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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

ANDRÉIA SANCHEZ MORONI

PORTUGUÊS COMO LÍNGUA DE


HERANÇA NA CATALUNHA:
REPRESENTAÇÕES SOBRE IDENTIFICAÇÃO,
PROFICIÊNCIA E AFETIVIDADE

CAMPINAS
2017
ANDRÉIA SANCHEZ MORONI

PORTUGUÊS COMO LÍNGUA DE


HERANÇA NA CATALUNHA:
REPRESENTAÇÕES SOBRE
IDENTIFICAÇÃO, PROFICIÊNCIA E AFETIVIDADE

Tese realizada em regime de cotutela com a


Universidade de Barcelona (Universitat de
Barcelona, UB), apresentada ao Instituto de
Estudos da Linguagem da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), e orientada pela Profa.
Dra. Terezinha de Jesus Machado Maher
(Unicamp) e pelo Prof. Dr. Emili Boix Fuster (UB),
como requisito parcial para a obtenção do título de
Doutora em Linguística Aplicada na área de
concentração Linguagem e Sociedade pelo Instituto
de Estudos da Linguagem da Universidade
Estadual de Campinas e Doutora em Filologia
Catalã pela Universidade de Barcelona.

Orientadores: Profa. Dra. Terezinha de Jesus Machado Maher


(Universidade Estadual de Campinas)
Prof. Dr. Emili Boix Fuster (Universidade de Barcelona)

Este exemplar corresponde à redação final da tese defendida e aprovada


em 30/06/2017 na Sala de Defesa de Teses do Instituto de Estudos de
Linguagem da Universidade Estadual de Campinas.

CAMPINAS,
2017
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CAPES, BEX 4567-14-5; CNPq,
141414/2013-8
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-0422-5931

Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas Biblioteca
do Instituto de Estudos da Linguagem
Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624

Moroni, Andréia Sanchez, 1981-


M829p Português como língua de herança na Catalunha : representações
sobre identificação, proficiência e afetividade / Andréia Sanchez Moroni. –
Campinas, SP : [s.n.], 2017.

Orientadores: Terezinha de Jesus Machado Maher e Emili Boix Fuster.


Coorientador: Emili Boix Fuster.
Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Estudos da Linguagem.
Em cotutela com: Universidade de Barcelona. Departamento de Filologia
Catalã.

1. Associação de Pais de Brasileirinhos na Catalunha. 2. Língua


portuguesa - Países estrangeiros. 3. Falantes de língua de herança. 4. Política
linguística. 5. Família e educação. 6. Sociolinguística. 7. Catalunha (Espanha).
I. Maher, Terezinha Machado,1950-. II. Boix i Fuster, Emili,1956-. III.
Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. IV.
Universidade de Barcelona. V Titulo.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Portuguese as a heritage language in Catalonia : representations


on identification, proficiency and affectivity
Palavras-chave em inglês:
Associação de Pais de Brasileirinhos na Catalunha
Portuguese language - Foreign countries
Heritage language speakers
Language policy
Family and education
Sociolinguistics
Catalonia (Spain)
Área de concentração: Linguagem e Sociedade
Titulação: Doutora em Linguística Aplicada
Banca examinadora:
Terezinha de Jesus Machado Maher [Orientador]
Marilda do Couto Cavalcanti
Maria Célia Pereira Lima-Hernandes
Nelson Viana
Ana Beatriz Barbosa de Souza
Data de defesa: 30-06-2017
Programa de Pós-Graduação: Linguística Aplicada
BANCA EXAMINADORA

Terezinha de Jesus Machado Maher

Ana Beatriz Barbosa de Souza

Maria Célia Pereira Lima Hernandes

Marilda do Couto Cavalcanti

Nelson Viana

IEL/UNICAMP
2017

Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros


encontra-se no SIGA – Sistema de Gestão Acadêmica.
Para Mateo e Sofia,
meus brasileirinhos.
AGRADECIMENTOS

Tenho muitas pessoas a quem agradecer por terem contribuído, de


diferentes maneiras, para que a realização desta tese se tornasse possível.
Certamente, esta lista está incompleta e peço desculpas por alguma omissão não
intencional.
À Teca Maher, minha orientadora, pelo apoio constante e por ter
acreditado no potencial de pesquisar um tema emergente, e ao Emili Boix, que se
somou à aventura um pouco depois como coorientador e me apresentou ao CUSC.
À minha mãe, Artemis Moroni, pela inspiração nos caminhos acadêmicos
interdisciplinares e na vida; por ser a melhor avó que meus filhos poderiam ter.
Ao Ívan Moroni, meu pai, pelo apoio constante e inquestionável a minhas
escolhas.
Ao Juan Pablo Villalobos, por tudo: parceria, amor, paciência e apoio
incondicionais.
Aos sócios, ex-sócios e colaboradores da APBC, especialmente a
Edilaine Aguiar, Laise Leão e Juliana Azevedo Gomes, e a todos que
generosamente compartilharam suas histórias de vida comigo para esta pesquisa.
À Cássia Bittens e aos membros da banca do exame de qualificação, Ana
Souza e Kátia Mota, pelas valiosas sugestões de bibliografia.
À melhor rede de apoio de todos os continentes, sem a qual eu não
chegaria até aqui: Anna Ly, Cristina Bartolomé, Esther Cortés, Fernanda Aranha,
Francesca Gaidolfi, Ian Moroni, Ilka Moroni, Iraneide Calixto, Javier Canino, Juan
Antonio Távara, Ligita Canaes, Lili Carou, Maricarmen Chirinos, Marielle Kellermann,
Mousie Carou, Nacho Morillo, Rodrigo Sanchez, Thaís Magalhães e meus avós,
Walder e José Sanchez.
Aos colegas de caminhada na pós-graduação: Alan Carneiro, Amara
Moira, Andreza Nora, Luanda Soares Sito, Thaís Ribeiro Bueno, na Unicamp, e
Francesca Walls, Nico Vaiarello, Makiko Fukuda, na UB. Obrigada pelas
oportunidades de aprendizagem e questionamentos de natureza variada.
Aos amigos e profissionais do texto que gentilmente ajudaram a melhorar
a qualidade final da tese: Flora Bueno, Juliana Albuquerque, Marcio Coelho, Max
Pàrraga e Neyse Lima.
RESUMO

Nesta tese pretendo descrever uma pesquisa cujo objetivo foi conhecer e interpretar
as representações de um grupo de adultos vinculados à Associação de Pais de
Brasileirinhos na Catalunha (APBC) sobre as políticas linguísticas familiares e
institucionais relativas ao Português como Língua de Herança (PLH) nesse contexto.
Para tanto, fez-se uso de subsídios advindos da Linguística Aplicada brasileira e da
Sociolinguística catalã, áreas de estudo interdisciplinares. O PLH, isto é, o português
usado por brasileiros emigrados quando ainda crianças ou jovens, ou por filhos de
brasileiros nascidos fora do Brasil, se caracteriza por derivar de deslocamento
geográfico e por ser língua minoritária em contato com a(s) língua(s) majoritária(s)
da sociedade de acolhida. Seu aprendizado é intermitente e costuma se dar no
interior da família, de modo informal e, em geral, pouco sistematizado. Os
procedimentos metodológicos utilizados na investigação incluíram (i) questionários
aplicados a um grupo de pais e professoras da instituição; (ii) entrevistas
semiestruturadas, gravadas em áudio, com esses participantes da pesquisa; (iii)
gravação de discussão ocorrida em um grupo focal com alguns desses sujeitos e (iv)
observação participante de algumas das atividades desenvolvidas na APBC. Exceto
pelos questionários, esse conjunto de dados foi analisado de uma perspectiva
qualitativa. O aparato teórico utilizado como suporte para a análise desse corpus
incluiu, dentre outras, reflexões sobre afetividade e multilinguismo (PAVLENKO,
2005), repertórios linguísticos (BUSCH, 2012), práticas translíngues (GARCIA, 2009;
CANAGARAJAH, 2013) e políticas linguísticas (SPOLSKY, 2012; 2004). O corpus
analisado sugere – ou corrobora achados já apontados em estudos anteriores – que
(1) os níveis de fluência em PLH considerados nesse tipo de contexto tendem a ser
bastante heterogêneos: eles compreendem desde entender um pouco do que é dito
na língua a usá-la com desenvoltura em registros cultos; (2) o perfil do que se
considera “usuário de língua de herança” se relaciona não apenas com o
conhecimento da língua, mas, também, com o sentimento de
identificação/pertencimento à cultura e nacionalidade do grupo que a usa; (3) a
questão da afetividade emerge e determina muitas das relações construídas entre
usuários de PLH. Observou-se ainda que a especificidade da sociedade de acolhida
pode ser um fator determinante no modo como as ideologias linguísticas das
famílias operam nesses contextos. Neste caso específico, em que o catalão opera
como língua cooficial da Catalunha, ao lado do espanhol, parece haver uma
tendência das famílias a valorizar o bi/plurilinguismo de seus filhos e o PLH é parte
do que faz com que as crianças sejam identificadas como plurilíngues. Os dados
analisados também parecem evidenciar que o papel dos progenitores não brasileiros
do estudo tende a ser decisivo no processo de transmissão de PLH, mesmo quando
eles não são fluentes em português. Por último, importa ressaltar que, em diversos
momentos, as representações de falantes de PLH analisadas se aproximam mais
dos paradigmas do que seria o cidadão global plurilíngue (JAFFE, 2012) do que
daqueles que remetem ao cidadão nacional monolíngue, algo que nem sempre é
percebido pelos progenitores participantes da pesquisa em pauta.

Palavras-chave: Linguística Aplicada; Sociolinguística; Catalunha; Língua de


Herança; Políticas Linguísticas Familiares; Português como Língua de Herança;
Associação de Pais de Brasileirinhos na Catalunha.
ABSTRACT

In this thesis I intend to describe a research whose objective was to know and
interpret the representations of a group of adults associated to the Associação de
Pais de Brasileirinhos na Catalunha (APBC) on the language policies, both familiar
and institutional, related to Portuguese as Heritage Language (PHL) in this context.
For this, subsidies were used from the Brazilian Applied Linguistics and Catalan
Sociolinguistics, interdisciplinary fields of study. PHL, that is, Portuguese language
used by Brazilian emigrated in their childhood or adolescence, or by children of
Brazilian parents born outside Brazil, is characterized for being a consequence of a
geographical displacement, and by the fact that it is a minority language in contact
with the majority language(s) of the host society. The learning of this language is
intermittent and generally takes place inside the family, informally, and, in general,
with little systematization. The methodological procedures used in the investigation
included (i) questionnaires applied to a group of parents and teachers of the
institution; (ii) semi-structured interviews, recorded in audio, with the research
participants; (iii) recording of the discussion held in through focus group procedure
with some of these individuals and (iv) participant observation in some activities
conducted at APBC. Except for the questionnaires, this set of data was analyzed
from a qualitative perspective. The theoretical apparatus used as a support for the
analysis of this corpus included reflections, among others, on affectivity and
multilingualism (PAVLENKO, 2005), linguistic repertoires (BUSCH, 2012),
translanguaging practices (GARCIA, 2009; CANAGARAJAH, 2013) and language
policies (SPOLSKY, 2012; 2004). The corpus analyzed suggests – or corroborates
findings mentioned in previous studies – that (1) the levels of fluency in PLH
considered in this type of context tend to be quite heterogeneous: they go from
understanding a little what is said in the language to using it proficiently in formal
registers; (2) the profile of what is considered a “heritage language user” is related
not only to the knowledge of the language itself, but also with the feeling of
identification/belonging to the culture and nationality of the group using the language;
(3) the question of affectivity emerges and determines many of the relationships built
among users of PLH. It was also observed that the specificity of the host society may
be a determining factor in the way the linguistic ideologies of the families operate in
these contexts: in this specific case, in which Catalan operates as a co-official
language of Catalonia, besides Spanish, there seems to be a tendency for families to
value bi/plurilingualism of their children, and PLH comes in as part of what makes
these children be identified as plurilingual. The data analysis also seem to suggest
that the role of non-Brazilian parents in the study tend to be decisive in the process of
transmission of PLH, even when they are not fluent in Portuguese. Lastly, it is
important to highlight that in several moments the representations of PLH speakers
analyzed are closer to the paradigms of the plurilingual global citizen (JAFFE, 2012)
than to those referring to the monolingual national citizen, an aspect that is not
always perceived by the parents participating in this research.

Key words: Applied Linguistics; Sociolinguistics; Catalonia; Heritage Language;


Family Language Policies; Family Language Planning; Portuguese as a Heritage
Language; Community Schools; Associação de Pais de Brasileirinhos na Catalunha
RESUM

En questa tesi pretenc descriure una recerca l’objectiu de la qual ha estat conèixer i
interpretar les representacions d’un grup d’adults vinculats a l’Associação de Pais de
Brasileirinhos na Catalunha (APBC) pel que fa a les seves polítiques lingüístiques
familiars i institucionals relatives al Portuguès com a Llengua Heretada (PLH). Per
tant, s’ha fet ús de les aportacions de la Lingüística Aplicada brasilera i de la
Sociolingüística catalana, àrees d’estudi interdisciplinàries. El PLH, això és, el
portuguès fet servir per brasilers emigrats quan encara eren infants o joves, o per
fills de brasilers nascuts fora del Brasil, es caracteritza per derivar del desplaçament
geogràfic i per ser una llengua minoritària en contacte amb les llengües majoritàries
de la societat d’acollida. El seu aprenentatge és intermitent i acostuma a
desenvolupar-se en el si de la família de manera informal i, en general, poc
sistematitzada. Els procediments metodològics emprats en la investigació han inclòs
(i) qüestionaris aplicats a un grup de pares i professores de la institució; (ii)
entrevistes semiestructurades, gravades en àudio, amb els participants de la
recerca; (iii) gravació de la discussió duta a terme en un grup focal i (iv) l’observació
activa d’algunes de les activitats desenvolupades a l’APBC. Exceptuant-ne els
qüestionaris, aquest conjunt de dades ha estat analitzat des d’una perspectiva
qualitativa. L’aparell teòric emprat com a suport per a l’anàlisi d’aquest corpus inclou,
entre d’altres, reflexions sobre afectivitat i multilingüisme (PAVLENKO, 2005),
repertoris lingüístics (BUSCH, 2012), pràctiques translingüístiques (GARCIA, 2009;
CANAGARAJAH, 2013) i polítiques lingüístiques (SPOLSKY, 2012; 2004). El corpus
analitzat suggereix – o corrobora troballes ja apuntades en estudis anteriors – que
(1) els nivells de fluïdesa en PLH considerats en aquesta mena de context tendeixen
a ser prou heterogenis: comprenen des d’entendre una mica el que es diu en la
llengua fins a fer-la servir amb desimboltura en registres cultes; (2) el perfil del que
es considera “usuari de llengua heretada” es relaciona no només amb un
coneixement de la llengua, sinó que també es lliga amb el sentiment
d’identificació/pertinença a la cultura i nacionalitat del grup que l’empra; (3) la qüestió
de l’afectivitat emergeix i determina moltes de les relacions construïdes entre usuaris
de PLH. S’ha observat que l’especificitat de la societat d’acollida pot ser un factor
determinant en la manera com les ideologies lingüístiques de les famílies operen en
aquests contextos. En el nostre cas específic, en què el català és llengua cooficial de
Catalunya, al costat del castellà, sembla haver-hi una tendència de les famílies a
valorar el bi/plurilingüisme dels seus fills, i el PLH formaria part del repertori lingüístic
que aconsegueix que els infants siguin identificats com a plurilingües. Les dades
analitzades també semblen palesar que el paper dels progenitors no brasilers de
l’estudi tendeix a ser decisiu en el procés de transmissió del PLH, encara que
aquests no tinguin un nivell fluid de portuguès. En darrer lloc, cal ressaltar que, en
diversos moments, les representacions de parlants de PLH analitzades s’aproximen
més als paradigmes del que seria un ciutadà global plurilingüe (JAFFE, 2012) que no
pas a aquells que remeten al ciutadà nacional monolingüe, cosa que no sempre és
percebuda pels progenitors que han participat en la recerca.

Paraules clau: Lingüística Aplicada; Sociolingüística; Catalunya; Llengües d’origen;


Llengües Heretades; Polítiques Lingüístiques Familiars; Portuguès com a Llengua
Heretada; Associação de Pais de Brasileirinhos na Catalunha.
LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – PERCENTUAL DE IMIGRANTES INTERNACIONAIS SEGUNDO O PAÍS DE


RESIDÊNCIA (BRASIL, 2011, P. 59) 79
FIGURA 2 – O LUGAR DO PLH NAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA OS BRASILEIROS DA
DIÁSPORA (MORONI, 2015) 82
FIGURA 3 – PRODUÇÃO DE TEXTO DE DANIEL, 9 ANOS, EM UMA DAS AULAS DA APBC 100
FIGURA 4 – DESENVOLVIMENTO TÍPICO DA LÍNGUA INICIAL (L1) E LÍNGUA
ESTRANGEIRA (L2) (APÓS A PUBERDADE) EM UM CONTEXTO DE L
ÍNGUA MAJORITÁRIA (MONTRUL, 2012, P. 6) 105
FIGURA 5 – DESENVOLVIMENTO TÍPICO DE UMA LH, SEM APOIO ACADÊMICO, NUM
CONTEXTO DE LÍNGUA MAJORITÁRIA (MONTRUL, 2012, P. 7) 105
FIGURA 6 – POSSIBILIDADES DO IMPACTO DO TRABALHO DAS INICIATIVAS DE
PROMOÇÃO E MANUTENÇÃO DO PLH NA LH. ADAPTADO DE MONTRUL (2012, P. 7) 106
FIGURA 7 – APROXIMAÇÕES ENTRE FALANTES DE PLH X FALANTES DE PLM E
FALANTES DE PLH X FALANTES PLE. ADAPTADO DE MORONI E GOMES (2014, P. 25) 107
FIGURA 8 – MAPA DIALETAL DO CATALÃO (DIVERSICAT, 2015) 116
FIGURA 9 – UNIVERSO DISCURSIVO DO SUJEITO BILÍNGUE (MAHER, 2007, P. 77) 134
FIGURA 10 – FAIXA COM OS DIZERES “REFUGEES WELCOME. BARCELONA CIUTAT
REFUGI” NA PREFEITURA DE BARCELONA, ABRIL/2016. FOTO DA AUTORA 138
FIGURA 11 – TAXAS DE EMIGRAÇÃO INTERNACIONAL POR NACIONALIDADES COM A
CATALUNHA COMO PONTO DE ORIGEM, 2008-2012 (DOMINGO, 2014, P. 51) 141
FIGURA 12 – PROPOSTA EDUCATIVO-CULTURAL DA APBC (MORONI
E GOMES, 2015, P. 30) 149
FIGURA 13 – ORIGEM DOS PROGENITORES DA APBC 156
FIGURA 14 – IDADE DAS CRIANÇAS NA APLICAÇÃO DO QUESTIONÁRIO 160
FIGURA 15 – LÍNGUA INICIAL DOS PROGENITORES DA APBC PARTICIPANTES
DA PESQUISA 162
FIGURA 16 – COMPETÊNCIAS LINGUÍSTICAS HETEROGÊNEAS EM PORTUGUÊS
DE ALGUNS MEMBROS DA COMUNIDADE DE FALA DA APBC 252
LISTA DE TABELAS

TABELA 1 – CONJUNTO DE DADOS DA PESQUISA 30


TABELA 2 – AVANÇO DO MOVIMENTO PELO PLH 96
TABELA 3 – PESSOAS QUE SABEM CATALÃO, POR TERRITÓRIO E HABILIDADE, EM
MILHARES E PORCENTAGENS (ADAPTADO DE VILA I MORENO E SOROLLA E VIDAL
(2013, P. 186)) 126
TABELA 4 – MÉDIA GLOBAL DE USO DO CATALÃO A PARTIR DE VILA I MORENO E
SOROLLA VIDAL (2013) E CATALUNHA (2015A) 129
TABELA 5 – PERFIL DOS COLETIVOS MAIS NUMEROSOS EM BARCELONA EM JANEIRO
DE 2011 (BARCELONA, 2011) 140
TABELA 7 – INTERAÇÕES LINGUÍSTICAS DAS CRIANÇAS DA APBC 164
TABELA 8 – ESQUEMA DA ORGANIZAÇÃO TEMÁTICA DAS REPRESENTAÇÕES DA APBC
SOBRE POLÍTICAS LINGUÍSTICAS PARA PORTUGUÊS COMO LÍNGUA DE HERANÇA 170
TABELA 9 – REPRESENTAÇÕES DAS PRÁTICAS REALIZADAS PELAS FAMÍLIAS DA APBC
PARA PROMOVER A TRANSMISSÃO DO PLH DENTRO DE CASA 197
TABELA 10 – REPRESENTAÇÕES DAS PRÁTICAS REALIZADAS PELAS FAMÍLIAS DA APBC
PARA PROMOVER A TRANSMISSÃO DO PLH COM APOIO DA APBC 217
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABCD Association for Brazilian Bilingual Children Development


[Associação para o Desenvolvimento de Crianças Brasileiras
Bilíngues] (Forestville, Austrália)
ABEC Associação Brasileira de Educação e Cultura (Zurique, Suíça)
ABRACE Associação Brasileira de Cultura e Educação (Virginia, EUA)
ABRIR Associação Brasileira de Iniciativas Educacionais no Reino Unido
APBC Associação de Pais de Brasileirinhos na Catalunha
APEC Associação de Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na
Catalunha
Artel Oficina Arte-Educação e Letramento (Osaka, Japão)
BEM Brasil em Mente
CA Comunidade autônoma
CBM Conferência Brasileiros no Mundo
CCBB Centro de Cultura do Brasil em Barcelona
CELPE-BRAS Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para
Estrangeiros
CEP Comitê de ética em pesquisa
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CONEP Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
CPBC Curso de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira para Crianças
(Auckland, Nova Zelândia)
CPLH Conferência de Português Língua de Herança
CRBE Conselho de Representantes Brasileiros no Exterior
CUP Candidaturas de Unidad Popular [Candidaturas da Unidade
Popular]
CUSC Centre Universitari de Sociolingüística i Comunicació [Centro
Universitário de Sociolinguística e Comunicação]
DEA Diploma de Estudos Avançados
DPLP Divisão de Promoção da Língua Portuguesa
ENCCEJA Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e
Adultos
ERC Esquerra Republicana de Catalunya [Esquerda Republicana da
Catalunha]
FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
GELA Grup d’Estudi de Llengües Amenaçades [Grupo de Estudos de
Línguas Ameaçadas]
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IEC Institut d’Estudis Catalans [Instituto de Estudos Catalães]
IILP Instituto Internacional da Língua Portuguesa
LA Linguística Aplicada
LE Língua estrangeira
LH Língua de herança
LH2 Segunda língua de herança
MBV Mães Brasileiras da Virginia (EUA)
MEC Ministério de Educação
MinC Ministério da Cultura
MLH Minority language at home [língua minoritária em casa]
MRE Ministério de Relações Exteriores do Brasil
ONG Organização não-governamental
OPOL One parent, one language [um progenitor, uma língua]
PCR Partit Catalanista Republicà [Partido Catalanista Republicano]
PDLC Programa de Difusão de Língua e Cultura
PL Política linguística
PLE Português como língua estrangeira
PLURAL Plurilingüismos Escolares y Aprendizaje de Lenguas
[Plurilinguismos Escolares e Aprendizagem de Línguas], grupo de
pesquisa da UB
PLF Política linguística familiar
PLH Português como língua de herança
PLM Português como língua materna
PPPLE Portal do Professor de Português Língua Estrangeira
SEPOLH Simpósio Europeu sobre o Ensino de Português como Língua de
Herança
TCLE Termo de consentimento livre e esclarecido
UB Universidade de Barcelona
UE União Europeia
UFMT Universidade Federal do Mato Grosso
Unicamp Universidade Estadual de Campinas
SUMÁRIO

A MODO DE INTRODUÇÃO: UMA CRÔNICA 19

CAPÍTULO 1 – PORTUGUÊS COMO LÍNGUA DE HERANÇA: O DESENHO DA PESQUISA 28


1.1 OBJETIVOS E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 28
1.1.1 Seleção de participantes 31
1.1.2 Métodos de geração de dados 33
1.1.3 Metodologia de análise de dados qualitativos 37
1.2 PRINCÍPIOS EPISTEMOLÓGICOS DE UMA PESQUISADORA SITUADA 40
1.2.1 Sobre a importância de um olhar para a afetividade no PLH 41
1.2.2 A afetividade como parte da metodologia 44
1.2.3 Limitações da pesquisa qualitativa e a subjetividade da pesquisadora 46
1.2.4 Vínculos e militância na pesquisa situada 48
1.2.5 Sobre a necessidade de um olhar feminino e feminista para as questões de PLH 50
1.3 O ÚLTIMO A SAIR QUE APAGUE A LUZ 55

CAPÍTULO 2 – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: DAS POLÍTICAS LINGUÍSTICAS


FAMILIARES À CIDADANIA PLURILÍNGUE 61
2.1 A PESQUISA EM LINGUÍSTICA APLICADA NO BRASIL E EM SOCIOLINGUÍSTICA NA CATALUNHA 61
2.1.1 A Linguística Aplicada brasileira 62
2.1.2 A Sociolinguística catalã 64
2.2.3 Políticas linguísticas familiares (PLFs) 69
2.3 A ORIGEM DA EXPRESSÃO “LÍNGUA DE HERANÇA” E SUAS DEFINIÇÕES 72
2.4 PLH: A ORIGEM DE UM MOVIMENTO 76
2.4.1 Primeiro fator: políticas públicas para os brasileiros emigrados 78
2.4.2 Segundo fator: ações locais – as iniciativas pelo PLH 84
2.4.3 Terceiro fator: a internet e o mundo 2.0 como porta de entrada para o universo
do PLH 88
2.4.4 Chegando ao ponto: os encontros presenciais 91
2.5 LÍNGUA E IDENTIDADE NO PLH 96
2.6 UMA LÍNGUA-CULTURA-IDENTIDADE FRAGMENTADA E HETEROGÊNEA 99
2.7 AS VARIÁVEIS PARA A FLUÊNCIA NA LH 108
2.8 PLH E CIDADANIA PLURILÍNGUE NA UNIÃO EUROPEIA: O QUE O QUADRO COMUM EUROPEU
DE REFERÊNCIA PARA LÍNGUAS PODE ACRESCENTAR 110
2.9 ESTADO ATUAL DA QUESTÃO 112

CAPÍTULO 3 – O CONTEXTO DE PESQUISA: NOTAS SOBRE A CATALUNHA,


BARCELONA E A APBC 115
3.1 AS BASES DO NACIONALISMO CATALÃO 117
3.2 A INDÚSTRIA TÊXTIL, A RENAIXENÇA E UM NOVO CENÁRIO POLÍTICO URBANO 119
3.3 O NACIONALISMO CATALÃO NO SÉCULO XX 120
3.3.1 A ditadura franquista e a transição democrática 121
3.4 FATORES DEMOGRÁFICOS E FLUXOS MIGRATÓRIOS 123
3.5 OS USOS LINGUÍSTICOS NA CATALUNHA HOJE 125
3.5.1 De longe: um contexto macro 125
3.5.2 De perto: o contexto micro 129
3.6 LÍNGUA, POLÍTICA E PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO NA CATALUNHA HOJE 134
3.7 A COMUNIDADE BRASILEIRA NA CATALUNHA 139
3.8 A FUNDAÇÃO E A CONSOLIDAÇÃO DA APBC 143
3.9 O PLH EM SALA DE AULA: O TRABALHO PEDAGÓGICO NA APBC 146
3.10 POLÍTICA LINGUÍSTICA PARA PLH NA APBC 151

CAPÍTULO 4 – UMA BREVE APROXIMAÇÃO AOS DADOS QUANTITATIVOS:


O PERFIL DOS PARTICIPANTES DA PESQUISA 155
4.1 ORIGEM, TEMPO DE RESIDÊNCIA NA CATALUNHA E IDADE 156
4.2 ESCOLARIDADE 158
4.3 SITUAÇÃO DOS CASAIS, NÚMERO DE FILHOS POR CASAL E IDADE DAS CRIANÇAS 159
4.4 DESLIGAMENTO DA APBC 161
4.5 LÍNGUA INICIAL DOS PROGENITORES E REPERTÓRIOS LINGUÍSTICOS DAS FAMÍLIAS 161

CAPÍTULO 5 – ANÁLISE QUALITATIVA: AS REPRESENTAÇÕES DE PAIS E


PROFESSORAS DA APBC SOBRE PLH 169
I-A) REPRESENTAÇÕES DE IDEOLOGIAS X IDENTIFICAÇÃO 170
I-B) REPRESENTAÇÕES DE IDEOLOGIAS X PROFICIÊNCIA LINGUÍSTICA 175
O multilinguismo como algo positivo 175
“Reforçar a língua débil”: as ideologias linguísticas da sociedade de acolhida e
seu impacto nas PLs familiares 177
O português como diferencial: mercado de trabalho, projeto migratório e cidadania global 179
Boas maneiras no espaço plurilíngue 182
A exposição e o uso de português não corresponde à expectativa dos pais 185
I-C) REPRESENTAÇÕES DE IDEOLOGIAS X AFETIVIDADE 189
II-A) REPRESENTAÇÕES DE PRÁTICAS LINGUÍSTICAS X IDENTIFICAÇÃO 194
II-B) REPRESENTAÇÕES DE PRÁTICAS LINGUÍSTICAS X PROFICIÊNCIA LINGUÍSTICA 198
É “natural” 198
Falar “sempre” português 202
O papel dos progenitores não brasileiros: suas práticas linguísticas e o impacto
na proficiência dos filhos 206
II-C) REPRESENTAÇÕES DE PRÁTICAS LINGUÍSTICAS X AFETIVIDADE 213
III-A) REPRESENTAÇÕES DE INTERVENÇÃO (APBC) X IDENTIFICAÇÃO 216
III-B) REPRESENTAÇÕES DE INTERVENÇÕES (APBC) X PROFICIÊNCIA LINGUÍSTICA 226
III-C) REPRESENTAÇÕES SOBRE INTERVENÇÃO (APBC) X AFETIVIDADE 236

CAPÍTULO 6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS 247


6.1 QUESTÕES DE GÊNERO E PROGENITORES QUE NÃO TÊM O PORTUGUÊS COMO LÍNGUA INICIAL 248
6.2 REPERTÓRIOS LINGUÍSTICOS HETEROGÊNEOS E CIDADANIA PLURILÍNGUE 251
6.3 A AFETIVIDADE: EXPECTATIVAS E INVESTIMENTO NO CONTEXTO DE LH 255

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 260


ANEXO I: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE) 275
ANEXO II: QUESTIONÁRIO PARA ENTREVISTADOS 281
ANEXO III: ROTEIRO DE ENTREVISTA 286
19

A MODO DE INTRODUÇÃO: UMA CRÔNICA

O que se lê a seguir é uma crônica e obedece às convenções


narrativas desse gênero textual. Nela, o que temos são personagens – não
sujeitos de pesquisa. No entanto, como o gênero assim o permite, este relato
está inspirado em fatos reais, atuais, presenciados por mim – os quais, é bom
frisar, não foram vivenciados pelos participantes desta pesquisa, embora eu
esteja certa de que eles passem por situações parecidas em seu cotidiano.
Esta é minha maneira de apresentar um pouco do contexto em que a pesquisa
aqui descrita se realizou: línguas de herança e plurilinguismo, vínculos afetivos
e relações familiares, associativismo e questões de gênero no contexto da
Catalunha são alguns dos temas que captaram minha atenção ao longo dos
últimos anos e destas páginas.

Aniversário

A festa do sétimo aniversário de Nico aconteceria num sábado, em


Barcelona, na sala de reuniões do acolhedor espaço de coworking onde sua
mãe trabalhava. Os acabamentos do espaço incluíam materiais de demolição
numa composição entre sofisticada e minimalista, com móveis e objetos retrô
que seriam descartados como lixo, mas foram restaurados com criatividade
pelos arquitetos donos do espaço. Um abajur feito com roda de bicicleta, uma
fotocopiadora Xerox obsoleta transformada em estante, esculturas têxteis de
simpáticos cactos estampados sobre mesinhas antigas de canto. A sala não
era grande, mas permitia, no entanto, que as cerca de dez crianças
espalhassem brinquedos e jogos e se entretivessem também em companhia
dos adultos responsáveis por elas. Elena, a mãe de Nico, é tradutora – cresceu
no interior da Catalunha e, embora tenha sido escolarizada em catalão, a
língua que usa em casa, com seus pais e o irmão, é o castelhano. Lucca, o pai
de Nico, é músico. É italiano. Nico, o aniversariante, conhece, fala e lê as três
línguas: catalão, castelhano e italiano.
20

O presente que trazemos para o aniversariante foi sugerido por


Mateo, meu filho, nove anos: um livro infanto-juvenil de Geronimo Stilton, de
quem ambos gostam muito. Sofia, seis anos, irmã de Mateo, concordou – uma
semana antes que ela própria se iniciasse nas leituras de um desses
calhamaços infantis de mais de trezentas páginas com ares de almanaque,
capítulos curtos, ilustrações, palavras destacadas remetendo aos poemas
concretos. Coube a mim perguntar a Elena em que língua deveria comprar o
exemplar: castelhano ou catalão? “Ele gosta mais em castelhano”, me informou
ela por WhatsApp numa manhã daquela semana.
Chegamos, as crianças e eu, por volta das cinco da tarde, com o
livro e algo mais na sacola. Superdiversidade, heterogeneidade e mobilidade
nos acompanham no dia a dia, do café da manhã à hora de dormir, mas como
esse é o nosso normal, há momentos em que nem o percebemos. Sou
brasileira e meu companheiro, mexicano. Nossas crianças têm como
referentes, no dia a dia, do café da manhã à hora de dormir, três países, três
línguas e três culturas: o Brasil, o México e a Catalunha dentro de casa, vividos
em português, castelhano ou catalão. Poderíamos acrescentar a cultura
espanhola – outra coisa – se quiséssemos, um quarto elemento. Nossa família
já passou por duas mudanças internacionais: nos mudamos para o Brasil em
2011, voltamos a Barcelona em 2014. Não foi por trabalho, não foi por
desemprego, não foi por fracasso. Foi porque nós, os adultos da família, assim
o decidimos – com todas as dores e delícias de ter essa opção e um custo
emocional que não necessariamente é baixo. Meu companheiro não nos
acompanha à festa: ele está em Dublin, a trabalho, falando inglês. Essa é parte
da nossa história, três dos convidados de Nico.
Para esse aniversário, Elena decidiu organizar uma comemoração
mais íntima, sem convidar todos os 27 colegas de classe de Nico da escola. Só
os mais próximos estariam presentes: alguns da escola, outros do círculo de
amigos da família. Quando cheguei, já havia alguns convidados por ali. Dou
dois beijinhos em Laurence – mãe de Arantxa, sete anos, e Ronan, quatro anos
–, francesa bretã, que já conheço de outros encontros organizados por Elena,
cumprimento outra mãe espanhola e um casal de russos. Lucca me apresenta
Ana, também brasileira. Lucca, Ana e seu marido são colegas de aulas de
capoeira. Ana é morena clara, tem os olhos esverdeados e traz o cabelo afro
21

aloirado preso no alto da cabeça com os cachos gingando ao som da seleção


musical do aniversariante: a trilha sonora de Missão Impossível se alterna com
a de Guerra nas Estrelas. Começamos a conversar algumas amenidades. Falo
em português, ela me responde em castelhano, acredito que sem ser
verdadeiramente consciente da língua que está utilizando. Os filhos de Ana,
Gamliel e Zulema, têm a mesma idade dos meus e os quatro já estão
brincando juntos, os dois meninos mais velhos e as duas meninas caçulas. Ela
comenta que os nomes das crianças são hebraicos e que seu marido é catalão
– e me pergunto se judeu –, mas se conheceram no Brasil.
Sofia nos interrompe e pede para ir ao banheiro. Eu a acompanho,
me sirvo uma bebida, tentando não pisar nos trilhos do trem montados no chão,
nem nos dedos do filho da mãe espanhola – não pude memorizar seu nome.
Observo uma menina loira e alta e concluo que deve ser Ivana, amiga de Nico
da escola, a filha do casal russo. Ivana conversa em russo com os pais e em
castelhano com os amigos. O pai se chama Ivan, a mãe, Nadia. Sei que Ivana
é filha única. Ivan já deve ter cerca de cinquenta anos, é alto, forte e participa
do campeonato de minipebolim com as crianças. Nadia estará na casa dos
quarenta. Está um pouco acima do peso, usa roupas um pouco gastas, traz o
cabelo também loiro um pouco sem corte. Intuo uma gravidez tardia,
postergada uma e outra vez pela necessidade de o casal encontrar um pouco
mais de estabilidade financeira antes de ter filhos. Intuo cansaço, quase
exaustão, ante as dificuldades relacionadas a imigrar para um país de outra
língua, outra cultura, que não necessariamente a tratará bem – mas sempre
com a certeza de que poderia ser pior.
Lembro um estudo que li sobre “migrantes por amor”, mulheres da
América Latina e do Leste Europeu que se mudam para a Espanha para se
casar, e os relatos de algumas russas que se inscrevem em agências
matrimoniais procurando uma perspectiva um pouco melhor dos
relacionamentos que poderiam ter em seu país – muitas vezes abusivos,
segundo a narrativa das participantes. O perfil das candidatas, em geral, é de
mulheres com boa formação profissional e acadêmica – e péssimos salários e
ex-maridos no currículo. Evidentemente, não parece ser o caso do
relacionamento de Nadia e Ivan. Ivana é esbelta e delicada e se parece muito
com a mãe. Penso nas primeiras bailarinas de algumas companhias de balé
22

clássico que vi no palco, o Bolshoi, o New York City Ballet – e não posso evitar
um sorriso de canto de olho ao lembrar que Misty Copeland, a atual primeira
bailarina do American Ballet Theatre, é a primeira mulher negra a conquistar
esse cargo. Nadia deve ter sido muito bonita quando jovem.
Sento num banco de madeira encostado à parede, pois estou
cansada, a semana foi corrida. Outra família chega à festa e uma jovem latina
simpática e sorridente se senta ao meu lado. Ela puxa conversa. Me pergunta
quem são meus filhos, me mostra quais são os seus: Emily e Juan. Emily,
assim como Ivana, está na mesma classe que Nico e também tem sete anos.
Juan tem cinco. Ela me pergunta, sem constrangimento e com um sorriso de
orelha a orelha, quantos anos tenho, dizendo que pareço jovem. Digo que
tenho 34. “Ah, não parece, parece menos”, ela diz, risonha, os dentes
alinhados, e eu agradeço a gentileza. Aproveito a oportunidade para perguntar
sua idade. Trinta anos, ela me diz. E acrescenta, lançando um olhar
despreocupado para um homem alto, as costas largas dentro de um paletó,
que se encontra parado a dois passos dali: “O Joan tem 55. Mas não me
importo”, diz ela, como que se adiantando a possíveis questionamentos sobre a
grande diferença de idade entre o casal, uma situação com a qual deve
deparar com certa frequência. Joan é o marido dela, Cristina, equatoriana, e,
pelo nome, concluo que ele é catalão. “O importante é que vocês estejam
bem”, eu digo. E, sim, eles parecem estar bem: Cristina sorri o tempo todo, é
atenciosa com Joan; Joan está presente numa festa infantil acompanhando os
filhos, interagindo com os dois e conversando com as outras famílias com que
parece estar habituado a conviver.
Faço contas e calculo que Cristina deveria ter 23 anos quando Emily
nasceu. Isso, mais algum tempo de relacionamento com um homem catalão 25
anos mais velho – ou uma gravidez acidental – levaria mais gente a pensar que
essa bela e jovem mulher latina na verdade talvez fosse uma oportunista em
busca de um marido que lhe mantivesse e resolvesse a questão prática de ter
um visto para imigração, além do aspecto financeiro. Volto a consultar
mentalmente minhas reminiscências do estudo sobre as migrantes por amor.
Sim, há mulheres muito jovens que desejam constituir família e valorizam num
pretendente qualidades como estabilidade econômica e ser um bom pai. E,
sim, também há homens espanhóis maduros, beirando a meia-idade, às vezes
23

com um casamento fracassado e filhos desse relacionamento anterior já


adultos, aterrorizados diante da ideia de envelhecer só. Desejam encontrar
uma esposa que cuide deles, da casa em que moram, que cozinhe e faça
companhia. Nesses pactos, a parte masculina reconhece sua total falta de
habilidade para essas questões igualmente tão práticas e básicas, que tanto
influem na sua qualidade de vida. E, sim, esses relacionamentos podem
funcionar – às vezes melhor que aqueles movidos por ideais românticos.
Logo chega Susana, colega de Elena no coworking e tradutora do
alemão – filha de pai basco e mãe germânica –, com o companheiro e o filho
de dois anos. E Gemma, amiga de Elena, de Barcelona, com Stéphane, o
marido francês, e os dois filhos mais velhos, sete e cinco anos, a bebê ficou em
casa. Começo a computar as línguas do repertório dessas quinze crianças –
agora tenho o número exato dos convidados infantis – que convivem tão bem
reunidas em torno dos trilhos do trem ou dos tabuleiros de jogos: castelhano,
catalão, francês, italiano, português, alemão e russo. Todas falam ao menos
dois idiomas, castelhano e catalão, além de aprenderem inglês como língua
estrangeira na escola, e 11 estão expostas, em maior ou menor grau, a uma
língua de herança dentro de casa, diferente do castelhano e do catalão. Entre
elas, ao menos ali, falam castelhano, também a língua adotada pelos adultos
nas situações de grupo nesse mesmo espaço – embora outras línguas estejam
em uso paralelamente: Ivan e Nadia conversam em russo entre eles e também
com Ivana; Elena e Lucca acertam detalhes da recepção em italiano; Lucca e
Augustino (amigo daquele e tio por afinidade de Nico), também em italiano, eu
e Ana, em português, e assim por diante. Laurence se dirige aos filhos em
francês, mas não Stéphane.
Paro para pensar um momento em Laurence. Ela está separada de
Raphael, pai de seus filhos, o qual já tem uma nova companheira, Judith, uma
catalã – que também conheço e considero muito simpática, aliás. Quando
coincido com os filhos dos dois, Arantxa e Ronan, às vezes as crianças estão
acompanhadas do pai e de Judith, outras vezes, de Laurence, embora não os
tenha visto juntos no mesmo ambiente. Me pergunto internamente quais as
regras de convívio com casais separados com filhos, quando os filhos são
amigos de suas crianças.
24

Também deparo com situações assim em meu dia a dia familiar: um


casal de irmãos, da idade de meus filhos, tem os pais separados e nos damos
muito bem com ambos – alternar a convivência com cada um dos progenitores
no portão da escola ou no parquinho da praça é inevitável, pois o pai e a mãe
compartilham a guarda das crianças e se revezam nos dias de buscá-los, levá-
los e tê-los em casa. Os dois moram com outros companheiros, com os quais
às vezes convivemos, sem qualquer tipo de atrito. Enquanto ajudo Nico a
localizar os óculos com mínirretrovisor do kit de espião que acaba de ganhar,
faço uma pausa mental para constatar que a mobilidade não necessariamente
está em nas fronteiras geográficas ou linguísticas: também está nos vínculos
que construímos e nos que nossos filhos terão que construir para se relacionar
com os colegas com quem têm afinidade. Para nós, os adultos da família, o
esforço de conviver com os pais dos amigos de seus filhos passa também a
incluir seus novos companheiros – e isso, por enquanto, é uma novidade para
minha geração, mas não será para a destas crianças, que já têm como natural
essa situação desde antes dos dez anos de idade. A realidade é que, por
questões práticas, aprendi a decorar a escala do pai e da mãe desses irmãos
e, dependendo do dia da semana, já sei com quem devo falar quando preciso
pedir que acompanhem Sofia à aula de balé com a amiga ou porque Mateo
quer convidar o amigo para vir em casa brincar. Não dói: conheço as duas
casas dos meninos, os quatro adultos responsáveis por eles e meu círculo
social se enriquece. Espero que para as crianças também seja simples assim.
E, sim, às vezes as coisas são simples quando poderiam ser tão
complexas. Assim como a melhor brincadeira da festa, que não precisa de
videogame com sensor de movimento de última geração, é aquela que a gente
inventa fundindo nossa imaginação com a do outro, a própria maravilha do
brincar. No centro da sala, encostado à parede, Ivan está sentado em outro
banco de madeira, com os braços apoiados nos joelhos, e levanta Arantxa, que
se equilibra de pé sobre suas mãos, ela de braços abertos para não cair. O
número de malabarismo protagonizado por um quase-gigante gentil faz
sucesso e logo há uma fila de crianças querendo provar a força de Ivan e as
próprias habilidades de equilíbrio. Mateo espera sua vez enquanto come o
segundo cachorro-quente. Sofia e Zulema estão indiferentes ao tumulto,
concentradas na partida de minipebolim, pois finalmente chegou a vez de as
25

duas jogarem – e a disputa é acirrada. Enquanto isso, alternando olhares para


Ivan, agora com Nico no ar, Cristina conversa com a mãe espanhola, e Joan
observa Juan brincar com um jogo de tabuleiro estilo tiro ao alvo. Me sento
novamente ao lado de Ana para conversar.
Gradativamente, o castelhano de Ana foi se transformando em
portunhol, logo em português, e agora conversamos as duas em português,
com alguma palavra que lhe escapa em castelhano. Pergunto se ela fala
português com os filhos, ela diz que “fala mesclado” e que, embora saiba falar
castelhano, ainda não fala catalão e só usa uma ou outra palavra desta língua.
A conversa segue e ela me explica que moram com a sogra, uma senhora de
80 anos, que só se dirige a ela em catalão. Não há indícios de que o fato de
cada uma delas usar uma língua diferente para se dirigir à outra – Ana, o
castelhano; a sogra, o catalão – gere problemas de comunicação. Se Ana
souber tirar proveito da situação, irá tomar a postura da sogra e suas investidas
de catalanização da nora como uma oportunidade privilegiada de
aprendizagem desta língua, pois a postura dos catalães – documentada por
pesquisas – é a de automaticamente passar para o castelhano quando se dão
conta de que o interlocutor não é catalão, o que reduz as oportunidades dos
não catalães desejosos de aprender o catalão estarem expostos à língua e
poderem praticar o que aprenderam.
Ana pergunta de onde sou, conto que sou de Campinas, próximo a
São Paulo. Ela me conta um pouco mais sobre sua história: é cearense e
nasceu em Canoa Quebrada, paraíso natural descoberto pelos cineastas da
Nouvelle Vague francesa nos anos 1960, mas a história com o marido
começou quando ela morava em Jericoacoara, paraíso natural descoberto por
jovens do Sudeste do país e da Europa na última década.
Já começo a imaginar o cenário desses lugares lindos e longínquos
do Brasil, de tantos Brasis que desconheço, para onde às vezes se estabelece,
na base do boca a boca, um fluxo de estrangeiros, particularmente europeus.
Por conta disso, de repente uma porta interdimensional para a Europa e a
imigração se abre para alguém que cresceu como nativo num lugar remoto, às
vezes sem energia elétrica, sem internet, sem estradas de acesso aos grandes
centros. Tanto para quem está de um lado como de outro, passar por ali pode
ser mágico: de um lado, a civilização; de outro, a natureza selvagem.
26

Promessas tão bonitas que ofuscam a possibilidade de acabar em sufocos ou


de voltar para aquele ponto do espaço-tempo que ficou do outro lado do portal.
Em tom confidente, Ana me conta que tem outro filho de 16 anos,
cujo pai é italiano, que mora em Jericoacoara. Com o pai. Ela me explica, com
sofrimento nos olhos, que tinha a guarda do menino até seus cinco anos de
idade, quando, provavelmente sem saber das consequências legais, decidiu
passar oito meses com o atual marido na Europa, período em que o italiano
pegou a guarda do menino. De lá pra cá, cada vez que ela tentava visitar o
filho, o italiano sumia com o garoto. Num fio de voz abafado pelas vozes
infantis, ela diz que hoje já consegue se comunicar com o rapaz – serão as
bênçãos da internet – e espera pacientemente o passar desses dois anos até a
maioridade legal do filho, esperançosa de uma oportunidade de retomar o
relacionamento dos dois. Sabe que não vai recuperar esse tempo perdido, a
ausência, as distâncias, mas também sabe que pode ter uma chance de
recomeçar – e se apega a ela com unhas e dentes, antes de confessar que não
gosta nem de falar no assunto. Eu a conforto e digo que, se o pai do menino é
italiano, ele não terá problemas com vistos ou burocracias migratórias caso
deseje vir morar na Europa. Infelizmente, a imigração está repleta de histórias
assim. Não é a primeira nem será a última que conheço.
Chega a hora de quebrar a pinhata – repleta de doces, feita de saco
de papelão, onde o rosto do monstro Frankenstein foi esculpido pelo pai do
aniversariante. As crianças se amontoam e, por turnos, pegam um bastão de
madeira. Nico é o primeiro a dar os três golpes – cota definida pelos pais e
organizadores da atividade – e, com a terceira criança, o Frankenstein rasga e
a chuva de doces cai. Os meninos se amontoam no chão para capturar seu
tesouro de açúcar. Um pouco depois, é a hora do parabéns: um bolo
esverdeado com a cara de um zumbi, atendendo pedidos do aniversariante,
chega com as sete velinhas acesas em cima. Canta-se o parabéns, em
castelhano, e aos poucos os convidados vão se despedindo. Observo-me por
um momento conversando numa rodinha com Ana, Lucca e Augustino – eles,
italianos, nós, brasileiras, os quatro falando em castelhano. Pergunto-me por
que temos que conversar necessariamente em castelhano. Lucca sabe
português, eu sei algo de italiano, Augustino até não muito tempo atrás só
falava italiano, pois custou a aprender castelhano, e Ana já deixou claro que se
27

vira em qualquer situação. Talvez cada um pudesse falar sua língua neste
momento, mas vigora uma convenção social de que a língua a usar no grupo é
o castelhano.
E assim foi o aniversário de Nico. Nico, que fez sete anos, tem
passaporte espanhol e esse círculo de amigos, alguns dos quais conheceu na
sua escola, que não é de elite, mas uma escola pública, do bairro, considerada
desprestigiada e com poucos recursos, caracterizada (estigmatizada?) por
receber um grande fluxo de alunos imigrantes – apenas porque a direção e a
Associação de Pais não sabem das maravilhas que ocorrem nas festas de
aniversário de seus alunos. Nico que, tecnicamente, é espanhol, e festejou
num espaço pequeno, exclusivo, administrado de modo coletivo pelos
profissionais que trabalham no coworking, como sua mãe, mas também
afetivamente construído por ele, onde os espanhóis eram minoria – mas que
bem poderia ser um parque público. A maioria, aqui, é todo o resto: o
superdiverso, o heterogêneo, o que se deslocou e se deixou deslocar.
Feliz aniversário, Nico, e uma feliz vida – na medida em que a vida
pode ser feliz pra quem fica e pra quem se vai, para os que procuram ser iguais
e os que desejam a diferença, para quem tem voz e quem precisa ficar calado.
Que você possa encontrar a felicidade assim, em espaços de diversidade,
trocas, tolerância e respeito, como aqueles com que seus pais querem te
presentear e fazer presentes em seu dia a dia, tal qual esta ótima festa do seu
sétimo aniversário. Obrigada por ter nos convidado.
28

CAPÍTULO 1 – PORTUGUÊS COMO LÍNGUA DE HERANÇA:


O DESENHO DA PESQUISA

Escolhi me aproximar da cidade de Barcelona, espaço onde


desenvolvi uma pesquisa de natureza qualitativa sobre o português como
língua de herança (PLH1) entre famílias de brasileiros e professoras de PLH,
realizada na Associação de Pais de Brasileirinhos da Catalunha (APBC), não
com dados ou observações sobre os participantes da pesquisa. Este relato
inicial está inspirado numa situação vivida em companhia de meus filhos,
aparentemente não relacionada diretamente com o tema. Isso, epistemológica
e teoricamente, tem algumas razões de ser. As questões implícitas na crônica
serão retomadas em diferentes pontos ao longo do trabalho.
Este capítulo inicial apresenta, primeiramente, os objetivos e
procedimentos metodológicos da pesquisa realizada. Num segundo momento,
a crônica será retomada para que se possam apresentar os princípios
epistemológicos sob uma perspectiva situada de pesquisa.

1.1 Objetivos e procedimentos metodológicos

Neste trabalho, descrevo um projeto de pesquisa qualitativa sobre o


PLH entre famílias de brasileiros e professoras de PLH, realizada na
Associação de Pais de Brasileirinhos da Catalunha (APBC), em Barcelona,
Espanha, e pretendo conhecer as representações (HALL, 1997) de um grupo
de 14 famílias de brasileiros2, além de três professoras de português da
entidade, sobre políticas e planejamentos linguísticos para PLH. O exame
dessas representações se complementa com observações em contextos
relacionados à APBC. Tais representações, que constroem a intersecção entre
linguagem e sujeito no mundo social (HALL, 1997), permitem conhecer as

1
Em alguns contextos, também se utiliza a sigla “POLH” para se referir a “Português como
Língua de Herança” – ver, por exemplo, Souza (2016b).
2
Destaco a opção de utilizar “famílias de brasileiros”, e não “famílias brasileiras”: as famílias de
brasileiros são famílias em que o pai e/ou a mãe da criança é brasileiro/a, e reflete melhor o
perfil de famílias da APBC, de casais de diferentes nacionalidades (às vezes, com famílias
monoparentais).
29

ideologias linguísticas desse grupo e interpretar a relação entre a língua e os


seres humanos na sociedade (WOOLARD, 2012).
Tendo como principal fonte de dados as entrevistas realizadas com
pais e professoras da APBC, as quais se complementam com um grupo focal,
questionários, observações da pesquisadora sobre o contexto investigado e
pesquisa documental, os objetivos da pesquisa empreendida foram:
i) Descrever e analisar as representações construídas pelos
sujeitos de pesquisa em seus discursos acerca de políticas
linguísticas familiares e institucionais no que concerne ao PLH
e ao plurilinguismo;
ii) Refletir sobre possíveis influências das ideologias linguísticas
associadas ao catalanismo no processo de construção
discursiva dessas representações.

