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SÍNODO DOS BISPOS

A JUSTIÇA NO MUNDO

RESCRITO
DA AUDIÊNCIA CONCEDIDA PELO SANTO PADRE
 AO CARDEAL SECRETARIO DE ESTADO
EM 30 DE NOVEMBRO DE 1971

O Santo Padre submeteu a um exame atento os dois documentos em que se acham contidos
os votos expressos pela segunda Assembléia Geral do Sínodo dos Bispos, sobre os temas: «
O Sacerdócio Ministerial » e « A Justiça no Mundo », que haviam sido sujeitados ao estudo
da mesma Assembléia.

Conforme já foi anunciado no Discurso por Ele proferido na Audiência Geral do dia 24 de
Novembro de 1971, o Santo Padre dispôs que os mencionados documentos sejam tornados
públicos.

Desde já Sua Santidade aceita e confirma todas as conclusões que nos dois documentos estão
conformes com as normas vigentes: confirma, de modo particular, que, na Igreja Latina, se
continue a observar integralmente, com o auxílio divino, a atual disciplina do celibato
sacerdotal.

O Santo Padre reserva-se o examinar, em seguida, com a maior atenção, se e quais de entre
as propostas, contidas nos votos da Assembléia Sinodal, convirá serem ratificadas em linhas
directivas ou normas práticas.

JOÃO, CARDEAL VILLOT


Secretário de Estado

A JUSTIÇA NO MUNDO

INTRODUÇÃO

Reunidos de todas as partes do mundo, em comunhão com todos os que crêem em Cristo e
com a inteira família humana, e de coração aberto ao Espírito que renova todas as coisas,
interrogámos-nos a nós mesmos sobre a missão do Povo de Deus na promoção da justiça no
mundo.

Ao prescrutarmos os « sinais dos tempos » e ao procurarmos descobrir o sentido do curso da


história, e compartilhando ao mesmo tempo as aspirações e as interrogações de todos os
homens desejosos de construirem um mundo mais humano, queremos escutar , a Palavra de
Deus, para nos convertermos para a actuação do plano divino acerca da salvação do mundo.

Se bem que não seja da nossa competência o fazer uma análise muito profunda da situação
do mundo, pudemos no entanto dar-nos conta das graves injustiças que envolvem a terra dos
homens com uma rede de dominações, de opressões e de abusos que sufocam a liberdade e
impedem à maior parte do género humano a participação no edificar e no desfrutar de um
mundo mais equitativo e mais fraterno.

Percebemos ao mesmo tempo um movimento íntimo que impulsiona o mundo do interior.


Verificam-se, realmente, alguns factos que constituem uma contribuição para promover a
justiça. Nasce nos grupos humanos e nos próprios povos uma consciência nova que os
sacode contra a resignação ao fatalismo e os impele a procurar a sua libertação e a assumir a
responsabilidade do seu destino. Descortinam-se movimentos humanos que reflectem uma
esperança num mundo melhor e uma vontade de mudar tudo aquilo que não se pode tolerar
por mais tempo.

Ao ouvirmos a clamor daqueles que sofrem a violência e se vêem oprimidos pelos sistemas e
mecanismos injustos, bem como a interpelação de um mundo que, com a sua perversidade,
contradiz os desígnios do Criador, chegámos à unanimidade de consciência sobre a vocação
da Igreja para estar presente no coração do mundo, a pregar a Boa-Nova aos pobres, a
libertação aos oprimidos e a alegria aos aflitos. A esperança e o impulso que animam
profundamente o mundo não são alheios ao dinamismo do Evangelho, que, pela virtude do
Espírito Santo, liberta os homens do pecado pessoal e das consequências do mesmo na vida
social.

A incerteza da história e as convergências que a muito custo vão surgindo no caminhar


ascendente da comunidade humana fazem-nos pensar na História Sagrada, em que Deus se
nos revelou a si mesmo, dando-nos a conhecer os seus desígnios de libertação e de salvação,
no seu realizar-se progressivo, e que se cumpriram de uma vez para sempre na Páscoa de
Cristo. A acção pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos
claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, que o mesmo é
dizer, da missão da Igreja, em prol da redenção e da libertação do género humano de todas as
situações opressivas.

I
A JUSTIÇA E A SOCIEDADE MUNDIAL

CRISE DE SOLIDARIEDADE UNIVERSAL

O mundo, no qual a Igreja vive e opera, encontra-se ilaqueado por um temível paradoxo. As
forças que trabalham pelo advento da sociedade mundial unificada, nunca até hoje se haviam
apresentado tão poderosas e tão dinâmicas; elas radicam-se na consciência da plena
igualdade fundamental e da dignidade humana de todos os homens. Estes, por isso mesmo
que são membros da uma só família humana, estão indissoluvelmente vinculados entre si,
num destino comum do mundo todo, na responsabilidade do qual comungam.

As últimas possibilidades tecnológicas acham-se bem estribadas na unidade da ciência, na


globalidade e simultaneidade das comunicações e no nascimento de um certo universo
económico absolutamente interdependente. Por outro lado, os homens começam a captar
uma certa dimensão nova e mais radical da unidade, porque se dão conta de que os recursos
— como os preciosíssimos tesouros do ar e da água, de que a vida não pode prescindir, bem
como a limitada e frágil « biosfera » de todo o conjunto dos seres que vivem sobre a terra —
não são infinitos; mas, pelo contrário, devem ser conservados e protegidos como um
património comum de toda a humanidade.

