta lógica.

18
título de Irigaray’s transcendental sensuotics, between Deleuze’s Rhizomatics and Derrida’s
deconstruction; nele se estabelece uma comparação positiva entre Irigaray e a rizomática de
Deleuze, sublinhando o facto de a dinâmica do desejo mucosidade/porosidade da primeira não
ser monodireccional e, consequentemente, não incompatível com o desejo nómada.

A mulher-simulacro

Regressando a Freud, ao partir da premissa de que a mulher passa pelos primeiros


estados libidinais de modo idêntico ao do homem, toda a teorização aí se faz por decalque do
aplicável ao homem, deixando a nu o que Irigaray alerta ser profundamente perigoso e
mistificador: no processo de devir mulher normal, não existe nunca um estado vulvar, vaginal
ou uterino (IRIGARAY, 1993: p. 29).12 O corpo e desejos da rapariga são desconhecidos e
olhados como impossíveis de conhecer para Freud, que se encontra aprisionado num pensar
por analogias que não requer qualquer tipo de distinções no plano material, quais duas linhas
paralelas que nunca se encontrarão e que nunca permitirão que relações se estabeleçam entre
si. A própria rapariga deve olhar-se tomando a analogia – insistindo-se numa conceptualização
da ausência e castração e proporcionando-se uma hegemonia a nível social aquando da
mudança para a feminilidade, não por força de uma efectiva mudança no corpo da rapariga
mas por força de uma mudança no comportamento do rapaz. O rapaz reconhece aí a
castração, notando a ausência de falo na rapariga, diagnosticando-a, consequentemente,
como ininteligível e patológica, notando nela uma falha, uma falta, uma ausência, relegando-a,
assim, para fora do sistema de representação e autorepresentação que a ele pertence
(IRIGARAY, 1985a: p. 52). No desejo de identificação com o homem, com o mesmo13, entra em
jogo mais um conceito chave da psicanálise de Freud: a inveja do falo. São, no esquema
freudiano, a inveja e o sentido de falta da rapariga, o que valoriza o falo: «A fetichização, pela
mulher, do órgão masculino deve, de facto, ser um suporte indispensável do seu preço no
mercado sexual»14 (IRIGARAY, 1985a: p. 53).

12
É de notar que a própria noção de estágio implica uma economia estática e fixa; parece pertinente
reformular tal noção em termos de devir, substituindo o termo por um outro, de processo.
13
Beauvoir teorizou esta questão da alteridade associada à figura da mulher, introduzindo de modo
célebre os termos Outro e mesmo associados à mulher e ao homem, respectivamente.
14
«Woman’s fetisisation of the male organ must indeed be an indispensable support of its price on the
sexual market».

19
A autora propõe, deste modo, substituir o sistema falogocêntrico por uma ordem
simbólica feminina, expressa num imaginário que deixe de se encontrar mediado e medido
pelo falo: uma economia da placenta (Idem: p. 41), paradoxal, assente na negociação fluida
entre a mulher e o seu outro, numa economia da diferença que se empenha num constante
produzir de novas formas de vida. Todo o trabalho de Irigaray se faz na defesa da diferença
sexual e na impossibilidade de analogia entre as especificidades do corpo feminino e o rapaz
ou o falo.
A crítica ao discurso psicanalítico que Deleuze leva a cabo, a lado de Guattari,
(DELEUZE e GUATTARI: 2004a) embora se aproxime deste entender de Irigaray – na clara
oposição daqueles a Lacan, refutando o mito da interioridade e rejeitando a omnipotência de
um sistema simbólico que inscreve o sujeito numa escala medida pela carência, o significante e
a negatividade –, assenta, muito embora, numa desconstrução das identidades sexuadas
construídas pela cultura ocidental cujos resultados serão mais difíceis de harmonizar com a
argumentação da autora pois se defende, na teoria do devir, a dissolução de todas as
identidades baseadas no falo – inclusivamente a feminina, enquanto eterno outro deste
sistema. O nomadismo filosófico de Deleuze, propõe um inverter da dialéctica da negatividade,
implícita, a seu ver, na psicanálise, desvinculando as operações do pensamento da dialéctica
do sexo e praticando uma ética da transformação das paixões concretas que participam e
suportam o falogocentrismo; neste ponto se cria, novamente, forte aliança com os traços
subversivos e irreverentes do pensamento feminista.

Deleuze e Irigaray voltam a encontrar-se na crítica ao dualismo platónico, embora,


como se verá, sigam linhas de argumentação algo diversas.
A crítica dirigida por Irigaray à Alegoria da Caverna de Platão, presente no Livro VII de
A República (PLATÃO, 2005a), é particularmente elucidativa na peremptória recusa da autora
em pensar a mulher enquanto simulacro do homem que, a propósito de Freud, acima se
discutiu. O conhecimento faz-se, no texto de Platão, na medida em que o filósofo sai da
caverna mas logo a ela retorna afim de confirmar o seu conhecimento e identidade – por
forma a atribuir ordem às imagens-sombra reproduzidas naquilo que, no entender de Irigaray,
representa a mãe. Neste sentido, os homens encontram-se na caverna desde sempre, não
havendo deixado nunca «este espaço, ou sítio, ou topografia, ou topologia, da caverna *…+. A
caverna é a representação de algo sempre já aí, da matriz original/ventre que estes homens
não podem representar já que estão presos por correntes que os previnem de voltar a sua

20
cabeça ou genitais em direcção à luz do sol»15 (IRIGARAY, 1985b: p. 244). Apenas se liberto da
caverna e de tais correntes – vestígios do mundo sensível – pode o homem aceder a
pensamentos divinos (Idem, p. 339).
Na caverna os homens encontram-se alinhados, não com a mãe ou com a topografia
da caverna, mas com a lei transcendental do Pai. Encontram-se fixos de modo perpétuo,
representações fictícias da repetição que necessariamente conduz à contemplação da Ideia
(Idem, p. 249). A posição que ocupam na caverna é, ela mesma, uma posição fálica: a caverna
não permite exploração, o homem senta-se de «cabeça para a frente, olhos de frente, genitais
alinhados, fixos numa linha recta. Uma direcção fálica, uma linha fálica, um tempo fálico, de
costas viradas para a origem»16 (IRIGARAY, 1985b, p. 245).
A origem platónica é a luz que cega e que permite a representação; o fogo na caverna
é seu análogo. E a função primordial da caverna é, pois, permitir a representação e assim
aprisionar os homens pela repetição da origem – a projecção na parede –; assegurando-se a
ordem pela simetria que vem reforçar a necessidade da Ideia que domina, excede e garante o
discurso (Idem, pp. 255-8). Encontrando-se, a analogia, submetida ao princípio de identidade, a
medida do julgamento na caverna é uma questão de proporção de uma mais ou menos
correcta relação com o mesmo, com a Ideia. Tudo isto se apresenta possível porque a caverna,
como representada por Platão, é virgem em relação às suas origens e é muda em relação à sua
voz: a caverna – análoga ao ventre – não é origem, mas apenas superfície reflectora sobre a
qual origens transcendentais se projectam. Quando um dos habitantes da caverna é forçado a
sair e a encarar a luz solar do Pai, tudo na caverna deve ser esquecido por forma a lembrar
somente o que é verdadeiro – a Verdade –, pois «o domínio do Ser requer que o que quer se
tenha sido definido – dentro do domínio da mesmidade – enquanto ‘mais’ (verdadeiro,
correcto, claro, razoável, inteligível, paternal, masculino…) deva progressivamente ganhar ao
seu ‘outro’, o seu ‘diferente’ – o seu diferindo – e, em última análise, ao seu negativo, o seu
‘menos’ (fantástico, prejudicial, obscuro, ‘louco’, sensível, maternal, feminino…). Finalmente a
ficção reina sobre uma simples, indivisível, ideal origem. A cisão do início *…+ é eliminada na
unidade do conceito»17 (IRIGARAY, 1985b: p. 275).

15
«*…+ this space, or place, or topography, or topology, of the cave *…+. The cave is the representation of
something always already there, of the original matrix/womb which these men cannot represent since
they are held down by chains that prevent them from turning their heads or their genitals towards the
daylight».
16
«*…+ heads forward, eyes front, genitals aligned, fixed in a straight line. A phallic direction, a phallic
line, a phallic time, back turned on the origin».
17
«For Being’s domination requires that whatever has been defined – within the domain of sameness –
as ‘more’ (true, right, clear, reasonable, intelligible, paternal, masculine…) should progressively win out
over its ‘other’, its ‘different’ – its differing – and, when it comes right down to it, over its negative, its
‘less’ (fantastic, harmful, obscure, ‘mad’, sensible, maternal, feminine…). Finally the fiction reigns of a

21
A necessidade de esquecer a caverna, o ventre/matriz que escapa à acção da Ideia,
excepto como projecção da imagem do Sol, afasta irreversivelmente a mulher do acesso ao
círculo do mesmo e à inteligibilidade, o transcendental significante/significado. Embora
aspirando a um ultrapassar da sensação, tal se lhe apresenta impossível pois se vê julgada por
simulacro e, como tal, não participante na ordem do bom senso. Neste ponto, se mostra

valiosa a leitura de Deleuze, do mesmo texto de Platão, no ensaio Plato and the Simulacrum

(DELEUZE: 1990), onde o autor argumenta que, no platonismo, se inserem os demandantes da


verdade numa estrutura de oposições na qual o autêntico e o inautêntico se apartam, e na
qual se testa a mesmidade e a semelhança, rejeitando o que aí não cabe (Idem, p. 254).
Autorizam-se as cópias pela semelhança que prestam à Ideia e rejeitam-se os simulacros pela
inerente falsidade e corrupção ligada à dissemelha – do campo do sensível e de índole, assim,
inferior e contra o Pai (Idem, pp. 256-7). Ora, «o simulacro é uma imagem sem semelhança»18
(Idem, p. 257), e à mulher parece pertencer tal posição.
De acordo com Irigaray (IRIGARAY, 1985b: p. 343), muito embora o receptáculo
material possa atingir beleza, bondade e inteligibilidade submetendo-se às impressões da
forma – da Ideia –, só o poderá fazer de forma muito pobre, abaixo da auto-realização do tipo.
Assim se encontra na filosofia e sociedade o que parece ser um comum problema entre
mulheres: a incerteza de como viver pois, instável face à Ideia, nada lhes permite conhecer a
sua definição, representação ou relação com outros; falta-lhes medida e meio de medição pois
se vêem sem limites e proporções que se reportem à Ideia. A leitura de Deleuze parece caber
perfeitamente nesta análise de Irigaray, da mulher: «O simulacro é construído em volta da
disparidade; ele interioriza a dissimilitude. É por isso que não podemos mais sequer defini-lo
em relação ao modelo em acção nas cópias – o modelo do Mesmo do qual a semelhança da
cópia deriva. Se o simulacro ainda tem um modelo, é um outro, um modelo do Outro do qual
deriva uma dissemelhança interiorizada»19 (DELEUZE, 1990: p. 258). A investida de Deleuze em
derrubar o platonismo assenta, assim, num valorizar do simulacro, afirmando o seu poder na
negação do original e da cópia, do modelo e da representação. Irigaray conclui, contudo, não
ser possível invocar o modelo do Outro pois a mulher continua a existir e a continuamente a
destruir o projecto daquele, «distinguindo-se tanto do invólucro quanto da coisa, e criando um

simple, indivisible, ideal origin. The fission occurring at the beginning *…+ is eliminated in the unity of
concept».
18
«*…+ the simulacrum is an image without resemblance».
19
«The simulacrum is constructed around a disparity, a difference; it interiorises a dissimilitude. That is
why we can no longer even define it with regard to the model at work in copies – the model of the Same
from which the resemblance of the copy derives. If the simulacrum still has a model, it is another one, a
model of the Other from which follows an interiorized dissimilarity».

22
jogo, agitação ou não-limite interno sem fim, que destrói as perspectiva e limites deste
mundo»20 (IRIGARAY, 1993: p. 122). Volta-se, assim, sobre si mesma enquanto elemento
positivo.
Para Deleuze, no seguimento de Nietzsche, no interior da caverna platónica uma
caverna outra existe, na qual não mais se reconhece o mito ou a analogia, e a qual Deleuze
denomina de devir: multidão de fenómenos que procedem por alianças, simbioses, contágios e
mucosidade, para invocar o termo de Irigaray. Ouvi-lo, acredita a autora, requer algo que não a
conformidade com a boa forma, mas uma recusa do reconhecimento do adequado; desse
modo se notará que «este é contínuo, comprimível, dilatável, viscoso, conduzível, difusível *…+.
Que este muda – em volume ou em força, por exemplo – de acordo com os graus de calor; que
é, na sua realidade física, determinado por *…+ movimentos vindos do quase contacto entre
duas unidades dificilmente definíveis como tal»21 (IRIGARAY, Luce, 1985b: p. 111).

O conceito de devir ocupa lugar central tanto nas inquietações filosóficas de Irigaray
como na teoria de Deleuze. Os sujeitos nómadas do devir caracterizam-se pela sua mobilidade,
mutabilidade e a natureza transitória, distanciando-se de modelos transcendentais e
estabelecendo o pensar como forma de estabelecer conexões com uma multiplicidade de
forças impessoais. Braidotti defende, em Metamorfosis (BRAIDOTTI: 2005), que daí resulta que
o ponto de partida mais fecundo para uma aliança entre as inquietudes feministas e o
pensamento de Deleuze seja precisamente o esforço por imaginar a actividade de pensar de
modo diferente. Contudo, é igualmente neste ponto que mais diferem as duas abordagens.

A diferença e o devir-mulher

«Mas suprimir as diferenças que existem entre os sexos, por mais variáveis e
fluidas que as diferenças psicológicas e sociais possam ser, parece-me deplorável,
como tudo o que empurra o género humano, no nosso tempo, para uma uniformidade
sombria.»
(YOURCENAR, 2011)

20
«*…+ distinguishing herself from either envelope or thing, and create an endless interval, game,
agitation, or non-limit which destroys the perspectives and limits of this world».
21
«*…+ it is continuous, compressible, dilatable, viscous, conductible, diffusible *…+. That it changes – in
volume or in force, for example – according to the degree of heat; that it is in its physical reality
determined by *…+ movements coming from the quasi contact between two unities hardly definable as
such»

23
A importância económica, cultural e simbólica que a cultura ocidental vem atribuindo
à sexualidade, coloca-a num lugar primordial de construção da subjectividade; é na
desconstrução desta subjectividade que o pensamento de Deleuze se parece cruzar
amplamente, como vimos, com as teorias feministas. O autor postula a ideia de uma
consciência minoritária de que o devir-mulher é emblemático; no entanto, ao assinalar uma
necessária dissolução da sexualidade num devir generalizado – o devir minoria –, parece
enfraquecer as reivindicações feministas relativas à redefinição do sujeito feminino. O autor
parece deixar fechar-se num devir-mulher genérico, diluído, que deixa de ter em consideração
a especificidade histórica e epistemológica do ponto de vista feminino, apoiando-se num corpo
sem órgãos que se apresenta por demais reminiscente de uma posição historicamente
atribuída à mulher.

a) Alice: o arquétipo do devir-mulher

Em The Logic of Sense (DELEUZE, 1990), Deleuze chama a atenção para a concepção
lógica do devir no romance de 1978, Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll (CARROL,
2000). Ao ingerir líquido, bolos e plantas a personagem devem maior ou menor que outrora;
como colocado por Deleuze: Alice torna-se maior do que era, mas simultaneamente menor do
que será (DELEUZE, 1990: p. 10). O devir caracteriza-se, pois, pelo facto de se evadir ao
presente enquanto agora na medida em que não concebe distinções entre antes e depois,
passado e futuro, mais e menos, activo e passivo, causa e efeito. Aí, dois sentidos são
afirmados simultaneamente – ela devém maior e menor –, evadindo-se, deste modo, à
identidade. Uma identidade que, segundo argumenta Irigaray, é fixada pela linguagem na
medida em que a linguagem limita e mede, fixando qualidades em que pequeno é “o
pequeno” e grande “o grande”, pois ambas recebem a acção da Ideia (Idem). Alice questiona a
sua identidade perguntando se é a mesma pessoa que era quando acordou nessa manhã,
concluindo que certos aspectos do passado lhe escapam; de cada vez que tenta recitar o
poema, as palavras apresentam-se mudadas e muitos dos diálogos que leva a cabo se
pontuam por trocadilhos e jogos de palavras. O paradoxo é o que, no entender de Deleuze, se
apresenta capaz de destruir o bom senso enquanto único senso e o senso comum enquanto
atribuição de identidades fixas. Tal linguagem de paradoxos mostra-se uma linguagem outra,
que exprime movimentos e devir, que escapa às Ideias. O papel ocupado por Alice no

24
pensamento de Deleuze parece consolidar o poder introdutório que assumirá o devir-mulher
na filosofia do autor.
Na crítica ao pensamento falogocêntrico e proposta de nova filosofia, o autor insiste
na necessidade de criar novas imagens para estas posições de sujeito, introduzindo a noção de
figuração – um modo de pensar o sujeito fora do sistema falogocêntrico. O devir genérico,
minoritário, nómada, molecular é a figuração central da obra do autor, denotando a minoria
enquanto marca trajectória e evidenciando a preferência do autor pela periferia e
marginalidade. A mulher, ocupando historicamente a marginal posição de Outro face a um
homem que se posiciona enquanto o mesmo, o principal referente da subjectividade,
emblemático da Norma, da Lei e do Logos, apresenta-se, deste modo, enquanto posição
privilegiada da consciência colectiva minoritária. Assim se fundamenta o devir-mulher
enquanto investido de poder introdutório, fase primeira e fundamental no processo do devir
para ambos os sexos. Neste sentido se lê Deleuze quando nota: «Por que é que há tantos
devires do homem, mas não devir-homem? É, primeiro, porque o homem é maioritário por
excelência, enquanto os devires são minoritários *…+. É talvez mesmo a situação particular da
mulher em relação ao padrão-homem que faz com que todos os devires, ao serem
minoritários, passem por um devir-mulher» (DELEUZE e GUATTARI, 2004b: p. 370).
Nesta linha de pensamento, o processo de descolonização do sujeito, do jogo dualista
a que foi confinado pela dicotomia masculino/feminino que se converteu no protótipo
ocidental, parece implicar, como ponto de partida, a dissolução de todas as identidades
sexuais de base nesta oposição de género. O horizonte nómada é, pois, uma subjectividade
para lá do género: diluída, múltipla, não unitária, não dualista, interconectada, não dialéctica e
não fixa, num incessante fluir. As polarizações sexuais e a dicotomia de género são, deste
modo, rejeitadas enquanto protótipo da redução dualista da diferença a uma categoria do Ser.
E é com este ponto que as teorias feministas da diferença sexual se parecem recusar a
compactuar.
Deleuze não opõe de modo dicotómico o sujeito masculino a um outro, feminino;
propõe antes uma multiplicidade de posições de sujeitos cujas diferenças de grau marcam
diferentes linhas de devir, numa trama de conexões rizomáticas. «*…+ *N+as plantas com
sementes, mesmo reunindo os dois sexos, a sexualidade obedece ao modelo da reprodução; o
rizoma, pelo contrário, é uma libertação da sexualidade não só em relação à reprodução, mas
em relação à genitalidade. Na Europa, a árvore plantou-se nos corpos, endureceu e até
estratificou os sexos. Perdemos o rizoma *…+» (DELEUZE e GUATTARI, 2004b: p. 40). Estes
diferentes graus de devir são, deste modo, diagramas de posições de sujeito nos quais impera
a multiplicidade, não se reproduzindo um único modelo – como no modelo platónico –, mas

25
criando e multiplicando as diferenças. As consequências de tal conceptualização da
multiplicidade para a diferença sexual são sérias: aí se encontra a principal tensão entre as
teorias de Deleuze e as teorias da diferença sexual.

Irigaray parece não se opôr, de modo algum, à multiplicidade deleuzeana central ao


devir, questiona, porém, e aparentemente rejeita, o conceito de devir-mulher do autor. Sem
primeiro se repensar a diferença sexual, o prazer – plural – da mulher será bloqueado ou
negligenciado a caminho da multiplicidade (IRIGARAY, 1985b: pp. 140-1). A singularidade do
corpo da mulher não pode ser obliterada, a rapariga tem, ainda antes do estágio de Édipo, um
corpo sexuado inteiramente distinto do do rapaz: é esse corpo que precisa de ser articulado
para a mulher, e a multiplicidade conceptual deleuzeana aparece-lhe como neutra a respeito
da diferença sexual. Braidotti argumenta, em Patterns of Dissonance (BRAIDOTTI: 1991), que
em nada poderá resultar uma investida em desconstruir uma subjectividade se antes não
houver sido concedida, ao sujeito, plena autoridade sobre ela; ora, não se poderá tornar difusa
uma sexualidade que foi historicamente definida como obscura, misteriosa e alheia ao poder
da mulher: «Para anunciar a morte do sujeito, primeiro se deve haver ganho o direito de falar
enquanto tal»22 (Braidotti, 2005: p. 107).
Deleuze postula, deste modo, uma teoria da diferença que ignora a subjectividade
feminina: um devir-mulher genérico incapaz de reconhecer a especificidade histórica e
epistemológica do feminino, apresentando-se simultaneamente fundacional e acessório,
originário e acidental. Irigaray defende que tal dissolução da diferença sexual num devir
generalizado conduzirá, inevitavelmente, a um enfraquecimento das justas reivindicações
feministas por uma redefinição da subjectividade feminina que se prende, em linhas gerais,
com o expressar no feminino de uma diferença positiva, liberta do sistema hegemónico de
pensamento opositivo e binário no qual foi confinada pela filosofia ocidental. Sustenta-se a
desconstrução das representações falogocêntricas do feminino na busca por uma visão
diferente, particular e positiva da subjectividade feminina23. Como sublinha Braidotti, esta
afirmação positiva da diferença sexual é um desafio às identificações seculares do sujeito do
pensamento com o universal, e de ambas as posições com o masculino: o feminino não mais é

22
«Para anunciar la muerte del sujeto, primero se debe haber ganado el derecho a hablar como tal».
23
A apologia da diferença sexual faz-se notar no empenho de Irigaray na crítica de um modelo
emancipador feminista cujo objectivo versa sobre a integração das mulheres como cidadãs de primeira
classe num sistema de poder que tradicionalmente as havia confinado a uma posição de alteridade.
Alertando para os sérios perigos da homologação do modelo masculino, a autora defende que tal
modelo feminista consubstanciar-se-ia numa mera reversão da dialéctica sexual que talvez apresentasse
resultados imediatos, porém, a longo prazo, não fizesse mais que confirmar as estruturas de poder
existentes.

26
o Outro estrutural de um sistema dualista, mas uma posição radical e positivamente outra,
destituída de qualquer padrão de medida em relação ao homem (Braidotti, 2005: pp. 106-7).
Deleuze acaba, muito embora, por dirigir uma crítica às teorias feministas que rejeitam
a dissolução do sujeito mulher numa série de processos transformadores, num devir sem
género generalizado. Parecem-lhe justas as reivindicações sociais e políticas feministas –
manifesta-se, aliás, expressamente solidário com a luta das mulheres pela plena
subjectividade, afirmando a necessidade de direitos e opções específicas para a mulher –,
porém, pensa a defesa de uma sexualidade especificamente feminina como restritiva: os
direitos de que foram privadas ao longo da história devem ser reivindicados, a seu ver, pela
adesão a uma estrutura multisexuada do sujeito. O autor censura aquilo que olha como a
perpetuação das repetições dos valores ou identidades dominantes, considerando-a o
perpetuar do pensamento molar ou maioritário por oposição ao desenvolvimento de uma
consciência que não é especificamente feminina. Deleuze procede, contudo, como se houvera
uma nítida equivalência entre as posições de enunciação dos dois sexos, descuidando a
questão central do feminismo. Neste sentido, indaga Colebrook: «O que estão Deleuze e
Guattari a fazer quando tiram [Virginia] Woolf e o movimento das mulheres do contacto com
os conceitos de identidade, reconhecimento, emancipação e o sujeito em direcção a um novo
plano do devir?»24 (Colebrook in BUCHANAN e COLEBROOK, 2001: p. 3). Braidotti considera a
posição deleuziana problemática do ponto de vista teórico na medida em que sugere uma
simetria entre os sexos conducente à atribuição a ambos dos mesmos itinerários psíquicos,
conceptuais e desconstrutivos (Braidotti, 2005: p. 106).
É Irigaray quem levanta o desafio crítico mais radical a esta pretensa simetria; no
entender da autora – um entender profundamente marcado por um apurado sentido da
historicidade das lutas das mulheres –, a diferença sexual é, pois, uma diferença fundadora e
estrutural impossível de dissolver sob pena de um sério dano psíquico ou social.

