Questionar-me o que havia me tornado naquela altura estava fora de cogitação,
minhas mãos trêmulas sustentando um livro, ao qual me agarrara antes de entrar naquela sala, tal fora minha agitação. Não que desconhecesse a maioria daqueles olhos que me fitavam, enquanto passava por eles, pelo grande salão, no qual uma mesa redonda, coberta por uma toalha vermelha, assim como todas as outras espalhadas pelo ambiente, esperava por mim com uma placa com o meu nome e uma flor amarela, num vaso cristalino. Adiante das várias mesas, um palco alto, encoberto por uma imensa cortina vinho brilhante, o pano aparentemente pesado sequer se movia, mas sabia estar pessoas a trabalharem atrás daquelas cortinas. Podia esperar a apresentação de alguma banda. Em meus dias mais escuros, a confusão fizera morada e tudo o que queria era estar sã e salva em Norga, fazendo exatamente o que estava fazendo naquele momento. Mas, não tinha abandonado aquela parte resistente, depressiva demais, para falar. Desejos que precederam a insanidade ou talvez fossem ambos a mesma coisa. A autodestruição ainda roncava seus motores quando os gatilhos eram acionados, não mudaria agora, ainda que estivesse orgulhosa de mim o suficiente. Seria injusta se dissesse que a coragem me faltava, do contrário não estaria no meu próprio julgamento, mas talvez o medo também não me faltasse. Instinto de sobrevivência, falando tão alto quanto todos os instintos que me faltavam. Nossos olhos se encontraram quando as cortinas do palco se abriram e ele começou a se apresentar junto com sua banda. Odiava minha própria alma por apreciar tanto a musica profana, suja e nefasta que compunha. Aquilo não pareceu um olhar, mas nos digladiamos mais uma vez. Meus olhos eram âmbar demais para o azul tão comum ao povo de Norga. O branco de minha pele não era leitoso o suficiente, era claramente um pouco mais escura, embora ainda fosse pálida. Meus cabelos compridos, caiam num tom chocolate, na cintura, com algumas mechas de um vermelho-vivo feito sangue. Até mesmo o gorro vermelho de lã, que vestia para combinar com o casaco, era algo para os manter preocupados e alertas quanto a minha presença. A única coisa que nos unia era que eu era tão Renegada quanto eles. Que nascera sob uma demanda de invocações, de almas antigas que precisavam voltar e trazer algo diferente para o mundo. O problema era que nasci e cresci em Uada, não em Norga. Diante da situação onde o mundo se agitava numa onda marcial, contra o Império que crescia e nos conquistava com o passar dos anos, não tinha que enfrentar tal problema, não deveria, se tivesse fugido para qualquer outro lugar. Norga era minha única rota, não tinha outro lugar para ir, já que meu pai era do país frio ao norte, tinha documentação e propriedades, a herança deixada estava comigo. Tinha o direito como qualquer um deles de estar ali, não que todos pensavam assim, mas estava numa situação delicada. Maki deixou o olhar escorregar sobre mim novamente, como se estivesse sorrindo enquanto a melodia seguia o tradicional riff de Norga, parando de tocar subitamente, para então, começar a tocar uma musica com o riff tradicional de Uada. Quando a banda o acompanhou e tocaram de verdade a musica de Uada, levantei-me e dancei, como se o orgulho fosse mais importante que minha própria vida naquele momento. Para em seguida se satisfazer, tocando outra musica bem tradicional de Norga. A bebida sobre a mesa quando sentei me reconfortou. Éramos o mesmo tipo de gente, fazendo exatamente a mesma coisa e colocando um estilo comum como se fosse necessário que nos diferenciássemos. Mas, também conhecia bem a musica e me agradava. Um sorriso desafiador foi aquele que esbocei, quando me vi balançando de um lado para o outro, sentada na cadeira, no ritmo de musica, como se meu corpo ainda precisasse falar por mim mesma. Era mista, e o que poderia fazer com relação aquilo? Sabia que minha presença ali era algum tipo de ofensa. E em vez de me preocupar com isso, ficava nervosa ao ponto de sorrir. Não me assustaria se me pegasse tagarela. Devia me chamar Crepúsculo e não Lilah. Lilah era comum demais, suave demais, e, tudo se resumia em eu ser um troll vivendo em terra de elfos. E com isso queria dizer que não importava se tivesse em Uada ou em Norga, a sensação de não pertencimento seria a mesma. E pertencia ao mesmo tempo a ambas. Não tinha apenas como deixar de existir no mundo. O suicídio nunca é uma decisão fácil. Porque tem um instinto que te arrasta adiante, pensando que talvez fosse mais prazeroso ser niilista em outro lugar. Mas, por que aquelas musicas ressoavam tanto comigo? Por que elas falavam com a minha alma? Eu o posso sentir em cada pequena decisão feita em toda sua vida, ainda que seu canto fosse um protesto contra minha presença naquele lugar. E seu caos era encantador, desafiava a si mesmo, ao que fizera até ali. E meus lábios não mentiam e continuavam sorrindo. Éramos o pior de nós mesmos que poderíamos encontrar um no outro. E ainda que nossos pensamentos fossem aparentemente opostos, estávamos fazendo a exata mesma coisa.