O paradoxo acha-se nisto: dentro destas perspectivas de unidade, as forças de divisão e os


antagonismos parecem aumentar hoje o seu vigor. As antigas divisões entre nações e
impérios, entre raças e classes, possuem agora instrumentos técnicos novos de destruição; a
corrida veloz aos armamentos ameaça o maior de todos os bens do homem, que é a vida;
torna os povos e os homens pobres, mais miseráveis, enriquecendo, por outro lado, os que já
são poderosos; gera continuamente o perigo de uma conflagração e, se se trata de armas
nucleares, ameaça mesmo destruir totalmente a vida da face da terra. Ao mesmo tempo,
nascem novas divisões para separar o homem do seu próximo. O influxo da nova
organização industrial e tecnológica, se não for combatido e superado por adequada acção
social e política, favorece a concentração das riquezas, do poder e da capacidade de decidir
num pequeno grupo de directores, seja ele público, seja privado. A injustiça económica e a
falta de participação social impedem o homem de desfrutar dos direitos fundamentais
humanos e civis.

A esperança que se difundiu entre o género humano nestes últimos 25 anos — ou seja, de
que o crescimento económico teria trazido consigo uma tão grande abundância de bens que
permitiria aos pobres o alimentarem-se com as migalhas caídas da mesa — resultou vã nas
regiões pouco evoluídas e entre aqueles que se acham reduzidos à pobreza nas regiões mais
ricas; e isto, por causa do incremento rápido das populações e do aumento da mão de obra;
por causa da estagnação rural e da carência de reformas agrárias; por causa, ainda, do
movimento migratório generalizado para os centros urbanos, nos quais todavia as indústrias,
se bem que dotadas de fortes capitais, oferecem postos de trabalho em número reduzido, de
tal sorte que um quarto dos trabalhadores, não raro, fica inactivo.

Estas sufocantes opressões produzem continuamente massas de « marginais », de


subalimentados, de habitantes num mundo desumano e de analfabetos, privados de poder
político e das convenientes disposições para um mínimo de responsabilidade e dignidade
moral.

Além disto, a procura de capitais e de energias, feitas pelas nações mais ricas — capitalistas
ou socialistas — (e deve dizer-se o mesmo do efeito da poluição provocada pelo consumo
dos mesmos capitais e energias na atmosfera e no mar) — é tal, que os elementos essenciais
para a vida terrestre, como são o ar e a água, seriam irreparàvelmente destruídos, se o alto
nível de consumo e de contaminação, em contínuo aumento, se estendesse a toda a
humanidade.

O forte impulso para a unidade mundial e uma distribuição desigual, que põe cerca de três
quartos dos rendimentos e dos investimentos de capitais e do comércio nas mãos de um terço
apenas da humanidade, ou seja, daquela que goza de um progresso maior; e, por outro lado, o
próprio fracassar do progresso e a nova percepção dos limites materiais da biosfera, fazem-
nos tomar consciência de que no mundo actual estão a nascer modos novos de conceber a
dignidade humana.

DIREITO AO DESENVOLVIMENTO

Perante os sistemas internacionais de domínio, a realização da justiça depende cada vez mais
da vontade de promoção.

Nas nações « em vias de desenvolvimento » e no chamado mundo socialista, a vontade de


promoção afirma-se, em primeiro lugar, na luta por algumas formas de reivindicação e de
expressão, que a evolução do próprio sistema económico gera.

Esta aspiração pela justiça consolida-se ainda, quando se supera o limiar onde começa a
consciência de « valer mais e ser mais » (Enc. Populorum Progressio, n. 15: AAS LIX
[1967], p. 265), quer pelo que se refere ao homem todo, quer pelo que se refere à totalidade
dos homens: e a mesma exprime-se na consciência do direito ao desenvolvimento. Este
direito ao desenvolvimento deve ser visto na interpretação dinâmica de todos aqueles direitos
humanos fundamentais, em que se baseiam as aspirações dos indivíduos e das nações.

Este desejo, todavia, não pode satisfazer as exigências do nosso tempo, senão na medida em
que tiver em conta os obstáculos que as estruturas sociais opõem à conversão dos corações e
também à realização do ideal da caridade. Ele exige, por outro lado, que seja superada a
condição geral de « marginação » social, que desapareçam as barreiras e os círculos viciosos,
transformados em sistema, que se opõem à ascensão colectiva para o desfrutar da adequada
remuneração dos factores de produção, fortalecendo a condição de desigualdade no acesso
aos bens e aos serviços colectivos, devido à qual uma boa parte dos habitantes é deles
excluída. Se as nações e as regiões que se encontram em « vias de desenvolvimento » não
chegarem à libertação mediante o desenvolvimento, subsiste o perigo de que as condições de
vida criadas principalmente pela dominação colonial, se venham a transformar numa nova
forma de colonialismo, em que as mesmas nações que estão em « vias de desenvolvimento »
serão vítimas do jogo das forças económicas da sociedade internacional. Tal direito ao
desenvolvimento é, antes de mais nada, um direito à esperança, em conformidade com a
dimensão concreta do actual género humano. Para corresponder a esta esperança, o conceito
de evolução deve ser purificado daqueles mitos e falsas convicções, cultivados ainda hoje por
uma certa estrutura mental, que se acha ilaqueada por um conceito determinista e automático
de « progresso ».

Com o tomar nas próprias mãos as rédeas do seu futuro, mediante a vontade de promoção, os
« povos em vias de desenvolvimento » — ainda que não cheguem à meta desejada —
manifestam com isso, autênticamente, uma personalidade peculiar. E, para fazer face às
relações de desigualdade no hodierno complexo mundial, um certo nacionalismo responsável
dar-lhes-á o impulso necessário, a fim de poderem alcançar a sua identidade própria. Desta
autodeterminação fundamental podem brotar tentativas de integração dos novas complexos
políticos, que permitam aos mesmos povos o atingirem o pleno desenvolvimento e o
tomarem as medidas necessárias para vencer a inércia que poderia tornar vãos tais esforços
— como em alguns casos a explosão demográfica — e afrontar mesmo novos sacrifícios,
exigidos pelo incremento da planificação, por parte daquela geração que quer construir o seu
futuro.