O Corpo Sem Órgãos

Deleuze e Guattari conduzem a discussão do devir-mulher da rapariga – a pré-edipiana


Alice – à conclusão de que o corpo da rapariga é-lhe roubado em primeiro lugar, de forma a
impor-lhe uma história, ou pré-história. E embora este ponto possa ter uma importante

24
«Just what are Deleuze and Guattari doing when they take [Virginia] Woolf and the women’s
movement away from the concepts of identity, recognition, emancipation and the subject towards a
new plane of becoming?»

27
repercussão na teoria feminista, tampouco se parece poder com ela harmonizar por completo,
pois articular o devir da rapariga antes do seu corpo lhe ser furtado implica, para o autor, o
inorganismo do corpo – o corpo sem órgãos. Irigaray dirige-se, deste modo, ao diagrama
deleuzeano das máquinas-desejantes (IRIGARAY, 1985b: p.140), criticando esta noção de
corpo sem órgãos, no seu entender reminiscente da posição historicamente atribuída à
feminilidade enquanto marca simbólica da ausência e às mulheres enquanto seu referente
empírico. A ênfase na máquina, no inorgânico e na dissolução do eu mostram-se familiares à
mulher: nenhum órgão domina o seu corpo e, portanto, nenhum prazer a ela especificamente
pertence. O devir-mulher será, deste modo, uma presunção, uma posição fantasmática para o
sujeito masculino que, uma vez mais, aí complementa o seu prazer. Irigaray reconhece no
devir-mulher deleuzeano, em última análise, uma apropriação do corpo da mulher pelo
masculino.

As Repercussões na Arte

Louise Bourgeois parece mostrar-se o exemplo primeiro da conciliação dos dois


autores em análise. Ao vocabulário feminino, evidente em peças como Femme Maison (Figura
125) ou Femme Couteau (Figura 226) liga-se a uma proposta rizomática que encontra síntese em
Janus Fleuri, de 1968 (Figura 327), onde se exploram relações – simbólicas e formais – de
tensão e de mutabilidade entre a imagética dos pólos masculino e feminino invocada pela
sinédoque do part-object deleuzeano. O elemento central, de flor, de vulva, cuja exuberante
matéria transborda sem limites precisos para a antagónica definição e polimento da superfície
das extremidades, parece actuar como proposta morfo-lógica. Em Precious Liquids, de 1991-
1992 (Figura 428), evidencia-se, neste sentido, a lógica dos fluidos e referenciam-se as
máquinas desejantes. Na imponente instalação cilíndrica, semelhante a um tanque de água, se
incita o espectador a entrar num interior que, desprovido da presença humana, se apresenta
como vestígio dela; os fluxos de líquidos aí orquestrados por meio de ampulhetas de vidro são
aqueles que o corpo humano produz quando sujeito a emoções, quais medo, prazer ou dor:
sangue, leite, sémen, lágrimas; num fluxo incessante e constantemente renovado. Irigaray, em

25
Vide p. 95 da presente dissertação.
26
Vide p. 96 da presente dissertação.
27
Vide p. 97 da presente dissertação.
28
Vide p. 98 da presente dissertação.

28
This Sex Which is Not One (IRIGARAY, 1985b), aponta o tumulto provocado pela transgressão
da forma e do significado por uma arte proponente de uma experiência descentrada e não-
fálica do prazer; Bourgeois encontrou-se na linha da frente desta experimentação e o seu
independente e forte corpo de trabalho, e a liberdade com que explorou os materiais, formas
e temáticas, foram absolutamente marcantes em inúmeros trabalhos e artistas subsequentes.
Kiki Smith encontra-se entre tais artistas, preconizando, dir-se-ia, uma morfo-lógica, pois lhe
parece ser «tempo de as mulheres apresentarem a sua própria visão»29 (Kiki Smith, em
entrevista com Valérie Da Costa, in DA COSTA, 2006: p.6).

«O trabalho de uma mulher não pode ser percebido de modo acurado e nunca o será
até que as mulheres sejam percebidas de modo acurado».30
(CHICAGO, in ROBINSON, 2008: p. 294)

Irigaray volta a dirigir-se à arte criada por mulheres em Je, Tu, Nous, no capítulo
intulado How Can We Create our Beauty? (IRIGARAY, 2007: pp. 100-105), datado de 1988. Nele
defende que a mulher vem sendo enclausurada numa ordem formal a ela inadequada e, para
que a mulher crie, é então necessário que quebre com essas formas e reencontre a sua
natureza e identidade, as sua formas próprias: « *…+ formas femininas *que+ são sempre
incompletas, em perpétuo crescimento, porque uma mulher cresce, floresce, e fertiliza-se (ela
mesma) no seu próprio corpo *…+, ela nunca é completada numa forma única. Ela encontra-se
num incessante devir *…+»31 (IRIGARAY, 2007: p. 103). Parece clara a correspondência de tal
devir à concepção de Deleuze. A prática artística nos termos da qual a morfo-lógica opera
corresponde a uma proposta de pensamento, arte, poesia e linguagem preconizada por
Irigaray enquanto poética inteiramente nova, uma poética da diferença sexual que a
rizomática e o devir deleuzeano só vêm, como vimos, enriquecer.
É na base deste rizomático devir, de inflexão na diferença sexual, que se pensará o
quadro de análise que se proporá nos capítulos seguintes.

29
«*…+ qu'il est désormais temps pour les femmes d'apporter leur propre vision».
30
«A woman’s work cannot be perceived accurately and will never be perceived accurately until women
are perceived accurately».
31
«*…+ female forms *that+ are always incomplete, in perpetual growth, because a woman grows,
blossoms, and fertilizes (herself) within her own body *…+, she is never completed in a single form. She is
ceaselessly becoming *…+».

29
PARTE II

O Háptico em Fernanda Fragateiro

Ensaia-se, no presente capítulo, a análise do háptico na obra de Fernanda Fragateiro


enquanto proposta de espaço habitável, no qual se destitui o olhar voyeurista do seu império.
Tomam-se, a este propósito, essencialmente duas obras, Caixa para Guardar o Vazio (Figura 5
e 632), de 2005, e Não Ver (Figura 733), de 2008; nelas, coordenadas essenciais da obra de
Fragateiro parecem evidenciar-se: elidem-se noções de interior e exterior, finito e infinito, eu e
outro, e provocam-se as convicções relativas aos pontos de vista num espaço que se propõe
háptico.
Iniciar-se-á a argumentação com a elucidação da noção de háptico, com especial
incidência no seu postular deleuziano. De seguida, perscrutar-se-á o papel de tal noção numa
recusa do sistema perspéctico clássico, que se desvenda de base escopofílica e falogocêntrica.
Analisar-se-á, neste sentido, a sexualidade feminina enquanto directamente ligada ao toque e,
em última análise, ao háptico; pensando, de seguida, o contributo de tal ligação para um
derrubar da lógica subjacente à perspectiva clássica. Por fim, se conceberá um espaço
nómada, háptico, enquanto possibilidade de um feminino liberto das amarras do Logos.

A recusa do sistema perspéctico clássico por meio do háptico

“Háptico”, de etimologia grega, prende-se a um ser capaz de entrar em contacto com.


É assim, enquanto toque – função da pele –, o contacto recíproco entre o sujeito e o ambiente
que o envolve. O háptico implica, pois, habitabilidade, mostrando-se medida da nossa
apreensão táctil do espaço, seguindo, no entanto, muito para além desta: o háptico permite
que o olho se apresente, ele próprio, incumbido de uma função que não mais é óptica, mas
háptica. A noção é desenvolvida por Alois Riegl, numa reformulação da espacialidade na teoria
da arte, vindo a influenciar significativamente Walter Benjamin, que adapta a teoria do
Háptico subvertendo a separação entre toque e visão e, deste modo, a distinção entre háptico
e óptico que Riegl havia estabelecido. Benjamin lança ainda objecção à corrente que olhava a

32
Vide pp. 99 e 100 da presente dissertação.
33
Vide p. 101 da presente dissertação.

30
arte moderna enquanto movimento rumo a um modo óptico de representação; o autor faz da
percepção moderna uma percepção háptica em detrimento de óptica, invocando, para o
efeito, o baudelairiano flâneur (BEJAMIN, 2007: p. 175).
O termo vem ocupar lugar central na análise de Deleuze (DELEUZE e GUATTARI, 2004b:
pp. 603 - 635), do Espaço Liso, de contornos hápticos, e do Espaço Estriado, ligado ao óptico. O
espaço estriado identificar-se-ia com o tecido ou a cestaria – conjunto de elementos paralelos,
horizontais e verticais, que se entrecruzam –, tendo um avesso e um direito, e tendendo a
devir homogéneo. Já o espaço liso seria um espaço característico do feltro – o anti-tecido –,
não implicando, por isso, entrecruzamento, apenas encadeamento de fibras; sem direito ou
avesso, apresenta-se heterogéneo, amorfo. Privilegia-se, no espaço estriado, sedentário por
excelência, uma visão afastada em detrimento de uma visão aproximada, própria do espaço
liso, nómada, no qual se navega, não por referência à abstracção de mapas, mas pela
percepção háptica. Espaço de errância, sem lugar para perspectiva ou centro, nele se dilui o
horizonte, o fundo, o limite, o contorno e a distância intermédia, e nele se convoca uma
entrada física na obra, em detrimento do observador imóvel externo caro ao espaço estriado.
Deleuze lembra, neste ponto, a pintura de Cézanne na sua necessidade de não mais ver o
campo de trigo, de se encontrar perto demais e perder-se no espaço liso. Desenha-se aqui o
modelo estético deleuzeano.
Deleuze afasta-se, por fim, de Benjamin no entender do háptico e óptico enquanto não
dicotomicamente opostos, mas em contaminação recíproca e constante, quais leis da
propriedade que estriam a terra outrora atravessada por nómadas, e o alisar do espaço
estriado da cidade pelos nómadas urbanos, sem-abrigo.
Giuliana Bruno, no ensaio Atlas of Emotion: Journeys in Art, Architecture and Film
(BRUNO: 2007), toma o háptico enquanto agente na formação de espaço – geográfico e
cultural – e, por extensão, na articulação das artes espaciais, entre elas, o filme. A ênfase na
dimensão cultural do háptico liga-o a uma dimensão de cinestesia, na habilidade do corpo
sentir o seu próprio movimento no espaço.
A autora faz remontar o háptico na arte ao Pitoresco, que acredita haver sido o veículo
para um caminhar face à imagem e imaginação hápticas; porque privilegia, não uma estética
da distância, mas um sentir através do olho, o Jardim e o Pitoresco, lugares privilegiados da
deambulação feminina, abrem caminho a uma inédita espectadora mulher, marcando, desde
logo, o háptico enquanto espaço preferencialmente feminino. Nele se assume uma montagem
de múltiplas e assimétricas vistas, numa estética da fragmentação e descontinuidade, que
reage à perspectiva clássica unificada e central do Modelo Albertiniano, na qual se oferecia um

31
espaço homogéneo que, como se existindo em frente do corpo, poderia ser visto com um
único e imóvel olho.
Longe deste perspectivismo, a caminho de uma visão táctil de espaço, é-nos oferecido
um espaço heterogéneo, composto de centros em movimento; desenha-se um complexo
sistema de linhas perspécticas que invocam a acumulação de vistas de um olho em
movimento, como que narrativizando a arquitectura: o espectador, situado dentro, divaga
pelo espaço seguindo as direcções da sua narrativa (Figura 834).
A recusa da perspectiva tradicional, por meio do háptico, parece efectivar-se na
reacção a um olhar masculino que se vem fixando sobre a mulher e que a contamina de uma
alteridade que a relega implacavelmente para a condição de Outro, por oposição a um mesmo,
masculino (BEAUVOIR, 2009). Tal entendimento é notório em Dürer (Figura 935) que, tomando
a metáfora albertiniana da pintura enquanto janela aberta para o mundo, faz uso de uma
grelha que permite passar com exactidão o real para o espaço da representação; através de
um ecrã, o homem olha a mulher num intuito último de apropriação de alteridade.
A geometria e a perspectiva impõem, deste modo, a ordenação do corpo feminino
expondo uma antiga dicotomia na qual o masculino se liga à cultura e o feminino à natureza; a
mulher, deitada em jeito de objecto a ser estuado, abundante de curvas e linhas onduladas,
oferece-se à disciplina reguladora de uma arte ilusionista – da perspectiva –, por mão de um
homem, compenetradamente sentado, envolto de formas aguçadas e verticais, fálicas. A
própria tradição do nu feminino se revela acto de regulação de um corpo e sexualidade que
vêm sendo encarados enquanto transgressivos; a alteridade do corpo feminino, representando
perigo, pois potencial ameaça à ordem do mesmo, vê-se, deste modo, contida por barreiras,
convenções e poses: a geometria e a perspectiva imputam uma inexorável ordem ao corpo
feminino. Os dois géneros se encontram em posições inteiramente opostas e, separados pelo
vidro de Dürer, um dos lados se vê rodeado por uma moldura que o torna imagem –
lembrando John Berger (BERGER, 2008) a propósito da problemática da imagem: o homem
age; a mulher aparece. A História da Arte viu-se, ela mesma, dotada, invariavelmente, de
raízes dicotómicas e discriminatórias, fazendo-se sobretudo do reconhecimento de homens
artistas. A mulher, pertencendo ao lado da imagem, é objecto de um escopofílico olhar
masculino (MULVEY: 2009).
A teorização do gaze, do olhar, é exposta de modo pioneiro por Laura Mulvey no
ensaio Visual Pleasure and Narrative Cinema, publicado na revista Screen, em 1975 (MULVEY,
2009: pp. 14-27), e nele se perscruta o império do olhar masculino sobre o desejo e discurso

34
Vide p. 102 da presente dissertação.
35
Vide p. 103 da presente dissertação.

32
femininos. Partindo de Jacques Lacan, Mulvey analisa o estereotipar e objectivar da mulher no
ecrã cinematográfico como resultantes de um estruturar do cinema em torno de três modos
de olhar, masculinos por excelência: o olhar voyeurista da câmara do realizador,
historicamente masculino; o olhar do actor no contexto da narrativa, também ele masculino,
que transforma a mulher no seu objecto de olhar; e o olhar do espectador que se vê levado a
identificar-se com aquele do actor. Relembra-se a teorização lacaniana da fase do espelho na
construção do ego – na qual se toma o reflexo da criança enquanto o modelo e a base de
identificações futuras, postulando a ideia de que o eu se constrói, em primeira instância, a
partir do outro, da imagem que lhe é devolvida pelo semelhante, mas é apenas quando este se
reconhece no espelho que a imagem reflectida se torna modelo do ego36 – e a sua ligação à
pintura face à exigência de se ser olhado a partir de fora (Lacan, 1997: p. 106); o olhar
emanante do próprio quadro capturaria e far-se-ia coincidir com o olhar do observador. O
olhar do espectador não é, deste modo, senhor de si; o espectador torna-se objecto do olhar
do quadro. É de notar, ainda, o contributo de Julia Kristeva na discussão deste olhar do
espectador que seguiria cegamente a pintura no seu detalhe, e se estabeleceria cativo, aí, no
seu centro (KRISTEVA, 1989: p. 114). De modo análogo, Ann Kaplan (KAPLAN: 1983) dirige
profunda crítica ao olhar cinematográfico sobre a mulher, nomeadamente no que se refere ao
cinema de Hollywood, no qual se oferecem imagens cuidadosamente construídas da mulher,
perpetuando a ilusão de verdade e naturalismo de tais imagens e legitimando, assim, os
mecanismos fetichistas e voyeuristas que as suportam.

O carácter emancipador do háptico na teorização da sexualidade feminina

Tal escopofílico olhar masculino mostra-se sintoma, na óptica de Luce Irigaray, de uma
cultura ocidental dominada por uma lógica na qual prevalece o gaze, a fetichização da visão.
Este olhar é o motor erótico do homem, contudo, parece não o ser para a mulher: outros
sentidos desempenharão aí um importante papel, entre eles, o tacto. Vem-se, no entanto,
largamente teorizando o desejo feminino enquanto gratuito, acidental, suplementar ao
essencial – o do homem – e, como tal, não verdadeiro, assumindo posteriormente o duplo
papel de impossível e proibido. Este desejo e prazer parecem existir unicamente na medida em

36
A fase do espelho processar-se-ia em três momentos distintos: num primeiro momento a criança
perceberia o seu reflexo no espelho como se fora um ser real – a imagem é tomado por um outro –;
num segundo momento, a criança reconheceria o reflexo enquanto imagem, e portanto enquanto não
sendo real; num último momento, a criança reconheceria por fim, no reflexo do espelho, uma imagem
de si própria.

33
que servem o sujeito masculino, pois a sexualidade feminina bate-se com o privilégio histórico
do demonstrável, tematizável e formalizável de uma economia da verdade que se confunde
com uma economia outra, fálica.
A economia em vigor, falhando em compreender a líbido feminina – porque
transgressora, sem medida, simulacro37 – relega-a para uma ligação a civilização outra, mais
antiga ou primitiva, de linguagem inteiramente diferente, pois o desejo feminino não se fará
expressar na mesma língua que o masculino nem partilhará da mesma lógica falogocêntrica
que domina o Ocidente desde a Antiguidade grega. Tal lógica é iminentemente visual, nela
predomina o olhar e a discriminação e individuação da forma, desligada por completo do
erotismo feminino. Ora, o prazer da mulher parece encontrar-se ligado ao toque, em
detrimento da visão, e a sua «entrada numa dominante economia escópica significa, mais uma
vez, o seu consentimento à passividade: ela será o bonito objecto de contemplação»38
(IRIGARAY, 1985: p. 26). O seu corpo, erotizado, é submetido a um duplo movimento em que
se lhe exige, a um tempo, exibição e castidade, servindo a estimulação do desejo do sujeito
masculino. O imaginário sexual ocidental vem olhando a mulher enquanto objecto na busca de
prazer do homem e adereço na encenação das fantasias masculinas; ela pode aí encontrar
algum prazer, mas tal prazer será, em última análise, uma «prostituição masoquista do seu
corpo a um desejo que não é seu, deixando-a num familiar estado de dependência do
homem»39 (IRIGARAY, 1985: p. 25).
Deste modo, também a psicanálise falha em encontrar valor no desejo da mulher, um
desejo de que esta parece não ter consciência e que fundamenta todas as máscaras e facetas
da feminilidade que dela se espera que cumpra. A propósito do prazer feminino, Lacan
(LACAN: 1975) menciona Bernini, nomeadamente no âmbito do Êxtase de Santa Teresa (1645-
1652), na Igreja de Santa Maria della Vittoria, em Roma, como se a única hipótese de aceder a
tal prazer fosse através da escultura – não pouco virtuosa, é certo – de um homem. Tais
objectos domináveis, compreensíveis, apropriáveis, são a única referência ao desejo feminino
aceitável na lógica do masculino.
A sexualidade e o prazer femininos são plurais e, como tal, inconcebíveis por uma
economia falogocêntrica que privilegia o um e os toma unicamente enquanto complemento ao
sexo único, masculino. A geografia do prazer feminino é extensa, múltipla, complexa e
dinâmica, insubmissa ao domínio de um imaginário fixado na mesmidade, estendendo-se

37
Como se notará no capítulo seguinte.
38
«*…+ entry into a dominant scopic economy signifies, again, her consignment to passivity: she is to be
the beautiful objecto f contemplation».
39
«*…+ a masochistic prostitution of her body to a desire that is not her own, and it leaves her in a
familiar state of dependency upon man».

34
continuamente para lá desse um cuja forma se lhe tenta incutir, sendo «frequentemente
interpretado, e temido, enquanto uma espécie de fome insaciável, uma voracidade que o
engolirá por completo»40 (IRIGARAY, 1985: 29), implicando, deste modo, uma economia
inteiramente outra, não linear, que desconsidere o objecto-meta de um desejo, dilua a
polarização de um prazer singular e a fidelidade a um único discurso.
Irigaray defende, neste sentido, que a mulher se encontra já num ponto totalmente
diverso da máquina discursiva, «pois também naquilo que diz, pelo menos quando se atreve, a
mulher está constantemente a tocar em si mesma»41 (IRIGARAY, 1985: p. 29), e, assim que diz,
encontra-se já distante de um dado significado, encontra-se já num ponto a ele exterior e,
como tal, interior a si mesma, «interior à intimidade daquele toque silencioso, múltiplo,
difuso»42 (IRIGARAY, 1985: p. 29).
A ligação do feminino ao toque parece exercer-se por meio de um desejo de
proximidade em detrimento de uma noção de propriedade, um desejo por uma proximidade
«tão pronunciada que torna impossível toda a discriminação de identidade, e assim todas as
formas de propriedade»43 (IRIGARAY, 1985: p. 31). O prazer da mulher parece implicar uma
incessante troca entre si e o outro – que pode ser ela mesma, pois múltipla – sem a
possibilidade de se identificar qualquer um deles, resultando, em última análise, num
profundo questionar de «todas as economias prevalecentes: os seus cálculos são
irremediavelmente frustrados pelo prazer da mulher, à medida que este indefinidamente
aumenta pela sua passagem pelo outro.»44 (IRIGARAY, 1985: p. 31).
Irigaray, na exaustiva crítica que dirige aos pressupostos psicanalíticos de Freud e
Lacan, sugere que a mulher encontra na criança a que dá origem, um espaço em que o seu
desejo de toque e contacto pode existir livremente, alertando, contudo, para o risco de
alineação de tal desejo pelo «tabu contra o toque, de uma civilização altamente obsessiva»45
(IRIGARAY, 1985: p. 27). A criança surgirá, portanto, exercendo um papel de mediação entre os
dois sexos e a maternidade parecerá disponível a colmatar os hiatos de uma sexualidade
feminina altamente reprimida. No entanto, a interdição edipiana mostra-se implacável e
oferece meios de perpetuação do autoritário discurso do pai, promulgado numa cultura em

40
«*…+often interpreted, and feared, as a sort of insatiable hunger, a voracity that will swallow you
whole».
41
«For in what she says, too, at least when she dares, woman is constantly touching herself».
42
«*…+ within the intimacy of that silent, multiple, diffuse touch».
43
«*…+ so pronounced that it makes all discrimination of identity, and thus all forms of property,
impossible»
44
«[This puts into question] all prevailing economies: their calculations are irremediably stymied by
woman’s pleasure, as it increases indefinitely from its passage in and through the other.»
45
«*…+ the taboo against touching of a highly obsessive civilization».

35
que os desejos do homem e da mulher se mostram estranhos um ao outro (IRIGARAY, 1985: p.
27).
Excesso que excede o senso comum, também a produção literária e artística feminina,
tende a privilegiar, não o olhar, mas um «levar cada figura de volta à sua fonte, que é entre
outras coisas táctil»46 (IRIGARAY, 1985: p. 79). Tal reestabelecer de contacto com a origem,
sem nunca se transformar nela – qual unidade –, privilegia a simultaneidade e fluidez que
tendem a resistir à lógica discursiva dominante, dada a dificuldade inerente à sua
conceptualização, resistindo, deste modo, a toda a forma, ideia ou conceito estabelecida.

O derrubar da lógica falogocêntrica subjacente à perspectiva clássica

Mostra-se, deste modo, premente que se questione e repudie a economia


falogocêntrica pois, enquanto vinculada ao comércio estabelecido em que se vê tomada por
objeto de transacção entre sujeitos quais o pai ou o marido, a mulher não poderá reclamar o
seu direito ao prazer. Irigaray aponta como estágios indispensáveis a tal projecto um «manter-
se distante do homem o suficiente para aprender a defender o seu desejo, sobretudo através
do discurso, descobrir o amor de outras mulheres enquanto abrigada das escolhas imperiosas
do homem que a colocam na posição de mercadoria rival, forjar para si um estatuto social que
comporte reconhecimento, ganhar a sua vida por forma a escapar da condição de prostituta
*…+»47 (IRIGARAY, 1985: p. 33). A autora deixa, contudo, uma advertência para o perigo de cair
num simples reverso da ordem em vigor pois aí se veria, a longo prazo, um repetir da história,
um retorno à mesmidade, ao falocrático que, uma vez mais, negaria espaço à sexualidade,
imaginário e linguagem femininos (IRIGARAY, 1985: p. 33). Pois até mesmo o isolamento da
“proximidade” enquanto tal ou a sua redução a uma simples declaração, pode resultar na
apropriação do feminino pelo discurso.
Alain Bois e Rosalind Krauss notam, em Formless: a User’s Guide (BOIS e KRAUSS,
1997), parecer surpreendente que a divisão estrita entre o visível e o carnal se tenha mostrado
por tanto tempo hermética, dada a presumível investigação da escultura no âmbito desta
problemática, contudo, a escultura ocidental até Rodin, se não permanentemente frontal,
havia sido pelo menos pictoral, mapeando incessantemente a ordem carnal para o plano do

46
«*…+ takes each figure back to its source, which is among other things tactile.»
47
«*…+ keep themselves apart from men long enough to learn to defend their desire, especially through
speech, to discover the love of other women while sheltered from men’s imperious choices that put
them in the position of rival commodities, to forge for themselves a social status that compels
recognition, to earn their living in order to escape from the condition of prostitute».