A análise dos dados foi orientada, mais especificamente, pelas


seguintes perguntas de pesquisa:

(1) Como os pais e as mães entrevistados caracterizam as


políticas linguísticas familiares por eles empreendidas?
a. Quais, de seu ponto de vista, são as motivações para a
transmissão3 de PLH a seus filhos?
b. Que relação estabelecem entre o PLH e outra(s)
língua(s) presente(s) em seu ambiente familiar e em
outros em que convivem?
c. Como a relação entre língua e cultura é percebida?
d. Que conceitos de língua e de competência linguística
orientam a construção dessas representações?

3
A terminologia “transmissão” é bastante utilizada nas discussões de PLH. Não se trata,
porém, de pensar a língua como algo pronto ou como um patrimônio que pode ser entregue ou
transmitido juridicamente aos “herdeiros” para ser simplesmente usado, como se tal atitude
bastasse. A transmissão de uma língua de herança pode requerer muito esforço, tanto de
quem ensina como de quem aprende, assim como o ensino de uma língua estrangeira em sala
de aula. Transmissão, no contexto de LH, se refere a essa maneira de ensinar a língua que
ocorre a partir de situações cotidianas, de interações reais, normalmente entre os membros do
núcleo familiar – mas podendo se expandir à comunidade de fala – desde a mais tenra idade
do aprendiz (ou falante).
30

e. Que ideologias linguísticas estão na base da


construção de tais representações?
f. Qual é a influência dos discursos e das ações da
APBC na construção das representações discursivas
das famílias?

(2) O que as representações discursivas construídas pelas


professoras entrevistadas revelam sobre o contexto e sua
atuação profissionais?
a. Como elas caracterizam a política e o planejamento
linguístico da APBC?
b. Que relação elas estabelecem entre o PLH e outra(s)
língua(s) presente(s) no contexto em questão?
c. Como a relação entre língua e cultura é percebida?
d. Que conceitos de língua e de competência linguística
orientam a construção dessas representações?
e. Que ideologias linguísticas estão na base da
construção dessas representações?
f. Como elas percebem o impacto dos discursos e das
ações da APBC no estabelecimento de políticas
linguísticas familiares por parte dos pais e das mães de
seus alunos?

Para tanto, foi utilizada uma metodologia de geração de dados


mista, predominantemente qualitativa, sintetizada na Tabela 1 a seguir:

Quantidade Período de obtenção


Procedimentos metodológicos
de registros dos registros
17 Questionários 30/12/2014 a 30/03/2015
12 Entrevistas individuais com pais e mães da APBC 30/12/2014 a 30/03/2015
3 Entrevistas individuais com professoras da APBC 25/01/2015 a 26/02/2015
1 Grupo focal com 9 pais e mães da APBC (6 30/05/2015
participaram das entrevistas individuais; 3 não
participaram das mesmas)
1 Observações nos contextos da APBC set/2014 a dez/2016
Tabela 1 – Conjunto de dados da pesquisa
31

O número de 17 questionários se refere a: 12 questionários


aplicados aos pais e mães participantes nas entrevistas individuais, 3
questionários das professoras entrevistadas e outros 2 questionários
respondidos pelos 3 participantes do grupo focal que não haviam sido
entrevistados. Como entre os 3 participantes do grupo focal que não haviam
sido entrevistados havia um casal, o questionário foi respondido apenas uma
vez pelo casal – por isso, a soma do número de participantes das entrevistas
individuais e do grupo focal é de 18, mas o número de questionários obtidos
desses participantes é de 17. Este foi o único caso de um casal de
participantes nas entrevistas e no grupo focal.

1.1.1 Seleção de participantes

Como critérios de inclusão dos participantes na pesquisa observou-


se o seguinte:
a) ser sócio da APBC e ser pai ou mãe de uma criança de origem
brasileira.
b) ser professora das aulas de português para crianças da APBC.
No caso dos pais e mães, o país de origem foi considerado
indiferente, podendo o participante não ser o progenitor brasileiro. Acredito que,
num estudo de caráter exploratório, em um cenário heterogêneo, como o aqui
proposto, excluir a participação dos pais com base em seu país de origem,
língua inicial ou sexo seria reduzir a possibilidade de gerar informações
preciosas para compreender esse contexto. Neste grupo, os pais e mães
sócios foram selecionados de modo a tentar representar a diversidade de perfis
existentes na APBC: participação dos filhos nas aulas de português ou não;
nível de escolaridade dos pais; estrutura familiar (famílias monoparentais x
biparentais); nacionalidade dos progenitores (famílias endogâmicas – ambos
brasileiros – ou mistas – um brasileiro e o outro, não); atuação na organização
e gestão da APBC (alguns participantes eram membros da então Diretoria).
Ou, como justificaria Dörnyei ao se referir às pesquisas qualitativas, “o principal
objetivo do recrutamento é encontrar indivíduos que possam proporcionar
32

insights ricos e variados sobre o fenômeno pesquisado, de modo a maximizar o


que podemos aprender” 4 (DÖRNYEI, 2007, p. 126).
Também foram entrevistadas três das quatro professoras, todas
brasileiras, que davam aulas na APBC no momento da geração de dados, o
que totaliza 15 entrevistas individuais.
Assim, tanto para pais e mães como para professoras, o único
critério de exclusão do participante do recrutamento inicial seria ele manifestar
seu desejo de abandonar o estudo ou retirar o consentimento.
Observando esses critérios, os possíveis participantes foram
contatados por mim de modo informal nos espaços da APBC, aos sábados
pela manhã, dias das aulas de português das crianças. Em dado momento,
preparei um breve texto explicando a pesquisa, o qual lhes foi entregue para
ajudá-los a refletir sobre sua participação. Aos que se mostraram receptivos,
pedi o telefone para poder agendar a entrevista, que se realizou no local
escolhido pelo participante – na maioria dos casos, em sua própria casa, mas
às vezes também em cafés e restaurantes ou na APBC. Posteriormente, para o
grupo focal, enviei e-mail com convite aos sócios da APBC de cujos contatos
eu dispunha e também ao grupo de WhatsApp da associação, de modo que a
participação no grupo focal não esteve vinculada à participação prévia nas
entrevistas individuais. O grupo focal se realizou com 6 participantes das
entrevistas individuais e 3 novos participantes (entre os quais, um casal).
Antes que tivesse início qualquer dos processos descritos a seguir,
incluindo as observações no contexto da APBC, os participantes assinaram um
termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE, ver Anexo I). Expliquei a
eles, individualmente, os objetivos de pesquisa, metodologia utilizada,
benefícios e desconfortos que a participação poderia causar, antes de agendar
a participação, e repassei esses pontos antes que a entrevista e o grupo focal
fossem iniciados, ou seja, essas informações foram dadas ao menos em dois
momentos diferentes. Tanto Flick (2009), ao se referir às metodologias de
pesquisa qualitativa em geral, como Moita Lopes (2006b), referindo-se à
própria pesquisa em LA, concordam em sua postura de que é necessário evitar
causar danos aos participantes da pesquisa no processo de geração de dados.

4
Para conveniência do leitor, as citações das obras publicadas em língua estrangeira são
apresentadas em português. A tradução desses trechos foi feita por mim.
33

Essas premissas também foram levadas em consideração e, por isso, informei


aos participantes que eles não precisavam responder as perguntas, caso se
sentissem desconfortáveis.
Foi enfatizado que a participação na pesquisa seria voluntária, não
remunerada, e o consentimento poderia ser retirado a qualquer momento,
inclusive após a participação na entrevista ou no grupo focal. Expliquei que
minha intenção de realizar observações nos contextos relacionados à APBC
poderia incluir interações do participante com os filhos e de suas crianças com
ouros membros da comunidade da APBC. Deixei claro que meu interesse
principal não residia nas crianças, já que a pesquisa se centraria na análise das
entrevistas dos adultos, mas que observá-las me possibilitaria complementar
meu conjunto de dados, pois permitiria registrar as línguas usadas por elas
com membros da família, professoras, colegas em sala de aula ou outras
situações relacionadas à Associação. Com isso, seria possível descrever
algumas situações observadas, se pertinente, sempre preservando a
identidade das crianças.
Estas informações estavam contidas no TCLE e o procedimento
adotado segue os padrões de ética para pesquisas envolvendo seres humanos
determinados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) do
Brasil, tendo sido submetida para aprovação, por determinação deste órgão, ao
Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Unicamp. O TCLE continha um anexo
pelo qual o representante legal podia autorizar (ou não) que os filhos, menores
de idade, fossem observados para esta pesquisa.

1.1.2 Métodos de geração de dados

Apresento, a seguir, os métodos utilizados para a geração de dados.

Questionário
Embora este não constitua o principal procedimento metodológico
para geração de dados, um questionário (ver Anexo II) foi aplicado aos
participantes antes do início da entrevista. O propósito das perguntas era o de
coletar informações objetivas sobre origem, situação familiar, tempo de
residência na Catalunha, línguas faladas etc. A intenção do questionário era
34

dar à entrevistadora uma ideia do perfil do entrevistado, antes do início da


entrevista para que as perguntas do roteiro fossem mais bem direcionadas;
encurtar o tempo de entrevista (o que, consequentemente, reduziria o trabalho
de transcrição e análise das entrevistas (DÖRNYEI, 2007)); e permitir traçar um
perfil do grupo a partir dessas informações. 5
As informações coletadas nos questionários foram tratadas com uma
metodologia de análise quantitativa: as respostas foram quantificadas em
números e transformadas em gráficos e porcentagens.

Entrevista individual semiestruturada


O principal procedimento metodológico utilizado para a geração de
dados foi a entrevista individual semiestruturada. A escolha desse
procedimento como principal se justifica porque, nas pesquisas sobre
transmissão linguística intergeracional, as entrevistas semiestruturadas são
prática comum (BALLARÍN GAROÑA, 2011; BERNAT I BALTRONS, 2011;
BOIX-FUSTER, 2009a; COELHO, 2009; FUKUDA, 2011; LABRAÑA e
GONZÁLEZ, 2011; MELIÀ GARÍ e OLIVER GRAU, 2011; TORRENS
GUERRINI, 2011) e parecem atender aos propósitos desse tipo de estudo,
permitindo conhecer as representações dos participantes, pois são um meio de
se chegar às visões, valores e atitudes que se deseja estudar.
A intenção de partir de uma entrevista semiestruturada foi realizar
um direcionamento temático que permitisse “concentrar-se, de forma muito
mais direta, em tópicos específicos” (FLICK, 2009, p. 194).
Assim, elaborei previamente um roteiro da entrevista, com perguntas
abertas, as quais tiveram como ponto de partida a história da família (narrativa
autobiográfica) de modo a favorecer que os sujeitos discorressem sobre
determinados temas pré-selecionados. O roteiro para as entrevistas aos pais e
professores pode ser consultado no Anexo III. As entrevistas foram gravadas
em áudio, com gravador digital, forma de registro mais discreta que o vídeo, e
tiveram cerca de uma hora de duração.

5
Os participantes do grupo focal que não haviam sido entrevistados (e, portanto, não haviam
respondido o questionário antes da entrevista) também o responderam antes de sua
participação no grupo focal. Assim, seus dados foram considerados ao se traçar o perfil do
grupo (ver Capítulo 4).
35

Grupo focal
O grupo focal foi utilizado como um procedimento complementar às
entrevistas, tendo por objetivo encontrar coincidências (ou não) entre
enunciados e pontos de vista expressos nas entrevistas, já que se configura
como uma ferramenta que permite reconstruir as opiniões individuais (FLICK,
2009).
No caso desta pesquisa, como o grupo de discussão seria formado
com membros da APBC, que já constituíam um grupo real, as pessoas partiram
de uma história de interações compartilhadas em relação aos assuntos em
discussão. Isso permitiu um estudo mais próximo das situações cotidianas de
vida real das atitudes, opiniões e práticas sociais, que talvez não pudessem ser
observadas unicamente com entrevistas individuais ou observações.
O grupo focal, mediado por mim e com cerca de uma hora de
duração, teve a participação de nove adultos, seis dos quais haviam sido
entrevistados individualmente. Como estímulo para a discussão do grupo,
foram apresentados alguns enunciados sobre os usos e definições do PLH, por
exemplo: “Meu filho fala menos português que eu gostaria e me sinto
frustrado”, bem como sobre as práticas da APBC, e pedi aos participantes que
se manifestassem se estavam de acordo ou não para iniciar a conversa,
frisando que não havia respostas certas ou erradas, e o propósito era levar a
cabo uma discussão sobre questões relacionadas ao PLH. Neste caso, a
metodologia de registro foi a gravação em áudio e vídeo (gravador digital +
iPad), pois, numa situação em que muitos sujeitos interagem, os dados visuais
poderiam ser fundamentais para a compreensão do contexto na etapa de
triagem e análise dos dados.

Observações nos contextos da APBC


Paralelamente, foi realizada a observação descritiva e participante
de atividades da APBC e de algumas interações dos sujeitos de pesquisa. A
observação se deu nas seguintes situações:

a) Espaços e atividades identificados como oficiais da Associação,


abertos a todos os associados ou ainda ao público geral, como
aulas de português, festas e eventos organizados pela APBC,
36

incluindo o escritório da instituição, no qual também funciona a


biblioteca, e outros espaços do Centre Cívic Parc Sandaru
[Centro Cívico Parque Sandaru]6, onde a APBC desenvolve suas
atividades, tais como a cafeteria, durante o horário das aulas de
português;
b) No caso das famílias participantes do estudo, atividades
organizadas entre os associados sem ser por iniciativa da APBC,
como passeios, almoços, aniversários e outros encontros mais
informais;
c) Na intimidade de algumas das famílias participantes, na casa das
mesmas, em algumas situações pontuais.

Especificamente para estes casos, foi registrado um conjunto de


notas de campo, embora nem toda situação observada tenha sido registrada
através de notas. Destaco que, para ter acesso às situações b e c, meu
posicionamento íntimo a partir de vínculos afetivos com certos participantes
ajudou a abrir algumas portas, questão que abordarei mais adiante. O período
de observação se iniciou no mês de setembro de 2014 e se estendeu até
dezembro de 2016, embora não por questões especificamente metodológicas,
já que este não é um estudo longitudinal, mas porque tive a oportunidade de
observar o contexto estudado ao longo desse período, que é o que realmente
corresponde ao das observações consideradas para análise. Tal observação
ajudou a entender o funcionamento da APBC, conforme descrito no Capítulo 3,
e a conhecer melhor as heterogeneidades nas competências linguísticas de
sua comunidade de fala, bem como a teia de relações sociais e afetivas que
existe entre os membros da Associação. Dados da observação participante são
ainda incluídos na análise de dados qualitativa no Capítulo 5, como
complemento ao estudo das representações e, pontualmente, como
contraponto ao que se relata nelas.

6
O Sandaru é um espaço da prefeitura de Barcelona e faz parte de uma rede de 51 centros
cívicos municipais, os quais oferecem atividades de cultura e lazer direcionadas à população
do bairro em que se situam. Algumas atividades são gratuitas, outras, pagas, entre as quais se
destacam shows, espetáculos e oficinas trimestrais de idiomas, dança, canto, teatro, música,
cultura ou esportes para todas as idades, incluindo bebês e terceira idade. Em geral, os centros
cívicos têm autonomia para escolher as atividades que incluirão em sua programação.
Também oferecem espaços e equipamentos que podem ser alugados por pessoas ou grupos.
37

Estes métodos de geração de dados se complementaram por alguns


procedimentos de análise documental, que incluíram documentos como a ata
fundacional da APBC, atas de reuniões e ações de comunicação da
Associação, como e-mails enviados aos associados, conteúdo do site, grupo
de discussão do Facebook, grupo de WhatsApp, entre outros.
Acredito que a combinação desses métodos permita fazer um
registro bastante abrangente das representações dos sujeitos de pesquisa e da
APBC em diferentes contextos e a partir de diferentes perspectivas, sendo
apropriada para uma coleta de dados em uma pesquisa de caráter qualitativo
como a aqui proposta.

1.1.3 Metodologia de análise de dados qualitativos

A seguir, descrevo a metodologia utilizada para a análise do


conjunto principal de dados, ou seja, as entrevistas, a qual também foi aplicada
ao grupo focal, pois a natureza do material (gravações de voz) é semelhante. O
processo segue muitos dos princípios descritos por Dörnyei (2007), que faz um
apanhado bastante extenso das diferentes práticas metodológicas em voga, e
está, portanto, de acordo com as práticas correntes de pesquisa em Linguística
Aplicada (LA) e Sociolinguística.

Roteirização e transcrição das gravações


Considerando que a maior parte dos dados qualitativos são
transformados em palavras para que, posteriormente, seja feita uma análise
textual, era preciso transcrever o material gerado. No entanto, como este
processo requer um tempo considerável, optei por não transcrever
completamente as gravações. Para cada gravação, elaborei uma tabela de
roteirização com duas colunas que permitia anotar, à esquerda, o tempo exato
da gravação em áudio (minutagem) e, à direita, registrar de forma sintetizada o
tema sobre o qual o entrevistado discorria, com transcrição dos trechos mais
significativos. Assim, foi possível segmentar as gravações em itens ou tópicos,
cada um correspondente a uma linha da tabela.
Simultaneamente, fui grifando o texto transcrito, destacando os
trechos que considerei mais relevantes a partir dos questionamentos das
38

perguntas de pesquisa. Foram utilizadas três cores para os grifos: amarelo,


para pontos relevantes; azul, para os muito relevantes, e rosa, para os
extremamente relevantes.
Além disso, como a transcrição foi realizada por mim em documento
Word, a partir da escuta das entrevistas (sem a ajuda de softwares de
reconhecimento de voz), utilizei a ferramenta “Comentários”, da aba “Marcas
de Revisão”, para incluir anotações pessoais e palavras-chave.
Embora esses quatro processos – roteirização; transcrição; grifo;
comentários – tenham sido realizados de modo simultâneo, se mostraram
bastante eficazes: ao final dessa etapa, além de dispor do material textual
necessário para uma análise inicial (ou de indicações precisas de onde
encontrar nas gravações os trechos que não estavam transcritos, caso fosse
necessário voltar a eles e transcrevê-los), eu já havia realizado uma etapa de
sistematização inicial de dados.
Ao final da roteirização e transcrição, entre 60% e 80% das
gravações haviam sido transcritas, como foco nas falas dos participantes, e
não da pesquisadora, e se encontravam organizadas por participante (cada
entrevista individual) ou no grupo focal. A preocupação foi em reproduzir o
conteúdo das falas, numa transcrição que se aproximasse mais do português
padrão, com o intuito de que houvesse maior fluidez de leitura tanto para a
pesquisadora, na análise posterior, como para os possíveis leitores dos
resultados do trabalho – assumindo que a linguagem oral não corresponde
exatamente à escrita e algo deve se transformar na passagem de um registro a
outro (DÖRNYEI, 2007).
Com isso, reconheço que há, nos dados transcritos apresentados,
perda dos registros não verbais de interação, como pausas, hesitações ou
entonação; mas que o leitor dos resultados desta pesquisa ganha em
possibilidades do entendimento do registro apresentado. Mesmo com essas
transformações dos dados gerados, é possível realizar a análise das
representações, objetivo desta pesquisa.

Primeira etapa de análise: nova sistematização dos dados


A partir do material textual anotado das roteirizações e transcrições,
foi feita uma análise inicial. Os grifos, comentários e palavras-chave permitiram
39

identificar temáticas comuns nas entrevistas. Isso me levou a elaborar novas


perguntas que o material das entrevistas e do grupo focal parecia responder,
as quais não correspondiam às perguntas do roteiro de entrevistas.
Assim, nessa nova etapa de triagem dos dados, elaborei uma lista
de perguntas e, para cada uma delas, incluí os diferentes trechos das
entrevistas, com a clara identificação do sujeito. Com isso, os dados passaram
a estar organizados não por participante ou por momento em que haviam sido
gerados (entrevista/grupo focal), mas por temáticas. Em alguns casos, foi
necessário voltar à gravação do material e transcrever trechos adicionais – o
que não supôs um problema, dada a metodologia utilizada na roteirização.
Essa nova organização permitiu ter uma visão de conjunto muito
melhor em relação aos conteúdos das representações e seus pontos comuns
para posterior análise do material.
Como explica Dörnyei (2007), na pesquisa qualitativa é necessário
encontrar processos e estruturas de análise que possam conduzir o
pesquisador a novos insights para resolução de seus problemas de pesquisa, e
esses procedimentos me permitiram trilhar esse caminho.

Assim, o desafio básico da análise de dados qualitativa é adquirir


uma “flexibilidade rigorosa” ou uma “astúcia disciplinada” ao aplicar
procedimentos e métodos que sejam propícios a gerar novos insights
em vez de utilizar um esquema rígido que restrinja e não permita o
surgimento de novos resultados. Os diferentes métodos de análise de
dados qualitativos diferem no modo em que tentam padronizar os
processos, tentando manter a liberdade subjetiva do pesquisador.
(DÖRNYEI, 2007, p. 245)

Segunda etapa de análise: seleção de dados com base no


levantamento teórico e bibliográfico das questões
Com meus dois conjuntos de dados textuais organizados (o primeiro,
das gravações roteirizadas e transcritas para cada entrevista e o grupo focal, e
o segundo, organizado de forma temática com base em novas perguntas
surgidas), pude voltar ao levantamento bibliográfico e às questões teóricas da
pesquisa e delinear o que deveria ser incluído no capítulo de análise de dados.
Esse processo, como pontua Dörnyei (2007), não é linear, mas
iterativo: é feito uma e outra vez, explorando caminhos diferentes e
descartando outros trilhados, até se chegar áquilo que permita argumentos,
resultados e conclusões que possam ser apresentados de modo estruturado e
40

coerente com base na literatura atual sobre a questão estudada. E, importante,


que satisfaça as inquietudes do pesquisador sobre a questão levantada.
Por último, em relação à confidencialidade e ao anonimato dos
sujeitos participantes da pesquisa, no caso de membros de uma mesma família
e de uma mesma comunidade, como o caso da APBC, os leitores dos
resultados finais não devem ser capazes de identificar os sujeitos. Para esse
propósito, altero alguns detalhes específicos para proteger as identidades dos
participantes (FLICK, 2009) e escolho um pseudônimo para me referir a eles. O
mesmo é feito em relação aos filhos dos entrevistados e crianças observadas.

1.2 Princípios epistemológicos de uma pesquisadora situada

Neste ponto, para apresentar alguns princípios epistemológicos que


nortearam a pesquisa, retomo a crônica do início. Embora esse relato não
retrate exatamente os participantes desta pesquisa, como já dito, ele ilustra,
entre outros pontos, o tipo de relação que posso ter com eles, pais, mães ou
professores de crianças de origem brasileira residentes na Catalunha: uma
relação de proximidade, construída nos espaços da Associação, mas não só, já
que se dá também em contextos informais, e, pela própria natureza da
questão, familiares.
A crônica se traduz, assim, numa declaração de intenções – ou uma
reivindicação – de que, como pesquisadora, me aproximarei de meu objeto de
estudo de maneira situada. Isso significa que fui e serei parte atuante da
realidade pesquisada e trabalhei com intenção de preparar as bases para uma
atuação crítica e intervencionista em meu lócus de pesquisa (SIGNORINI,
2008).
Essa postura não se justifica apenas por uma preferência pessoal,
mas se alinha com algumas tendências das correntes de pesquisa às quais me
filio, com destaque para a LA brasileira e a Sociolinguística catalã, e faz parte
da busca por abordar o problema de pesquisa por um ângulo que satisfaça
suas especificidades (MOITA LOPES, 2006a). Tal percurso se revelou uma
jornada interdisciplinar pela pós-modernidade – e alguns caminhos percorridos
dissolveram fronteiras também entre os gêneros textuais: dessa forma, a
41

dissertação acadêmica, a crônica, a autobiografia7 e o ensaio puderam, às


vezes, se encontrar.
Com isso, se me proponho a pensar as línguas de herança (LHs) em
sua dimensão familiar – e é no âmbito familiar que irá surgir o desejo e a
possibilidade de se transmitir8 e aprender o PLH, ou seja, as políticas
linguísticas (PLs) familiares –, devo estar atenta para o que as relações
afetivas e os aspectos emocionais de seus falantes têm a revelar.

1.2.1 Sobre a importância de um olhar para a afetividade no


PLH

Quando o PLH está presente em maior ou menor grau na vida do


bebê desde sua condição de infans – para a psicolinguística, o sujeito que não
é capaz de se posicionar ainda como sujeito por não ter feito a passagem para
a linguagem (LEMOS, 2002) –, ele acompanha a materialidade linguística que
essa criança transformará em linguagem para poder construir sua
subjetividade. Sabe-se que esse cenário, de uma exposição intermitente à LH
no núcleo da família na primeira infância, embora não seja o único possível, é
bastante comum nos casos de transmissão linguística de línguas minoritárias.
Ainda que a exposição do infans à LH não seja, de modo algum, garantia de
que a criança chegará a usar a língua de modo proficiente e a quantidade de

7
Sobre a relevância dos registros autobiográficos para compreender as questões relacionadas
às línguas em contato, processos de substituição linguística ou línguas de herança, vale
mencionar o Concurso de (Auto)biografias Linguísticas organizado, entre outros, pelo Grupo de
Estudos de Línguas Ameaçadas (Grup d’Estudi de Llengües Amenaçades, GELA) da
Universidade de Barcelona (UB), que reconhece a importância dessas narrativas, contadas por
escrito ou com a ajuda de outros suportes audiovisuais, com a intenção de criar um fundo
documental de livre acesso que possa ser utilizado em atividades como “[...] simpósios,
oficinas, atividades didáticas etc.”. (GRUP D’ESTUDI DE LLENGÜES AMENAÇADES DE LA
UNIVERSITAT DE BARCELONA, 2015). Também o grupo de pesquisa Plurilinguismos
Escolares e Aprendizagem de Línguas (Plurilingüismos Escolares y Aprendizaje de Lenguas,
PLURAL), da Faculdade de Educação da UB, inclui entre seus temas de pesquisa “Textos
reflexivos: relatos de vida linguística”. (PLURILINGÜISMOS ESCOLARES Y APRENDIZAJE
DE LENGUAS - PLURAL, 2017)
8
Faço uma distinção entre os contextos de ensino de língua em sala de aula – ensino – e
aqueles de imersão ou em que a língua se aprende num contexto de situações comunicativas
reais experimentadas a partir das necessidades colocadas pelo entorno – transmissão.
“Aprendiz” (learner, em inglês) é o termo utilizado na bibliografia para se referir àqueles que
aprendem uma LH, em oposição ao termo “aluno” (student), geralmente utilizado quando se
fala de ensino de língua estrangeira em sala de aula.
42

input recebido na LH varie caso a caso por uma série de fatores, como não
considerar as dimensões afetivas nos caminhos e percalços do PLH?
Nesse cenário, o PLH é parte da materialidade linguística em que
ocorrem as interações entre mãe, pai ou outros sujeitos desse núcleo e o bebê,
e talvez entre os próprios sujeitos, e, posteriormente, entre tais sujeitos e a
criança, e fará parte das experiências emocionais que a constituirão.
Isso, como explica Pavlenko (2005), marca uma diferença na
maneira como a emotividade pode se manifestar para os aprendizes de uma
LH, cujo aprendizado começa em casa, em “contextos naturais” que fazem com
que as palavras sejam processadas também por “canais afetivos”, num
processo verdadeiramente diferente daquele do aprendizado de uma língua
estrangeira (LE) em sala de aula, que não está necessariamente integrado a
associações emocionais:

Se os falantes são socializados numa língua em contextos naturais,


particularmente quando pequenos, a memória emocional está
envolvida no aprendizado da língua. Como resultado, tais palavras se
percebem corpóreas e emotivas, o que quer dizer que são
processadas não só por canais cognitivos, mas também pelos
afetivos, disparando associações na memória autobiográfica e
emocional, sensações físicas e respostas fisiológicas, examinadas
através de níveis de alerta autonômico. Essas palavras trazem de
volta vozes e lembranças, que remontam a carinho, alegria e afeto,
mas também podem ser recebidas como flechas disparadas por um
arco, deixando feridas que talvez nunca se curem. Por outro lado,
línguas aprendidas em contexto de sala de aula não machucam; elas
se aprendem através da memória explícita e não estão integradas a
lembranças pessoais, representações sensórias e associações
afetivas. Como resultado, as palavras dessas línguas às vezes são
percebidas como sons vazios. (PAVLENKO, 2005, p. 237-238)

Assim, pensando a LH não só como um capital linguístico


(BOURDIEU, 1982) ou um recurso comunicativo, mas como o meio e o
contexto em que experiências significativas para a constituição do sujeito são
vividas e como essas vivências em si, é preciso contextualizar os aspectos
afetivos da aprendizagem da LH numa abordagem globalizante. Para isso, a
interpretação de Dantas (1992) da teoria de Wallon (1987), para quem tanto a
linguagem como a motricidade e a sensibilidade têm um nível afetivo e outro
cognitivo indissociáveis, fornece subsídios apropriados. Na abordagem de
Wallon (1987), a afetividade é uma fase do desenvolvimento humano, a mais
arcaica, a partir da qual, aos poucos, a inteligência irá se diferenciar. O
43

desenvolvimento de ambas, no entanto, é recíproco: “a afetividade depende,


para evoluir, de conquistas realizadas no plano da inteligência, e vice-versa”
(DANTAS, 1992, p. 90).
A autora vai além ao considerar as relações indissociáveis entre
linguagem e cognição na teoria de Wallon (1987): é por meio dos vínculos
afetivos, estabelecidos tanto pela comunicação tônica entre o cuidador e o
bebê (o toque, o tom de voz) como, posteriormente, pela linguagem (primeiro
oral, depois escrita), que o desenvolvimento cognitivo da criança será
estimulado, chegando a uma “forma muito requintada de comunicação afetiva”
a ser levada em conta nas discussões relacionadas à educação. Esses pontos
ajudam a trazer a dimensão afetiva para as discussões de PLH:

Depois que a inteligência construiu a função simbólica, a


comunicação se beneficia, alargando o seu raio de ação. Ela
incorpora a linguagem em sua dimensão semântica, primeiro oral,
depois escrita. A possibilidade de nutrição afetiva por estas vias
passa a se acrescentar às anteriores, que se reduziam à
comunicação tônica: o toque e a entonação da voz. Instala-se o que
se poderia denominar de forma cognitiva de vinculação afetiva.
Pensar nesta direção leva a admitir que o ajuste fino da demanda às
competências, em educação, pode ser pensado como uma forma
muito requintada de comunicação afetiva. (DANTAS, 1992, p. 90)

Assim, refletir sobre PLH é também refletir sobre os vínculos


existentes entre pais e filhos, entre o que se erige e o que se rompe por
intermédio da língua quando brasileiros imigrados se encontram, entre o que
faz com que os cônjuges estrangeiros que não têm o português como língua
inicial9 se encantem ou se aterrem com as possibilidades de incluí-lo em seu
repertório linguístico familiar. A afetividade estará sempre em jogo nos
processos cognitivos relacionados ao aprendizado de uma LH e entra nas
regras de minha postura situada de pesquisadora como uma dimensão que
não deve ser temida ou evitada: o PLH precisa ser pensado, também, como
nutrição afetiva.

9
Por gerar mal-entendidos constantes quando utilizada em discussões de PLH, “língua
materna” é uma expressão que prefiro evitar. Nesse caso, ao me referir à língua falada pelos
pais de um falante de língua de herança, prefiro a terminologia adotada por Fukuda (2011):
língua inicial.
44

1.2.2 A afetividade como parte da metodologia

Considerando o que Dörnyei (2007) menciona como características


que justifiquem uma determinada abordagem de pesquisa (quantitativa,
qualitativa ou de métodos mistos), o que eu desejava pesquisar parecia estar
mais bem contemplado por uma abordagem qualitativa. No caso desta
pesquisa, a escolha de uma metodologia predominantemente qualitativa,
utilizando os argumentos de Dörnyei (2007), se justifica porque: i) o PLH é um
campo recente de pesquisa e conhecimento, e as questões pesquisadas
podem ser consideradas de caráter exploratório; ii) o cenário estudado, como
exemplificado na introdução, é complexo e heterogêneo; e iii) no cenário atual
ainda é necessário aprofundar o entendimento das questões relacionadas ao
PLH antes de partir para as generalizações resultantes das pesquisas
quantitativas.
Sendo o tema algo novo e tendo a afetividade como um aspecto que
deve estar em evidência, esta pesquisa também se caracteriza por um
desenho emergente, no sentido que

nenhum aspecto do desenho da pesquisa está estritamente


preestabelecido, os quais permanecem abertos e fluidos de modo a
que novos detalhes ou aberturas possam emergir durante o processo
de investigação. Essa flexibilidade se aplica inclusive às perguntas de
pesquisa, que podem evoluir, mudar ou ser ajustadas ao longo do
estudo. (DÖRNYEI, 2007, p. 37)

De fato, as perguntas e os objetivos de pesquisa foram revistos e


alterados algumas vezes ao longo do processo, conforme a análise de dados
avançava. Porém, o caráter emergente do desenho de pesquisa também se
traduz em, desde o início, tentar encontrar uma abordagem que permitisse,
para estas novas questões, um novo olhar capaz de trazer a afetividade para o
primeiro plano inclusive na maneira de pesquisá-la. Ou, como diria Moita
Lopes, talvez seja preciso desafiar

o chamado conhecimento científico tradicional e sua ignorância em


relação às práticas sociais vividas pelas pessoas de carne e osso no
dia-a-dia, com seus conhecimentos entendidos como senso comum
pela ciência positivista e moderna (MOITA LOPES, 2006a, p. 87-88),
45

e propor algumas inovações na maneira como o pesquisador pode se situar


para estudar a realidade do PLH. Assim, para meus propósitos, uma
abordagem com um ponto de partida intimista, como minha história pessoal,
me parece mais apropriada para me aproximar do PLH: de suas formas
cognitivas de vinculação afetiva, das implicações que elas podem ter nos
processos de identificação e na proficiência que se desenvolverá (ou não) na e
pela LH.
Desse modo, a situação que narrei na crônica serve para
exemplificar como, num entorno muito familiar, posso me posicionar num lugar
bastante próximo de meus participantes na pesquisa e reduzir as distâncias
entre pesquisadora e sujeitos pesquisados: os muros que separam as
fronteiras entre os papéis de uma e de outro continuam aí, mas o passo entre o
lado de cá e de lá é mais transitável. Além de pesquisadora, posiciono-me
também como mãe de crianças de origem brasileira, como alguém que
compartilha uma rede de relações sociais com os participantes ou que, como
eles, passou pelos deslocamentos da imigração e construiu um relacionamento
sentimental com um companheiro de outra língua e cultura.
Acredito que o fato de me posicionar assim gerou certos movimentos
de empatia que me permitiram, como a pesquisadora que os sujeitos eram
cientes que sou, chegar a um lugar privilegiado no processo de geração de
dados. Esse posicionamento, feito de modo consciente e declarado, pode ser
visto como uma técnica, que chamarei de posicionamento íntimo, e consiste,
por um lado, em buscar e cultivar afinidades com os participantes para que
surja um vínculo de confiança e identificação, e, por outro, em utilizar vínculos
emocionais que existiam anteriormente para a geração de determinados dados.
A esse respeito, vale dizer que casos de linguistas que assumem um
posicionamento íntimo para gerar seus dados, por exemplo, realizando estudos
sobre seus filhos, não são uma novidade na literatura – há numerosos
exemplos mencionados por Duff (2012), Deuchar e Quay (2001) e Way e
Bloomer (2013), os quais podem remontar a mais de um século e se estendem
até épocas atuais. A eles, pode-se somar o trabalho de Cruz-Ferreira (2006), o
qual se insere no universo do PLH, sobre aquisição de português lusitano10 por

10
Ressalto que os contextos de PLH não são exclusivamente brasileiros, mas dizem respeito
também aos relacionados às comunidades oriundas de outras regiões de língua portuguesa
46

três crianças trilíngues, falantes também de sueco e inglês, filhos da


pesquisadora.
Assim, o posicionamento íntimo costuma estar acompanhado da
observação participante, uma abordagem em que o pesquisador interage com
seus sujeitos de pesquisa. É o caso também da pesquisa que realizei. Caberia
questionar se nos estudos dessa natureza, em que há uma relação de
proximidade entre pesquisador e sujeitos, a escolha por um olhar subjetivo não
seria uma opção metodológica lógica ou comum – na pesquisa positivista, não
é. A forma de se gerar os dados, em outras correntes em voga, como as
positivistas, ainda prega pela objetividade, por um maior distanciamento entre
pesquisador e sujeito de pesquisa, pela não intervenção do pesquisador nos
contextos observados – algo que talvez seja utópico, mas continua sendo o
referente para o modo como se entende que o conhecimento deve ser gerado
(e considerado válido) em certos contextos, diferentemente do que proponho.
Assumo, assim, abertamente o posicionamento íntimo para a
geração de dados. Isso, no entanto, não implica que, no momento da análise,
não haja uma distância maior do contexto de pesquisa e dos vínculos ali
surgidos – algo que parece ser necessário para categorizar a informação e
tentar transformá-la em conhecimento.

1.2.3 Limitações da pesquisa qualitativa e a subjetividade da


pesquisadora

Entre as limitações da pesquisa qualitativa mencionadas por Dörnyei


(2007), as quais se aplicam também a este estudo, pode-se mencionar que o
tamanho da amostra é pequeno, e, por isso, é difícil determinar se quaisquer
conclusões dele derivadas podem ser aplicadas a grupos mais amplos ou se
dizem respeito a casos idiossincráticos em particular – aspectos que tenho
presentes em minha análise.
Outra delas, mencionada não só por Dörnyei (2007), diz respeito ao
papel do pesquisador: a qualidade de sua análise – subjetiva – depende da

deslocadas pelas migrações. No entanto, para efeitos de minha pesquisa, delimito o universo
do PLH dentro das comunidades brasileiras emigradas. Essa questão é retomada no
Capítulo 2.
47

competência do pesquisador para desenvolvê-la, e acadêmicos cujas


preferências metodológicas se inclinam por metodologias quantitativas dirão
que tal análise não é objetiva o suficiente.
A esse respeito, mais do que considerar a subjetividade do
pesquisador como uma “limitação”, esta deve ser vista como uma característica
inerente à pesquisa qualitativa. Remeto, assim, a conceitos como o de Flick
(2009), para quem, na pesquisa qualitativa, essa subjetividade é parte do
processo de pesquisa e se transforma em dados:

A subjetividade do pesquisador, bem como daqueles que estão sendo


estudados, tornam-se parte do processo de pesquisa. As reflexões
dos pesquisadores sobre suas próprias atitudes e observações em
campo, suas impressões, irritações, sentimentos, etc. tornam-se
dados em si mesmos, constituindo parte da interpretação e são,
portanto, documentadas em diários de pesquisa. (FLICK, 2009, p. 25)

Dessa forma, deixo claro que minha subjetividade como


pesquisadora, a qual reivindico de forma explícita ao longo da pesquisa, da
qual depende a análise de dados e que está permeada pelos vínculos que
estabeleço com os participantes, é parte de uma opção metodológica. Não há
outra forma de realizar pesquisa qualitativa, pois, como ressalta Eisner (1998),
é somente por esse “eu”-pesquisador que a observação é possível: o “eu” é o
instrumento que se prende à situação e a faz ter sentido, e sem essa presença
não haveria observação, pesquisa ou interpretação.
Ao refletir sobre o resultado da análise qualitativa, deve-se ainda
lembrar a influência da história pessoal e do posicionamento ideológico do
pesquisador no momento em que os dados considerados relevantes são
selecionados. A existência dessa figura, conforme menciona Maher (1996),
também intervém no tipo de dados gerados – o que me leva a crer que assumir
um posicionamento íntimo nada mais é que dar visibilidade a práticas já mais
que correntes em pesquisa qualitativa:

[...] o pesquisador não registra, simplesmente, o que as pessoas


dizem. Nós somos agentes cruciais na micropolítica da elicitação de
dados porque nossa própria presença determina, mesmo que em
parte, o que os sujeitos pesquisados nos dizem. Além disso, nossa
seleção do que é relevante para análise, assim como esta em si,
estão contaminadas pela nossa história pessoal, por nosso
posicionamento ideológico. (MAHER, 1996, p. 61)
48

Assim, talvez trazer para o primeiro plano a afetividade, a qual só


pode ser expressa por visões subjetivas, incluí-la no discurso científico e deixar
que ela acompanhe a pesquisadora e os participantes da pesquisa do começo
ao fim (e antes do início e além do fim) nada mais seja que dar espaço e
visibilidade para algo que sempre esteve ali.

1.2.4 Vínculos e militância na pesquisa situada

Se, como Maher (1996) menciona, a história pessoal e o


posicionamento ideológico são indissociáveis da análise na pesquisa
qualitativa, acredito ser relevante esclarecer alguns paralelos entre os vínculos
e formas de militância que podem ser percebidos nas páginas que seguem.
Para evitar que fiquem apenas nas entrelinhas, vamos a eles.
Criar um vínculo, seja com os participantes de uma pesquisa ou com
quem for, requer tempo. Em meu caso, meu posicionamento íntimo com os
sócios da APBC começou a ser gestado em 2009. Ele remonta ao surgimento
da Associação, quando fui um dos quatro sócios fundadores, além de
Secretária da primeira gestão, entre 2009 e 2011, ano em que me afastei
devido à minha mudança para o Brasil. Entre março de 2015 e março de 2017,
já de volta a Barcelona, voltei a atuar de forma ativa, tendo ocupado o cargo de
Presidente11. Com alguns de meus participantes, tenho um relacionamento,
desde essa época, de amizade. De outros, senti que me aproximei e estreitei
laços de afeição, confiança ou apoio mútuo depois de realizar as entrevistas
para esta investigação – um bônus não previsto em nenhum guia de campo,
mas certeiro e gratificante. Reconheço que a boa qualidade dessas relações
humanas e a confiança que essas pessoas depositaram em mim e nas
intenções deste trabalho me motivaram constantemente a seguir adiante com
meus propósitos acadêmicos.
Dessa forma, deixo claro que, anterior a esta pesquisa, há, além dos
vínculos afetivos que conduziram a meu posicionamento íntimo, uma militância
pela promoção do PLH. Meu envolvimento com a causa surge porque me
tornei mãe – de Mateo, em 2006, e de Ana Sofia, em 2009. Para mim, a

11
Das 15 entrevistas individuais da pesquisa, 13 foram realizadas antes de que eu ocupasse o
cargo de Presidente na instituição.
49

gravidez de Mateo foi o início do caminho que eu percorreria na APBC e


também academicamente, para este doutorado, pois foi a partir daí que passei
a me interessar, com uma curiosidade insaciável, pelas maneiras de ensinar
um idioma minoritário, o português, aos filhos dentro de casa.
Verdade seja dita: a maternidade me trouxe à Linguística Aplicada,
me inseriu em meu tema de pesquisa (antes que eu soubesse que ele se
tornaria tema de pesquisa) e me colocou, como pesquisadora, numa posição
privilegiada na comunidade a ser estudada. É assim. Um caminho que se
alinha sem esforço a algumas tendências atuais nas pesquisas de
Sociolinguística e LA, as quais, como menciona Rajagopalan (2012),
consideram a militância como algo inerente ao trabalho do pesquisador:

Já é hora de [...] aceitar o fato de que alguma forma de militância na


causa daqueles cujas vidas pesquisamos não é algo que talvez
possamos abraçar depois de concluir nossos trabalhos como
pesquisadores, mas algo que deve ser visto como uma parte e o
próprio terreno de nosso trabalho. (RAJAGOPALAN, 2012, p. 86)

O fato de eu mencionar meu envolvimento com uma militância a


favor do PLH, isoladamente, não deveria ser digno de nota e talvez bastasse
para contextualizar as questões ideológicas trazidas por mim como
pesquisadora. No entanto, com o avançar da pesquisa, ficou claro que esse
comentário sobre minha situação pessoal não era um caso individual, mas
representava algo que ia mais além. No caso, o PLH, embora seja um campo
novo em termos acadêmicos, avança a passos rápidos, tendo parte
considerável dos estudos e práticas em torno dele realizadas a partir do
interesse de mulheres que se aproximaram academicamente do tema
motivadas pela maternidade (por exemplo BORUCHOWSKI, 2015; DESTRO,
2015; FALKOWSKI, 2015; HEATH, 2015; LICO, 2015a e 2015b; MORONI,
2015; PIIPO, 2015; STORVIK, 2015; entre outras).
Conforme vou conhecendo a história das iniciativas que promovem o
PLH pelo mundo, grupos da sociedade civil organizados para oferecer aulas ou
encontros mais estruturados com intenção de proporcionar momentos formais
de aprendizagem, já não me surpreendo ao saber que, na origem de tudo, há
uma mãe de brasileirinho que desencadeou esse movimento maior – motivada
50

pelo que ela mesma desejava ensinar ao próprio filho.12 Não posso deixar de
me perguntar por que a história não é outra: por que, com a proliferação das
franquias de ensino de idiomas no Brasil, não predominam as franquias para o
ensino de PLH no exterior, e sim majoritariamente iniciativas da sociedade
civil? Por que o ensino dessa língua de herança é protagonizado por mães, e
não por educadores e empresários, por exemplo?
Observo algo parecido quando me debruço sobre o conhecimento
acadêmico que vem sendo produzido em torno do PLH, já que parte importante
do que tem sido dito e escrito sobre o tema é produzido por mulheres, uma
parte das quais se aproximou do tema, como já dito, graças à maternidade. Sei
disso não pelo que li em seus artigos ou capítulos de livros publicados, mas
porque, nas oportunidades que tive de conhecê-las pessoalmente, o PLH, a
academia e a vida são uma só e fala-se de filhos como fala-se de pesquisas.
Evidentemente, nem todas têm filhos e a maternidade ou o gênero
não são em si fatores de mérito ou de exclusão de uma pessoa ou pesquisador
das questões de PLH. Ainda assim, as que não têm filhos acabam falando dos
filhos dos outros, pois costumam ter vocação declarada de educadora e ser
professoras de PLH, estando acostumadas ao universo dessas crianças, suas
famílias, suas mães e pais. E me resulta impossível fechar os olhos a algo que
insisto em chamar de protagonismo feminino, a como o PLH pode redirecionar
identitariamente a trajetória dessas mulheres. Para um melhor entendimento
disso tudo, precisamos ter a sensibilidade de afinar nosso olhar.

1.2.5 Sobre a necessidade de um olhar feminino e feminista


para as questões de PLH

Para tentar exemplificar o tipo de reposicionamento que se faz


necessário, gostaria de relatar o ocorrido no curso de capacitação em PLH
promovido pelo Programa de Difusão de Língua e Cultura (PDLC), organizado
pelo Consulado Geral de Madri, na Espanha, em 2014. Este curso foi oferecido

12
Como exemplo, menciono o trabalho de Luzia Tanaka, no Projeto Construir/ARTEL – Oficina
Arte-Educação e Letramento em Osaka, Japão; o de Andréa Menescal, no Mala de Herança,
em Munique, Alemanha; o de Ana Lúcia Lico, na Associação Brasileira de Cultura e Educação
(ABRACE), na Virginia, EUA; o de Shirley Caldeira Nascimento, do Clube dos Canarinhos, em
Nantes, França; o de Magaly Dias de Quadros, d’A Hora do Conto em Dubai, nos Emirados
Árabes, entre outros.
51

de forma gratuita a um público-alvo de “professores de PLH” da região de


Madri e contou com um período prévio de capacitação on-line, com a leitura de
textos e exercícios. A ele, seguiram-se três dias de capacitação presencial em
Madri, de 21 a 23 de novembro do mesmo ano, conduzida pela professora
Maria Luísa Ortiz Álvarez. A capacitação presencial teve 17 horas de duração e
deveria cobrir diferentes tópicos:

Dia 21, de 16:00 à 20:00 horas, Abertura e Módulo I;


Dia 22, de 09:30 à 14:00 horas, Módulo II;
Dia 22, de 15:00 à 19:30 horas, Módulo III e;
Dia 23, de 10:00 à 14:00 horas, Modulo IV. Avaliações, Encerramento
& Coquetel de Confraternização.

Módulo I: Abertura: apresentação do curso e das/os participantes;


- O contexto de ensino de português como língua de herança (POLH):
características e especificidades;
- O português brasileiro e as suas relações com a cultura e a
identidade nacional;
- Relato da experiência dos professores participantes do curso.
Módulo II:
- Atividade: registro por escrito da aula típica dos professores;
- Competências e abordagem de ensino do professor de POLH;
- Perspectivas interculturais para o ensino de POLH;
- Análise da abordagem de ensinar dos professores;
- Leitura, escrita, oralidade e análise linguística no ensino de POLH;
Módulo III:
- Planejamento de cursos para o ensino de POLH.
- Elaboração de materiais didáticos para o ensino de POLH.
- Novas tecnologias para o planejamento de cursos e a elaboração de
materiais para o ensino de POLH (aspectos introdutórios);
Módulo IV:
- A avaliação de aprendizagem no processo de ensino de POLH.
- Avaliação da capacitação pela professora formadora e por toda a
equipe.
- Avaliação escrita da capacitação, por meio de formulário consular.
- Encerramento e Coquetel. (PDLC - PROGRAMA DE DIFUSÃO DE
LÍNGUA E CULTURA, 2014)

No entanto, a rodada de apresentação dos participantes, feita com


as carteiras em círculo, com todo o grupo de 42 pessoas, em que cada um
explicava aos demais sua aproximação e atuação com o PLH, prevista como
parte do Módulo I, se estendeu também por todo o tempo destinado ao Módulo
II e parte do tempo destinado ao Módulo III. A capacitação passou a estar
protagonizada pelas histórias de vida dos presentes, marcadas pela imigração
– própria ou dos pais, pois havia no curso não só brasileiros emigrados, que
52

tinham o português como língua inicial, mas alguns falantes de herança 13 e de


português como segunda língua –, histórias familiares e, quase sempre,
histórias de mães e a educação de seus filhos, da (não) relação dos filhos com
a língua dos pais. Aqueles que eram exclusivamente educadores de PLH, que
não tinham filhos, que se dedicavam profissionalmente à educação e não
estavam ali por motivos majoritariamente pessoais, de sua história familiar,
afetiva, de vida, de maternagem, eram minoria. Outra minoria era a masculina:
havia apenas dois homens naquele curso. Em resumo: a programação foi
completamente alterada quando a formadora se deu conta de que os aspectos
autobiográficos se tornaram centrais às questões do PLH.
O curso falhou em seus propósitos? Não. O curso se adaptou à
realidade que se apresentou. Provavelmente, o perfil dos participantes não era
o esperado para um curso de capacitação pedagógica. Naquele momento,
mais importante que saber “analisar a abordagem de ensinar dos professores”
ou como “planejar e elaborar materiais para o ensino de PLH”, visto que a
experiência formal, em sala de aula, dos participantes com o ensino de PLH
era pouca e na maioria dos casos inexistente, foi o processo de identificação
de cada um com as histórias e experiências de vida compartilhadas.
Pergunto-me: se as histórias de vida, os relatos de maternagem
permeados de experiências emocionais e o que acontece em casa sob o olhar
atento das mães se mostram tão centrais quando se trata de discutir a
capacitação de “professores de PLH”, por que esse contexto não é
devidamente valorizado e houve a preocupação de incluir no programa inicial
deste curso de capacitação um “registro de aula típica” ou discussões sobre a
“abordagem de ensino dos professores” – se, mais que professores, os
participantes eram mães? Episódios como esse me fazem questionar se o que
está na pauta das discussões, pesquisas e abordagens da educação para PLH
realmente dá conta do que deveriam ser suas questões centrais. Essa
percepção parece estar amadurecendo, já que, em um momento posterior ao
curso mencionado, a própria formadora registrou o protagonismo das mães

13
“Falante de herança”, assim como “aprendiz de herança”, são termos bastante utilizados na
área de PLH. Não se referem a “falar” ou “aprender” uma “herança”, mas são, na verdade,
expressões em que há elipse e correspondem a “falante de língua de herança” e “aprendiz de
língua de herança”. Observe-se, ainda, que nem todos os “aprendizes de língua de herança”
falam a língua em questão – aspecto que será aprofundado no Capítulo 2.
53

numa obra que dá bastante espaço ao PLH ao discutir os diferentes contextos


de língua portuguesa no mundo (ORTIZ ÁLVARES, 2016b).
Relaciono essa possível defasagem entre o olhar que se lança sobre
o PLH (representado no programa desse curso como uma prática pedagógica
ampla e estabelecida, protagonizada por professores, o que, ao menos ao dia
de hoje, ele não é) e aquilo que acredito que ele realmente seja (trajetórias de
vida percorridas dentro de casa nos vínculos entre pais e filhos) em parte a
uma visão de mundo falocêntrica. Uma visão moldada pelo olhar do homem, do
masculino, tradicionalmente voltado ao espaço público, em vez do íntimo e do
privado; a construções sociais que historicamente atribuem ao universo
masculino as questões racionais e de importância, associando às mulheres o
universo do sentimental14, o que, portanto, como tudo aquilo atribuído ao
feminino, é visto como menos importante e menos digno de ser levado a sério.
Estas questões, sobre as quais não me estenderei, também permeiam a
maneira como tem se desenvolvido a academia e influem sobre aquilo que até
recentemente era pesquisável.
“Feminino” e “masculino”, no entanto, numa época de identidades
fragmentadas, heterogêneas, contraditórias e fluidas – pós-modernas, enfim,
como descrito por Bauman (2005) ou Hall (2011) –, devem ser vistos apenas
como matrizes de gênero, às quais homens e mulheres – seja nas construções
sociais dos sujeitos transgêneros, seja pelo sexo biológico de nascimento em
concordância com a identidade de gênero dos cisgêneros – podem se alinhar
com bastante fluidez nos tempos que correm: há mulheres masculinas,
masculinizadas ou machistas, há homens femininos, afeminados ou feministas;
há sujeitos “intersex”, que não são estritamente nem homem, nem mulher.
Mas, infelizmente, um homem de saia (ou seja, que se aproxima visual e
esteticamente do feminino) ainda costuma ser visto como “ridículo”, enquanto
uma mulher de calça (prenda que há não muito tempo era exclusivamente do
vestuário masculino) é apenas uma mulher de calça; uma mulher com um
14
Por exemplo, como registra Engel (2015, p. 332): “Uma das imagens mais fortemente
apropriadas, redefinidas e disseminadas pelo século XIX ocidental é aquela que estabelece
uma associação profundamente íntima entre a mulher e a natureza, opondo-a ao homem
identificado à cultura. [...] tal imagem seria revigorada a partir das ‘descobertas da medicina e
da biologia, que ratificavam cientificamente a dicotomia: homens, cérebro, inteligência, razão
lúcida, capacidade de decisão versus mulheres, coração, sensibilidade, sentimentos’.” – cabe
lembrar que tais “descobertas” provinham de conhecimento “científico” produzido
majoritariamente por homens. Outros exemplos são fornecidos na obra de Del Priore (2015).
54

emprego (trabalhar fora, recordemos, era uma atividade exclusivamente


masculina, mulheres de bem cuidavam de seus lares) é apenas uma mulher
trabalhadora (com salário inferior ao de homens que executam a mesma
função, vale recordar), um homem que cuida da casa é visto como alguém que
fracassou e não foi capaz de ter outras opções de vida. A mulher, quando se
alinha aos padrões masculinos, está na ou mais perto da norma; já o homem,
em posição contrária, não: é frágil, é débil, é de se ter vergonha.
Precisamos, portanto, rever sobre o que colocar o olhar ao pensar e
estudar as questões de PLH. Em vez do apagamento da esfera doméstica e
afetiva das LHs, em que se gestam as formas cognitivas de vinculação afetiva,
é preciso ver esse cenário como uma das muitas esferas de protagonismo
feminino. E precisamos de mais homens nessa discussão: só quando o
feminino deixar de ser visto como aquilo que é frágil, débil e menos importante,
um olhar afetivo sobre as questões do PLH terá alcançado a necessária
legitimidade em discussões acadêmicas. Para isso, falta que um número
suficiente de homens reivindique seu protagonismo nos espaços de
maternagem – para transformá-los também em espaços de “paternagem”, para
fazer dos cuidados aos filhos na primeira infância parte daquilo que uma
parcela deles deseja reivindicar nas novas formas possíveis de viver sua
masculinidade –, tornando-o algo “normal”, ou dentro da norma, porque se
insere nos discursos da masculinidade.
Se o feminino e o masculino são entendidos dentro de uma
interpretação pós-moderna, os paradigmas de fronteiras fluidas e identidades
fragmentadas, heterogêneas e contraditórias (BAUMAN, 2005; HALL, 2011)
acompanham não só as representações dos sujeitos que pretendo retratar,
mas também meu posicionamento como pesquisadora. Assumo, assim, a
dissolução de algumas outras fronteiras: a que separa minha vida pessoal e o
campo, a que há entre a maternidade e a vida acadêmica, a dos espaços
públicos e privados, domésticos e profissionais.
Esta ótica feminina e feminista de fazer pesquisa, que propõe a
dissolução das dualidades entre sujeito x objeto, racional x emocional, abstrato
x concreto e quantitativo x qualitativo, propondo alternativas à tradição
positivista, alinhando-se a paradigmas pós-modernos e contestando uma
maneira vista como patriarcal de se fazer ciência e gerar conhecimento foi
55

proposta já há mais de uma década (SPRAGUE e ZIMMERMAN, 2004), e


espero que possa ser reivindicada por outros pesquisadores e pesquisadoras –
sobretudo por aquelas que, desejando chegar a dados dessa natureza,
descubram, contrariando o status quo, que ser mulher e ser mãe pode ser uma
vantagem.
Assim, considero que esta pesquisa, em sua estrutura e
conceitualmente, se insere nos discursos da pós-modernidade, numa tradição
sociológica feminista. E desejo que possa trazer alguma contribuição para
essas discussões.