Por outro lado, é impossível conceber uma verdadeira promoção, sem reconhecer a
necessidade — no seio mesmo das opções políticas feitas — de um desenvolvimento que
resulte ao mesmo tempo do incremento económico e da participação; e, também, a
necessidade do incremento das riquezas, que implica o progresso social de toda a
comunidade, superando os desequilíbrios regionais e as ilhas de prosperidade. A mesma
participação constitui um direito que deve ser aplicado tanto no campo económico, como no
campo social e político.

Ao reafirmarmos, ainda uma vez, o direito dos povos a conservarem a própria identidade,
vemos cada dia de modo mais claro que ficará absolutamente estéril a luta contra aquela
modernização que tira a índole característica às nações, se se invocarem apenas as tradições
históricas sagradas e os veneráveis modos de viver. Se, porém, se aceita a modernização com
o intuito de ela servir ao bem da nação, os homens saberão criar uma cultura que constituirá
uma herança, no sentido próprio e verdadeiro do termo, à maneira de memória social, que é
activa e capaz de plasmar uma personalidade criadora no concerto das nações.

INJUSTIÇAS SEM VOZ

Apercebemo-nos de que existe no mundo uma série de injustiças que constituem o núcleo
dos problemas do nosso tempo e cuja solução exige canseiras e responsabilidades a todos os
níveis da sociedade, incluindo naqueles que se relacionam com a sociedade mundial, para a
qual nos encaminhamos, neste último quartel do século XX. Impõe-se-nos, portanto, o
estarmos preparados para assumir essas novas tarefas e novos encargos, em todos os sectores
da actividade humana, mas de modo particular no âmbito da sociedade mundial, se de facto
queremos traduzir na prática a justiça. A nossa acção deve ter coma objectivo, em primeiro
lugar, aqueles homens e nações que, devido a formas diversas de opressão e por força da
índole própria da sociedade actual, são vítimas silenciosas da injustiça e, mais ainda, vítimas
da injustiça sem voz.

Assim, por exemplo, temos o caso dos emigrantes, os quais não raro são obrigados a
abandonar a própria pátria, para procurar trabalho, e na cara dos quais, muitas vezes, se
fecham as portas, por razões de descriminação; ou então, que, quando lhes é franqueada a
entrada, se vêem obrigados, com muita frequência, a levar uma vida insegura, ou tratados de
modo desumano. O mesmo se diga pelo que se refere aos grupos menos favorecidos pela
sorte na promoção social, como são os operários e os trabalhadores do campo, os quais
representam aliás a maior parte no processo de evolução. É para deplorar, de modo especial,
a situação de tantos milhares e milhares de homens que vivem exilados, ou a de qualquer
grupo ou povo que padece perseguição — às vezes de forma institucionalizada — por causa
da sua origem racial ou étnica, ou por razões tribais. Esta perseguição por razões tribais pode
algumas vezes chegar a assumir as características de genocídio.

Em muitas regiões a justiça é gravìssimamente lesada também, em relação àqueles que


padecem perseguição por causa da fé, ou que são submetidos à acção, sem tréguas e de
muitas maneiras, que intenta levá-los progressivamente ao ateísmo, movida pelos partidos
políticos ou pelos poderes públicos, ou então que são privados da liberdade religiosa; e isto,
quer impedindo-os de honrar a Deus com o culto público, quer proibindo-os de ensinar e de
propagar publicamente a fé, quer, ainda, não lhes permitindo o exercitar as suas actividades
temporais em conformidade com os princípios da própria religião.

A justiça é violada também por formas de opressão antigas e novas, que derivam da restrição
dos direitos individuais, tanto nas repressões exercidas pelo poder político, como na
violência actuada pelas reacções privadas, que vão até ao limite extremo de não respeitarem
as condições elementares da integridade pessoal. São por demais conhecidos os casos de
tortura, especialmente contra os prisioneiros políticos, aos quais aliás se nega, muitas vezes,
um processo normal, ou que se vêem submetidos a arbitrariedades no julgamento. Não se
devem esquecer ainda aqueles prisioneiros de guerra, os quais, mesmo após as Convenções
de Genebra, são tratados de modo desumano.

A contestação contra o aborto legal e contra a imposição de meios anticoncepcionais, bem


como as pressões contra a guerra, são formas bem significativas da reivindicação do direito à
vida.

Além disto, a consciência do nosso tempo exige a verdade nos sistemas de comunicação
social, o que inclui também o direito à imagem difundida pelos mesmos meios e a
possibilidade de se corrigir a sua manipulação.

Deve por-se em realce também que o direito, sobretudo das crianças e dos jovens, à
educação, às condições de vida e aos meios de comunicação moralmente sãos, em nossos
dias se acha, mais uma vez, ameaçado.

A acção da família na vida social, raramente e nem sempre em grau suficiente, é reconhecida
pelas instituições estatais.

Não se deve esquecer, enfim, o número sempre crescente de pessoas que frequentemente são
abandonadas pela família e pela sociedade: os velhinhos, os órfãos, os doentes e toda a classe
dos « marginais ».