36
visível. Krauss havia já proposto no ensaio de 1986 sobre Bataille, Antivision (KRAUSS, 1986:
pp. 147-154), um questionar das prerrogativas do sistema visual na base da teoria da arte,
conduzindo a um outro pensar do objectivo da representação e da actividade artística. Parece
ser neste sentido, a par de uma reabilitação da percepção háptica ligada ao feminino, que as
obras de Fragateiro se podem propor ser pensadas.
Em Não Ver (Figura 5 e 648), espelhos cobrem o chão, adequando-se de modo exacto
ao espaço onde são instalados, num esforço pela mimese. Subvertem, contudo, a valência das
lajes que mimetizam, impedindo a mobilidade sobre si mesmos, num apelo à exploração
sensorial e sua consequente perturbação. Remetem-nos para as ilusões criadas pelo espaço
perspéctico da pintura – lembre-se, aliás, Brunelleschi e as primeiras experiências sobre a
perspectiva, onde a Piazza del Duomo se reflectia condicionada por um ponto de vista único –,
no qual se dirige a imagem de um único ponto espacial a um outro de onde o olhar parte,
interpelando um espectador sem corpo: um olhar idealizado e soberano sucessivamente
considerado masculino; o voyeur de Mulvey. Em Não Ver, o espectador não mais se alinha com
o olhar do artista, e a sua sensação de segurança espacial é perturbada pelo espelho que
aprofunda e corta, a um tempo, o espaço, numa vertigem do corpo, e cuja inclinação se
empenha em destruir o olhar singular e dirigido – masculino –, num dissolver da sensação de
integridade corporal num corps morceaux lacaniano (Figura 649). Desconvoca-se, deste modo,
o modelo clássico monocular e panóptico, no qual a perspectiva se encontra desligada do
corpo, e abre-se lugar a um espaço háptico onde se elidem as noções de interior e exterior. O
espaço mostra-se fulcral, sublinhando a característica de site specific.

O carácter eminentemente nómada do espaço háptico

O espaço háptico que se sugere, assim, em Não Ver, é materializado na Caixa para
Guardar o Vazio (Figura 750), exequível pelo caminho aberto por Krauss e a sua teorização da
escultura no campo expandido (KRAUSS, 1984: pp. 31-42).
O influente ensaio de Krauss, originalmente publicado no número 8 de October, na
Primavera de 1979, apresenta-se marco fulcral no pensar da escultura, libertando-a do
impasse a que havia sido votada pelo modernismo. Conceber a escultura enquanto categoria
de incomensurável maleabilidade e abrangência amarrava-a a uma rede de oposições binárias;

48
Vide pp. 99 e 100 da presente dissertação.
49
Vide p. 100 da presente dissertação.
50
Vide p. 101 da presente dissertação.

37
é problematizando tal conjunto de oposições que se permite que se conceba a escultura, não
mais tendo por referência os meios de que aí se faz uso, mas os movimentos lógicos que a
ligam a uma construção cultural. Pensando sobretudo a Land Art, cuja presença vinha
ganhando significativa expressão, o ensaio de Krauss recorre à análise do trabalho de artistas
quais Robert Morris, Robert Smithson ou Alice Aycock.
A autora acusa a desmedida elasticidade de campos quais a pintura ou a escultura – de
particular incidência na crítica da arte Americana do pós-guerra –, de esconder, na verdade,
um perigoso historicismo. Converte-se a estética de vanguarda em algo familiar e inofensivo
ao pensá-la enquanto evolução gradual a partir das formas do passado (KRAUSS, 1984: p. 31),
arrancando-lhe, deste modo, a diferença e radicalidade. Tal se passa, em particular, com a
escultura minimalista da década de 1960, em torno da qual a crítica cedo se empenhou em
construir uma genealogia que legitimasse a identidade escultórica destes objectos cuja
inerente estranheza se envolvia de ameaçadores contornos face a uma ordem estabelecida. O
construtivismo de Naum Gabo, Tatlin e Lissitzky serviu tal propósito, desconsiderando-se por
completo a distância abissal que separava as preocupações e conteúdos de um e outro
movimento.
Na década de 1970, no entanto, este tipo de relações mostrou-se progressivamente
mais difícil de forjar, forçando a um recorrer à invocação de milénios anteriores para a
legitimação histórica dos trabalhos que vinham surgindo. O termo escultura havia sido
alargado a uma categoria de carácter universal e encontrava-se agora à beira do colapso, pois
a abrangência excessiva conduzira a um esvaziamento do conceito. O termo deveria fazer-se
referir, pelo contrário, a uma categoria historicamente delimitada e não universal, dotada de
lógica interna própria e regida por um conjunto específico de normas (KRAUSS, 1984: p. 33); e
por forma a pensar a escultura contemporânea mostrava-se essencial que esta se demarcasse
definitivamente da lógica do monumento (Idem).
Ora, a lógica da escultura vinha-se desenvolvendo a par da lógica do monumento,
tomando-se a escultura enquanto representação comemorativa, ligando-a a um lugar preciso
e fazendo uso de uma linguagem simbólica, através da qual se articularia sobre o seu
significado e lugar. A autora oferece, neste ponto, o exemplo da estátua equestre de Marco
Aurélio, na praça do Capitólio em Roma, e da Conversação de Constantino de Bernini, no
Vaticano. Tal lógica da representação, servindo-se da figuração e verticalidade, bater-se-ia de
frente com uma lógica outra, da conceptualização e da abstracção. Naquela, o pedestal
reveste-se de preponderante papel pois é o intermediário, o veículo, entre a localização real e
o signo representacional – a significação da obra. Marcando a distância entra a obra e o
observador e, deste modo, revestindo a escultura de um carácter impermeavelmente solene, o

38
pedestal mostra-a desprovida de conceitos próprios para se dizer a si mesma e, fazendo uso de
temas maiores que o observador, como que o “esmaga” e afasta dela.
Esta lógica do monumento começa a mostrar-se insuficiente no final do século XIX,
tendo como marcantes momentos de transição As Portas do Inferno e Balzac de Rodin, de
1880-1917, e 1897, respectivamente. Ambas as obras vêm a fracassar enquanto monumentos
pois entram no «espaço do que se poderia chamar de sua condição negativa – um tipo de
deslocação, ou ausência de sítio, uma absoluta perda de lugar»51, marcando, deste modo, a
entrada no período moderno da produção escultórica, «produzindo o monumento como
abstracção, o monumento como um mero sinal ou base, funcionalmente deslocado e
largamente auto-referencial»52 (KRAUSS, 1984: p. 35). Tal deslocação e auto-referência da
escultura traduzem-se numa condição eminentemente nómada que agora a envolve: a
escultura, numa fetichização da base, prolonga-se para baixo e absorve finalmente o
pedestal53, desmarcando-se do local; fundamentalmente auto-referencial – autotélica –,
assume os seus materiais e processos internos enquanto parte da própria escultura,
sublinhando o carácter autónomo destes, e abrindo mão da implacável relação com a
exterioridade, mostrando-se agora autocentrada, mergulhando em si mesma numa busca por
si e pela sua essência. Agora transportável, porque liberta de uma base que a acorrentava ao
local e a uma exigência de frontalidade, a escultura desenvolve-se a par de uma progressiva
abstração: veja-se Brancusi e seus fragmentos, inteiramente libertos da localização de um
corpo completo.
O entender da escultura, na sua condição negativa, desenvolve-se neste espaço; no
entanto, começa a aproximar-se, na década de 1950, de uma pura negatividade e, como tal, de
uma progressiva dificuldade de definição por recurso a um conteúdo positivo. A escultura vê-
se, neste sentido, transformada numa espécie de ausência ontológica (KRAUSS, 1984: p. 36),
uma combinação de exclusões, soma de termos negativos quais não-paisagem ou não-
arquitectura, apontando para aquilo que se encontra na paisagem e não é, na verdade,
paisagem e aquilo que se encontra no espaço arquitectónico e não é, na realidade,
arquitectura. Os objectos estabelecem continuidade ou choque visual com a paisagem e a
arquitectura mas são-lhes irremediavelmente estranhos.
Apesar disto, os termos não-paisagem e não-arquitectura revelam-se, na óptica de
Krauss, de significativo interesse. São sintoma de uma estrita oposição entre o construído e o

51
«*…+ space of what could be called its negative condition – a kind of sitelessness, or homelessness, an
absolute loss of place».
52
«*…+ producing the monument as abstraction, the monument as pure marker or base, functionally
placeless and largely self-referential».
53
Que será, posteriormente, reintroduzido por Marcel Duchamp em tom desafiador e irónico.

39
não construído, o cultural e o natural, que, a partir dos finais da década de 1960, começará a
ser colocada em causa pela prática escultórica. Expandindo a lógica binária por recurso às
teorizações estruturalistas, Krauss faz corresponder a arquitectura à não-paisagem e a
paisagem à não-arquitectura, convertendo a escultura num campo logicamente expandido. Tal
implica voltar a equacionar os termos paisagem e arquitectura, termos que podem servir o
escultórico na sua acepção negativa ou neutra. Problematiza-se, deste modo, o conjunto de
oposições em que se encontrava encarcerada a categoria de escultura – não mais existindo
enquanto meio-termo entre dois termos diametralmente opostos.
A teorização do campo expandido servirá artistas quais, a título de exemplo, Robert
Morris, Robert Smithson, Richard Serra, Bruce Nauman ou Alice Aycock, acusando, na óptica
de Krauss, uma necessidade por um entendimento e um termo distintos do modernismo: o
pós-modernismo.

Não Ver e A Caixa de Fragateiro parecem poder inscrever-se nesta abertura de


possibilidades, explorando possíveis combinações escultóricas entre arquitectura e não-
arquitectura. Produz-se em ambas uma intervenção no espaço real da arquitectura: mediante
o emprego dos espelhos e a construção de um espaço dentro de um espaço – com as suas
possibilidades, em ambos os casos, de abertura e fechamento sobre a realidade do espaço.
O percurso de Fragateiro faz-se de constante errância no, e para lá do domínio da
escultura; a sua trajectória mostra-se já muito distante de uma exigência moderna de distinção
estrita e estanque das práticas e meios artísticos. A pós-modernidade traz consigo a
possibilidade de se libertar a definição da prática, da determinação do meio; esta define-se
agora por força das operações lógicas sobre um conjunto de termos culturais, em prol dos
quais qualquer meio se torna viável – inclusivamente meios tradicionalmente estranhos à
escultura, quais os espelhos ou os recursos e escala arquitectónicos em acção n’A Casa. A
exploração da escultura na sua inflexão arquitectónica é ainda sublinhada pela possibilidade
de entrar nas obras de Fragateiro e de as habitar – com particular incidência em A Casa. A
fetichização do objecto escultórico – agora algo passível de apropriar – por meio da anulação
do plinto, e consequente dessacralização da obra, permite que a obra se liberte da solenidade
em que se encontrava aprisionava e exista agora perto do espectador, permitindo uma quase
promiscuidade com a obra, pois este, para além de a poder olhar de todos os ângulos, passa a
poder, de igual modo, habitá-la através do seu próprio corpo. Fragateiro denota preocupação
profunda com o carácter performativo da obra, incitando a interacção do espectador com
esta, a vivência corporal desta, intensificando-se a experiência do corpo enquanto lugar físico
onde se estabelecem as operações estéticas.

40
Este conceber da escultura parece poder prestar-se a uma estrutura rizomática pois
«trata-se obviamente de uma abordagem do pensar sobre a história da forma diferente
daquela das construções de elaboradas árvores genealógicas da crítica historicista»54 (KRAUSS,
1984: p. 42). A árvore e a raiz, enquanto imagens do pensamento, devolvem continuamente a
lei do Um que devém dois, que legitima uma lógica binária assente no mimetismo e que
dominará todo um modelo epistemológico baseado num sistema de decalque e retorno a um
mesmo, no qual todas as proposições derivam hierarquicamente de um conjunto de princípios
primeiros, preposições mais essenciais que as restantes, e a eles retornam. Decalcando algo já
existente a partir de estrutura sobrecodificante ou eixo-suporte, «a árvore ou raiz inspiram
uma triste imagem do pensamento que não para de imitar o múltiplo a partir de uma unidade
superior, de centro ou segmento» (DELEUZE e GUATTARI, 2004: p. 37). Deleuze refere, neste
ponto, a linguística e a psicanálise como subjugadas a este modo de pensar.
No rizoma, qualquer ponto se pode conectar a uma multiplicidade de quaisquer outros
pontos; é estrutura do conhecimento que se elabora de modo simultâneo a partir de todos os
pontos. O múltiplo rizomático não se constrói adicionando uma dimensão superior, não mais
tem uma relação com o Um; não tem sujeito ou objecto, apenas determinações, dimensões
que implicam uma mudança de natureza constante. A multiplicidade do rizoma define-se pela
conexão de linhas abstractas, linhas de fuga ou de desterritorialização, mudando
constantemente de natureza por força de tal conexão. Sem início ou fim, pode ser
interrompido em qualquer lugar pois retomará segundo linhas diversas, que não cessam nunca
de apontar para outras. É pelo meio que o rizoma se expande.
Sistema a-significante, não-hierárquico, compreende linhas de segmentaridade a
partir das quais se estratifica e territorializa, organizando-se e significando; mas igualmente
linhas de desterritorialização através das quais escapa incessantemente. O dualismo e a
dicotomia nunca terão aí lugar: existe liberto de qualquer modelo estrutural ou generativo, é
diverso de qualquer eixo genético. Deleuze e Guattari consideram, em relação a uma América
dividida entre Este e Oeste – árvore e rizoma, respectivamente –, que o Oeste «com os seus
Índios sem ascendência, com o limite sempre a escapar-se, as fronteiras movediças e
deslocadas» (DELEUZE e GUATTARI, 2044: p. 41) se apresenta fundamentalmente rizomático.
Ele é mapa e não decalque, é experimentação directa sobre o real, não se reproduz: constrói-
se.

54
«This is obviously a different approach to thinking about the history of form from that of historicist
criticism's constructions of elaborate genealogical trees».

41
A escultura no campo expandido, pressupondo «a aceitação de rupturas definitivas e
da possibilidade de olhar os processos históricos do ponto de vista da estrutura lógica»55
(KRAUSS, 1984: p. 42), parece aproximar-se deste sistema rizomático. E o háptico, terreno de
cruzamento, espaço recíproco – física e culturalmente –, parece assumir-se, neste sentido,
enquanto um rizomática estar entre.

O espaço enquanto possibilidade

Ora, A Caixa parece propor, neste sentido, um afastamento de um entendimento da


espacialidade enquanto um estar perante, no qual o espectador se situa passivamente – caro
ao modelo estético contemplativo. Propõe-se, antes, um penetrar do espaço numa obra que
se mostra tangível. Os dispositivos implicam uso e habitação – implicam corpo –, e, de
múltiplos pontos de contacto, tão múltiplos quanto os corpos que os habitam, a obra abre-se
ao exterior e consente que este se apodere de si. Multiplicam-se mecanismos que a fazem
metamorfosear-se no espaço e crescer; complexifica-se e multiplica-se o interior e o exterior e
as próprias entradas deixam de ser claras – nenhuma se sobrepõe. A madeira abre-se ao toque
e o espelho afirma-se possibilidade espacial; criam-se relações entre realidade e virtualidade
num prolongamento simultaneamente virtual e real do espaço. Os ângulos de visão
multiplicam-se propondo um espaço onde o olho adquire uma função háptica desconvocando
o modelo clássico da visão estática e absoluta. Fragateiro propõe um espaço enquanto
possibilidade, enquanto experiência; a visão não domina, pelo contrário, é recusada em prol
de uma sensibilidade de base no nomadismo – agente privilegiado da percepção háptica.
A arte nómada de sujeitos que não mais têm terra, orientados pelo corpo ao invés do
olhar, incumbe o olho de função háptica, numa «animalidade que não se pode ver sem lhe
tocar em espírito, sem que o espírito não se torne um dedo, mesmo através do olho»
(DELEUZE e GUATTARI, 2004b: p. 627), qual caleidoscópio oferecendo ao olho uma função
digital. Em detrimento de uma colocação do sujeito no espaço estriado do quadro crítico
dominante, este se lança num espaço liso em cuja orientação se faz pelo contacto imediato
com os objectos e ideias, colocando a nu as relações a eles imanentes.
Transgressivo, complexo, múltiplo, dinâmico, nómada, o feminino mostra-se
insubmisso ao domínio de uma lógica do Um, do mesmo; exigindo, antes, lógica outra, não-
linear, receptiva do múltiplo e do toque, rizomática e háptica.

55
«It presupposes the acceptance of definitive ruptures and the possibility of looking at historical
process from the point of view of logical structure».

42
Ora, o háptico em Fernanda Fragateiro projecta-nos, em última análise, para fora de
nós; o toque ensina o olho a ver para lá de si. E, quer por provocação das certezas dos pontos
de vista, quer pela concretização de uma alternativa a essas certezas, abre, em última análise,
a possibilidade de um ponto de vista feminino, múltiplo, libertando a mulher da exclusividade
do espaço da representação e abrindo-lhe a possibilidade de errância no espaço da criação. A
obra de Fragateiro mostra-se, como tal, absolutamente relevante num repensar da escultura,
do espaço e do olhar.

43
PARTE III

O Simulacro em Ana Vieira

Toma-se em análise, no presente capítulo, a obra da artista plástica portuguesa Ana


Vieira (Coimbra, 1940), num ensaiar da aproximação de obras como Ambiente, de 1971 (Figura
1056) e Ambiente, de 1972 (Figura 1157), a um entender deleuzeano de simulacro.
Nascida em Coimbra, cresce em S. Miguel, nos Açores, e forma-se em Pintura na Escola
Superior de Belas-Artes de Lisboa (1964); de percurso marcado por um questionar do médium,
trabalha o espaço em ambientes, instalações, cenografias, recortes e montagens, que se
parecem oferecer de bom grado a uma análise assente na ligação ao simulacro que se espera
pertinente e fecunda.
Defender-se-á, em primeira instância, o simulacro enquanto poder positivo na
insubmissão ao Logos, ligado, deste modo, à condição feminina, invocando, para o efeito, os
legados teóricos de Deleuze e Irigaray; estendendo-se, de seguida, tal noção aos objectos
construídos pela artista, por forma a pensar, em última análise, a subversiva potencialidade da
invocação do mesmo, sob uma perspectiva deleuzeana, nas obras em estudo.

A Caverna-Ventre

Perscruta-se em Deleuze, na sua investida em derrubar o platonismo – propondo uma


reversão do mesmo –, uma legitimação do simulacro, reivindicando o direito deste sobre
ícones ou cópias e afirmando o seu poder positivo na negação do original e da cópia, do
modelo e da reprodução. Numa subversiva análise da Alegoria da Caverna de Platão, o autor
(DELEUZE: 1990) investiga a distinção platónica entre cópias e simulacros, apontando como
verdadeiro propósito do dualismo platónico o proceder a um seleccionar de entre os
demandantes da verdade, colocando-os numa estrutura de oposições onde se separa o puro

56
Vide p. 104 da presente dissertação.
57
Vide p. 105 da presente dissertação.

44
do impuro, o autêntico do inautêntico, e se testa a mesmidade e a semelhança excluindo o
que aí não cabe (DELEUZE, 1990: p. 254): as cópias, operando no sistema de representação,
são autorizadas pela semelhança que prestam à Ideia – correspondem, por analogia e sob o
princípio da identidade –; já os simulacros se olham como falsos, corrompidos pela
dissemelhança cujo âmbito é o do sensível – de índole, deste modo, inferior, subversivo e
contra a Ideia, o Pai. O neófito outrora acorrentado, ao voltar o olhar na direcção da fogueira,
não reconhece modelo nos artefactos que aí encontra e que projectam sombras na parede.
Irigaray empenha-se, de modo idêntico, na desconstrução do mesmo texto platónico,
defendendo uma ligação da caverna ao ventre da mulher, ao útero (IRIGARAY: 1985b): a
caverna é a representação – invertida a partir de um eixo de simetria – de algo sempre aí, da
matriz original. Amorfa, excede tudo; furta-se ao domínio do Logos, da lei do Pai. Platão nega-
lhe, no entanto, a condição de origem, pensando-a como mera superfície reflectora sobre a
qual origens transcendentais – a luz do Sol, das Ideias, e da fogueira análoga – se projectam, e
a mulher é assim tomada enquanto receptáculo (PLATÃO, 2005b: 50e): sem face, sem forma
autorizada, diferente, é sujeita às invasivas impressões do Pai. A diferença é, contudo,
impossível de anular, por mais que se lhe imprima a mesmidade.
Ora, tendo por simulacro «uma imagem sem semelhança»58 (DELEUZE, 1990: p. 257), e
seguindo Irigaray, à mulher parece pertencer tal posição: o simulacro constrói-se em torno da
diferença, da dissimilitude, da condição de Outro – léxico beauvoiriano, referente à alteridade
correspondente à condição feminina (SIMONE, 2009) – que escapa à ordem do mesmo, não se
reportando a qualquer modelo, qual cópia.

O simulacro na sua condição feminina

O feminino e correspondente sexualidade vêm sendo invariavelmente pensados na


base de parâmetros masculinos. Neste contexto, o discurso psicanalista, assumindo
pretensões de verdade – de discurso que perscruta a verdade acerca da lógica da verdade –,
olha o feminino enquanto ocorrendo unicamente nos parâmetros dos modelos e leis
concebidas pelo sujeito masculino, fazendo-se conduzir à noção de que não existem dois
sexos, mas um único, legitimando uma prática representacional e sexualidade únicas.
O modelo fálico prescreve os valores da uma sociedade e cultura patriarcais que serão
embutidos no corpus filosófico em noções como propriedade, produção, ordem, unidade,

58
«*…+ an image without resemblance».

45
visibilidade, erecção. A psicanálise segue, a par desta tradição ocidental, escrava do Logos,
reproduzindo continuamente o contexto em que é representada. O olhar psicanalista sobre a
mulher relega-a para uma mera reprodução daquele modelo masculino, as suas zonas
erógenas vêem-se reduzidas a um não-sexo destituído da nobreza do falo (IRIGARAY, 1985a: p.
23) e são inteiramente submetidas a este – existem para o servir. Tal olhar sobre a mulher, que
a julga em termos de falta, atrofia e inveja, nada consegue dizer sobre a mulher ou o seu
prazer.
Irigaray mostra-se incisivamente crítica deste pensar da mulher, acusando a psicanálise
de perpetuar um sistema altamente falogocêntrico, e Freud de ser «ele mesmo um prisioneiro
de uma certa economia do logos»59 (Idem: p. 72). Ora, estabelecendo o mesmo, a Mesmidade,
enquanto dotada de valor a priori, Freud deixa-se voluntariamente rodear de dispositivos
quais analogia, comparação, simetria ou oposições dicotómicas, que se encontram
precisamente na base do Logos, de um pensar falogocêntrico ancorado na imagem da árvore e
da raiz: «Herdeiro de uma “ideologia” que este não questiona, Freud declara que o
“masculino” é o modelo sexual, que nenhuma representação do desejo pode falhar em tomá-
lo como padrão, em se submeter a ele»60 (idem).
A mulher nunca assumirá qualquer relevo no pensar psicanalista sobre a sexualidade,
pois «o feminino é definido enquanto complemento necessário à operação da sexualidade
masculina, e, mais frequentemente, enquanto imagem negativa que fornece à sexualidade
masculina uma auto-representação infalivelmente fálica»61 (IRIGARAY, 1985a: p. 70). Ora,
Freud, definindo a sexualidade feminina exclusivamente por recurso ao sexo masculino,
desconsidera por completo os dois sexos cujas diferenças se articulam na relação sexual e nos
processos imaginários e simbólicos que regulam a sociedade e a cultura. Olhando a mulher
individualmente, sem considerar a relação da suposta patologia – que lhe é imputada como
inerente – a um específico estado social e cultural, reforça e perpetua a submissão desta a um
discurso dominante do Pai, do Logos, silenciando quaisquer demandas que dela pudessem
partir.
O único papel que a mulher parece poder ocupar nesta lógica é o papel de mãe,
pensando-se a criança enquanto substituto do falo de que esta carece. A tradição psicanalista
forçará um entender da mulher enquanto em incessante busca pela apropriação desse falo

59
«*…+ himself a prisoner of a certain economy of the logos».
60
«Heir to an “ideology” that he does not call into question, Freud asserts that the “masculine” is the
sexual model, that no representation of desire can fail to take it as the standard, can fail to submit to it».
61
«*…+ the feminine is defined as the necessary complement to the operation of male sexuality, and,
more often, as a negative image that provides male sexuality with an unfailingly phallic self-
representation».