1.3 O último a sair que apague a luz

Depois de uma festa, antes de ir para casa, é preciso arrumar a


bagunça e “dar aquela varrida e limpada” no salão para que outros encontros
possam acontecer. Embora eu não tenha participado desse momento no dia do
aniversário de Nico, me vi impelida a limpar, catalogar e organizar o que vi,
ouvi e registrei nesse dia, e me vejo encorajada a fazer algumas colocações
antes de poder apagar a luz e me retirar com tranquilidade – se é que existe
tranquilidade em ambientes superdiversos, translinguísticos e afetivos, como
está claro que esse encontro foi.
A superdiversidade se caracteriza por três fatores: mobilidade,
complexidade e imprevisibilidade (BLOMMAERT, 2013), os quais, embora se
expressem também nas escolhas linguísticas, não se limitam unicamente a
elas. Devo acrescentar que a superdiversidade deve ser vista como um
fenômeno majoritariamente urbano, para onde as migrações convergem, e
explorarei um pouco mais as relações entre os cenários urbanos e as LHs no
Capítulo 2.
Na situação relatada na crônica da introdução, é fácil associar o
conceito de mobilidade ao das migrações e deslocamentos geográficos pelos
quais as pessoas retratadas passaram (ou passarão) ao longo de suas vidas.
Havia exemplos representativos das migrações internas da Europa, na zona do
Euro, como o caso de italianos e franceses, mas também do leste europeu
(russos) e de latino-americanos (brasileiros e equatorianos). Embora esse
56

fosse, sim, um ambiente de diversidade nesse sentido, que sugere integração


cultural, não se pode deixar de notar que alguns dos grupos de imigrantes mais
numerosos da cidade de Barcelona não estavam representados ali, como
paquistaneses, marroquinos ou chineses (BARCELONA, 2015). Faz-se
necessário, ao pensar um cenário ou contexto de superdiversidade, ver que tão
importante quanto os elementos que a constituem são os que não fazem parte
dela: mesmo quando há mescla e integração, há e haverá excluídos. Pensar
em por que esses grupos participam ou não de certos contextos sociais é
esmiuçar os jogos de poder e as políticas públicas e migratórias que definem
quem está mais próximo do centro ou da periferia nesses espaços urbanos –
entendendo “centro” e “periferia” não como conceitos geográficos, mas como a
participação e o acesso a espaços de cidadania e inclusão social, passíveis
também de sofrer deslocamentos.
Por outro lado, a mobilidade, no contexto da superdiversidade, não
se restringe apenas aos deslocamentos espaciais. É possível apontar
deslocamentos nos papéis sociais tradicionalmente representados: as famílias
que descrevi não seguem necessariamente o modelo “casal-com-filhos” e, em
alguns casos, embora correspondam a esse modelo, optaram conscientemente
por não formalizar o matrimônio, não estando casados juridicamente.
Precisamos ser conscientes da mobilidade cada vez maior nas estruturas
familiares, que passam por deslocamentos quando o casal decide se separar e,
eventualmente, quando tais adultos com filhos iniciam um novo
relacionamento.
Também vivemos deslocamentos no modo como os adultos
exercem o papel de cuidadores das crianças e em sua relação com a
maternagem. Já não é apenas a mãe, ou o pai e a mãe, ou os parentes dos
dois, que desempenham esse papel. Pode-se observar como os novos
companheiros sentimentais do pai ou da mãe separados (e não viúvos) se
posicionam como um referente adicional na vida das crianças, sem substituir as
figuras paterna e materna, e também a abertura dos novos companheiros para
compartilhar as responsabilidades com alguém que já traz filhos de
relacionamentos anteriores. Se a esses deslocamentos de papéis sociais se
somam os geográficos, aumentamos o fator de complexidade.
57

Falando em distâncias, línguas e filhos, nos ambientes


superdiversos, quando há casais separados, residentes em países diferentes,
os filhos podem estar muito distantes geograficamente (e linguística e
culturalmente) de um de seus progenitores. Pode acontecer também de os
acordos entre o pai e a mãe não terminarem bem. Nesse caso o progenitor
estrangeiro pode, por disposições legais, ser impedido de deixar o país ou de
levar o filho de visita a seu país de origem. Estas são consequências da
migração que repercutem nas histórias familiares e no pano de fundo da
aquisição de uma língua de herança, as quais devem ser mencionadas e
trazidas à luz como facetas não tão agradáveis da complexidade e
imprevisibilidade que ocorrem em cenários superdiversos.
Por experiências assim, os sons da LH podem se tornar cortantes
como um punhal, ser recebidos como flechas e causar feridas que nunca se
curam (PAVLENKO, 2005). Pavlenko (2005), aliás, reconhece as atitudes
linguísticas ou a motivação como variáveis afetivas a serem consideradas nos
resultados da aprendizagem de uma segunda língua. Aqui, por extensão,
reconheço as variáveis afetivas como parte desse cenário linguisticamente
superdiverso, sem esquecer do impacto da mobilidade geográfica – as
experiências migratórias – nessas vivências afetivas. Como relata Pavlenko
(2005) ao comentar os casos de judeus alemães imigrados para os EUA
durante a II Guerra Mundial, alguns dos quais sofreram perseguições e, uma
vez neste novo país, se recusaram a continuar falando alemão, deixar para trás
uma língua pode ser também uma forma de fechar a porta para um passado
que não se deseja recordar – uma postura que pode partir dos adultos em
cujas mãos está a decisão de transmitir (ou não) uma LH aos filhos. Faço
minhas suas palavras: “Não é de surpreender, portanto, que as emoções
influenciem tanto as políticas linguísticas como escolhas linguísticas
individuais” (PAVLENKO, 2005, p. 193).
Com isso em mente, ao analisar as motivações para migrar, vejo
que também há diversidade. Há quem migre por questões econômicas, em
busca de empregos e condições de vida melhor; há os que o façam com
propósitos acadêmicos, relacionados a estudos, geralmente de pós-graduação
(ver Capítulo 4); há migrantes por amor (BODOQUE, DJURDJEVIC, et al.,
2013).
58

Outro fator de mobilidade pode ser visto na diversidade de línguas


em uso. Na cena descrita, os falantes se deslocam entre uma e outra, deixando
claros os critérios de cada escolha e a função de cada língua. As crianças
usam sua língua de herança quase exclusivamente com os pais (mas não
necessariamente com os irmãos), escolhendo o castelhano (e não o catalão)
como língua para se relacionar com o grupo (do qual os irmãos também são
parte) – o que não é um fenômeno casual, mas está relacionado com o valor
que os estrangeiros (os pais dessas crianças) atribuem ao castelhano e ao
catalão e ao esforço que dedicam a aprender uma e outra, como meus dados
também indicaram. E volto a pensar em um de meus questionamentos
recorrentes: se a LH é a língua que as crianças usam para se comunicar com
os pais, talvez também com os irmãos, não seria necessário pensá-la não só
como produção externa, da boca pra fora, mas no que internamente, na
subjetividade e no emocional desses sujeitos-falantes, essa língua significa?
No universo da linguagem, o que a LH representa como “forma cognitiva de
vinculação afetiva” (DANTAS, 1992, p. 90)?
Nessa situação, pude observar como, embora a competência em
castelhano de Ivan não fosse necessariamente muito alta, o fato de que ele
conhecesse os códigos de conduta do contexto “festa de aniversário infantil”
fez com que ele interagisse com desenvoltura, por exemplo participando de
brincadeiras com as crianças. Ou seja: nos contextos translinguísticos, é
possível haver integração mesmo quando os recursos linguísticos são
limitados, ou, como explica Canagarajah:

O rótulo translinguístico destaca dois conceitos-chave significativos


para uma mudança de paradigma. Primeiro, a comunicação
transcende cada língua individualmente. Segundo, a comunicação
transcende as palavras e envolve diversos recursos semióticos e
15
reconhecimentos do meio . (CANAGARAJAH, 2013, p. 6)

Podemos ainda pensar que as informações proporcionadas pelo


contexto são translinguísticas e permitem aos presentes, que não conhecem
todas as línguas em uso, estar suficientemente à vontade com essas
conversas em línguas que não entendem para que cada um possa utilizar a

15
No original, “reconhecimento do meio” = “ecological affordances”. “Affordance”, traduzido por
“reconhecimento”, é a qualidade de um objeto que permite ao indivíduo identificar sua
funcionalidade sem a necessidade de prévia explicação.
59

língua que prefere em cada situação. Por exemplo, como os presentes tinham
filhos, ao serem conhecedores da natureza da comunicação entre pais e filhos
– uma chamada de atenção, um alerta, uma observação ou o que for –,
puderam não se sentir desconfortáveis ao ver outros pais usando a língua
familiar com os filhos, pois conhecem ou imaginam do que podem estar
falando. Ou que, no caso dos pais que também usam uma língua familiar, os
mesmo gostariam de se sentir à vontade para usá-la com seus filhos, tendo
uma atitude de respeito quando outras famílias a usam. Outra possibilidade é
pensar que, como todos vivem numa sociedade que assegura direitos
linguísticos a uma segunda língua, o catalão, além do castelhano, reprimir ou
censurar o uso de uma língua minoritária não é socialmente bem visto ou
aceitável.
Em todo caso, a cena descrita é complexa, e, embora tais cenários
possam ser pensados e analisados a partir da teoria dos sistemas dinâmicos
ou da teoria do caos, talvez o mais importante seja ter a complexidade “como
uma perspectiva, não como um vocabulário compulsório ou modelo teórico”, a
qual proporciona “liberdade para imaginar”, em vez de uma obrigação de “se
submeter ao que há”, pois, metodologicamente, devemos aceitar a
“necessidade de novas imagens, metáforas e noções que cubram
adequadamente o que observamos” (BLOMMAERT, 2013, p. 8-10).
Reforçando os postulados de Blommaert encontra-se a teoria complèxica
(MASSIP e BASTARDAS, 2015), uma abordagem transdisciplinar que pode ser
aplicada à linguagem e, entre outros pontos, se empenha em desconstruir
conceitos binários, revê as relações entre parte e todo e considera aspectos
cognitivos, os quais incluem percepção, emoção e ação, como parte dos
sistemas a serem estudados – a qual se alinha aos paradigmas de pesquisa
feminista de Sprague e Zimmerman (2004).
O modo como me propus pensar o PLH e a APBC está, assim,
dentro da perspectiva da complexidade – e de suas possibilidades de
imaginação. Há muitos paralelos entre os usos linguísticos, o cenário afetivo,
as histórias de migração e mobilidade do aniversário de Nico e da APBC – com
seus incluídos e excluídos, suas práticas translinguísticas ou exemplos de
maternagem que pude observar, e sobre os quais retornarei mais
detalhadamente ao longo das próximas páginas.
60

Me pergunto se todos os que estiveram presentes no aniversário de


Nico continuarão em Barcelona cinco anos depois. Considerando a
imprevisibilidade como um dos fatores da superdiversidade, a resposta
provavelmente é não. Na APBC, por exemplo, menos de um ano após a
realização das entrevistas, alguns de meus entrevistados já não participavam
da Associação. Um dos preços que se paga por estar em ambientes
superdiversos, com maior dinamismo e imprevistos, é que existe uma
probabilidade muito maior de aqueles com quem você criou vínculos passarem
por deslocamentos geográficos. Ou que você mesmo seja quem se desloque.
Isso exige, não sem sua dose de pressão ou estresse, exercer uma habilidade
constante de criar: criar novos vínculos ou as necessárias novas imagens,
metáforas e noções que nos ajudem a explicar o que vivemos e observamos.
Chega o momento de sair e apagar a luz. Talvez eu não tenha
deixado tudo realmente em ordem, da maneira como gostaria. Pego as
Práticas translinguísticas, de Canagarajah, as Crônicas da superdiversidade de
Blommaert, e as Emoções e multilinguismo, da Pavlenko, que trouxe para me
fazerem companhia. Ler que “o caos não é a ausência de ordem, mas uma
forma específica de ordem” (BLOMMAERT, 2013, p. 9) me conforta. Mas o que
realmente me consola é saber que não sou a única procurando um enfoque
adequado para pensar os contextos linguísticos superdiversos. Quando saio,
estou no escuro, mas sei que não estou sozinha.
61

CAPÍTULO 2 – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: DAS POLÍTICAS


LINGUÍSTICAS FAMILIARES À CIDADANIA PLURILÍNGUE

Neste capítulo, apresento as bases teóricas que orientaram a


análise dos dados gerados na pesquisa aqui focalizada. Inicio com uma
aproximação dos campos da Linguística Aplicada, no Brasil, e da
Sociolinguística, na Catalunha, aos quais este trabalho se filia. A seguir,
apresento a área de Políticas Linguísticas (PLs), também no que diz respeito
às políticas linguísticas familiares, para logo aprofundar em conceitos
específicos do PLH. Para concluir, proponho uma reflexão sobre cidadania
plurilíngue a partir do Quadro Comum Europeu de Referência para Línguas
(COUNCIL OF EUROPE, 2001), um dos documentos que expressa (ou
pretende expressar) as políticas linguísticas da União Europeia (UE), e finalizo
com um apanhado do estado atual do PLH como campo de estudo.

2.1 A pesquisa em Linguística Aplicada no Brasil e em


Sociolinguística na Catalunha

No contexto de pesquisa trabalhado, o PLH na Catalunha, é natural


utilizar como referência as contribuições de pesquisadores da LA brasileira e
da Sociolinguística catalã, embora não exclusivamente. Ainda que as bases
teóricas e metodológicas das pesquisas realizadas em cada lado do Atlântico
estejam bastante alinhadas, vejo a necessidade de comentar de modo sucinto
o que o uso dessas nomenclaturas quer dizer, para não causar estranhamento
lá ou cá e esclarecer que não se trata simplesmente de etiquetas que se
utilizam por motivos óbvios – há questões de base que se fazem bastante
presentes. Com isso, espero também dar a conhecer brevemente a trajetória
de uma escola à outra, esperando que essas informações sirvam de estímulo a
colaborações futuras entre seus pesquisadores.
62

2.1.1 A Linguística Aplicada brasileira

Para que a vertente da LA a que me filio chegasse ao momento


atual no Brasil, fez-se necessário destacar que houve um distanciamento do
que se chamava de Linguística Aplicada em outros contextos, inclusive fora do
país: uma “área centrada exclusivamente em práticas de ensino/aprendizagem
de línguas (sobretudo estrangeira)” em sala de aula (MOITA LOPES, 2006a, p.
25).
Em termos de como esse campo do conhecimento vem se
desenvolvendo no Brasil, o livro Por uma linguística aplicada indisciplinar,
organizado por Moita Lopes (2006b), foi um marco. A obra, com capítulos de
autores brasileiros e estrangeiros, pode ser vista como o resultado de um
período de questionamentos sobre os propósitos, objetos de estudo e
perspectivas da LA, levando-a a ser definida como uma “área de pesquisa
mestiça e ideológica” (idem).
“Mestiça” por ser interdisciplinar e não se ater às fronteiras impostas
por um único campo, mas permitir-se transitar pela antropologia,
sociolinguística, etnografia, estudos culturais, filosofia, ciências políticas e
outras ciências mais. E “ideológica” porque se propõe a abordar a linguagem
em um contexto social, o que só é possível com uma reflexão sobre as
questões de poder, as ideologias e hegemonias existentes no cenário que se
deseja estudar. Na prática, isso muitas vezes se traduz em estudos e
posicionamentos declaradamente ideológicos dos pesquisadores, preocupados
com o empoderamento das minorias e dos grupos que estão à margem da
sociedade, como pobres, negros, indígenas, homens e mulheres homoeróticos,
mulheres e homens em situação de dificuldades sociais e outros. Desde então,
esses termos vêm sendo usados com frequência para caracterizá-la.
Para chegar a ser “mestiça e ideológica”, a LA brasileira consolidou
um discurso, cerca de uma década atrás, que declaradamente se distancia da
pesquisa positivista – e de posicionamentos apolíticos, não-ideológicos,
fundamentados na crença da separação entre pesquisador e objeto de estudo.
Isso, em parte, se explicaria pela necessidade de compreender a vida social
desde uma perspectiva anti-hegemônica, para produzir conhecimento com
implicações sobre as mudanças na sociedade. Isso permitiria dar visibilidade e
63

legitimidade aos sujeitos de pesquisa como sujeitos fragmentados,


heterogêneos, contraditórios e fluidos – pós-modernos, enfim, como descrito
por Bauman (2005) ou Hall (2011).
Em sua busca por uma nova abordagem para os sujeitos de
pesquisa, essa vertente da LA brasileira trata de encontrar subsídios teóricos e
conhecimento produzidos numa ótica que privilegie os problemas sociais
específicos de sua realidade que deseja investigar, como as obras de Milton
Santos (2000) ou Boaventura de Sousa Santos (2003). Estas seriam as “Vozes
do Sul”, vozes marginalizadas das minorias que passaram a ganhar destaque
como sujeitos de pesquisa, vozes acadêmicas dispostas a defender como
prioritária a necessidade de se gerar conhecimento específico para a realidade
dos países em desenvolvimento e propor novos olhares ao posicionamento
hegemônico para a produção de conhecimento dos países desenvolvidos da
Europa e da América do Norte.
Rojo sintetizou o amadurecimento da LA no Brasil da seguinte
maneira:
Essa versificação de enfoques, temas, objetos e, decorrentemente,
de teorias, descrições e metodologias, própria dos anos 1990,
contribui fortemente hoje para se recolocar a discussão da identidade
da área de LA como um todo e para aprofundar as discussões sobre
o seu caráter transdisciplinar. Se, no passado, a questão da
identidade da LA tinha a ver com suas fronteiras em relação à
linguística, hoje se reconhece a natureza transdisciplinar da LA em
suas relações com a educação, a psicologia, a etnografia da
comunicação, a sociologia, etc. (ROJO, 2006, p. 256)

Atualmente, as discussões que tratam de definir o que cabe ou não


como objeto de estudo da LA brasileira ou que tratam de definir a área
conceitualmente, defendendo – e explicando – seu caráter interdisciplinar, num
esforço por diferenciá-la da linguística “pura”, têm menos destaque. Desde que
o livro de Moita Lopes (2006b) foi publicado, a discussão amadureceu, embora
isso não signifique que os entendimentos anteriores da LA como área centrada
no ensino/aprendizagem de língua e propostas positivistas de pesquisa tenham
deixado de existir. Rampton (2006) chamou a atenção para o fato de que a
pesquisa em outras vertentes mais tradicionais continuava existindo – e a
situou nas discussões internacionais, em que também há uma pluralidade de
pontos de vista.
64

Dentro de meus interesses, menciono algumas linhas de


investigação que vêm ganhando destaque nos campos da LA brasileira e com
as quais esta tese dialoga: Linguagem e Identidade, Línguas Minoritárias,
Multilinguismo e Multiculturalismo, Políticas Linguísticas, entre outras. Esses
campos figuraram como áreas das comunicações temáticas do XI Congresso
Brasileiro de Linguística Aplicada, realizado em Campo Grande, em julho de
2015 (ASSOCIAÇÃO DE LINGUÍSTICA APLICADA DO BRASIL, 2015), e são
representativos das discussões que cabem nos dias de hoje nessa vertente da
LA brasileira.
Como embasamento teórico, pode-se dizer que, na
interdisciplinaridade, a vertente da LA brasileira a que me filio está atenta a
discussões que permeiam outras áreas vinculadas às ciências sociais, de
modo que reivindica espaço para as Vozes do Sul e dialoga com discussões
em voga internacionalmente sobre globalização, hibridismo cultural (BURKE,
2003), pós-modernidade (BAUMAN, 2005), identidade (HALL, 2011; GARCÍA
CANCLINI, 2013), para mencionar algumas.
Em relação a algumas tendências internacionais que pude identificar
nas discussões recentes, estão no radar desta LA brasileira que me interessa
debates e pesquisas, por exemplo, sobre práticas translinguísticas
(CANAGARAJAH, 2013) ou transidiomáticas (JACQUEMET, 2005), repertórios
linguísticos (BLOMMAERT, 2010) e as discussões sobre políticas linguísticas
entre os países de língua oficial portuguesa, com os atritos existentes entre
eles (MOITA LOPES, 2013; OLIVEIRA, 2013). Também estive atenta às
questões relacionadas à cidadania plurilíngue (JAFFE, 2012), às
transformações entre língua e sociedade a partir das novas tecnologias
(JACQUEMET, 2005), entre outras, com uma respectiva produção de
conhecimento aplicado às questões da realidade brasileira – parte, também, do
que me propus a fazer.

2.1.2 A Sociolinguística catalã

Por sua vez, a Sociolinguística catalã, cuja tradição surge e se


desenvolve com as correntes antifranquistas da década de 1960, reivindicou
nesse momento a necessidade de que a pesquisa teórica estivesse vinculada à
65

prática e militância linguística de base – o que foi identificado como uma


característica não só dessa corrente, mas da chamada Sociolinguística da
Periferia (também galega, basca e occitana) (BOIX-FUSTER, 2009a). No caso
catalão, esta postura surge devido à necessidade de resistir contra imposições
das políticas franquistas (aprox. 1939-1975) – e outras antes dessa – que
proibiam que a língua catalã fosse usada em espaços públicos ou como língua
de escolarização, algo ainda bastante vivo na memória de uma parcela dos
catalães.
Esse cenário de opressão cultural e linguística aos catalães, uma
minoria no contexto do Estado espanhol, marcou em boa medida o
desenvolvimento da Sociolinguística catalã desde então, mas não unicamente.
Também nas décadas de 1960 e 1970 a Catalunha passou a receber um
grande contingente de migrantes, principalmente de outros pontos da Espanha
– não falantes de catalão e com outros referentes culturais, portanto –, e o
modo como aconteceu a assimilação desse grupo também gerou reflexões
sociolinguísticas. Conforme explica Cardoso de Oliveira, antropólogo brasileiro
que se dedicou a estudar alguns aspectos da Catalunha:

[...] a identidade catalã enfrenta dois desafios: de um lado, o de


sustentar o seu domínio sobre os grupos imigrantes ingressados no
território catalão; de outro, o de marcar sua soberania perante os
castelhanos, representantes reais ou simbólicos do estado espanhol.
Atuando entre essas duas frentes, [...] os catalães vivem a
ambiguidade de sua dupla situação: a de membros de uma sociedade
anfitriã (diante das etnias imigrantes) e a de “povo hóspede” do
Estado espanhol, dominado pelos castelhanos. (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 2000, p. 13)

Portanto, para entender o desenvolvimento da Sociolinguística


catalã, faz-se necessário ter presentes algumas noções históricas como as que
mencionei. Exposto esse contexto, já é possível apresentar esse campo
acadêmico como uma área interdisciplinar, que se propôs a estudar “língua e
sociedade” em três eixos principais, o social, o linguístico e o psicológico, com
contribuição de ciências como “sociologia, antropologia [...] demografia, direito,
ciências políticas, geografia etc.” (VILA I MORENO, 2004, p. 94).
Um panorama histórico de como a Sociolinguística catalã se
desenvolveu no contexto próprio, acompanhando os avanços internacionais,
pode ser consultado em Vila i Moreno (2004); Boix-Fuster e Vila i Moreno
(1998) e Vallverdú (1980). Observe-se que, até a década de 1980,
66

predominava uma tradição ensaística, voltada para discussões teóricas, devido


às dificuldades de financiamento de pesquisas de campo – as quais ganharam
terreno a partir desse momento (SOCIETAT CATALANA DE
SOCIOLINGÜÍSTICA, 2011), acompanhadas de uma diversificação de temas e
metodologias.
A afirmação a seguir, embora tenha sido feita no final da década de
1990, continua válida e dá uma ideia da abrangência de seu panorama:

Hoje, a sociolinguística dos países de língua catalã conhece uma


inegável diversidade interna, tanto em termos geográficos como de
especialização. Com uma tradição única na Europa, as últimas
décadas permitiram acumular uma série de pesquisas em quase
todas as ramificações da sociolinguística internacional: sociologia da
língua, psicologia social da linguagem, etnografia da comunicação,
sociolinguística variacionista, contato de línguas, planejamento
linguístico, direito linguístico etc. (BOIX-FUSTER e VILA I MORENO,
1998, p. 7)

Ou seja: da mesma maneira que a LA brasileira se propõe a abordar


a linguagem num contexto social, a Sociolinguística catalã trabalha no eixo
língua e sociedade, e ambas as escolas reivindicam uma abordagem
interdisciplinar – com algumas diferenças, é certo. Por exemplo, na
Sociolinguística catalã há uma maior intersecção com áreas da Psicologia,
além de um foco destacado nas pesquisas sobre processos de substituição
linguística, bem como contribuições marcadas das áreas de estudo do Direito,
que não encontram um equivalente exato na LA brasileira.
Ainda tratando de marcar algumas diferenças entre as duas, se
comparada à LA brasileira, pode-se dizer que a Sociolinguística catalã teve um
amadurecimento bastante precoce: o modo como a vertente da LA brasileira
aqui focalizada vem se posicionando nos últimos 20 anos, buscando definir-se
como área ideológica e interdisciplinar, já era algo claro para certas correntes
da Sociolinguística catalã desde a década de 1960 (BOIX-FUSTER, 2009a).
Porém, como na LA brasileira, existe uma pluralidade de óticas possíveis,
algumas mais situadas, outras mais relacionadas aos cânones positivistas. Ou,
como comentam Boix-Fuster e Vila i Moreno:

Enquanto alguns sociolinguistas vivem apaixonadamente os


processos que estudam e desejam profundamente modificar o curso
deles, outros optam por fazer uma análise distanciada e mais
67

acadêmica de sua sociedade. (BOIX-FUSTER e VILA I MORENO,


1998, p. 7)

À vista disso, creio ser possível afirmar, como vem sendo aventado
por diferentes autores, que as discussões propostas pela LA brasileira
encontram consonância com o que se conhece como Sociolinguística na
Catalunha, conforme entendido pelos pesquisadores do CUSC (BASTARDAS-
BOADA e MASSIP-BONET, 2013; BASTARDAS-BOADA, 2007; BASTARDAS-
BOADA, 1996; BOIX-FUSTER, 2009a; 2009b; BOIX-FUSTER e TORRENS
GUERINI, 2011; BOIX-FUSTER e VILA I MORENO, 1998; VILA I MORENO,
2004).
Trabalhos como o de Cardoso de Oliveira (2000; 2006) mostram
como o olhar da academia brasileira pode contribuir para pensar as questões
catalãs, sendo que o caminho inverso também ocorre. Citando caso análogo,
as contribuições da sociolinguística catalã e de periferia em pesquisas
brasileiras foram utilizadas, por exemplo, para refletir sobre o conceito de
conflitos sociolinguísticos na pesquisa de Maher (1996) sobre educação
indígena.
Dessa forma, quando utilizo o termo “Linguística Aplicada”, me refiro
à LA de tradição brasileira, crítica, e às correntes da LA que lhe são afins,
como descreve Pennycook (2010) ao refletir sobre os novos rumos da LA
australiana – para exemplificar com outras correntes internacionais, que trazem
uma abordagem aberta a questões de poder, desigualdade e diferença.
Por outro lado, quando utilizo o termo “Sociolinguística catalã”, me
refiro à definição de Boix-Fuster e Vila i Moreno (1998), que compreende
também as línguas com as quais o catalão está em contato (grifo dos autores):

Entendemos por sociolinguística catalã a pesquisa no âmbito das


relações entre língua e sociedade feita de qualquer perspectiva
apresentada nas seções anteriores [compreendendo os aspectos
sociais, linguísticos e psicológicos], realizada em algum dos territórios
de língua catalã, independente da língua em que se realize ou da
origem pessoal do pesquisador. (BOIX-FUSTER e VILA I MORENO,
1998, p. 33)

De acordo com essa definição, é possível incluir, por exemplo,


trabalhos recentes como o de Woolard (2016) (que não é catalã e o publica em
inglês) nesse campo.
68

Como as questões que levanto podem ser abordadas sob a mesma


perspectiva tanto na LA brasileira como na Sociolinguística catalã, utilizo
“Linguística Aplicada” e “Sociolinguística” de maneira equivalente, como o são
no caso desta pesquisa. Em suas vertentes críticas, a LA e a Sociolinguística
se alinham com a teoria crítica proposta para políticas linguísticas por Tollefson
(2009): seja no sentido de contestar as abordagens tradicionais, no
entendimento das pesquisas que visam a promover transformações sociais ou
no de pesquisas embasadas pela teoria crítica neomarxista de nomes como
Bourdieu, Gramsci ou Foucault.

2.2 Políticas Linguísticas (PLs)

A Política Linguística, como campo de estudo, surgiu após a II


Guerra Mundial, num momento em que era preciso estruturar os usos
linguísticos dos novos Estados e daqueles em processo de reconstrução – daí
vem a ideia de “planejamento” acoplada ao conceito (SPOLSKY, 2012). Nesse
momento histórico, tal “planejamento” costumava conduzir a uma “política”
linguística: um conjunto de normativas oficiais (leis) sobre os usos e formas
linguísticas em um Estado-nação. A partir daí, o campo se desenvolveu com
uma tendência a pensar as ações e as relações entre língua e poder no nível
macro (as decisões estatais), com seus efeitos nos cidadãos – ou falantes de
uma determinada língua.
Ao pensar o termo em português, no entanto, “política” – que vem do
inglês “policy”, e não de “politics”, sendo que ambas as palavras são traduzidas
por “política” – deve ser entendida como um conjunto de princípios ou ações
propostas por um governo, organização, grupo ou indivíduo, e não,
necessariamente, como “regras” ou “leis”. Assim, as PLs não são unicamente
governamentais e, embora possam estar refletidas em regras ou leis, existem
mesmo quando não há uma normativa clara a respeito, podendo ser deduzidas
a partir das práticas, ideologias e crenças das pessoas (MCCARTY, 2011).
Dessa forma, as PLs estão presentes em qualquer comunidade de fala,
inclusive nas famílias (SPOLSKY, 2012; CURDT-CHRISTIANSEN, 2009),
69

caracterizando-se por aquilo que busca propor um padrão de comportamento


linguístico.
Dessa perspectiva, Spolsky (2004; 2012) distingue três componentes
independentes, mas inter-relacionados, que compõem as PLs:
a) Práticas linguísticas: esse componente envolve a(s) língua(s)
ou variedade(s) linguística(s) usada(s) em cada função
comunicativa, com certos tipos de interlocutores, para
determinados tópicos, para expressar identificação. Em outras
palavras, esse componente compreende a ecologia linguística ou
interações entre os falantes;
b) Crenças ou ideologias16 linguísticas: o valor dado pelos
membros da comunidade de fala às línguas ou variedades em
uso e suas crenças sobre a importância desses valores, que
pode revelar o que as pessoas acreditam que deve ser feito;
c) Intervenção: a formulação ou proclamação de um plano ou
política explícita sobre usos linguísticos, não necessariamente
formalizados em um documento; a intervenção dos planejadores
para alterar as práticas linguísticas da comunidade de fala.

Tendo presentes os elementos que compõem as PLs e a forma


como este campo de estudos se consolidou, apresento, a seguir, as
especificidades das políticas linguísticas familiares (PLFs) a partir desse
contexto.

2.2.3 Políticas linguísticas familiares (PLFs)

Uma vez que os núcleos familiares podem ser considerados


comunidades de fala, também terão seus acordos, explícitos ou não,
conscientes ou inconscientes, sobre quais línguas ou tipo de linguagem (formal
x informal; oral x escrita etc.) usar e de que forma.

16
Há uma série de definições para o conceito de “ideologia” – para uma discussão, ver, por
exemplo, Woolard (2012). Nesta pesquisa, trabalharei com a definição de Van Dijk: “as
ideologias são as crenças fundamentais de um grupo e de seus membros” (VAN DIJK, 2003, p.
14)
70

No entendimento do que são políticas linguísticas familiares, para os


efeitos deste estudo foi utilizada a definição de Curdt-Christiansen:

Política linguística familiar pode ser definida como um esforço


deliberado de praticar certo padrão de uso linguístico e certas
práticas de letramento dentro da esfera doméstica e entre os
membros da família. [...] tendem a estar baseadas na percepção de
estruturas e mudanças sociais da família do indivíduo. (CURDT-
CHRISTIANSEN, 2009, p. 352)

Apesar de as famílias serem um grupo menor no contexto da


sociedade, suas PLs nem sempre estão em consonância com as políticas
linguísticas macro das sociedades em que estão inseridas (CALDAS, 2012;
CURDT-CHRISTIANSEN, 2009). Por exemplo, as línguas ou variedades
linguísticas familiares em uso podem ser diferentes daquelas determinadas
como língua nacional do espaço onde tais famílias vivem ou que são usadas na
escolarização de suas crianças. Há numerosos exemplos disso: no Brasil, um
país de língua oficial portuguesa, as minorias linguísticas como as indígenas ou
grupos de imigrantes (italianos, alemães, japoneses etc.) têm poucas opções
de escolarizar suas crianças na língua minoritária ou mesmo de utilizar tais
línguas em contextos que não sejam o mais próximo ao familiar, de um bairro
ou município – o que corresponde à realidade dos falantes de LH em vários
pontos do mundo. Ou, ainda, a variedade de português falada por uma parcela
grande da população brasileira – um português mais popular, mais distante da
norma – é considerada “errada” e desqualificada numa série de contextos
escolares.
Em todo caso, a maioria das famílias, seja em contexto plurilíngue
ou não, não planeja e não é consciente de suas PLs. Embora isso não
signifique, para alguns autores (CALDAS, 2012; MCCARTY, 2011; CURDT-
CHRISTIANSEN, 2009), que tais políticas não existam, outros, como Bastarda-
Boadas (2016) questionam, precisamente por essa falta de consciência e de
planejamento, que as mesmas sejam nomeadas como “políticas”, preferindo
chamá-las, no contexto familiar, de “auto-organização evolutiva”. Seja com a
nomenclatura que for, nos tópicos que chamam a atenção das pesquisas em
PLFs podem-se mencionar a escolha das línguas a serem usadas; quem deve
ou pode falar que língua com quem; em que língua(s) deve-se promover o
71

letramento. Mesmo nos casos em que só há uma língua em uso, podem-se


pesquisar os valores atribuídos a diferentes variedades linguísticas, capazes de
revelar preconceitos linguísticos, por exemplo.
Nessa dinâmica de interações do grupo familiar, cada membro da
comunidade de fala fará suas contribuições e influenciará os usos linguísticos
dos demais, de modo que as “intervenções” não estão restritas aos adultos.
Crianças podem trazer para casa gírias e neologismos e influenciar os usos
dos mais velhos ou confrontar as normas e padrões de uso linguístico que os
pais desejam que sigam, por exemplo.
Assim, como nem sempre há um planejamento consciente dos usos
linguísticos familiares, o que muitas vezes determina as PLFs são as
circunstâncias e história familiar (CALDAS, 2012) ou as necessidades
comunicativas apresentadas pelo contexto em que os falantes se inserem
(BOIX-FUSTER, 2009a), sendo consideravelmente influenciadas por fatores
sociopolíticos e econômicos. A estes fatores, devem ser acrescentados os
afetivos, pois, como colocam Pavlenko (2005) e Dantas (1992), os aspectos
emocionais, que constituem a interação do sujeito com o mundo (e com outros
falantes de uma língua) influenciam nos usos da linguagem.
No caso das LHs, como cada LH em diferentes sociedades de
acolhida têm suas especificidades, parece-me pouco realista tentar simplificar
as PLFs em esquemas como OPOL (one-parent-one-language, em que cada
progenitor usa uma língua com a criança) (CALDAS, 2012) ou MLH (minority
language at home, em que ambos o progenitores usam a língua minoritária em
casa), o que dá uma falsa ideia de que os usos linguísticos dessas famílias
podem ser homogêneos em contextos em que os próprios usos e
competências linguísticas dos falantes são heterogêneos. Nas próximas
seções, em que explico as particularidades das LHs e do PLH, me aprofundarei
nessas heterogeneidades.
72

2.3 A origem da expressão “língua de herança” e suas


definições

A origem da expressão ‘língua de herança’ (LH, ou heritage


language, em inglês) remonta ao final da década de 1970, quando começou a
ser utilizada no Canadá (VAN DEUSEN-SCHOLL, 2014) para se referir às
línguas diferentes das oficiais, faladas pelos imigrantes que chegaram e
continuaram a usá-las em seu cotidiano, em alguns casos transmitindo-as por
várias gerações. Nos EUA, o termo se popularizou a partir de meados da
década de 1990. Em outros pontos do mundo, por exemplo, no Reino Unido, as
LHs são chamadas de ‘línguas comunitárias’ (community languages – ver
(SOUZA, 2010a; 2010b). Mesmo no Brasil há uma expressão para se referir às
línguas mantidas pelos imigrantes, utilizada principalmente em relação aos
idiomas trazidos com as ondas de imigração do século XIX e princípio do
século XX: “línguas de imigração” (ALTENHOFEN, 2004).
Quando se trata de definir o que são línguas de herança 17, duas
descrições são constantemente mencionadas: Valdés (2000; 2001) as
considera como línguas diferentes da língua da sociedade, faladas na família,
no ambiente doméstico, e cujos aprendizes apresentam algum grau de
bilinguismo, falando ou apenas entendendo a língua de herança; já Van
Deusen-Scholl (2003) tem uma definição mais ampla, pois considera como LH
aquela que abarca um grupo que inclui desde nativos fluentes a não falantes
da LH, os quais podem estar a gerações de distância do familiar emigrante,
mas que se sentem culturalmente ligados à língua e têm um vínculo cultural
com a comunidade que se comunica por esse idioma.
Embora Valdés (2000; 2001) e Van Deusen-Scholl (2003)
relacionem as LHs às comunidades de imigrantes que chegam a um novo país,
“língua de herança” também pode ser usado para se referir aos idiomas nativos
que perderam terreno com os movimentos de colonialismo e neocolonialismo,

17
A própria expressão “língua de herança” é discutível: essa “língua”, como se verá, não é algo
que vem pronto, mas que deve ser construído. Nesse processo, que pode durar toda a vida, as
fronteiras sobre o que pertence a uma ou outra língua de um repertório linguístico plurilíngue
pode ser tênue ou difusa. “Herança”, por sua vez, apesar de remeter a um “legado”, também
pode levar ao (mal) entendimento de que tal “patrimônio” é recebido pronto. Como as próprias
áreas de estudo vem se consolidando com os nomes de “Língua de Herança” ou “Português
Língua de Herança”, estas são as expressões utilizadas ao longo da tese.
73

como as línguas indígenas ou ‘línguas da terra’ (KING, 2000; LIMA-


HERNANDES e CIOCCHI-SASSI, 2015a; 2015b) – uma conotação diferente da
que utilizo, pois como Valdés (2000; 2001) e Van Deusen-Scholl (2003),
relaciono o PLH à imigração, no caso, a brasileira, geralmente para os
chamados países desenvolvidos. Em todo caso, na LH ocorrem processos de
identificação entre seus falantes e isso só é possível porque a própria LH é um
discurso construído por meio de uma série de práticas sociais – e culturais –
compartilhadas. Abordarei mais detalhadamente a relação entre a língua e os
processos de identificação dos falantes de PLH na seção 2.4.
Seja em contexto de “língua da terra” ou de língua de imigração,
pensar as competências linguísticas dos falantes de LH é pensar competências
díspares, tanto individualmente como em relação a um grupo de falantes.
Como propõe Lynch (2008), as competências dos aprendizes de herança
podem ser distribuídas num continuum que compreende desde um alto grau de
proficiência (como o de um falante “nativo” com alta escolaridade) aos não
falantes (mas que se sentem vinculados à língua). Visto desse modo, o
conceito de continuum permite retomar algumas ideias da perspectiva
complèxica (MASSIP e BASTARDAS, 2015), como a dos sistemas difusos
(MUNNÉ, 2015): ser falante de língua de herança é pertencer a um conjunto
cujos limites não são nítidos; é estar em algum ponto entre 0 (não ser falante
da língua) e 1 (ser um falante). É, portanto, buscar alternativas a uma visão
composta por conjuntos cujos limites são bem definidos, como em 0 e 1, a da
lógica binária que só permite um ou outro valor.
Pensando em como caracterizar o falante de herança, há
entendimentos diferentes sobre que aspectos priorizar. O critério de Valdés
(2000; 2001) tem como norteador a proficiência linguística: é necessário algum
grau de proficiência (falar ou entender) para pertencer à comunidade de fala; já
Van Deusen-Scholl (2003) valoriza o sentimento de identificação com tal grupo:
não é fundamental saber a língua, sendo que o sentir-se culturalmente ligado a
ela é o que caracterizaria o aprendiz de LH. Embora se costume pensar o
falante de herança como o descendente de um falante desta língua,
tipicamente os filhos ou netos, proponho que neste grupo sejam também
considerados, no caso das famílias mistas de PLH deste estudo, por exemplo,
74

os progenitores não-brasileiros: estes também podem ter algum grau de


proficiência na LH e um vínculo cultural com a comunidade de fala.
Além desses dois norteadores, o de proficiência e o de identificação,
proponho acrescentar a afetividade aos fatores que vinculam o falante de
herança ao grupo. Assim, o falante de herança também está caracterizado por
viver experiências emocionalmente significativas na LH, como as formas
cognitivas de vinculação afetiva (DANTAS, 1992), sendo que, para ele, as
palavras da LH podem ser corpóreas e emotivas e processadas por canais
afetivos (PAVLENKO, 2005). Em He (2010) é possível encontrar a descrição
desse vínculo – não apenas cultural, mas também emocional – feita por Jason,
um aprendiz de chinês como língua de herança:

A língua falada em casa é o chinês. Meus pais são chineses. Eles


sempre me elogiaram e me deram broncas em chinês ... O meu
chinês é muito ruim. Eu não sei ler e só consigo escrever meu nome.
Mas quando eu penso na língua chinesa eu penso em minha mãe,
meu pai e minha casa. É a língua da minha casa e do meu coração.
(HE, 2010, p. 66)

Entender que a comunidade de fala de uma LH está fortemente


caracterizada pelos vínculos emocionais construídos na LH, que se identifica
pelas práticas culturais compartilhadas nessa língua e se distribui num
continuum de proficiências linguísticas variáveis ajuda a romper com
dicotomias que não necessariamente funcionam na hora de definir seus
falantes. Assim, usar termos como “língua materna x estrangeira”, “língua
nativa x não-nativa” “sujeito bilíngue x monolíngue” para referir-se à sua
proficiência talvez não sejam adequados. Da mesma forma, em termos de
identidade, a oposição “brasileiro x inglês” (ou qualquer outra que faça
referência a identidades nacionais) não necessariamente é a adequada para
que um falante de PLH expresse sua identidade, pois como argumenta Souza
(2010b), é possível que ele se identifique como ambos.
Em qualquer caso, uma LH reflete deslocamentos, que podem ser,
por um lado, espaciais e geográficos, relacionados à imigração ou colonialismo,
ou, por outro, na variedade de usos e prestígio, quando esta é uma língua
autóctone que perde terreno. Portanto, por definição, pensar as línguas de
75

herança será sempre pensar uma língua minoritária num contexto de bi ou


plurilinguismo.
Em meu entendimento, para os efeitos deste trabalho, quando me
refiro ao “português como língua de herança” faço alusão especificamente à
língua portuguesa em sua variante brasileira, utilizada por brasileiros
emigrados, os membros de sua família nuclear e seus descendentes
estabelecidos fora do Brasil18, a qual está relacionada aos deslocamentos
provocados por uma onda de emigração para grandes centros urbanos com
início na década de 1980 – o que justifica, a meu ver, não chamá-la de “língua
de imigração”, um termo que faz referência a imigrações ocorridas em outro
momento histórico, associadas a atividades econômicas rurais, de línguas
trazidas para o Brasil. Nessa perspectiva, me interessa refletir sobre o que o
termo “aprendiz” significa. Muito utilizado na literatura de LH em inglês (cujo
equivalente é “learner”) para se referir a este grupo, o “aprendiz” não é
necessariamente “aluno”, num contexto de aprendizagem em sala de aula;
tampouco é, necessariamente, “falante”, pois é possível que, nesse continuum,
não chegue efetivamente a falar a LH.
Antes de me aprofundar no que seriam algumas características do
PLH como língua, acredito ser de fundamental importância entender o PLH
como fenômeno ou movimento social, pois o trabalho das chamadas
“iniciativas” (JENNINGS-WINTERLE e LIMA-HERNANDES, 2015), expressão
utilizada para se referir a grupos da sociedade civil organizados para promover
o PLH por meio de encontros ou cursos de língua e cultura, entre elas a APBC,
se insere nesse contexto. Parte disso consiste em rastrear quando o termo
PLH começou a ser usado e os discursos que se configuraram em torno dele.