A NECESSIDADE DE DIÁLOGO

Para se obter aquela unidade autêntica de esforços, que é exigida pela sociedade humana
mundial, é necessária a função das chamadas « mediações », para superar cada vez mais as
controvérsias, os obstáculos e os privilégios inveterados, que se encontram no processo para
uma sociedade mais humana.

A mediação efectiva, no entanto, acarreta consigo a criação de uma atmosfera de diálogo, em


cuja realização progressiva, possam encontrar-se os homens, sem coacções dos
condicionalismos geopolíticos, ideológicos, sócio-económicos e das diferenças que
costumam verificar-se entre as gerações diferentes. Para restituir à vida um sentido, mediante
a adesão aos valores autênticos, a participação e o testemunho dos jovens que sobem, são tão
necessários como a comunicação entre os povos.

II
O ANÚNCIO DO EVANGELHO
E A MISSÃO DA IGREJA

Perante esta situação do mundo hodierno, marcado pelo grande pecado da injustiça, sentimos
a nossa responsabilidade nela, ao mesmo tempo que experimentamos a nossa impotência
para a superar, com as nossas forças. Tal situação leva-nos a colocar-nos, com coração
humilde e sincero, à escuta da Palavra de Deus, que nos mostra novos caminhos para a acção
em prol da justiça no mundo.

A JUSTIÇA SALVÍFICA DE DEUS ATRAVÉS DE CRISTO

No Antigo Testamento Deus revela-se-nos a Si mesmo como o libertador dos oprimidos e o


defensor dos pobres, que exige dos homens a fé n'Ele e a justiça para com o próximo.
Sòmente na observância dos deveres da justiça se reconhece Deus, verdadeiramente, como o
libertador dos oprimidos.

Mediante a sua obra e a sua doutrina, Cristo uniu, de modo inseparável, as relações do
homem com Deus e com os outros homens. Com efeito, Cristo viveu a sua existência como
uma doação total de Si mesmo a Deus, pela salvação e libertação dos homens. Com a sua
pregação proclamou a paternidade de Deus para com todos os homens e o intervento da
justiça do mesmo Deus em favor dos pobres e dos oprimidos (Lc. 6, 21-23). De tal modo
Cristo se fez solidário com os seus irmãos « mais pequeninos », que Ele mesmo disse: «
Tudo o que fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes » (Mt. 25,
40).

Desde as suas origens a Igreja compreendeu e viveu o evento da Morte e da Ressurreição de


Cristo como um chamamento de Deus à conversão à fé de Cristo e ao amor fraterno,
realizado no auxílio mútuo levado até ao compartilhar voluntário dos bens materiais.

A fé em Cristo, Filho de Deus e Redentor, e o amor do próximo constituem tema


fundamental dos escritos de Novo Testamento. Segundo S. Paulo, a vida cristã resume-se
toda na fé que realiza aquele amor e aquele serviço do próximo que implica a observância
dos direitos da justiça. O cristão vive sob a lei da liberdade interior, isto é, num chamamento
permanente à conversão do coração, da autosuficiência humana para a confiança em Deus e
do seu egoísmo para o amor sincero do próximo. Assim se realiza a sua autêntica libertação e
o dom de si mesmo pela libertação dos homens.

Segundo a mensagem cristã, por conseguinte, a atitude do homem para com os outros
homens é integrada na sua própria atitude para com Deus; a sua resposta ao amor de Deus,
que nos salva através de Cristo, demonstra-se eficaz no amor e no serviço dos homens. No
entanto, o amor cristão do próximo e a justiça não podem separar-se. O amor implica, de
facto, uma absoluta exigência da justiça, que consiste no reconhecimento da dignidade e dos
direitos do próximo. A justiça, por sua vez, alcança a sua plenitude interior sòmente no amor.
Por isso mesmo que cada homem é, realmente, imagem visível de Deus invisível e irmão de
Cristo, o cristão encontra o mesmo Deus e a sua exigência absoluta de justiça e de amor em
cada um dos homens.

A situação actual do mundo, vista à luz da fé, faz-nos um apelo no sentido de um retorno ao
núcleo mesmo da mensagem cristã, que cria em nós a consciência profunda do seu
verdadeiro sentido e das suas urgentes exigências. A missão de pregar o Evangelho requer,
nos tempos que correm, que nos comprometamos, em ordem à libertação integral do homem,
já desde agora na sua existência terrena. Se, efectivamente, a mensagem cristã sobre o amor e
a justiça não mostra a sua eficácia na acção pela justiça no mundo, muito dificilmente ela
será aceitável para os homens do nosso tempo.

A MISSÃO DA IGREJA,
DA HIERARQUIA E DOS CRISTÃOS

A Igreja recebeu de Cristo a missão de pregar a mensagem evangélica, que comporta a


vocação do homem para se converter do pecado para o amor do Pai, e a fraternidade
universal e, por consequência, a exigência da justiça no mundo. Esta é a razão por que a
Igreja tem o direito e mesmo o dever de proclamar a justiça no campo social, nacional e
internacional, bem como de denunciar as situações de injustiça, sempre que os direitos
fundamentais do homem e a sua própria salvação o exijam. A Igreja não é a única
responsável pela justiça no mundo; cabe-lhe, no entanto, uma responsabilidade própria e
específica, que se identifica com a sua missão de testemunhar diante do mundo a exigência
de amor e de justiça contida na mensagem evangélica; testemunho que deve, contudo,
verificar-se nas instituições eclesiais e na vida dos cristãos.

À Igreja, enquanto comunidade religiosa e hierárquica, de per si não compete oferecer as


soluções concretas no campo social, económico, e político, para a justiça no mundo. A sua
missão, porém, implica a defesa e a promoção da dignidade e dos direitos fundamentais da
pessoa humana.