46
que detém o monopólio do valor cultural, quer através da servitude ao prazer do homem, quer
da gestação de uma nova vida, de preferência masculina; a mulher experienciará o seu prazer
apenas na medida em que espera possuir um equivalente ao órgão masculino. Forçada a
reproduzir o sexo masculino à custa da sua própria especificidade sexual, existindo unicamente
enquanto mãe, enquanto aquilo que leva o ser falante – o homem – a produzir discurso, a
mulher vê-se reduzida àquele ventre platónico, um inconsciente ventre da linguagem do
homem (IRIGARAY, 1985a: p. 94), achando-se desprovida de qualquer relação com o seu
próprio inconsciente – já que se olha como desprovida de um. A mulher toma-se, neste
sentido, por desapropriação essencial, por ausência, êxtase e silêncio.
O sexo da mulher representa o horror de nada para ver62 (Idem: p. 26), uma lacuna
neste sistema de representação escopofílica e desejo, sendo desde cedo excluída da
representação – veja-se a estatuária clássica, na qual a genitália feminina se encontra tapada,
ausente, mascarada. O autoerotismo feminino olha-se enquanto ameaça e o prazer da
genitália feminina, sem forma porque transgressiva do modelo e molde cuja forma se lhe
incute e que esta não consegue nunca cumprir, é negado numa civilização que privilegia o
falomorfismo, «o um da forma, do individual, do órgão sexual (masculino), do nome
apropriado, do significado apropriado . . . [que] suplanta, enquanto separa e divide, esse
contacto de pelo menos dois (lábios) que mantem a mulher em contacto consigo mesma *…+»63
(Idem). Numa cultura assente na numeração e catalogação, a mulher torna-se, deste modo,
mistério, algo intermédio, nem uma coisa nem outra, informe.

O feminino liberto dos constrangimentos da forma

Georges Bataille (BATAILLE: 1993) pensa as categorias lógicas da forma como fazendo
mais que um mero redesenhar, enformar ou moldar da realidade: é através delas que a
realidade adquire significado – toda a realidade está votada a passar por essa grelha de
paradigmas lógicos que, tal como o estruturalismo defendeu, geram significado, quais
alto/baixo, eu/outro, orgânico/inorgânico, natureza/cultura. A isto Bataille opõe o informe,
descrevendo-o como uma subversão da dualidade tradicional entre forma e conteúdo. O

62
«*…+ the horror of nothing to see».
63
«The one form, of the individual, of the (male) sexual organ, of the proper name, of the proper
meaning . . . supplants, while separating and dividing, that contact of at least two (lips) which keeps
woman in touch with herself *…+»

47
informe é, não um tema, substância ou conceito, mas uma operação64. Tal operação afasta-se
do modernismo, ao questionar a oposição entre forma e conteúdo – que é ela mesmo formal,
nascendo de uma lógica binária –, declarando-a nula e vazia.
Em Formless: a User’s Guide (BOIS e KRAUSS: 1997), Yve-Alain Bois e Rosalind Krauss
desenvolvem Bataille, caracterizando o informe como horizontal, de base materialista, pulso e
entropia, respondendo, desse modo, aos mitos fundadores da modernidade. Importa, neste
contexto, sobretudo a primeira característica. O horizontal refere-se mais a um deitar abaixo –
literal e figurativo – que a uma distinta configuração espacial. A rotação implicada por tal
deitar do vertical para o horizontal implica uma ideia de repressão encontrada por Bataille no
facto da oposição horizontal-vertical não se apresentar inteiramente circunscrita às relações
hierárquicas – que Bataille procura inverter e, assim, denunciar – entre homem e animal65,
mas apontar igualmente para práticas simbólicas presentes na versão modernista desta
oposição.
É Cézanne que verticaliza o plano do chão de modo radical. De objectos prontos a
deslizar da sua posição e rolar até aos pés do espectador, a linha de demarcação entre a
parede e o chão é eliminada, mostrando a demarcação entre espaço virtual, vertical, da
visibilidade pura e espaço real ocupado pelo corpo – teorizada desde a Renascença pela
metáfora albertiniana da pintura enquanto janela aberta para o mundo – como ficção.
Em momento posterior, é Duchamp que, com o seu Three Standard Stoppages (Figura
1266), destitui um dos mais arbitrários sistemas de signo – o sistema métrico – do seu pedestal
por forma a mostrar que uma vez sujeito à gravidade, uma vez trazido para baixo – para o nível
do contingente mundo das coisas e dos corpos –, o signo se dissolve enquanto signo, e
retrocede à singularidade. Depois de Duchamp, só passados vinte anos, teremos Giacometti67
a reintroduzir a horizontalidade como operação na arte. O alvo de tal operação não mais seria
a semiótica cubista, mas a estrutura do monumento e o idealismo que o sustenta: a escultura
tornava-se a sua própria base destruindo ou assimilando o plinto. Por fim, a rotação a que
Pollock submeteu a verticalidade – o dripping criado no solo, não na vertical – tornou-se
exemplo máximo do pensar do informe enquanto horizontalidade.

64
Na análise da obra de Manet – em especial Olympia e Déjeuner sur l’herbe, ambos de 1963 –, Bataille
investe-a de valor enquanto operação, ligada ao frustrar das expectativas teatrais do observador por
meio de uma pintura que é expressão crua daquilo que vemos. Faz-se notar, em tal operação, aquilo
que Bataille apelida de informe.
65
Referindo-se ao orgulho humano em ser erecto e ter, desse modo, emergido do estado animal cujo
áxis é horizontal.
66
Vide p. 106 da presente dissertação.
67
Aquando do seu trabalho com Bataille em Documents, nomeadamente La Boule Suspendue (Figura
13), já que depois de 1935 o seu trabalho celebraria a verticalidade.

48
A forma de supressão da margem da relação entre espaço ficcional vertical e espaço
real dos corpos, nessa horizontalidade de que falava Bataille, encontra-se problematizada em
La Boule Suspendue (Figura 1368), de 1930-31, de Giacometti. Ao abrir a escultura à
possibilidade de movimento real – já distante da simulação futurista –, participando assim no
espaço real, Giacometti isola do mundo, a acção, fechando-a na estrutura espaço-gaiola que a
envolve e aprisiona. Dualidade, esta, que remete para uma experiência de descontinuidade e
fragmento. La Boule Suspendue expressa-se nos termos da posse sexual, nos impulsos
surrealistas da posse. O movimento pendular da bola e a consequente relação da sua fenda
com a meia lua no espaço abaixo sugere uma carícia frustrada pela distância que o fio que a
suspende não permite ultrapassar. O toque efectivo é impossível e o espectador experimenta
uma emoção sexual profunda mas indefinível – relacionada com o subconsciente –, não de
satisfação mas de perturbação. A referência sexual neste trabalho é, também ela,
indeterminada: a oscilação real dos objectos comporta uma oscilação do seu significado –
nenhum dos elementos pode ser imputado em exclusivo ao sexo masculino ou ao sexo
feminino, ao activo ou ao passivo.
O informe como pensado por Bataille é retomado por Roland Barths, a partir da
análise do romance L’histoire de l’oeil (1926) do primeiro. Barths (BARTHES: 2005) descreve-o
como modo de criar uma experiência de round phallicism, uma transgressão da lógica formal
que depende das distinções das oposições categóricas e que produz, assim, o carácter
transgressivo da erosão formal em que se concretiza o informe.
A horizontalidade que aqui se investiga parece já muito distante da ordem vertical do
falo, e o informe das zonas erógenas femininas, porque destituídas de medida ou analogia em
relação àquele, parecem sublinhar a importância da ligação entre o feminino e esta noção
batailleana. Ora, o informe, porque essencialmente rizomático, não permite a existência de
uma estrutura hierárquica, de preposições mais verdadeiras que outras, e não tem
precedência derivativa, existindo por si só. A mulher parece resistir a toda a definição para lá
de uma dicotómica oposição ao homem que a acorrenta a uma economia e pensar
falogocêntricos. Sem nome apropriado, sem um órgão sexual que seja um e que por isso conte
por si mesmo, ela é somente tida na medida em que se tem por reverso – inversão – do falo, o
único órgão visível e morfologicamente designável.

68
Vide p. 107 da presente dissertação.

49
A evasão ao Logos

Na representação, como definida pela filosofia, «a arquitectura do seu teatro, o seu


enquadramento no espaço-tempo, a sua organização geométrica, os seus adereços, os seus
actores, as suas respectivas posições, os seus diálogos, de facto as suas relações trágicas»69
trabalham no sentido da construção de um «espelho, na maioria das vezes escondido, que
permite que o logos, o sujeito, se reduplique, de modo a reflectir-se a si por si próprio»70
(IRIGARAY, 1985a: p. 75). O Outro vê-se sujeito às inscrições da forma do mesmo, existindo
enquanto receptáculo que recebe a marca de tudo, tudo reproduz, tudo mimetiza, tudo
entende e tudo inclui excepto ele mesmo: é o ventre da mimese.
A sua relação com o inteligível nunca é efectivamente estabelecida pois tal receptáculo
que tudo sabe e recebe, nada sabe desse tudo: é-lhe perentoriamente negado o «acesso à sua
própria função no que toca à linguagem ou ao significante em geral, uma vez que teria de
servir de suporte (ainda perceptível) dessa função»71 (Idem: p. 101). Serve, antes, de matriz,
ventre, para os significantes do sujeito – masculino –, a causa do seu desejo, do seu valor e
instrumentos de controle.
O prazer feminino vê-se forçado a permanecer inarticulado na linguagem sob pena de
quebrar operações lógicas, sendo-lhe absolutamente vedada a expressão do seu próprio
prazer pois este se encontra situado em processos inteiramente diversos daqueles do reflexo e
da mimese, o « “lugar outro” do prazer feminino pode ser encontrado unicamente a custo de
atravessar o espelho que sustenta toda a especulação»72 (Idem: p. 77). De acordo com Lacan, a
mulher não pode dizer ou conhecer o seu próprio prazer, pois se mostra insubmissa à ordem
na e através da linguagem, ela nada pode dizer do seu prazer, limite de conhecimento.
A rejeição e exclusão de um imaginário feminino obriga a mulher a ter uma experiência
fragmentada de si mesma, permanecendo nas margens de uma ideologia dominante enquanto
excesso, enquanto aquilo «que sobra de um espelho investido pelo “sujeito” (masculino) para
se reflectir a si mesmo, para se copiar a si mesmo»73 (Idem: p. 30). O modelo masculino

69
«*…+ the architectonics of its theatre, its framing in space-time, its geometric organization, its props,
its actors, their respective positions, their dialogues, indeed their tragic relations *…+».
70
«*…+ mirror, most often hidden, that allows the logos, the subject, to reduplicate itself, to reflect itself
by itself».
71
«*…+ access to its own function with regard to language or to the signifier in general, since it would
have to be the (still perceptible) support of that function».
72
«*…+ that “elsewhere” of feminine pleasure can be found only at the price of crossing back through
the mirror that subtends all speculation».
73
«*…+ what is left of a mirror invested by the (masculine) “subject” to reflecte himself, to copy
himself».

50
prescreve-lhe uma feminilidade que terá uma deficiente e praticamente inexistente
correspondência ao desejo feminino.
O feminino define-se, nesta perspectiva, apenas na medida em que se verga à
condição de suporte e conservação do discurso e, em particular, das suas lacunas. Citando
Lacan, Irigaray faz notar que a compensação de tal guardiã da ordem discursiva será, do ponto
de vista da psicanálise, a maternidade «pois nesse prazer em que ela é não-tudo, isto é, que a
torna ausente se si mesma, ausente enquanto sujeito»74 (Irigaray, citando Lacan in IRIGARAY,
1985a: p. 102) ela encontrará o filho. Ora, tal noção da mulher tomada somente na medida em
que desempenha o papel de mãe é inscrita na tradição filosófica e é condição da possibilidade
desta: é sua necessidade e fundação. Jogando com os termos reprodução e produção, Irigaray
acusa uma função de (re)produção imputada à mulher na medida em que dela se espera que
reproduza um discurso e uma lógica específica e que produza um filho no sentido de a
assegurar. Neste contexto, «é a partir da (re)produtiva terra-mãe-natureza que a produção do
logos lhe tentará extrair o seu poder, apontando para o poder do(s) princípio(s) no monopólio
da origem»75 (Idem: p. 102).
O consumo do corpo sexualizado feminino enclausura a mulher numa ordem social
que não a reconhece enquanto sujeito. Irigaray aponta para o termo propriedade enquanto
reflexo desta lógica discursiva e de consumo, articulando-o como proper(ty) e jogando, deste
modo, com os termos proper e property, portanto adequado e propriedade, evidenciando a
clara ligação desta última a um modo de pensar tido por adequado e unívoco, correndo para a
identificação com a forma do mesmo. Operando, tal lógica de consumo, por meio de trocas
não somente sexuais, mas igualmente económicas, sociais e culturais, nele a mulher é tomada
enquanto objecto de transacção a menos que renuncie à especificidade do seu sexo, cujas
características e, em última análise, identidade, lhe são impostas de acordo com modelos que
a ela permanecem exteriores.
Lacan, num corrente esforço por inscrever a mulher no discurso enquanto falta e falha,
afirma não existir «mulher alguma que não seja excluída pela natureza das coisas, que é a
natureza das palavras *…+»76(Lacan, citado por Irigaray in IRIGARAY, 1985a: p. 87). Assim se
legitima a exclusão da mulher do acesso à linguagem; ela mostra-se invariavelmente resistente
ao discurso, ameaçando toda a ordem que o sustenta e que nele se sustenta. A possibilidade
da mulher falar por si mesma nesta lógica falogocêntrica não é sequer equacionada sob pena

74
«*…+ for that pleasure in which she is not-all, that is, which makes her somewhere absent from herself,
absent as subject *…+».
75
«*…+ it is from (re)productive earth-mother-nature that the production of the logos will attempt to
take away its power, by pointing to the power of the beginning(s) in the monopoly of the origin».
76
«There is no woman who is not excluded by the nature of things, which is the nature of words *…+».

51
de se admitir a possibilidade de existência de uma lógica outra, que desafie a do Pai; daí a cega
resistência da psicanálise a equacionar o desejo da mulher e, em última análise, a sua
subjectividade.
Tal exclusão permanece, portanto, inexorável a menos que a mulher recorra a
sistemas masculinos de representação que a desapropriarão da relação consigo mesma e com
outras mulheres, pois «o “feminino” nunca é identificado excepto por meio do masculino, não
sendo, a proposição recíproca, “verdadeira”»77 (Idem: p. 85). No entanto, a posição exterior à
linguagem que ocupa poderá possivelmente, no entender de Irigaray, oferecer um potencial
de posição favorável à elaboração de uma crítica à estrutura económica e política em vigor
pois a mulher se encontra, precisamente, numa posição exterior às leis de troca – ainda que
incluída nelas enquanto mercadoria (Idem). Uma crítica política que terá de se estabelecer a
par de um crítica do discurso, em particular, das pressuposições metafísicas desse discurso.
O Logos filosófico, imperando grosso modo através da redução de todos os outros à
economia do Mesmo, tem projecto teleológico coincidente com um projecto outro, de
deflexão e redução da diferença à mesmidade, culminando, por fim, num sistema de auto-
representação de um sujeito masculino. Mostra-se, deste modo, absolutamente fulcral um
«”reabrir” das figuras do discurso filosófico – ideia, substância, sujeito, subjectividade
transcendental, conhecimento absoluto – por forma a retirar-lhe o que levou emprestado do
feminino *…+»78 (Idem: p. 74). Pois, a menos que a mulher se limite – de modo naïve, diria
Irigaray –, a uma existência nas circunscritas margens do sistema discursivo e lógico, é
precisamente o discurso filosófico que se afigura premente desafiar e destronar – pois,
consistindo num discurso sobre o discurso, dele deriva a lei que regerá todos os demais. É
necessário a evasão da lógica discursiva dominante que mantém o feminino reprimido,
censurado e não-reconhecido; tal prender-se-á com uma profunda cisão com a própria
máquina teórica e a sua pretensão de produção da verdade e de significados unívocos. Uma
retirada da economia do Logos apresenta-se absolutamente premente, e é neste sentido que
se propõe a leitura da obra de Ana Vieira.

Os objectos de Viera, ora reais, na obra de 1972 (Figura 1179), ora virtuais, na obra de
1971 (Figura 1080), habitam, sós, os espaços criados, e mesmo aqueles primeiros teimam em

77
«The “feminine” is never to be identified except by and for the masculine, the reciprocal proposition
not being “true”».
78
« *…+ “reopening” the figures of philosophical discourse – idea, substance, subject, transcendental
subjectivity, absolute knowledge – in order to pry out of them what they have borrowed that is feminine
*…+».
79
Vide p. 105 da presente dissertação.

52
apresentar-se, ininterruptamente, na condição dos últimos – são perversão e desvio;
continuamente outros; simulacro. O objecto desmaterializa-se numa falsa semelhança e, qual
espelho carrolliano, esconde o seu reverso, confundindo-se as fronteiras entre real e virtual,
presente e ausente, dentro e fora, próximo e distante, opaco e translúcido, acessível e
inacessível, público e privado. A artista aborda a arte como passagem para um mundo interior
(MELO: 2011), arriscar-se-ia, um ventre qual Caverna de Irigaray, um espaço interior de reflexo
que se clama origem. Constrói ambientes, cenários, qual Caverna em que se projectam as
sombras, explorando o real e as suas limitações e pressupostos num ensaio de ausências e
presenças.
Vieira questiona, em Ambiente de 1972 (Figura 1181), o plinto e o ritual sacralizante,
quase fúnebre, a ele circunscrito, numa, dir-se-ia, aberta refutação da mimese que opera na
cópia platónica – a submissão ao modelo da Ideia. Aí se entrevê uma Vénus – símbolo da
celebração greco-romana da mimese – que se afasta do mundano e se vê rodeada de silêncio,
cadeiras sem ocupantes. Crítica à monumentalidade e ideais clássicos e a um entendimento da
arte que fetichiza e afasta as obras do espectador, a Vénus exila-se agora perante um público
de ausências e transfigura-se. Entre ela, as cadeiras vazias e o espectador, um véu apolíneo
que ora oculta ora revela – oferece a ambiguidade de um espaço simultaneamente aberto e
fechado, onde um interior se insinua e esconde, a um tempo, perante o olhar voyeur.
O véu volta a fazer-se presente em Ambiente, de 1971 (Figura 1082) – e de resto, ao
longo de grande parte da obra da autora –, onde a mobília da casa de jantar se faz de sombras,
de simulacros. É o véu apolíneo que permite a sobreposição das sombras, que ora ocultam ora
revelam – e revelam não só o espaço e as cópias que o habitam, mas permitem que o olhar o
atravesse e alcance igualmente o espectador em potência no lado contrário da obra. Convida-
se um olhar deambulante, um olhar háptico, a passear num espaço que se transmuta com a
sua passagem – é sempre diverso, de face para face; de máscara para máscara.

A reminiscência da Caverna

O conhecimento faz-se, no texto de Platão, na medida em que o filósofo abandona a


caverna; apenas se liberto dela e das suas correntes – vestígios do mundo sensível – pode o

80
Vide p. 104 da presente dissertação.
81
Vide p. 105 da presente dissertação.
82
Vide p. 104 da presente dissertação.

53
homem aceder às Ideias (IRIGARAY, 1985a: p. 339): apenas se liberto do feminino, parece
dizer-nos Platão, pode o homem transcender. Quando um dos habitantes da caverna é forçado
a sair e a encarar a luz solar do Pai, tudo na caverna deve ser esquecido por forma a lembrar
somente o que é verdadeiro: o mesmo – o mais, o verdadeiro, o correcto, claro, inteligível,
masculino – deve prevalecer sobre o outro – o menos, o diferente, o fantástico, obscuro,
sensível, materno, feminino (IRIGARAY, 1985b: p. 275). O feminino, o materno, é inviabilizado;
tolerado apenas na medida em que assegura a reprodução/produção de duplos, cópias,
simulacros, na medida em que se vê transformado em cenário, em palco e ecrã de projecção.
Ana Vieira parece poder ler-se na linha de uma proposta de reversão desta lógica platónica: a
reminiscência a ter lugar deve ser da matriz/ventre em detrimento do sol/Ideia. Parece
propor-se, por meio da legitimação do simulacro, um lembrar do ventre que se foi obrigado a
esquecer. Aí o espectador reencontrará não só a matriz original, a mulher, mas igualmente a si
próprio: na caverna não era ainda peremptoriamente impossível o reflexo do eu e a reflexão
sobre ele; banindo a “fantasia” da caverna, bane-se o próprio início do homem e a sua estória
– a sua origem passa a ser a Ideia.

Deleuze, no seguimento de Nietzsche, sustenta que, dado o grau de colonização da


caverna/matriz pela Ideia e suas projecções, existe, dentro daquela, uma caverna outra, mais
profunda: um abismo existe no qual o Pai não mais se reconhece (DELEUZE, 1990, p. 263), no
qual não mais se conhece dono de mitos por contar e transformar em fundação: tal caverna
mais profunda não reconhece o mito ou a analogia, é real ainda que virtual; nela impera o
simulacro. Deleuze denomina-a de devir, e o devir não produz outra coisa que não ele mesmo.
Parece ser desta caverna mas profunda que nos fala Ana Vieira, lembrando que o simulacro se
rodeia da libertação imensa da Ideia, do modelo, existindo por si só, autónomo, diferente.
Interrogando o modo como olhamos e aquilo para que olhamos, a artista cria um espaço
háptico que se insinua palpável ao olhar: o olho adquire uma função táctil. Este espaço
nómada, do devir, apela à participação mas esconde o seu reverso: é perpetuamente
impenetrável, obrigando o espectador a rever a posição que ocupa face ao sistema de
representação. O olhar atravessa-o, mas nunca o corpo – a ele se veda a proximidade e o
toque.
Ana Vieira actualiza, em última análise, o simulacro na sua condição feminina: trá-lo à
superfície num último e derradeiro desafio ao sistema de representação falogocêntrico. Pois o
caminho para um imaginário feminino deverá desenvolver-se abrindo mão da mediação do
falo. É por mão do simulacro que se conduz o espectador a um espaço interdito, a uma

54
caverna mais profunda, para que a ela o olhar desça e dela se traga a criativa subversão à
ordem do Pai.

55
PARTE IV

Helena Almeida, o Diagrama e a queda da Pintura

Perscruta-se, no presente capítulo, a leitura de parte da obra de Helena Almeida à luz


da libertadora noção de queda de uma narrativa falogocêntrica, que procede garantindo a
identificação e confirmação de conhecimento que se coaduna com um omnipresente ponto de
vista masculino sob o qual o sistema de signos e linguagem se encontra edificado.
Ora, a figura do diagrama deleuziano, a par do rizoma, permitem que se aborde a obra
de Helena Almeida com base numa obstinada recusa do ilusionismo subjacente à narrativa na
pintura, aos objectos arranjados numa sequência temporal lógica que garantem uma
identidade autoral, linguística, mas igualmente uma identificação por parte do espectador.
Mostra-se premente uma derrocada de tais princípios pois, como o coloca Lisa Tickner, «a
mulher continuará marginal numa História da Arte centrada no objecto. Produzindo alguns
nomes e flertando com a possibilidade de uma entrada do “feminino” nas categorias de
género e estilo existentes, embeleza as margens enquanto as deixa… marginais»83 (TICKNER,
2008: p. 254). A leitura de Almeida, orientada por semelhantes parâmetros, possibilitará a
desmarginalização de uma posição subjectiva feminina e, em última análise, feminista.
Iniciar-se-á o presente capítulo com um perscrutar do fulcral papel da queda da
narrativa na construção de um modo de pensar não-falogocêntrico, seguindo as directivas
diagramáticas de Almeida. Analisar-se-á, de seguida, as deformações levadas a cabo pelo
diagrama na pintura da autora e o investigar, desta, do reverso e da materialidade da pintura
sob o pretexto de revelar o ilusionismo que perpetua a narração. Defender-se-á, no ponto
seguinte, uma abstenção da interpretação guiada por Susan Sontag, e, finalmente, do corpo
aberto, se passará para um háptico e rizomático pensar do “entre”.

Helena Almeida nasce em 1934, estuda Pintura na Escola Superior de Belas Artes de
Lisboa e torna-se bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris, em 1959.

83
«Woman can only stay marginal in an object-centered Art History. Producing a few more names and
flirting with the possibility of a “feminine” input into existing categories of gender and style embellish
the margins while living them… marginal».