18
Reitero que o contexto de PLH no mundo não é exclusivamente brasileiro e compreende
outras comunidades provenientes de regiões onde se fala a língua portuguesa (e algumas
variantes crioulas), como Portugal, Açores, Cabo Verde etc. As iniciativas que trabalham com
PLH às vezes reúnem diversas nacionalidades, em outros casos, não – o que depende, em
parte, das especificidades da sociedade de acolhida. Por exemplo, na Finlândia, onde há um
programa nacional que oferece ensino na “língua materna”, crianças portuguesas, brasileiras,
cabo-verdeanas etc. frequentam as aulas juntas (PIIPO, 2016). Vale destacar, ainda,
importantes contribuições às pesquisas de PLH, por exemplo, por pesquisadores portugueses,
como Melo-Pfeifer (2016). Para efeitos de minha pesquisa, no entanto, optei por centrar-me
nas especificidades do contexto brasileiro.
76

2.4 PLH: A origem de um movimento

O PLH é um tema de pesquisa novo. Pode-se dizer que os estudos


em torno desse objeto começaram a se desenhar na década de 1980,
momento em que houve um aumento no fluxo de brasileiros que decidiram se
estabelecer de forma permanente no exterior.
Historicamente – e por “História” entendo as narrativas construídas
em torno desta nação, primordialmente eurocentristas, em detrimento dos
povos locais ou africanos – o Brasil sempre foi um país que recebeu
imigrantes: o modo tradicional de contar sua história é a partir da chegada dos
portugueses na costa atlântica, de seu contato com os povos indígenas, dos
contingentes de africanos trazidos para trabalhar nas colônias, da passagem
dos holandeses pelo Recife, das ondas de imigrantes vindas da Europa para
atender as necessidades de mão de obra surgidas na República e, quando o
país se mostrou um destino seguro na I e II Guerras Mundiais, aqui se
estabeleceram italianos, espanhóis, ucranianos, poloneses, alemães e
japoneses, entre outros. O número de nacionalidades aumenta conforme
avançamos no século XX.
Como já dito, é algo recente o Brasil ser um país de emigração, ou
seja, cujos cidadãos decidem se estabelecer de forma permanente no exterior.
Debiaggi (2002) e Mota (2010) situam o início desse processo na década de
1980, o qual, como não podia deixar de ser, está relacionado ao que hoje é
chamado de PLH.
Embora a expressão “português como língua de herança” tenha se
popularizado apenas na década de 2010, a emigração brasileira e a língua
portuguesa nesse contexto já chamavam a atenção e haviam sido
documentadas, entre outros, por Hirataka, Koishi e Kato (2001), Souza (2006;
2010a; 2010b) Mota (2010), os quais descrevem e discutem, em detalhes, os
cenários e usos do português por emigrantes brasileiros e seus filhos no Japão,
Reino Unido e EUA, respectivamente, sem, no entanto, utilizar o termo PLH.
Paralelamente, as informações que pude compilar sobre algumas
iniciativas mostram que elas promovem o PLH já há algum tempo, em certos
casos, há mais de uma década: a escola comunitária Brazilian Educational and
Culture Centre (BREACC) oferece atividades para crianças desde 1997
77

(SOUZA, 2010c); a escola infantil brasileiro-alemã Estrelinha, em Munique,


Alemanha, foi fundada em 1998 (ESTRELINHA DEUTSCH-
BRASILIANISCHES KINDERHAUS, 2016); a preocupação com o ensino de
português a crianças Nikkei no Japão, realizado por voluntários, existe ao
menos desde 2001 em Fukushima (HIRATAKA, KOISHI e KATO, 2001); a
Associação Brasileira de Educação e Cultura (ABEC), em Zurique, Suíça,
existe desde 2002 (ABEC – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO E
CULTURA, 2016); a Associação Brasileira de Cultura e Educação (ABRACE)
começou suas atividades dentro do grupo de Mães Brasileiras da Virginia
(MBV) em 2005, nos EUA (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO E
CULTURA – ABRACE, 2016); a Associação Brasileira de Iniciativas
Educacionais no Reino Unido (ABRIR) foi fundada em Londres, em 2006, e
atuou até 2016 (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE INICIATIVAS
EDUCACIONAIS DO REINO UNIDO – ABRIR, 2016), apenas para mencionar
alguns exemplos.
O primeiro registro que tenho do termo “português como língua de
herança” (não necessariamente o primeiro uso, mas o mais antigo que localizei
documentado) aparece na ata de uma reunião da mesa temática de Educação
e Cultura na II Conferência Brasileiros no Mundo (CBM), em 2009 (BRASIL,
2009), e acredito que não tenha sido acidental. Nesse momento, o terreno
parecia estar preparado para o surgimento de uma etiqueta, eficaz inclusive
nos mecanismos de busca da internet, que permitisse às comunidades
brasileiras de todo o mundo, com projetos educativos voltados principalmente
para crianças, focados na língua e cultura “nacionais” e na constituição do que
se percebe como “brasilidades no exterior” se identificar em buscas na rede e
estabelecer um diálogo virtual. Aos poucos, essas possibilidades de diálogo e
intercâmbio de informações conduziram a uma articulação para reivindicar,
coletivamente e em diferentes instâncias, visibilidade, apoio financeiro e
políticas públicas. Para entender esse processo, faz-se necessário revisitar
alguns pontos das políticas públicas recentes para os brasileiros da diáspora, o
primeiro de três fatores que permitem pensar o PLH como um movimento
(MORONI, 2015).
78

2.4.1 Primeiro fator: políticas públicas para os brasileiros


emigrados

Desde os anos 1980, o fenômeno da emigração brasileira se


acentuou, deixando claro que não se tratava de algo passageiro. Isso, de
alguma forma, era de conhecimento do governo brasileiro, fosse via Itamaraty,
pelos atendimentos realizados pela rede consular (aumento nos serviços de
renovação de passaportes, registros e alterações de estado civil, consultas
sobre vistos e homologações de estudos, por exemplo), ou como questões
relacionadas às relações internacionais: em 2005, por exemplo, o México, por
pressão dos americanos, passou a exigir visto de turismo para os brasileiros, o
que perdurou até 2013, pois os EUA alegavam que muitos brasileiros entravam
ilegalmente em seu território cruzando a fronteira mexicana.
O fato é que o governo brasileiro passou a ter que pensar em
administrar também questões relacionadas aos brasileiros emigrados, o que
talvez tenha motivado um interesse por dispor de mais dados sobre esse grupo
e iniciar algumas políticas públicas específicas para ele.
Assim, em 2010, o Censo Demográfico incluiu pela primeira vez uma
pergunta que identificasse se havia emigrantes nos lares brasileiros e qual seu
país de residência (BRASIL, 2011). O objetivo desse mapeamento consistia em
“obter o perfil, por sexo e idade, dos brasileiros que se mudaram para o
exterior, bem como captar os fluxos migratórios internacionais” e “conhecer o
perfil familiar e socioeconômico desses emigrantes” (CAMPOS, 2011, p. 76).
Os resultados foram os seguintes:
79

Figura 1 – Percentual de imigrantes internacionais segundo o país de residência


(BRASIL, 2011, p. 59)

Esses resultados, no entanto, são porcentagens e merecem ser


contrastados com os dados do Ministério de Relações Exteriores do Brasil
(MRE) (BRASIL, 2015), publicados no portal Brasileiros no Mundo. Nas
estimativas do MRE, os resultados refletem estatísticas dos Consulados e os
dados demográficos locais. O ranking do número de brasileiros por país foi o
seguinte: 1) EUA – 1.410.000; 2) Paraguai – 332.042; 3) Japão – 170.229;
4) Reino Unido – 120.000 5) Portugal – 116.271; 6) Espanha –
86.691 (BRASIL, 2015).
Mas o desejo de saber mais sobre os brasileiros emigrados não se
reflete apenas nessas pesquisas. Em 2008, o MRE realizou a primeira edição
da CBM, na qual se reuniram, por iniciativa do governo, representantes das
comunidades de brasileiros emigrados. Além da primeira, outras três edições
foram realizadas, nos anos de 2009, 2010 e 2013.
80

Na I CBM foi discutida a importância de se criar uma rede de


articulação entre os brasileiros, decidindo-se pela criação do Conselho de
Representantes de Brasileiros no Exterior (CRBE). Para estabelecer as bases
do Conselho, na II CBM, em 2009, membros foram eleitos pelos presentes para
compor um Conselho provisório e definiu-se o modelo para a seguinte eleição
dos representantes diretamente nas comunidades: o processo compreenderia
a eleição de quatro representantes e quatro suplentes em cada região
geográfica (América do Sul e Central; América do Norte e Caribe; Europa; Ásia,
África, Oriente Médio e Oceania). Os candidatos deveriam se apresentar e
dispor de tempo para difundir suas propostas; então, uma vez definida a data
para a eleição, poderiam votar os brasileiros residentes no exterior há mais de
seis meses, registrados nos Consulados, sendo o voto opcional e não
obrigatório.
Assim, após esse processo ter sido realizado, os primeiros
conselheiros do CRBE eleitos por voto mundo afora tomaram posse em 2010,
na III CBM. O papel dos Conselheiros compreendia, entre outros aspectos,
representar suas regiões nas CBMs, ocasiões em que foram realizados
encontros com representantes do MRE e outros ministérios, e expor os
problemas e desafios enfrentados pelas comunidades de brasileiros emigrados
no mundo. Isso permitiu ao governo brasileiro conhecer melhor as
especificidades e demandas de cada comunidade, ao mesmo tempo em que
dava certa voz política a elas. A partir dessas informações, o governo começou
a traçar algumas políticas públicas para os brasileiros emigrados.
Em âmbito local, em 2011, por meio dos Consulados, foi fomentada
a criação dos Conselhos de Cidadania (formado por membros eleitos pela
comunidade) e Conselhos de Cidadãos (quando os membros se voluntariam
para participar ou são convidados pelo Consulado), para que a comunidade de
brasileiros emigrados estivesse representada junto aos Consulados, dentro de
cada jurisdição. Embora alguns Conselhos de Cidadãos já existissem antes
dessa data, o que se pretendia era consolidar a interlocução entre Consulado e
comunidade ou, em outras palavras, entre governo e sociedade civil no exterior
– com seus membros atuando, em todo caso, sem remuneração. Isso permitiria
um melhor planejamento e implementação de projetos, cujos resultados teriam
maior benefício para os brasileiros emigrados.
81

Uma vez que esse modelo se consolidou, a forma de eleger os


Conselheiros do CRBE foi, novamente, alterada: o Decreto presidencial 7.987,
de 17 de abril de 2013, definia que os Conselheiros já não seriam eleitos por
região geográfica, mas indicados pelos Conselhos de Cidadania e de
Cidadãos, que, tendo interesse, deveriam enviar um porta-voz que os
representasse já na IV CBM, nesse mesmo ano. Deixava de haver, portanto, o
processo de votação para conselheiros do CRBE19, algo que se manteve na V
CBM, realizada em 2016.
Em todo caso, embora os modelos estejam em fase de
experimentação e transformação – e talvez assim continuem, já que parecem
estar se aperfeiçoando a partir da experiência anterior –, é certo que todo esse
processo ajudou a criar uma via de diálogo e de representação entre o governo
e os brasileiros emigrados. As Conferências permitem que os representantes
das comunidades dialoguem com representantes de diferentes Ministérios;
elabora-se um plano de ação; faz-se uma prestação de contas.
Como exemplo de alguns resultados dessa interlocução, o Exame
Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA),
realizado para se obter o certificado brasileiro de Ensino Fundamental ou
Ensino Médio, vem sendo aplicado em alguns pontos do mundo. Há um
esforço por firmar convênios de seguridade social com diversos países, ao
mesmo tempo em que a autorização para que menores viajem
desacompanhados pode agora ser incluída no passaporte, dispensando
trâmites adicionais. Há uma série de detalhes, às vezes não tão pequenos, os
quais facilitam a vida de quem deve lidar cotidianamente com a burocracia de
mais de um país. O registro de todas essas ações, bem como uma compilação
de informações úteis, cartilhas, relação de Conselhos, informes, atas das
Conferências e prestações de contas, estão reunidos no site Brasileiros no
Mundo (http://www.brasileirosnomundo.itamaraty.gov.br/).
Com esses exemplos, o que pretendo é ressaltar a existência de
políticas públicas que contemplam canais de diálogo entre o governo brasileiro
e as comunidades de brasileiros emigrados – passíveis de ajustes e melhorias,

19
Agradeço a Maria Badet Souza, Conselheira de Temas Sociais do Conselho de Cidadania do
Brasil em Barcelona (2014-2016) e porta-voz do Conselho de Cidadania de Barcelona junto ao
CRBE, pelos esclarecimentos sobre a evolução no processo de escolha dos representantes do
CRBE.
82

e talvez por isso mesmo em transformação –, entre as quais se inserem


algumas ações para o PLH. Por exemplo, foi criado em 2011 o Programa de
Difusão de Língua e Cultura (PDLC), mantido pela Divisão de Promoção da
Língua Portuguesa (DPLP) do MRE. Desde então, o PDLC vem apoiando
ações a favor do PLH, mais discretamente no início, porém crescendo
paulatinamente em visibilidade. Entre elas, encontra-se a organização de um
curso-piloto de formação continuada para professores de PLH promovido pelo
Consulado Geral do Brasil em São Francisco e Washington, EUA, em seu ano
de fundação – uma proposta de atividade que posteriormente iria se multiplicar.
A DPLP, por sua vez, organiza sua atuação em torno de algumas
linhas: a rede de Centros Culturais Brasileiros, os Núcleos de Estudos
Brasileiros (unidades complementares de ensino em Embaixadas ou
Consulados), o programa de Leitorado (professores universitários que atuam
em instituições estrangeiras de ensino superior), as ações para as
comunidades brasileiras do exterior, através do PDLC, e as parcerias para
aplicação dos exames de proficiência em português brasileiro (CELPE-
BRAS)20. Se há uma instância do governo brasileiro responsável por pensar
políticas públicas para o PLH, trata-se da DPLP, mas atualmente tais ações se
diluem entre propostas mais abrangentes e carecem de destaque.

Figura 2 – O lugar do PLH nas políticas públicas para os brasileiros da diáspora


(MORONI, 2015)

20
Para maiores informações sobre o exame CELPE-BRAS, ver Viana (2014).
83

Por isso, é válido ressaltar como, no início de 2015, o edital do


PDLC21 faz uma chamada específica, em que pela primeira vez o termo PLH
ganhou destaque, considerando “prioritariamente, ações que apresentem
conteúdo educativo, como (i) o apoio didático-pedagógico a associações locais
e (ii) atividades culturais, desde que voltadas para o Português como Língua de
Herança (POLH)22 e envolvam a participação da comunidade” (CONSULADO
GERAL DO BRASIL EM BARCELONA, 2015), o qual foi aberto à jurisdição de
Barcelona. Em 2016, um edital, nos mesmos moldes, foi aberto na jurisdição de
Madri (CONSULADO GERAL DO BRASIL EM MADRI, 2016). No entanto,
essas chamadas não surgiram por um passe de mágica. A existência dos
canais de diálogo estabelecidos pelo governo brasileiro deu visibilidade às
demandas da diáspora por mais apoios ao PLH e, nesse sentido, esses editais
mostram-se como conquistas simbólicas importantes que legitimam um esforço
coletivo, fruto de muitos projetos, de pequeno e médio portes, desenvolvidos
em âmbito local.
A partir disso, é possível observar como as instâncias de
representação democrática (Conselhos de Cidadãos, Conselhos de Cidadania,
CRBE) se configuram como um dos elementos que torna possível a existência
do PLH: um movimento que escolheu uma bandeira, ávido por informações
para melhorar as práticas das iniciativas que representa, que quer ganhar
visibilidade e que conhece os canais existentes para fazer valer suas ações
políticas e poder escalar suas reivindicações, num trabalho feito “de baixo para
cima” (ou modelo botton-up), que parte das iniciativas a instâncias superiores
do governo – e que, se teve início num âmbito local, chega a resultados
(modestos, que sejam) de repercussão global.
A esse respeito, vale mencionar que alguns dos porta-vozes
enviados pelos Conselhos de Cidadania e de Cidadãos à IV CBM são
lideranças importantes vinculadas às iniciativas pelo PLH no mundo, como Ana
Lucia Lico (Conselho de Cidadãos de Washington, EUA, e fundadora da

21
Cada Consulado é responsável por submeter os projetos de sua jurisdição ao PDLC,
cabendo ao mesmo decidir se abrirá a chamada para receber projetos da comunidade de sua
jurisdição ou se enviará apenas projetos elaborados internamente.
22
A sigla “POLH” também é utilizada para se referir a “português como língua de herança”. Por
questões de consistência, optei por utilizar “PLH”, usando “POLH” apenas em nomes oficiais ou
em citações diretas.
84

ABRACE), Andréa Menescal (Conselho de Cidadãos da Baviera e de


BadenWürttemberg, Alemanha, cofundadora do Elo Europeu de Educadores de
POLH e fundadora do projeto Mala de Herança) e Maria Badet Souza
(Conselho de Cidadania de Barcelona, Espanha, e sócia da APBC até 2015,
quando retornou ao Brasil). Vale lembrar que, anteriormente, a ABRIR havia
enviado um representante à I e II CBM.
Finalmente, faz-se importante ressaltar que a participação das
representantes deixa constância de uma característica marcante, neste caso
de gênero, observada também no nível local do PLH: este é um movimento
liderado majoritariamente por mulheres. E é preciso dar-lhes seu merecido
destaque como protagonistas.

2.4.2 Segundo fator: ações locais – as iniciativas pelo PLH

As políticas pensadas pelo governo para os brasileiros emigrados,


como os processos de formação dos Conselhos, as CBMs, a criação do DPLP,
descritas anteriormente, contemplam ações “de cima para baixo” (ou modelo
top-down) e podem ajudar a situar o PLH num contexto macro, global, e em
órgãos públicos. Conhecer o entendimento desse fenômeno em tais esferas
mostra-se necessário para atuar no modelo de representação democrático
proposto e conseguir dar voz às reivindicações. No entanto, não menos
interessante é nos debruçarmos sobre o que acontece no nível local em
diversas latitudes. Isso ajudará a entender como se estabeleceram o diálogo e
a atuação conjunta em prol do PLH entre iniciativas geograficamente distantes,
por meio de canais diferentes que não passam pelos estabelecidos pelo
governo brasileiro.
O cenário do PLH atual está marcado pelo associativismo. O
mapeamento da organização não governamental (ONG) Brasil em Mente
(BEM) (2015a) menciona ao menos 25 iniciativas em todo o mundo, que se
somam a outras 20 listadas pela ABRIR (2017) no Reino Unido e uma citada
por Moreano e Leal (2012) na África do Sul, entre outras que certamente não
estão registradas nessas fontes. Trata-se de associações, ONGs ou mesmo
projetos iniciados individualmente por pais, professores ou membros da
comunidade, os quais vislumbram a possibilidade de realizar um trabalho de
85

transmissão da língua e de tradições brasileiras junto às comunidades locais,


em alguns casos num contexto mais amplo de lusofonia que inclui participantes
de outros países de língua oficial portuguesa. Em geral, as atividades estão
voltadas para crianças, mas também há trabalhos sendo realizados com
adolescentes (por exemplo, na Linguarte, em Munique, Alemanha) ou adultos
(os falantes de herança matriculados em cursos de língua portuguesa das
universidades dos EUA já chamam a atenção como um grupo específico – ver
Jouët-Pastré (2011) e Silva (2015)).
As motivações para colocar em marcha uma iniciativa costumam ser
bastante pessoais e passam pela necessidade de ter um novo espaço para
expressar o que se percebe como sendo uma “identidade brasileira”,
transmitindo traços culturais aos filhos ou à nova geração – embora também
haja um grupo que se aproxima desse universo buscando abrir oportunidades
profissionais, como expandir a própria atuação como professor de línguas para
um novo campo, ou com interesses acadêmicos vinculados à pesquisa ou ao
ensino universitário de temáticas relacionadas à emigração brasileira. No
primeiro grupo, os envolvidos desejam que as crianças entrem em contato com
aspectos da cultura brasileira para que, ao lhes proporcionar oportunidades de
identificação com essas práticas, elas possam incorporá-las a suas identidades
e sentir-se também brasileiras. Essas questões são importantes para os
próprios envolvidos no projeto e para os pais das crianças participantes, que
em alguns casos consideram um futuro retorno permanente ao Brasil – são
motivações bastante diferentes, por exemplo, das de famílias que buscam
matricular as crianças em escolas bilíngues internacionais ou em cursos de
idiomas em inglês, francês ou alemão para dar-lhes um diferencial junto ao
mercado de trabalho.
Assim, começaram a surgir grupos que se reuniam regularmente
para conviver em português, seja para proporcionar momentos de brincadeiras,
oficinas artísticas, sessões de cinema, eventos culturais ou organizar aulas
para as crianças, as quais estão em contato com esse repertório linguístico e
cultural também em casa.
Dessa maneira, é importante frisar que as iniciativas de PLH não
funcionam única e exclusivamente no formato de aulas e, mesmo nos casos
em que esse seja o modelo adotado, seria necessário precaução antes de
86

definir o ensino de PLH como uma subespecialidade do ensino de português


como língua estrangeira (PLE). Primeiramente, porque a aprendizagem de PLH
ocorre em muitos outros âmbitos além da sala de aula: dentro de casa, com a
família ou em outros encontros nos quais é possível ter contato com grupos de
falantes que compartilham um repertório linguístico e cultural comuns e se
sentem identificados com eles e por meio deles. Esse conhecimento linguístico
e cultural ‘aprendido de forma natural’ é um dos fatores que define um aprendiz
de herança. Em segundo lugar, porque, mesmo quando há um aprendizado
formal, em um curso de PLH, as expectativas de aprendizado de falantes de
herança e alunos de língua estrangeira (LE), como bem pontua Beaudrie
(2012), podem ser bastante distintas e pedem uma abordagem diferenciada em
relação às questões de cultura e identidade – o “eixo” do aprendizado de LH,
geralmente o “pano de fundo” no aprendizado de LE, já que “as necessidades
dos aprendizes de língua de herança estão intimamente relacionadas a seu
desejo de reconectar com sua herança cultural e aprender mais sobre suas
perspectivas e práticas” (BEAUDRIE, 2012, p. iii), não estando relacionadas
apenas ao aprendizado de uma língua.
Jennings-Winterle e Lima-Hernandes (2015) classificam as
iniciativas do seguinte modo: formais (encontros ao menos uma vez por
semana, com ao menos 4 horas de duração), informais (encontros ao menos
uma vez por semana, com menos de 4 horas de duração) e esporádicas (por
exemplo, para comemorar as festividades brasileiras). A maioria dessas
iniciativas é informal ou esporádica. Porém, o panorama é bastante diverso.
Algumas já têm mais tempo de trajetória, mas muitas surgiram na década de
2010 – e continuam a surgir, sugerindo que há uma tendência.
Tal tendência, no entanto, não significa uma uniformidade de
propostas educativo-culturais ou que as mesmas constituam, necessariamente,
projetos maduros. Os desafios enfrentados pelas iniciativas, às vezes
originadas de modo amador e por puro entusiasmo, às vezes por alguém com
experiência na área de educação, às vezes vinculadas a alguma igreja ou
grupo religioso, vão de questões administrativas (Deve-se pagar para
participar? Quanto? A quem? Quem irá controlar esse dinheiro?), passando por
questões logísticas e de liderança (Quem irá organizar? Onde serão os
encontros? Qual o custo de aluguel do espaço? Com que periodicidade?) e
87

pedagógicas (Haverá a figura de um educador ou professor? Ela tem formação


específica para desenvolver as atividades propostas?). É necessário tempo
para amadurecer e resolver essas questões, e em muitos lugares elas ainda
não estão resolvidas.
O número de iniciativas é grande e o cenário tão dinâmico que seria
impossível mencioná-las todas aqui. Há uma grande opção de cursos de PLH
para crianças nos EUA (principal destino dos brasileiros23), mas também no
Canadá (Oficina Curumim), na Suíça (ABEC, Associação Raízes), na Noruega
(Elo Cultural), na França (Clube dos Canarinhos), na Nova Zelândia (Curso de
Língua Portuguesa e Cultura Brasileira para Crianças – CPBC); há grupos para
pais e bebês na Inglaterra, na Espanha (APBC) e na Austrália (Association for
Brazilian Bilingual Children Development – ABCD); há escolas infantis bilíngues
em português (Estrelinha) e jovens de origem brasileira se preparando para
prestar o exame nacional do ENCCEJA (Linguarte) e obter um certificado de
Ensino Médio brasileiro na Alemanha, além do diploma do país em que vivem;
há escolas brasileiras reconhecidas pelo Ministério da Educação (MEC) em
funcionamento no Japão; há projetos de narração de histórias em português e
aulas nos Emirados Árabes (Hora do Conto em Dubai). Esses são apenas
alguns exemplos que ilustram a variedade de propostas e regiões onde se
desenvolvem.
A existência de tantas iniciativas pelo PLH ao redor do mundo,
revelando um interesse considerável dos brasileiros emigrados em transmitir
aspectos de seu repertório linguístico e cultural associados ao Brasil aos filhos,
dando indícios de vitalidade do português em vários pontos do globo, é o
segundo fator para que o movimento pelo PLH se configure como tal. Essas
iniciativas estabeleceram um diálogo que resultou num discurso comum. A
maneira como isso ocorreu, e mesmo a forma como algumas iniciativas
começaram a se organizar, está relacionada às redes sociais e aos avanços
nas possibilidades proporcionadas pela internet. O impacto da internet para
que o movimento do PLH se estruturasse é apresentado a seguir.

23
Em Miami, a escola Ada Merritt oferece um currículo bilíngue em português e inglês. Embora
seja uma proposta de educação bilíngue aberta a qualquer interessado, seja de origem
brasileira ou não, e não especificamente de PLH, vale ser mencionada como opção procurada
por famílias que desejam transmitir o PLH.
88

2.4.3 Terceiro fator: a internet e o mundo 2.0 como porta de


entrada para o universo do PLH

Nos primórdios da internet, havia uma distinção muito clara entre


quem produzia conteúdos e os usuários da rede ou internautas. Em dado
momento, na década de 2000, isso começou a mudar. Surgiram os blogs, que
permitiam aos leigos, aos não-programadores, construir sua página, publicar
seus conteúdos, atualizá-los com facilidade e hospedá-los gratuitamente
(BLOOD, 2005).
O fato de os usuários passarem a produzir seus conteúdos, fossem
textos, fotos ou vídeos, chamada por alguns de revolução 2.0, constituiu um
passo importante no projeto de criação de inteligência coletiva desta nova
sociedade da informação (LEVY, 1998; CASTELLS, 1996). Em torno dos blogs,
com a possibilidade de que os leitores interagissem com o editor ou dono da
página, começaram a se configurar comunidades, grupos de pessoas com
interesses comuns, distantes fisicamente, mas que liam os mesmos textos e
conversavam, ainda que por comentários, sobre questões que lhes eram afins.
Aos poucos, foram surgindo as redes sociais, como o já inexistente
Orkut (2004-2014), particularmente popular entre os brasileiros, o Facebook
(2004), o Twitter (2006), o Instagram (2010) e plataformas como YouTube
(2006), em que os usuários podiam compartilhar seus vídeos. Paralelamente,
houve um enorme avanço na democratização do acesso à internet por diversas
razões, entre as quais a expansão do cabeamento ótico ou do acesso à banda
larga, a redução do custo dos serviços, a difusão do uso de smartphones com
acesso à internet 24 horas por dia e a capacitação da população em geral para
utilizar esses recursos. E todo esse “caldo”, mexido por algumas pessoas muito
interessadas pelo aprendizado de português, e mexendo em crianças de
origem brasileira residentes fora do Brasil, começou a ferver.
O surgimento das redes sociais permitiu localizar pessoas
geograficamente próximas com interesses comuns e contribuiu para que
fossem fundadas iniciativas em diversos pontos, por exemplo, o Projeto
Brincar.es em 2008 em Madri (TAVARES, 2014) ou a APBC em 2009 em
Barcelona (MORONI, 2013), ambos na Espanha. Mas aqueles que estavam
distantes uns dos outros também podiam encontrar meios para se informar,
89

discutir e refletir de modo coletivo sobre questões relacionadas ao PLH, como


pelo blog Filhos Bilíngues, de Claudia Storvik (STORVIK, 2010). Os três casos
ilustram como pontos de encontro virtuais propiciaram encontros e discussões
que tiveram continuidade nos espaços analógicos.
As redes sociais são, ainda, uma das principais ferramentas de
trabalho da BEM, com sede em Nova York, que lançou em 2009 o blog
Brasileirinhos, hoje parte da Plataforma PLH (BRASIL EM MENTE, 2016). Com
a colaboração de alguns colunistas e conteúdos específicos sobre PLH, a
plataforma gera e publica uma, duas ou várias vezes por semana posts com
informações úteis para aqueles que desejam transmitir o PLH em todo o
mundo, divulga o trabalho de iniciativas, realiza entrevistas com os envolvidos,
traz materiais e recursos que podem ser usados com as crianças, entre muitos
outros tópicos. Os frutos do trabalho da BEM disponibilizados ali incluem ainda
o documentário Brazil com S, programas gravados em vídeo e um pioneiro
curso on-line de formação para professores e envolvidos com PLH. Fora da
rede, a BEM editou livros didáticos e algumas publicações, que podem ser
adquiridas no site.
Por estarem na internet, os conteúdos do então blog Brasileirinhos,
produzidos e atualizados com regularidade e fazendo um uso exaustivo da
sigla PLH e do termo “português como língua de herança” podiam ser
acessados de qualquer lugar do mundo, bastando que houvesse acesso à
rede. Começaram a surgir, assim, os primeiros canais que veiculavam
informações específicas sobre o universo do PLH.
Os conteúdos, aliados às redes sociais, fizeram com que a voz
começasse a correr. Com a expressão “PLH” sendo usada, o próprio conceito
foi se delineando, ganhando uma identidade, enchendo-se de significados e
simbologias com as quais os leitores e falantes passaram a se identificar,
reivindicando-os para si. Se antes algumas iniciativas já existiam, mas
realizavam um trabalho exclusivamente local ou regional – promovendo a
transmissão de ‘língua materna’, ‘língua comunitária’, ‘segunda língua’, ‘língua
de imigração’ ou o nome que recebesse ali, sem que um dos termos fosse
usado de maneira consistente – a expressão ‘PLH’ passou a ser
gradativamente reivindicada e fazer parte do discurso desses projetos. Assim,
ficou mais fácil e imediato identificar afinidades: se participo de uma iniciativa
90

pelo PLH e você também, eu sei em linhas gerais o que você propõe e aonde
quer chegar, e você deve saber o mesmo de mim.
Aos poucos, as redes sociais e a formação de comunidades virtuais
em torno desses “pontos de encontro” (sites, blogs e fan pages das iniciativas
no Facebook, Plataforma PLH etc.) permitiram que as iniciativas soubessem da
existência umas das outras, compartilhassem algumas questões, descobrissem
dúvidas similares, trocassem experiências. Grupos fechados começaram a ser
criados no Facebook, alguns para as famílias e colaboradores que frequentam
determinadas atividades e encontros, outros que reúnem representantes das
diferentes iniciativas, mais voltados à troca de experiências, como a Federação
de Iniciativas pelo PLH ou o Elo Europeu de Educadores de POLH. Depois de
começarem, essas “conversas” não cessaram mais.
Embora não seja possível mensurar o impacto de todo o trabalho de
divulgação realizado pela BEM desde o início, o qual inegavelmente influiu para
que o termo “PLH” se consolidasse como uma bandeira conhecida e
reivindicada em vários pontos do mundo, sabe-se que, no mês de fevereiro de
2015, a Plataforma Brasileirinhos teve mais de 35.000 visualizações. Cabe
ressaltar, ainda, que o trabalho da BEM de promoção do PLH, sob direção de
Felicia Jennings-Winterle, não se restringe à internet e às redes sociais. Em
2014, a BEM (2015b) criou o “Dia do Português como Língua de Herança”, 16
de maio, e vem fomentando a comemoração da data por iniciativas em todo o
mundo, as quais enviam registros das ações desenvolvidas (fotos, mensagens
etc.) para publicação na plataforma. O objetivo de criar a data era não só dar
visibilidade à causa, mas também “disseminar conceitos e práticas para
profissionais que trabalham com o PLH e enfrentam os desafios de entender e
atuar no ensino de língua-cultura diante de tantas variáveis complexas das
comunidades a que pertencem” (BRASIL EM MENTE, 2015b). Entre os que
aderiram à causa como embaixadores oficiais a convite da BEM, encontram-se
a escritora Ana Maria Machado, por exemplo.
Outra ação de destaque da BEM foi a criação do “Curso de
Capacitação de Professores e Demais Envolvidos em PLH”, em formato on-
line, que teve sua primeira edição no começo de 2014 e se encerrou com um
encontro presencial, a “I Conferência de PLH (CPLH)”, em Nova York com
participantes da Alemanha, Brasil, Canadá, Espanha, EUA, Japão e Nova
91

Zelândia, consolidando presencialmente laços inicialmente estabelecidos pela


internet24. Em 2015, a II CPLH se tornou um evento independente do curso e
teve participantes de oito países, um a mais que no ano anterior: novamente,
Alemanha, Brasil, Espanha, EUA e Japão estavam representados, mas
também Emirados Árabes, México e Suíça.
Os exemplos apresentados mostram como iniciativas pelo PLH,
geograficamente distantes umas das outras, puderam tomar conhecimento dos
trabalhos realizado por seus pares e de um discurso sobre o PLH que não só
reivindicaram como próprio, mas ajudaram a construir através da internet.
Assim, a internet – com todas as possibilidades que oferecia na década de
2010, as quais são diferentes das da década anterior, notadamente em relação
ao amadurecimento e ao uso das redes sociais – se configura como o terceiro
fator que permitiu ao movimento pelo PLH chegar a seu momento atual.

2.4.4 Chegando ao ponto: os encontros presenciais

Se a internet e as redes sociais têm hoje um papel fundamental para


as iniciativas pelo PLH, o governo brasileiro também está ciente de como essas
ferramentas permitem que grupos de brasileiros se conectem nos pontos de
destino, o que pode resultar, como exemplificado, no surgimento de iniciativas
pelo PLH. A esse respeito, uma das publicações recentes do IBGE reconhece
“evidências da associação entre migração e redes sociais”, as quais “conectam
migrantes, migrantes de retorno e não migrantes nas áreas de origem e destino
e aumentam a probabilidade de ocorrência da migração internacional, ao
reduzirem os custos e riscos do deslocamento” (CAMPOS, 2011, p. 77). Além
disso, o fato de as principais políticas públicas do Brasil para os brasileiros
residentes no exterior passarem pelo portal Brasileiros no Mundo atesta a
importância da internet para que as comunidades se organizem e se articulem.
Em síntese, o contexto que consolidou o PLH não só como uma
expressão, mas como uma causa, está composto pelos seguintes fatores: (i)
existência de políticas públicas para os brasileiros residentes no exterior – as

24
Como mencionado, desde 2011 alguns cursos de formação em PLH dirigidos a professores
começaram a ser realizados, inclusive na Europa, porporcionando a oportunidade dos
encontros presenciais. No entanto, não disponho de dados suficientes para valorar se,
previamente, os participantes já constituíam uma comunidade virtual, como no caso da BEM.
92

quais contemplam as possibilidades da internet e adotam vias democráticas de


participação, usadas pelas iniciativas para escalar suas reivindicações; (ii)
iniciativas pelo PLH atuantes de modo local em diversas partes do mundo – as
quais são conscientes das políticas públicas existentes e se articulam com
outras iniciativas através da internet; (iii) redes sociais e outros recursos
proporcionados pela internet – os quais permitem que as iniciativas estejam em
contato, difundindo e consolidando o PLH como uma causa e um discurso
comum.
Embora esses três pontos tenham sido apresentados anteriormente
em separado, em uma tentativa de situar cada um desses aspectos
cronologicamente, é necessário enfatizar que seu desenvolvimento não foi
sucessivo, mas simultâneo: políticas públicas, iniciativas e internet
amadureceram de modo concomitante na última década para conduzir o PLH
ao momento atual.
Dessa forma, a possibilidade de diálogo entre iniciativas, o interesse
em contar com recursos do governo para viabilização de projetos locais,
somados à possibilidade de fazer-se ouvir por mecanismos como CRBE ou
Conselhos de Cidadania e de Cidadãos, tudo permeado por atuação e uso da
internet, fez com que muitas iniciativas pelo PLH transmitissem suas demandas
ao MRE. E um dos resultados visíveis desse processo é o fato de o PDLC
priorizar, nos editais de 2015 e 2016, ações pelo PLH, não apenas porque essa
parece ser uma boa ideia, uma tendência ou a coisa certa a fazer, mas porque
esse apoio foi pedido por iniciativas e comunidades brasileiras de diferentes
partes do mundo, estando registrado nas atas das CBMs e presentes nos
planos de trabalho ali elaborados:

2.PLANO DE AÇÃO

1) Ensino e difusão da língua portuguesa [...]


d) Apoio para capacitação de educadores e professores de português
como língua de herança no exterior, com continuação dos cursos
realizados pelo Departamento Cultural do MRE (MRE, MEC);
e) Manutenção dos projetos atuais do programa do Departamento
Cultural do MRE no exterior para reforço dos vínculos linguísticos e
culturais com o Brasil por parte das comunidades brasileiras no
exterior (MRE); [...]
i) Estímulo às empresas brasileiras com atuação no exterior para
financiamento de projetos de promoção da língua portuguesa e da
cultura brasileira, como parte de suas atividades de responsabilidade
social (MRE, MinC);
93

j) Fomento ao contato, ao intercâmbio e à troca de experiências entre


as iniciativas que promovem o português como língua de herança no
mundo (MEC, MRE) [...]

2) Ações educacionais para crianças e jovens brasileiros no exterior


a) Manutenção e reforço do apoio governamental brasileiro para
ensino de língua portuguesa para crianças (MRE, MEC); [...]
d) Designação de servidor no MEC com atribuições específicas para
tratar das políticas de educação para brasileiros no exterior (MEC);

7) Distribuição de material didático a brasileiros no exterior


a) Envio de material didático e paradidático a instituições de ensino
de português como língua de herança no exterior (MEC, FNDE,
MinC) [...]
(MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2012)

Havia, no entanto, ainda mais por acontecer. O amadurecimento da


interação entre as iniciativas, as políticas públicas e as ações realizadas pela
comunidade de PLH nos conduziram a um terceiro momento, em que são
fomentadas oportunidades de interação cara a cara, presencial, entre os
membros das iniciativas existentes e distantes geograficamente.
Apesar de algumas experiências-piloto anteriores, esses encontros
marcaram presença no calendário de PLH a partir de 2013 e foram fomentados
sob a bandeira de “Cursos de Formação de Professores de PLH”. A seguir,
compilo alguns, sem pretender que a lista esteja completa: entre setembro e
outubro desse ano, o Consulado-Geral do Brasil em Boston promoveu um
“Curso de Formação Continuada para Professores de Português como Língua
de Herança” e repetiu a proposta em novembro de 2014. Ainda em outubro de
2013, realizou-se o “I Simpósio Europeu sobre o Ensino de Português como
Língua de Herança (I-SEPOLH)” em Londres, com sua segunda edição
realizada em Munique, em 2015. Em fevereiro de 2014, teve início a primeira
edição do “Curso de Formação Continuada para Professores e demais
Envolvidos em PLH”, da BEM (em fevereiro de 2016 encontrava-se em sua
quinta edição), em um modelo on-line que permitiu a participação e troca de
experiências de pessoas das mais diferentes partes do mundo (o que,
tecnologicamente, talvez não fosse viável dez anos antes), mas com parte
presencial em Nova York (a partir de 2015, a parte presencial foi substituída
por uma Conferência anual, aberta aos participantes do curso e interessados
em geral). O Elo Europeu de Educadores de POLH, fundado em 2013 durante
o I-SEPOLH (SOUZA, 2016b), vem realizando desde então oficinas para a
94

formação de educadores em diferentes pontos da Europa. Há, ainda, alguns


eventos organizados pelos consulados, como o “Curso de Extensão Português
como Língua de Herança 2014”, com cerca de 40 inscritos, no Consulado Geral
de Madri em novembro de 2014, o qual concedeu aos participantes um
certificado de curso de extensão universitária emitido pela Universidade de
Brasília (UnB)25.
Dirigido a profissionais já atuantes ou que desejam atuar com PLH,
em todos os casos o perfil dos participantes dos cursos foi variado: educadores
de PLH que vinham de outras áreas e nunca haviam tido formação como
professores ou no ensino de línguas; professores de PLE, alguns dos quais,
quando viviam no Brasil, davam aulas de outra língua estrangeira (inglês,
espanhol, alemão, etc.), mas sem experiência em PLH; professores de PLH
com ampla experiência; mães brasileiras desejando saber mais sobre como
ensinar português aos filhos; interessados em começar uma iniciativa e
falantes de herança (PLH e outras línguas).
A troca de experiências tão diversas e culturalmente enriquecedoras,
em torno da mesma questão da língua e identidade dos falantes de PLH,
consolidou a atuação das lideranças, pois estreitou o contato pessoal entre
elas, capacitou os participantes para uma atuação local mais fundamentada e
teve efeito multiplicador nas comunidades locais, inspirando a fundação de
novas iniciativas. Sobretudo, o contato presencial consolidou uma rede de
colaboração, discussão, troca e difusão de conhecimentos em plena atividade,
que passa por pesquisas de pós-graduação, interage nas comunidades locais,
entre iniciativas de PLH pelo mundo e propõe discussões de âmbito mundial,
intercalando atualmente a interação virtual com a presencial.
Exemplos dessa articulação são a publicação de livros como PLH: A
filosofia do começo, meio e fim (JENNINGS-WINTERLE e LIMA-HERNANDES,
2015) ou Português como língua de herança: Discursos e percursos

25
Cabe mencionar o curso de Pedagogia oferecido à distância pela Universidade Federal do
Mato Grosso (UFMT) a brasileiros residentes no Japão. Entre agosto de 2009 e agosto de
2013, foi aberta esta turma especial, no qual se utilizou uma metodologia que incluiu encontros
presenciais com professores para oficinas e seminários regionais e nacionais. Embora se insira
no contexto de PLH, o caso japonês tem peculiaridades: o Japão é o único país estrangeiro
com escolas brasileiras reconhecidas pelo MEC. Longe de ser motivo de orgulho, tais escolas
são uma medida paliativa para acolher alunos de origem brasileira que não conseguem se
inserir de modo satisfatório no sistema escolar japonês. Este curso de Pedagogia foi oferecido
para melhorar a formação e oferta de professores para atuar nesses espaços.
95

(CHULATA, 2015) – que, não por acaso, se publicaram nos EUA e na Itália,
respectivamente, e não no Brasil – cujos capítulos foram escritos por algumas
lideranças que atuam em iniciativas ou academicamente em torno do PLH, ou
projetos como “O mundo pelos brasileirinhos” (do Elo Europeu) e “Dona Terra”
(da ONG Carlotas). Neles, iniciativas que trabalham com o formato de aulas
desenvolvem atividades em sala com as crianças e os alunos produzem
materiais como cartas, vídeos ou desenhos posteriormente trocados com outra
iniciativa, levando os aprendizes a interagir com brasileirinhos de outros pontos
do mundo e criando espaços nas aulas de PLH para falar também da cultura
local, não-brasileira, em que essas crianças se inserem.
Nos discursos em torno dos encontros presenciais, observa-se uma
tendência a que estejam dirigidos a um público-alvo de “professores e
profissionais” que atuam com PLH. Os objetivos e resultados desses
encontros, no entanto, como descrito na seção 1.2.5 sobre o curso de
capacitação em PLH oferecido pelo Consulado Geral de Madri em 2014,
podem levantar o questionamento de se direcionar tais cursos e encontros a
“professores e profissionais” realmente é o mais adequado. Consolidar o
trabalho de sala de aula é, sim, necessário, e os desafios são muitos, mas a
participação de envolvidos na transmissão e ensino de PLH em outras
instâncias – pais e representantes de iniciativas que trabalham com outros
modelos, que não o das aulas – tem sido uma constante. É necessário,
portanto, refletir se realmente os “professores” são o único público a ser
considerado nos encontros de capacitação para se atuar com PLH.
Em todo caso, os encontros presenciais, recebam o nome que for,
têm se mostrado importantes e tudo indica que continuarão a acontecer. São
esses eventos que caracterizam o momento atual do movimento pelo PLH, cujo
avanço recente está sintetizado na tabela a seguir.
96

Avanço do movimento pelo PLH

1º momento Iniciativas atuam de modo local ou regionalmente,


(aproximadamente são isoladas, restritas à comunidade
antes de 2010) geograficamente próxima

O termo PLH se difunde na internet e redes sociais.


2º momento As iniciativas começam a dialogar por esses meios.
(aproximadamente Seus participantes descobrem desejos e
entre 2010-2014) necessidades comuns e começam a trabalhar
conjuntamente por seus objetivos.

Encontros presenciais de representantes das


iniciativas por meio dos chamados “Cursos de
Formação de Professores”, simpósios e
conferências com participantes de diferentes pontos
3º momento geográficos. O movimento e a troca de experiências
(aproximadamente a se consolidam. Há discussões e aprofundamento
partir de 2013) sobre questões específicas, como currículo,
planejamento, políticas linguísticas, capacitação,
pesquisa.

Tabela 2 – Avanço do movimento pelo PLH

2.5 Língua e identidade no PLH

Se o PLH logra construir-se como um movimento, como um discurso


articulado, embora seus agentes estejam geograficamente distantes, isso só é
possível porque, de alguma maneira, houve um processo de identificação entre
eles. Neste caso, tal identificação ocorre claramente pelo uso do que têm em
comum em seu repertório linguístico, ou seja, do português, o qual, como já
afirmado anteriormente, é o meio e a justificativa para uma série de práticas
culturais pelas quais os usuários da língua podem expressar suas identidades
vinculadas ao país de origem, o Brasil.
Essa língua deve ser pensada como um traço identitário e cultural
contextualizado, algo que permite pertencer a um grupo de “nós”, aqueles que
se identificam com ela e realizam certas práticas culturais relacionadas ao
Brasil por meio dela, e os “outros”, que não participam desse grupo. A LH seria,
assim, uma língua de identificação – não necessariamente a língua inicial, a
habitual ou a que o falante sabe melhor, ou sequer fala, mas uma das línguas
97

que ele considera como “sua” –, pois é um dos traços culturais que permite aos
membros do grupo se identificarem como brasileiros. Ou, ainda, como
brasiliófilos: aqueles que, embora não construam uma representação de si
próprios como brasileiros, desejam participar das práticas culturais e dos usos
linguísticos desse grupo, pois se identificam com ele.
Ao pensar os processos de identificação dos promotores e falantes
de língua de herança com uma das línguas e com práticas culturais
identificadas como pertencentes ao Brasil, muito se fala em identidades e faz-
se necessário refletir sobre o que realmente essa “identidade brasileira”
significa. Embora as referências à “identidade brasileira” ou simplesmente
“identidade” nos discursos em torno do PLH sejam frequentes, devo ressaltar
que essa identidade brasileira é plural e está num constante processo de
construção e negociação.
Os brasileiros emigrados, articulados em torno do PLH, não provêm
todos da mesma zona geográfica: há uma diversidade de sotaques e
regionalismos no português que falam, de sabores na culinária que para eles é
“brasileira” e continua presente em seu cotidiano, de referentes musicais,
manifestações populares, práticas esportivas ou religiosas, enfim, há uma
pluralidade de modos de significar-se a si próprio e a suas experiências no
mundo. Mas há, também, um repertório compartilhado de práticas comuns nos
espaços de PLH (embora não necessariamente o sejam nas regiões ou
culturas de origem), que permite o processo de identificação (HALL, 2011). A
esse respeito, He (2010) destaca que a LH cumpre uma função sociocultural,
sendo não apenas um meio de comunicação, mas também de permitir que um
grupo se identifique através de diferentes elementos comuns, culturais,
expressos por meio da língua.
Embora não seja o objetivo deste trabalho discutir e discorrer de
forma aprofundada sobre os processos de identificação que permitem que
alguém se sinta “brasileiro”, parto de paradigmas de identidades pós-modernos
(BAUMAN, 2005), que rechaçam a tradição modernista homogeneizadora da
ideia de identidade nacional como algo sólido, estável, a ser adquirido por seus
cidadãos – tal como também defendem Burke (2003), Hall (2011) e
Canagarajah (2015). Paralelamente, um entendimento das questões de PLH
pede ainda que sejam desconstruídas relações determinísticas estabelecidas
98

na modernidade como a de “uma nação, uma língua”: por um lado, embora


tenha apenas uma língua oficial, o Brasil é não só um país culturalmente plural,
como plurilíngue; por outro, os falantes de PLH, embora se identifiquem de
alguma maneira como “brasileiros”, são sujeitos bi ou plurilíngues e muitas
vezes se identificam também como cidadãos do país em que residem.
Como os falantes de PLH são eles próprios frutos de deslocamentos
– migrações, processos de hibridização (GARCÍA CANCLINI, 2013), a
aquisição de uma nova nacionalidade, o aprendizado de outra(s) língua(s)
diferente(s) de sua(s) língua(s) inicial(is) –, costumam encaixar bem nessa
subjetividade pós-moderna. Pode-se dizer que eles constroem sua identidade
brasileira em contraste com o que não se adequa à cultura estrangeira em que
vivem, à qual não necessariamente irão renunciar, mas podem ter identidades
híbridas, ou complementares, ou que se alternam, entre a brasileira, a local e a
de um terceiro espaço, dependendo da situação. Ou, como diria Hall (2011, p.
41), “Eu sei quem ‘eu’ sou em relação com ‘o outro’ [...] que eu não posso ser”,
ideia compartilhada por Silva (2012).
Assim, nessas identidades e discursos, há algo de uma certa
“brasilidade” em comum que permite que falantes de PLH imersos nas culturas
japonesa, americana, alemã, paraguaia, suíça ou australiana, entre outras,
busquem elementos que enfatizem as origens, a “continuidade”, a “tradição” e
a atemporalidade desses aspectos identitários associados ao Brasil, que lhes
permitem construir uma comunidade imaginada (ANDERSON, 2008). Essas
representações de identidade nacional brasileira, construídas na distância,
talvez embasadas mais na memória e nas vivências do passado do que nas
práticas culturais vigentes que circulam ao redor (as do país hospedeiro), não
necessariamente coincidirão com as representações de Brasil dos brasileiros
residentes no Brasil – as quais, vale lembrar, estão também em constante
construção.
Embora ao pensar o PLH por questões óbvias a tendência seja voltar-se
sobre o que há de brasileiro nesses discursos e práticas, é de importância
fundamental dar atenção a tudo que há de não brasileiro no contexto e no
próprio conceito de PLH: se uma parte da identidade dos falantes de herança
se identifica com o “ser brasileiro”, outra parte importante se diferencia
claramente da identidade dos brasileiros nascidos e residentes no Brasil: os
99

falantes de herança vivem em outra cultura e falam outra(s) língua(s), as quais


talvez sejam tão ou mais suas que a língua e cultura de herança.
Nessas diferenças talvez esteja a chave de por que o processo de
construção de discursos (e, por extensão, de uma identidade específica) em
torno ao PLH seja possível: ser falante de PLH é não renunciar à(s) outra(s)
identidades (inter)nacionais que compõe(m) o sujeito. A bagagem que eles
compartilham não está apenas na brasilidade, mas no processo migratório da
família, na recepção e inserção num país hospedeiro, na existência de outros
códigos culturais e linguísticos que, pressupõem-se, eles devem dominar. Tão
relevante como a língua de herança em si são as tensões e relações que
emergem a partir dela para esses indivíduos, isto é, sua percepção da
realidade, o contato e interação com a cultura dominante e a cultura da família,
como esse sujeito percebe a língua do entorno e a língua de herança e os
processos de negociação dessas informações. São estas singularidades todas,
e não apenas a identificação com a cultura brasileira, que irão compor a
identidade do falante de PLH – e as mesmas são diferentes das dos brasileiros
nascidos e residentes no Brasil que não passaram pela experiência migratória.
Na próxima seção, exemplifico como tais deslocamentos e
heterogeneidades se fazem visíveis na produção de texto – e na construção
como sujeito – de uma criança da APBC.

2.6 Uma língua-cultura-identidade fragmentada e


heterogênea

Cabe aqui levantar a pergunta: como são, então, os usos desse


português como língua de herança, como língua, como prática translinguística?
Vejamos este exemplo:
100

Gui

Figura 3 – Produção de texto de Daniel, 9 anos, em uma das aulas da APBC.

Texto original:
Esi ano vo pasa u natau na ispany vo dar un present pro papai Noel y
pra mamai i papai eu sa botei a arvuri di natau cun meu irma Gui
i mina mamai i u e o papai ondi nosis a carta pero mas sei uma coisas
quievo pidi.
Vo pidi o vi di o tronic i crano bun...
FELIÇ NATAU

Versão em português padrão:


Esse ano vou passar o Natal na Espanha. Vou dar um presente pro
Papai Noel e pra mamãe e papai. Eu sabotei a árvore de Natal com meu
irmão Gui e minha mamãe e o papai. [?] a carta mas sei umas coisas
que eu vou pedir.
Vou pedir o Videotronic e Cranobun...
FELIZ NATAL

A produção de texto de Daniel26, feita como atividade de sala de aula


na APBC semanas antes do Natal de 2015, ajuda a nos aproximarmos mais

26
Foi obtido o TCLE para que a produção de texto de Daniel fosse utilizada na pesquisa. No
entanto, nem ele nem seus pais participaram de outros procedimentos de geração de dados,
101

dessa questão. Daniel tem nove anos, nasceu na Catalunha, é filho de pai e
mãe brasileiros, os quais sempre falaram em português com os filhos. Tem um
bom domínio oral do português, mas pouco contato com a língua escrita.
Começou a participar das aulas de língua e cultura do Brasil cerca de dois
meses e meio antes de ter escrito essa carta.
Nessa produção de texto, ele demonstrou ter entendido o enunciado
do professor (escrever um texto sobre o Natal), conhecer as tradições
brasileiras para a festividade (Papai Noel, árvore de Natal), diferentes das
catalãs27, e ter um bom vocabulário, usando, por exemplo, o verbo “sabotar”.
As soluções encontradas por ele para cumprir a tarefa são muito interessantes,
pois dão pistas de como os falantes de PLH utilizam recursos translinguísticos
para preencher as lacunas de seus conhecimentos em português. Assim,
Daniel recorre ao amplo repertório linguístico (BUSCH, 2012) de que dispõe e
faz uso de formas escritas do castelhano (inexistência de “ss”: “pasa”; uso do
“y” para a conjunção “e”), do catalão (a grafia de “feliç” está correta em catalão;
“ny”, que corresponde ao dígrafo “nh” do português, em “ispany”, cuja forma
correta seria “Espanya”; uso do “i” para a conjunção “e”), algumas comuns a
essas duas línguas (“n” ao final de palavras: “un”, “cun”), usando ainda seu
conhecimento do português oral (“natau”, “arvuri”, “pidi”).
A produção escrita de Daniel nos recorda que, mesmo no Brasil, nos
contextos em que a variante da língua portuguesa usada por uma criança
monolíngue em português se distancia mais do português padrão (como em
contextos de baixa escolaridade, periferias urbanas, entornos rurais), os
recursos translinguísticos podem ser utilizados, por exemplo, ao tentar
reproduzir no texto escrito os usos e sons do português oral – e os estigmas
com que tais produções de texto podem ser recebidas.

de modo quee não figuram no conjunto dos participantes de pesquisa mencionados no


Capítulo 1.
27
O Papai Noel não faz parte do repertório de tradições natalinas catalãs e, embora seja
conhecido como uma importação cultural, na maioria das casas os presentes são trazidos
pelos Reis Magos ou pelo tió, um tição animado que protagoniza a tradição de “fazer o tição
cagar” os presentes, dando-lhes golpes com um bastão e cantando uma cantiga tradicional.
Também se montam árvores de Natal, embora seja mais tradicional montar o presépio, com
musgo fresco representando a grama e a figura do caganer (um personagem de cócoras, com
as calças abaixadas, concentrado em defecar) entre as estatuetas que representam a cena
bíblica.
102

Provavelmente, a leitura inicial da produção de texto de Daniel seria


recebida com estranhamento e percebida como “repleta de erros” pelo leitor
brasileiro com alta escolaridade, pois tem suas peculiaridades. Como se
mencionou, a redação revela as regras ortográficas que ele conhece e utiliza
com frequência muito maior para escrever em duas outras línguas, castelhano
e catalão, e se aproxima intuitivamente dos sons do português oral que ele
conhece bem. Tais “erros” não são apenas “erros”: são sombras de outras
coisas que ele sabe melhor. Para entender isso, aqui se faz necessário
delimitar algumas fronteiras: o PLH não é a língua materna do menino, mas
também não é uma língua estrangeira para ele.28
Questionar se o texto de Daniel está em português é recordar que a
existência de uma língua – bem como a da chamada “identidade brasileira” –
não é um fenômeno natural, mas uma construção histórica e ideológica
(WOOLARD, 2012) – que exclui e deslegitima, por exemplo, outros falares e
saberes linguísticos que se distanciam da norma, como os das tradições orais,
periféricos e rurais. Assim, será que é possível decantar o repertório linguístico
de Daniel, composto de português, catalão e castelhano, em entidades
separadas? Onde estão as fronteiras de seu português – ou: isso é português?
Segundo Woolard (2012), tais questionamentos são inapropriados em cenários
caracterizados pelo multilinguismo, nos quais o repertório linguístico, como no
caso de Daniel, são fluidos ou complexos. Para a autora, língua “padrão”,
aquela que se ensina na escola, aquela que se espera que os meninos da
idade de Daniel (bem) escolarizados no Brasil saibam escrever, é mais um
processo ideológico que um fato linguístico empírico. Será que deveríamos
esperar que Daniel escrevesse, falasse e usasse o português como eles (bem
como as crianças das periferias e zonas rurais brasileiras)?
Embora Daniel estivesse em contato com o português desde o
nascimento, não teve a mesma exposição à língua oral e escrita que os garotos
de sua idade das escolas brasileiras. Antes de ver nisso uma deficiência

28
Por “Português Língua Materna” (PLM) entendo o ensino de português no Brasil,
notadamente no contexto de educação obrigatória, e não necessariamente a língua falada pela
mãe do aprendiz. Por “Português Língua Estrangeira” (PLE) me refiro a abordagens como as
de Santos e Ortiz Álvarez (2010), que consideram o aprendizado da língua portuguesa nessas
condições como algo que ocorre principalmente no ambiente controlado de sala de aula – e
distante de boa parte dos mecanismos por meio dos quais os falantes de PLH aprendem o
português.
103

linguística, é preciso lembrar que ele dispõe de outros recursos que tais
crianças não têm: é muito fluente em duas outras línguas, o catalão e o
castelhano, com as quais também esteve em contato desde que nasceu.
Ademais, como frequenta a escola, Daniel sabe em que consiste a tarefa
“escrever um texto sobre o Natal”, tendo possivelmente realizado um exercício
semelhante em catalão, língua em que é escolarizado, ou castelhano, que faz
parte de seu currículo escolar como segunda língua.
Somado a isso, Daniel está familiarizado com referentes da cultura
brasileira não só aprendidos em suas aulas de português, mas vividos em
casa, em vivências significativas também do ponto de vista emocional: montar
a árvore de Natal, escrever uma carta ao Papai Noel e esperar que ele lhe
trouxesse seus presentes são parte de sua experiência de vida familiar.
Resultado: embora Daniel tenha lacunas em seus conhecimentos do português
escrito, foi capaz de levar a cabo a atividade proposta sob paradigmas
translinguísticos. Este é um caso em que, como explica Canagarajah (2013), a
comunicação transcende cada língua, transcende as palavras e envolve
diversos recursos semióticos e do entorno.
Tanto se for pensado em termos de pertencimento à cultura
brasileira, como do ponto de vista das vivências afetivas e da proficiência
linguística, o PLH é heterogêneo e, muitas vezes, fragmentado e híbrido.
Heterogêneo, por um lado, como já dito anteriormente, nas competências
linguísticas individuais que, como comenta Valdés (2000), podem abarcar um
continuum que vai de falantes fluentes na LH a sujeitos que apenas
compreendem a LH, mas não a falam, podendo chegar, para Van Deusen-
Scholl (2003), a não falantes que se sentem culturalmente vinculados à
comunidade de falantes de herança – lembrando que o pertencimento não é
exclusivo à cultura de herança e pode ser concomitante ao sentimento de
pertencer a outra(s) cultura(s). De forma análoga, as vivências afetivas do
falante de herança não se darão apenas na língua e nas práticas culturais
identificadas como brasileiras, mas naquelas do lugar onde esses falantes
moram. O PLH é, assim, híbrido não só pelas questões identitárias, mas
também do ponto de vista linguístico, pelas influências e transferências da
língua majoritária e de outras línguas com as quais seus falantes estão em
contato (que varia de país para país ou mesmo de região para região, podendo
104

esta ser o inglês, espanhol, catalão, dialetos do alemão, japonês, finlandês


etc.) e a qual geralmente falam com maior fluência que o PLH, já que
estruturas sintáticas, léxico e formas de grafar das outras línguas de seu
repertório são incorporadas no português.
Por essas características, também é factível pensar o PLH como
uma língua que se presta a práticas translinguísticas (CANAGARAJAH, 2013;
GARCÍA, 2009), já que a comunicação efetuada por seus falantes não ocorre,
via de regra, totalmente em português, inclusive entre os falantes que saíram
do Brasil adultos e têm o português como língua inicial, e faz uso de uma
variedade de recursos semióticos para acontecer – como exemplificado na
produção de texto de Daniel.
Mesmo que, em um cenário ideal, os falantes aprendam ou estejam
em contato com o PLH desde o nascimento ou a primeira infância, a
quantidade e o alcance do input não é a mesma que teriam numa sociedade
monolíngue em português, pois parte do input será na língua local dominante –
daí a possibilidade de caracterizar o PLH como uma língua híbrida, pois a
exposição a esse português não é homogênea e constante, mas intermitente.
Vale ainda ressaltar que esse aprendizado inicial ocorre no ambiente
doméstico e a LH costuma perder força quando a criança passa a frequentar a
escola, o que aumenta consideravelmente sua exposição à língua dominante
local – diferente, portanto, do que seria o aprendizado de uma língua
estrangeira.
Montrul (2012) exemplifica visualmente as diferenças entre a
aquisição de uma língua estrangeira aprendida como parte do currículo escolar
(ou por interesse do jovem ou adulto) e a aquisição de uma LH em casa, em
uma sociedade que tem o inglês por língua majoritária. Embora ela apresente
tais modelos pensando o caso dos EUA, eles ajudam a compreender as
particularidades do PLH. Primeiramente, a Figura 4 ilustra como se dá o
aprendizado de uma LE (a L2 na figura) num contexto de língua inicial
majoritária: na infância, o falante conhece apenas sua língua inicial (L1), a qual
é também a língua majoritária da sociedade onde vive, sendo que o
aprendizado da LE se inicia na adolescência. Nesse contexto, suas
competências na língua inicial serão sempre maiores que na língua
estrangeira.
105

Figura 4 – Desenvolvimento típico da língua inicial (L1) e língua estrangeira (L2) (após a
puberdade) em um contexto de língua majoritária (MONTRUL, 2012, p. 6)

A seguir, a Figura 5 ilustra o desenvolvimento da LH (L1) caso a LH


não receba apoio acadêmico adequado durante a escolarização, sem o que ela
não se desenvolve em níveis adequados para os usos linguísticos da idade
adulta. No gráfico, embora o sujeito aprenda tanto a LH como a língua
majoritária (L2) simultaneamente, tem competência maior na LH na primeira
infância. O aumento nas competências em L2, o inglês, no caso dos EUA,
coincide com a entrada do sujeito no sistema escolar, a qual se transforma na
língua que o sujeito sabe melhor, ao mesmo tempo em que as competências
em LH diminuem:

Figura 5 – Desenvolvimento típico de uma LH, sem apoio acadêmico, num contexto de
língua majoritária (MONTRUL, 2012, p. 7)
106

É nesse contexto, quando não há apoio acadêmico ao aprendizado


da LH, que o trabalho das iniciativas de promoção e manutenção do PLH pode
ter impacto, pois ao participar de uma iniciativa o aprendiz poderia ter mais
oportunidades de aprendizado formal da língua. Com isso, o impacto do
trabalho da iniciativa poderia levar a coluna da L1 (a LH) em idade adulta a
estar em algum ponto que esteja entre o da L1 na primeira infância (destacado
com a flecha vermelha contínua) e o da L2 na idade adulta (destacado com a
flecha vermelha pontilhada). Assim, o trabalho das iniciativas poderia, como
mínimo, manter o nível de LH adquirido na infância até que o aprendiz se torne
adulto e, num caso muito otimista, contribuir para que, em boa medida por
motivação pessoal, ele desenvolva ao máximo sua língua de herança, podendo
chegar a saber a LH com proficiência equivalente à que tem na língua
majoritária do país em que reside. Caberia discutir ainda se, no caso do PLH, o
papel das iniciativas – que não são, necessariamente, escolas – é
primordialmente oferecer o aprendizado formal da língua ou seria o de
proporcionar oportunidades de vivenciar práticas culturais significativas na
língua de herança, ampliando, assim, o repertório de experiências afetivas do
aprendiz na LH.