Os membros da Igreja, enquanto membros da sociedade civil, têm o direito e o dever de


procurar o bem comum, coma os demais cidadãos. Os cristãos devem desempenhar as suas
tarefas temporais com fidelidade e com competência; devem operar como fermento do
mundo na vida familiar, profissional, social, cultural e política. Incumbe-lhes assumirem a
própria responsabilidade em todos estes campos, sob a direcção do espírito evangélico e da
doutrina da Igreja. Deste modo, dão testemunho da potência do Espírito Santo, mediante a
sua acção para serviço dos homens, em tudo aquilo em que pode estar em jogo, de alguma
maneira, a existência e o futuro da humanidade. E, ao desenvolverem aquelas actividades,
agem geralmente por sua própria iniciativa, sem envolverem na sua decisão a
responsabilidade da Hierarquia eclesiástica; de algum modo implicam, porém, a
responsabilidade da Igreja, dado que são seus membros.

III
A REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA

O TESTEMUNHO DA IGREJA

Muitos cristãos são induzidos a dar autênticos « testemunhos » de justiça, mediante diversas
maneiras de actuar em favor da mesma justiça, inspiradas pela caridade em conformidade
com a graça que receberam de Deus. Para alguns deles essa actuação verifica-se no âmbito
das lutas sociais e políticas, em que os cristãos dão testemunho do Evangelho, demonstrando
que na história há fontes de progresso distintas da luta, como sejam, o amor e o direito. Esta
prioridade do amor, na história, leva outros cristãos a preferirem o caminho da acção não-
violenta e a actuação na opinião pública.

Se a Igreja deve dar um testemunho de justiça, ela reconhece que, seja quem for, que deseje
falar aos homens de justiça, deve ele próprio ser justo aos olhos dos mesmos homens.
Convém, portanto, que nós mesmos façamos um exame sobre os modos de agir, sobre as
possessões e o estilo de vida que se verificam dentro da Igreja.

Hão-de ser respeitados os direitos no interior da Igreja. Assim, pelo facto de alguém se
associar à Igreja, deste ou daquele modo, nem por isso deve ser privado dos direitos comuns.
Aqueles que servem a Igreja com o seu trabalho — sem excluir os presbíteros e os religiosos
— devem receber os meios suficientes para a própria subsistência e desfrutar daquelas
garantias sociais que sejam usuais em cada região. Aos leigos deve ser atribuído um salário
equitativo e um sistema de poderem ser promovidos, dentro da respectiva categoria.
Renovamos aqui o voto de que os leigos exerçam funções mais importantes pelo que se
refere aos bens temporais da Igreja e que participem na gestão dos mesmos.

Insistimos igualmente para que as mulheres, tenham a sua parte própria de responsabilidade e
de participação na vida comunitária da sociedade e também da Igreja.

Propomos que este tema seja objecto de um estudo profundo, com os meios adequados, por
exemplo, com o auxílio de uma comissão mista de homens e de mulheres, de religiosos e
leigos, de diversas condições e com diferentes competências.

A Igreja reconhece a todos o direito a uma conveniente liberdade de expressão e de


pensamento, o qual supõe também o direito a que cada um seja ouvido, em espírito diálogo,
que garante uma legítima diversidade na Igreja.

Os processos judiciais dêem ao acusado o direito de conhecer os seus acusadores, bem como
o direito a uma defesa conveniente. A justiça, para ser completa, deve incluir rapidez nos
processos. E isto é exigido, especialmente, nas causas matrimoniais.

Os membros da Igreja, finalmente, tenham alguma participação no preparar as decisões,


segundo as normas dadas pelo II Concílio Ecuménico do Vaticano e pela Santa Sé, por
exemplo, no que diz respeito à constituição dos Conselhos, a todos os níveis.

Relativamente aos bens temporais, qualquer que seja o uso dos mesmos, nunca se deve
chegar ao ponto de originar que se torne ambíguo o testemunho evangélico, que a Igreja está
obrigada a dar. A conservação de algumas condições de privilégio tem de ser constantemente
submetida ao critério ditado por este princípio. E, se bem que em geral se torne difícil
determinar as delimitações entre o que é necessário para o uso recto e aquilo que é exigido
pelo testemunho profético, sem dúvida este princípio deve ser mantido com firmeza: a nossa
fé impõe-nos uma certa parcimónia no uso das coisas materiais, e a Igreja está obrigada a
viver e a administrar os próprios bens de tal maneira, que o Evangelho seja anunciado aos
pobres. Se, pelo contrário, a Igreja aparece com um dos ricos e poderosos deste mundo, a sua
credibilidade fica diminuída.

O nosso exame de consciência estende-se ao estilo de vida de todos: dos Bispos, dos
presbíteros, dos religiosos e religiosas e dos leigos. Impõe-se perguntar se, entre as
populações pobres, o pertencer à Igreja não será um meio de acesso a uma ilha de bem-estar,
num contexto de pobreza. Nos sociedades de mais alto nível de consumo, deve perguntar-se,
também, se o próprio estilo de vida serve de exemplo daquela parcimónia no consumo que
nós pregamos aos outros, como necessária para serem alimentados tantos milhares e milhares
de famintos que existem pelo mundo.
A EDUCAÇÃO PARA A JUSTIÇA

A vida quotidiana do cristão, à maneira de fermento evangélico que actua na família, na


escola, no ambiente de trabalho e na vida social e civil, é a contribuição específica que os
cristãos dão para a justiça; ao que se juntam ainda as perspectivas e o significado que eles
podem dar também aos esforços humanos. Por isso mesmo, o método educativo, para a
justiça, deve ser tal que ensine aos homens a levarem uma vida que atenda à realidade global
da mesma e seja pautada segundo os princípios evangélicos da moral pessoal e social, que
desabroche num testemunho cristão vital.