56
Realiza, em 1967, a primeira exposição individual de pintura na galeria Buchholz em
Lisboa, e a sua obra ganha notoriedade na década de 70, deixando evidente uma rica
convergência de disciplinas e atitudes: a artista passeia pela fotografia, performance, vídeo,
pintura, escultura e desenho e a, não raras vezes, ténue linha que os separa dilui-se ao ponto
da sua quase inexistência; caracterizando-se, continuamente, por um perpétuo e rizomático
estar entre. Almeida afirma, a este propósito: «Ando em círculo; os ciclos voltam. O trabalho
nunca está completo, tem que se voltar a fazer. O que me interessa é sempre o mesmo: o
espaço, a casa, o tecto, o canto, o chão; depois, o espaço físico da tela, mas o que eu quero é
tratar de emoções» (ALMEIDA, 1998: p. 58). A autora lida com os grandes movimentos
artísticos que marcaram a segunda metade do século XX, tornando árduo – e, dir-se-ia, não
particularmente útil – a sua circunscrição a um deles.

A queda da Narrativa

Deleuze inicia Francis Bacon - Lógica da Sensação (DELEUZE: 2011), obra central do
pensamento deleuziano sobre a pintura, com a problemática da Figura. À pintura se permite
libertar-se do modelo a representar e da estória a contar, escapando ao figurativo por duas
vias possíveis: pela abstração, em direcção à forma pura, e agindo por intermédio do cérebro;
ou pela extracção ou isolamento, em direcção ao figural puro, da índole da sensação.
Distingue-se aqui entre figural e o figurativo; o primeiro termo, de expoente lyotardiano
(LYOTARD: 1972), faz-se equivaler a um uso da maiúscula em “Figura”; o segundo termo,
pressupondo representação, faz-se da relação da imagem com o objecto que ilustra e com
imagens outras, num conjunto composto que lhes dá, a cada uma, um objecto. Dir-se-ia que
Almeida se parece aproximar daquela primeira, da Figura, ligando-se à Lógica da Sensação
deleuzeana. Ora, com o intuído de extinguir o carácter figurativo, de narração e ilustração, que
a figura necessariamente apresenta, defende-se um isolamento da mesma – não somente no
sentido de o quadro ser já de si uma realidade isolada84, mas de a própria figura se dever isolar
dentro do quadro.
Perscrutando a base ideológica em acção na narração, percebe-se que ao sujeito se
nega o acesso imediato ao real – é através de representações que sabemos o mundo. A
realidade será, deste modo, uma questão de representação e a representação, por sua vez,
uma questão de discurso. O entendimento social colectivo é inevitavelmente permeável aos

84
Veja-se o caso das séries, que se vêem impedidas de partilhar moldura.

57
sistemas de representação, que constituirão, assim, o nosso sentido de nós mesmos e a
posição que ocupamos no mundo. A ideologia, apresentando-se sob a capa de complexo de
proposições de senso comum sobre o mundo que se assumem auto-evidentes, concretiza-se
produção e perpetuação de representações que a sedimentam e legitimam; e a narrativa,
convencional meio para representar e estruturar o mundo, terá um papel fulcral nesta
formação: «Uma característica do tipo de sociedade em que vivemos é a produção em massa
de ficções: estórias, romances, novelas, fotonovelas, séries de rádio, filmes, peças e séries de
televisão – ficções em toda a parte, penetrantes em tudo, de consumo obrigatório em virtude
da sua omnipresença, um requisito constante da nossa existência social… Esta produção em
massa de ficção é a cultura do que pode ser chamado de “novelístico”, a constante narração
das relações sociais entre indivíduos, a ordenação de significados para o indivíduo em
sociedade»85 (HEATH, 1982: p. 85).
A narrativa apresentar-se-á continuamente enquanto «uma sequência de algo para
alguém»86 (SCHOLES, 1980: p. 209); desconstruir as ficções de coerência a que se refere Heath,
será deste modo recusar a autoridade das meta-narrativas e a consequente posição subjectiva
de coerência e completude de um sujeito masculino e de um narrador, também ele masculino,
que fundamentam um sistema falogocêntrico.

Cunhado por Derrida, o termo “falogocentrismo”87 é sintoma da simbiose entre


“logocentrismo”, relativo ao privilegiado papel ocupado pelo Logos na tradição ocidental, e
“falocentrismo”, de origem psicanalítica, referente à raiz patriarcal de tal privilegiar. O autor
defende que o significado linguístico se constrói a partir de oposições binárias em cuja eleição
de um dos pólos – conotando-o com o positivo – implica a negação e opressão do outro,
contribuindo para a hierarquização do pensamento ocidental. Neste nota um
«empreendimento no retorno “estratégico”, idealmente, a uma origem ou a uma “prioridade”
tida simples, intacta, normal, pura, padrão, auto-idêntica, de forma a pensar em termos de
derivação, complicação, deterioração, acidente, etc. Todos os metafísicos, de Platão a
Rousseau, Descartes a Husserl, procederam desta forma, concebendo o bem enquanto antes

85
«A characteristic of the kind of society in which we live is the mass production of fictions: stories,
romances, novels, photo-novels, radio serials, films, television plays and series – fictions everywhere, all-
pervasive, with consumption obligatory by virtue of their omnipresence, a veritable requirement of our
social existence… This mass-production of fiction is the culture of what might be called the “novelistic”,
the constant narration of the social relation of individuals, the ordering of meanings for the individual in
society».
86
«*…+ a sequence of something for somebody».
87
O autor emprega-o com o intuito de crítica ao seminário de Jacques Lacan sobre o conto The
Purloined Letter de Edgar Alan Poe; responde ao ensaio Le séminaire sur “La lettre volée” (LACAN: 1999)
no seu Le facteur de la vérité (DERRIDA: 1980).

58
do mal, o positivo antes do negativo, o puro antes do impuro, o simples antes do complexo, o
essencial antes do acidental, o imitado antes da imitação, etc. E este não é apenas um gesto
metafísico entre outros, é a exigência metafísica, aquela que tem sido a mais constante, a mais
profunda e a mais potente»88 (DERRIDA, 1998: p. 93). O pensamento metafísico privilegiará
incessantemente, deste modo, um termo da oposição, e esse termo será, invariavelmente,
aquele ligado ao masculino, ao Logos, ao Pai, pois «uma oposição de conceitos metafísicos
(fala/escrita, presença/ausência, etc.) nunca é a confrontação de dois termos, mas uma
hierarquia e a ordem de uma subordinação»89 (DERRIDA, 1998: p. 21). Neste sentido se
articulará a teoria desconstrucionista proposta pelo autor.
Ora, o desconstrucionismo de Derrida, expondo as grandes narrativas existentes,
revela as hierarquias dualistas que nelas se escondem, permitindo «aos seus praticantes, a
exposição dos traços de um “não-dito” homofóbico, racista, falocêntrico ou sexista sob a
superfície dos textos fundadores do modernismo político, filosófico ou estético»90
(BOURRIAUD, 2009: 15); culminando, tal esforço, na fragilização e deslegitimação da
linguagem do mestre em proveito de uma frágil cacofonia (Idem)91. Operando «através de um
duplo gesto, uma dupla ciência, uma dupla escrita – [um] colocar em prática uma reversão da
oposição clássica e um deslocamento geral do sistema. É nessa condição que a desconstrução
oferecerá os meios de intervenção no campo das oposições que critica»92 (Idem); o
desconstrucionismo não pode, pois, ser restringido ou passar de imediato para uma
neutralização.
De preponderante relevo na cítica feminista, a teorização do falogocentrismo cedo se
vê conotada com a tradição ocidental que toma o falo enquanto exclusivo ponto de referência
e validação da realidade cultural: o pensamento e o discurso – o vocabulário, sintaxe,
gramática, lógica discursiva – organizam-se em torno do paradigma do masculino e sua

88
«The enterprise of returning “strategically”, ideally, to an origin or to a “priority” held to be simple,
intact, normal, pure, standard, self-identical, in order then to think in terms of derivation, complication,
deterioration, accident, etc. All metaphysicians, from Plato to Rousseau, Descartes to Husserl, have
preceeded in this way, conceiving good to be before evil, the positive before the negative, the pure
before the impure, the simple before the complex, the essential before the accidental, the imitated
before the imitation, etc. And this is not just one metaphysical gesture among others, it is the
metaphysical exigency, that which has been the most constant, most profound and most potent».
89
«*…+ an opposition of metaphysical concepts (e. g., speech/writing, presence/absence, etc.) is never
the confrontation of two terms, but a hierarchy and the order of a subordination».
90
«*…+ à ses pratiquants d’exposer les traces d’un “non-dit” homophobe, raciste, phallocentriste ou
sexiste sous la surface des textes fondateurs du modernisme politique, philosophique ou esthétique».
91
Bourriaud notará contudo, de seguida, que o pós-moderno – termo que acusa de vazio – de expoente
desconstrucionista repete, deste modo, a perpétua cissura entre o colono e o colonizado.
92
«*…+ through a double gesture, a double science, a double writing – put into practice a reversal of the
classical opposition and a general displacement of the system. It is on that condition alone that
deconstruction will provide the means of intervening in the field of oppositions it criticizes *…+».

59
sexualidade – um masculino-originário-superior, olhado como norma –, face a um feminino, e
correspondente sexualidade, tributário e inferior, olhado enquanto variação, desvio. Neste
sentido, a artista Susan Hiller afirma: «Eu sou excluída da cultura e das tradições culturais a
não ser que fale como homem – tenha one-man shows, por exemplo!»93 (Susan Hiller
entrevistada por KENT e MORREAU, 1985: p. 150).
A partir de uma posição de domínio, o narrador masculino, Senhor da História,
presume dizer-nos o que realmente aconteceu; servindo-se de eficazes meios de persuasão, e
de uma pretensa omnipresença, responderá, por meio dos seus dispositivos, resoluções e
promessas de autoridade e verdade, à nossa própria irredutível necessidade de coerência e
controlo, revelando-se um complexo processo de identificação, «explorando a nossa
persistência enquanto sujeitos da linguagem na nossa crença de que em algum lugar haverá
um ponto de certeza de conhecimento e verdade»94 (Mary Yates citada por TICKNER, 1985:
27). O prazer que o sujeito terá numa tal narrativa coerente que lhe confirme o seu
conhecimento será análogo ao que Laura Mulvey (MULVEY: 2009), ao perscrutar o papel
desempenhado pelos sistemas de representação no prazer do olhar, reconhece enquanto
prazer último do espectador na sua identificação com a personagem – masculina – que parece
controlar a narrativa e a fazer desenrolar.
Lê-se na obra The Missing Woman de Maire Yates (Figura 1495), na qual a artista
frustra a busca por narrativa e coerência da mesma: «[…] por mais que fotografia seja
equiparada ao conteúdo, e a pintura à “coisa em si mesma” ou “janela-para-o-mundo”,
quando olhamos uma imagem somos os seus aurores através do campo do discurso e
geralmente colocamos as imagens em uso providenciando narrativas para a nossa
satisfação»96. O prazer de um sujeito colocado na posição feminina é um prazer meramente
complementar e de base exibicionista que a fetichiza enquanto espectáculo; compreende-se,
deste modo, a dificuldade de fugir ao fascínio narcisista que exercem as imagens dirigidas ao
homem – encontrando imediata satisfação no seu controlador gaze; a identificação com
aquela sobre quem o olhar cai não é uma posição de conforto.

93
«I am excluded from culture and from cultural traditions unless I speak as a man – have one-man
shows, for instance!».
94
«*…+ exploring our persistence as subjects in language in our belief that somewhere there is a point of
certainty of knowledge and truth».
95
Vide p. 103 da presente dissertação.
96
«*…+ however much photography is equated with content, and painting with “thing-in-itself” or
“window-on-the-world,” whenever we look at an image we are its authors through the field of discourse
and generally put images to use in providing narratives to our satisfaction»

60
Ora, a assimilação de Derrida pela discussão feminista97 permite que se desafie este
sistema de oposições binárias – e processos que o criam e naturalizam. Catherine Clément e
Hélène Cixous expõem, neste sentido, as relações hierárquicas e duais sobre as quais se edifica
uma filosofia ocidental falogocêntrica, onde a subjugação da mulher se enraíza numa
colonização da mesma pelo pensamento falogocêntrico (CIXOUS e CLÉMENT, 1986: p. 65).
A mulher é desde cedo alienada das estruturas simbólicas – o simbólico e a
subjectividade são governados pela Lei do Pai. Devir sujeito implica a entrada no simbólico, a
subjectividade implica linguagem e a linguagem é masculina, de base no falo enquanto
significante universal – quando a mulher toma a palavra, não a toma enquanto sujeito, mas
enquanto mimese, espelho, do homem. Juliet Mitchell afirma que a mulher é relegada para
uma posição de marginalidade e exclusão pela própria natureza das palavras (MITCHELL,
1982). À mulher se veda a participação na ordem simbólica, com a excepção das posições de
silêncio, ausência, falta ou histeria. Neste contexto se desenvolve a noção derridariana de
différance, num jogo de palavras entre différence e différance, definindo a operação da
linguagem mediante o princípio da diferença e do deferimento.
Derrida defende, neste ponto, a natureza relacional e instável do sentido linguístico, e
a impossibilidade de fixação de significado – mantendo-o permanentemente indeterminado.
Ora, lembrando Jacqueline Rose a propósito da ligação entre linguagem e sexualidade, e
referindo-se à personagem de Balzac, Serrasine, «se o significado oscila quando um castrado
entra em cena, o sentido que daí retiramos deve ser o de que é na imagem normal do homem
que as nossas certezas se encontram investidas e, consequentemente, de que é na mulher que
elas constantemente ameaçam colapsar»98 (ROSE, 1986: 232). Feminino apresenta-se, pois,
lugar privilegiado para exercitar tal instabilidade do sentido linguístico, e a noção de différance
abrirá um valioso espaço discursivo ao feminismo, permitindo a desconstrução dos padrões de
pensamento convencionais.
Neste sentido se parece construir, em Helena Almeida, uma posição subjectiva
deliberadamente feminina e feminista. É precisamente um quebrar dos circuitos e processos
de coerência, por que opera a narrativa e a ideologia, que se tornará prezado efeito de uma
arte que desarticulará os discursos dominantes e naturalizados: Helena Almeida parece fazê-lo
através do diagrama deleuziano.

97
A influência de Derrida no feminismo contemporâneo é extensa, fazendo-se notar em autoras como
Judith Butler, Eve Sedgwick, Donna Haraway, Barbara Johnson, Gayatri Spivak e as consagradas Luce
Irigaray e Hélène Cixous.
98
«If meaning oscillates when a castrato comes onto the scene, our sense must be that it is the normal
image of the man that our certainties are invested and, by implication, in that of a woman that they
constantly threaten collapse».

61
O Diagrama

Das acepções várias de Diagrama, interessa-nos aquela que o olha como zona informal
de turbulência, de não-estratificação. O diagrama destaca e sugere, reparte poderes de afectar
e ser afectado; é flutuante e instável, faz e desfaz produzindo mutações. É, em última análise,
uma sobreposição de cartas de forças, de densidade e intensidade. A par de um ponto de
conexão, incorpora igualmente pontos relativamente livres e desligados, pontos de
criatividade e mutação, de resistência, formando, deste modo, um conjunto operatório de
linhas e zonas (traços de sensação), de manchas a-significantes e não representativas que
traçam um plano de consistência ou de composição – diagramatizando-o (DELEUZE, 2011: p.
172). A sua função prende-se com um sugerir, um introduzir de possibilidades de facto.
As linhas do diagrama, multiplicidades de um plano, flutuam, oscilam, confundem-se,
convertem-se em linhas de fuga ou, inversamente, endurecem. Múltiplas e imanentes, elas são
elemento constituinte das coisas e dos acontecimentos – todas as vidas são constituídas por
pluralidades de linhas; elas compõem sensações e tudo atravessam, oferecendo a cada coisa
uma cartografia, um diagrama. O corpo inteiro e o mundo se lêem nelas qual itinerário
nómada permite ler o deserto.
Pensar a linha nesta perspectiva é pensá-la liberta do propósito de representar,
interpretar ou simbolizar, e devolvê-la à tarefa primeira de construir cartas, diagramatizar e
proceder a trabalho preparatório. Tal pensar é rizomático: faz-se de díspares linhas que se
cruzam, conjugam, conectam e embaraçam, formando trajectos e afectos; e a capacidade de
unir trajectos e afectos, para do seu conjunto fazer variar a vida, produzir e criar diversidade, é
experimentação pura. O diagrama, neste sentido, é a produção concreta (sobre uma matéria)
de uma máquina abstracta singular, diagramática – ela é condição para a existência deste –,
que não funciona para representar, mas edifica um real por vir, um novo tipo de realidade.
Encontra-se, a cada momento em que constitui pontos de criação ou potencialidade, não fora
da história, mas antes desta. A máquina abstracta ganha nome próprio e data, que não
designam já sujeitos, mas matérias e funções.

O acto de pintar consistirá, deste modo, na construção de um diagrama por meio de


um trabalho preparatório. Exige-se ao artista que aniquile os clichés e imagens virtuais ou
actuais que habitam não só a sua cabeça, mas igualmente a tela em branco: a pintura moderna
havia-se visto tomada de assalto por clichés que se instalaram na tela ainda antes de iniciado o
acto de pintar. A superfície está virtualmente investida de imagens, dados figurativos e actuais,
que esperam apenas por serem inscritos. É o descuidar deste aspecto que permite a

62
disseminação da crença figurativa, pois pensar a tela enquanto superfície virgem, em branco,
permite o empenho em nela reproduzir um objecto exterior que se mostraria modelo.
O trabalho preparatório é intenso, uma espécie de devolução da tela a um estado de
candura que na verdade nunca existiu. O silêncio deste trabalho preparatório antecede o
abraçar do acaso e do acidente no acto de fazer marcas, traços e linhas, e o empenho do corpo
em actos como varrer, esfregar, raspar, amarrotar as zonas já manchadas e voltar a cobri-las.
Os dados figurativos, ora virtuais ora actuais, que habitam a tela e a cabeça do pintor são
apagados, esfregados, passados à escova ou pano, recobertos de tinta: surge o Diagrama. Esse
será o momento do facto pictórico, a captura de forças e o consequente oferecer destas ao
olhar, aos sentidos; o acto de pintar ocorre quando a forma é posta em relação com uma
força, na medida em que o diagrama é lugar de forças.
A ligação da Helena Almeida ao diagrama parece estabelecer-se na linha que, por
vezes, cobre partes da imagem, na mancha azul que acompanha a artista ao longo de toda a
sua obra e, em determinadas ocasiões, pela materialização da linha através do fio de crina.
Paradigma do primeiro caso será a Sente-me, de 1979 (Figura 1599), no qual o rosto da artista é
atravessado por uma linha que acaba por se libertar do suporte da representação. O rosto
desfocado, em segundo plano e em permanente recuo, acentua o elemento estranho que lhe
é a linha, transformando-se por meio dela.
Em A Casa, de 1981 (Figura 16100), apenas a parte inferior da face da artista se exibe.
No restante da imagem, na porção obliterada da face, linhas negras rasgam o vazio branco em
que havia sido deixada a parte superior do rosto da artista. As linhas negras expandem-se e
escorrem-lhe pela face, numa passagem da folha branca – espaço do desenho – à fotografia e
reflexão sobre a linha que separa abstracção e figuração – uma linha por demais simplificada.
Na exposição, de 1978, na Galerie e+o Friedrich, em Berna, Suíça, o diagrama parece
confirmar-se pelo som; a escuridão que envolve a sala vive do ruído gravado do som da grafite
sobre o papel, o riscar, raspar, como que sugando a identidade do espectador que, num
vertiginoso momento de desequilíbrio, entra dentro da obra: «Era o espaço em movimento,
era como se estivesse a rasgar o espaço» (Almeida in CARLOS E PHELAN, 2006: 8); o arranhar
compõe a linha e faz-se olhar por meio do ouvido e ressoar por meio do corpo inteiro.

Na série de 1975, Pintura Habitada (Figura 17101), a pintura reaparece agora sobre a
limpidez do preto e branco da fotografia, num quase grafismo, quase cartaz, e,

99
Vide p. 109 da presente dissertação.
100
Vide p. 110 da presente dissertação.
101
Vide p. 111 da presente dissertação.

63
simultaneamente, rasto, vestígio. Aquela primeira dimensão de cartaz decorre da comunicação
imediata a que almeja a autora; pretende-se impacto imediato, «murro no estômago»
(Almeida in CARLOS e PHELAN, 2006: 52) – lembram-se artistas, quais Jenny Holzer e Barbara
Kruger. A mancha surge, neste contexto, como instrumento para um desmanchar da imagem,
um defraudar de expectativas do espectador num frustrar de uma narrativa logicamente
organizada.
Tais diagramáticas marcas na fotografia de Almeida, são testemunho da intrusão de
um mundo outro no mundo visual da figuração e do desmoronamento completo das
coordenadas visuais – abrindo caminho a um espaço háptico – e das relações entre modelo e
cópia – legitimando o simulacro enquanto condição feminina. A mão ganha autonomia, e
passa a estar ao serviço de forças outras, traçando marcas que não mais dependem da
vontade ou olhar. A mão da artista vem derrubar a soberania da organização óptica que
orientava o quadro e o entregava, desde logo, à figuração: no caos, na catástrofe de marcas,
não mais se vê.
Na presente série, e em demais obras, quais Estudo para um enriquecimento interior,
de 1976 (Figura 18102) e 1977 (Figuras 19 e 20103), a mancha azul é marca não-representativa
pois, entregue ao acaso104, nada exprime relativamente a uma imagem visual, reportando-se
em exclusivo à mão da autora. É, pois, construída, no sentido de arrancar a imagem visual ao
domínio do cliché nascente e a si própria ao domínio da ilustração e narração imanentes,
fazendo surgir a Figura. Tais traços manuais sobre a fotografia afirmam-se traços de sensação
que fazem emergir, deste modo, uma catástrofe na tela: para que a fotografa não redunde em
cliché, para destruir na imagem a figuração nascente, inicia-se uma catástrofe-germe, fim
último do diagrama; é imperativo que o universo de clichés que povoa o pré-pictórico entre
em ruína, em catástrofe. Existe, neste sentido, ao longo da obra da artista, uma sensação de
ruptura e catástrofe eminente que se parece insinuar inclusivamente do lado de fora do
enquadramento – o que motiva a acção nas séries, o cerne de uma possível narrativa, parece
ter invariavelmente lugar no espaço invisível entre cada uma das imagens, como, a título de
exemplo, na obra Voar, de 2001 (Figura 21105). A fragilidade vê-se a par da violência e a ruptura
expressa-se nas descontinuidades e cortes, inclusivamente nos painéis separados em que
funcionam as componentes das séries – veja-se Sem Título, 1996-97 (Figura 22106).

102
Vide p. 112 da presente dissertação.
103
Vide pp. 113 e 114 da presente dissertação.
104
Tal acaso, a que as marcas se entregam, distingue-se da probabilidade – que implica algo dado à
partida em detrimento de uma escolha – e pressupõe uma manipulação.
105
Vide p. 115 da presente dissertação.
106
Vide p. 116 da presente dissertação.

64
A deformação

Desenvolvendo aquilo que denomina de Lógica das Sensações, Deleuze (DELEUZE:


2001) busca o fundo comum da palavra, linha, cor e som, debruçando-se, nesse sentido, sobre
a pintura de Bacon, cujo objecto acredita ser a violência da sensação. Sendo, a Figura, forma
sensível – Cézanne denominava-a, ademais, de “sensação” –, esta orientará a pintura num
intuito último de pintar a sensação. A sensação, antagónica do já feito, do cliché, liga-se de
modo indissolúvel ao sujeito – ao sistema nervoso, movimento vital, instinto – e ao objecto – o
facto, lugar, acontecimento: o sujeito devém na sensação e, de modo recíproco, nela algo
acontece. Assim se distingue a proposta de uma pintura da sensação, da pintura figurativa ou
abstracta; aquela não existe já em função do cérebro, age, antes, directamente sobre o
sistema nervoso e acede à sensação, libertando a Figura e não mais permanecendo num único
e mesmo nível, qual pintura figurativa ou abstracta.
Tendo, por sensação, aquilo que passa de uma ordem, nível ou domínio a outro, esta
mostra-se, desde logo, o agente de deformações do corpo por excelência; deste modo, da
catástrofe diagramática, porque lugar de forças, resultam as deformações que se traduzem, a
nível pictórico, em deformações da forma, na medida em que sobre ela uma força se exerce,
tornando visível o invisível107.
Em Eu Estou Aqui, de 2005 (Figuras 23, 24 e 25108), Almeida parece entregar-se
obstinadamente ao olhar do espectador, porém, não se entrega por inteiro, não entrega a sua
identidade, o seu rosto: fá-lo numa única ocasião na série de que se trata, num grito que
impossibilita, de igual modo, a entrega completa de si. A deformação deste corpo, que se olha
mancha negra, aproxima-o de um informe batailleano e as despidas extremidades dos
membros e cabeça, ora demasiado curtos ora desproporcionalmente grandes, parecem evocar
Alice de Carroll, o protótipo do devir-mulher deleuzeano. O corpo torna-se matéria escultórica,
corpo-escultura, e metamorfoseia-se, qual barro, num fervoroso desejo de se libertar dos
constrangimentos da forma. O negro distancia-se, em Almeida, do luto e torna-se neutro; a
artista afirma, neste contexto: «Viver a experiência do negro foi uma experiência de expansão
num espaço vivo incontrolável. Foi como se o meu interior tivesse fugido para as extremidades
do meu corpo e, sem encontrar outro refúgio, deixado ramificar-se e expandir-se sobre um
exterior indeterminado.» (Almeida em AAVV , 2000: 204). De modo análogo, em Espaço
Espesso, de 1982 (Figura 26109), Ponto de Fuga, do mesmo ano (Figura 27110), e Sem Título, de

107
Expressão que Deleuze recupera de Paul Klee.
108
Vide pp. 117, 118 e 119 da presente dissertação.
109
Vide p. 120 da presente dissertação.

