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Quem nega o atentado

contra Bolsonaro assume


viver uma alucinação
coletiva
cultura.estadao.com.br

No ponto cego ideológico, a maneira mais


confortável de julgar um atentado à
moralidade de nossa tribo é assumir a
negação da realidade. Assim agiram os
que negaram a veracidade do atentado a
Jair Bolsonaro.
Foto: FABIO MOTTA/ESTADÃO

por Rodrigo da Silva

Segundo a Fundação Getúlio Vargas, numa análise de 1.702.949


retuítes coletados entre as 18h30 de quinta-feira, dia 6, e as 9h de
sexta, um dia após o atentado sofrido por Jair Bolsonaro, 40,5% das
pessoas que escreveram sobre o incidente na rede social
questionaram a veracidade do ataque. Foi o maior grupo comentando
sobre o assunto no Twitter nesse intervalo de tempo.

Esse é um nítido experimento sobre o funcionamento do viés de


confirmação nas discussões políticas – e de como ele pode criar uma
ilusão coletiva.

Há dezenas de vídeos do atentado sofrido por Bolsonaro, há uma


confissão de culpa do agressor, relatos médicos, boletins oficiais de
instituições públicas, relatos policiais e testemunhas – mas nenhum
desses elementos é satisfatório para uma parcela de eleitores que não
comungam de seus valores ideológicos. Para esse grupo, toda cena
não passou de uma grande conspiração para eleger Bolsonaro. E
acredite: essas pessoas realmente entendem que representam o lado
mais racional dessa discussão.

Como diz o americano Scott Adams:


“A maioria das pessoas sabe o que é viés de confirmação, senão pelo
nome, certamente por experiência pessoal. Todos sabemos quanto é
difícil mudar a opinião de alguém sobre algo importante, mesmo
quando todos os fatos estão do nosso lado. O que os não persuasores
usualmente não percebem é quão prevalente é o viés de confirmação.
Ele não é um bug ocasional no sistema operacional humano. Ele é o
sistema operacional humano. Somos programados pela evolução para
fazer com que novas informações apoiem opiniões existentes, desde que
isso não nos impeça de procriar. A evolução não liga se você
compreende ou não a realidade. Ela só quer que você se reproduza.
Também quer que você conserve energia para coisas importantes, como
sobreviver. A pior coisa que seu cérebro pode fazer é reinterpretar a
realidade em um filme totalmente novo a cada nova peça de
informação. Isso seria exaustivo e não traria nenhum benefício. Em vez
disso, o seu cérebro escolhe o caminho de menor resistência e
instantaneamente interpreta suas observações para se adequar a sua
visão de mundo. É bem mais fácil.”

Para Adams, é mais provável buscarmos a razão como uma


justificativa para as nossas emoções do que o contrário. E não é difícil
entender o motivo.

Nós nos identificamos como liberais, conservadores ou progressistas


em parte porque tentamos construir uma imagem social, em nossa
busca desenfreada por uma identidade de grupo, seja para repelir a
estética de determinados candidatos ou partidos, seja para sinalizar
virtudes. No fundo, no apagar dos votos, pesa mais a fórmula do
discurso do que os programas de governo.

Alguns indivíduos, é verdade, são honestos o bastante para se inteirar


sobre os assuntos políticos e econômicos e eventualmente mudar de
posição. Mas isso carrega um custo social enorme, a julgar que os
seres humanos têm uma imensa dificuldade em admitir seus erros.

É exatamente nesse ponto que assumimos lutas em nome de um


grupo ou ideal. Terceirizar nossas opiniões políticas, delegando-as a
uma mente coletiva, é a forma mais fácil de abrirmos mão do trabalho
de estudar, compreender e formular uma posição independente – algo
que toma tempo e exige o abandono de atividades (e vícios) que não
estamos dispostos a deixar de lado.
Como afirma a Teoria da Ignorância Racional, formulada ainda na
década de cinquenta pelo economista americano Anthony Downs, as
pessoas frequentemente escolhem permanecer ignorantes sobre
determinados assuntos porque os custos de coletar as informações
necessárias para obter conhecimento sobre eles são maiores que as
recompensas dadas pela compreensão adquirida.