São manifestos, de facto, os obstáculos ao progresso que nós desejamos para nós mesmos e
para os homens. O método educativo, ainda vigente muitas vezes em nossos dias, fomenta
um individualismo fechado. Uma parte da família humana vive como que submergida numa
mentalidade que exalta a possessão. As escolas e os meios de comunicação social,
condicionados não raro pela ordem estabelecida, apenas permitem formar um tipo de homem
que essa ordem deseja, isto é, um homem à sua imagem; e não o homem novo, mas uma
reprodução desse tipo de homem, tal qual.

Uma tal educação exige, porém, o renovamento do coração, fundado no reconhecimento do


pecado nas suas manifestações individuais e sociais. Esse renovamento inculcará também um
modo verdadeira e totalmente humano de viver, na justiça, na caridade e na simplicidade. De
igual modo, suscitará a faculdade crítica, que leva à reflexão sabre a sociedade em que
vivemos e sobre os seus valores, tornando os homens disponíveis para abandonarem tais
valores, sempre que eles deixam de favorecer a justiça para todos os seus semelhantes. O
objectivo principal desta educação para a justiça, nos « países em vias de desenvolvimento »,
consiste no esforço em despertar a consciência, para que saiba reconhecer a situação
concreta, e no convite para alcançar uma melhoria total, no que já se inicia uma
transformação do mundo.

Este tipo de educação, dado que torna todos mais integralmente humanos, ajudará os homens
para o futuro, a fim de não permanecerem objecto de manipulações, nem por parte dos meios
de comunicação social, nem por parte das forças políticas; ao contrário, fará com que eles se
tornem capazes de conduzir os próprios destinos e de construir comunidades
verdadeiramente humanas.

Esta educação, por conseguinte, com razão é chamada permanente; quer dizer: abrange todos
os homens e todas as idades. Além disto, tal educação é também prática, porque é feita pela
acção e pela participação, bem como pelo contacto vital com as mesmas situações de
injustiça.

A educação para a justiça faz-se, em primeiro lugar, no seio da família. Sabemos bem que
nisto colaboram, não só as instituições da Igreja, mas também outras escolas, os sindicatos e
os partidos políticos.

O conteúdo de tal educação engloba, necessariamente, o respeito pela pessoa e pela sua
dignidade. E porque aqui estamos a tratar da justiça no mundo, importa afirmar-se, antes de
mais nada, decididamente, a unidade da família humana, na qual, por disposição divina, o
homem nasce. Sinal desta solidariedade para os cristãos será o facto de que todos os homens
estão destinados a participar na natureza divina, em Cristo.

Os princípios fundamentais, em virtude dos quais o influxo do Evangelho se tem feito sentir
na vida social contemporânea, acham-se naquele conjunto sistemático de doutrina que tem
vindo a ser exposta, gradual e oportunamente, a partir da Encíclica Rerum Novarum, até à
recente Carta Octogesima Adveniens. Pela Constituição Gaudium et Spes do II Concílio do
Vaticano, a Igreja, como nunca até agora, demonstrou saber qual é o seu lugar no mundo
actual, onde o cristão, ao trabalhar pela justiça realiza a sua própria vocação. A Encíclica
Pacem in Terris ofereceu-nos a verdadeira charta magna dos direitos do homem. Na
Encíclica Mater et Magistra começa a ocupar um lugar preeminente a justiça internacional; a
qual, depois, na Encíclica Populorum Progressio, é expressa mais acuradamente, em forma
de verdadeiro tratado do direito ao desenvolvimento; e na referida Carta Octogesima
Adveniens apresenta-se já como um conjunto de linhas de orientação, pelo que diz respeito à
actividade política.

Como o Apóstolo, exortamos oportuna e importunamente, para que a Palavra de Deus esteja
presente no coração das situações humanas. As nossas intervenções pretendem ser a
expressão daquela fé que compromete as nossas vidas e as dos fiéis cristãos. Está nos votos
de cada um de nós que tais intervenções estejam sempre em conformidade com as
circunstâncias dos lugares e dos tempos. A nossa missão exige-nos que denunciemos as
injustiças com ânimo resoluto, ao mesmo tempo que com caridade, prudência e firmeza, num
diálogo sincero com todas as partes interessadas. Estamos conscientes de que essas nossas
denúncias em tanto poderão obter assentimento, em quanto elas forem a expressão da nossa
vida e se manifestem numa continuidade de acção.

A Liturgia, como coração da vida da Igreja à qual nós presidimos, pode ajudar muito na
educação para a justiça. Ela é, com efeito, uma acção de graças ao Pai, em Cristo, que nos
coloca diante dos olhos, pela sua forma comunitária, os vínculos da fraternidade e nos
recorda incessantemente a missão da Igreja. A Liturgia da Palavra, a catequese e a celebração
dos Sacramentos têm, realmente, o condão de nos fazer encontrar a doutrina dos Profetas, do
Senhor e dos Apóstolos, sobre a justiça. A preparação para o Baptismo é o começo da
formação da consciência cristã. A prática da Penitência há-de tornar patente a dimensão
social do pecado e do sacramento. A Eucaristia, finalmente, constitui a comunidade e põe-na
ao serviço dos homens.