65
1991 (Figura 28111), se afirma tal deformação do negro. Lembra-se Balzac, de 1897, de Rodin
(Figura 29112), onde a cabeça do autor representado se apresenta como que autónoma do
resto do corpo, cujo manto amorfo, pleno da marca da mão do escultor, interfere entre o
observador e a figura esculpida; «Rodin engolfa o corpo de Balzac em um único gesto que se
converte na representação da vontade da figura representada» (KRAUSS, 2007: p. 38), tal obra
vem no sentido da propositada incoerência anatómica que Rodin vinha experimentando, de
modo a frustrar as expectativas da escultura neoclássica e seu modelo racionalista: eliminando
a comunicação entre superfície e interior anatómico, Rodin veda ao observador um reportar-
se de modo lógico a uma sua experiência anterior.
Em A Casa, de 1981 (Figura 16113), e trabalhos com a mancha azul como Entrada Azul,
de 1980 (Figura 30114), a função diagramática do desfazer do rosto e o caos pictórico que daí
resulta têm papel incoativo na obra: a desfacialização liberta os traços da facialidade, fazendo-
os entrar em ressonância rizomática «com um traço libertado de picturalidade, formando não
uma colecção de objectos parciais, mas um bloco vivo em que os traços de um rosto entram
numa multiplicidade real, num diagrama, sim um traço de paisagem desconhecido, um traço
de pintura, que são então efectivamente produzidos, criados, segundo “quanta” de
desterritorialização positiva absoluta e já não evocados, recordados, segundo sistemas de
retorritorialização» (DELEUZE e GUATTARI, 2004b: pp. 232-233). Almeida abre no rosto um
caos de onde só é possível sair com o auxílio da prudência, do uso temperado do diagrama,
pois, no sentido de evitar uma emersão sem retorno no caos – uma proliferação absoluta do
diagrama, deixando que o caos tome conta do quadro – mostra-se imperativo que a
experiência intensa do caos e da catástrofe seja tomada a par de um controlar e limitar da
mesma, num meticuloso trabalho que deve ser levado a cabo por um eu que sente e age: estes
não são actos que se possam explicar, interpretar ou dar significado115. Deleuze e Guattari
oferecem, em Mil Planaltos (DELEUZE e GUATTARI, 2004b), uma série de orientações para tal:
deve começar-se por se instalar num estrato e aí procurar um lugar favorável, atendendo a
movimentos de desterritorialização e eventuais linhas de fuga; deve-se experimentá-las e
assegurar aí as conjugações de fluxos, procurando contínuos de intensidade, segmento por
segmento, sob o imperativo de se ter a todo o tempo um pedaço de nova terra.

110
Vide p. 121 da presente dissertação.
111
Vide p. 122 da presente dissertação.
112
Vide p. 123 da presente dissertação.
113
Vide p. 110 da presente dissertação.
114
Vide p. 124 da presente dissertação.
115
Na óptica de Deleuze, o caos que se reveste de interesse é aquele que perigosamente se aproxima de
tomar conta da totalidade do quadro, mas consegue muito embora evitá-lo; veja-se o expressionismo
abstracto e, em particular, Jackson Pollock.

66
Ora, é por via da Figura que se lutará contra o cliché; no entanto, na Figura poderá
conservar-se ainda algo de figurativo. Deleuze contornará este obstáculo distinguindo entre
dois níveis de figuração (DELEUZE, 2011: p. 167): uma primeira, a figuração conservada, pré-
pictural, que existe na tela e na cabeça do pintor antes do acto de pintar, e que se faz
constituir de clichés e probabilidades; a segunda, figuração reencontrada, recriada, que surge
como resultado da Figura, do acto pictural. O conjunto visual provável, da primeira figuração,
será desorganizado e deformado por traços manuais livres que produzirão a Figura visual
improvável; a segunda figuração, no entanto, porque submetida ao diagrama, não se
assemelha já à figuração primeira.
Em obras quais, Estudo para um enriquecimento interior, de 1976 (Figura 18116), obra
homónima dos anos procedentes (Figura 19 e 20117), Tela Habitada de 1976 (Figura 31118) – em
que sob telas invertidas a cabeça da artista se encontra coberta pela mancha azul –, ou Sem
Título (Figura 32 e 33119) da série Pintura Habitada, de 1975 – na qual a artista, empunhando o
pincel, apresenta a face coberta por mancha azul –, as zonas riscadas ou pintadas fazem
adivinhar um empenho em desfazer o rosto, preparando a cabeça para receber deformações.
A Figura é corpo, e sendo corpo não é rosto – organização espacial estruturada que recobre a
cabeça –, é antes cabeça, parte integrante do corpo e à qual este se pode reduzir.
As deformações pelas quais passam são traços animais da cabeça; não no sentido de
correspondência formal entre animal e rosto mas uma indiscernibilidade, pois o rosto perdeu a
sua forma ao ser submetido ao diagrama. As marcas sobre a fotografia, traços de animalidade,
não são formas animais mas zonas de indiscernibilidade entre homem e animal que se
traduzem num homem que devém animal e num animal que devém espírito do homem.
De igual modo, o espaço, em Sem Título de 1991 (Figura 28120), que se cria contínuo,
indefinido, entre corpo e mancha pictórica, parece análogo a uma zona de indiscernibilidade
génese de um devir-animal de base no pressuposto de que a sensação é o corpo – um mesmo
que dá e recebe – e o corpo é o que está pintado no quadro – não um corpo representado
como objecto mas vivido como experiência de dada sensação. Ora, zona de indiscernibilidade,
bloco de sensação, à mancha se concede uma realidade intensiva, sensível, que não determina
já nela dados representativos mas variações alotrópicas. Na obra apenas se distinguem as
extremidades da autora, de resto coberta pela mancha preta. E, nesta mancha-figura, o corpo
da autora afirma-se obra. Assim se encontram em pontos diametralmente opostos uma forma

116
Vide p. 112 da presente dissertação.
117
Vide pp. 113 e 114 da presente dissertação.
118
Vide p. 125 da presente dissertação.
119
Vide pp. 126 e 127 da presente dissertação.
120
Vide p. 122 da presente dissertação.

67
que se pensa na sua relação com a sensação, com a Figura, e uma forma pensada na sua
relação com um objecto que esta representaria, qual figuração: a sensação transgride
qualquer história que houvesse a contar.
Neste devir animal do sujeito e da Figura todo o corpo tende a escapar-se e a Figura a
juntar-se à estrutura material; testemunha do esforço que a Figura exerce sobre si mesma por
forma a passar por uma extremidade ou orifício. E, neste sentido, em Estou Aqui, de 2005
(Figura 25121), a boca liberta-se da sua capa de órgão particular e passa a buraco pelo qual um
corpo inteiro se escapa, num grito. Em Corte Secreto (Figura 34122), telão suspenso do tecto,
apresentada na Bienal de Veneza de 1982, abre-se numa fenda pela qual o corpo da artista
simula entrar. Simulam-se dois espaços, como se Almeida escapasse, pela fenda, ao espaço da
representação e ao seu próprio corpo. Um corpo ficcional que escapa por um dos seus
membros – o espaço da ficção. De igual modo, em Ouve-me, de 1976 (Figura 35123), da série
Tela Habitada, se nota semelhante esforço por passar pela superfície da tela; o corpo quer
escapar-se à tela e à figuração, quer escapar-se ao suporte da tela que legitima a figuração e a
narração.
Na obra homónima de 1979 (Figura 36124), um filme sem som no qual a artista
gesticula por trás de papel de cenário, parece ler-se, nos seus gestos e grito mudo, a palavra
“ouve-me”; desenha-a, de seguida, com o dedo e, por fim, com a caneta. A mudez parece
surgir como limite, silêncio auto-inflingido, contudo, reivindicativo, ligado a uma crítica da
condição feminina enquanto condição resignada e da posição masculina enquanto soberano
absoluto da palavra. Parece poder ler-se, neste sentido, a boca da artista – a boca feminina –,
que se apresenta em Ouve-me, de 1979 (Figura 37125). A linha de sutura que liga os lábios
formando, paradoxalmente, a palavra “ouve-me”, parece frustrá-la – da mesma forma que o
véu e a tela frustram a passagem do corpo em Tela Habitada de 1976 (Figura 35126) – numa
poderosa afirmação política e aparente resposta à irredutível incomunicabilidade de um eu a
um outro, num espaço que se abre inquietante.
Em Eu Estou Aqui, de 2005 (Figuras 23, 24 e 25127), o corpo, mancha negra, deforma-se
continuamente a partir de dentro e dele extravasa um grito pleno de vermelho. Pintar o grito
parece não se envolver de pretensões de dar cor ou forma a um som, pelo contrário,
pretende-se colocar o que de visível há no grito, a boca que grita, em relação com as forças

121
Vide p. 119 da presente dissertação.
122
Vide p. 128 da presente dissertação.
123
Vide p. 129 da presente dissertação.
124
Vide p. 130 da presente dissertação.
125
Vide p. 131 da presente dissertação.
126
Vide p. 132 da presente dissertação.
127
Vide pp. 116, 118 e 119 da presente dissertação.

68
invisíveis que o suscitam, que desencadeiam a entrada em convulsão do corpo chegando até à
boca – zona submetida ao processo de limpeza por meio da mancha a-significante. Reorienta-
se o conjunto visual para extrair, do pré-pictural, a Figura reencontrada. A operação do
diagrama intervém partindo da figuração para misturar as linhas figurativas prolongando-as,
tracejando-as e induzindo entre elas novas distâncias e relações; daqui deve sair uma outra
Figura, um outro corpo: revelação de um corpo para lá do organismo – corpo que fende os
organismos e os seus elementos impondo-lhes um espasmo: um corpo sem órgãos128. A arte
instala-se então no momento em que o corpo se escapa; as matérias de expressão entram em
relações variáveis e libertam-se, libertando consigo um material que capta forças.
Tal captar de forças é a tarefa última da arte, não já um reproduzir ou inventar de
formas mas tornar visíveis forças que não o são (DELEUZE, 2011: 111), audíveis forças que não
o são, tacteáveis forças que não o são, em suma, fazer sentir forças não sensíveis: é esta a
função primordial da Figura. Em A Casa, de 1981 (Figura 16129), forças de pressão, dilatação,
alongamento, se exercem sobre a cabeça imóvel, como se a cabeça fosse esbofeteada segundo
ângulos diversos, pela acção da passagem do pincel que parece cortante. As partes do rosto a
ele submetidas ganham novo sentido pois assinalam a zona em que a força se está a exercer,
numa deformação estática, que se dá no mesmo lugar e que subordina o movimento à força e
o abstracto à Figura.
A força que se exerce na parte do corpo sobre a qual o pincel – seja através da linha ou
da mancha – actua, não conduz ao surgimento de uma forma abstracta e também não
combina dinamicamente formas sensíveis, antes dota essa zona de indiscernibilidade de
formas irredutíveis umas às outras; e as linhas de força que traça, porque nítidas e de
deformante precisão – o devir-animal –, escapam a qualquer forma. Exemplo máximo da
deformação será o grito130. O devir-animal é, contudo, apenas uma etapa na direcção de um
devir imperceptível mais profundo, no qual a Figura acaba por, também ela, desaparecer. Já
em Mil Planaltos (DELEUZE e GUATTARI, 2004b: pp. 219-248 e pp. 299-393), Deleuze e
Guattari haviam dado indicações significativas para um entender da pintura enquanto
libertação de blocos visuais, admitindo que nenhuma arte pode ser imitativa ou figurativa –
recusando-lhe, deste modo, o seu carácter de mimese e de representação. Assim, a coisa que
se representa na tela – invocando o exemplo deleuzeano da ave – é um devir-ave que só

128
A noção é retomada de Artaud, por Deleuze, que a invoca pela primeira vez no poema Para acabar
de Vez com o Juízo de Deus (ARTAUD: 1975).
129
Vide p. 110 da presente dissertação.
130
Bacon propõe-se a pintar o grito e não o horror visível: se se pinta o segundo, figurando o horrível,
não se pinta o primeiro; se se pinta o primeiro, não se pintará o segundo, pois o grito é a captação ou
detecção de força invisível (DELEUZE, 2007: p. 117). Dever-se-á escolher o grito em detrimento do
horror e a violência da sensação em detrimento da violência do espectáculo.

69
poderá fazer-se na medida em que a ave está já, ela própria, caminhando para um devir: pura
linha e cor.
Em Ouve-me, de 1979 (Figura 37131), para lá do grito, vislumbra-se um sorriso,
inquietante, histérico, de um kristeviano abjecto (KRISTEVA, 1980) que desfaz o corpo e
assegura o seu desvanecimento. Invoca-se, seguindo Deleuze, a imagem do gato da Alice
carrolliana: gato cujo corpo se vai apagando lentamente, terminando pelo inquietante sorriso
que persiste ainda algum tempo para lá do animal. A Figura desaparece assim, deixando
apenas um vago vestígio daquilo que foi outrora a sua presença.

O reverso da Pintura

Outra das vias pela qual Helena Almeida parece libertar-se da narrativa consiste na
marcação da materialidade da pintura num repúdio da bidimensionalidade e opticalidade da
mesma. O desejo de fuga à tela mostra-se evidente desde o início da sua produção artística;
procura libertar-se dos limites e suporte da pintura, transgredindo, numa primeira instância,
de modo literal, físico, os limites do espaço de representação, passando numa instância
posterior a uma transgressão menos directa.
Almeida inicia a produção artística numa aproximação da pintura à escultura, num
repudiar da bidimensionalidade e opticalidade caras àquela. Ora, numa busca pela tactilidade
e interioridade, dessacraliza a pintura – que se encontrava na parede, afastada do espectador
–, e oferece-a ao tacto: a pintura passa a concretizar-se somente por meio do háptico.
Aproxima-se, numa fase seguinte, da arte têxtil em obras iniciais, quais Sem Título, de 1968
(Figura 38132), e torna-se, por fim, desconstrução, em Tela Habitada de 1976 (Figura 35133).
Em Sem Título, de 1968 (Figura 38134), uma tela laranja encontra-se descentrada e
desligada da correspondente moldura. A pintura tridimensional, marcante fase inicial do seu
percurso, questiona o suporte tradicional da pintura e dá mote a toda a experimentação com a
corporalização da mesma, que se seguirá e que se mostrará constante ao longo da obra da
autora. Sem Título mostra-se exercício crítico sobre a pintura num desmontar da sua estrutura
lógica e sentido de percepção, radicalizando, a concepção renascentista de pintura enquanto

131
Vide p. 131 da presente dissertação.
132
Vide p. 132 da presente dissertação.
133
Vide p. 129 da presente dissertação.
134
Vide p. 132 da presente dissertação.

70
janela aberta para o mundo, numa janela física porém destituída da sua função primeira – dela
não se acede a cena exterior ou interior, mas somente ao ficcional da mancha laranja e ao real
parede concreta, abarcando os dois mundos a um tempo, em dicotomias quais cheio/vazio, ou
presença/ausência. Esta fase inicial do trabalho da autora perscruta a tridimensionalidade da
pintura e procura o seu reverso, o outro lado da pintura – uma sua dimensão oculta –, para
logo a expor por meio do corpo. Revela-nos o outro lado, o lado de trás, as costuras, a
armação de madeira: a tela numa fase anterior à pintura. Aproxima-se de Lucio Fontana no
rasgar da tela num expor a interioridade e profundidade que conferem à pintura o poder de
superfície – perscruta o que se encontra debaixo desta. Almeida abre, de modo idêntico, a
tela; no entanto, a abertura expande-se e o corpo atravessa-a – como notório em Corte
Secreto, de 1981 (Figura 34135). A artista concebe a pintura enquanto palco para a encenação
de uma interioridade que não é apreendida apenas pelo olho mas pelo corpo inteiro: o corpo é
habitado pela pintura e pode nela simultaneamente habitar, numa recíproca percepção
háptica. A partir de 1975 inicia-se, deste modo, uma exploração do desenho, fotografia e vídeo
no sentido de um perscrutar da relação do corpo da artista com o espaço da obra. O corpo
torna-se, neste sentido, suporte, sujeito e objecto, habitando a pintura: torna-se a própria
pintura.
Em trabalhos quais as diversas Telas Habitadas, de 1976 (Figuras 31 e 35136), o suporte
sobre o qual se estica e fixa a tela, o gradeamento e a estrutura de madeira, amiúde fora do
alcance do espectador, é tornado visível. Questiona-se a pintura e os seus meios recordando
Nicolas Poussin, no seu Autoretrato de 1950 (Figura 39137), que, mais que auto-representação,
alude ao sujeito da pintura, rodeado dos seus instrumentos. O quadro que se entrevê por trás
do pintor, alegoria da pintura, associa esse espaço da pintura ao feminino; e este se abre ao
seu reverso – a grade exposta como que reafirma a materialidade da pintura; uma
materialidade que se terá de aniquilar a fim da transformação da pintura em ilusão e narração.
Ora, esta exposição da materialidade da pintura permite que se entreveja e questione o
carácter de ficção, ilusão e narração da mesma.
Na Tela Habitada, de 1976 (Figura 40138), em que a artista se apresenta de tela vestida
– a tela que veste noutra obra homónima do mesmo ano – volta a lembrar o fato de látex de
Louise Bourgeois, de 1975 (Figura 41139), uma escultura para vestir, em que o part object,
sinédoque do seio, culmina numa irónica encenação da condição da mulher-imagem –

135
Vide p. 128 da presente dissertação.
136
Vide pp. 125 e 129 da presente dissertação.
137
Vide p. 133 da presente dissertação.
138
Vide p. 134 da presente dissertação.
139
Vide p. 135 da presente dissertação.

71
pertinente ainda em Almeida. A artista posiciona-se por detrás de três grandes telas de face
voltada para a parede, portanto de estrutura exposta; o seu rosto vê-se relegado para último
plano, apagado por uma pincelada de tinta azul. Fotografada no fundo de um espaço, que se
depreende atelier, das telas que aí se acumulam, só ao seu reverso temos acesso; é desse
espaço impossível da pintura – porque impossível de alcançar com o olhar – que a autora
emerge, é do lado da representação que ela se nos apresenta, defraudando as expectativas do
espectador. Recorda-se Reverse of a Frame Painting, de 1670 (Figura 42140), de Cornelis
Norbertus Gysbrechts, no qual o quadro existe somente como grade, moldura, numa
paradoxal aparição de um quadro que esconde o que nunca existiu.
Na Tela Habitada, de 1976 (Figura 35141), em que a artista se encontra atrás de uma
tela translúcida, a moldura lembra que é ela que permite que se reconheça, garanta e aceda
ao espaço da representação que, invocando a metáfora albertiniana da janela aberta para o
mundo, se encontra para lá da grelha do dispositivo perceptivo. A grelha encontra-se agora
enclausurada sobre si própria, e a tela faz-se véu translucido que permite aceder à artista, e
esta parece envolver-se de um ímpeto por se imprimir e trespassar esse véu e grade e, em
última análise, esse espaço da representação, a caminho do espaço do espectador. Tal fuga
parece apresentar-se análoga a um furtar-se à sua condição de imagem, subvertendo a
ontologia da imagem. Os gestos da autora parecem sublinhar a dimensão alegórica da imagem
que faz coincidir a pintura com uma mulher: a alegoria foi desde cedo a condição única da
mulher relativamente à arte – esta encontrou-se, de modo constante, no espaço da
representação, do lado da imagem, representada pela mão de autores masculinos por
excelência. Cumprindo, deste modo, as expectativas de um escopofílico desejo masculino
(MULVEY: 2009).
A artista habita, nesta obra de 1976, um plano intermédio, a sua presença chega ao
espectador como que diferida, de um lado a que corresponde o espaço da representação e
que servirá, em última análise, o propósito de expor a ficção da pintura.
É a partir deste reconhecer da pintura enquanto arte ilusionista, que se poderá
destruir outra das suas prezadas ilusões: a mimese e, em última análise, o seu nefasto efeito
num entendimento da mulher. Ora, o ponto central da crítica de Irigaray à filosofia ocidental
prende-se com a inerente indiferença sexual desta, permitindo que o masculino se tenha pelo
humano – construindo o primeiro como paradigma da espécie; tal é especialmente evidente
na linguagem, na qual o universal neutro terá muito pouco de efectivamente neutro, já que se
mostra indubitavelmente referente ao masculino – vindo propagando uma concepção da

140
Vide p. 136 da presente dissertação.
141
Vide p. 129 da presente dissertação.

72
mulher como menos humana. Tal tradição filosófica vem assim definindo a mulher fora da
especificidade da sua própria existência, apenas a permitindo olhar-se em relação ao homem,
seus desejos e necessidades: a mulher é definida como esposa e mãe, negando-se-lhe
independência ontológica. Irigaray enfatiza o facto das relações entre homem e mulher se
tornarem tão fundamentalmente centradas no masculino que diálogos reais, interacções reais
e mudanças reais se vêm envoltas em impossibilidade: as mulheres serão entendidas – e
entender-se-ão a elas mesmas – como nada mais que reflexões do ser masculino; afasta-se a
mulher da possibilidade de se realizar enquanto sujeito de linguagem. Irigaray indaga, em I
Love To You: Sketch of a Possible Felicity in History, de 1996: «Não é já tempo de nos
tornarmos sujeitos comunicantes? Não esgotámos já as nossas outras possibilidades, os nossos
outros desejos? Não é já tempo de nos tornarmos capazes, não só de discurso, mas também
de falar umas com as outras?»142 (IRIGARAY, 1996: p. 45).
O diagrama em Almeida parece ver-se, neste sentido, incumbido da função de destruir
a semelhança que se presta a um modelo, e que pertence ao âmbito do cliché, do pré-
pictórico, da função de fazer surgir a imagem: apaga-se o pré-pictórico, por forma a ceder
lugar ao facto pictórico na sua qualidade de “presença” pictórica. O pintor não deverá pintar
com o intuito de reproduzir na tela um objecto que se mostra modelo, devendo, sim, pintar
por cima das imagens pré-existentes por forma a chegar a uma tela cujo funcionamento
desmantelará as relações entre modelo e cópia.

Contra a Interpretação

À sede de narrativa alinha-se um impulso por interpretar. Susan Sontag, no ensaio de


1966, Contra a Interpretação (SONTAG, 2004), lança feroz ataque às teorias modernas da
interpretação, a hermenêutica, que impõem uma racionalização da obra em detrimento de
uma abordagem sensual. Tal abordagem parece servir prodigiosamente uma lógica da
sensação deleuzeana e, em última análise, a leitura de Almeida que aqui se propõe.
Ora, a teoria da arte enquanto representação de uma realidade exterior, remontando
à filosofia grega, propõe a arte como mimese – imitação, representação, concebe-se a arte
como imagem da realidade – do real, desafiando a arte a uma auto-justificação. Platão repudia
a arte porque distanciada, em dois graus, da Verdade; a representação mais não seria que

142
«Yet isn't it time for us to become communicating subjects? Have we not exhausted our other
possibilities, indeed, our other desires? Isn't it time for us to become capable not only of speech but also
of speaking to one another?».