L1

L1

Figura 6 – Possibilidades do impacto do trabalho das iniciativas de promoção e


manutenção do PLH na LH. Adaptado de Montrul (2012, p. 7).
107

Mesmo com um trabalho de manutenção e ensino estruturado da


LH, através de um currículo orientado a promover o letramento e o
desenvolvimento das competências linguísticas, a possibilidade de que as
competências do falante de herança se equiparem às da língua majoritária são
apenas algumas dentro do continuum de competências de LH. Na Figura 6,
quando há apoio formal à aprendizagem da LH, as competências do adulto
falante de LH estarão em algum ponto do retângulo pontilhado da L1. Ou seja:
em algum ponto entre manter os conhecimentos da LH aprendida na infância e
desenvolvê-la a um nível equivalente ao da língua majoritária.
Assim, fica claro que o desenvolvimento das competências de PLH
(Figura 6) é bastante diferente do desenvolvimento das competências em PLM,
que também pode ser ilustrado pela Figura 4, tomando-se como cenário o
Brasil nos casos em que a língua inicial (L1) é o português (PLM).
Ainda no que diz respeito à aprendizagem ou aquisição de línguas, a
comparação de Polinsky (2008), sistematizada por Moroni e Gomes (2014),
ajuda a compreender as peculiaridade do PLH e no que ele se aproxima e se
distancia do PLM ou PLE. A Figura 7 ilustra as semelhanças do perfil do falante
de LH com o de língua materna, bem como as semelhanças entre o falante de
LH e LE:

• Exposição ao idioma desde muito cedo;


Falante de PLH • Bom controle de recursos adquiridos no
e inicio da vida (fonológico, léxico cotidiano e
outras estruturas);
Falante de PLM • Erros de desenvolvimento linguístico.

• Variação da quantidade e alcance de input;


Falante de PLH • Erros de desenvolvimento e efeitos de
transferências;
e
• Domínio variável.
Falante de PLE

Figura 7 – Aproximações entre falantes de PLH x falantes de PLM e falantes de PLH x


falantes PLE. Adaptado de Moroni e Gomes (2014, p. 25)
108

Entender no que o falante de LH se aproxima (e se distancia) do falante


de LM e LE ajuda a compreender quais são as variáveis para que o projeto de
transmitir uma LH seja bem sucedido, ponto que será abordado na próxima
seção.

2.7 As variáveis para a fluência na LH

Os fatores que influenciarão a fluência na LH são singulares e


complexos, e a combinação resultante pode favorecer ou não a aprendizagem
e a manutenção da LH. Entre eles, pode-se mencionar a frequência de uso da
LH na família, se ambos os pais são falantes da LH ou não, se há uma
comunidade de fala mais ampla com a qual o aprendiz interage ou se o
aprendiz frequenta alguma iniciativa ou curso que dê ênfase a aspectos formais
da aprendizagem. Beaudrie e Ducar (2005) propõem que um dos instrumentos-
chave para o trabalho pedagógico com a língua de herança seja a história de
vida e familiar do aluno. Já Carreira (2004, p. 18) menciona especificamente a
importância de se trabalhar aspectos relacionados à identidade cultural ao
longo dos percursos de aprendizagem da LH, declarando que os falantes de
herança “têm necessidades identitárias e/ou linguísticas em relação à língua
alvo relacionadas com o seu passado familiar”. Por estes argumentos, é
possível dizer que o ensino da língua de herança, seja no ambiente familiar ou
quando se busca um aprendizado formal fora desse círculo, está intimamente
vinculado às necessidades identitárias do aprendiz, que irá debater e construir
seus significados sobre o uso da língua e os laços – os vínculos afetivos – com
o que irá identificar como sua cultura de herança, contornando e resolvendo as
tensões próprias desse cenário.
No caso da LH, como o uso social e escolarização nessa língua
costumam ser restritos ou inexistentes, sua aquisição pode ser interrompida ou
deixar de ser uma prioridade na vida do aprendiz. Diante desse panorama, o
papel da família é decisivo no processo de aquisição da LH, já que é a partir do
núcleo familiar que a criança pode ter acesso a essa língua e ter contato com
as práticas culturais associadas às representações da cultura de herança,
realizadas na LH. Para isso, é necessário que os adultos da família, em seu
109

papel de planejadores da política linguística familiar, decidam transmitir a


língua aos filhos, o que, como já se comentou, nem sempre é uma tomada de
decisão consciente e não necessariamente ocorre: os pais podem optar por
adotar a língua do entorno e abandonar seu idioma inicial. Nesses casos,
evidentemente, cabe a possibilidade de manter as práticas culturais no idioma
do entorno e não na LH, o que também pode resultar em processos de
identificação e vivências afetivas relacionadas à cultura de herança, sem que
isso esteja vinculado a questões linguísticas.
Embora nem sempre os aprendizes de herança continuem utilizando
o idioma com a mesma frequência da primeira infância, Au (2008) ressalta que
o alto grau de input recebido desde o nascimento faculta o acesso a aspectos
formais da língua, o que facilita que os falantes de herança possam voltar a
utilizar este idioma quando sentirem necessidade, no caso de uma viagem ao
país de origem dos pais, por exemplo.
As comunidades do país de residência, ainda imigrantes de primeira
geração, podem servir como motivação extra para que os aprendizes de LH e
seu entorno familiar mais imediato persistam na sua transmissão, pois
proporcionam situações significativas de convívio com práticas culturais e uso
da língua (MONTRUL, 2012). Nesteruk (2010) compartilha essas ideias,
afirmando que é necessário input da família + input mais amplo da comunidade
+ apoio da comunidade para a manutenção de uma língua de herança – e é
nesse tripé família + comunidade + professor (LICO, 2011) que a APBC e
outras iniciativas pelo PLH (por exemplo, no Japão, como mencionado por
Yonaha e Mukai (2016)) buscam desenvolver sua atuação, como será descrito
no Capítulo 3.
Por todas essas particularidades, não se pode tomar como referente
para o PLH os brasileiros monolíngues falantes de PLM residentes no Brasil, já
que eles têm competências e uma realidade linguística completamente
diferente da do PLH – que pede ser pensado e discutido dentro de um marco
próprio, ainda em construção. Para isso, as noções de cidadania plurilíngue
sugeridas pelo Quadro Comum Europeu de Referência para Línguas podem
trazer contribuições interessantes.
110

2.8 PLH e cidadania plurilíngue na União Europeia: o que o


Quadro Comum Europeu de Referência para Línguas pode
acrescentar

Pensando que o contexto de pesquisa em questão se desenvolve na


Europa, no espaço da UE, convém lançar um olhar sobre algumas de suas
políticas linguísticas, notadamente a partir do Quadro Comum Europeu de
Referência para Línguas (COUNCIL OF EUROPE, 2001), já que ele pode
ajudar a considerar as habilidades heterogêneas e híbridas dos falantes de
herança dentro de um novo paradigma.
Elaborado pela Unidade de Políticas Linguísticas do Conselho
Europeu [Language Policy Unit, Council of Europe], o Quadro Comum Europeu
(COUNCIL OF EUROPE, 2001) reflete um esforço de alinhar perspectivas e
abordagens dos países da UE para um espaço que, apesar de estar unificado
econômica e socialmente, mostra-se diverso culturalmente – sendo a
diversidade linguística uma das formas pelas quais tal diversidade cultural se
manifesta. Conhecido popularmente entre professores e alunos de línguas
estrangeiras por definir em categorias as competências linguísticas dos
falantes (níveis A1, A2, B1, B2, C1 e C2, do conhecimento mais básico ao mais
avançado), a ideia dessa escala é que, ao atestar as competências de alguém,
por exemplo, em francês, num nível B2, subentenda-se que o falante seja um
“usuário independente”, entre outras especificações. Mas, na verdade, o
Quadro é um documento disponível em várias línguas da EU, cuja verão em
inglês tem 273, que se propõe a muito mais que apenas desenvolver uma
escala para avaliar e determinar competências linguísticas.
Dessa forma, o Quadro formaliza outros compromissos linguísticos
importantes que a UE pretende assumir para gerir esse espaço comum. Se,
por um lado, a discussão sobre políticas linguísticas no Brasil ainda se ampara
no conceito de “bilinguismo”, às vezes entendido como um sinônimo de
“multilinguismo” (PREUSS e ÁLVARES, 2014), o Quadro trata de deixar clara a
distinção entre “multilinguismo” e “plurilinguismo”. Multilinguismo seria, por um
lado, o conhecimento individual de várias línguas ou a presença de várias
línguas na sociedade; já o plurilinguismo, segundo o Quadro, compreende uma
111

competência comunicativa complexa ou múltipla baseada em graus variáveis


de proficiência de diversas línguas, incluindo vivências de diferentes culturas.
O conceito de plurilinguismo, portanto, vai além do de que um
indivíduo seja proficiente em mais de uma língua: é necessário ter também
conhecimento e vivências interculturais e, como ponto de partida, assume-se
que o grau de competência linguística não será o mesmo em todas as línguas
de seu repertório – algo que, pelo que já se explicou, se alinha à realidade dos
falantes de herança. As competências plurilíngues desses sujeitos europeus
permitiriam, assim, interagir com outros espaços e sujeitos da UE sob uma
nova proposta de cidadania: ser cidadão da UE é poder transitar entre esses
diferentes espaços linguísticos e interagir com as diferentes culturas ali
existentes, para o que talvez não seja necessário falar a língua do outro com a
fluência de um nativo, sendo mais importante ter na bagagem vivências de
culturas diferentes da autóctone e saber valorizar, inclusive, as diferenças e
diversidades da cultura do outro. O plurilinguismo coloca-se, desse modo,
como uma atitude estrutural de cidadania, para a qual os falantes de herança,
por tudo aquilo que os caracteriza, dispõe de uma riqueza de recursos.
De fato, espera-se que os cidadãos europeus sejam plurilíngues – e
há políticas linguísticas top-down sendo implementadas no sistema escolar
obrigatório e ensino superior nesse sentido, como o programa Erasmus de
intercâmbios universitários entre países europeus.
Jaffe (2012) vê o Quadro como parte importante de uma mudança
de paradigmas:
As mudanças às quais me refiro envolvem a substituição do cidadão
nacional monolíngue idealizado pela de um cidadão Europeu/global
plurilíngue idealizado; um movimento que se distancia dos modelos
de identidade e língua estáticos/existencialistas rumo a modelos de
identificação e prática comunicativa com foco nos processos; uma
ênfase nos repertórios linguísticos e não nas línguas como algo fixo e
de códigos delimitados; e um foco no papel que esses repertórios
desempenham nos espaços de participação democrática da esfera
pública. (JAFFE, 2012, p. 83)

Esses novos paradigmas proporcionam aos falantes de PLH uma


visão muito mais positiva de suas competências em português que os
atualmente vigentes no Brasil – que irão compará-lo ao falante de PLM, num
espaço monolíngue. Nesse sentido, embora o PLH no contexto estudado se
caracterize por uma identificação específica com a “cultura brasileira”, seria
112

possível explorar as possibilidades do português como uma das línguas oficiais


da UE como elemento constituinte da cidadania plurilíngue no espaço europeu,
da qual os falantes de PLH nesse contexto geográfico em muito poderiam se
beneficiar.

2.9 Estado atual da questão

No momento atual, o PLH já pode ser considerado um campo de


estudo próprio e delineado, o qual, embora ainda esteja se consolidando, deve
ser pensado de forma interdisciplinar. Assim, o PLH pode ser estudado desde
diferentes perspectivas, inclusive no âmbito de outras grandes áreas diferentes
das que escolhi: estudos de migração, de gênero, Psicolinguística ou um
enfoque de cultura digital dentro das Ciências da Comunicação podem ajudar a
gerar conhecimento sobre o campo.
Nele, além das relações entre língua e identidade ou língua e
cultura, bastante exploradas na área de LH, começam a surgir indícios de que
a afetividade deva também entrar na pauta dos estudos a serem realizados
(ORTIZ ÁLVARES, 2016b), posição com a que coincido.
O entendimento da identidade dos falantes de PLH como algo
fragmentado e heterogêneo, que dialoga com as representações de identidade
brasileira e do país hospedeiro, aliado a um entendimento de alguns fatores
que contribuem para o aprendizado da LH (quantidade de input, papel da
família, presença de uma comunidade de falantes) merece ser complementado
com reflexões sobre os vínculos afetivos que se estabelecem através da LH.
Seriam, assim, três os aspectos que compõe o PLH como campo: proficiência
linguística; processos de identificação; afetividade.
Além de ser tema de discussões principalmente de pesquisadores,
lideranças e educadores que trabalham com PLH fora do Brasil – por motivos
óbvios, já que é nesse deslocamento das emigrações que o PLH irá acontecer
–, o tema começa a despertar interesse também no próprio Brasil, e as
primeiras obras especializadas em PLH começam a ser publicadas no país
(SOUZA, 2016a; ORTIZ ÁLVARES e GONÇALVES, 2016a).
113

Por outro lado, as redes de iniciativas que trabalham com o modelo


de aulas permitem que, no momento atual, comecem a surgir discussões sobre
como seria o ensino formal de PLH, ou seja: no espaço da sala de aula, com
periodicidade regular, a partir de interações aluno-professor.
Centradas no espaço da sala de aula, destaco as pesquisas sobre
desenvolvimento de currículo de Boruchowski (2015) e Destro (2015), a de
didática para PLH de Gomes (GOMES, 2015; MORONI e GOMES, 2015) ou a
preocupação com a capacitação de professores de PLH tanto do governo
brasileiro como de instituições como a Brasil em Mente e o Elo Europeu de
Educadores de POLH. Pesquisadores portugueses (e de outras
nacionalidades) têm acompanhado as discussões sobre didática e feito uso do
termo PLH, com contribuições relevantes, como em Melo-Pfeifer (2016).
Paralelamente, também é possível observar o surgimento dos
primeiros materiais didáticos específicos para PLH publicados em formato de
livro, como os métodos de alfabetização Ciranda Cirandinhas vamos todos ler e
escrever (JENNINGS-WINTERLE, 2014; 2014a; 2014b) ou o Turminha
animada de Lucy e Tuca (FALKOWSKI, 2013), do Movimento Educacionista
dos EUA, além do Vamos falar português, com personagens de Maurício de
Sousa (FLORISSI e RAMOS, 2014) e do Brasileirinho: Português para crianças
e adolescentes (GONÇALVES, 2017). Cabe ainda destacar o trabalho do
Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), que, embora não esteja
centrado exclusivamente no universo brasileiro, mas seja um espaço
representativo das diferentes culturas lusófonas e suas variedades linguísticas,
está desenvolvendo unidades didáticas para o ensino de português como
língua estrangeira (PLE) e, dentro disso, especificamente para o ensino do
“português como língua de herança e para crianças”, as quais foram
disponibilizadas na internet no Portal do Professor de Português Língua
Estrangeira (PPPLE) (INSTITUTO INTERNACIONAL DA LÍNGUA
PORTUGUESA, 2016).
O foco de uma linha importante das discussões recentes parece
estar, assim, nas propostas que formalizam o aprendizado de PLH em sala de
aula, a partir de interações aluno-professor – um campo em que sem dúvida há
muito trabalho a ser feito.
114

Tais discussões, no entanto, não podem dar as costas a todos os


demais cenários e ambientes nos quais ocorrem os processos de aquisição do
PLH, entre os quais destaco a família e a comunidade, objetos desta pesquisa
centrada na APBC. Pensar algo como um “ensino de PLH mais eficaz” requer
chamar para a conversa não só os professores, mas os familiares que tenham
interesse em que suas crianças aprendam a LH e dotá-los de ferramentas e
conhecimentos para que realizem de forma mais sólida e consistente um
trabalho que pode estar ao seu alcance e fazer parte de seus desejos.
Nesse sentido, conhecer a realidade da APBC fornece subsídios
para que a atuação não só de professores, mas dos familiares e de outros
membros da sociedade civil se estruture dentro do cenário atual do PLH, que
aponta para uma maior estruturação de grupos da sociedade civil, pesquisas
acadêmicas em desenvolvimento e algumas políticas públicas do governo
brasileiro voltadas para esses grupos específicos. O próximo capítulo
apresenta o contexto específico da Catalunha, onde a APBC atua e no qual
esta pesquisa se realizou, e uma breve trajetória da Associação.
115

CAPÍTULO 3 – O CONTEXTO DE PESQUISA:


NOTAS SOBRE A CATALUNHA, BARCELONA E A APBC

Neste capítulo, será apresentado o contexto mais amplo da


pesquisa: alguns dados sobre a Catalunha, a cidade de Barcelona e,
posteriormente, o contexto específico da APBC. Para isso, serão estabelecidos
paralelos entre fatos históricos e demográficos, língua e identidade que irão
apoiar a análise de dados, já que ajudam a compreender as ideologias
linguísticas ali vigentes. Exploram-se, assim, também aspectos das políticas
linguísticas estatais e familiares relacionadas à Catalunha. Para esta pesquisa,
conhecer esse contexto se faz importante no sentido em que compreender o
PLH é também entender as especificidades do contexto em que ele se
desenvolve e dar visibilidade a tudo que não há de brasileiro no repertório
linguístico e cultural de seus falantes.
Primeiramente, é necessário situar as diferenças entre as fronteiras
geográficas e linguísticas da Catalunha. Hoje a Catalunha político-geográfica é
uma comunidade autônoma (CA), subdivisão administrativa do Estado
espanhol, que goza de uma considerável autonomia em relação a temas que
incluem o uso da língua e o sistema educativo, entre outros. Já a fronteira
linguística do catalão é mais extensa: os països catalans, territórios cuja língua
autóctone é essa, compreendem as CAs de Catalunha, Comunidade
Valenciana e Ilhas Baleares, na Espanha, além da chamada franja de ponent
[faixa do poente] na CA de Aragão; também o principado de Andorra,
encravado entre os Pirineus, que limitam a Espanha da França; já na França,
no extremo sudoeste, os Pirineus Orientals, departamento de número 66 do
Estado francês – que se autodenominam Catalunya Nord, a Catalunha do
Norte – e a cidade italiana de Alguer.
Como o próprio conceito de països catalans tenta explicar, o que se
pode chamar de catalanidade ou identidade catalã vai além das fronteiras da
Comunitat Autònoma de Catalunya. Nesse caso, a definição abarca uma
fronteira linguística e uma identificação como coletividade cujo principal eixo é
a língua – porém, importante lembrar, com identidades regionais bastante
116

marcadas: cada região vê a si própria como um país, com nacionalidades


históricas bastante definidas e também diferenciadas entre si.

Figura 8 – Mapa dialetal do catalão (DIVERSICAT, 2015)


As áreas coloridas indicam a presença da língua, que não necessariamente coincide com a
fronteira geográfica dos Països Catalans.

É na Catalunha desse contexto que o imigrante brasileiro – para


efeitos desta pesquisa, os pais, mães e professoras da APBC – deverá se
situar. Desse modo, terá que lidar não com uma, mas com duas línguas
estrangeiras – pois o castelhano continua sendo idioma oficial naquele
território. E não deixará de se surpreender uma, duas, três e incontáveis vezes,
sempre que iniciar uma conversa trivial com algum transeunte, seja na fila do
supermercado, do banco ou por um amigo em comum, que inclua a seguinte
interrogação de praxe: “De onde você é?”. A ela, nosso imigrante responderá,
sem titubear: “Sou do Brasil”, apenas para ouvir uma tréplica que o deixará
117

desconcertado: “Ah, então você fala brasileiro”. Brasileiro?, pensará ele ou ela,
provavelmente emendando: “Não, falo português”, imaginando que talvez o
interlocutor desconheça os costumes desses povos tão longínquos que vivem
sob a bandeira verde e amarela, incapaz de ouvir o que realmente o catalão
quis lhe dizer: “Eu reconheço as particularidades do seu povo e sei que vocês,
brasileiros, em nada ou em muito pouco se identificam com Portugal hoje”.
A identificação com a ideia de catalanidade hoje está relacionada ao
desenvolvimento do movimento nacionalista, pelo que se faz necessário
compreendê-lo, ao menos em linhas gerais.

3.1 As bases do nacionalismo catalão

Para que pudesse existir um movimento nacionalista, o qual


repercute nas ideologias linguísticas em voga, foi necessário que a Catalunha
se configurasse como uma entidade distinta, com aspectos identitários
próprios, os quais, embora passem pela língua como fator de identificação e
diferenciação, não se restringem a ela.
Retomando brevemente alguns fatos históricos, cabe lembrar que o
território que se configuraria como a Catalunha dispôs, até o séc. XVIII, de
considerável autonomia tanto para manter os usos da língua própria como em
suas formas de organização política – passando, por exemplo, pelo período
Comtal no século IX, pela criação do Consell de Cent no séc. XIII (um dos
fatores que fez com que ali surgisse um dos primeiros modelos de
parlamentarismo na Europa (MCROBERTS, 2001)), ou pelo practisme, sistema
feudal particular baseado em convênios entre os diferentes estratos da
sociedade (clero, nobreza, burguesia), mais que na força ou na dominação.
Em termos linguísticos, o século XV se configurou como o século de
ouro da literatura catalã, com a consolidação e proliferação de obras nessa
língua, a qual acompanhou o momento de prosperidade econômica: com o
comércio marítimo, a presença catalã se expandiu por toda a costa
mediterrânea através dos consulados do mar e a língua catalã era um idioma
de grande prestígio, língua de uma hegemonia dominante.
118

No século XVI, com a descoberta da América e a incorporação da


Coroa de Aragão à nova monarquia espanhola, o polo do comércio marítimo se
deslocou do Mediterrâneo para o Atlântico. Barcelona deixou de ser a capital
da monarquia, então estabelecida em Castela, e a Catalunha iniciou um
período de decadência. Às vezes, as relações com o poder central eram mais
tensas, resultando em conflitos como o Corpus de Sangre (1640), a Guerra dos
Segadores (1640-1652) e, no começo do século XVIII, com a morte do
espanhol Carlos II, a Guerra da Sucessão, pela disputa do trono espanhol.
Em linhas gerais, Catalunha chegou a um ponto da história no qual
devia se posicionar se preferia viver sob o reinado de Filipe V, da dinastia
Bourbon, o qual desejava impor uma monarquia absolutista e centralizadora,
ou sob o governo do arquiduque Carlos de Áustria, imperador do sacro-império
romano-germânico, que prometia respeitar as constituições catalãs. O apoio,
evidentemente, foi dado ao segundo e iniciou-se um cerco à cidade. Após 13
meses, Barcelona caiu, no dia 11 de setembro de 1714, perdendo suas
liberdades, a Universidade e o Consell de Cent.
O dia 11 de setembro, la Diada, figura no calendário catalão como o
dia da festa nacional. Alguns países comemoram a independência, outros, a
proclamação da república ou outras datas emblemáticas de sua história e
fundação. No caso da Catalunha, o dia escolhido marca uma grande derrota
histórica e recorda a todos não só o elevado número de soldados que
perderam a vida, mas precisamente a perda de autonomia e o início de um
período de repressão.
Esta, no entanto, não é uma visão simplesmente derrotista ou
vitimista. Quando se tem em mãos outros elementos, como essa breve
trajetória histórica pretende fornecer, mais apropriado seria enquadrar tal
posição no que Burke definiu como resistência:

A troca é uma consequência dos encontros; mas quais as


consequências da troca? Pode ser útil distinguir quatro estratégias,
modelos ou cenários possíveis de reação a ‘importações’ ou
‘invasões’ culturais. Estas reações são aceitação, rejeição,
segregação e adaptação. [...] A aceitação do estrangeiro costuma
levar a problemas difíceis que têm sido discutidos no seio das
próprias culturas de empréstimo. E isso nos leva à segunda das
possíveis estratégias, a estratégia da resistência, da defesa das
fronteiras culturais contra a invasão. (BURKE, 2003, p. 77, 80-81)
119

Afinal, desde tal data, Catalunha já não é dona de seu território, pois
passa a estar atrelada à Espanha. Resta, assim, defender não as fronteiras
físicas e territoriais, mas as culturais – e em boa medida é nessa diferenciação
daquilo que se identifica como “espanhol” que a Catalunha tem construído e
reconstruído sua identidade, sendo a língua um de seus eixos.

3.2 A indústria têxtil, a Renaixença e um novo cenário


político urbano

No entanto, nem todas as consequências de 1714 foram negativas e


algumas trariam mudanças sociais profundas, as quais possibilitariam que, no
séc. XIX, a Catalunha desse o passo à economia industrial e se consolidasse
como o polo têxtil mais importante da Espanha e como o quarto maior produtor
de tecidos de algodão do mundo. Surgiram instituições financeiras, tais como
bancos e sociedades, que podiam financiar os investimentos necessários pelas
fábricas – bem como uma nova burguesia vinculada às atividades industriais.
Tudo isso num novo cenário: o ambiente urbano, no qual Barcelona já gozava
de protagonismo.
Este ciclo de prosperidade econômica foi acompanhado de uma
renovação cultural. O movimento da Renaixença, iniciado com a retomada dos
concursos de poesia medievais chamados Jocs Florals, os quais tiveram
enorme êxito, recuperou o uso literário e culto da língua, inclusive em suas
formas escritas. Depois de cerca de três séculos de declínio na produção e nos
usos escritos da língua, que, no entanto, se manteve nos âmbitos orais como a
principal e normalmente única língua conhecida pela população, o catalão se
estabeleceu como língua comunitária de prestígio, inclusive entre a próspera
burguesia (MELCHOR e BRANCHADELL, 2002).
Paralelamente, outras correntes de pensamento do Romantismo se
desenvolviam, como as que vinculavam à ideia de nação uma “língua nacional”
que a representasse. Havia, assim, entre a redescoberta de glórias do
passado, a exultação a uma língua própria que havia passado por um longo
período de repressão, tentativas frustradas de independência e um momento
econômico e cultural ativos, um cenário favorável para que o nacionalismo
120

catalão se estabelecesse como uma corrente de pensamento – e também


política – ao longo dos séculos seguintes.
Em termos políticos, a Catalunha estava pronta para entrar no séc.
XX com alguns segmentos que desejavam se diferenciar da política espanhola
bem posicionados, como a burguesia têxtil, descontente com as medidas
econômicas do governo central. Do final do século XIX datam as Bases de
Manresa, a primeira versão de um estatuto para um governo autonômico
catalão, redigidas pela Unió Catalanista, uma confederação de organizações
catalanistas fundada em 1889, e outros textos que embasaram o nacionalismo
moderno da Catalunha, como o livro Compendi de Doctrina Catalanista,
publicado por Prat de la Riba e Pere Muntanyola em 1895, com mais de cem
mil cópias vendidas, ou La nacionalitat catalana, de 1906, no qual Riba define a
Catalunha como uma nação por suas características próprias, em oposição à
Espanha, vista meramente como um estado (MCROBERTS, 2001).

3.3 O nacionalismo catalão no século XX

A Catalunha iniciou o séc. XX com a preocupação de normalizar sua


língua, já que a variante medieval recuperada nos círculos literários da
Renaixença era muito distante do falar popular – e não servia, portanto, para os
usos e funções de uma língua moderna. Com isso, foi fundado, em 1907, o
Institut d’Estudis Catalans (IEC). A partir de 1914, a Catalunha passou por sua
primeira experiência de governo autônomo, a Mancomunitat, anos em que o
IEC prosperou e apoiou o projeto de Pompeu Fabra (1868-1948) de padronizar
a forma escrita e a gramática da língua. Considerado o grande responsável por
“ordenar” o catalão moderno, sua produção de gramáticas e dicionários definiu
as bases de como a língua seria ensinada a partir de então. Língua e política
continuavam caminhando juntas na Catalunha do séc. XX.
Nesse início de século, o movimento nacionalista foi liderado pela
burguesia catalã, que não encontrou apoio para seus propósitos econômicos
no Estado espanhol, e os intelectuais associados a ela. O catalanismo, no
entanto, já estava instaurado entre as classes mais baixas e trabalhadoras, que
121

se identificavam como catalãs e reivindicavam a língua catalã como sua, tendo


aderido às manifestações culturais da Renaixença, notadamente os corais.
No entanto, a autonomia catalã e as políticas voltadas para a língua
se interromperam com a instauração da ditadura de Primo de Rivera entre
1920 e 1930: proibiu-se o catalão nas instituições públicas e na sinalização nas
ruas e comércios, mais de 150 organizações catalanistas foram fechadas e a
Mancomunitat foi abolida em 1925. Com a renúncia de Primo de Rivera, os
anos 1930 foram uma década de grande agitação política com a criação da
Generalitat, o governo regional, e a elaboração de um estatuto de autonomia
para a Catalunha – ora vigente, ora ameaçado, ora reprimido – o qual, entre
outros pontos, elevava o catalão à condição de idioma cooficial, ao lado do
castelhano. Surgiram partidos políticos catalães e movimentos de esquerda.
No final desse período, a burguesia catalã, agora com outra
orientação política e resistente às posturas esquerdistas, passou a se aliar com
forças anticatalanistas espanholas. Assim, em 1938 a ditadura de Franco
eliminou o estatuto de autonomia da Catalunha, e em 1939 as tropas
franquistas entraram em Barcelona e desmantelaram as estruturas políticas
existentes, extraditando, prendendo e executando líderes republicanos.

3.3.1 A ditadura franquista e a transição democrática

A ditadura, que perdurou até a morte de Franco em 1975, marcou a


Catalunha particularmente por realizar um genocídio cultural: tratou de eliminar
as expressões da identidade catalã – com a proibição da bandeira e do hino
catalães, por exemplo – e instituições símbolos dessa identificação, como o
IEC. Como não podia deixar de ser, a língua foi alvo de um processo de
apagamento da vida cotidiana, já que o catalão foi proibido e excluído
completamente de qualquer âmbito que não fosse o estritamente privado e
familiar.
Proibiu-se o ensino de catalão nas escolas, seu uso público e oficial
e a disciplina de cultura catalã deixou de ser ensinada na UB. Professores
suspeitos de simpatizarem com o catalanismo eram destinados a partes
diferentes da Espanha e substituídos por colegas vindos de outras regiões que,
ao não falarem catalão, serviam aos propósitos de assimilação cultural à
122

cultura hegemônica identificada como espanhola do franquismo. Havia censura


à correspondência em catalão, que era destruída. Os registros civis não
podiam registrar nomes próprios catalães e os sobrenomes catalães tiveram a
grafia alterada e espanholizada.
Mesmo com o fim da ditadura esse legado continuou presente, já
que ao menos duas gerações de catalães escolarizados durante o franquismo
não puderam receber qualquer educação nessa língua, o que significava uma
alta taxa de analfabetismo entre adultos. Esse fator, somado às ondas de
migração internas recebidas nas décadas de 1950 e 1960, quando mais de um
milhão se estabeleceram na Catalunha, teria um impacto nos usos linguísticos
nas décadas seguintes. Desses migrantes, os quais chegaram a representar
47% da população catalã em 1970 (MCROBERTS, 2001), a maioria era de
andaluzes, falantes unicamente de castelhano e sem a possibilidade de
aprender o catalão por meios formais, já que seu ensino estava proibido.
Apesar dos esforços para reprimi-lo, o nacionalismo catalão
persistiu, então com lideranças vinculadas à igreja católica, aliadas a grupos de
esquerda. Com o fim da ditadura, a democracia foi restaurada e o governo
central redigiu e promulgou uma nova Constituição em 1978. Nela, embora
algumas concessões tivessem sido feitas às CAs, os ideais nacionalistas
estavam bastante tolhidos. Por um lado, as três nacionalidades históricas
espanholas, entre as quais também figuram a Galícia e o País Basco, além da
Catalunha, tiveram status administrativo similar ao das outras regiões, todas
designadas como “Comunidades Autônomas”29. Por outro, a Constituição
permitia às CAs declarar “outras línguas espanholas” como oficiais, ao lado do
castelhano, e usar a bandeira própria, também em conjunto com a espanhola.
Apesar das limitações, havia, por fim, um marco legal dentro do qual a
Catalunha poderia (re)conquistar alguma autonomia.
Com a Constituição vigente, o passo seguinte foi a negociação das
prerrogativas e termos específicos pelos catalães, por meio de seu Estatuto de
Autonomia. As principais discussões giravam em torno do uso e status da

29
Embora o País Basco, administrativamente, seja uma Comunidade Autônoma, tanto ele
como Navarra têm um estatuto fiscal diferenciado das demais CAs: em vez de pagarem
impostos ao governo central e logo receberem um repasse, arrecadam eles próprios os
impostos para depois fazerem o repasse ao governo central. Em termos de autonomia,
portanto, nesse aspecto, o País Basco tem prerrogativas diferentes em relação à Galícia e à
Catalunha.
123

língua e dos poderes fiscais. Nele, estabeleceu-se que o catalão é a língua


oficial da Catalunha, assim como o castelhano, e a Generalitat está obrigada a
garantir o uso “normal e oficial” de ambas as línguas (MCROBERTS, 2001). O
fato de que a igualdade jurídica não garante uma igualdade de usos entre
ambas as línguas na sociedade, estando o catalão em posição minoritária, tem
sido objeto de estudos, discussões e reivindicações linguísticas e políticas
desde então. Após idas e vindas no Congresso e no Senado e alterações no
documento, o Estatuto foi sancionado em 1979. Pela primeira vez, um estatuto
de autonomia se tornava lei e era reconhecido em toda a Espanha.
Em 2006, um novo estatuto de autonomia foi votado e aprovado pelo
governo central, ampliando e atualizando alguns direitos nas questões relativas
ao caráter nacional, à língua e aos direitos históricos – parte das quais é
revogada em 2010, fator que contribui para que os movimentos
independentistas se acentuassem desde então.

3.4 Fatores demográficos e fluxos migratórios

A relação entre os usos linguísticos na Catalunha, no entanto, e a


evolução do próprio discurso nacionalista merecem ser complementadas com
dados demográficos, particularmente os que se relacionam às migrações – já
que, historicamente, a maioria destes imigrantes vêm de regiões cujo idioma
inicial é outro, que não o catalão.
Melchor e Branchadell (2002) explicam que, desde a Idade Média, a
Catalunha recebe fluxos migratórios, com destaque para os vindos do País
Valenciano (do interior, de regiões de fala castelhana) e da França (gascões).
Entrando no século XX, Domingo (2014) destaca três grandes ondas de
imigração.
A primeira, situada entre 1901-1930, acompanha a construção do
discurso nacionalista e tem um pico entre 1911-1915. Um dos fatores de
atração dos migrantes consistia na necessidade de mão de obra urbana, a
qual, apesar de se justificar pelas demandas da atividade industrial e da
construção de infraestrutura e de serviços urbanos, como a rede de metrô,
também pode ser atribuída a uma baixa taxa de natalidade da população
124

autóctone. Nesse período, Barcelona e as áreas adjacentes se destacavam


como polo de atração e, em 1930, 18% da população catalã havia nascido fora
de Catalunha, principalmente em Múrcia e Valência.
A segunda onda migratória se situa entre 1950 e 1975 e viu como se
desenvolveu um grande fluxo migratório interno. A população cresceu cerca de
75%, passando de 3,2 a 5,6 milhões (DOMINGO, 2014). Embora tenham sido
anos de alta taxa de natalidade, em parte devido à natalidade entre os
imigrados, boa parte do crescimento populacional se deu em consequência da
chegada de novos habitantes, os quais representavam 36% dos moradores
(DOMINGO, 2014), e eram provenientes principalmente da Andaluzia
(AJUNTAMENT DE BARCELONA, 2014). Nas regiões metropolitanas, como no
caso de Barcelona, a nova população majoritariamente de fala castelhana se
concentrou em áreas específicas da cidade, o que condicionou que os usos
linguísticos e a língua inicial dos catalães que ali nascessem fossem
predominantemente em castelhano também nas décadas seguintes.
Depois de cerca de duas décadas de estancamento populacional e
migratório, nas quais a população foi de 6 milhões até o final do milênio, o perfil
dos fluxos migratórios se alterou para adquirir as características da terceira
onda. Marcado pela internacionalização, o campo de atração migratório da
Catalunha mais uma vez se expandiu e se globalizou, passando a receber
nouvinguts – os “recém-chegados” – de todos os continentes, até que sua
população chegasse aos cerca de 7,5 milhões atuais, dos quais 1,6 milhão se
concentra em Barcelona (BARCELONA, 2014). Entre 2000 e 2012, a
Catalunha recebeu mais de dois milhões de habitantes, dos quais 1,47 milhão
vinham de outros países, com grande protagonismo dos latino-americanos,
sendo os demais espanhóis vindos de outras regiões (DOMINGO, 2014). A
equatorianos, colombianos e bolivianos, somavam-se também grandes
populações de marroquinos, romenos, poloneses, búlgaros e chineses. Assim,
em 2014, cerca de 21% da população da capital, Barcelona, havia nascido no
exterior (BARCELONA, 2014)30, contra 3,86% em 1996 (BARCELONA,
1996)31.

30
Segundo a prefeitura, em 2014, 347.897 dos 1.602.386 habitantes de Barcelona haviam
nascido em outro país. Este dado difere dos que utilizam a nacionalidade para identificar a
população de imigrantes, pois o segundo caso considera como espanhóis ou europeus
125

A chegada desses fluxos migratórios internacionais alterou


profundamente as características da sociedade catalã e a visão que teria de si
mesma:
Graças à imigração internacional, a percepção de mundo que um
catalão sedentário poderia ter nos anos 1990 não se parece em nada
à atual. Sem sair do território, sua visão será mais cosmopolita devido
apenas à presença de um número maior de imigrantes caracterizado
pela diversidade de suas origens. (DOMINGO, 2014, p. 32-33)

Assim, a Catalunha, principalmente nos núcleos urbanos, passa a


ser uma sociedade de grande diversidade cultural, religiosa e também
linguística – e os desafios de integrar a nova população como cidadãos, com
direitos e deveres, passa pelas discussões políticas e, como não podia deixar
de ser, pelas linguísticas – envolvam elas ou não as questões nacionalistas.
Essas discussões continuaram na pauta mesmo após a diminuição das
imigrações internacionais, relacionada à crise econômica espanhola com início
em 2006, o que originou também movimentos de emigração dos espanhóis
rumo a outros países.

3.5 Os usos linguísticos na Catalunha hoje

3.5.1 De longe: um contexto macro

Depois de entender em linhas gerais os processos históricos que


fazem com que os catalães se identifiquem com certos aspectos que os
distinguem, por exemplo, dos espanhóis, e de conhecer os fluxos migratórios
mais recentes, é possível olhar para os usos linguísticos atuais na Catalunha
com mais propriedade dentro de um marco sociolinguístico. Para tanto,
devemos lembrar ainda que, durante a transição democrática, uma das
conquistas importantes foi o direito de que a escolarização fosse em catalão, o
que, a efeitos práticos, tem proporcionado que os filhos dos imigrantes de

imigrantes que adquiriram a cidadania espanhola ou de outro país da UE, o que não seria o
melhor indicativo para rastrear movimentos migratórios. No caso das estatísticas sobre
nacionalidade, esta pode incluir também os filhos de estrangeiros nascidos na Catalunha ou
Espanha que não adquiriram a nacionalidade espanhola.
31
Também segundo a prefeitura, em 1996, 150.805 dos 1.508.805 habitantes de Barcelona
haviam nascido no exterior.
126

língua não catalã aprendam esse idioma. Esse fato, no entanto, está longe de
resultar num cenário de usos linguísticos homogêneos, muito pelo contrário.
A esse respeito, Vila i Moreno e Sorolla Vidal (2013) realizaram uma
análise dos usos e conhecimentos da população dos territórios de língua catalã
a partir de uma série de dados declarados, o que ajuda a ter uma visão geral
de suas características linguísticas. Com as limitações típicas das pesquisas
quantitativas, essa abordagem não revela qual a qualidade desses
conhecimentos (fluência no idioma catalão) ou a frequência desses usos (se
são constantes ou esporádicos nas situações investigadas, como ambiente
familiar, laboral, escolar, em bancos, hospitais etc.). Ainda assim, é válida, pois,
além de elucidar algumas tendências gerais, permite situar a Catalunha em
relação aos demais territórios de língua catalã. A tabela a seguir sintetiza parte
dessa análise:

Entende Sabe falar Sabe Não entende Não sabe População


escrever falar total (≥2
anos)
Catalunha 7.075 96,8% 6.155 84,2% 5.000 68,4% 235 3,2% 1.155 15,8% 7.310
País 4.273 86,1% 2.895 58,4% 1.626 32,8% 687 13.9% 2.065 41,6% 4.960
Valenciano
Ilhas 1.012 93,2% 777 71,5% 596 54,9% 74 6,8% 309 28,5% 1.086
Baleares
Catalunha 257 62,5% 142 34,5% 40 9,73% 154 37,5% 269 65,5% 411
Norte
Andorra 74 96,10% 61 79,2% 49 63,6% 3 3,9% 15 20,8% 77
La Franja 46 97.8% 42 89,3% 16 34% 1 2,2% 5 10,7% 47
Alguer 36 90% 24 60% 5 12,5% 4 10% 17 40% 40
TLC 12.773 91,7% 10.096 72,5% 7.332 52,6% 1.1158 8,3% 3.835 27,5% 100%
Tabela 3 – Pessoas que sabem catalão, por território e habilidade, em milhares e
porcentagens (adaptado de Vila i Moreno e Sorolla e Vidal (2013, p. 186))

A Catalunha se destaca como o território com maior população e


maior número absoluto de conhecedores da língua catalã, estando à frente
também na porcentagem de pessoas que entendem, falam e escrevem em
catalão, apenas ligeiramente abaixo da Franja de Ponent nas duas primeiras
competências. Mesmo assim, cerca de 15% da população da Catalunha não
sabe falar essa língua, um número bastante acima do 6,1% da população
espanhola que não fala castelhano.
No entanto, devido às ondas migratórias mencionadas, se estima
que os falantes de catalão como língua inicial sejam apenas 4,4 milhões nos
territórios catalães (VILA I MORENO e SOROLLA VIDAL, 2013), ou 34% de
127

seus habitantes. Por outro lado, 5,7 milhões não são falantes iniciais, mas
aprenderam o idioma, o que o caracteriza como uma língua com alto poder de
atração: a proporção entre falantes iniciais e novos falantes é de 1:2,3, o que a
situa um pouco abaixo da mesma proporção no inglês (1:2,8) ou francês
(1:2,5), mas consideravelmente acima da do russo (1:1,6) e do castelhano
(1:1,3), ou como a sétima língua mais aprendida como língua não inicial na
União Europeia (VILA I MORENO e SOROLLA VIDAL, 2013).
Embora parte da explicação para essas proporções esteja nos fluxos
migratórios recebidos, outro fator demográfico a ser levado em consideração é
o fato de que a taxa de natalidade entre a população autóctone se reduz desde
os anos 1970, sendo menor que a dos migrantes e imigrantes.
Consequentemente, o número de famílias que têm o catalão como língua inicial
vem diminuindo, dando lugar a famílias mistas nas quais os cônjuges falam
catalão e castelhano, apenas castelhano ou outras combinações de idiomas. É
nesse contexto, daqueles que não têm o catalão como idioma inicial, que se
encontram os novos falantes de catalão: estes 5,7 milhões são, vale dizer,
certamente bi ou multilíngues e, embora façam uso da língua catalã, dividem
seus usos linguísticos com ao menos mais um idioma.
De fato, outro estudo comprova a percepção de que, na Catalunha,
falar apenas uma língua é praticamente uma anomalia:

Os catalães de 15 anos ou mais sabem falar em média 2,5 idiomas,


de modo que somente 12,9% são monolíngues. Cerca de 88% sabem
falar pelo menos duas línguas. Concretamente, 45,8% sabe falar
duas e 27,7%, três. Como se pode observar, aqueles que sabem falar
quatro ou mais línguas são tão numerosos como os que falam
apenas uma. (CATALUNHA, 2015a).

Se os dados de Vila i Moreno e Sorolla Vidal (2013) não indicam se


os falantes iniciais de catalão sabem outras línguas ou não, pode-se afirmar
que sim: se não bastasse o castelhano ser parte do ensino obrigatório, estes e
outros autores mencionam a tendência de os falantes iniciais de catalão
usarem o castelhano em determinadas situações, notadamente no contato com
não catalães (MELCHOR e BRANCHADELL, 2002; MCROBERTS, 2001). Essa
pauta de uso linguístico pode ser atribuída aos anos de repressão franquistas
(CATALUNHA, 2015a).
128

A maioria dos falantes [de catalão] compartilham uma série de pautas


de conduta, como a tendência a passar à língua estatal [o castelhano]
para funções formais ou para falar com pessoas que parecem ser
alóctones; o consumo importantíssimo de produtos culturais na língua
estatal ou a frequente insegurança na hora de se expressar por
escrito em catalão. (VILA I MORENO e SOROLLA VIDAL, 2013, p.
188)

Outro indicativo de que os falantes de catalão são proficientes em


outra língua, segundo dados da Generalitat, é o fato de que “o castelhano é a
língua em que a grande maioria dos catalães tem um nível alto em todas as
habilidades32 (88,1%)” (CATALUNHA, 2015a). Em suma: o bi (ou
pluri)linguismo é parte da realidade da língua catalã hoje, tanto se for
considerado o contexto dos novos falantes como o dos que a têm como língua
inicial.
Entender que a maioria dos falantes de catalão são bilíngues, que a
proporção de falantes iniciais é menor que a de novos falantes, que as
habilidades declaradas não são homogêneas, mas estão distribuídas num
continuum que pode ir de “muito proficiente” a “pouco proficiente” aponta para
um cenário linguisticamente complexo, superdiverso, em que é difícil definir
apenas um padrão de usos linguísticos.
Entre as complexidades possíveis, Vila i Moreno e Sorolla Vidal
(2013) destacam o fato de que as pautas de conduta dos falantes de catalão
com aqueles que parecem ser de fora, fazendo a mudança para o castelhano,
não ajudam a que os nouvinguts utilizem o catalão, o que evidencia usos da
língua muito diferentes entre falantes iniciais e novos falantes. De fato, o
estudo da Generalitat revela algumas dessas nuances: embora 94,3% da
população da Catalunha declare entender o catalão em algum grau, os que
entendem perfeitamente são 64,1%, havendo 18,8% de pessoas de 15 anos ou
mais que entendem pouco, razoavelmente ou não entendem. A porcentagem
dos que são capazes de falar se reduz a 80,4%, sendo que um pouco menos
da metade, 48,7%, declara saber falar perfeitamente. Em outras palavras, um
de cada cinco adultos não fala catalão, embora muitos sejam capazes de
entendê-lo (CATALUNHA, 2015a).

32
As habilidades autodeclaradas avaliadas na pesquisa são: entender, saber falar, saber ler e
saber escrever.
129

Para acompanhar a evolução dos usos do catalão, uma das


metodologias utilizadas é um índice que determina a média de uso global da
língua, calculada a partir de: a) número absoluto e relativo de pessoas que
declaram usá-la num contexto ou função; e b) nível de uso da língua, a partir
da média expressada pelos entrevistados. A evolução desse índice entre 1997
e 2013 revela um decréscimo:

1997 2003 2008 2013


Média global 50,1% 48,5% 42,6% 41%
de uso do
catalão
Tabela 4 – Média global de uso do catalão a partir de Vila i Moreno e Sorolla Vidal (2013)
e Catalunha (2015a)

Assim, entender melhor as diferentes nuances do bilinguismo ou o


que determina a escolha do idioma a ser usado e transmitido aos filhos por
famílias bi ou plurilíngues são tópicos que têm merecido atenção nas pesquisas
sociolinguísticas relacionadas ao catalão (BOIX-FUSTER e TORRENS
GUERINI, 2011; BOIX-FUSTER, 2009a; COMELLAS, JUNYENT, et al., 2016;
FUKUDA, 2011). Para conhecer melhor estes fenômenos, faz-se necessário
não só pesquisas quantitativas, mas também dispor de dados qualitativos –
que permitiriam aprofundar-se no universo dos falantes e conhecer suas
motivações e representações, o que ajudaria a entender a origem desses
comportamentos. E, uma vez que se possa tomar consciência desses fatores,
seria possível pensar de modo crítico sobre tais condutas e em como alterá-las,
caso seja de interesse dos falantes ou das autoridades responsáveis pelos
planejamentos e políticas linguísticas.