A COLABORAÇÃO ENTRE AS IGREJAS LOCAIS

A Igreja, para ser verdadeiramente aquele sinal de solidariedade por que anela a família das
nações, deve manifestar na sua própria vida uma maior cooperação entre as Igrejas das
regiões mais ricas e as das regiões mais pobres, na comunhão espiritual e na repartição dos
recursos humanos e materiais. As generosas disposições de ajuda recíproca, que se verificam
presentemente, poderiam resultar mais eficazes, mediante uma coordenação efectiva
(Sagrada Congregação para a Evangelização dos Povos e Conselho Pontíficio « Cor Unum
»), mediante uma visão comunitária na administração dos dons de Deus e, enfim, mediante
uma solidariedade fraterna, a qual favoreça sempre e autonomia e a responsabilidade dos
beneficiários, pelo que se refere à determinação dos critérios e à escolha e à realização de
decisões concretas.

Uma tal planificação não deve limitar-se simplesmente aos objectivos de carácter
económico; mas, pelo contrário, deve estimular também as iniciativas que possam vir a
promover aquela formação humana e espiritual, que proporcione o fermento necessário, para
o desenvolvimento integral do homem.

A COLABORAÇÃO ECUMÉNICA

Perfeitamente conscientes daquilo que já se fez, neste campo, em sintonia com o II Concílio
Ecuménico do Vaticano, recomendamos vivamente a cooperação com os irmãos cristãos,
separados de nós, no sentido de promover a justiça no mundo, de fomentar o
desenvolvimento dos povos e de instaurar a paz. Esta cooperação diz respeito, antes de mais
nada, às iniciativas quem visem a tutela da dignidade do homem e dos seus direitos
fundamentais, principalmente o direito à liberdade religiosa; consequentemente, uma acção
comum contra as descriminações, por diferenças de religião, de raça, de cor, de cultura, etc.
A colaboração estende-se também ao estudo da doutrina do Evangelho, enquanto ela abarca
toda a actividade cristã. Procurem, pois, o Secretariado para a União dos Cristãos e a
Comissão Pontíficia « Justitia et Pax », de comum acordo, promover eficazmente esta
colaboração ecuménica.

Animados pelo mesmo espírito, recomendamos igualmente a colaboração com todos aqueles
que crêem em Deus, no fomentar a justiça social, a paz e a liberdade; mais, ainda: a
colaboração também com aqueles que, muito embora não reconhecendo o Autor do mundo,
têm no devido apreço os valores humanos e procuram, sinceramente e com meios honestos, a
justiça.

A ACÇÃO INTERNACIONAL

Dado que este Sínodo têm carácter universal, trata daqueles problemas da justiça que,
directamente, afectam toda a família humana. Por isso mesmo, ao reconhecermos a
importância da cooperação internacional, para o desenvolvimento sócio-económico,
queremos louvar, antes de mais nada, a inestimável obra realizada junto das populações mais
necessitadas pelas Igrejas locais, pelos missionários e pelas organizações que os ajudam;
outrossim queremos apoiar aquelas iniciativas e instituições que operam em favor da paz, da
justiça internacional e do desenvolvimento humano. Exortamos, portanto, os católicos a
tomarem em consideração atenta as seguintes proposições :

1. Reconheça-se que a ordem internacional está radicada nos direitos e na dignidade


inamissíveis do homem. A Declaração dos Direitos do Homem, feita pelas Nações Unidas,
seja ratificada por aqueles governos que ainda não deram a sua adesão a esta convenção, e
seja observada integralmente por todos.

2. As Nações Unidas — que, por motivo da sua finalidade, hão-de promover a participação
de todas as nações — bem como as demais Organizações Internacionais, sejam apoiadas, por
isso mesmo que constituem um primeiro passo de um sistema capaz de entravar a corrida aos
armamentos, de dissuadir do comércio das armas, de levar a depô-las, e de solucionar os
conflitos por meios pacíficos — de acções legais, de arbitragem e de policiamento
internacional. É absolutamente necessário que os conflitos entre nações não sejam resolvidos
com a guerra; mas sim, que se encontrem outras vias, mais em conformidade com a natureza
humana. Favoreça-se, além disso, a estratégia da não-violência e reconheça-se e regule-se
com leis a objecção de consciência.

3. Sejam apoiados os objectivos do Segundo Plano Decenal para o Desenvolvimento — entre


os quais, salientamos: a transferência de uma percentagem, determinada em base ao
rendimento anual, das nações mais ricas para as « nações em vias de desenvolvimento »;
preços mais equitativos para as matérias primas; a abertura dos mercados das nações mais
ricas, e, nalguns sectores, uma atitude preferencial em favor da exportação dos produtos
manufacturados dos « países em vias de desenvolvimento ». E isto, porque se trata dos
primeiros esboços de uma cotização progressiva e de uma perspectiva económica e social,
em favor do mundo inteiro. Não podemos deixar de deplorar o que sucede, todas as vezes
que as nações mais ricas se fecham a esta finalidade ideal de repartição e de responsabilidade
mundial. E esperamos que nenhuma de semelhantes debilitações da solidariedade
internacional tire o vigor às discussões sobre as transacções comerciais que a Conferência
das Nações Unidas para o Comércio e para o Desenvolvimento (UNCTAD) está a preparar.

4. A concentração do poder, que consiste no domínio económico quase completo da


investigação, dos investimentos de capitais, dos transportes marítimos e dos seguros, deve
ser equilibrada progressivamente, mediante disposições institucionais que reforcem a
autoridade e as possibilidades, em ordem a uma decisão responsável por parte das « nações
em vias de desenvolvimento » e em ordem à participação plena e igual nas organizações
internacionais que se ocupam do desenvolvimento. A sua recente exclusão, de facto, das
discussões sobre o comércio mundial e, de igual modo, as disposições monetárias que
incidem vitalmente nos seus destinos, constituem um exemplo de falta de poder, que não
pode ser admitida numa ordem mundial justa e responsável.