73
imitação de uma imitação, não lhe encontrando por isso qualquer sentido útil. É Aristóteles
que conduz a arte a uma saída do impasse a que Platão a havia votado, afirmando-lhe uma
utilidade terapêutica, no despertar e purgar de perigosas emoções. Em ambos os autores se
parte da premissa de que a arte é sempre figurativa e, carecendo de defesa, obriga à génese
da dicotomia forma-conteúdo, separando irremediavelmente os dois conceitos e olhando o
último enquanto essencial e, aquele primeiro, enquanto acessório.
A modernidade traz consigo uma teoria da arte enquanto expressão subjectiva – arte
como afirmação do artista. Contudo, também aí se olha o conteúdo como primordial: a obra é
o seu conteúdo; ela diz algo. Sontag vem, neste ponto, defender que a ideia de conteúdo
representa um obstáculo ao pensar sobre a arte: a ênfase naquela conduz ao infindável
processo de interpretação que alimenta, por sua vez, num ciclo vicioso, a ideia de que o
conteúdo, de facto, existe. O conhecimento científico vem impor à antiguidade clássica uma
visão realista do mundo, deixando o mito descredibilizado e introduzindo, deste modo, a
necessidade da interpretação num esforço de conciliação dos textos antigos com as exigências
contemporâneas. A interpretação traz consigo a alegoria, presumindo a discrepância entre o
significado imediato da obra e as exigências posteriores do leitor que, tornando-se interprete,
procede a alterações do texto sob o pretexto de se encontrar apenas a torná-lo inteligível,
desvendando o seu verdadeiro sentido, qual levantar do véu da Maya. Um explícito desprezo
pelas aparências parece orientar a interpretação moderna; ela escava e destrói, longe já do
respeito da antiguidade pelo significado literal do texto, erigindo sobre ele um novo
significado. O conteúdo manifesto – expressão freudiana – é testado e afastado pelo conteúdo
latente. Na linha de Freud e Marx, o acontecimento só terá significado se interpretado e, como
tal, reformulado: compreender torna-se interpretar.

A interpretação pode, contudo, ter um valor positivo, quando serve de acto libertador,
revendo e reavaliando, escapando a um passado estagnado. Mas pode, em contextos outros,
ser altamente reacionária e sufocante. O projecto de interpretação moderno é
maioritariamente o desta segunda hipótese; a cultura que privilegia o intelecto em detrimento
da dimensão sensorial: «*…+ a interpretação é a vingança do intelecto contra a arte» (SONTAG,
2004: p. 24). Interpretar torna-se, em tal contexto, um empobrecimento do mundo, pois
reduz-se a obra ao seu conteúdo por forma a interpretá-lo de seguida, num desrespeitoso e
grave «domesticar da obra de arte» (Idem: p. 24) que mais não é que um sinal de uma
profunda incapacidade de lidar com o que se vê na tela, ecrã, e demais suportes, tal qual estes
se mostram. A arte torna-se, neste sentido, «num objecto para uso, para enquadramento num
esquema mental de categorias» (Idem: 27).

74
O que Sontag aponta como desejável será uma crítica capaz de servir a obra de arte, e
não tomar o seu lugar: a análise formal ou a revelação da superfície sensual de uma obra
(Idem: pp. 30-1). Na primeira se privilegia uma ampla e profunda descrição da forma em
detrimento de um vocabulário perceptivo; uma boa crítica dissolverá as considerações sobre o
conteúdo nas considerações sobre a forma. Na segunda se encaixa uma rara descrição cuidada
e precisa do aspecto da obra de arte, revelando a superfície sensual da arte sem interferir nela.
Deve-se, na óptica da autora, recuperar os nossos sentidos – ver mais, sentir mais. A tarefa
não mais é descobrir na obra o máximo de conteúdo mas reduzi-lo de forma a poder aceder-se
o que realmente lá está, tornando a obra e a nossa experiência dela mais real para nós, não
menos. Nesta perspectiva, a crítica deve assumir como finalidade um mostrar como é o que é,
e não o que significa ou o que se quis dizer (Idem, p. 32).
Sontag permite-nos olhar a narrativa dominante – e a voz que a pronuncia – como
apenas uma de muitas estórias possíveis, e não uma implacável verdade; recusando uma
posição fixa de conhecimento, problematiza-se todo o processo de narração e interpretação:
«Em vez de hermenêutica precisamos de uma erótica da arte» (Idem).
Em Almeida, parece olhar-se precisamente uma arte que procura interrogar os
dispositivos narrativos e processos de representação, desestabilizando assunções históricas,
culturais e psicológicas do autor – a consistência dos seus gostos, valores, memórias –,
colocando, em última análise, em xeque a sua relação com a linguagem. Não há descrição
essencialista nas obras da artista, nada se saberá sobre o seu carácter, personalidade, estado
de espírito ou mundividências – o que poderia dizer-nos de si, oculta-o, desfigura-o, prolonga-
o, fá-lo ser trespassado pela mancha –; e não há um corpo concreto que se mostre – a mão
age como neutra e o corpo, nos casos em que aparece, é invariavelmente envolvido de negro.
Almeida aparece-nos neutra, vestida de um negro informe; e também o seu espaço se
apresenta invariavelmente despido de excesso. O que a artista nos oferece não são auto-
retratos – «Não são auto-retratos porque não encontro nelas a minha própria subjectividade
mas antes a minha pluralidade, que faço aparecer numa espécie de cenário de um palco»
(ALMEIDA in AAVV, 2000: p. 205) –, e não são igualmente encenação de personagens ou
figuras outras – «*…+ os meus “auto-retratos” não criam personagens, eu não me transvisto,
são antes a minha relação com o desenho, com a pintura, com o espaço, com a emoção»
(ALMEIDA in CARLOS, Isabel e PHELAN, PEGGY, 2006: p. 51). É na presença reiterada de si
mesma que recebemos auto-representações.

75
Corpo aberto

O seu corpo oferece-se ficcional frente à câmara, aberto: «O meu corpo é como um
baú, um recipiente de emoções, de lembranças, que as pessoas (e eu também) podem encher,
esvaziar, transferir para aquele corpo.» (Helena Almeida em entrevista com Maria João Seixas
in AAVV, 2004)
Em Eu Estou Aqui, de 2005 (Figuras 23, 24 e 25143), o corpo que se oferece é o mesmo
que simultaneamente se nega; é exposto e escondido a um tempo, desdobrando-se numa
minimalista coreografia em tom de oferenda sacrificial num perturbante gesto de
agradecimento, qual actor em palco. Tal dimensão ritual de sacrifício, e quase religiosidade, é
inédita no trabalho da autora; o penoso funde-se com o júbilo; tal se repete em Experiência do
Lugar II, registo em vídeo de 2004 (Figura 43144), em que o espaço do atelier é preenchido pelo
litúrgico movimento da artista, de joelhos, em tom de expiação, de penitência. Os objectos do
atelier – o candeeiro e o banco – são arrastados pelo espaço, qual cruz, e finalmente
oferecidos à câmara, ao espectador, qual oferenda sacrificial. O obsessivo percurso ganha
novo ónus com o som dos joelhos que se arrastam no chão; o corpo é levado ao perturbante
limiar da dor. O interesse da artista pelo reverso do suporte pictórico, patente sobretudo nos
primeiros trabalhos, volta a fazer-se notar: oferece-se, desta, o outro lado do trabalho da
artista no seu atelier145. O chão é superfície refectora que prolonga o corpo no espaço e que
com ele se parece fundir: reflecte e deforma, abrindo por fim espaço à artista que quase aí se
afunda parecendo evocar o fatal beijo de Narciso.
O processo de criação parece, neste sentido, convocar as noções deleuziana de corpo
sem órgãos e plano de imanência, o processo de um corpo – um corpo de pensamento, um
corpo artístico, um corpo-Lugar – que importa fazer devir: desfazer o organismo, deformá-lo,
apagá-lo, desestratificá-lo, deforma-lo, levá-lo ao seu limite maior: abri-lo. É proposta
deleuziana fazer, do corpo, potência que não se deixa reduzir ao organismo e, do pensamento,
potência que não se deixa reduzir à consciência; o corpo abre-se, deste modo, em três
possíveis acepções: vê-se literalmente aberto, rasgado, despedaçado; é orgânica e fisicamente
fechado, para logo depois se abrir e tornar outro; é um feixe de forças naturalmente aberto,
de múltiplas entradas e saídas, por onde circulam intensidades máximas: Almeida parece
aproximar-se desta terceira hipótese.

143
Vide pp. 117, 118 e 119 da presente dissertação.
144
Vide p. 137 da presente dissertação.
145
Os dois trabalhos analisados no presente parágrafo foram apresentados na 51.ª Bienal de Veneza de
2005; note-se a corrosiva subtileza com que a artista aborda os grandes altares da consagração artística
contemporânea.

76
A abertura do corpo só se mostra possível quando não mais ou ainda não se possui
órgãos ou quando se tem órgãos outros. É abrindo o corpo a novos agenciamentos e blocos de
sensações – perceptos e afectos146 – que se pode assim escapar à representação e devir em
distribuições outras – nómadas –, entrando em territórios outros e desterritorializando-se num
tornar-se corpo de expressão, de criação.
O corpo de Almeida esgueira-se, escapa ao organismo. Furta-se pela boca aberta, pelo
ventre, pelas mão; e em Eu Estou Aqui, de 2005 (Figuras 23, 24 e 25147), o corpo abandona-se
por inteiro à imagem.

O rizomático conceber de um entre

O perscrutar e testar, por Almeida, dos limites e fronteiras das diversas linguagens
artísticas caminha a par do perscrutar e testar os limites do corpo, num permanente
continuum e rizomático entre ser e fazer, obra e medium.
Em Desenho Habitado, de 1976 (Figura 44148), a mão da autora apresenta-se amiúde
em primeiro plano. A linha liberta-se da caneta e da mão, com ela brinca mas por ela volta a
resignar-se à forma recta da bidimensionalidade. A fuga do desenho parece, no entanto,
inevitável. O fio de crina conduz o traço à tridimensionalidade – ainda que seja uma
tridimensionalidade em diferido pois a fotografia tudo aplana. Materializada pelo fio de crina,
a linha percorre a superfície da folha de papel e em seguida a mão da artista, fazendo-se
misturar com a cartografia desta – as linhas que a preenchem –, ganhando, neste processo,
presença corpórea. Já em séries anteriores a artista havia experimentado esta materialização
da linha – veja-se Desenho Habitado, de 1974 (Figura 45149).
Almeida densifica, ao longo de grande parte da sua produção artística, a linha a ponto
de a transformar em fisicalidade, em fio de crina. E é quando a linha ganha existência material
que Almeida é definitivamente arrastada para as margens. A linha prolifera e o fio de crina
questiona a distinção entre espaço ficcional, de representação, e espaço real. A linha torna-se,
deste modo, escultura, ganhando sombra, textura, dimensão, densidade; e a forma, um
resoluto investigar do entre a forma e a ausência de forma, entre a continuidade e a ruptura.

146
Como focado já na parte primeira da presente dissertação, o percepto distingue-se da percepção pois
não está dependente, à semelhança desta, do sujeito percepcionante; já o afecto, afasta-se do
sentimento, da afecção, na medida em que não pertence a um sujeito particular. O percepto, o afecto e
o conceito são três potências inseparáveis que circulam entre a arte e a filosofia.
147
Vide pp. 116, 117 e 118 da presente dissertação.
148
Vide p. 138 da presente dissertação.
149
Vide p. 139 da presente dissertação.

77
Os desenhos com fio de crina servem, deste modo, a emancipação da artista;
permitem-lhe experimentar a materialização do desenho. Inicia a experimentação em 1970 –
veja-se Sem Título do mesmo ano (Figura 45150) – e leva-a mais tarde à fotografia: nas
primeiras ainda com a presença do rosto da artista, que dele logo se libertam, sobrevivendo
apenas o vestígio da artista na mão. O corpo da artista torna-se, deste modo, corpo-desenho.
Na primeira série de Desenho Habitado, de 1975 (Figura 46151), Helena Almeida é ainda
enquadrada na obra, aparece no centro, contudo, afasta-se significativamente da comum
representação do sujeito fotografado, elevando o próprio desenho a primeiro plano,
corporizando-o, oferece-lhe densidade. Em cada fotografia da série, 73 x 62 cm, a artista, de
concentração intensa, oferece à fotografia a força do desenho; o corpo que desenha é ele
próprio desenho.
Ela própria, na condição de corpo composto de linhas, é o medium que permite unir a
fotografia e o desenho, na convicção de que o corpo é constelação de linhas. Tais linhas
submetem-se à abertura, ao fechamento, à deformação; interessa-lhe o modo como estas
enformam e contornam os corpos, numa comunicação e simultâneo interromper da forma.
Iniciam-se num ponto fixo e rompem em movimento; existem num rizomático entre – entre
quietude e movimento, silêncio e ruído, corporização e informidade. O oxímoro conhece ritmo
no interior da repetição e as fotografias são habitadas pela relação da artista com a linha.
Em Seduzir, de 2001-02 (Figuras 47, 48 e 49152), as margens cortam abruptamente o
corpo; numa das fotografias da série, as mãos juntam-se mesmo aos pés (Figura 49153), num
procurar do limite da parede/chão, da moldura. Arrisca-se uma queda; é, aliás, esta que a
interessa: uma pintura que sai, que cai.
Exemplo de tal esforço é a primeira exposição individual em 1968, na Galeria Buchholz,
de telas de cores fortes – vermelho, azul, amarelo, laranja – e plásticos industriais, de centros
arrastados para fora. Em 1969, o quadro abraça já manifestamente a tridimensionalidade com
pedaços que se libertam e caem e persianas presas a meio da grade. Datam ainda do mesmo
ano os “quadros para vestir”, em que a tela existe por cima da artista, veja-se Tela Habitada de
1976 (Figura 40154). Estas obras-invólucros do corpo parecem existir num simultâneo demarcar
da escala monumental da escultura tradicional e experimentação performativa, conduzindo às
séries de pinturas-habitadas, recorrentes ao longo de toda a obra da artista. O processo que se
inicia com a série de 1974, na qual a artista se apresenta envolta de panejamentos face ao

150
Vide p. 139 da presente dissertação.
151
Vide p. 140 da presente dissertação.
152
Vide pp. 141. 142 e 143 da presente dissertação.
153
Vide p. 143 da presente dissertação.
154
Vide p. 134 da presente dissertação.

78
cavalete, termina mais tarde na pintura para a frente: liberta-se da tela e do cavalete, e
consagra o próprio espaço enquanto suporte pictural; o cavalete desloca-se de forma a dar
lugar ao espectador – este ocupará agora o lugar daquele, o espectador passa a existir no
quadro. Assim Almeida pinta e desenha para a frente, o fio de crina entra para a frente e a
própria artista se desloca.
Interessa-lhe, em última análise, o sentido de passagem e, sobretudo, de
ultrapassagem. Ultrapassam-se os limites dos suportes, das disciplinas, dos meios e do corpo.
Pensa a solidão irredutível do corpo e a morte e, num intuito de metamorfose, transforma-o
numa coisa outra. É a tela, quando assim elevada à condição de corpo, que lhe permite
ultrapassar os limites daquele. Veja-se, neste sentido, Ponto de Fuga, 1982 (Figura 27155).
Em Sente-me, de 1979 (Figura 15156), a linha que atravessa o rosto da artista liberta-se
do suporte da representação e encontra-se num perpétuo entre: parte é ainda virtual, do
âmbito da representação, mas parte é já real, do espaço de quem procede à representação;
não se encontra ainda completamente em nenhum dos espaços. Em Tela Habitada, de 1976
(Figura 35157), o esforço de evasão da tela dilui a relação entre interior e exterior e a artista
instala-se nesse mesmo entre, entre espaço da representação e espaço real.
São ainda exemplo de um pensar rizomático, as séries de 1977 sob o título de Estudo
para Dois Espaços, 1977. Nelas se parece conduzir a experimentação física de um entre
espaços: entre interior e exterior. Deste modo, na Figura 50, Almeida experimenta a
transparência e opacidade do livro; na Figura 51, experimenta-se, por sua vez, a dicotomia
dentro/fora envolvendo-a de contornos de prisão/liberdade; na Figura 52, o véu retorna
testando aquela primeira dicotomia da opacidade/transparência em limites que o corpo se
parece propor a ultrapassar; e, por fim, também a água e o aquário oferecem espaço a à
experimentação do entre (Figura 53158).

Invoca-se, em última instância, Jacqueline Rose, que no seu Sexuality in the Field of
Vision (ROSE, 1986), afirma que «uma feminista preocupada com a questão do olhar pode
assim inverter esta teoria [de que o ponto de vista masculino consolidará as nossas certezas
em relação à imagem] e sublinhar a oposição particular e limitadora entre homem e mulher,

155
Vide p. 118 da presente dissertação.
156
Vide p. 109 da presente dissertação.
157
Vide p. 129 da presente dissertação.
158
Vide p. 147 da presente dissertação.

79
na qual qualquer imagem olhada como sem-falhas serve para perpetuar»159 (ROSE, 1986: p.
232). Helena Almeida cria, neste sentido, um vocabulário próprio, profundamente inventivo e
pessoal, que se mostra fulcral num pensar da subjectividade feminina, do seu reflexo na arte e
da possibilidade mesma de uma linguagem – inclusivamente plástica – liberta dos modelos do
mesmo.

159
«*…+ a feminism concerned with the question of looking can therefore turn this theory around and
stress the particular and limiting opposition of male and female which any image seen to be flawless is
serving to hold in place».

80
CONCLUSÃO

«*…+ saber como representar um corpo, masculino ou feminino, para levar a cabo uma
experiência humana e criar uma empatia, uma identificação. Os homens têm sido capazes de o
procurar na figuração dos corpos das mulheres. Penso que é tempo de as mulheres
apresentarem a sua própria visão.»160
(Kiki Smith, em entrevista com Valérie Da Costa in DA COSTA, 2006: p. 6)

As análises levadas a cabo na presente dissertação pretendem-se fecundas a um


entender das obras em questão através de um libertador posicionamento feminino e, em
última análise, feminista. O feminismo mostra-se crucial num assumir, na análise de uma obra,
de ordem já muito distante daquela regulada e legitimada pelas velhas dicotomias.
Recebendo um quadro de análise, das figuras deleuzianas em ligação directa com as
teorizações de Irigaray e da escola feminista da diferença sexual, uma síntese final entre os
dois autores mostrar-se-á profícua. Síntese essa, que se deverá encarar já longe de uma
equivalência perfeita, ponto por ponto, mas enquanto existência a par, enriquecedora para os
dois, apesar dos pontos que os separarão sempre.
Assim se lê Rosi Braidotti, que aponta como lamentável, em Metamorfosis (BRAIDOTTI:
2005), que a teoria feminista das últimas décadas do último milénio, ao receber a
nomadologia, a rizomática e a maquinaria conceptual de Deleuze, tenha relegado à
marginalidade o aparato conceptual pioneiro, e igualmente poderoso, da teoria da diferença
sexual. A autora defende a compatibilidade entre as dois modelos conceptuais, afirmando que
nada impede a leitura do feminino de Irigaray a par do devir de Deleuze enquanto processos
de fuga às premissas falogocêntricas e de criação de importantes novos territórios do pensar.
Partilha-se da opinião da autora: muito embora se reconheçam pontos de dissonância –
abordados na parte primeira da presente dissertação –, a noção deleuzeana de devir e de

160
«*…+ de savoir comment représenter un corps, qu'il soit masculin ou féminin, pour en faire une
expérience humaine et créer une empathie, une identification. Les hommes ont été capables de
rechercher cela en figurant le corps des femmes. Je pense qu'il est désormais temps pour les femmes
d'apporter leur propre vision».

81
rizoma contribui significativamente para um eu não uno que se apresenta da maior utilidade
para uma lógica do fluido na teoria da diferença sexual.
Irigaray e Deleuze tomam, em última análise, o sujeito, por processo de deslocações e
negociações constantes entre níveis diversos de poder e de desejo que se movem entre a
eleição voluntária e os impulsos inconscientes. O devir é múltiplo, fluido, fibroso, rizomático,
luminoso – não mero reflector de luz qual caverna platónica; mas uma multiplicidade de
fluidos e luminosos planos de consistência, já muito distantes das analogias em série de Platão
que se iniciavam com o fogo na caverna e terminavam com o sol no exterior. Superfície onde
tudo o que difere é expresso univocamente – sendo a univocidade o que o mantém unido –, o
devir não é substância, forma ou Ideia, mas um plano aberto ao longo de um infinito número
de dimensões, uma infinitude de modificações (Olkowski in BUCHANAN e COLEBROOK, 2001:
p. 106).
O devir-mulher num tal plano de consistência concretiza-se na produção de moléculas
que atravessam o plano por forma a impedir o furto do corpo da mulher por meio do qual se
torna aquele corpo fundação sobre que – e fora da qual – o masculino pensa, actua e vive.
Quando, como Irigaray tão claramente observou, o devir-mulher se torna fixado, estabilizado e
territorializado, a rapariga torna-se o exemplo de castração para o rapaz e o corpo de ambos
se organiza em torno do órgão castrado da rapariga e da ameaça de castração do rapaz: o
corpo feminino quer-se múltiplo e multi-dimensional, simbiose de uma multiplicidade de
forças sexuais, de uma multiplicidade de comportamentos para todos os devires. A mulher
enquanto devir apresenta-se, pois, anómica, contra e fora da regra, do princípio, da estrutura;
as suas moléculas são de poderoso contágio, espalhando-se pela mucosidade e humidade
intersticial. Neste sentido, se se recusar a patologia a si associada, construindo uma lógica da
linguagem e da representação de base na fluidez e na multiplicidade, todos os termos que se
apresentam desagradáveis porque expressão do corpo da mulher – o uterino, vulvar, clitorial,
vaginal ou placentário – podem então entrar, de modo pioneiro, na estrutura do
conhecimento e constituir contributo inestimável para o pensar da arte criada por mulheres.

Neste sentido se pretendeu pensar as obras que aqui se tomaram em análise e, deste
modo, se pretende defender a pertinência do quadro de análise rizomático que aqui se
esboçou, fundamentando uma leitura das obras de modo que se pretende liberta das amarras
de um pensar falogocêntrico.
A apologia de tal pertinência faz-se, em primeira instância, tendo em consideração que
uma leitura de trabalhos que – embora muito diversos a nível estético, metodológico e
material – se ligam pela peculiaridade da experiência das artistas num corpo que se identifica

82
enquanto feminino, se vê investida de um importante papel num reequacionando o feminino
na criação artística e, de igual modo, para lá dos domínios da arte.
De três temas maiores – dedicados, cada um, a uma artista (PARTE II, III e IV) – a
argumentação fez-se de figuras eminentemente deleuzianas, quais o háptico, o rizoma, o
simulacro, o informe, o devir, o diagrama, a diferença, a Figura e o corpo sem órgãos, em
estreita ligação a um pensar feminista da diferença sexual. Assim de esboçou o quadro de
análise de que se acreditava carecer e que se pretende aberto, maleável e não-taxativo.
Merece, ainda, breve nota o facto da leitura das obras das artistas em causa se
pretender somente isso: uma leitura possível, que poderá, ou não, coincidir com a intenção da
artista aquando da concepção do trabalho.
Iniciou-se a argumentação através da leitura de Fernanda Fragateiro à luz da
deleuziana noção de háptico. Ligando-se a percepção e espaço hápticos ao feminino e seu
desejo, viram-se desenhadas directivas para um reequacionar da sexualidade feminina e da
sua ligação à linguagem, propondo-se que esta se liberte definitivamente da ordem do Logos
e, nómada, deambule no espaço e o habite, de corpo inteiro e plena de fluidez. A escultura
rizomática, no campo expandido, de Fragateiro, parece propor-lhe exactamente isso.
Deu-se seguimento à argumentação pensando a obra de Ana Vieira e a sua ligação è
noção deleuziana de simulacro. Num contexto em que a mulher vem sendo encurralada em
dicotomias quais homem/mulher, cultura/natureza, virgem/prostituta ou esposa/mãe, esta
vê-se, como se notou, impedida de se expressar a si mesma e à sua sexualidade. É por meio da
construção de uma fecunda ligação entre Deleuze e Irigaray, no contexto das obras de Vieira,
que à mulher se devolve uma fruição múltipla e difusa, não-fixa, sem modelos ou mestres.
Conclui-se a argumentação com recurso ao pensar da obra de Helena Almeida
enquadrado pela deleuziana noção de diagrama. O combate contra o cliché afirma-se contra o
tema em arte, contra a referência narrativa e figurativa e contra a interpretação, tendo o seu
culminar na possibilidade de um discurso e subjectividade femininas.
O feminino, enquanto simulacro, diferença, não terá lugar – dada a sua
incomensurabilidade, falta de medida e consequente marginalidade – num Logos que se
processa pela construção de narrativas que confirmam e o confirmam, ao mesmo, ao Pai, e
que existem precisamente com o intuito de o perpetuar enquanto modelo e Senhor do
discurso. Será preciso desconstruir essas narrativas, por meio do rizoma, do diagrama e da
evasão ao Logos por mão do simulacro. Ora, de prazer de linguagem próprios, a mulher e a
produção discursiva – e, dir-se-ia, artística – femininas «dever-se-iam ouvir com outro ouvido,
como que ouvindo um “outro significado” permanentemente no processo de se tecer, de se
rodear com palavras, mas igualmente de se livrar de palavras por forma a não se tornar fixa,

83
congelada nelas»161 (IRIGARAY, 1985: p. 29). Aqui se encontra o fulcral contributo do
feminismo para o reconhecimento das relações entre representação e subjectividade,
enquanto sexuadas, e em progresso.
A construção e representação da diferença sexual na linguagem vem sendo amiúde
objecto central da discussão feminista, considerando-se, de um modo geral, inseparável da
construção cultural do género e identidade. A noção de diferença vem sendo aplicada ao ser
humano enquanto categoria que se vê traduzida por uma implacável polaridade entre homem
e mulher, assumindo, deste modo, dois sentidos: um de carácter positivo e outro negativo. No
âmbito do primeiro, a mulher vê-se dotada de voz, psicologia e experiência diferentes. No
último se inclui a subordinação do Outro ao mesmo. No entender de autoras, quais Kate
Millett (MILLETT, 1970) e Shulamith Firestone (FIRESTONE, 1968), no segundo sentido reside o
primordial mecanismo de opressão da mulher, pensando o termo diferença ao serviço de uma
sociedade patriarcal, traduzindo-se, em última instância, na discriminação de género. Se é
facto que o feminismo viu historicamente a noção de diferença tomada enquanto marca de
inferioridade, o contexto contemporâneo veio abrir espaço àquela primeira acepção do termo.
Teóricas como Braidotti (BRAIDOTTI, 1994), Rita Felski (FELSKI, 1997) ou Drucilla Cornell
(CORNELL, 1997), vêm afirmando e defendendo uma outridade positiva num simultâneo
recusar de categorias essencialistas e consequentes bipolarizações, oferecendo a
multiplicidade e as variáveis relacionais por alternativa.
De modo idêntico, também Irigaray se havia já pronunciado neste sentido, opondo-se
de modo definitivo a Beauvoir – que olha a mulher enquanto tendo um papel fulcral a
desempenhar, psicológica, social e culturalmente na condição de Outro – no sentido em que
assume a diferença enquanto radicada, não na transcendência, mas na representação
simbólica e social. Dirigindo influente crítica à psicanálise, a autora defende, como vimos, um
carácter descentrado e múltiplo da sexualidade feminina que se caracterizará, a si e à sua
linguagem, pelo excesso, desvio, fluidez e simultaneidade. Tomando a diferença na sua
acepção derrideana – différance –, Irigaray faz-se referir à instável natureza relacional do
sentido linguístico e ao posicionamento do feminino enquanto privilegiado lugar para se tirar
partido de tal instabilidade. Ora, abordando a diferença sexual enquanto realidade ontológica,
postula que, mais que ultrapassar ou negar as diferenças entre homem e mulher, o feminismo
deve aceitar o conceito de diferença e levá-lo o fundamento da sua teoria e prática.

