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2052-Texto Do Artigo-7884-1-10-20150709
2052-Texto Do Artigo-7884-1-10-20150709
RESUMO
Guilherme Camargo Massaú
Faculdades Atlântico Sul - Pelotas O texto objetiva, sumariamente, expor uma perspectiva da inter-
uassam@gmail.com pretação voluntarista na Teoria Pura do Direito. O ponto de vista
adotado pelo autor insere o aspecto voluntarista na aplicação do
Direito, implementado conjuntamente com a interpretação, ou me-
lhor, neste mesmo intento interpretativo o voluntarismo, estrategi-
camente esquematizado na moldura jurídica hierarquizada, ofere-
ce a possibilidade de o órgão emitir a decisão, eleger, dentre as
inúmeras possibilidades de sentidos oferecidos pela norma, a hi-
pótese mais adequada para aplicação ao caso concreto. Logo, esse
processo retira do âmbito cognitivo a interpretação, como essência
do ato decisório e atribui ao intelectivo-volitivo à aplicação do Di-
reito; não é mais na ciência do Direito que se realiza a aplicação,
mas na esfera da político-jurídica.
ABSTRACT
1. INTRODUÇÃO
jetivista). Não é o intuito do legislador, em sua época circunstancial, que determina o es-
forço cognitivo do intérprete, embora ele possa utilizar-se desse conhecimento para
considerar as várias hipóteses. Tampouco a vontade emanada da lei, como única, pre-
valece na interpretação kelseniana. Claro está que não se ignora uma possível vontade
da lei pois, no fundo, o intérprete se utiliza da semântica e seus signos com vários sen-
tidos para escolher o mais adequado ao caso concreto. No entanto, não fica agrilhoado
pela suposta vontade iminente ou imanente da lei. O voluntarismo aqui ultrapassa a
simples ordem ao juiz (dura lex, sed lex), possibilitando-lhe empregar uma medida de
discricionariedade na escolha da hipótese possível e passível de aplicação. Neste mo-
mento, o intérprete ultrapassa as fronteiras da Ciência do Direito e se ambienta na
senda da político-jurídica.
2. BREVE PERSPECTIVA
1Essa implicação pode ser destacada na seguinte passagem: “Die Sprache ist das Haus des Seins. In Ihrer Behausung
wohnt der Mensch.” (“A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação vive o Homem.” - tradução livre).
2 A palavra hermenêutica advém do grego hermeneúein que significa interpretar; na mitologia grega Hermes era o in-
poder do rei. Além do mais, esses dois direitos dividiam uma espécie de jurisdição, por exemplo: para as coisas que di-
ziam respeito ao mundano, predominava as normas civis, no que tangia o sagrado ou coisas do espírito, o direito ca-
nônico prevalecia. Mas nem tudo era claro na separação entre o espírito e a matéria, por isso, e conforme a época, um
direito se sobrepunha ao outro quando existia conflito de normas (ou interpretação dessas normas).
4 Muito embora a interpretação lógica tenha sido relacionada, seria tautológico pressupor que qualquer interpretação
empregada não pressuponha uma lógica, portanto, crê-se na inerência (principalmente se pensarmos com fundamentos
modernos), em todo o momento, do elemento lógico (ou racional) na interpretação, por se adotar uma classificação de
um livro clássico no ensino jurídico brasileiro. Mas deixa-se aqui essa pequena ressalva.
5 Desde logo cuida-se para não negar a possibilidade do emprego isolado de cada método, tendo em vista a possibili-
7 Como exemplo cito um trecho do prefácio à primeira edição do livro Teoria Pura do Direito: “Há mais de duas décadas
que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os
elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade
específica de seu objeto. Logo desde o começo foi meu intento elevar a Jurisprudência, que - aberta ou veladamente - se
esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do
espírito. Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências
exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus reultados do ideal de
toda a ciência: objetividade e exatidão.” (KELSEN, 1998, p. XI e LARENZ, 1997, p. 92).