5. Embora reconheçamos que os organismos internacionais são susceptíveis de aperfeiçoar-


se e reforçar-se, como qualquer outro instrumento humano, sublinhamos a importância
também dos orgãos especializados das Nações Unidas, em particular, daqueles que intervêm
directamente nos problemas imediatos e mais bicudos da pobreza mundial, no campo da
reforma agrária e do desenvolvimento da agricultura, da saúde, da educação, dos postos de
trabalho, da habitação e da explosiva problemática do fenómeno da urbanização. Parece-nos
que se deve assinalar, de modo especial, a necessidade de um « fundo » que financie a busca
de alimentos e proteínas suficientes, para um desenvolvimento mental e físico real das
crianças. Perante o fenómeno da explosão demográfica, repetimos as palavras com que o
Santo Padre Paulo VI definiu as funções dos poderes públicos, na Encíclica Populorum
Progressio: « É certo que os poderes públicos, dentro dos limites da sua competência, podem
intervir, promovendo uma informação apropriada e tomando medidas aptas, contanto que
sejam conformes às exigências da lei moral e respeitem a justa liberdade dos cônjuges » (n.
37: AAS 59, 1967, p. 276).

6. Os governos continuem a predispor, nas próprias contribuições particulares, um fundo a


favor do desenvolvimento; procurem, no entanto, simultâneamente, encontrar a maneira de a
maior parte dos seus esforços se dirigir por caminhos diversos para o fim indicado, no pleno
respeito pela responsabilidade das « nações em vias de desenvolvimento », as quais aliás
devem ser associadas nas decisões sobre as prioridades e os investimentos de capitais.

7. Parece-nos que deve ser acentuada também uma preocupação mundial nova, acerca da
qual se irá tratar pela primeira vez, numa Conferência sobre o ambiente humano, que se
realizará em Estocolmo, no mês de Junho de 1972. Não se vê por que razão as nações mais
ricas podem alimentar a pretensão de aumentar as próprias reivindicações materiais, quando
a consequência que disso deriva para as outras é a de ficarem na miséria, a que pode vir
juntar-se o perigo de destruição dos próprios fundamentos da vida física no mundo. Aqueles
que já são ricos estão obrigados a adoptar um estilo de vida menos materialista, menos
dissipadora, para evitar a destruição de um património que eles, por força de dever absoluto
de justiça, estão obrigados a compartilhar com todos os demais membros do género humano.

8. Para poder ser traduzido na prática o direito ao desenvolvimento, é preciso que:

a) não se impeça aos povos o atingirem o desenvolvimento em conformidade com os seus


traços culturais próprios:

b) através de uma cooperação mútua, possam todos os povos tornar-se os principais artífices
do próprio desenvolvimento económico e social;

c) todo e qualquer povo, como membro activo e responsável da sociedade humana, possa
cooperar na consecução do bem comum, com os mesmos direitos que todos os demais povos.

OS DESIDERATOS DO SÍNODO

O exame de consciência que procurámos fazer todos, juntamente, e que se refere às


implicações que reveste a acção da Igreja em prol da justiça no mundo, ficará sem efeitos
práticos, se as conclusões do mesmo não forem incarnadas na vida das nossas Igrejas locais,
a todos os níveis. Assim, pedimos encarecidamente às Conferências Episcopais para
continuarem a debruçar-se sobre as perspectivas que examinámos durante estes dias de
reunião e para porem em prática o que nos permitimos recomendar, como por exemplo, a
constituição de centros de investigação social e teológica.

Pedimos, ainda, que seja solicitado à Comissão Pontíficia « Justitia et Pax », em colaboração
com o Conselho da Secretaria do Sínodo e com as demais autoridades competentes, o
elaborar uma apresentação, uma apreciação e um estudo mais aprofundado dos votos e dos
desideratos desta nossa reunião, a fim de poder ser levado a bom termo o trabalho que nós
começámos.

IV
UMA PALAVRA DE ESPERANÇA

O poder do Espírito, que ressuscitou Cristo dos mortos, opera continuamente no mundo. O
Povo de Deus está presente, sobretudo através dos filhos generosos da Igreja, no meio dos
pobres e daqueles que sofrem opressão ou perseguição, vivendo na própria carne e no
próprio coração a Paixão de Cristo e dando testemunho da sua Ressurreição.

A criação inteiro, com efeito, geme e sofre, em conjunto, as dores do parto até ao presente e
atende ansiosamente a revelação dos filhos de Deus (cf. Rom. 8, 22). Estejam certos,
portanto, os cristãos, de que hão-de encontrar um dia os frutos da própria natureza e do
próprio esforço, purificados de todas as manchas, naquela « terra nova » que Deus desde já
prepara para eles, e na qual haverá finalmente um Reino de justiça e de amor: esse Reino
atingirá a sua plenitude quando tornar o próprio Senhor.
A esperança do Reino futuro mostra insofrimento por habitar nos espíritos humanos. A
transformação radical do mundo, na Páscoa do Senhor, confere a plenitude de significado aos
esforços humanos, e especialmente dos jovens, no sentido de minorar a injustiça, a violência
e o ódio, e de se verificar um progresso de todos e simultâneamente, na justiça, na liberdade,
na fraternidade e no amor.

Quando a Igreja proclama o Evangelho do Senhor, Redentor e Salvador, ao mesmo tempo


chama os homens todos, especialmente os pobres, os oprimidos e os aflitos, a tornarem-se
cooperadores de Deus no libertar do pecado e no construir um mundo, que, semente quando
for obra do homem para o homem, chegará à plenitude da criação.

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