3.5.2 De perto: o contexto micro

Para aprofundar no universo individual dos falantes de catalão e


considerando uma abordagem relevante para o universo da APBC, me
centrarei em dois estudos recentes sobre famílias linguisticamente mistas, no
caso, com cônjuges falantes de catalão e castelhano, que procuram explorar as
motivações e pautas de transmissão linguística aos filhos: o de Boix-Fuster
(2009a), com 79 entrevistas realizadas entre 1993 e 2006 na região
130

metropolitana de Barcelona, e o de Ballarín Garoña (2011), com 38


participantes mulheres, na Catalunha.
Os dois parecem confirmar a tendência de os falantes iniciais de
catalão utilizarem o castelhano em determinadas situações, a tal ponto que a
expectativa de adaptação a uma situação de bilinguismo cai sobre o falante de
catalão, que deve saber adaptar-se ao castelhano, e não o contrário. Assim,
não é de surpreender que, nos casais mistos catalano-castelhano, 75% dos
falantes iniciais de catalão passem a usar o castelhano com o cônjuge e que
em quase todos os casais a interação inicial tenha ocorrido em castelhano
(BALLARÍN GAROÑA, 2011). Embora Boix-Fuster (2009a) corrobore que o
castelhano seja a língua de interação inicial usada pela maioria dos casais
mistos de sua pesquisa, ele destaca que essa escolha não necessariamente
define os usos linguísticos do casal no futuro, havendo casos de mudança de
língua.
Boix-Fuster (2009a) destaca que o castelhano, para seus sujeitos de
pesquisa, é a língua mais conhecida e a língua privada mais disseminada e, se
a difusão do uso e conhecimentos do catalão continuam, como indicam Vila i
Moreno e Sorolla Vidal (2013), o resultado desses processos seria um
bilinguismo assimétrico – praticamente todos os falantes de catalão sabem
castelhano, mas nem todos os falantes de castelhano sabem catalão –, com
uma tendência à manutenção do uso espontâneo destas duas línguas
principais. Em relação aos estratos sociais, o estudo de Boix-Fuster (2009a)
aponta que o castelhano é a língua dominante na socialização familiar dos
informantes de classes baixas, enquanto que o catalão é a língua levemente
dominante nas classes médias. Nos setores populares, o castelhano é a língua
hegemônica no ambiente laboral e nas relações entre vizinhos e, para os
participantes da pesquisa de classes populares que falam habitualmente
catalão, o contato com o castelhano sempre foi intenso – sendo possível dizer
que predomina nos espaços públicos. Na opinião de Boix-Fuster (2009a), essa
presença constante do castelhano nos espaços públicos e como língua
hegemônica – dos meios de comunicação, das relações intergrupais – é um
dos fatores para que os falantes de catalão se sintam menos seguros ao usar o
catalão que ao usar o castelhano. Deve-se reconhecer, assim, o castelhano
como língua hegemônica na Catalunha.
131

Em qualquer caso, os filhos destes casais mistos conhecem ambos


os idiomas, pois estão expostos tanto ao catalão como ao castelhano em
outros ambientes, que não seja em casa, com destaque para o escolar. Além
disso, há indícios de que podem, mais adiante, optar por falar catalão – e não
castelhano – com os próprios filhos: segundo dados da Generalitat, os filhos de
casais com um dos progenitores nascido na Catalunha e outro em outras
regiões da Espanha, os quais usam o catalão nas interações com os
progenitores em 23,2% dos casos, optam por falar catalão com os filhos em
60,2% dos casos (CATALUNHA, 2015a).
Ainda nesse contexto, para que o catalão se torne a língua principal
da família quando o casal é misto, os dados de Boix-Fuster (2009a) indicam
que um dos cônjuges deve vir de família falante de catalão e deve haver
“pressão familiar suficiente” quanto aos usos linguísticos para que o outro
cônjuge falante de castelhano se insira nesse contexto, o que elucida a
existência de PLFs que promovem os usos do catalão em contextos de
bilinguismo com o castelhano. Se a influência catalanizadora não se restringe
ao contexto familiar, mas ocorre também em outros meios, como o profissional
e as redes de amizades, é mais provável que as competências e usos em
catalão do cônjuge que tem o castelhano como língua inicial não se restrinjam
a habilidades passivas (entender a língua), mas que ele comece a utilizá-la
também como falante, podendo chegar a definir que esta será a língua na qual
se relacionará com seus filhos. Ballarín Garoña (2011) corrobora essa posição.
Para os falantes de catalão como língua inicial que passam a usar o
castelhano nas relações familiares, não há realmente um esforço por aprender
o castelhano, pois eles já o conhecem previamente. Em outras palavras: é
necessário um esforço muito maior para que os falantes monolíngues de
castelhano adotem o catalão do que para que os falantes bilíngues de catalão
adotem o castelhano.
A influência no predomínio do castelhano sobre o catalão, no
entanto, se define não só na rede familiar, mas nas relações sociais fora de
casa. Os círculos sociais na pré-adolescência (entre 13 e 15 anos) podem ter
mais influência que o ambiente – o bairro onde predomina o castelhano ou o
ambiente escolar – sobre a língua que o falante bilíngue (o filho dos casais
132

mistos, no caso) adotará como principal (BOIX-FUSTER, 2009a; BALLARÍN


GAROÑA, 2011).
Com relação às representações, em linhas gerais, o panorama é
complexo e heterogêneo – ou talvez superdiverso (BLOMMAERT, 2013;
VERTOVEC, 2007): entre as expectativas dos progenitores em relação ao uso
destas duas línguas pelos filhos no futuro, “o mais coerente é a incoerência”
(BOIX-FUSTER, 2009a, p. 157), pois elas em nada correspondem às práticas
linguísticas familiares (por exemplo, famílias desejosas que seus filhos usem o
catalão em mais âmbitos no futuro, quando não o fazem entre suas práticas
linguísticas do presente). Parece predominar o pragmatismo (comunicar-se,
adaptar-se) em detrimento de uma prática coerente com as convicções
ideológicas (BOIX-FUSTER, 2009a; CALDAS, 2012), sendo que a língua que
os pais usam com os filhos não é escolhida de forma coerente, mas de acordo
com um conjunto de fatores do contexto (BALLARÍN GAROÑA, 2011), o que
corrobora a discussão de que geralmente as PLFs carecem de planejamento
explícito (CALDAS, 2012; BASTARDAS-BOADA, 2016).
Outra incoerência aparece, por exemplo, na percepção – uma
ideologia vigente – de que há poucas horas dedicadas ao ensino do castelhano
na educação primária (a carga horária é similar à de uma língua estrangeira)
como algo negativo e que ameaçaria a aquisição dos conhecimentos
necessários em castelhano – o que não é real, já que as competências em
língua castelhana da população da Catalunha são maiores que em língua
catalã (CATALUNHA, 2015a).
Em relação à diversidade de usos e conhecimentos, o estudo de
Boix-Fuster (2009a) revela uma variedade de realidades linguísticas nas
famílias mistas da região metropolitana de Barcelona – fruto, poder-se-ia dizer,
de diferentes PLFs – e, por extensão, nos usos linguísticos sociais: pessoas
que tentaram aprender o catalão, mas não foram capazes, por se sentirem
discriminadas e ridicularizadas ao tentá-lo; catalães falantes de catalão como
língua inicial que se sentem linguisticamente discriminados como minoria em
locais de alta proporção de falantes de castelhano – e vice-versa; falantes de
catalão como língua inicial que, simbolicamente, se identificam mais com o
castelhano – por origens familiares ou pressão do meio social – e passam a
adotar o castelhano como língua principal, e o contrário com falantes de
133

castelhano como língua inicial; casais que se conhecem em castelhano e mais


tarde adotam o catalão; falantes de catalão como língua principal, filhos de
migrantes que têm o castelhano como língua familiar; adultos filhos de famílias
mistas que alternam constante e indiscriminadamente o catalão e o castelhano
ao se expressarem; representantes de famílias tradicionais catalãs de classes
mais altas que passaram por um processo linguístico de castelhanização, para
os quais a língua funciona como um indicador de ascensão social. Há que se
considerar ainda os falantes iniciais de castelhano de origens populares de
classes baixas, cujo passado familiar de privações está associado às ondas
migratórias dos anos 1960-1970, os quais associam o uso do castelhano a
essas limitações e preferem afirmar sua identidade como bilíngues, o que seria,
também, um indicativo de ascensão social; pais que falam em catalão com os
filhos, mas em castelhano entre o casal; filhos falantes de catalão, que
potencializam as competências de pais falantes de castelhano na língua catalã
(num processo de catalanização de baixo pra cima, que também demonstra a
influência das crianças nas PLFs); pais que têm o catalão como língua inicial,
mas optam por falar em castelhano com os filhos para compensar a pouca
exposição que os filhos recebem ao castelhano no sistema escolar, entre
outras nuances desse mosaico linguístico.
Em síntese: embora seja possível afirmar que a maioria dos falantes
de catalão são bilíngues, e que a maioria da população da Catalunha tem
algum grau de conhecimento do idioma catalão, não há um perfil de falante
bilíngue. Mais adequado seria pensar que esses falantes distribuem suas
competências num continuum para cada uma das línguas de seu repertório
(BUSCH, 2012), lembrando que as competências de um falante bilíngue não
resultam na soma das competências de dois falantes monolíngues, como
ilustra Maher (2007) na Figura 9, a seguir.
134

Figura 9 – Universo discursivo do sujeito bilíngue (MAHER, 2007, p. 77)

3.6 Língua, política e processos de identificação na


Catalunha hoje

Se, como se expôs, a maior parte da população da Catalunha tem


conhecimentos de catalão como segunda língua, e não como língua inicial,
como são as relações entre língua e o sentimento de pertencimento ao grupo
que se identifica como “catalães”? Algumas representações do estudo de Boix-
Fuster (2009a) ajudam a entender como a questão pode se acomodar em
nível individual, para o sujeito, como nos trechos abaixo, de entrevistas
respondidas originalmente em catalão:

ENT: “E você acha que para ser catalão_é preciso saber catalão/
IGG: “Olha_veja bem_ se você pensar bem_ quer dizer\bueno\então
não precisa\você pode ser um bom catalão e não saber mas é uma
coisa que acho que está tão ligada que é que não dá para_não dá
para separar\se você é catalão\uma coisa é que você use a língua
mais ou menos\não/ outra coisa é saber num nível ou em outro\mas
se realmente é assim você tem prazer de saber e de falar [...]
[Homem catalão, 34 anos, funcionário público] (BOIX-FUSTER,
2009a, p. 107-108)

MGA: [...] e então eu acho que continuo sendo tão catalã@@@tanto


quando falo num idioma como em outro. [Mulher catalã, 48 anos,
diretora de escola, sobre os usos de castelhano e catalão] (BOIX-
FUSTER, 2009a, p. 81)
135

De modo coletivo, no entanto, como se explicou, no que diz respeito


às relações língua x processos de identificação, os discursos públicos e de
grupos tendem a associar a identidade catalã à reivindicação da língua catalã,
e não necessariamente à reivindicação do bilinguismo.
Historicamente, com a transição para o regime democrático nas
décadas de 1970 e 1980, surgiram campanhas e políticas públicas a favor da
“normalização linguística”, um processo que tem como objetivo final que a
língua territorial (catalã) se torne socialmente hegemônica tanto nas
comunicações institucionais como privadas, para que se garanta a
continuidade de suas funções e usos, incluindo a transmissão linguística, de
modo autônomo, isto é, sem a necessidade de intervenções públicas (como
políticas linguísticas estatais) ou privadas a favor de seu uso33. Isso passa por
estabelecer uma “segurança linguística”, ou seja, a oportunidade de viver uma
vida completa, sem obstáculos importantes, numa comunidade de gente que
compartilha uma língua própria (BOIX-FUSTER, 2009a).
Boix-Fuster (2009a) atribui às campanhas de normalização
linguística promovidas pelos governos da Catalunha e municipais a percepção
geral de que o catalão é um código que os catalães devem conhecer. Tais
políticas, no entanto, não chegam a alterar as pautas de conduta que fazem
com que o castelhano, e não o catalão, seja a língua não marcada, a anônima,
a usada para se dirigir aos desconhecidos e estrangeiros no território
geográfico da Espanha em que o catalão é língua autóctone. E o decréscimo
na média de uso geral do catalão entre 1998 e 2013 (CATALUNHA, 2015a)
pode ser interpretado como um indicativo de que tais políticas não são
suficientemente efetivas.
Por conta disso, e acompanhando os embates políticos recentes,
nos quais a discussão sobre se a Catalunha deve ou não se tornar
independente da Espanha voltou à tona com força – em realidade, um tópico
desde 1714 –, a reflexão sobre qual deveria ser a língua (ou línguas) oficial(is)
desse novo Estado ganhou visibilidade. O fato de o conflito com o governo

33
Note-se que o próprio conceito de “normalização linguística” pode ser interpretado de forma
ambivalente inclusive nas políticas públicas que o contemplam. As pautas não são claras, por
exemplo, sobre se essa “normalização” se dá a partir de um modelo de bilinguismo entre
catalão e castelhano ou de um modelo centrado numa sociedade monolíngue de língua catalã.
136

central voltar a ganhar força estava relacionado à anulação, em 2010, de parte


do novo estatuto de autonomia catalão, aprovado em 2006.
Em 9 de novembro de 2014, foi realizado um plebiscito, não
reconhecido pelo governo espanhol, sobre a independência da Catalunha.
Aproximadamente 2,3 milhões de residentes na Catalunha foram às urnas, o
que representa cerca de 33% dos eleitores, para os quais, à diferença do
Brasil, o voto é facultativo, e não obrigatório. Oitenta por cento dos votantes
apoiou a ideia de que a Catalunha se tornasse um Estado independente
(PÉREZ e RÍO, 2014).
Cerca de um ano depois, no dia 27 de setembro de 2015 se
realizaram as eleições para o parlamento da Catalunha. Os partidos
Convergencia Democrática de Cataluña e Esquerra Republicana de Catalunya
(ERC) encabeçaram, junto com outras organizações independentistas, a
coalizão chamada “Junts Pel Sí”, com a qual pretendiam dar às eleições um
caráter plebiscitário. A proposta de Junts Pel Sí era a independência e obteve o
apoio de 39,59% dos eleitores (resultando em 62 deputados eleitos), os quais,
somados aos 10 deputados de outro partido independentista, a CUP
(Candidaturas de Unidad Popular), permitiu que Carles Puigdemont, com um
programa independentista, fosse nomeado presidente da Generalitat
(CATALUNHA, 2015b).
Nesse contexto político, remontando a uma tradição de manifestos
que reivindicam os direitos e usos linguísticos ao menos desde a década de
1990 (ORTEGA, 2016), surgiu, por exemplo, o manifesto do Grup Koiné. Nesse
caso, um coletivo de linguistas, filólogos, professores, escritores e juristas,
entre outros, reivindica o catalão como idioma da Catalunha independente e
denuncia a ideologia que apresenta o bilinguismo como “um fato natural,
positivo, enriquecedor e democrático”. Se, juridicamente, tanto o catalão como
o castelhano gozam do mesmo status linguístico na Catalunha, a ideologia
bilinguista seria uma forma de encobrir e legitimar a subordinação de uma
língua (o catalão) a outra (o castelhano), alegando que há um “processo de
bilinguização forçosa da população” e que a imigração recebida de territórios
onde o castelhano é língua inicial é um “instrumento involuntário de
colonização linguística” (GRUP KOINÉ, 2015).
137

Ora, se há espaço para que surjam esses posicionamentos, pela


própria estrutura social – linguística e demográfica – da população catalã o
manifesto não foi aceito com entusiasmo: personalidades públicas se
pronunciaram a favor do bilinguismo (CIA, GELI e SEGURA, 2016) e
estatísticas de que o número de falantes de catalão não seria de mais de 2
milhões sem a imigração foram trazidas à luz (VIDAL-FOLCH, 2016;
MELCHOR e BRANCHADELL, 2002). Se o bilinguismo não é reivindicado
explicitamente como algo central da identidade catalã, as réplicas ao manifesto
do Grupo Koiné reivindicam a imigração como parte estrutural do que a
Catalunha é hoje: cerca de 70% da população ali residente é produto direto ou
indireto da imigração apenas dos séculos XX e XXI. E, apesar disso (ou graças
a isso), nem a Catalunha, nem o idioma catalão ou a cultura catalã
desapareceram – ao contrário, existiriam com mais força que nunca (VIDAL-
FOLCH, 2016).
A chave para entender essas relações talvez seja pensar que o
catalão é, assim, o idioma de identificação – aquele que o falante declara como
“seu” – e língua de uso habitual, mais que a língua inicial de seus falantes
(BOIX-FUSTER, 2009a; CATALUNHA, 2015a). O fato de que o catalão se
destaque como idioma de identificação, com o qual seus falantes se identificam
identitariamente, pode ser explicado em parte em oposição à carga simbólica
associada ao castelhano. Como língua, o castelhano não é identificado
identitariamente com um grupo específico, pois este idioma funciona como
elemento de identificação para um espectro mais variado de grupos: os dos
falantes de castelhano como língua inicial de outras regiões da Espanha, os
vinculados a países latino-americanos individualmente e aos latino-americanos
como grupo (incluindo um grupo de imigrantes que tem línguas indígenas como
o aimará ou o quíchua como idioma inicial), os dos estrangeiros que adotam o
castelhano como língua para suas relações sociais ao chegar à Catalunha,
entre outros.
Seria o idioma castelhano e a castelhanização, como processos
culturais e não somente linguísticos, as ameaças à identidade catalã –
fortemente vinculada e expressada pela língua –, mas não necessariamente a
imigração ou o plurilinguismo em si. Ao contrário: basta observar essa foto da
sede da prefeitura de Barcelona, tomada em abril de 2016, para ver que o
138

problema não está necessariamente nos imigrantes ou numa língua


estrangeira:

Figura 10 – Faixa com os dizeres “Refugees Welcome. Barcelona Ciutat Refugi” na


prefeitura de Barcelona, abril/2016. Foto da autora.

Na foto, vê-se uma faixa pendurada sobre a fachada da prefeitura na


qual se lê, em inglês: “Bem vindos, refugiados”, seguido do slogan em catalão,
bastante menor: “Barcelona cidade refúgio”. A prefeita da cidade, Ada Colau,
não só se mostrou disposta a acolher refugiados – que podem ser vistos como
imigrantes em situação de grande vulnerabilidade, os quais exigem esforços
importantes da máquina pública para garantir sua integridade e direito à
moradia, alimentação, saúde, escolarização e possibilidade de se incorporar ao
139

mercado de trabalho –, como escolheu veicular essa mensagem à cidade não


em catalão ou castelhano, mas em inglês.
Dessa forma, minha interpretação é a de que o castelhano e a
castelhanização são vistos como ameaça à língua – e não só à língua, mas ao
que os catalães identificam como suas características próprias, distintivas.
Devido a isso, outros discursos e estratégias políticas que promovam
alternativas à hegemonia linguística e cultural (língua castelhana e elementos
culturais espanhóis hegemônicos a ela associados) são bem acolhidos e até
mesmo fomentados, pois se configuram como contraponto ao discurso
hegemônico castelhanista. Entre tais discursos anti-hegemônicos, estão
aqueles a favor do multiculturalismo e plurilinguismo – vejamos essa foto como
exemplo.
Remetendo às ideias de Foucault (2014), para quem o poder é algo
que circula na sociedade, trata-se de enfraquecer a hegemonia castelhana,
distribuindo o poder dessa língua e cultura hegemônicas a outras línguas e
culturas mais minoritárias que a catalã: o castelhano perde força, as minorias
ganham espaço e o catalão, proporcionalmente, ganha mais protagonismo – e
todos os grupos minorizados saem ganhando, inclusive o catalão.
Parte dos mecanismos para que esses processos culturais – e não
apenas linguísticos – sejam possíveis passa pelo associativismo. Nesse
cenário, de um espaço urbano com uma grande população de imigrantes, duas
línguas oficiais que disputam protagonismo e um olhar de certa forma favorável
a minorias culturais e linguísticas, seria fundada a APBC.

3.7 A comunidade brasileira na Catalunha

Após abordar as ondas migratórias dos séculos XX e XXI na


Catalunha e os usos das duas línguas oficiais, o castelhano e o catalão, nesse
espaço, me concentrarei em contextualizar a imigração brasileira ali e alguns
outros aspectos importantes para o surgimento da APBC.
Entre 2000 e 2012, a Catalunha recebeu quase 1,5 milhão de
estrangeiros (DOMINGO, 2014), entre os quais os brasileiros são um grupo
que merece destaque. Porém, ainda em meados da primeira década do
140

milênio, a população de imigrantes começou a diminuir. A tabela a seguir, da


prefeitura de Barcelona, embora inclua os brasileiros entre os coletivos mais
numerosos nesse período, revela ainda um crescimento negativo nas
populações de imigrantes da cidade entre 2010 e 2011 para nove das 12
nacionalidades mencionadas e situa em 2009 o ano que concentra a maior
população de imigrantes para cinco países, inclusive o Brasil.

Tabela 5 – Perfil dos coletivos mais numerosos em Barcelona em janeiro de 2011


34
(BARCELONA, 2011)

Os dados da Tabela 5 estão em consonância com os de Domingo


(2014), que situa nos anos de 2006-2007 o pico de chegada de imigrantes na
Espanha e na Catalunha. A partir de 2006, em razão da crise econômica
espanhola, o fenômeno das emigrações de retorno – imigrantes estabelecidos
na Catalunha que retornam a seus países de origem – começa a se configurar,
ao lado da própria emigração de espanhóis (DOMINGO, 2014). Entre os
grupos de imigrantes que deixaram a Catalunha rumo a outro país, em que se
inserem as emigrações de retorno, novamente se destacam os brasileiros:

34
O alto número de italianos se explica porque boa parte deles são, na verdade, cidadãos
argentinos e brasileiros com dupla cidadania, também italiana, que na União Europeia se
identificam como italianos e não com a cidadania de seu país de nascimento.
141

Figura 11 – Taxas de emigração internacional por nacionalidades com a Catalunha como


ponto de origem, 2008-2012 (DOMINGO, 2014, p. 51).

Assim, pode-se dizer que a comunidade brasileira na Catalunha se


estabeleceu no âmbito da terceira onda de migração de início do milênio, tendo
figurado ao longo da primeira década do séc. XXI como um dos coletivos mais
numerosos da cidade (SAMPER e MORENO, 2012) e, como efeito da crise
econômica espanhola iniciada em 2006, o número de brasileiros passou a
diminuir e acompanhou os movimentos de emigração, inclusive no fenômeno
das emigrações de retorno.
Ao longo desse início de milênio, os brasileiros que passaram pela
Catalunha ou ali se estabeleceram deixaram sua contribuição no mosaico
cultural da cidade, criando espaços para práticas identificadas com a cultura e
a identidade brasileiras. A identificação mencionada por Hall, entendida sempre
como “um processo em andamento” (HALL, 2011), se pensada no caso dos
imigrantes brasileiros radicados em Barcelona, permitiria encontrar alguns
elementos que ajudam a construir a representação de brasileiro ou da
brasilidade por esse grupo:

As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas


participam da ideia da nação tal como representada em sua cultura
nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que
explica seu “poder para gerar um sentimento de identidade e
lealdade” (SCHWARZ, 1986, p. 106 apud HALL 2011, p. 49).
142

Nesse contexto, a identidade brasileira emerge pela identificação


que pessoas de origens tão díspares em um Brasil também diverso em seus
costumes, falares, sabores, crenças e festas encontram entre si em oposição
ao outro – por exemplo, as já mencionadas identidades locais espanhola e
catalã, ou as tantas identidades dos imigrantes de outros países –, contribuindo
para o estabelecimento de comunidades simbólicas em torno da ideia de
brasilidade.
Na Catalunha, e particularmente em Barcelona, esses grupos ou
pontos de apoio em que é possível que ocorra identificação com algum tipo de
brasilidade não faltam. Também é importante ressaltar que estão bastante
articulados entre si, seja por questões políticas, como para lograr que um dos
conselheiros eleitos do CRBE fosse um brasileiro na Catalunha, como de lazer,
educativas ou culturais, e é bastante fácil imaginar como o indivíduo – sempre
e quando queira, tenha disponibilidade e interesse – pode transitar entre esses
grupos e exercer sua brasilidade barcelonesa.
O fato de que grupos de brasileiros estejam articulados não é um
mérito que possa ser atribuído à cultura de origem, ao contrário: Boix-Fuster
(2009a) menciona o associativismo como um dos pilares da estrutura social
catalã. De fato, na Catalunha proliferam associações da sociedade civil: há
associações de pais ativas em cada escola, que ajudam a gerir questões de
interesse da comunidade escolar, como atividades extraescolares, serviço de
acolhida dos alunos antes e depois do horário das aulas ou as refeições e
monitoria no horário do almoço; há associações de bairro para organizar festas
populares; coletivos artísticos; torcidas organizadas; grupos profissionais;
grupos de imigrantes etc. Não seria errado dizer que os espaços e políticas
públicas locais acolhem e fomentam esse associativismo, seja no âmbito
público ou privado.
Em boa medida, graças ao associativismo se consolidam o que
chamarei de “pontos de brasilidade”, espaços que favorecem os processos de
identificação de brasileiros expatriados com algo que se associa à cultura e
identidade brasileira, como a Associação Amigos do Brasil, fundada em 1974
por espanhóis e catalães que moraram no Brasil durante a ditadura franquista,
cujas atividades se encerraram em 2014; a Associação de Pesquisadores e
143

Estudantes Brasileiros na Catalunha (APEC), fundada em 1990, que promove a


integração de estudantes brasileiros, geralmente de pós-graduação, que
chegam para estudar, realizando também atividades acadêmicas; os diversos
grupos de capoeira, bastante organizados no exterior; o Baque de Maracatu
Mandacaru, fundado em 2009; as noites de forró ou de samba gafieira que, há
anos, marcam a agenda cultural da cidade com regularidade, bem como as
rodas de choro; as igrejas neopentecostais e católicas que celebram suas
liturgias em português, entre outros.
Além dos pontos de brasilidade fomentados pelo associativismo de
Barcelona, outras iniciativas mais institucionais poderiam ser citadas, como a
revista BrazilcomZ, que circula em português; alguns programas de rádio; o
Centro de Cultura do Brasil em Barcelona (CCBB), vinculado ao Consulado do
Brasil; festivais de artes e cultura especificamente sobre a produção brasileira,
como o Día de Brasil, sempre próximo ao 7 de setembro, ou o Brasil, já extinto.
A elas, soma-se a atuação de diversos artistas brasileiros, seja no campo da
música, em trajetórias coletivas (rodas de samba e choro, bandas) ou
individuais (carreira solo), das artes plásticas ou visuais. Algumas dessas
propostas são mais estáveis, outras, no entanto, existem por um período de
tempo e cessam, mas não sem antes ter ocupado um espaço como articulador
com pontos de brasilidade, formando público – da nacionalidade que for – e
ajudando que o mesmo transite por outros espaços brasileiros.
Conforme exponho a seguir, a cultura local do associativismo, na
qual, como se mencionou, já existia uma tradição de associações vinculadas à
cultura brasileira, foi fundamental para que viesse a surgir a APBC.

3.8 A fundação e a consolidação da APBC

Nos anos de 2006 a 2008, um grupo de pais e mães brasileiros


(muitos dos quais correspondiam aos jovens que emigraram na década de
2000, em boa medida, com cônjuges de outra nacionalidade) começou a
interagir por uma comunidade criada no Orkut, mídia social que precedeu o
Facebook na preferência dos brasileiros. Nessa comunidade virtual, “Brazucas
em Barcelona”, um dos pais, Roberto Tadeu Nora, começou a organizar
144

almoços-encontros nos quais a ideia de organizar um curso de português para


crianças, filhas de brasileiros residentes na cidade, começou a ser discutida,
sem, no entanto, se concretizar (MORONI, 2013).
No final de 2009, graças mais uma vez à internet, a ideia de que
houvesse algum tipo de curso de português para crianças voltou à pauta de um
grupo de discussão mantido por e-mail. Tratava-se da lista de distribuição de
mensagens da APEC35.
A partir da troca de e-mails, a diretoria da APEC, por iniciativa da
então presidente Maria Badet Souza – que mais tarde viria a tonar-se sócia da
APBC – acolheu numa de suas reuniões mensais um grupo de pais
interessados na formação de uma turma de português para crianças e abriu
espaço para que o tema fosse discutido. Uma das mães, licenciada em Letras,
manifestou interesse em ser a educadora do grupo. Desse encontro, três mães
e um pai – Roberto – se organizaram e viriam a fundar, formalmente, o que
seria a APBC. Faltava ainda encontrar um espaço para que as atividades
ocorressem.
Através de contatos anteriores estabelecidos por membros da
APEC, conseguiu-se o apoio da Associació Cultural La BiblioMusiCineteca,
uma biblioteca particular disposta a ceder o espaço de forma gratuita. O
primeiro grupo de crianças brasileiras, com idade entre dois e cinco anos,
passou a se reunir para suas “aulas” semanais aos sábados nas frias manhãs
de janeiro de 201036 e aprenderia cantigas de roda e outros conteúdos de
educação pré-escolar em português, como números, formas, cores, ouviria
histórias, conheceria o coelho da Páscoa, o Saci, o Dia do Índio, desenhos
animados etc., a partir de uma abordagem lúdica. Como não havia apoio
financeiro, as famílias participantes concordaram em arcar com uma
mensalidade, que cobriria os custos com materiais e professor.

35
A APEC congrega pesquisadores e estudantes brasileiros em geral morando
temporariamente na Catalunha por motivos acadêmicos. Oferece apoio e informação aos que
estão chegando e realiza, desde meados da década de 1990, um seminário anual que dá aos
pesquisadores oportunidade de publicar artigos e difundi-los entre a comunidade científica.
36
A ata de fundação da APBC está datada de 26 de setembro de 2009. A documentação foi
apresentada para registro e obteve aprovação da Direção Geral de Direito e Entidades
Jurídicas (Direcció General de Dret i d’Entitats Jurídiques) do Governo da Catalunha em 27 de
julho de 2011, sendo inscrita no registro de Associações do Governo da Catalunha (Servei de
Registre i Assessorament d’Entitats de Dret Privat) em 19 de agosto do mesmo ano, segundo
documentação oficial à qual tive acesso.
145

A primeira ação da APBC começava, assim, a caminhar.


Paralelamente, as atividades sociais iam ganhando forma, tanto em encontros
de temática brasileira, por exemplo, a festa junina, como por parcerias com
outras associações da cidade com as quais a APBC passou a colaborar para
realizar eventos e encontros culturais (festivais musicais, festas vinculadas às
“culturas do mundo, eventos locais etc.). A atuação parecia estar em
consonância com o registrado em estatuto:

- Fomentar a integração entre as famílias com crianças de origem


brasileira
- Promover atividades socioculturais entre as famílias associadas
- Promover o ensino da língua portuguesa entre as crianças e o
conhecimento da identidade e da cultura brasileira, através do Projeto
Educativo-Cultural Brasileirinhos
- Promover a extensão, integração e intercâmbio cultural entre Brasil
e Catalunha (ASOCIACIÓN DE PADRES DE BRASILEIRINHOS EN
CATALUÑA, 2009, p. 5, Parágrafo 1, Artigo 2).

Depois do momento de estruturação das atividades da APBC na


BiblioMusiCineteca e de uma passagem de um ano e meio pelo espaço do
Centro de Cultura do Brasil em Barcelona (CCBB), vinculado ao Consulado, em
2013 a APBC trasladou suas atividades para o Centre Cívic Parc Sandaru37.
Assim, pode-se dizer que, ao ser acolhida pelo Sandaru, a APBC obteve o
apoio formal da prefeitura de Barcelona, pois encontrou espaço e apoio no
âmbito das políticas municipais voltadas para a cultura, que têm uma postura a
favor da diversidade.
Ao iniciar as atividades no Sandaru, a APBC contava com três
turmas divididas por faixa etária: 2-3 anos, 4-5 anos e a terceira, de 6-11 anos,
para crianças já alfabetizadas. Em setembro de 2014, uma nova turma, para
crianças a partir de 2 anos, foi criada, e a faixa etária das demais turmas foi
ajustada, totalizando quatro grupos. No curso 2014-2015, as turmas foram
batizadas com nomes de animais da fauna brasileira, um tópico trabalhado
também em sala de aula: turma dos Botos (2-3 anos), dos Tatus (3-5 anos),
das Onças Pintadas (5-7 anos) e das Araras (7-12 anos).

37
Ao estabelecer o convênio com o Sandaru, a APBC passou a dispor gratuitamente de três
salas de aula que podiam ser usadas de modo simultâneo e a ter um espaço físico que incluía
um escritório para realizar atendimento ao público, armários para guardar os materiais de aula
e armazém. Em contrapartida, a APBC assumiu alguns compromissos e passou a ajudar na
organização de alguns eventos do centro cívico, como a festa de Carnaval, a festa do bairro no
mês de maio e, desde 2015, a festa de Halloween.
146

Durante esse curso, a turma dos Botos foi reestruturada: um adulto


responsável passou a participar das aulas acompanhando a criança, o que
transformou o espaço da aula num espaço de interação também dos adultos,
com conversas constantes sobre questões da maternagem e do universo
infantil (alimentação, sono, desmame, desenvolvimento da linguagem,
adaptação escolar, processo de tirar as fraldas etc.). Nesse curso, começou a
funcionar ainda a biblioteca, organizada e gerida por um grupo de pais. 38 Em
outubro de 2015, já no curso 2015-2016, foi fundado o primeiro grupo em outra
cidade: o grupo Saci, em Canet de Mar, a cerca de 50 km de Barcelona.

3.9 O PLH em sala de aula: o trabalho pedagógico na APBC

Embora eu sempre tenha acompanhado as atividades da APBC, foi


a partir de setembro de 2014, quando iniciei o trabalho de campo, após três
anos de distância física, que realmente estive em contato mais próximo com a
equipe pedagógica (com quatro professoras, mais uma substituta regular e
outras ocasionais) e a Diretoria. Ao longo desses anos, vejo que o processo de
expansão e consolidação da APBC não se refere apenas a um crescimento
numérico na quantidade de turmas e de alunos, mas é também resultado do
amadurecimento das discussões em torno dos propósitos da associação e das
propostas pedagógicas para o ensino de PLH.
Um ponto aparentemente positivo nessa trajetória parece ser a boa
estabilidade na equipe pedagógica e na Diretoria. As quatro educadoras que
compõem atualmente a equipe pedagógica estão no comando das turmas,
respectivamente, desde 2011, 2012, 2014 e 2015, e, apesar de ter havido
algumas transições de professor, a rotatividade pode ser considerada baixa.
Em linhas gerais, as educadoras demonstram comprometimento e interesse
em continuar com seu trabalho na APBC, embora as aulas não sejam, para
nenhuma delas, sua ocupação principal, ainda que se trate de um trabalho
remunerado, e não voluntário.

38
O acervo, de cerca de 500 livros em português, principalmente infantis, foi constituído a partir
de doações e está à disposição das famílias, reforçando o contato com a língua escrita e
exposição ao português em casa.
147

Em relação ao trabalho de sala de aula, as educadoras têm


autonomia para decidir os conteúdos e metodologias utilizadas, com abertura
para receber sugestões – e apoio – das colegas, da Diretoria e dos pais. O
apoio é necessário, pois, como exposto no Capítulo 2, o PLH é um campo novo
e ainda não há metodologias, práxis, materiais didáticos ou currículos
amplamente testados e consolidados, cujos resultados sejam conhecidos para
determinados perfis de aluno. A seu modo, cada professora passou por um
período de adaptação de suas estratégias didáticas, num primeiro momento
experimentais e nem sempre bem sucedidas, até desenvolver uma rotina de
aula que funcionasse para seu grupo.
Entre as heterogeneidades com que o educador de PLH deve lidar
em sala de aula estão as de faixa etária (conforme mencionado anteriormente
para cada turma), a das competências das crianças em português (distribuídas
em pontos diferentes do continuum linguístico que vai de “muito proficiente” a
“pouco proficiente”), além de diferenças no repertório linguístico da criança (as
línguas que sabem, além do português, que, embora geralmente incluam o
catalão e o castelhano, em alguns casos podem incluir alemão, italiano ou
inglês, entre outras) e no desenvolvimento da linguagem em geral – na turma
dos Botos (2-3 anos) há crianças que quase não falam e outras que se
expressam muito bem oralmente; na das Onças (5-7 anos) há aquelas que já
leem e escrevem com desenvoltura e outras que não, o que também é
influenciado pela proposta pedagógica da escola regular frequentada pela
criança e pelo momento em que se inicia o trabalho com letramento.
Assim, até que a equipe pedagógica da APBC estruturasse seu
trabalho, não havia uma proposta de ensino de PLH para crianças de origem
brasileira residentes na Catalunha ou mesmo a consciência de que um trabalho
semelhante poderia estar sendo desenvolvido em outros países. Enxergar,
mapear e processar toda a diversidade presente em sala de aula e num
contexto de atuação do PLH que não fosse exclusivamente o local requer seu
tempo e pode se beneficiar de capacitação específica para atuar com PLH,
mesmo quando as professoras têm uma bagagem de experiências em
educação que se complementam39.

39
Entre as quatro professoras da APBC e substituta regular em maio de 2015, uma era
formada em Pedagogia, com atuação em educação infantil e doutorado em andamento em
148

Neste ponto, faz-se necessário lembrar que esse perfil de crianças


de origem brasileira, filhas de casais mistos, com as competências linguísticas
e vivências interculturais que têm, não existia há uma geração, pois é produto
de ondas migratórias da década de 2000. Portanto, não é de surpreender que
os paradigmas para ensino de língua existentes quando o trabalho da APBC
começou não atendessem às especificidades e necessidades desse grupo ou
que as educadoras e os pais não soubessem exatamente quais as melhores
abordagens ou as mais eficazes para proporcionar esse aprendizado. Por via
de regra, o pai ou a mãe brasileira não cresceu numa família e num contexto
plurilíngues; os educadores, independentemente de sua bagagem, não foram
formados para ensinar PLH a crianças plurilíngues. Para transmitir e ensinar o
PLH, aqueles que ensinam – pais e professores – também têm um caminho de
aprendizado a percorrer.
O amadurecimento da proposta pedagógica se reflete na própria
compreensão – algo adquirido ao longo do tempo, que não chegou pronto – do
que são as aulas de PLH da APBC: as aulas não são necessariamente de
português, mas muitas vezes aulas de práticas culturais brasileiras em
português, “um espaço de interação nesta língua, mediado por uma figura
diferente da do entorno doméstico, a do professor” (MORONI e GOMES, 2015,
p. 30), onde se pratica uma pedagogia da escuta e das relações sociais, pois é
a partir das necessidades das crianças que as professoras vão preparando os
encontros e definindo que tipo de conteúdos irão trabalhar nos eixos temáticos
escolhidos para aquele ano de curso (MORONI e GOMES, 2015). Exemplos
de como isso se dá serão fornecidos no Capítulo 5, na análise de dados
qualitativa.
Desde o momento em que comecei o trabalho de campo, pude
observar que a equipe pedagógica realiza reuniões regulares – geralmente
sem participação da Diretoria – para definir o eixo temático comum a ser
trabalhado durante o curso (Regiões do Brasil, em 2014-2015; Ciências e
Olimpíadas, em 2015-2016; Teatro, em 2016-2017), organizar atividades que

Didática do PLH; outra, formada em Letras, com experiência no ensino de espanhol para
alunos do Ensino Fundamental; outra, jornalista, com experiência em projetos de
Educomunicação em ONGs; outra era falante de japonês como língua de herança, tendo
morado no Japão quando jovem; outra, psicóloga e tradutora. Das cinco, quatro frequentaram
cursos e oficinas de especialização em PLH, custeados pela APBC.
149

as turmas realizarão juntas, os eventos e datas importantes que serão


comemorados e trabalhados em sala de aula, como parte do currículo (dia das
crianças; dia do PLH; Carnaval; Páscoa etc.), e discutir e amadurecer pontos
como os objetivos de cada grupo, critérios para divisão das turmas ou para que
um aluno mude de turma (o que preocupava bastante alguns pais), currículo,
metodologia.
A trajetória pessoal das educadoras, com experiências diferentes e
complementares em educação, e a disponibilidade em pensar e amadurecer
essas questões, em boa medida por iniciativa própria, e não por uma exigência
de uma figura de autoridade (um “coordenador pedagógico”, “chefe” ou a
Diretoria), necessárias para sua práxis como professoras de PLH, ajudaram na
estruturação da proposta pedagógica da APBC – um trabalho ainda em
execução. Como resposta às inquietudes trazidas pelas famílias sobre como as
turmas eram organizadas e também como um passo inicial para sistematizar o
trabalho pedagógico, as professoras elaboraram a seguinte síntese:

Grupo 1 (2 a 3 anos) Grupo 2 (3 a 4 anos) Grupo 3 (4 a 6 anos) Grupo 4 (7 a 12 anos)

Objetivos grupo 1 e 2
Objetivos grupo 1 Objetivos grupos 1, 2
+ e3
- Expressão corporal +
- Expressão escrita +
- Comunicação oral
- Uso social da língua
- Estimulação de - Alfabeto, letras, falada e escrita
sentidos - Interação social sons, palavras

- Trabalho com as - Produção de


- Ampliação de - Expressão de interferências catalão- conhecimentos na
vocabulário opiniões espanhol-português língua portuguesa

Figura 12 – Proposta educativo-cultural da APBC (MORONI e GOMES, 2015, p. 30)

Estes critérios, associados à faixa etária de cada turma, ajudam a


nortear o momento em que um aluno irá mudar de grupo. Considerando as
heterogeneidades no domínio da língua portuguesa, as competências são
avaliadas no desenvolvimento da linguagem em geral, não importando a língua
utilizada pelo aluno. Então, para determinar se uma criança de 3 anos recém-
150

completados irá continuar no Grupo 1 ou passar para o Grupo 2, o professor irá


avaliar sua capacidade de expressão oral (capacidade de contar uma história
ou episódio com começo, meio e fim), por exemplo, em qualquer das línguas
de seu repertório. Para determinar se uma criança de quase 7 anos irá
continuar no Grupo 3 ou passar para o Grupo 4, o professor irá avaliar seus
conhecimentos de leitura e escrita – o que não está relacionado apenas a seus
conhecimentos de português, mas também à proposta pedagógica da escola
regular que ela frequenta, já que há escolas que iniciam o trabalho de
alfabetização aos 3 anos, outras que preferem esperar até os 6 anos.
No final do curso 2014-2015, em parte a pedido da Diretoria, os
professores entregaram, pela primeira vez, uma ficha de avaliação individual de
cada aluno à família. Embora o curso da APBC não aplique exames ou exija
uma nota ou frequência mínima para “aprovar” ou mudar de turma, as famílias
têm interesse em conhecer o desenvolvimento das crianças. Além de mensurar
o progresso do aluno, a avaliação proporcionaria um momento de os
professores avaliarem o resultado de seu trabalho. Desde então, definiu-se que
as avaliações seriam realizadas em dois momentos: no mês de dezembro
(após cerca de três meses de aula) e no final do curso, este segundo prevendo
uma breve conversa individual do professor com os responsáveis da criança.
Ainda em relação à avaliação, Moroni e Gomes (2015) especificam:

Vale lembrar que as turmas de LH na APBC (e arriscamos dizer que


as turmas de PLH em geral) são bastante heterogêneas, tanto pela
faixa etária quanto pelo contexto e política linguística familiar,
exigindo, portanto, uma maior flexibilidade no campo da avaliação, a
qual é realizada levando em conta o contexto e o avanço individual do
aluno no processo. Além disso, segundo Gohn (2011) esta proposta
se encaixa no modelo não formal, ou seja, em espaços diferentes dos
da estrutura escolar, e o foco está no processo como um todo, e não
na avaliação. Porém, a avaliação é um elemento importante que pode
fornecer informações preciosas sobre o processo de ensino-
aprendizagem.
A avaliação diagnóstica e a avaliação formativa propostas por Bloom
(1956) são modelos que, adaptados ao contexto, podem ser
aplicados na avaliação na LH. A diagnóstica, realizada no princípio do
curso, é um elemento norteador do planejamento pedagógico para o
grupo. Através dela é possível conhecer o nível de competência
comunicativa do aluno e suas principais necessidades. Já a avaliação
formativa complementa a diagnóstica, sendo realizada de forma
contínua ao longo do ano letivo e indicando gradativamente os
avanços realizados pelo aluno. (MORONI e GOMES, 2015, p. 30-31)
151

O amadurecimento da proposta pedagógica da APBC, no entanto,


não passa apenas pelos aspectos de sala de aula. Do ponto de vista do
funcionamento administrativo, de responsabilidade da Diretoria, também há
pontos que foram estruturados – e outros que devem sê-lo. Por exemplo,
desde o curso 2014-2015, iniciou-se um controle de frequência dos alunos, até
então inexistente – em parte, para saber o número de crianças que
efetivamente frequentam as aulas e as vagas disponíveis para novos alunos,
mas também para que as próprias famílias e educadores saibam a quantidade
de aulas que as crianças frequentam e possam trabalhar as expectativas de
aprendizado e planejamento dos encontros de forma mais adequada.
Os professores já tinham a percepção de que não podiam contar
com todos os alunos em todas as aulas e planejam as aulas em módulos que,
embora sejam independentes, seguem uma temática como fio condutor, mas
não limitam a participação do aluno que está presente caso tenha faltado na
aula anterior. Saber a porcentagem de frequência nas aulas e a média de
frequência por turma fornece, como já dito, dados objetivos que podem ajudar
no planejamento e a que as famílias alinhem suas expectativas. Por exemplo,
na turma de 7-12 anos, a média de frequência às aulas em 2015-2016 foi de
57%, similar à turma de 2-3 anos, de 55%. A turma de 4-5 anos teve média de
68% e a de 5-7 anos, 76%. Já a média no grupo de Canet de Mar (4-8 anos) foi
de 91%.

3.10 Política linguística para PLH na APBC

Sem dúvida, a PL para PLH promovida pela APBC passa por


desenvolver e estruturar o curso de PLH, mas não se restringe a esse espaço.
Parte importante do que a APBC realiza são as festas e encontros
sociais relacionados às tradições e datas brasileiras, um trabalho realizado pela
Diretoria, com a colaboração das famílias e, ocasionalmente, das educadoras –
ou seja: algo que acontece fora da sala de aula e não depende da figura do
professor. É nesses espaços que os adultos da associação se conhecem e as
famílias criam vínculos umas com as outras, com o que passam a conviver com
152

mais falantes de português em seu dia a dia, já que em alguns casos o


relacionamento evolui para outros âmbitos e não se restringe às situações
criadas pela APBC. Promover eventos sociais com o objetivo de que os adultos
falantes de português se conheçam e criem vínculos entre si amplia os usos
reais e contextualizados de português para as crianças em toda a atividade
social que transcorre fora da sala de aula – o que pode gerar uma exposição
maior que a 1,5 h ou 2 h de aula de português semanal. Isso também é algo
que as crianças adquirem ao se matricularem nos cursos da APBC – embora a
frequência deste uso social da língua dependa, evidentemente, do
envolvimento das famílias nessas outras atividades e sua abertura para
socializar e se relacionar com os sócios da APBC fora dos espaços da
associação.
Assim, ao se pensar a PL da APBC para o PLH, o foco não pode
estar exclusivamente no trabalho em sala de aula: tão importante quanto a
conquista deste espaço formal de aprendizagem e de apoios institucionais é
reconhecer que o curso de “Língua e Cultura do Brasil” se configura como uma
extensão do que estas famílias já desejavam e exerciam, em diferentes graus,
dentro de casa. Com isso, a política linguística de cada família se expande para
outra camada da cebola40 do planejamento e das políticas linguísticas
mencionadas por McCarty, em que se “revelam espaços de ação em que os
agentes locais implementam, interpretam [...] iniciativas de políticas
[linguísticas] variadas” (MCCARTY, 2011, p. 109). Ou seja: o planejamento
linguístico das famílias, antes restrito ao núcleo familiar e espaço doméstico,
passou, com o surgimento da associação, seus encontros sociais e a
comunidade que se formou em torno dela, a ser implementado em uma nova
instância, e isso não se deu simplesmente por meio da sala de aula.
As famílias da APBC sabem, ainda que intuitivamente, que o PLH,
enquanto língua, não é apenas um recurso linguístico, mas um elemento de
identificação com a cultura brasileira. E sabem, ainda que intuitivamente, que
parte dessas práticas culturais só são possíveis numa coletividade, pois “a
cultura é um sistema compartilhado de valores, de representações e de ação
[...] A cultura, assim, não é uma herança: ela é uma produção histórica, uma

40
A metáfora das camadas da cebola no planejamento e poítica linguística é de Ricento e
Hornberger (1996).
153

construção discursiva” (MAHER, 2007, p. 261). Consequentemente, por


contraditório que soe, se poderia dizer que o PLH tampouco é uma herança: é
também uma produção histórica e uma construção discursiva.
Por isso, na política linguística dessa comunidade, tão importante
quanto o espaço formal de aprendizado da língua portuguesa em sua variante
brasileira, como já dito, são os encontros culturais e de lazer organizados para
sócios e simpatizantes da APBC. Por um lado, alguns dos eventos são
organizados com a clara finalidade de rememorar e manter tradições do Brasil
(como o Carnaval e a festa junina), já outros são criados aproveitando alguma
oportunidade que a própria cidade oferece (eventos culturais que envolvem
música e teatro em português, por exemplo), e há ainda os encontros informais
entre as famílias, que, embora não sejam organizados pela APBC, são frutos
de contatos feitos na associação (almoços, festas de aniversário, visitas,
passeios).
Em todos, além de “compartilhar e (re)produzir” uma cultura e sua
língua, essas crianças têm oportunidades multiplicadas de, como mencionado,
estar em contato com outros falantes de português e veem as práticas culturais
em cuja produção discursiva a família deseja que se insiram representada
positivamente (a qual, lembremos, não deixa de ser a de uma minoria na
Catalunha). Entendem, também, que não são, por exemplo, a única criança
das matriculadas nas escolas catalãs com a excentricidade de ter uma mãe ou
pai brasileiro, o que ajuda a diluir possíveis sensações de estranhamento ou
estigmas relacionados à história de imigração da família, tendo mais
oportunidades de identificar-se (e desejar fazê-lo) com esse grupo e esse
discurso – construído, vale lembrar – de brasilidade, bem como de ter
experiências emocionais positivas e agradáveis nessa língua. Não menos
importante, elas terão, assim, a oportunidade de criar vínculos afetivos com
essas pessoas, esse contexto, essa cultura, os quais tornarão a experiência
linguística e cultural relevante em sua trajetória de falante de PLH.
O modelo de PL da APBC, que propõe um uso da língua que sai das
casas e das famílias para ser exercido por um grupo maior de pessoas, que vai
do micro ao macro ou do local rumo ao global, é também um exemplo de
política linguística bottom-up e exemplifica o potencial de agência e
transformação nas instâncias mais locais da sociedade, deixando claro,
154

diferentemente do que pensam alguns, que não cabe unicamente ao governo


planejar, exercer e decidir sobre essas questões.
Os dados que permitem conhecer as representações dos adultos
responsáveis por esta PL da APBC, ou seja, os pais, gestores e educadores
dessa associação, sobre os três aspectos identificados como o eixo das LHs –
proficiência linguística, identificação e afetividade –, serão apresentados e
discutidos no Capítulo 5, depois da aproximação feita ao perfil dos participantes
da pesquisa por meio dos dados quantitativos, apresentados no Capítulo 4.
155

CAPÍTULO 4 – UMA BREVE APROXIMAÇÃO AOS DADOS


QUANTITATIVOS: O PERFIL DOS PARTICIPANTES DA PESQUISA

Depois de apresentar as características e a trajetória da APBC, este


capítulo faz uma primeira aproximação dos dados relevantes gerados para o
objeto desta pesquisa: descrever e analisar as representações dos
participantes sobre o PLH e o plurilinguismo e refletir sobre as influências
exercidas pelas ideologias da sociedade de acolhida em tais representações.
Como os métodos de pesquisa foram mistos e incluíram tanto
processos quantitativos como qualitativos, a análise está dividida em duas
seções. Neste capítulo, serão analisados os dados coletados por meio de
questionários, com uma abordagem quantitativa. Embora esta amostra não
seja numericamente representativa no universo de famílias que buscam
transmitir o PLH na Catalunha, ela reflete uma parcela importante da
comunidade da APBC e permite traçar um perfil do grupo.
Ainda que as representações não sejam propriamente apresentadas
neste momento, traçar tal perfil ajuda a entender a relação dos progenitores
brasileiros com seu lugar de residência, a Catalunha, e dá visibilidade à
heterogeneidade do repertório e das práticas linguísticas das famílias
participantes da pesquisa. Essas informações, por sua vez, somadas ao
panorama da sociedade de acolhida e da APBC apresentados no capítulo
anterior, permitem uma interpretação mais bem fundamentada dos dados
qualitativos, referentes às representações, que serão apresentados no
Capítulo 5.
Ao longo da pesquisa, durante as etapas de entrevista individual –
12 com pais e mães, 3 com professoras – e de grupo focal – com 9
participantes – o questionário foi aplicado a 14 pais e mães para coletar
informações sobre as famílias. Assim, esses 14 questionários, respondidos
entre dezembro de 2014 e maio de 2015, reúnem dados sobre cerca de 44 %
do universo de 32 famílias e suas cerca de 55 crianças que, no final de 2015,
eram sócias da APBC e permitem traçar um perfil da associação como um
todo. São, portanto, dados sobre 28 adultos e seus filhos, os quais totalizam 20
crianças. A eles, somam-se os 3 questionários respondidos pelas professoras.
156

4.1 Origem, tempo de residência na Catalunha e idade

Ao olhar para o local de nascimento dos progenitores da APBC em


questão, confirma-se a predominância dos casais mistos, com um progenitor
brasileiro e outro de outra nacionalidade, conforme pode ser verificado na
figura que segue:

Origem dos progenitores da APBC


11%
4%
Brasil (N = 15)

Catalunha (N = 9)

53%
32% Espanha (N = 1)

Estrangeiros (N = 3)

Figura 13 – Origem dos progenitores da APBC

Dos 14 casais, apenas um tinha ambos os progenitores brasileiros.