Pare e pense. A política inegavelmente exerce uma influência direta


na vida das pessoas. Se tivéssemos a chance, certamente
escolheríamos que todos os nossos conhecidos nutrissem consciência
disso. Mas tempo é um bem escasso. Acompanhar os processos
políticos de um Estado com tantas atribuições, seguindo as propostas
e o trabalho de novos candidatos, vereadores, deputados estaduais,
deputados federais, senadores, governadores, prefeitos e presidentes
da República, construindo uma base sólida de conhecimentos ligados
a diferentes áreas – da ciência política à econômica– para embasar
críticas ou elogios, e escolher as melhores opções para o país, pode
ser algo perfeitamente plausível para você, que está lendo este texto e
que se importa (e tem tempo para gastar) com o noticiário político,
mas é uma tarefa inviável à imensa maioria dos eleitores, que
entendem intuitivamente que cada voto tem um peso irrisório numa
eleição e que, justamente por isso, sobram razões para gastar as suas
horas em outras atividades. Para esses eleitores há incentivos
maiores em permanecer ignorante em matéria de política do que
abrir mão de exercícios com grandes recompensas diárias, como
descansar com a família, trabalhar ou navegar sem propósito na
internet.

Na prática, nós alimentamos a imagem pública de que nos


importamos com um assunto tão relevante à sociedade, como a
política, mas não queremos o custo que isso gera, nem assumir
sozinhos o risco de estarmos errados. Por isso esperamos a posição de
uma tribo ideológica minimamente solidária com nossa estética
intelectual para nos darmos ao luxo de apenas replicar opiniões.

É aí que impera o viés de confirmação. O que acontece no mundo real


passa a ser mero capricho – e o que poderia ser apenas um problema
de discurso, atua diretamente como um agregador de pobreza: quase
metade da riqueza nacional, entregue às decisões políticas através do
pagamento de impostos, tem seu destino selado à irracionalidade das
guerras de narrativas travadas pelas tribos ideológicas de quatro em
quatro anos. Nosso viés de confirmação torna o país refém das
alucinações.

Acredite, é pior do que você imagina.

No início de 2017, o Washington Post entrevistou 1.388 americanos e


perguntou em qual das duas fotos abaixo havia mais pessoas: a da
posse de Obama (acima) ou a de Trump (logo abaixo).
Confrontados com essas imagens, 15% dos eleitores de Trump
afirmaram que, mesmo após analisa-las, havia mais pessoas na posse
republicana do que na democrata. Eis o que chamamos de dissonância
cognitiva.

Como afirma Adams:

Quando você experimenta dissonância cognitiva, espontaneamente gera


uma alucinação que se torna sua nova realidade. Para observadores
externos, a alucinação pode parecer ridícula. Mas, para aquele que a
experimenta, ela faz todo sentido. Assim, a primeira coisa que você
precisa saber sobre dissonância cognitiva é que é possível reconhecê-la
com frequência nos outros, mas é raro reconhecê-la em si mesmo.

Esse é um fenômeno sem preconceitos partidários, mas que se


acentua no populismo e em períodos de crise econômica e grande
polarização. Ancorados em cherry picking, nós não nos satisfazemos
apenas em ignorar elementos que condenam a moralidade da nossa
tribo – também criamos teorias conspiratórias para imputar
imoralidades imperdoáveis a nossos adversários políticos, em acessos
de esquizofrenia retórica. E fazemos tudo isso genuinamente crentes
de que estamos lidando com o mundo real.

Como escreveu o economista austríaco Friedrich Hayek, vencedor do


Nobel, em sua magnum opus O Caminho da Servidão:

Quase por uma lei da natureza humana, parece ser mais fácil aos
homens concordarem sobre um programa negativo – o ódio a um
inimigo ou a inveja aos que estão em melhor situação – do que sobre
qualquer plano positivo. A antítese ‘nós’ e ‘eles’, a luta comum contra
os que se acham fora do grupo, parece um ingrediente essencial a
qualquer ideologia capaz de unir solidamente um grupo visando à ação
comum. Por essa razão, é sempre utilizada por aqueles que procuram
não só o apoio a um programa político mas também a fidelidade
irrestrita de grandes massas.

Na dissonância cognitiva ideológica, o stress ocorre quando


personagens políticos não correspondem às expectativas de nossos
estereótipos. Se Jair Bolsonaro está catalogado como um instrumento
de violência no conjunto de valores que listamos em nossa tribo, a
alucinação atua para nos impedir de interpretá-lo como uma vítima
sempre que ele for abatido pela violência – especialmente por
membros assumidos de nosso grupo. No ponto cego ideológico, a
maneira mais confortável de julgar um atentado à moralidade de
nossa tribo é assumir a negação da realidade.

Fenômenos dessa natureza são expostos a cada momento nas redes


sociais, mas raramente de modo tão claro e explícito como o
apresentado neste final de semana. Ao fim do dia, quem nega o
atentado contra Bolsonaro assume viver uma alucinação coletiva. E o
pior: provavelmente jamais saberá disso.

Rodrigo da Silva é jornalista e edita o Spotniks. É autor do “Guia


Politicamente Incorreto da Política Brasileira” (LeYa, 2018).

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