A Teoria Pura do Direito é considerada pelo autor como uma teoria puramente cientí-
fica do Direito Positivo8. Por isso, não é uma teoria, especificamente, da interpretação
de determinadas normas mas, com base numa teoria geral do Direito, oferece esque-
mas teóricos de interpretação, pois foi conduzida a pensar no viés interpretativo, até
mesmo devido ao seu querer elevar o Direito à uma autêntica ciência (LLANO
ALONSO, 2006, p. 414). A proposta está em não se preocupar com o conteúdo, mas
somente com a lógica do sistema e a forma das normas, ou seja, a intenção se encontra
em retirar todos aqueles elementos que não são peculiares à ciência do Direito. Opera-
se, assim, a confusão entre as observações jurídica e sociológica (LARENZ, 1997, p. 95).
Por encontrar essa formatação do Direito, o autor admite que não exista conteúdo do
comportamento humano que não possa ser conteúdo de uma norma jurídica
(LARENZ, 1997, p. 97).
8 Kelsen esforçou-se para criar uma ciência do direito que, no final de tudo se concentrasse nas mãos de técnicos, pes-
soas capazes de lidar com o funcionamento do sistema e dos esquemas altamente específicos, auto-referentes, isolado
das outras áreas do conhecimento humano, assim Ortega y Gasset ao comentar a arte velazqueña diz o seguinte: “Este ar-
te de Juan Palomo, esta pintura para pintores no es demasiado extraña en un tiempo como el nuestro que tiene también
una física para los físicos, hermética para los demás mortales, un derecho para los juristas (Kelsen), una política para
los políticos (revolucionarios profesionales), pero no se sabe cómo y en qué sentido pudo darse hacia 1640.” (Apud,
LLANO ALONSO, 2006, p. 412).
9 Kelsen se apóia nesta sólida base distintiva kantiana entre o ser e o dever-ser. (LLANO ALONSO, 2006, p. 425-426). A-
lém disso, cabe ressaltar mais uma influência kantiana de Kelsen; a virada kantiana para o formalismo (liberal) do Direito
se refere a ele em seu conteúdo, emprestando-lhe significação jurídica, com isso viabi-
lizando a interpretação conforme a norma. Por conseguinte, a juridicidade do fato (ou
ato) só terá sentido com o resultado específico da interpretação normativa, a norma
norteará a classificação do acontecimento no mundo-da-vida como jurídico (ou antijurídi-
co), implicando enunciar que, se um conteúdo de um acontecer fático coincidir com o
conteúdo normativo, considerado como válido, terá relevância ao mundo-jurídico
(KELSEN, 1998, p. 4-5)10.
A partir deste ponto passa-se à aplicação do Direito, por óbvio que, para tal,
faz-se necessário fixar o sentido da norma, ou seja, realizar a interpretação, já num ple-
no processo de aplicação do Direito. A determinação do conteúdo jurídico a ser aplica-
do não se reduz a escolher, aleatoriamente, uma norma, mas o intérprete deve vislum-
brar o sistema jurídico como um todo e “progredir do escalão superior ao inferior”
(KELSEN, 1998, p. 387 e PERELMAN, 1998, p. 91-92) até o momento de, contextualiza-
do numa coerência sistemática e unitária, determinar a(s) norma(s) a serem aplicadas
ao caso concreto. Nisto decorre a indeterminação da aplicação do Direito, no condizente
à relação entre os escalões - por exemplo: entre a Constituição e lei ou lei e sentença ju-
dicial (KELSEN, 1998, p. 388) - superior e inferior, o primeiro regula o segundo, porém
não regula por completo; a norma superior não pode criar vinculações em todos os se-
tores. Ocorre assim que a inferior terá espaços de “liberdade” e o intérprete, ao vis-
lumbrar isso como uma moldura a ser preenchida pelo ato discricionário, decidirá co-
mo executar (cumprir) as determinações superiores. A indeterminação pode referir-se,
intencionalmente ou não, à pressuposição do fato e às conseqüências por ele geradas
(KELSEN, 1998, p. 388-390 e BONAVIDES, 2006, p. 449). Infere-se daí uma espécie de
indeterminação intencional, quando a norma superior deixa intencionalmente espaço
discricionário para regulamentação e aplicação de uma norma inferior. Por outro lado,
a indeterminação não-intencional advém de certos fatores que, por si sós, geram uma
indeterminação “não prevista ou própria das circunstâncias” (como exemplo: a abran-
gência significativa que uma palavra pode adquirir sem a prévia noção do legislador).