Entre os progenitores não brasileiros, predominavam os nascidos na Catalunha
(9), seguidos de estrangeiros (outras nacionalidades que não brasileiros ou
espanhóis, totalizando 3) e espanhóis de outras regiões da Espanha (1). Havia,
para esse grupo de famílias interessadas na transmissão do PLH, cinco
nacionalidades em jogo: os progenitores eram brasileiros, espanhóis (e
catalães), e, entre os três estrangeiros, havia um italiano, um francês e um
mexicano. Essas informações corroboram a percepção inicial de que se tratava
de um grupo com características heterogêneas em termos de origens, línguas
iniciais e referentes culturais, resultante de deslocamentos geográficos – as
histórias de imigração. Parte disso deve-se ao fato de os casais serem mistos.
Em relação à trajetória migratória do grupo de brasileiros
(progenitores e professoras), interessa ainda saber que a média de tempo de
residência na Catalunha (sem contar o tempo em outras regiões da Espanha,
157

quando for o caso) é de 7,6 anos, conforme se verifica nos quadros-síntese a


seguir:

Participantes brasileiros: tempo Participantes brasileiros: sexo


médio de residência na Catalunha Mulheres Homens
Progenitores (N = 15) 8,4 anos Progenitores (N = 15) 11 (73%) 4 (27%)
Professoras (N = 3) 3,3 anos Professoras (N = 3) 3 (100%) 0
Total (N = 18) 7,6 anos Total (N = 31) 14 (78%) 4 (22%)

Se olharmos para os dois grupos separadamente, considerando o


tempo de residência e o sexo, teremos entre os progenitores brasileiros uma
média de 8,4 anos de residência na Catalunha e a proporção de 4 homens
(27%) para 11 mulheres (73%). Entre as professoras, a média de tempo de
residência na Catalunha é de 3,3 anos.
Pode-se concluir, com base nesses dados, que o tempo de
residência dos progenitores brasileiros na Catalunha e o fato de que tenham
constituído família com catalães e espanhóis (os quais representam 10 dos 13
progenitores não brasileiros, ou 77%) aponta para um perfil de brasileiros
estabelecidos de forma permanente na Catalunha, e não um grupo que está de
passagem ou que acaba de chegar. Esses dados confirmam, ainda, que o perfil
dos progenitores brasileiros da APBC se encaixa no perfil do jovem brasileiro
emigrado na década de 2000, inserido na cultura digital (MORONI, 2015;
MORONI e GOMES, 2015), e integra a terceira onda migratória recebida pela
Catalunha no século XX, caracterizada pela internacionalização (DOMINGO,
2014) – a qual se observa também no fato de 3 dos progenitores serem
estrangeiros, nem nascidos no Brasil, nem em território espanhol. Eles ajudam,
ademais, a entender porque, nas representações, o projeto de retorno (ou de
traslado, dependendo da perspectiva do progenitor enfocado) ao Brasil das
famílias não tenha destaque.
Já em relação ao sexo dos participantes, nesse universo de famílias
que desejam transmitir o PLH predomina, entre os brasileiros, o sexo feminino
(73%). Entre as professoras, as três são mulheres. Tais informações apontam,
no grupo dos brasileiros, para maior envolvimento das mulheres na
transmissão do PLH, em comparação aos homens: há mais mães que pais
brasileiros participando na APBC e no projeto de ensinar e transmitir o PLH a
158

seus filhos. Isso reforça a percepção de que, no que diz respeito às questões
de gênero no universo do PLH, há um protagonismo feminino (MORONI, 2015).
Em relação à idade desses adultos da APBC, incluindo os
respondentes do questionário, o outro progenitor sobre o qual forneceram
informação e as professoras, a média está em 37,4 anos, sendo 39,8 para os
homens e 35,4 para as mulheres.

Participantes: média de idade em Participantes: média de idade em


anos por grupo anos por sexo
Progenitores (N = 28) 38 Mulheres (N = 17) 35,3
Professoras (N = 3) 32 Homens (N = 14) 39,9
Total (N = 31) 37,4 Total (N = 18) 37,4

4.2 Escolaridade

O questionário revelou um alto grau de escolaridade na APBC: dos


28 progenitores, 18 (64%) têm pós-graduação, seja uma especialização lato-
sensu, mestrado, doutorado ou pós-doutorado. Dos 10 que não têm pós-
graduação (36%), apenas 2 (7%) não têm curso superior completo. Ou seja:
93% da amostra têm ao menos curso superior completo – o que pode ser um
indício de que esse grupo valoriza a educação formal, está bem inserido no
sistema educativo e provém dos estratos socioeconômicos mais altos da
sociedade brasileira. De fato, as entrevistas revelaram que muitos dos
progenitores brasileiros vieram à Catalunha para fazer uma pós-graduação, e
não exatamente com um projeto migratório que implicasse encontrar emprego
e melhorar as condições de vida que tinham em seu país de origem.
Se esse perfil de escolaridade for comparado com a população de
25 a 64 anos tanto na Espanha como no Brasil, onde, respectivamente, apenas
34,7,% e 13,7% concluem o ensino superior (ESPANHA, 2016), pode-se dizer
que os progenitores da APBC integram uma elite acadêmica. Ao alto grau de
escolaridade dos progenitores, deve-se acrescentar o fato de que as três
professoras entrevistadas também têm pós-graduação.
Esses fatores sugerem que, por terem alta escolaridade, esses
progenitores estariam dispostos a investir na educação formal dos filhos,
inclusive no aprendizado da LH. Nesse sentido, estariam dispostos a fazer o
159

investimento econômico e de tempo (as aulas ocorrem nas manhãs de sábado,


parte do tempo que a família teria para o lazer) necessários para que as
crianças frequentem a APBC – embora esse horário possa resultar em conflitos
internos nas prioridades da família, o que, a médio prazo, as leva a deixar de
frequentar a associação, conforme comento no item 4.1.4.

4.3 Situação dos casais, número de filhos por casal e idade


das crianças

O questionário também procurava identificar a situação do casal, se


viviam juntos ou separados. Considerei esta pergunta mais significativa que
indagar sobre o estado civil, pois ela revela quem de fato mora e convive com
as crianças. Dos 14 casais dos questionários, 10 (71%) moravam juntos e 4
(29%) estavam separados. Destes, três tinham a guarda dos filhos
compartilhada entre o pai e a mãe (as crianças passavam metade do tempo
com cada um) e uma das crianças morava com a mãe.
Os modelos de família da APBC também podem ser vistos como
heterogêneos e a guarda compartilhada, como um fator adicional de mobilidade
na vida das crianças, que transitam entre dois lares. Curiosamente, viver entre
dois lares não significa que os pais tenham decidido, ao separar-se,
desvincular-se da cultura e língua do outro progenitor: as entrevistas individuais
revelaram que, em dois dos quatro casos de casais separados, os progenitores
catalães declararam falar com os filhos principalmente em português e manter
grande interesse pelas práticas culturais do Brasil. Dados como esses pedem,
no mínimo, que sejamos um pouco mais curiosos em relação aos aspectos
afetivos e emocionais das LHs: são línguas por meio das quais se criam
vínculos e se constroem relações afetivas também entre os não brasileiros e
seus filhos. Há algo na história pessoal desses brasiliófilos que faz com que
desejem manter essa língua (e, talvez, um repertório emocional que é parte
dela).
Já em relação ao número de filhos por casal, havia 8 casais com 1
filho e 6 casais com 2 filhos, num total de 20 crianças. Quinze eram meninas e
5, meninos. Dezoito frequentaram as aulas de Língua e Cultura do Brasil da
160

APBC em algum período. A idade das crianças se distribuía da seguinte


maneira:

Idade das crianças na aplicação do questionário


6

5
Número de crianças
4

0
0 ano 1 ano 2 anos 3 anos 4 anos 5 anos 6 anos 7 anos 8 anos
Idade das crianças 1 0 1 5 3 3 1 3 3

Figura 14 – Idade das crianças na aplicação do questionário

A média de idade do grupo era de 4,8 anos. Eram, portanto, crianças


pequenas, tendo os maiores apenas oito anos. Ou seja, mesmo as crianças
mais velhas ainda não haviam concluído seu processo de letramento na língua
de escolarização, que em nenhum caso era o português no momento da
geração de dados. Ser conscientes de que as crianças da amostra ainda não
dominavam completamente a forma escrita de sua língua de escolarização, na
qual se supõe que suas habilidades serão mais desenvolvidas que nas demais
línguas de seu repertório, ajudará a interpretar as expectativas de uso das
competências escritas em português ao analisar as representações.
Por outro lado, há uma grande diferença na etapa de
desenvolvimento da linguagem nas idades desse grupo. Aos três anos, é
possível que a criança ainda esteja em fase de aquisição de língua e não fale
com desenvoltura. Já aos oito anos, o normal é que se expresse bem
oralmente, ao menos em alguma das línguas de seu repertório. Isso também
deve ser considerado na análise das representações.
161

4.4 Desligamento da APBC

Para participar na pesquisa, no caso dos progenitores, um dos


critérios de inclusão era que a família fosse sócia da APBC. Das 14 famílias, 11
tinham os filhos matriculados nas aulas da APBC no momento de aplicação do
questionário e, no caso das outras 3, as crianças haviam frequentado as aulas
da APBC em algum momento.
A partir da observação participante, pude constatar que, em
dezembro de 2016, algumas dessas famílias haviam se desligado da
associação ou desligado seus filhos do curso de português, conforme indicado
a seguir:

Participação na APBC na data de Participação na APBC em


aplicação do questionário dezembro de 2016
Famílias sócias 14 (100%) Famílias sócias 9 (64%)
Famílias com crianças 11 (79%) Famílias com crianças 8 (57%)
matriculadas nas aulas matriculadas nas aulas

Nesse sentido, conhecer as representações das famílias que eram


sócias, porém optaram por seus filhos não frequentarem as aulas, pode ser
revelador do que motiva a família a continuar na associação – lembrando que o
fato de as crianças não frequentarem mais as aulas de português não significa
que o projeto de transmitir o PLH tenha sido abandonado. Esse dado também
demonstra que as políticas linguísticas familiares são dinâmicas, sendo
reavaliadas e ajustadas ao longo do tempo.

4.5 Língua inicial dos progenitores e repertórios


linguísticos das famílias

Com a intenção de começar a traçar um perfil linguístico das


famílias, no questionário perguntou-se sobre a língua inicial41 do respondente.

41
A pergunta incluída no questionário foi: “Qual (Quais) sua(s) língua(s) materna(s)?”. No
questionário, optei por utilizar o termo “língua materna”, e não “língua inicial”, por acreditar ser
aquele com o qual os participantes estariam mais familiarizados. O correto entendimento da
pergunta (como a língua inicial do participante, e não como a língua falada pela mãe do
mesmo, por exemplo) foi confirmado ao longo da entrevista.
162

A seguir, o gráfico ilustra como o espaço ocupado pelo PLH – tanto no contexto
familiar como na APBC – não é exclusivo, mas compartilhado com outros
idiomas.

Língua inicial dos progenitores da APBC


7%
4%
3%
Português (14)
Espanhol (7)
11%
Catalão e espanhol (3)
50%
Catalão (1)
Português e espanhol (1)

25% Outros idiomas (2)

42
Figura 15 – Língua inicial dos progenitores da APBC participantes da pesquisa

As entrevistas revelaram que, entre os progenitores nascidos e


criados na Catalunha, a maioria tinha o pai ou a mãe (ou seja, um dos avós das
crianças aprendizes de PLH participantes da pesquisa) emigrados de outra
região da Espanha. Ou seja, não se identificavam culturalmente como catalães,
não tinham como idioma inicial o catalão e correspondiam à população
recebida pela Catalunha na segunda onda migratória do século XX
(DOMINGO, 2014). Isso explicaria, por exemplo, porque somente um dos
progenitores não brasileiros tinha o catalão como a única língua inicial e
apenas outros três tinham tanto o espanhol como o catalão como línguas
iniciais.
Algumas perguntas do questionário, principalmente sobre as línguas
usadas pelo entrevistado, pela criança e pelo outro progenitor, as quais pediam
uma resposta concisa e objetiva, me levaram a elaborar a Tabela 7. Trata-se
de uma tentativa de organizar os dados dos questionários, complementados e
contrastados com dados das entrevistas individuais e da observação
participante, de uma maneira visual, que permita identificar a diversidade de
práticas linguísticas às quais essas crianças estão expostas. Concentro a

42
Os dados sobre a língua inicial do progenitor que não respondeu ao questionário foram
confirmados durante a entrevista ou posteriormente, já que não havia uma pergunta específica
sobre a língua inicial deste outro progenitor no questionário.
163

atenção nas crianças, neste momento, porque é a elas que se deseja ensinar o
PLH e são elas, bi ou plurilíngues desde o nascimento, as aprendizes do PLH a
que esta pesquisa se refere, ainda que boa parte dos dados de pesquisa
tenham sido gerados por participantes adultos.
164

Tabela 7 – Interações linguísticas das crianças da APBC

A B C D E F G H I J K L M

Por que conhece


escolarização da
entrevistado fala

entrevistado fala
Língua inicial do

Língua inicial do
outro progenitor

outro progenitor
outro progenitor
filho fala com o

filho fala com o

fala com o filho

Outras línguas

conhece (além

outras línguas
Língua que os

mencionadas)
entrevistado44

que a criança
Língua que o

Língua que o

Língua que o

Língua que o

Língua que o
irmãos usam
entrevistado
com o outro

com o filho
progenitor
Crianças43

Língua de
entre si

criança
Idade

das
C1 3 P E P PTN NA C+E C C+E C+E NA NA
C2* 3 P E P P NA C+E C+E C+E C I Vê desenhos em I
C3* 0,2 P E P P NA NA C+E C+E NA I Vê desenhos em I
C4 4 C P P P NA P P P C+E NA NA
C5 3 P E+P E+P E+P NA E E E C NA NA
Línguas da cidade e das
C6 6 E+P IT + P P P NA F IT IT IT C+E relações sociais, também
usadas na escola
E - meia
C7 7 P E P P irmã E B+E E C NA NA
paterna
C8♦ 7 P E+F P P E+F+P F E+F F C+E+I NA NA

C9 3 P E+F E+F+P E+F+P E+F+P E+F+P E+F F C+E+I NA NA
C10 †
8 C+E P P P P P P P C I Estuda na escola
C11 †
4 C+E P P P P P P P C I Estuda na escola
C12 3 P E E+P PTN NA E E E C NA NA
C+E+
C13 8 P E+P NA C+E C+E C+E C I Estuda na escola
E P
§
C14 7 P E P P E+P E E E C I Estuda na escola
§
C15 4 P E P P E+P E E E C I Estuda na escola
C16 2 P P P C+P NA C+P P P C+I NA NA

C17 5 E E E E E P P P C NA NA

C18 5 E E E E E P P P C NA NA
∆ Estuda na escola, estudou em
C19 8 E E+P E E E+P P P P C I
escola bilíngue em I
Estuda na escola, estudou em
C20∆ 6 E E+P E+P E+P E+P P P P C I
escola bilíngue em I
43
Os símbolos sobrescritos iguais indicam irmãos. As cores da coluna A indicam o sexo da criança: vermelho para meninas e azul para meninos.
44
B = Basco; C = Catalão; E = Espanhol; F = Francês, I = Inglês; IT = Italiano; NA = Não se aplica; P = Português; PTN = Portunhol
165

Organizada por cores, a Tabela 7 dá uma ideia bastante real do repertório


linguístico das crianças – lembrando, evidentemente, que é preciso situar essas
informações num continuum linguístico que contemple graus diferentes de
competência: pode ser que a criança ou o cônjuge não brasileiro fale português (ou
espanhol, ou catalão, ou mesmo outras línguas), mas, como é esse português? E
como são seus conhecimentos das outras línguas de seu repertório? Pode ser que a
criança responda majoritariamente em português ao entrevistado, como ele informa
no questionário, mas, e quando há outras pessoas que não falam português
participando na conversa?
Mesmo quando os dados informam que a criança fala português com
ambos os progenitores, deve-se levar em consideração que essa criança passa a
maior parte de seu dia na escola (o horário escolar costuma ser das 9h às 16h ou
17h), onde não se fala português. Portanto, é bastante provável que a língua que a
criança mais use em suas atividades cotidianas e sociais não seja o português.
Dessa forma, a tabela deve ser tomada como um instrumento
parcialmente válido: ela dá a conhecer as línguas às quais as crianças estão
expostas, mas não a qualidade ou quantidade de interações nessas línguas,
incluindo o português.
A tabela permite, por exemplo, ao comparar as colunas C (língua inicial
do entrevistado) e E (língua que o entrevistado fala com o filho), identificar alguns
casos claros de deslocamento linguístico (language shift), em que o progenitor utiliza
um idioma diferente de seu idioma inicial com os filhos (C4, C10 e C11); detectar os
vários casos em que uma segunda língua foi acrescentada à língua inicial dos
progenitores em suas interações com os filhos, ao comparar as colunas C e E (C5,
C9, C12, C13, C20) e as colunas J (língua inicial do outro progenitor) e I (língua que
o outro progenitor fala com o filho) (C7, C8, C9); ou contrastar o uso das línguas por
irmãos e ver que nem sempre esse uso coincidia (casos de C8 x C9; C19 x C20).
Comparando os dados dos questionários com as informações das entrevistas,
percebe-se que nos casos em que um progenitor não usa sua língua inicial com o
outro progenitor (seja porque há uma preferência explícita por outra língua, seja
porque a língua inicial se alterna com outra) houve um processo de alteração nas
línguas de interação do casal – algo já relatado por Boix (2009a) no relacionamento
de casais mistos castelhano-catalães.
166

Na tabela, por meio do uso de cores, é possível visualizar e sistematizar,


por um lado, a diversidade de línguas nos repertórios desse grupo de crianças
falantes de PLH e, por outro, as heterogeneidades de seus repertórios e práticas
linguísticas. Conforme discutido por Moroni e Gomes (2015), embora essas crianças
estejam em contato com o português desde o nascimento, a quantidade de input
que recebem na língua não é homogênea, pois há outras línguas no repertório da
família e na sociedade em que estão inseridas.
Neste ponto, insisto em enfatizar que o uso do português por estas
crianças de até oito anos falantes de PLH é bastante diferente daquele das crianças
da mesma idade monolíngues em português residentes no Brasil, para as quais, em
cada uma das situações listadas na Tabela 7, as interações ocorrem em português.
Para as crianças da APBC, como se vê, o português é apenas uma das línguas pela
qual elas podem optar no momento da interação linguística – e não necessariamente
a língua em que elas se sentem mais à vontade ou são mais competentes. Além
disso, para elas, a realidade é que mesmo os falantes de português de seu núcleo
familiar (o pai, a mãe, os irmãos) usam também outras línguas, além do português,
em seu repertório – essa informação pode ser verificada comparando as colunas C
(língua inicial do entrevistado), D (língua que o entrevistado fala com o outro
progenitor), E (língua que o entrevistado fala com o filho) para o progenitor que
respondeu ao questionário, e colunas D (língua que o entrevistado fala com o outro
progenitor), I (língua que o outro progenitor fala com o filho), J (língua inicial do outro
progenitor) para o outro progenitor. São poucos os casos em que a língua inicial do
progenitor, a de interação com o outro progenitor e a usada com a criança
coincidem.
Essa multiplicidade de conhecimentos e usos linguísticos não só da
criança, mas também do ambiente familiar, é um fator que deve ser levado em conta
no momento de alinhar as expectativas sobre os usos e a produção dessas crianças
em português: esperar o uso exclusivo e preferencial do português nesse contexto
talvez não faça sentido. De fato, as professoras relataram nas entrevistas que,
mesmo no contexto de sala de aula, quando o português é enfatizado e privilegiado
ao máximo, as crianças preferiam por vezes interagir em outras línguas,
notadamente o castelhano, mas também em catalão, alemão ou italiano, havendo,
nos dois últimos casos, uma correlação entre outra LH familiar e também língua de
escolarização, já que tais crianças estudavam em escola alemã e italiana,
167

respectivamente. As professoras relataram ainda que, assim que saíam da classe,


as crianças podiam deixar de interagir em português e optar por outra língua,
inclusive em casos em que o pai ou a mãe expressamente convidava o filho/a a
continuar falando em português.
Tudo isso são indícios de que o espaço ocupado pelo PLH no repertório
dessas crianças é efetivamente compartilhado com outras línguas e que, embora
elas sejam capazes de utilizar o português em certos contextos e interagir em
ambientes em que ele é usado, é provável que o português não seja a língua que
elas se sintam mais confiantes ou desejosas de usar em suas interações, mesmo
quando a possibilidade de fazê-lo é real (interagir com outra criança ou com o
progenitor, que também sabe português).
Nesse sentido, o cenário descrito se aproxima dos paradigmas da
cidadania global/europeia plurilíngue mencionados por Jaffe (2012), nos quais os
modelos de identificação e prática comunicativa estão orientados aos processos e
enfatizam os repertórios linguísticos, mais que as línguas como constructos
estáticos, distanciando-se, assim, do cidadão monolíngue de uma única nação – por
exemplo, o brasileiro monolíngue residente no Brasil. Essa aproximação dos falantes
de PLH (e de LH em geral) dos ideais de plurilinguismo expressos no Quadro
Comum Europeu (COUNCIL OF EUROPE, 2001), fundamentados em
conhecimento, vivências interculturais e competências linguísticas em graus diversos
nos espaços de interação – como o que se observa no caso da APBC – parece ser
um referente muito mais acertado para entender como as práticas linguísticas e o
exercício de sua cidadania linguística podem ser realizados que aquelas que
apontam para os referentes dos falantes brasileiros residentes no Brasil, com
práticas linguísticas majoritariamente monolíngues em português. Algumas
representações dos entrevistados apontam para crenças e ideologias em torno a
este segundo modelo de falante (brasileiro, monolíngue) e serão melhor exploradas
no Capítulo 5.
Em relação ao catalão, embora ele pareça ter uma presença menor nas
práticas linguísticas das famílias da APBC, seria precipitado declarar que sua
importância é menor nas práticas linguísticas das crianças. Conforme os dados da
Tabela 7 mostram, esta era a língua de escolarização da maioria delas. Isso não
significa que as práticas linguísticas em ambiente escolar sejam exclusivamente em
catalão (as entrevistas revelaram que a “língua do pátio” ou de interação entre as
168

crianças na escola pode ser predominantemente o castelhano). Mas significa que há


uma exposição constante ao catalão, bem como que existem relações sociais que
se formam nessa língua, prestigiada ainda por ser aquela na qual se recebe a
educação formal.
Considerando-se que o catalão é uma língua com grande poder de
atração nesse contexto (VILA I MORENO e SOROLLA VIDAL, 2013) e que, na pré-
adolescência, os círculos sociais podem ter mais influência que a língua do entorno
na definição da língua que o falante adotará como sua língua principal (BOIX-
FUSTER, 2009a; BALLARÍN GAROÑA, 2011), não se deve descartar a
possibilidade de que esses falantes de PLH optem, em algum momento de suas
vidas, pelo catalão como seu principal idioma de identificação.
Por último, devemos considerar a mobilidade geográfica que
acompanhava a história de vida dessas crianças como uma das nuances que
contribui para a fluidez de suas práticas linguísticas. Desse grupo, quatro crianças
moraram parte de sua vida em outro país que não a Espanha (três no Brasil, outra
em outro país europeu) e uma quinta, nascida em Barcelona, se mudou para o Brasil
durante o período de geração de dados da pesquisa. Ou seja: 25% dessas crianças
de até 8 anos passaram pela experiência migratória. A fluidez dos repertórios
linguísticos em casa e as experiências migratórias em suas vidas são como o ovo e
a galinha: qual veio primeiro? E, tanto se elas são ovo ou galinha, o que virá a
seguir?
169

CAPÍTULO 5 – ANÁLISE QUALITATIVA: AS REPRESENTAÇÕES


DE PAIS E PROFESSORAS DA APBC SOBRE PLH

O capítulo anterior apresentou os dados gerados a partir de metodologias


quantitativas, com algumas considerações que julgo relevantes sobre os repertórios
linguísticos das famílias envolvidas. Com isso, acredito haver uma base melhor para
que o entendimento das representações da APBC sobre PLH possam ser
aprofundadas no presente capítulo.
Para a análise das representações, a qual é feita principalmente a partir
dos dados gerados nas entrevistas individuais e grupo focal, utilizei uma
metodologia qualitativa. Como exposto inicialmente, o critério de inclusão dos
participantes adultos nas entrevistas e grupo focal era que fossem pai ou mãe de
uma criança sócia da APBC ou professores da instituição. Não se buscou selecionar
um grupo homogêneo de participantes para a pesquisa, por exemplo, levando em
consideração o sexo ou a língua inicial, de modo que houve a participação de dois
entrevistados catalães (um homem e uma mulher). Nas entrevistas individuais, além
do catalão, houve também um homem brasileiro. No grupo focal, aos 6 participantes
que haviam sido entrevistados se somaram mais 3: um homem e uma mulher, não
brasileiros, e um segundo homem brasileiro.
Neste capítulo, os dados foram organizados no cruzamento dos
componentes de dois eixos: “Políticas linguísticas” x “Português como língua de
herança”. O eixo das PLs está composto pelos três componentes das PLs de uma
comunidade de fala identificados por Spolsky (2004; 2012): ideologias, práticas e
intervenção. O segundo eixo, do PLH, está composto por aqueles que considero
serem os três pilares sobre os quais este campo de estudo se estrutura, conforme
abordado nos pressupostos teóricos: identificação, proficiência e afetividade.
Assim, a análise das representações se estrutura no cruzamento das
categorias de cada eixo, por exemplo, i-a, i-b, i-c; ii-a, ii-b, etc., conforme ilustrado na
Tabela 8.
170

Português como língua de herança (PLH)


a) Identificação b) Proficiência c) Afetividade
linguística
i) Ideologias i-a) Ideologias x i-b) Ideologias x i-c) Ideologias x
identificação proficiência linguística afetividade
Políticas ii) Práticas ii-a) Práticas ii-b) Práticas ii-c) Práticas
linguísticas linguísticas linguísticas x linguísticas x linguísticas x
(PLs) identificação proficiência linguística afetividade
iii) Intervenção iii-a) Intervenção iii-b) Intervenção x iii-c) Intervenção x
x identificação proficiência linguística afetividade
Tabela 8 – Esquema da organização temática das representações da APBC
sobre políticas linguísticas para português como língua de herança

Em relação ao eixo das PLs, optei por apresentar as categorias nessa


ordem – i) ideologias, ii) práticas linguísticas; iii) intervenções – por acreditar que
uma primeira análise das ideologias permite um olhar mais crítico e aguçado para as
representações sobre práticas linguísticas (a categoria ii). Nos pontos i) e ii),
predominam representações sobre o ambiente familiar. Na categoria iii),
intervenções, para efeitos da análise me concentrarei nas representações que dizem
respeito à atuação e espaços da APBC, pois considero que, entre as PLs dessas
famílias, o fato de frequentar a associação consiste numa intervenção explícita em
seus usos e práticas relacionados ao PLH. Na categoria iii) também ganham
destaque as representações das professoras.

i-a) Representações de ideologias x identificação

A ideia de identificação relaciona-se, por um lado, com a discussão em


torno de identidade: aquilo com o que o sujeito se identifica em oposição àquilo que
é diferente dele (HALL, 2011; SILVA, 2012). Nas discussões de PLH, ela também é
mencionada como “pertencimento”: o sentimento de ser parte de um grupo ou uma
representação de grupo. Embora em muitos momentos da análise “identificação” e
“pertencimento” sejam termos intercambiáveis, em outros a “identificação” pode se
referir a um espaço: o que é, o que acontece nele, razão pela qual me inclino a
utilizar preferivelmente este termo, mais apropriado no segundo contexto.
Ao longo das entrevistas individuais, duas ideias se destacaram em
relação aos motivos pelos quais essas famílias desejam transmitir o PLH a suas
crianças. A primeira é porque os entrevistados, inclusive os catalães, como Laia, no
excerto 1, identificam os filhos como (também) brasileiros:
171

EXCERTO 1 – Laia, mãe de Tiago, 4 anos


PESQUISADORA: E por que que você resolveu que você teria que
continuar com o português com ele?
LAIA: Porque senão ele teria perdido essa língua. Eu achei uma
pena. [...] Eu cresci com duas línguas. Eu acho muito importante isso.
[...] Para mim, que uma criança possa falar mais uma língua é uma
riqueza. E vai ser uma porta aberta. Ele é brasileiro. Ele tem
nacionalidade brasileira. Quem sabe se um dia ele vai querer ir morar
no Brasil, trabalhar no Brasil. Então ele já tem uma base de
português, vai ser mais fácil pra ele.

A segunda ideia está relacionada ao fato de a criança ter o pai ou mãe


brasileiro, sendo a língua um meio de o filho conhecer a cultura de origem do
progenitor, com a qual ele, o progenitor, se identifica. O fato de que mães brasileiras
relacionem sua identidade nacional ao uso do português, o que torna relevante a
transmissão desta língua aos filhos, já foi relatado por Souza (2015) num estudo
com mães brasileiras em Londres, Inglaterra. Por extensão, e no caso do presente
estudo, saber a língua daria às crianças a possibilidade de se identificar com aquilo
que o pai e a mãe são, conferiria acesso a práticas linguísticas e culturais que se
realizam no Brasil, em português, o que melhoraria o diálogo intergeracional, como
exemplifica Luísa:

EXCERTO 2 – Luísa, mãe de Olívia, 3 anos


LUÍSA: E também com relação à cultura, aonde eu nasci, eu sou a
mãe dela, então eu gostaria que ela conhecesse um pouco dessa
cultura, [...] eu acho que o português abre as portas dela pra isso.
Para ir ao Brasil e poder se comunicar com as pessoas, de saber
como é o meu modo de ser e de pensar também, entrar no meu
universo de mãe, acho que é importante.

É interessante notar que não são apenas os progenitores brasileiros que


podem considerar importante que as crianças conheçam a parcela brasileira de sua
história pessoal. Para Jordi, por exemplo, pai catalão, saber português equivale a
conhecer as raízes, a cultura de origem da mãe de seus filhos e compreender o
percurso migratório familiar:

EXCERTO 3 – Jordi, pai de Daniel, 8 anos, e Pedro, 4 anos


PESQUISADORA: E por que seus filhos têm que saber falar
português, na sua opinião?
JORDI: Raízes. Se não conhece de onde vem, nunca vai conseguir ir
pra lugar nenhum. Tem que saber de onde vem, você é fruto não só
dos seus pais. É fruto de gerações, de todas as famílias. Tem que
172

compreender a cultura pra entender as decisões que tomou a sua


família pra você chegar onde chegou.

Assim, conhecer e poder usar a língua seria importante, no entendimento


dos entrevistados, não apenas porque isso garante acesso a um recurso
comunicativo, mas também, e principalmente, porque é algo que permite às crianças
se identificarem com aspectos de brasilidade de sua história pessoal e familiar. Isso
porque, como diria Mendes (2015, p. 87), “Mais do que um instrumento, a língua é
um símbolo, um modo de identificação”.
Representações como as dos excertos 1 e 3, de que conhecer a LH
permite se identificar com o país de origem dos pais e não a falar seria “uma pena”,
foram reportadas anteriormente na pesquisa de Curdt-Cristiansen (2009) com
progenitores chineses cujos filhos também frequentavam uma escola de LH no
Quebec, no Canadá, de forma bastante semelhante:

Por que as crianças têm que aprender chinês? Parece algo tão natural, tipo,
se as crianças são chinesas, se elas não aprenderem um pouco de chinês,
será uma pena tão grande! – sra. Lin [...]
Só depois que você encontrar suas raízes você poderá se estabelecer num
lugar, se identificar com a sua própria cultura [chinesa]. – sra. Zhou
(CURDT-CHRISTIANSEN, 2009, p. 365-366)

Tal paralelo sugere que essas representações não seriam exclusivas aos
participantes deste estudo, mas podem ser comuns aos pais e mães engajados
numa PL familiar que promova a transmissão de uma LH.
Cabe lembrar, no entanto, que embora os falantes de herança possam se
identificar como brasileiros, apesar de morarem em Barcelona, ou como chineses,
apesar de morarem em Montreal, tal identificação se dará por processos de
construção de uma identidade plurilíngue. Por sua vez, a identidade plurilíngue traz
suas especificidades, já que difere do paradigma do cidadão nacional monolíngue
(JAFFE, 2012).
No caso da Catalunha, a constatação de que os filhos se identificam com
aspectos da brasilidade, algo bastante fomentado e desejado por parte dos
entrevistados – os pais promotores das PLs familiares para transmissão do PLH –,
não significa que esta seja a única via para que as crianças construam suas
identidades. Parece não ser preciso renunciar à identificação com outros grupos e
referentes culturais que são parte de seu universo para acomodar a identidade de
173

herança trazida pelo PLH – aliás, o próprio fato de se falar uma LH já implica
entender códigos culturais de mais de uma cultura (VAN DEUSEN-SCHOLL, 2003):
a de herança, que passou por deslocamentos geográficos, coexiste num mesmo
espaço que outra(s) cultura(s) majoritária(s), e, por conta disso, os falantes de LH se
encaixam no que seriam os sujeitos híbridos e pós-modernos descritos por autores
como Burke (2003), García Canclini (2013) ou Hall (2011).
Essa conciliação de identidades pelos falantes de herança pode ser
observada neste episódio relatado por Camila: nele, a filha utiliza o castelhano para
interagir com outras crianças, porém marca seu pertencimento e identificação com a
família ao se apresentar como falante das línguas do pai e da mãe:

EXCERTO 4 – Camila, mãe de Dora, 7 anos, e Luís, 3 anos


A Dora, quando ela ia no parque, que ela tava começando a falar, ela
se aproximava de uma criança e falava assim: “Hola. Mi madre es
brasileña y my padre es francés.” [“Oi. Minha mãe é brasileira e meu
pai é francês”] [risos] “Y yo hablo portugués. Puedo hablar contigo
también” [“E eu falo português. Eu posso falar com você também”] e
aí ela começava a relação.

Note-se que, nessa representação, para Dora, o português coexiste com


o francês e com o castelhano e com seus “modos de identificação” – sendo que a
identificação com o grupo de falantes de português não se dá a partir de um
referente do cidadão nacional monolíngue, ou seja, do brasileiro monolíngue
residente no Brasil, espaço em que o português é língua majoritária.
Assim, embora em alguns momentos os participantes declarem de forma
taxativa que os filhos são brasileiros, ou seja, que os identificam como tal, sendo que
nos quatro excertos anteriores essa identificação aparece vinculada à questão
linguística, em outros os discursos dessas famílias revelam claramente que a
brasilidade entra como uma parte da identidade que essas crianças poderão
construir. Por exemplo:

EXCERTO 5 – Grupo focal


PARTICIPANTE 1: Mas, sim, para se sentirem brasileiras. O pai delas
sempre disse a vida toda: “vocês são espanholas e são brasileiras... e
catalãs”, não? Dá para ser tudo de uma vez só.
174

Esse entendimento de que a identificação com a brasilidade é parte das


vivências do falante de PLH – e não o todo – também é relatado por Souza (2010b)
e Piipo (2016). Em ambos os estudos, à diferença do presente, destaca-se o fato de
que os dados foram gerados pelos falantes de herança – e não pelos progenitores –,
o que sugere ser bastante provável que haja entre as crianças da APBC aquelas
que se sentem como os progenitores o percebem.
Souza (2010b) ilustra, com o estudo de caso de três crianças falantes de
PLH em Londres, como a identidade inglesa e a brasileira são negociadas através
dos usos linguísticos de ambas as línguas, inglês e português, na sala de aula de
PLH – um relato que complementa o entendimento de como os falantes de herança
podem transitar entre seus diferentes repertórios linguísticos e culturais, seus
diferentes “modos de identificação” (MENDES, 2015) através de suas escolhas
linguísticas. De modo análogo, Piipo (2016), em seu estudo sobre falantes de
português e espanhol como LH na Finlândia, com origens de diferentes países [E =
países de língua espanhola/P = países de língua portuguesa], constata que

75% dos alunos consideram-se como finlandeses e pouco mais da metade,


53%, consideram-se como E/P. A maioria, 83%, considera-se como
biculturais e 85% considera-se como bilíngue. Estas percentagens somadas
ultrapassam os 100%, o que reflete muito bem a identidade pluricultural dos
indivíduos em questão. Sabemos que muitos deles se sentem “100%
finlandeses” mas que, dependendo do contexto, também podem sentir
irmandade e pertença a outros grupos étnicos e linguísticos. (PIIPO, 2016,
p. 102-103)

Assim, em relação às representações de como os pais identificam os


filhos, não é de surpreender que, entre um grupo comprometido com a transmissão
do PLH, a identificação dos filhos com a brasilidade seja vista de modo positivo –
cabendo ressaltar que, embora nesses dados não apareçam representações
“negativas” de identificação com a brasilidade, isso não significa que não existam:
apenas não existem entre os participantes da pesquisa.
Nas representações analisadas, a brasilidade pode aparecer como um
aspecto isolado/destacado (o filho é apenas ou destacadamente brasileiro) ou
conciliado com outras identidades (ser também catalão, espanhol, “bilíngue”,
multicultural, cidadão do mundo etc.), o que remete aos paradigmas do cidadão
nacional monolíngue x cidadão global plurilíngue. Essa questão, como se verá mais
adiante, está relacionada com a forma como os progenitores interpretam a
proficiência linguística dos filhos e as expectativas que têm em relação aos usos do
175

PLH, já que não se pode dissociar a língua e seus usos de um modo de


identificação.

i-b) Representações de ideologias x proficiência linguística

Nesta seção, as representações dos entrevistados serão focalizadas no


sentido de detectar as ideologias existentes que podem ter um impacto no
desenvolvimento da proficiência linguística das crianças. Sobre esse aspecto, talvez
se note mais a influência de algumas ideologias vigentes na Catalunha, a sociedade
de acolhida, e tudo o que gira em torno do bilinguismo catalão-castelhano. O fato de
a sociedade de acolhida ser bilíngue é uma peculiaridade do cenário em que este
estudo se realiza e merece destaque, pois fornece um contraponto relevante aos
paradigmas do cidadão nacional monolíngue (JAFFE, 2012), os quais podem estar
vigentes nas sociedades de acolhida que têm apenas um idioma como língua oficial.
Por acreditar que esses fatores são variáveis importantes em relação a quanto um
cenário pode ser favorável ou não à transmissão do PLH e à maneira como os
cônjuges não brasileiros podem se posicionar, será dada especial atenção a eles
nesta seção.

O multilinguismo como algo positivo

Ao longo do estudo, os progenitores foram unânimes em considerar o


multilinguismo, o fato de que as crianças estejam expostas e tenham conhecimentos
individuais em várias línguas, como algo positivo, “uma riqueza”, algo “ótimo”,
“fantástico”, “excelente”. Tal ideia, mencionada no excerto 1 e, no excerto 6, a
seguir, se relaciona também a uma percepção positiva do catalão como parte desse
repertório multilíngue:

EXCERTO 6 – Rosana, mãe de Flora, 3 anos, e Jana, 3 meses


PESQUISADORA: E como é que você vê, pra você, Rosana, essa
situação de tantas línguas que tem aqui na Catalunha? [...]
ROSANA: Eu acho ótimo. [...] Eu agora falo quatro, mas eu demorei
pra aprender quatro. Imagina ela, que já tá nascendo com três. Eu
acho que é o melhor presente que os pais podem dar pro filho, é
idiomas, hoje em dia. [...] Eu acho que quanto mais, melhor. Eu não
queria que a minha filha não falasse catalão, por exemplo [...] Eu
acho que não tira espaço.
176

Neste ponto, cabe lembrar que nem sempre uma língua de herança ou
língua minoritária é vista como uma vantagem: em alguns países, a existência de
uma dessas línguas pode ser considerada um “problema” quando a criança entra no
sistema escolar, pois ela não teria o mesmo grau de proficiência na língua de
escolarização que as crianças monolíngues. “Conhecer uma língua minoritária”
equivaleria então a “não saber ou não poder aprender a língua majoritária” – a esse
respeito, ver García (2009) e as menções a programas de educação bilíngue de
bilinguismo subtrativo nos EUA, que focam em que o aluno aprenda a língua
majoritária e deixe de usar a língua minoritária.
É possível que essa não seja a percepção dos progenitores da APBC, em
parte, devido à proximidade dos idiomas locais, o catalão e o castelhano, ao
português, o que propicia certo grau de intercompreensão nas três línguas mesmo
quando não há fluência no idioma-alvo. De fato, todos os entrevistados têm altas
competências em castelhano e algum grau de competência em catalão, um cenário
diferente, por exemplo, do relatado por Mota (2010) sobre mães brasileiras
desejosas de transmitir o PLH a seus filhos na região de Boston (EUA), já que
algumas não falam inglês ou têm competências muito limitadas nessa língua.
O cenário americano mencionado se traduz em relações assimétricas de
poder entre pais e filhos, as quais geram tensão linguística dentro de casa e em
relação aos usos do inglês (MOTA, 2010). Por exemplo, há relatos de situações em
que as mães dependem dos filhos como intérpretes para realizar atividades
cotidianas e declaram não gostar quando os mesmos falam inglês em casa, pois não
conseguem entender o que dizem. Nesse contexto, o fato de os filhos saberem a
língua majoritária, inglês, equivale a um rompimento nas possibilidades de
comunicação intergeracionais familiares e a um rearranjo das responsabilidades que
deveriam ser atribuídas aos adultos (por exemplo, atender o telefone ou explicar ao
médico seu quadro clínico como paciente): “Eu não gosto quando minhas filhas
ficam falando inglês em casa. Eu agora já consigo entender muita coisa. Quando eu
vejo elas falando inglês, eu pergunto se estão falando mal de mim. [...] (Isabel)”
(MOTA, 2010, p. 34).
Assim, talvez se possa associar a percepção positiva dos progenitores da
APBC de que “quanto mais línguas, melhor” ao fato de que eles têm um bom
domínio das outras línguas em uso por suas crianças, sendo que o uso das línguas
177

diferentes do português pelos filhos não implica rompimento na comunicação


intergeracional.
Paralelamente a isso, as representações dos participantes da APBC dão
a entender que parece haver uma tolerância e visibilidade mínimas ao uso de LHs
nos espaços públicos, como o momento de saída da escola ou ao acompanhar os
filhos no parque infantil. Além dos dados das entrevistas, no grupo focal alguns
participantes citaram que na escola dos filhos há outras famílias que mantêm suas
LHs (inglês, italiano, francês, holandês, chinês e sueco entre elas), revelando que o
plurilinguismo e uma atitude positiva para a transmissão intergeracional de línguas
vão além do contexto do PLH ou do bilinguismo catalão-castelhano na Catalunha.
Essas práticas também contribuem para que os participantes construam
representações positivas em relação ao multilinguismo.

“Reforçar a língua débil”: as ideologias linguísticas da sociedade de


acolhida e seu impacto nas PLs familiares

Atribuo essas representações positivas ao plurilinguismo, ao menos em


parte, à influência da sociedade de acolhida desses brasileiros: ora, a Catalunha, por
assumir uma postura de proteção e valorização da língua autóctone, minoritária em
relação ao castelhano, através dos processos de normalização linguística
(MCROBERTS, 2001; MELCHOR e BRANCHADELL, 2002), dissemina a mensagem
de que o bilinguismo é algo positivo e enriquecedor, mais interessante que o
monolinguismo castelhano. O sentimento de pertencimento à Catalunha está
relacionado a conhecer também a língua catalã, e, indiretamente, a posicionar-se
como bilíngue – já que a grande maioria dos catalães fala também castelhano, mas
não necessariamente os espanhóis residentes na Catalunha falam catalão.
As falas a seguir, dos participantes catalães, ajudam a entender como a
sociedade de acolhida – incluindo os cônjuges locais – pode influenciar essa
percepção, e, consequentemente, as motivações para o projeto familiar de transmitir
o PLH:

EXCERTO 7 – Jordi, pai de Daniel, 8 anos, e Pedro, 4 anos


PESQUISADORA: E não te preocupa de repente eles não saberem o
catalão?
178

JORDI: Por quê? Você lembre: eu sou bilíngue. Pra mim não entra na
cabeça que conhecer uma coisa signifique não conhecer outra. Isso é
atitude de monolíngue. Se você já tem conhecimento plurilinguístico
não tem medo a “não vai conhecer”. Evidentemente se você só
conhece uma língua, vai aprofondir [aprofundar] muito mais que outra
[pessoa] que conhece várias. Mas é muito mais conhecer várias que
conhecer uma. E até quantas mais saiba, até mais chances de
aprender mais.

EXCERTO 8 – Jordi, pai de Daniel, 8, e Pedro, 4


Aqui existe um sistema que funciona, que é botar força na língua
débil, neste caso o catalão – tem menos televisão, tem menos rádio,
menos prensa [imprensa]... é a mesma política que fizemos em casa:
português aqui é a língua débil, é a que tem menos prensa, menos...
É a que defendemos.

Ao comparar as representações dos participantes catalães, como Laia, no


excerto 1, e Jordi, nos excertos 7-8, com as dos brasileiros, como a de Rosana, no
excertos 6, pode-se observar diferentes graus de consciência linguística. Se Rosana
acha que quantos mais idiomas, melhor, e que uma língua “não tira espaço” de
outra, Jordi é consciente de que saber só uma língua significa um conhecimento
mais profundo nesta língua que um sujeito plurilíngue teria da mesma – um
entendimento, como argumentarei mais adiante, que não necessariamente ocorre
entre os brasileiros, como será aprofundado nas seções ii-b e iii-b.
Jordi revela ainda, na própria escolha dos termos que usa para explicar
seu ponto de vista, que os fundamentos comuns (VAN DIJK, 2003) para o
entendimento das questões relacionadas ao plurilinguismo são outros para os
catalães. As frases “eu sou bilíngue”, “isso é atitude de monolíngue”, “conhecimento
plurilinguístico” e a existência de uma “política [linguística]” que valoriza a “língua
débil” sugerem que conhecimentos sobre bilinguismo, monolinguismo, plurilinguismo
e políticas linguísticas são compartilhados pelo grupo social na sociedade de
acolhida (aqueles que se identificam como catalães) e, a partir disso, se
desenvolvem ideologias relacionadas às línguas.
Na Catalunha, como se explicou no Capítulo 3, as questões linguísticas
sempre fizeram parte das discussões políticas na esfera pública, estando presentes
nos meios de comunicação. Neles, a vertente independentista e nacionalista tem voz
para fundamentar parte de seu discurso na diferenciação da Catalunha em relação
ao estado espanhol, no qual a língua catalã funciona como elemento de identificação
do grupo – e diferenciação em relação àquilo tido como “espanhol”. Sendo assim,
179

não é descabido supor que a sociedade de acolhida, no caso, a catalã, influencia as


crenças dos imigrantes brasileiros em relação ao multilinguismo – e,
consequentemente, influencia a forma como a ideia de que as crianças desenvolvam
competências e tornem-se proficientes numa língua minoritária como o PLH é
recebida. Este seria um argumento a mais para que se dê mais espaço ao papel dos
cônjuges não-brasileiros ou alóctones nos estudos de PLs familiares.
Nesse sentido, a atitude de ambos os progenitores catalães entrevistados
em relação ao português é a de “reforçar a língua débil”, uma ideologia presente nos
próprios discursos das políticas de normalização linguística para o catalão: reforçar e
proteger o uso do catalão em determinados âmbitos, por sua condição de “língua
débil” em relação à hegemonia linguística do castelhano. Os progenitores crescidos
na Catalunha, embora não necessariamente tenham as duas línguas locais,
castelhano e catalão, como línguas iniciais, têm uma série de vivências como
sujeitos bilíngues em espaços de heterogeneidade linguística, tanto em relação às
línguas em uso como às diferenças de proficiência nessas línguas. Tais vivências
linguísticas geralmente são bastante diferentes das dos brasileiros imigrados quando
jovens adultos na década de 2000 e, no caso dos casais mistos deste estudo,
podem influenciar as PLFs para transmissão do PLH no cenário estudado.

O português como diferencial: mercado de trabalho, projeto


migratório e cidadania global

Para os pais e mães entrevistados, o desejo de que seus filhos se tornem


proficientes em português em geral está relacionado ao capital linguístico
(BOURDIEU, 1982) que o filho pode ter no futuro e aparece nas representações a
partir de três crenças: a de que esse idioma seria um diferencial no currículo
profissional; a de que conhecê-lo permitiria desenvolver um projeto migratório para o
Brasil e a de que é um dos elementos que dá acesso à cidadania global.
No caso, o português é uma língua que enriqueceria o perfil profissional
dos filhos quando adultos, num mercado de trabalho que valoriza cada vez mais os
conhecimentos de idiomas, e lhes daria mais opções, uma das quais seria a de
poder morar e trabalhar no Brasil. Esse projeto profissional e migratório, destaco,
caberia ser pensado e executado pelo filho quando adulto, caso o deseje, já que a
mudança para o Brasil não é algo que faça parte do horizonte das famílias no
180

momento da pesquisa45. Isso se relaciona com a interpretação dos dados


quantitativos referentes ao tempo de residência na Catalunha, o qual é de 8,4 anos
para os progenitores brasileiros, o que sugere que as famílias mistas da APBC estão
arraigadas.
Além da colocação de Laia, no excerto 1, exemplifico com as colocações
de Gabriela e Felipe, a seguir:

EXCERTO 9 – Gabriela, mãe de Bárbara, 3 anos


PESQUISADORA: Qual das línguas faladas pela Bárbara é mais
importante pra você?
GABRIELA: O português. Sem dúvida o português. Porque... não sei
o dia de amanhã, mas se algum dia ela vir que aqui ela não tem
possibilidade e ela quiser voltar pro Brasil, ela tem a possibilidade de
lá conseguir um bom trabalho, porque ela já vai ter três idiomas e
uma carga profissional bastante valorada [valorizada].

EXCERTO 10 – Felipe, pai de Carolina, 3 anos


PESQUISADORA: Você pensa nessa possibilidade de ela ter portas
abertas mais pra frente se ela quiser ir pro Brasil, se estabelecer lá,
morar lá, estudar, alguma coisa?
FELIPE: A mãe dela pensa isso, eu não penso muito. O que eu
gostaria, na verdade, é de poder levar ela pra lá e criar ela lá. Mas já
sei, claro, que isso, que no futuro ela tem um passaporte, claro que
não o passaporte físico, mas um passaporte carimbado pra ir pra lá,
porque ela sabe o idioma, que pelo menos pra trabalhar e pra estudar
ela já vai ter, e se ela souber da cultura, vai ser mais fácil pra ela se
adaptar na hora de viver.

O uso que a língua pode ter para os filhos, quando no Brasil, difere num
ponto interessante do relatado em outros estudos em contexto de PLH: os
participantes da APBC não mencionam a preocupação com a inserção dos filhos no
sistema escolar brasileiro no caso do retorno da família ao Brasil. Para quatro das 12
famílias brasileiras emigradas aos EUA estudadas por Mota (2010), bem como para
uma das três famílias brasileiras do estudo de Yonaha e Mukai (2016) no Japão,
existe o projeto da migração de retorno na família. Para elas, conhecer o português
seria um diferencial para a boa inserção dos filhos no sistema escolar brasileiro.
Note-se que, nos dois estudos, realizados a partir de entrevistas com as mães,
subentende-se que o outro progenitor das crianças seja também brasileiro. Esse
dado, se contrastado com o fato de que apenas uma das 14 famílias do presente

45
Com excessão de uma entrevistada, cujo marido também é brasileiro, que já estava organizando o
retorno ao Brasil.
181

estudo tem ambos os progenitores brasileiros, e que essa era a única com um
projeto migratório ao Brasil no horizonte, sugere que as representações sobre a
utilidade do PLH para se “inserir no sistema educativo” brasileiro podem variar e o
fato de estarem presentes ou não na família depende de seu perfil sociodemográfico
(famílias endogâmicas brasileiras x famílias mistas).
De fato, Felipe, o único entrevistado que menciona a possibilidade de que
a filha estude no Brasil, o faz, em parte, a partir da pergunta da pesquisadora,
esclarecendo que não pensa muito nisso e mencionando a possibilidade ao lado de
“trabalhar” – talvez sugerindo que essa decisão caiba à filha quando adulta, assim
como ele decidiu ir à Catalunha por motivos acadêmicos, quando adulto, e não num
contexto de migração familiar. Assim, a ausência de representações sobre a
possibilidade de inserção das crianças através da língua no sistema escolar
brasileiro, como as dos estudos de Mota (2010) e Yonaha e Mukai (2016), seria
outro indício de que as famílias deste estudo encontram-se arraigadas.
Por último, em relação aos diferenciais que o português pode
proporcionar como capital linguístico, entra a cidadania global, já que esse idioma se
insere em um repertório linguístico mais amplo, compartilhado com outros idiomas –
e culturas, e visões de mundo – dos sujeitos plurilíngues. Esses valores e
entendimento de cidadania global não são atribuídos apenas ao português,
enquanto idioma, por sua importância como tal (por exemplo, num contexto
monolíngue), mas pelo português como parte de um repertório plurilíngue – o que o
privilegia em sua condição de LH por ser, de forma inerente, quando PLH, a língua
minoritária que coexiste com outros idiomas na sociedade de acolhida.
A seguir, nos excertos 11 e 12, Ivana comenta como vê a filha como
“cidadã do mundo” e Bianca conta como as práticas pluriculturais de seu dia a dia
em Barcelona, associadas a usos linguísticos diferentes dos vivenciados por ela no
Brasil, a transformaram. Ambas as representações remetem à cidadania plurilíngue,
com seus graus variáveis de proficiência em diversas línguas e as vivências de
diferentes culturas (COUNCIL OF EUROPE, 2001) que caracterizariam o cidadão
global plurilíngue idealizado mencionado por Jaffe (2012):

EXCERTO 11 – Ivana, mãe de Irene, 7 anos


Ela tem quatro idiomas, quatro culturas, quatro maneiras de ver o
mundo, e acho que isso faz dela uma cidadã realmente do mundo e
muito mais aberta. Eu acho que as crianças que são criadas num
182

bilinguismo, num trilinguismo, eu acho que elas veem o mundo de


outra maneira.

EXCERTO 12 – Bianca, mãe de Beatriz, 2 anos


PESQUISADORA: Isso é muito diferente de como você se sentia no
Brasil em termos de língua?
BIANCA: Totalmente. Aqui eu me sinto uma cidadã do mundo. Aqui
eu aprendo todo dia, levo a Beatriz no parquinho e ela brinca um dia
com um indiano, outro dia com um paquistanês, no outro dia
brincando com uma russa, no outro dia brincando com um italiano, no
outro dia brincando com os latino-americanos, interagindo e
conhecendo, e até de costumes, mesmo. [...] Barcelona me
transformou numa outra pessoa. Eu tenho uma visão de mundo e
uma sensibilidade pra poder entender o outro e respeitar a diferença
que nunca eu teria na minha cidade interiorana de [uma capital
brasileira].