161
«*…+ would have to listen with another ear, as if hearing an “other meaning” always in the process of
weaving itself, of embracing itself with words, but also of getting rid of words in order not to become
fixed, congealed in them».

84
A relação da mulher com o poder e o discurso dominante é, por força da própria
intraduzibilidade e marginalidade (BENJAMIN, 1968: 75) da sua diferença, frequentemente
traduzida por um hiato ou estranheza, é elemento de resistência ao processo de
homogeneização. Neste sentido, as próprias estruturas políticas e institucionais vêm
reflectindo a recusa em reconhecer a diferença, assumindo o masculino enquanto neutro e
norma.
Pensar a diferença neste sentido não se traduzirá na subjugação hierárquica da mulher
ao mesmo, mas na descoberta das suas particularidades, identidade e sexualidade. O
entendimento da identidade feminina enquanto constituída na e pela linguagem – ecos de
Lacan, segundo o qual o sujeito se transforma em ser social na e pela linguagem – é base do
reivindicar feminino por uma linguagem que a sirva. Alienada por princípio da linguagem e do
poder, estrangeira (BRADOTTI, 1994), ser-lhe-á conferido um papel de agente privilegiado de
mudança, e será precisamente através da conceptualização de uma écriture féminine, que
Irigaray abrirá fulcral caminho à possibilidade de um desenhar de modelo conceptual
inteiramente diverso daquele em vigor.
O termo, cunhado pela crítica francesa da década de 1970, assume a problematização
da especificidade do feminino e das suas marcas no discurso e produção literária –
estendendo-se, na presente análise, à produção artística. No seu contexto se perscruta uma
tradição alternativa à cultura literária existente, e é nesse sentido que já Virginia Woolf havia
indagado sobre a existência de uma tradição literária feminina (WOOLF, 2000). Colocando a
questão nos termos da necessidade de ter um espaço e dinheiro verdadeiramente seus, esta
teria sido a grande condicionante à produção literária feminina até então. Neste sentido, as
mulheres escritoras do início do século XIX, se ligaram à produção do romance, o género
literário que mais se coadjuvava com uma vida ligada essencialmente à domesticidade e
espaço interior; assim se olha George Eliot, Jane Austen e as irmãs Brontë, e assim se
fundavam os primórdios de uma tradição literária feminina, numa apropriação de um modelo
terminantemente masculino e, de algum modo, a subversão deste. Woolf defende
inclusivamente, num ensaio de 1929, Women and Fiction (WOOLF, 1966), que a própria forma
da frase masculina não poderá servir uma escrita levada a cado pela mão da mulher – aquela
parece-lhe pesada e pomposa em demasia –, estipulando que o livro, e a frase, se têm de ver
adaptados ao corpo.
Meio século mais tarde, a argumentação de Woolf vem a ser reclamada e retomada
pela crítica feminista francesa, pela mão de Kristeva, Cixous, Irigaray ou Monique Wittig.
Cixous, apelando a um ouvir do corpo, a um escrever do corpo, pensa a escrita enquanto
materializando a relação não censurada da mulher consigo mesma e com a sua sexualidade

85
(CIXOUS, 1975). De modo análogo, também Irigaray havia ligado a escrita e a sexualidade
feminina; fê-lo através da teorização de um experimental parler femme. A reciprocidade
existente entre o discurso feminino e o corpo da mulher é, deste modo, advogado pelas
autoras em questão e unicamente possível através da transgressão do sistema simbólico
instituído.
A diferença sexual, nas suas acepções biológica, psicológica e social, vêm-se debatendo
na crítica feminista. Tal profícuo debate vem abrindo valiosas possibilidades conceptuais e
práticas à mulher; e esta, transgredindo as limitações que a condenam à margem de um
modelo masculino, vê-se progressivamente apta a opor a experiência do seu corpo aos
padrões fálico-simbólicos ocidentais, pois só descobrindo, possuindo e exprimindo a sua
identidade e sexualidade própria pode a mulher construir um sistema alternativo.
O contributo de Kristeva mostra-se, neste ponto, essencial, pois desconstruindo a
estrita dicotomia homem/mulher, as mulheres não mais se olham enquanto únicas
possuidoras de um discurso pré-fálico. Kristeva pensa a mulher enquanto estrangeira face ao
poder simbólico, no entanto recusa-se a pensá-la enquanto dicotómico Outro do homem em
prol, entes, de uma heterogeneidade e diferença positiva. Ora, momentos de transgressão e
criatividade artística, momentos de ruptura – de revoluções na linguagem, como o sucedido
nas vanguardas –, são identificados com o feminino: porém o feminino não mais é
determinismo biológico. A autora empenha-se, neste sentido, num retorno a uma jouissance
pré-simbólica, ligando a noção de fruição a uma energia feminina que extravasa largamente a
ordem simbólica falogocêntrica – esta ordem não mais a consegue conter. Já distante de uma
jouissance lacaniana, substitui os termos jouissance sexuelle e jouissance phallique por plasir e
jouissance, ligados a prazer sexual e êxtase, respectivamente. Tal energia identifica-se com um
auto-erotismo pré-fálico.
Uma nova geração de teóricas retomará, na década de 1960, este trabalho iniciado por
Irigaray, Kristeva e Cixous, legitimando a diferença sexual enquanto categoria de pensamento
por oposição ao essencialismo e bipolarização. Contam-se, aí, autoras quais Braidotti, Cornell
ou Grosz. Cornell, olhando o feminino enquanto aquilo que resiste à definição e que contem a
multiplicidade e alteridade, empenha-se numa apologia de um imaginário alternativo, para lá
da estruturação binária do falogocentrismo. Não mais se pretende negar ou destruir a
diferença, mas recuperar o feminino aí, na diferença sexual, abrindo lugar a um imaginário
feminino autónomo, para lá dos estereótipos que enformam a mulher (BRAIDOTTI, 1994: p.4)
A diferença positiva de Braidotti mostra-se estratégia política e intelectual e a
resolução da problemática de como se conjugará uma teoria da diferença sexual com uma
prática rizomática, e portanto não-dicotómica, parece respondida na necessidade de que se

86
reconheça a diferença mas que essa diferença não seja construída em função do sistema
patriarcal – não pode haver uma simetria com um sistema que é discriminatório e
falogocêntrico de raiz.

Ora, a existência como um Outro, porque socialmente determinada, condiciona a


experiência da mulher e reflecte-se indubitavelmente – directa ou indirectamente –, na
criação artística. Esta experiência, embora de pressupostos comuns que permitem ligar as
obras de mulheres artistas numa arte no feminino, não é, contudo, universal, assim como não
o são os corpos. Era ainda possível, no início de século XX, referir-se a mulheres artistas de um
modo geral e indeterminado – e marcadamente depreciativo –, quais representativos objectos
subservientes ao seu sexo. Já muito distante da estética feminina proposta por Judy Chicago,
de cânones que identificariam e regulariam a arte criada por mulheres, é rejeitando tal rótulo,
e o próprio princípio de rótulo, que as artistas aqui se abordam enquanto sendo plurívocas e
de trabalho continuamente diferente e significativo.
Apresenta-se premente um questionar da organização auto-reflectora – e, como tal,
estratificável – do sujeito no discurso, que sustenta e perpetua a dicotomia
inteligível/perceptível e, desse modo, a submissão e subordinação e exploração do feminino: é
o sujeito masculino que se reflecte no discurso. A divisão dos sexos em referência à forma
como habitam ou são habitados pela linguagem, cara à psicanálise – que acabará, assim, por
considerar um só sexo –, legitima a tradicional dicotomia inteligível/perceptível, que resultará
por fim na subordinação do perceptível à ordem do inteligível enquanto lugar de inscrição de
formas; o Outro será sujeito a tal inscrição sem o seu conhecimento. É o caso da caverna
platónica, enquanto receptáculo e ventre, e será através do rizoma, do háptico, do simulacro e
do diagrama, e, em última análise, da lógica da sensação, que esta poderá finalmente ser
ultrapassada.

Em última análise, o háptico, destituindo um modelo representacional masculino,


voyeurista, do seu império, abre caminho a uma subjectividade feminina pois, no âmbito do
espaço e percepções hápticas, a esta se permitirá diferença, multiplicidade e desvio em
relação ao modelo masculino. De modo idêntico, o simulacro, destituindo um modelo
epistemológico masculino do seu império, abre caminho a uma subjectividade feminina que
não mais se submete a modelos e, como tal, não mais se pensa em termos de cópia
deformada, imperfeita, cópia de cópia, ganhando lugar para assumir a forma que entender.
Permite-se a entrada do sujeito feminino numa lógica discursiva outra. E, finalmente, através
do diagrama, se destitui um omnipresente narrador masculino do seu império, abrindo

87
caminho a uma subjectividade feminina passível de entrada numa ordem simbólica e de
significação outra, não-narrativa.
Os três temas centrais constituem, precisamente, uma reformulação do feminino,
inteiramente distinta daquela que lhe é imputada pelo Logos sob a designação de feminilidade:
o háptico, implicando corpo – e uma consciência deste não mediada pelo falo –, o simulacro,
implicando devir – devir-mulher – e o diagrama, implicando a subjectividade de um ponto de
partida discursivo, abrem caminho uma linguagem e sistemas de representação próprios.
Assim se construíram directivas que se propõem apontar para uma formulação da
subjectividade feminina, múltipla, fluida, diversa, livre. E, em última instância, uma, por demais
urgente, formulação da posição subjectiva feminina da mulher artista.
Não só a mulher artista beneficiará de tal posição: desestabiliza-se uma escopofílica
posição de espectador que, mais que confortável, permanece coincidente com uma
subjectividade masculina. O espectador ver-se-á agora confrontado com uma posição
subjectiva alternativa, liberta de um sistema de representação falogocêntrico; e, como
articulado por Deleuze na sua teorização do devir-mulher, tal posição, mais que necessária, é
libertadora. As posições subjectivas que se propõem mostram-se subversivas ameaças ao
status quo da esfera social e artística.
As posições subjectivas femininas, e feministas, que se propõem nas presentes
análises, pretendem-se, portanto, libertadoras do sistema dicotómico: afirmando-se
femininas, mas não mais em exclusiva oposição a um masculino; agora somente enquanto
posição possível entre uma larga pluralidade de outras – que podem ser efectivamente
masculinas, mas igualmente nem masculinas nem femininas, ou as duas em simultâneo162.
Propõe-se, deste modo, um devir-mulher não mais exclusivamente deleuzeano – a caminho de
um devir genérico, andrógino – mas um devir-mulher como definitivo ponto de chegada.

162
Lembra-se Judith Butler e a sua teorização do terceiro sexo, fundada na concepção do género
enquanto construção exclusivamente social (BUTLER in COUTO, CRESPO, CRUZ, JOAQUIM e MONTEIRO-
FERREIRA, 2008: pp. 154-172).

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Kate, Difference, Londres: ICA, p. 19-30
TICKNER, Lisa (2008), “Modernist Art History: The Challenge of Feminist”, in Robinson,
Hillary, Feminism-Art-Theory, An Antology 1968-2000, Oxford: Blackwell Publishing
WOOLF, Virginia (1966), “Women and fiction”, in Collected Essays, Vol. 2, Londres:
Hogart Press [1929]
WOOLF, Virginia (2000), A Room of One's Own, Londres: Penguin Classics
YOURCENAR, Marguerite (2011), De Olhos Abertos – Conversas com Matthieu Galey,
Lisboa: Relógio D’Água

Websites Consultados:

http://www.anavieira.com/
http://www.fernandafragateiro.com/

93
ANEXOS

94
Figura 1
Louise Bourgeois
Femme Maison, 1947
Tinta sobre papel
23,2 x 9,4 cm
Fonte: www.google.pt

95
Figura 2
Louise Bourgeois
Femme Couteau, 1982
Mármore preto polido
14 x 77 x 20 cm
Robert Miller Gallery, Nova Iorque
Fonte: http://www.robertmillergallery.com/

96
~

Figura 3
Louise Bourgeois
Janus fleuri, 1968
Bronze, patina dourada
Peça suspensa
25,7 x 31,7 x 21,3 cm
Galeria Lelong, Zurique
Fonte: http://www.galerie-lelong.com

97
Figura 4
Louise Bourgeois
Precious liquids, 1992
Cedro, ferro, vidro, tecido
427 x 442 cm
Centro Pompidou (Museu
Nacional de Arte moderna),
Paris
Fonte: www.centrepompidou.fr/

98
Figura 5
Fernanda Fragateiro,
Não ver, 2008
Mosteiro de Alcobaça.
Fonte: http://www.fernandafragateiro.com/

99
Figura 6
Fernanda Fragateiro
Não ver, 2008 (pormenor)
Espelhos
Fonte: http://www.fernandafragateiro.com/

100
Figura 7
Fernanda Fragateiro
Caixa Para Guardar o Vazio, 2005
Madeira e espelho, dimensões variáveis
Fonte: https://www.google.com/

(pormenor)

101
Figura 8
Jan Vredeman de Vrie
Perspective, 1604-5
Fonte: https://www.google.com/

102
Figura 9
Albrecht Dürer
Draftsman drawing a female nude, 1525
Fonte: https://www.google.com/

103
Figura 10
Ana Veira
Ambiente, 1971
Colecção CAMJAP/FCG, Lisboa
Fonte: http://www.anavieira.com/

104
Figura 11.
Ana Vieira
Ambiente, 1972
Colecção Berardo, Lisboa
Fonte: http://www.anavieira.com/

105
Figura 12.
Marcel Duchamp
Three Standard Stoppages, 1913-14
Caixa de madeira de 28.2 x 129.2 x 22.7 cm, com três fios de 100 cm colados a três
faixas de telas pintadas de 13,3 x 120 cm, cada uma instalada num painel de vidro de
18,4 x 125, 4 x o,6 cm. Três ripas de madeira de 6,2 x 109,2 x 0,2 cm.
MOMA, Nova Iorque
Fonte: http://www.moma.org/

106
Figura 13.
Alberto Giacometti
La Boule Suspendue, 1930-31
Ferro e Gesso
60,9 cm
Tate Gallery, Londres
Fonte: http://www.tate.org.uk/

107
Figura 14.
Marie Yates
The Missing Woman - Phase II, 1984 (pormenor)
21 fotografias a preto e branco sobre cartão, formando 8 painéis de 30 x 50 cm, 9
painéis de 45 x 50 cm, e 4 painéis de 48 x 76 cm
Fonte: http://www.renaissancesociety.org

108
Figura 15
Helena Almeida
Sente-me, 1979 (pormenor)
Fotografia e fio de crina
32x22cm
Col Belém Maria Sampaio
Fonte: http://www.fundacion.telefonica.com/

109
Figura 16
Helena Almeida
A Casa, 1981
Fotografia
59 x 44,5 cm
Col. Fundación ARCO, Madrid - em depósito em CGA, Santiago de Compostela
Fonte: http://www.fundacion.telefonica.com/

110
Figura 17
Helena Almeida
Pintura Habitada, 1975 (pormenores)
Acrílico sobrefFotografia a preto e branco
50 x 60 cm
Col. Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, Porto, Portugal
Fonte: http://www.fillesducalvaire.com

111
Figura 18
Estudo para um enriquecimento interior, 1976
Acrílico azul sobre fotografia
9 vezes 50x60cm
Colecção da artista
Fonte: http://www.fundacion.telefonica.com

112
Figura 19
Estudo para um enriquecimento interior, 1977
Tinta acrílica sobre fotografia
Fonte: http://www.fillesducalvaire.com

113
Figura 20
Estudo para um enriquecimento interior, 1977-78
Tinta acrílica sobre fotografia
Fonte: http://www.fillesducalvaire.com

114
Figura 21
Voar, 2001 (detalhe)
Fotografia
124 x 180 cm cada
Col. Ordoñez Falcon, San Sebastian
Fonte: http://www.fundacion.telefonica.com

115
Figura 22
Sem Título, 1996-97 (pormenor)
18 fotografias a preto e branco
246 x 1150 cm
Col. Berardo
Fonte: http://mirror.berardocollection.com

116
Figura 23
Helena Almeida
Eu Estou Aqui, 2005 (pormenor)
Fotografia
125 x 90 cm
Fonte: http://www.dgartes.pt/bienalveneza2005/exposicao.htm

117
Figura 24
Helena Almeida
Eu Estou Aqui, 2005 (pormenor)
Fotografia
125 x 90 cm
Fonte: http://www.dgartes.pt/bienalveneza2005/exposicao.htm

118
Figura 25
Helena Almeida
Eu Estou Aqui, 2005 (pormenor)
Fotografia
125 x 90 cm
Fonte: http://www.dgartes.pt/bienalveneza2005/exposicao.htm

119
Figura 26
Espaço Espesso, 1982
Fotografia a preto e branco
286 x 132cm
Colecção privada
Fonte: http://www.fillesducalvaire.com/

120
Figura 27
Ponto de Fuga, 1982
Fotografia a preto e branco
214,5 x 130,5 cm
Col. Mario Sequeira, Braga, Portugal
Fonte: http://www.fillesducalvaire.com/

121
Figura 28

Sem Título, 1991

Gravura, serigrafia sobre papel fabriano

70 x 67,5 cm

Fundação Calouste Gulbenkian


Fonte: http://cam.gulbenkian.pt/

122
Figura 29
Auguste Rodin
Balzac, 1897
Bronze
2,97 x 1,20 x 1,20 m
MOMA, Nova Iorque
Fonte: KRAUSS, 2007: p.39

123
Figura 30
Entrada Azul, 1980
Tinta acrílica sobre fotografia a preto e branco
76 x 54 cm
Col. Berardo
Fonte: http://mirror.berardocollection.com

124
Figura 31
Tela Habitada, 1976
Tinta acrílica sobre fotografia a preto e branco

Fonte: http://www.galerieimtaxispalais.at

125
Figura 32
“Sem Título”, da série Pintura Habitada, 1975
Tinta acrílica sobre fotografia
46 x 40 cm
Col. Módulo, Centro Difusor da Arte, Lisboa
Fonte: http://www.fillesducalvaire.com

126
Figura 33
“Sem Título”, da série Pintura Habitada, 1975
Tinta acrílica sobre fotografia
46 x 40 cm
Col. Módulo, Centro Difusor da Arte, Lisboa
Fonte: http://www.fillesducalvaire.com

127
Figura 34
Corte Secreto, 1981
Fotrografia sobre tela
300 x 127 cm
Fundação Calouste Gulbenkian
Fonte: http://cam.gulbenkian.pt/

128
Figura 35
“Ouve-me”, da série Tela Habitada, 1976
Fotografia
Fonte: www.google.pt

129
Figura 36
Ouve-me, 1979 (still)
Vídeo\Super 8, Vídeo\ DVD e Vídeo\VHS
Fundação Calouste Gulbenkian
Fonte: http://cam.gulbenkian.pt/

130
Figura 37
Ouvre-me, 1979
16 fotografias a preto e branco
18 x 24 cada
Col. Caixa Geral de Depósitos, Lisboa
Fonte: http://www.fillesducalvaire.com

131
Figura 38
Sem Título, 1969
Tinta acrílica pintada sobre madeira e tela
106 x 103 cm
Fundação Calouste Gulbenkian
Fonte: http://cam.gulbenkian.pt/

132
Figura 39
Nicolas Poussin
Autorretrato, 1650
Fonte: www.google.pt

133
Figura 40
Helena Almeida
Tela habitada, 1976
Fotografia a preto e branco
203 x 127 cm
Fonte: http://www.fundacion.telefonica.com

134
Figura 41
Louise Bourgeois
Costume for ’A Banquet’, 1978
Latex
Approx. 132 × 96.5 × 12.7 cm
Fonte: www.google.pt

135
Figura 42
Cornelis Norbertus Gysbrechts
Reverse of a Frame Painting, 1670
67 x 86cm
Fonte: www.google.pt

136
Figura 43
Helena Almeida
A Experiência do Lugar II, 2004 (still do vídeo)
Vídeo a preto e branco, som, 12’47’
Fonte: http://www.dgartes.pt/bienalveneza2005/exposicao.htm

137
Figura 44
Helena Almeida
Desenho Habitado, 1976
Fotografia, desenho e colagem sobre papel fotográfico
40 x 50 cm
Fundação Calouste Gulbenkian
Fonte: http://cam.gulbenkian.pt/

138
Figura 45
Helena Almeida
Sem título, 1970
Desenho, tinta-da-china e fio de crina sobre cartão
35 x 26 cm
Fundação Calouste Gulbenkian
Fonte: http://cam.gulbenkian.pt/

139
Figura 46
Helena Almeida
Desenho Habitado, 1975
Fotografia a presto e brance
63 x 43 cm
Gal. Filomena Soares
Fonte: http://www.gfilomenasoares.com/

140
Figura 47
Helena Almeida
Seduzir, 2002 (pormenor)
Fotografia e tinta acrílica sobre papel fotográfico
199 x 129,5 cm
Fundação Calouste Gulbenkian
Fonte: http://cam.gulbenkian.pt/n

141
Figura 48
Seduzir, 2002 (pormenor)
Fotografia sobre papel fotográfico
129 x 194 cm
Fundação Calouste Gulbenkian
Fonte: http://cam.gulbenkian.pt/

142
Figura 49
Seduzir, 2001 (pormenor)
72 x 105cm
Col Helga de Alvear, Madrid
Fonte:

143
Figura 50
Helena Almeida
Estudo para Dois Espaços, 1977 (pormenor)
Fotografia a preto e branco
43 x 33 cm
Col. Berardo
Fonte: http://mirror.berardocollection.com

144
Figura 51
Helena Almeida
Estudo para Dois Espaços, 1977 (pormenor)
Fotografia a preto e branco
43 x 33 cm
Col. Berardo
Fonte: http://mirror.berardocollection.com

145
Figura 52
Helena Almeida
Estudo para Dois Espaços, 1977 (pormenor)
Fotografia a preto e branco
43 x 33 cm
Col. Berardo
Fonte: http://mirror.berardocollection.com

146
Figura 53
Helena Almeida
Estudo para Dois Espaços, 1977 (pormenor)
Fotografia a preto e branco
43 x 33 cm
Col. Berardo
Fonte: http://mirror.berardocollection.com

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