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Pressentindo a filha

do firmamento

Índice
1 – Pressentindo

Questionar-me o que havia me tornado naquela altura estava fora de cogitação,


minhas mãos trêmulas sustentando um livro, ao qual me agarrara antes de
entrar naquela sala, tal fora minha agitação.
Não que desconhecesse a maioria daqueles olhos que me fitavam, enquanto
passava por eles, pelo grande salão, no qual uma mesa redonda, coberta por uma
toalha vermelha, assim como todas as outras espalhadas pelo ambiente, esperava
por mim com uma placa com o meu nome e uma flor amarela, num vaso
cristalino.
Adiante das várias mesas, um palco alto, encoberto por uma imensa cortina
vinho brilhante, o pano aparentemente pesado sequer se movia, mas sabia estar
pessoas a trabalharem atrás daquelas cortinas. Podia esperar a apresentação de
alguma banda.
Em meus dias mais escuros, a confusão fizera morada e tudo o que queria era
estar sã e salva em Norga, fazendo exatamente o que estava fazendo naquele
momento. Mas, não tinha abandonado aquela parte resistente, depressiva
demais, para falar.
Desejos que precederam a insanidade ou talvez fossem ambos a mesma coisa. A
autodestruição ainda roncava seus motores quando os gatilhos eram acionados,
não mudaria agora, ainda que estivesse orgulhosa de mim o suficiente.
Seria injusta se dissesse que a coragem me faltava, do contrário não estaria no
meu próprio julgamento, mas talvez o medo também não me faltasse. Instinto de
sobrevivência, falando tão alto quanto todos os instintos que me faltavam.
Nossos olhos se encontraram quando as cortinas do palco se abriram e ele
começou a se apresentar junto com sua banda. Odiava minha própria alma por
apreciar tanto a musica profana, suja e nefasta que compunha. Aquilo não
pareceu um olhar, mas nos digladiamos mais uma vez.
Meus olhos eram âmbar demais para o azul tão comum ao povo de Norga. O
branco de minha pele não era leitoso o suficiente, era claramente um pouco mais
escura, embora ainda fosse pálida.
Meus cabelos compridos, caiam num tom chocolate, na cintura, com algumas
mechas de um vermelho-vivo feito sangue. Até mesmo o gorro vermelho de lã, que
vestia para combinar com o casaco, era algo para os manter preocupados e
alertas quanto a minha presença.
A única coisa que nos unia era que eu era tão Renegada quanto eles. Que
nascera sob uma demanda de invocações, de almas antigas que precisavam
voltar e trazer algo diferente para o mundo. O problema era que nasci e cresci em
Uada, não em Norga.
Diante da situação onde o mundo se agitava numa onda marcial, contra o
Império que crescia e nos conquistava com o passar dos anos, não tinha que
enfrentar tal problema, não deveria, se tivesse fugido para qualquer outro lugar.
Norga era minha única rota, não tinha outro lugar para ir, já que meu pai era do
país frio ao norte, tinha documentação e propriedades, a herança deixada estava
comigo. Tinha o direito como qualquer um deles de estar ali, não que todos
pensavam assim, mas estava numa situação delicada.
Maki deixou o olhar escorregar sobre mim novamente, como se estivesse sorrindo
enquanto a melodia seguia o tradicional riff de Norga, parando de tocar
subitamente, para então, começar a tocar uma musica com o riff tradicional de
Uada.
Quando a banda o acompanhou e tocaram de verdade a musica de Uada,
levantei-me e dancei, como se o orgulho fosse mais importante que minha própria
vida naquele momento. Para em seguida se satisfazer, tocando outra musica bem
tradicional de Norga.
A bebida sobre a mesa quando sentei me reconfortou. Éramos o mesmo tipo de
gente, fazendo exatamente a mesma coisa e colocando um estilo comum como se
fosse necessário que nos diferenciássemos. Mas, também conhecia bem a musica
e me agradava.
Um sorriso desafiador foi aquele que esbocei, quando me vi balançando de um
lado para o outro, sentada na cadeira, no ritmo de musica, como se meu corpo
ainda precisasse falar por mim mesma. Era mista, e o que poderia fazer com
relação aquilo?
Sabia que minha presença ali era algum tipo de ofensa. E em vez de me
preocupar com isso, ficava nervosa ao ponto de sorrir. Não me assustaria se me
pegasse tagarela. Devia me chamar Crepúsculo e não Lilah. Lilah era comum
demais, suave demais, e, tudo se resumia em eu ser um troll vivendo em terra de
elfos.
E com isso queria dizer que não importava se tivesse em Uada ou em Norga, a
sensação de não pertencimento seria a mesma. E pertencia ao mesmo tempo a
ambas. Não tinha apenas como deixar de existir no mundo.
O suicídio nunca é uma decisão fácil. Porque tem um instinto que te arrasta
adiante, pensando que talvez fosse mais prazeroso ser niilista em outro lugar.
Mas, por que aquelas musicas ressoavam tanto comigo? Por que elas falavam
com a minha alma?
Eu o posso sentir em cada pequena decisão feita em toda sua vida, ainda que seu
canto fosse um protesto contra minha presença naquele lugar. E seu caos era
encantador, desafiava a si mesmo, ao que fizera até ali. E meus lábios não
mentiam e continuavam sorrindo.
Éramos o pior de nós mesmos que poderíamos encontrar um no outro. E ainda
que nossos pensamentos fossem aparentemente opostos, estávamos fazendo a
exata mesma coisa.

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