como uma conjunção dos arbítrios (de uma lei geral da liberdade) favorecedor da convivência com o outro. (KANT,
1945, p. 33-35).
10 “A teoria pura do Direito apreende, pois, o conteúdo jurídico do sentido de um certo evento - que, como tal, é um
fragmento da natureza, portanto, determinado por leis causais -, ao subsumi-lo a uma norma jurídica que retira a sua
validade de ter sido «produzida» de acordo com outra norma situada acima daquela.” (LARENZ, 1997, p. 95) (grifo do
autor).
significa dizer que é, dentro das hipóteses existentes, a única possível conforme o Di-
reito (KELSEN, 1998, p. 390-391). Kelsen destaca que o labor interpretativo também se
estende aos indivíduos (igualmente intérpretes) que necessitam compreender a lei para
observá-la, evitando a sanção, assim como a ciência jurídica cuida de interpretar a
norma e descrever o direito positivo; conseqüentemente, o autor divide a interpretação
em duas espécies: a interpretação efetuada pelo órgão que aplica o Direito e a não rea-
lizada por esse órgão e, sim, por outros agentes (pessoa privada e pelos cientistas do
direito) (KELSEN, 1998, p. 387-388).
prete, entre seus possíveis significados, deve eleger um. Por conseqüência, a interpre-
tação acaba sendo guiada mais pelo ato de vontade do que por um ato de intelecção,
inteligência (BONAVIDES, 2006, p. 448), jungido por princípios, bom senso, critérios
político-jurídicos, logo, meta-positivos […] (BARROSO, 2006, p. 309-310). Nesta visão,
Kelsen reconhece que o juiz não é um mero aplicador da lei, um ser autômato, na me-
dida que ele realiza a tarefa de escolha de uma dentre as diversas interpretações possí-
veis (PERELMAN, 1998, p. 93). O autor, também, foge da compreensão do pensamento
do século XVIII, em que a lei era considerada a expressão da vontade do povo e o juiz
era a razão lógica e puramente dedutiva (PERELMAN, 1998, p. 93).
advindas, coerentemente, do topo até a base do sistema e que a vontade foi aplicada
justamente em consonância com o todo sistemático (LARENZ, 1997, p. 105-106), além
de ter influências meta-jurídicas.
11 “[…] e esta função não é realizada pela vida da interpretação do Direito vigente.” (KELSEN, 1998, p. 395).
5. CONCLUSÃO
O esquema interpretativo da Teoria Pura do Direito assume uma posição ímpar em su-
as perspectivas teórico-práticas; revela uma posição de neutralidade da teoria ao trans-
ferir os aspectos ideológicos para a senda da política jurídica (voltada ao aspecto decisi-
onista) e as significações retiradas da norma pairam sobre a ciência do Direito. A partir
desse momento, então a decisão nasce do conhecimento dos inúmeros sentidos postos
à face do decisor, ele terá a incumbência de escolher voluntariamente dentre as hipóte-
ses a que ele entende por mais adequada para aplicação ao caso concreto; claro que não
se nega a influência de elementos meta-jurídicos na decisão do juiz. Ao realizar essa a-
tividade, também, o decisor (p.ex. o juiz) estará a instituir Direito que será expresso na
norma individual, já na base da pirâmide hierárquica.
REFERÊNCIAS
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KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins
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MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Sistema de ciência positiva do direito. Tomo II.
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