Assim, embora as famílias do estudo não necessariamente tenham um


projeto migratório no horizonte, a mobilidade, um dos fatores que caracteriza a
superdiversidade (BLOMMAERT, 2013), está presente nas representações dos pais
daquilo que o PLH comporta ou possibilita aos filhos. O entendimento de que o
conhecimento de idiomas é uma “porta aberta” (ver excertos 1, 9 e 10) que dá
diversas possibilidades para os filhos, inclusive relacionadas à cidadania global
(excertos 11 e 12) – não necessariamente em relação à sociedade de acolhida ou
ao país de origem, mas às possibilidades de conhecer, entender e ter empatia com
outras culturas – é também mencionado por Curdt-Cristiansen (2009) em relação
aos aprendizes de chinês como LH no Quebec: “As línguas são como uma porta que
te permite conhecer o mundo” (Mrs. Qi, p. 351) ou “Eu ainda acho que é [importante]
que ela [a filha] saiba bem francês. [...] ela tem uma possibilidade para explorar,
tanto se ela quiser estudar literatura francesa como se quiser conhecer os países
onde se fala francês no mundo” (Mrs. Qi, p. 367).

Boas maneiras no espaço plurilíngue

Embora os entrevistados relatem diversas situações nas quais podem


usar LHs no espaço público, também mencionam situações em que, por regras
sociais implícitas, não desejam utilizá-las, por considerarem que geram desconforto
ou que tal uso pode ser interpretado como falta de educação ou desrespeito à
família do outro progenitor, a qual não fala português. Por exemplo:
183

EXCERTO 13 – Iara, mãe de Diana, 8 anos


E aí, pra não falar uma coisa que a pessoa não entenda, eu falo em
castelhano com a Diana, muitas vezes acontece isso.

EXCERTO 14 – Gabriela, mãe de Bárbara, 3 anos


Raras vezes depois que Bárbara nasceu a gente ficava sozinha.
Sempre tinha a tia, a sogra, a prima... Por eles, por respeito aos que
estão perto, eu falava com ela em espanhol [...] não sei nas outras
famílias, mas eles têm muita dificuldade de entender quando eu falo
em português.

Conforme Iara e Gabriela relatam nos excertos 13 e 14, ainda que sejam
dirigidas especificamente a uma pessoa que compartilha a língua minoritária com o
interlocutor, as interações entre mãe e filha (falantes de português) de Iara e
Gabriela em presença de terceiros (não falantes de português) em certos contextos
sociais marcam uma oposição “nós” (que falamos a língua) x “eles” (que não a
falam), a qual nem sempre é desejada.
Assim, a ideologia de que se deve usar a “língua comum, não-marcada”,
o espanhol, nas interações dos falantes de PLH em um grupo heterogêneo no qual o
português não é comum a todos encontra ecos nas pautas de conduta descritas por
Vila i Moreno e Sorolla Vidal (2013), notadamente a tendência a passar para o
espanhol com pessoas que parecem ser alóctones, ou seja, que não teriam um bom
domínio do catalão. Pode-se dizer que, para os brasileiros, aprender o espanhol
e/ou catalão nesse contexto viria acompanhado de aprender essas normas de
etiqueta do espaço plurilíngue.
A tentativa de adivinhar as proficiências linguísticas dos interlocutores, no
entanto, nem sempre resulta em acertos. Se isso, por um lado, evidencia a
existência de pré-conceitos linguísticos, como relata Laia, mãe catalã, no excerto 15,
por outro, é mais um dado que relata como as línguas podem ser usadas como
elemento de identificação nas relações nós (os que a falam) x eles (os que não a
falam):

EXCERTO 15 – Laia, mãe de Tiago, 4 anos


Então, tipo assim, chegamos num parquinho ou na escola. Eu e o
Tiago a gente fala em português. Então as outras crianças se dirigem
ao Tiago em espanhol. Embora elas sejam catalãs. [...] Depois eu
respondo em catalão e eles talvez troquem. Ou não. [...] E passa
[acontece] muito. E adultos também. Passa [acontece] muito. O
184

primeiro idioma que falam é o espanhol, porque veem que eu falo


português com ele.

Em outras palavras: há uma ideologia vigente que sugere que o correto é


usar a língua comum a todos do grupo – e que essa língua deve ser o espanhol –, o
que não se restringe aos usos linguísticos do catalão x castelhano, mas se traslada
às situações de uso de LH46. E, mesmo quando os pais optam por ir contra essa
norma implícita, porque desejam potenciar os usos do PLH com os filhos, relatam
certo desconforto, como Adriana:

EXCERTO 16 – Adriana, mãe de Elena, 6 anos


Pra mim o que foi um pouco difícil [...] era falar com ela em português
na frente de pessoas que não entendiam português. Isso pra mim era
um pouco assim... constrangedor, porque eu me sentia mal de falar
sabendo que ninguém tava entendendo o que eu tava dizendo.
Mesmo que fosse com a Elena, né? Mas depois eu falei: “Bom, tem
que ser assim, porque não tem como”.

Ou seja: em relação aos usos do português entre pais e filhos em um


grupo linguisticamente heterogêneo, no qual o português não é comum a todos,
colocar esses usos em prática pode ir contra certas convenções sociais e normas
implícitas de boas maneiras. Falar ou não falar, nessas situações, exige uma
mediação: ver até que ponto o grupo aceita estas práticas linguísticas das quais nem
todos os interlocutores participam e quanto os falantes da língua minoritária podem
tolerar o próprio desconforto que causam. Essas representações devem ser
contrastadas com a aparente receptividade a práticas plurilíngues relatada em
alguns contextos no espaço público, pois revelam uma multiplicidade de olhares e o
fato de que existem diferentes posicionamentos em relação a elas na sociedade de
acolhida.

46
Embora usar o castelhano como língua comum ao grupo seja uma pauta de conduta entre os
falantes de catalão quando há interlocutores que não falam catalão, vale registrar que também é
habitual que falantes de catalão conversem em catalão na presença de falantes de espanhol, já que é
habitual que estes entendam catalão.
185

A exposição e o uso de português não corresponde à expectativa


dos pais

De acordo com Curdt-Cristiansen (2009), as expectativas dos pais em


relação ao aprendizado da LH são um dos microfatores mais importantes nas PLs
familiares e estão diretamente relacionadas com sua trajetória sócio-histórico-
cultural. Nesse aspecto, convém lembrar que os progenitores brasileiros do estudo
têm um alto nível de escolaridade, acima da média espanhola e brasileira, e
conhecimentos de ao menos três línguas (português, castelhano, catalão e
geralmente inglês), o que, de alguma maneira, repercutirá no que almejam em
relação à proficiência linguística das crianças.
As expectativas em relação ao aprendizado de PLH para essas famílias
são diversas. Analisando as representações, parece haver um grupo que expressa
uma preocupação generalizada, embora em diferentes graus, em relação à
exposição, produção e proficiência que os filhos têm ou terão da língua. Por
exemplo, Felipe, que depois de se maravilhar com o modo como a filha desenvolveu
a fluência numa viagem de duas semanas ao Brasil, no momento da entrevista se
lamentava de que a garota tivesse “esquecido” a língua e não a usasse com o pai
como após a viagem. Para ele, a quantidade de input que a filha recebe em
português é “muito restrita” e “insuficiente”, e a expectativa do pai é que a garota
chegue a ser uma “falante nativa”:

EXCERTO 17 – Felipe, pai de Carolina, 3 anos


Na minha cabeça ela tinha que consumir pelo menos 50% de
português. [...] Porque o contato comigo eu vejo que não é apenas
suficiente, sabe? Por essa preocupação minha que ela seja uma
falante “nativa” de português quando ela seja maior.

Rosana, por sua vez, se no excerto 6 declara que uma língua “não tira
espaço” de outras, no excerto 18 parece cair em contradição, pois diz que promover
o uso do português “é difícil” e é uma “luta” contra os idiomas aos quais a filha tem
mais exposição, e contempla a possibilidade de que, nesse cenário, Flora se recuse
a falar português no futuro, já que seu uso é algo que exige esforço e estímulos por
parte da mãe:
186

EXCERTO 18 – Rosana, mãe de Flora, 3 anos e Jana, 3 meses


Mas eu também entendo que o português não vai ser tão importante
[pra ela] como o catalão ou o espanhol. É difícil você lutar com um
idioma que ela tá [usando] oito horas direto na creche. Se ela fala
alguma coisa em catalão comigo, eu vou e falo: “E em português,
como diz?”. Eu tento começar a palavra. O dia que ela não quiser
[falar português] vai ser um drama pra mim. Espero que não chegue
esse dia.

De modo semelhante, Gabriela também demonstra sua frustração com os


usos de português da filha, pois “queria muito mais”:

EXCERTO 19 – Gabriela, mãe de Bárbara, 3 anos


Quero que ela escute, que ela fale comigo também. Ela tenta, do jeito
dela, [...] ou seja, uma palavra ou outra que ela... “melancia”. “Ai!
Você falou ‘melancia’?” Mas não é o que eu queria, eu queria que ela
tivesse muito mais, tivesse mais vocabulário do que ela tem agora.

Ou seja: embora a percepção do multilinguismo como algo positivo seja


unânime, há um grupo de progenitores que parece não aceitar que o português deva
dividir o repertório linguístico de seus filhos com outros idiomas, demonstrando uma
certa frustração com o fato de seu uso ser minorizado. São expectativas, portanto,
que talvez estejam mais atreladas a uma representação do português como idioma
majoritário, utilizado por um falante “nativo” com alta escolaridade, tais como seriam
seus usos por este grupo de pais, por exemplo, no Brasil. Assim, estas
representações se aproximam dos paradigmas do cidadão nacional monolíngue
(JAFFE, 2012).
Outro grupo, no entanto, tem representações mais flexíveis sobre como
deveriam ser os usos linguísticos dos filhos, inclusive em relação a outras crianças
mais proficientes que o filho, a interferência com outras línguas de seu repertório ou
a alternância de códigos: vão de que o filho “fale bem, embora com sotaque”, “falar
português com alguns erros” a “ter uma base” (Laia, excerto 1) – estas duas últimas
representações vindas dos progenitores catalães, que demonstram se inclinar mais
à possibilidade de que suas crianças não falem português perfeitamente,
provavelmente porque a própria representação que têm do português falado por si
contempla algumas falhas no uso dessa língua, aprendida por ambos já quando
adultos – e não como “nativos”. Ilustro com alguns exemplos:
187

EXCERTO 20 – Jordi, pai de Daniel, 8 anos, e Pedro, 4 anos


Fernanda me pediu se eu poderia fazer um esforço de falar com o
meu filho em português, eu disse: só com uma condição. Não esteja
batendo o pé pelas minhas falhas. Eu sei que eu vou fazer falhas. E
que nosso filho vai ter falhas por causa das minhas falhas.

EXCERTO 21 – Moema, mãe de Mariana, 7 anos, e Laura, 4 anos


A Irene, com 3 anos, falava perfeito, também de português. E a minha
filha Mariana misturava tudo. Mas aí eu entendi que quando ela fez
praticamente os 4 anos, ela já começou a direcionar. Então a partir
dos 4… As crianças são diferentes.

EXCERTO 22 – Grupo focal


PESQUISADORA: Vocês acham normal ou vocês acham que é um
problema isso de as crianças misturarem as línguas?
PARTICIPANTE 1: É normal, é normal. Eu acho que é melhor
misturar que só falar um.
PARTICIPANTE 2: É normal, é normal.
PARTICIPANTE 3: Normal.
PARTICIPANTE 1: Não, quer dizer, eu prefiro que misture, sei lá,
português com francês, com não sei que, que só saiba falar espanhol,
que só saiba falar...
PARTICIPANTE 2: Pra mim é normal, eu cresci com duas línguas.

As representações desse segundo grupo parecem estar mais alinhadas


ao ideal do cidadão plurilíngue global, segundo o exposto por Jaffe (2012).
Ainda em relação às expectativas dos pais, chamou a atenção no grupo
focal – o mesmo onde, coletivamente, misturar os códigos foi exposto como algo
aceitável – a ideia de que saber ler e escrever a língua corretamente seria
importante para um conhecimento e uso pleno em situações mais formais e que, não
havendo esse conhecimento, a língua “é como se não servisse pra nada” e os filhos
“não teriam acabado de ser brasileiros”:

EXCERTO 23 – Grupo focal


PARTICIPANTE 4: Eu me preocupo que eles aprendam a escrever.
PARTICIPANTE 5: É o conhecimento formal da língua, não o
conhecimento do uso, porque, afinal, se você não tem o
conhecimento formal da língua, é equivalente a ser analfabeto. [...]
PARTICIPANTE 4: É como se não servisse pra nada. Ou seja, eles
não teriam acabado de aprender a língua, de ser brasileiros. [...].
PARTICIPANTE 5: …no mundo do trabalho […], conhecer só os
rudimentos da língua, ou só a modalidade falada, não é conhecer a
língua... e por exemplo, nós aqui...
PARTICIPANTE 6: É conhecer um 80% da língua.
188

Essa representação tão utilitária da língua parece focar no extremo de


“muito proficiente” do continuum de competências no qual se distribuem as
habilidades dos falantes de herança e sugere que, para essas pessoas, o domínio
da forma escrita em registros que correspondam ao da língua padrão (e,
possivelmente, ao de falantes com alta escolaridade, diferentes, portanto da carta de
Daniel, na Figura 3) seria o que legitima o falante como “proficiente”.
Embora atingir este nível de competência linguística seja uma
possibilidade no universo do falante de herança, não é, necessariamente, o que
sugere o desenvolvimento típico dessas habilidades quando não há apoio formal ao
aprendizado, de acordo com o que ilustra Montrul (2012) na Figura 5. Resta indagar
se, realmente, as habilidades das crianças podem se desenvolver nesse extremo do
continuum ou se as expectativas dos pais irão se frustrar – ou talvez se reacomodar
para o entendimento de que, no universo de herança, para que o falante se sinta
vinculado ao grupo ou participe das práticas culturais identificadas com as da cultura
de herança, o mais importante não é necessariamente um alto nível de
conhecimento linguístico, tanto no entendimento de Valdés (2000; 2001) como no de
Van Deusen-Scholl (2003). Embora altas expectativas possam ser benéficas para se
estabelecer PLFs efetivas para o aprendizado da LH, elas podem, também, levar a
frustrações, caso o resultado não seja o esperado.
Nessa dialética de negociar as expectativas de aprendizagem, os
progenitores brasileiros e os não-brasileiros parecem aspirar a objetivos diferentes,
dependendo da contribuição que cada um se sente capaz de fazer no projeto de
transmitir PLH aos filhos. A existência de ambos os referentes, para o falante de
herança, pode ser positiva: é possível que, no continuum de proficiência linguística,
o PLH da criança se aproxime mais ao do progenitor não-brasileiro, que não tem o
português como língua inicial, que ao do brasileiro. Assim, o progenitor não-
brasileiro poderia ser um referente mais próximo à realidade da criança: embora não
seja brasileiro e não more no Brasil, ele dá o exemplo de que é possível aprender e
usar a língua de maneira significativa em diversas situações do dia a dia. Talvez por
esse posicionamento, sua importância no projeto familiar de transmissão de uma LH
deva ser reconsiderada, e o papel que pode desempenhar mereça mais visibilidade
nos estudos.
189

i-c) Representações de ideologias x afetividade

Nas duas seções anteriores, explorei como o PLH pode permitir que os
pais identifiquem os filhos como “brasileiros”, ou, em outras palavras, como seus
semelhantes, membros de um mesmo grupo ao qual pertencem, e algumas
ideologias relacionadas a como esse grupo interpreta os usos e nível de proficiência
do português. Tal entendimento, no entanto, vem acompanhado de uma bagagem
emocional: na experiência dessas famílias (e de muitos aprendizes de uma LH) o
PLH foi parte das formas cognitivas de vinculação afetiva (DANTAS, 1992;
WALLON, 1987) entre pais e filhos na primeira infância. O português é, ainda, a
língua em que os progenitores brasileiros passaram da condição de infans e se
construíram como sujeitos e, portanto, parte de sua identidade.
Para os entrevistados, no contexto de LH estudado, o PLH não é visto
apenas como um código a ser dominado ou “um modo de identificação” (MENDES,
2015, p. 87), ele é também um capital afetivo que estreita os vínculos entre pais e
filhos e entre os filhos e a parte da família que está no Brasil (avós, tios, primos).
Isso porque permite às crianças vivências únicas, significativas também do ponto de
vista emocional do pai e da criança, que não são possíveis em outra língua, como
revelam Rosana e Felipe:

EXCERTO 24 – Rosana, mãe de Flora, 3 anos, e Jana, 3 meses


ROSANA: Eu acho que o idioma... une você com a família. [...] É
importante que a Flora fale português, que ela vá pro Brasil. Quer
dizer, é importante pra mim, né? De repente, pra ela não vai ser. Pra
mim, sim! Mas eu acho que pra ela também, pra ela sentir a família
dela.

EXCERTO 25 – Felipe, pai de Carolina, 3 anos


PESQUISADORA: Dessas línguas que ela tá aprendendo qual é a
mais importante pra você?
FELIPE: Sentimentalmente é o português, porque é a língua que ela
vai falar comigo, com os meus pais e através da qual ela vai absorver
a cultura do Brasil. Mas pra ela viver e conviver aqui eu diria que é o
espanhol.

Porém, é interessante notar como tanto Felipe como Rosana são capazes
de reconhecer que a importância atribuída por eles, como pais, ao PLH pode não ser
a mesma que a filha atribuirá: “é importante pra mim, né? De repente, pra ela não
190

vai ser”, diz Rosana, ao cabo que Felipe reconhece o português como a língua
sentimentalmente mais importante pra ele, embora acredite que para a filha a língua
mais importante seja o espanhol.
A diferença entre a função emocional da língua para pais e filhos aparece
ainda em outros momentos, também de forma menos consciente: no excerto 9,
Gabriela comenta que o português pode ser importante caso a filha deseje “voltar” a
morar no Brasil (uma “volta” que corresponde à situação da mãe, mas não à da filha,
que sempre morou na Catalunha); no excerto 10, Felipe declara que gostaria de
poder levar e criar a filha no Brasil (mas a garota está crescendo na Catalunha, e
não há projeto migratório na família). Para esses pais, o português é também a
“volta”, o “desejo de criar a filha no Brasil” (e lidar com a dor dessa impossibilidade).
Para as crianças, a língua não é isso: não é uma volta, não é uma dor por não estar
crescendo em certo lugar.
Anteriormente, mencionei que o português é entendido como o meio pelo qual
essas crianças expressam sua identificação com aquilo que os pais são ou desejam
que sejam – brasileiros, como nos excertos 1 a 5, ou cidadãos do mundo, excertos
11 e 12. Porém, vale lembrar que, no continuum de competências linguísticas
heterogêneas, a identificação proporcionada pelo PLH não necessariamente ocorre
por meio do uso ativo da língua, mas ao fornecer recursos para que os aprendizes
participem das práticas culturais do grupo, tais como o conhecimento das tradições,
códigos de conduta e algum grau de compreensão do português oral. O
entendimento de que tais práticas não são necessariamente linguísticas, somado ao
fato de que, nos contextos naturais de aprendizagem, como o português como
língua inicial para os pais ou LH para as crianças, a memória emocional está
envolvida no aprendizado da língua (PAVLENKO, 2005), permite que o PLH se
configure não só como um capital linguístico (BOURDIEU, 1982), mas como capital
afetivo. Exemplificando:

EXCERTO 26 – Ivana, mãe de Irene, 7, anos


Que nem no caso da Irene, ela não é uma brasileira nata, mas ela se
sente brasileira e eu fico feliz quando eu detecto esse sentimento.

O PLH permite um “sentir”: que a criança se sinta brasileira, que ela “sinta
a família” (excerto 24), que os pais se sintam felizes ou tristes com o uso ou não uso
dessa língua pelas crianças – aspecto que será aprofundado na seção ii-c.
191

Somado a isso, para alguns entrevistados, além de ser uma forma de


expressar identidade, o uso do português está associado ao prazer: o prazer de
retornar a uma zona de conforto linguístico da língua na qual o sujeito se expressa
melhor (sem ter que “rastejar”) ou a códigos culturais compartilhados por um grupo
que permitem desinibir-se através do humor, como expressa Moema:

EXCERTO 27 – Moema, mãe de Mariana, 7 anos, e Laura, 4 anos


Pra mim a APBC é o ponto de encontro, ao menos pra eu me sentir
um pouco em casa, falar português. A semana toda ali me rastejando
em castelhano [risos] e o sábado, enfim, o sábado, se pode fazer as
brincadeiras, assim, tirar brincadeiras, rir ou não... si, si, si [sim, sim,
sim], não tem nada a ver, a APBC pra mim é meu mundo.

Porém, ainda quando o português não é a língua inicial do sujeito, por


exemplo, no caso dos progenitores catalães, talvez seja necessário um olhar sobre a
importância que essa língua adquire nas vivências e representações afetivas de sua
experiência de mundo e como pais, já que ela também é usada e foi aprendida em
contextos naturais e foi escolhida por eles nas interações com os filhos – sendo,
portanto, nela que se desenvolvem as formas cognitivas de vinculação afetiva com a
criança. Exemplificando uma situação de “afetividade linguística” como patrimônio
eletivo, conforme relata Chulata (2015b) em relação a italianos em contexto de PLH,
Laia, embora não saiba explicar por que, sabe muito bem o quanto gosta do idioma:

EXCERTO 28 – Laia, mãe de Tiago, 4 anos


Catalão é a minha língua. Não vai deixar de ser minha língua
materna. Mas [com o] português eu tenho uma... relação... sei lá, eu
gosto dessa língua. Eu gosto muito. Eu não posso dizer que o
português é a minha língua, é o catalão. Mas eu ADORO o
português.

Em casos como os de Laia, vale lembrar que a equação inversa também


seria verdadeira: os progenitores brasileiros plurilíngues também são capazes de
construir suas formas cognitivas de vinculação afetiva com os filhos em outras
línguas, que não o português – e não seriam piores pais por isso. A esse respeito,
Souza (2015) alerta para a percepção de que, em certos grupos de mães imigrantes,
a experiência da maternidade está vinculada a promover e ensinar o uso de sua
língua aos filhos, o que, emocionalmente, pode repercutir como um “orgulho” ou
192

“fracasso” nos sentires possíveis dos progenitores no universo do PLH, como


expressam Moema e Gabriela:

EXCERTO 29 – Moema, mãe de Mariana, 7 anos, e Laura, 4 anos


Até porque elas [filhas] conversam com as tias, conversam com a
avó, imagina se elas não soubessem, se eu não tivesse trabalhado
com elas pra elas falarem em português, como seria agora tá
conversando com a avó e eu intentando [tentando]... tentando ser a
tradutora das duas. Não, não, não. Tô orgulhosa do trabalho que eu
fiz.

EXCERTO 30 – Gabriela, mãe de Bárbara, 3 anos


GABRIELA: A Bárbara tem um problema em casa que só eu falo com
ela em português, e o pai só fala com ela em espanhol.
PESQUISADORA: Mas muitas famílias são assim também.
G: Sim, mas é que parece que eu que tô fracassando. Eu sou a
responsável de ela falar português.
P: A responsabilidade é só sua?
G: Só minha.

Em relação ao sentimento de “orgulho” ou de “fracasso” expressados por


Moema e Gabriela nessas representações, cabe lembrar que a memória emocional
que compõe a vivência afetiva de uma língua está composta tanto por experiências
positivas quanto negativas, as quais são vivenciadas não só pelos pais, mas pelos
aprendizes. Por exemplo, no grupo focal, uma mãe espanhola explicou sua
resistência em falar catalão e na entrevista Laia comentou como sua família, catalã,
reagiu ante a decisão de ela falar em português com o filho:

EXCERTO 31 – Grupo focal


É que eu não cresci com duas [línguas]. […] Me obrigaram… o
catalão, foi imposto. Então eu não falo. Porque eu não quero, porque
foi imposto.

EXCERTO 32 – Laia, mãe de Tiago, 4 anos


Em casa, na casa dos meus país [...], a minha mãe não gostou,
minha mãe no início ela ficou muito chateada comigo. Muito mesmo.
Até que um dia ela me falou: aqui na minha casa, todo mundo, não
pode falar português.

Ou seja: quando imposta, uma língua pode provocar um rompimento –


seja nas possibilidades de que o sujeito se posicione como falante, ainda que tenha
as competências necessárias (saber, mas não querer usá-la), ou ao abalar as
relações previamente estabelecidas em outras línguas, como sugerem os excertos
193

31 e 32. A esse respeito, Pavlenko (2005) ilustra, com o caso de judeus perseguidos
durante o Holocausto, que lograram imigrar para os EUA, como experiências
traumáticas associadas à língua inicial e seu contexto fazem com que o imigrante
deixe de desejar usá-la.
Retomando o contexto de PLH, conforme descrito por Mota (2010), a
tensão entre o PLH e a língua majoritária pode chegar a cenários mais extremos nos
casos em que a língua majoritária (inglês, nos EUA) é imposta pelos filhos nos usos
em casa sem a plena anuência dos progenitores, que não a dominam, numa
situação análoga à do excerto 32:

Quase sempre eu brigo com meu filho quando ele começa a falar inglês. Eu
digo: filho, eu não estou entendendo o que você está falando. Você tem que
falar português pra mim. Tinha vez que ele me dizia: Ah, mãe, a senhora é
muito burra. A senhora não quer aprender. Então, a gente encontra
dificuldade pra conversar. (MOTA, 2010, p. 53)

Assim, a partir dos excertos 31 e 32 e desse registro no trabalho de Mota


(2010), cabe ao menos constatar que nem tudo que se vivencia na LH será
agradável: o falante pode ter dificuldades para se expressar, cometer erros ou ter
um sotaque que são motivo de chacota, entre outras possíveis vivências que podem
coibir o uso da língua, como o fato de que ela seja um constante campo de batalha
na relação com os pais. Entre outros fatores, a alta expectativa dos progenitores, se
não alinhada aos avanços e à realidade plurilíngue dos filhos, pode fazer com que
eles se sintam insuficientemente competentes na LH e que cada tentativa de usá-la
seja se expor ao fracasso – levando, talvez, a que não desejem mais usá-la.

Para encerrar esta seção sobre as ideologias que existem por trás do
PLH entre essas famílias de Barcelona, escolho uma das falas de Rosana, que
sintetiza belamente os três pilares desse fenômeno: identificação, proficiência e
afetividade. Rosana comenta o caso da filha comparando-a com Catherine, uma
prima sua, jovem adulta, que nasceu e cresceu em outro país europeu:

EXCERTO 33 – Rosana, mãe de Flora, 3 anos, e Jana, 3 meses


ROSANA: Eu me espelho. Eu gostaria que a minha filha fosse como a
Catherine. No sentido que... que fala muito bem o português, com um
sotaque, de que tem amor pelo Brasil [...], ter contato com a família,
se sentir brasileiro. Claro, essa é outra questão. Se sentir também
brasileiro. Que alguém quando pergunte ‘De onde você é?’, que ela
194

responda: ‘espanhola ou catalana [catalã] (não sei o que ela vai dizer)
e brasileira’. ‘Brasileira por quê?’ ‘Ah, a minha mãe é brasileira.’ Então
eu acho que as três coisas: falar o idioma, se sentir do país também,
apesar de não ter nascido e não ter crescido lá, e sentir amor.

A fala de Rosana chama a atenção para dois componentes de alta carga


emocional: o “sentir-se brasileiro” e o “sentir amor” pelo Brasil, complementados pelo
bom domínio do idioma português. Tenho tentado chamar a atenção para os
elementos de afetividade que podem permear as relações que se constroem por
meio de uma LH, e esse excerto parece sintetizar e ilustrar muito bem as ideologias
(ainda difusas na bibliografia do campo) sobre a matéria afetiva que há por trás de
uma LH.
Primeiro, há um desejo da mãe: “eu gostaria que minha filha...”, – o qual
pode ser alcançado ou não, gerando realização ou frustração no progenitor. Esse
desejo passa por a filha manter os vínculos com a família materna – são relações
afetivas – que está no Brasil e sentir-se brasileira – um sentimento de identificação –
, pois a mãe é brasileira e isso autorizaria a filha a sentir-se assim. Rosana declara,
dessa forma, suas intenções de ensinar a filha a amar seu país natal e uma das
estratégias que utiliza é o ensino do português, pois “a memória emocional está
envolvida no aprendizado da língua” (PAVLENKO, 2005, p. 237) através de
experiências linguísticas indissociáveis em nível afetivo e cognitivo (DANTAS, 1992;
WALLON, 1987).

ii-a) Representações de práticas linguísticas x identificação

Como se argumentou anteriormente, o uso da língua portuguesa pelas


crianças está atrelado, para os participantes, à possível identificação das mesmas
com aspectos de brasilidade. O “falar português” está associado às viagens de visita
ao Brasil e à família (ou às visitas de familiares brasileiros a elas), às possibilidades
de participar e integrar-se às práticas cotidianas e culturalmente significativas das
famílias e de outros grupos mais amplos, como a APBC, identificados como
brasileiros, à possibilidade de construir, manter ou estreitar vínculos com avós, tios e
primos que falam essa língua.
No entendimento dos pais, tal identificação com a brasilidade (aquilo que
os pais são ou desejam que os filhos sejam) se estende e manifesta, evidentemente,
195

nos usos linguísticos de e entre uns e outros. Por exemplo, a seguir, nos excertos 35
e 36, Camila e Ivana expõem como o uso da língua permite identificação entre quem
a mãe é e quem ela deseja que os filhos sejam:

EXCERTO 34 – Camila, mãe de Dora, 7 anos, e Luís, 3 anos


A minha maneira de eu comunicar em português é a minha
identidade. Então, eu não conseguiria falar pros meus filhos em outro
idioma desde a infância, desde a primeira infância, quando nasce, eu
não ia conseguir me expressar em outro idioma, então foi muito
natural pra mim essa coisa do português. Então eu não parei pra
pensar, pra escolher [o idioma] em momento nenhum.

EXCERTO 35 – Ivana, mãe de Irene, 7 anos


É uma coisa que eu sempre quis, que ela falasse português, usasse a
língua portuguesa como se fosse a língua dela.

Ou seja: nestes dois casos, bem como nos excertos 1 a 4, da seção i-a,
falar português pode ser interpretado como consentir e aceitar um movimento de
aproximação com aquilo que os pais são. Mesmo os progenitores não brasileiros
desejam que os filhos se aproximem e se identifiquem com o que há de brasileiro na
trajetória do outro progenitor: “Ele é brasileiro”, declara Laia, no excerto 1. Essa é a
“sua cultura” (dos filhos), declara Jordi, no excerto 3.
Além disso, conforme algumas representações, as crianças são capazes
de identificar seus interlocutores como pertencentes a um grupo de falantes com
quem só há uma língua em comum, o português – a qual vem impregnada de uma
série de elementos e práticas culturais e afetivas próprias. Esse contexto é diferente
do núcleo familiar imediato, já que o habitual no cenário estudado é que pais e filhos
tenham um repertório linguístico composto por várias línguas comuns, embora as
competências de cada geração sejam heterogêneas em cada língua e não
necessariamente coincidam.
As crianças, nas interações com tais interlocutores de outros contextos
identificados como “brasileiros”, não têm a possibilidade de recorrer às outras
línguas de seu repertório para se comunicar. As representações das práticas
linguísticas dos filhos nos excertos 36 e 37, de Iara e Jordi, ilustram como se dá tal
identificação em conversas por Skype com familiares. Sofia é uma prima de Iara que
mora nos EUA e tem a idade de sua filha Diana:
196

EXCERTO 36 – Iara, mãe de Diana, 8 anos


E a Diana e a Sofia, elas, entre elas, elas falam em português. É
impressionante. Porque a Sofia fala hebreu [hebraico] e inglês. E a
Diana, o catalão e o espanhol. E aí elas conversam por Skype as
duas, e em português. É engraçado, as duas mineirinhas e com
sotaque!

EXCERTO 37 – Jordi, pai de Daniel, 8 anos, e Pedro, 4 anos


E quando [Daniel] falava com os avós, ele respondia em português,
sabia perfeitamente que os avós brasileiros não sabem catalão!

Na linha de argumentação proposta, considero que todas as práticas em


português permitiriam a identificação com aspectos da brasilidade. Assim, aproveito
esta seção para apresentar uma compilação das práticas linguísticas em português,
no núcleo familiar, mencionadas nas representações dos entrevistados, as quais
constituem um aspecto importante das políticas linguísticas por eles desenvolvidas.
As práticas linguísticas que, segundo as representações, são realizadas pelas
famílias no âmbito da APBC serão apresentadas no ponto iii-a.
A seguir, sintetizo, na Tabela 9, as práticas compiladas a partir do
conjunto de dados gerados por todo o grupo. Assim, de acordo com o exposto pelos
entrevistados, cada família adota algumas destas práticas, mas não todas
simultaneamente.
197

1 O pai conversa com o outro progenitor 11 Os pais leem livros em português com os
para decidir que língua(s) usar com o filho filhos
2 O progenitor brasileiro usa o português 12 Os pais leem livros escritos em outras línguas
com o filho em português para os filhos (traduzindo o
texto no momento da leitura)
3 O progenitor não brasileiro usa o 13 Há um acervo de livros e gibis em português
português com o filho em casa, para que o filho leia
4 O progenitor não brasileiro instala um 14 Os pais baixam desenhos animados e filmes
aplicativo de tradução no celular para dublados em português para que os filhos
ajudar com dúvidas de vocabulário assistam
5 Os pais repetem o que o filho disse em 15 Os pais assistem filmes infantis brasileiros
português quando ele se dirige a eles em com os filhos, como O Menino Maluquinho ou
outra língua Tainá
6 Os pais dizem não entender o que o filho 16 Os pais colocam vídeos do YouTube em
disse quando se dirige a eles em outra português para os filhos
língua que não o português
7 A família recebe familiares brasileiros de 17 Os pais ouvem música brasileira em casa ou
visita (geralmente períodos longos, de um rádio em português, na presença dos filhos
mês ou mais)
8 A família viaja ao Brasil (geralmente 18 Os pais cantam cantigas de ninar em
períodos longos, de um mês ou mais) português na hora de dormir
9 Quando viajam ao Brasil, os pais 19 Os pais cantam músicas brasileiras em casa,
matriculam os filhos numa escola brasileira na frente do filho, e convidam-no a
para que convivam com crianças que só acompanhar
falam português
10 Os pais organizam conversas por Skype 20 Os pais assistem a eventos brasileiros com os
com familiares brasileiros para que os filhos pela internet, como o Carnaval de
filhos conversem com eles em português Salvador ou jogos de futebol
Tabela 9 – Representações das práticas realizadas pelas famílias da APBC
para promover a transmissão do PLH em casa

Vale lembrar que, nessas práticas, há algumas que vão além de


simplesmente expor as crianças a interações linguísticas, mas que proporcionam
experiências que, para elas, são vividas unicamente em português. Destacam-se,
nesse leque, as viagens ao Brasil – com as brincadeiras com primos, colo de vó,
carinhos de tios, sabores de frutas, feijão, farofa, picolé, banho de rio, clima diferente
e outras vivências relatadas –, mas também as visitas prolongadas que recebem de
familiares.
Os produtos culturais infantis brasileiros, que não necessariamente se
encontram disponíveis em outra língua, também são valorizados nessas práticas e
permitem que as crianças desenvolvam o sentimento de identificação com a
brasilidade. É diferente, nesse quesito, que a criança possa assistir a um desenho
animado da Disney dublado em português – que pode ser visto também em
castelhano ou inglês – ou o filme Tainá, o qual, além de estar em português, explica
aspectos da cultura dos índios nativos do Brasil. O fato de que a criança possa ler
gibis da Turma da Mônica ou livros que contem lendas brasileiras em português
198

também seriam práticas que se realizariam exclusivamente nessa língua, por


exemplo, bem como o fato de o pai ou mãe cantar cantigas populares brasileiras ou
que a criança tenha contato com a produção musical de cantores e cantoras
brasileiros.
Observe-se que algumas dessas práticas têm como ponto de partida
produtos culturais que não necessariamente estão na língua-alvo: os livros infantis
escritos em catalão ou castelhano podem ser contados pelos pais em português,
como relata Rosana, no excerto 54, mais adiante; os jogos de futebol do Brasil
podem não ser transmitidos em português na TV, mas propiciam um ambiente para
que, a partir disso, a conversa se desenvolva em português.
A participação do progenitor não brasileiro nessas interações pode,
também, contribuir para o sentimento de identificação do falante de herança com as
práticas cotidianas e culturais realizadas na LH, já que seu posicionamento pode ser
decisivo para que essa língua seja considerada como parte do repertório linguístico
familiar – de todos os membros, e não apenas entre um dos progenitores e as
crianças – ou não. Esse aspecto será aprofundado na próxima seção.

ii-b) Representações de práticas linguísticas x proficiência linguística

Ao longo da pesquisa, as representações de como as práticas linguísticas


das famílias influenciam a proficiência linguística dos aprendizes de herança foram
organizadas em três tópicos: a representação do que é considerado “natural” no
contexto estudado, a do que significa falar “sempre” português e a de como o
progenitor não brasileiro pode se posicionar em relação às práticas linguísticas
realizadas em português. Esses três blocos de análise serão apresentados a seguir.

É “natural”

Além de Caldas (2012), Ballarín Garoña (2011) e Bastardas-Boada (2016)


também mencionam que, no caso de famílias mistas, nem sempre a escolha da(s)
língua(s) que cada progenitor irá falar com o filho é uma decisão consciente. Em
relação aos usos linguísticos, existe a ideia de que eles ocorrem de maneira
“natural”.
199

Essa representação aparece, por exemplo, quando perguntei aos


entrevistados se eles chegaram a conversar com o outro progenitor a respeito das
línguas que usariam com as crianças. Embora cerca de metade dos entrevistados
reconheça ter conversado com o parceiro ou refletido conscientemente sobre qual
língua usaria, não é raro que o assunto não tenha sido abordado porque esses usos
já estavam definidos de maneira “natural”, como para Luísa e Ivana:

EXCERTO 38 – Luísa, mãe de Olívia, 3 anos


PESQUISADORA: Quando você ficou grávida da Olívia vocês
chegaram a pensar, a conversar alguma coisa sobre que língua vocês
falariam com ela?
LUÍSA: Não, a gente nem pensou porque era uma coisa tão natural e
óbvia que eu ia falar com ela em português e ele em espanhol, que a
gente nunca conversou sobre isso. E hoje em dia ele fala com ela em
português também, eu falo com ela em espanhol às vezes também,
quando estamos num ambiente que tem mais gente, então acho que
pra ela as duas línguas sempre foi desde que nasceu presentes, igual
de peso dentro de casa. Mas nunca conversamos sobre isso.

EXCERTO 39 – Ivana, mãe de Irene, 7 anos


PESQUISADORA: Quando você estava grávida da Irene vocês
chegaram a conversar sobre que língua vocês iriam falar com ela?
IVANA: Olha, eu acho que a gente num... não chegou a conversar, a
ter nenhuma conversa [...] Foi uma coisa natural, que foi
acontecendo.

Embora o “natural” para alguns pais brasileiros seja falar em português


com os filhos – na maioria dos casos, sua língua inicial, que gozou de condição de
língua majoritária num contexto monolíngue pela maior parte da vida deles –, isso
não é necessariamente uma regra. A própria Luísa reconhece, com tranquilidade,
que, embora coubesse a ela falar português com Olívia e ao pai da garota,
espanhol, hoje ambos utilizam as duas línguas com a menina. O entorno plurilíngue
parece pedir, assim, outras representações do que é “natural”. Para Bianca, por
exemplo, o “natural” é alternar as línguas que usa com a filha conforme o que o
contexto demanda:

EXCERTO 40 – Bianca, mãe de Beatriz, 2 anos


Se eu tenho que falar alguma coisa que é dirigida somente a ela eu
falo em português, se eu tenho que, eu quero que a outra criança que
tá perto possa entender, eu falo em catalão. Eu não tenho uma
fórmula, eu faço de maneira muito natural, de acordo com o que eu
acho que se adequa ao momento. [...] Eu não sou metódica com isso,
200

eu faço muito de acordo com o que eu sinto que naquele momento é


o que ela espera. [...] Eu acho que ela precisa ver que tem essa
flexibilidade. Falo com ela em catalão inclusive em casa, se ela tá
falando alguma coisa em catalão. Canto canção em catalão, canto
com ela canção em inglês, canto com ela canção em espanhol [...].

Cabe questionar se, para estas crianças aprendizes de PLH – o que já


pressupõe o conhecimento de ao menos outra língua à qual terão maior exposição
uma vez iniciada a escolarização, e, no caso da Catalunha, a um repertório
linguístico composto por duas línguas, o castelhano e o catalão, com alternância de
códigos acontecendo com frequência a seu redor –, seria “natural” que preferissem
se expressar em português, como a expectativa de alguns pais parece sugerir.
O episódio 41, a seguir, em que Adriana relata as escolhas linguísticas da
filha Elena quando esta começou a falar, mostram que o “natural” para a criança foi
usar a língua majoritária do lugar em que morava – italiano, no caso – ao lado do
português. Se, por um lado, Bianca legitima e apoia a mudança de código como
parte de suas práticas comunicativas com a filha, a política linguística adotada por
Adriana foi outra: reivindicar (ou intervir para) que a filha se dirigisse a ela apenas
em português – o que, segundo a mãe, atingiu suas expectativas em relação aos
usos linguísticos almejados para a filha:

EXCERTO 41 – Adriana, mãe de Elena, 6 anos


Ela começou a falar na Itália, na verdade. [...] Era italiano e português
comigo, em casa, que no início foi um pouco difícil. Quando ela
começou a falar, ela falava comigo em italiano. E aí durante um
tempo, umas duas semanas ou três, eu finquei o pé e falei: “Não,
comigo é só em português” e me fazia de maluca, “não, não tô te
entendendo. Você quer falar comigo, tem que ser em português”. E
deu supercerto. Então foi isso, foram duas semanas que eu tive que
me policiar, prestar atenção, mas depois disso ela sempre fala
comigo em português.

Como Adriana relata, essa escolha linguística da filha foi “difícil” para a
mãe e, para que ela pudesse colocar em prática o que havia planejado – não só
dirigir-se em português à filha, mas que a filha lhe respondesse nessa língua – foi
necessário esforço e disciplina de sua parte. Não foi, portanto, um processo “natural”
nem para a mãe (que teve que se “policiar, prestar atenção”), nem para a criança, já
que o fato de a mãe falar em português com a filha não bastou para que a filha
usasse o português com a mãe. Como a mãe também sabia italiano, a filha poderia
201

responder neste idioma e a mãe a entenderia, e foi então que a mãe “fincou o pé” e
deixou claro que “não entendia” (ou não iria entender) o que a filha dizia em italiano.
Independentemente das políticas linguísticas que os progenitores adotem
– em algum ponto do continuum de “acompanhar os usos plurilinguísticos da
criança” x “reivindicar que ela se dirija a eles em português”, é válido fazermos o
exercício de olhar para o contexto despidos de ideias pré-concebidas sobre o que é
“natural” ou não, o que, como visto, pode variar muito de pessoa para pessoa – para
tentar se colocar no lugar do aprendiz de PLH (o qual está aprendendo também
outras línguas) e ver como são as interações linguísticas do núcleo familiar.
No excerto 42, Iara exemplifica – ainda com a representação do que é
“natural” – o cenário linguístico imediato da família de sua filha Diana, enquanto
Jordi comenta, no excerto 43, as línguas utilizadas pelos filhos para se relacionar
com os amigos e para as brincadeiras entre os irmãos:

EXCERTO 42 – Iara, mãe de Diana, 8 anos


Acho que essa é uma coisa natural de eu falar português com ela e a
minha família falar em português com ela e ele [o marido]... pois na
casa dele ele com a mãe dele ele fala em espanhol, por exemplo, e
com o irmão dele ele fala em catalão.

EXCERTO 43 – Jordi, pai de Daniel, 8 anos, e Pedro, 4 anos


PESQUISADORA: [sobre as línguas que os filhos usam para brincar
com os amigos] E que língua eles usam?
JORDI: Eu já te falei, tem meninos que falam em espanhol, meninos
que falam em catalão.
P: E aqui em casa que língua que eles usam entre eles, Daniel e
Pedro?
JORDI: Português. Mas às vezes nas brincadeiras que eles fazem
você vê que tem personagens que falam em catalão, outros que
falam em espanhol, outros que falam em português, fica aí... que
mistura danada é essa!

Parece haver situações em que o entorno é mais receptivo às práticas


plurilíngues – e a pressão ou tolerância do grupo em relação a certas práticas deve
ser vista como um elemento que influi na quantidade de input a que o falante de
herança pode estar exposto ou em suas possibilidades de se aventurar pela LH.
Como contraponto aos excertos 42 e 43, Gabriela relata, no excerto 14, como o
ambiente familiar, de fala espanhola, o qual está relacionado ao fato de os sogros
serem originários de uma região da Espanha de usos monolíngues em castelhano,
influencia seus usos linguísticos com a filha. A isso, conforme ela expõe no
202

excerto 44, somam-se suas dúvidas sobre qual teria sido o momento adequado para
introduzir o português, língua minoritária, nas interações com a filha – dúvidas
legítimas para quem se constituiu como sujeito sob os paradigmas do cidadão
nacional monolíngue, como ela, brasileira que nasceu e viveu até a idade adulta no
Brasil:

EXCERTO 44 – Gabriela, mãe de Bárbara, 3 anos


Quando ela estava na minha barriga eu falava com ela em português,
óbvio. Mas, a partir do momento que a Bárbara saiu, eu não tinha
claro [tinha certeza] se eu tinha que esperar até uma certa idade pra
falar com ela em português ou se eu tinha que já estar falando com
ela em português desde que ela saiu da barriga. Então, quando ela
saiu da barriga, eu realmente falava com ela em espanhol.

No contexto de PLH, um uso “natural” das línguas, portanto, não deve


ser entendido como “normal” ou “habitual”, pois aparentemente, como exemplificado,
não há uma “norma” a seguir. Lembremos que, como pano de fundo, o cenário em
que esses usos ocorrem é heterogêneo e superdiverso. A ausência de um padrão
“normal” de usos nos contextos de PLH também pode ser encontrada na obra de
Souza (2016a).
Assim, a representação de um uso “natural” da(s) língua(s), conforme relatado
nos excertos 38 a 40 e 42, talvez nada mais seja do que um indício da ausência de
planejamento, o que, para Bastardas-Boada (2016), justifica argumentar que nas
famílias há uma “auto-organização evolutiva” (usos que se organizam e evoluem
sem grande reflexão ou intervenção por parte de seus membros), mais que “políticas
linguísticas” (reflexão consciente com intervenções cujo objetivo é chegar a um dado
padrão de uso linguístico).

Falar “sempre” português

As informações apresentadas até o momento, sobre os usos linguísticos


nas famílias da APBC, deixam claro que não há uma homogeneidade no uso do
português. O PLH, como língua minoritária, se caracteriza pela heterogeneidade de
input, dos níveis de proficiência linguística de seus falantes e por estar sempre
acompanhado de um contexto em que outras línguas são (mais) usadas.
203

Também se expôs que os pais da APBC, ainda que adotem um uso muito
consistente do português com os filhos, como declara Adriana, no excerto 41, falam
outras línguas na presença das crianças, seja com o cônjuge (ver os 14 dos 20
casos da Tabela 7) ou em situações sociais, quando os interlocutores não sabem
português, inclusive com outras crianças, amigas de seus filhos – pois estas são
normas implícitas de boas maneiras nos espaços plurilíngues. Assim, não seria de
surpreender que as crianças identificassem os pais como sujeitos plurilíngues,
capazes de utilizar diversas línguas também com elas – e não unicamente o
português.
Diante deste cenário plurilíngue, seria legítimo esperar que o aprendiz de
PLH – e a comunidade de falantes de português ao seu redor – usasse apenas o
português? Ou seria mais condizente usar também – mas não unicamente – o
português? Esse entendimento parece não estar ainda definido e as representações
que circulam do falar “sempre” português podem ajudar a aprofundá-lo.
A representação do cidadão nacional monolíngue (JAFFE, 2012) parece
continuar a acompanhar a maioria dos entrevistados. A exceção de uma
entrevistada, que cresceu numa família bilíngue, todos os brasileiros, de alguma
maneira, foram alguém próximo ao paradigma de cidadão nacional monolíngue
enquanto moraram no Brasil e ainda veem o português que falam como a língua que
“sempre” falam – ou que “sempre” desejariam falar com os filhos.
Dos 12 progenitores entrevistados, quando lhes perguntei se falam
português com os filhos, oito responderam que sim, “sempre” – e essa resposta,
também presente nos questionário, é a que figura na Tabela 7. No entanto, no
momento de aprofundar um pouco as situações de uso de português e a
abrangência desse “sempre”, geralmente encontramos contradições e outros
matizes. Por exemplo:

EXCERTO 45 – Camila, mãe de Dora, 7 anos, e Luís, 3 anos


PESQUISADORA: E você, que língua que fala com eles?
CAMILA: Em português.
P: Sempre, sempre, sempre?
C: Sempre, sempre, sempre, ou quando tem alguma pessoa próxima
de nós, que faz parte do contexto da conversa, eu falo ou em francês
ou em espanhol para que a pessoa que esteja ao lado também
entenda o que está falando. Mas a Dora só se dirige a mim em
português, mesmo que tenha uma amiga dela falando em espanhol.
204

P: Mas, por exemplo, hoje, aqui dentro de casa, você falou que
também usa o espanhol pra falar, você e o Jacques [marido]... se as
crianças estão perto, você acaba falando com elas em espanhol
também?
C: Sim.
P: Então você também usa o espanhol, dependendo do contexto.
C: [risos] Falo sempre, sempre, sempre, mas não, espera, vamos
voltar atrás. Não, eu também falo espanhol, dependendo desse
contexto. É que é muito pouco perto do que eu falo em português.
P: Mas você também usa o espanhol.
CAMILA: Uso.

Camila tem um repertório linguístico familiar bastante amplo, com uma


segunda LH (LH2) que chega aos filhos através do marido. Embora ela reconheça
em outro ponto da entrevista que o marido não fala português e que suas interações
com ele são em francês e, principalmente, espanhol, num primeiro momento ela não
é capaz de reconhecer que também fala em espanhol com os filhos, mesmo em
casa, mesmo que o marido entenda português e se sinta à vontade com esta língua,
pois sua representação inicial é de que sempre fala em português com as crianças –
isso além de falar francês com os filhos em certas situações sociais.
Outras entrevistadas trazem à tona que, num contexto de LH, em que os
falantes estão inseridos numa sociedade em que predomina outra língua, haverá
situações em que a única opção eficaz para se comunicar com o grupo será a língua
majoritária, já que a LH não é comum a todos. Nessas situações, os filhos são parte
do grupo e o pai ou mãe se dirigirá a eles na língua majoritária, e não na LH – não
falando com eles, portanto, “sempre” em português, como revelam os excertos 46 e
47, a seguir. A existência dessas nuances, nem sempre trazidas à luz nas pesquisas
feitas com metodologias quantitativas (os questionários aos quais, como no presente
caso, o respondente relata usar “sempre” uma determinada língua em certa
situação), são um fator a ser considerado ao trabalhar com dados gerados nessas
circunstâncias.

EXCERTO 46 – Adriana, mãe de Elena, 6 anos


Se realmente é uma coisa que todo mundo tem que entender eu falo
no idioma do grupo, digamos, mas se eu tô me dirigindo à Elena que
é uma coisa específica, concreta, com ela eu falo em português.

EXCERTO 47 – Ivana, mãe de Irene, 7 anos


Eu sempre falo em português com ela, ao menos que... sei lá, uma
situação que tá a Irene com um amiguinho, que não entende
205

português, e eles estão brincado, e eu quero chamá-los pra ir


embora, então eu falo: “Irene, fulano, vámonos!” Mas quando eu me
dirijo só a ela, se o que eu vou falar é só pra ela, eu falo em
português.

Em termos práticos, com uma vida social normal e um mínimo de inserção


na sociedade de acolhida como no caso específico dos pais da APBC, que têm bons
conhecimentos de castelhano, conhecimentos heterogêneos de catalão e sabem se
comunicar nessas línguas, acredito ser impossível que os mesmos falem sempre em
português com o filho. Em alguma dessas interações linguísticas, quando o filho for
parte de um grupo, o pai ou mãe se dirigirá à criança e ao grupo em outra língua – e
essa língua não será necessariamente uma, mas pode se alternar com outras do
entorno, como o catalão ou a LH2 da família, como nos casos de Adriana e Camila.
É preciso, portanto, desconstruir a ideia de que, quando se transmite
PLH, é possível falar sempre em português. Se isso se dá, talvez não seja sinal de
um projeto linguístico bem-sucedido, mas de um alto grau de exclusão e
marginalização na sociedade de acolhida, já que estes falantes, ainda com
conhecimentos muito deficientes na língua majoritária, talvez enfrentem a
impossibilidade de se inserir na sociedade e na cultura em que vivem, como relatado
por Mota (2010).
Também seria necessário questionar, na literatura, o modelo que se
costuma apresentar das políticas linguísticas familiares OPOL, como em Caldas
(2012), já que as nuances dos repertórios plurilíngues dos membros das famílias
ficam apagadas e colaboram para o entendimento – equivocado, como se
argumenta – de que é possível usar apenas uma língua minoritária quando todos os
membros da família estão bem inseridos numa sociedade que usa a língua
majoritária. Segundo Mendes (2015), esse tipo de pauta linguística pode ser nocivo
para o desenvolvimento das competências em LH num entorno plurilíngue:

De modo geral, essas situações diglóssicas forçadas contribuem para


atrasar, quando não atravancar, o processo de formação de sujeitos
bilíngues ou plurilíngues, capazes de transitar, sem esforço, por diferentes
línguas-culturas com desenvoltura e autonomia, quando assim o desejarem.
(MENDES, 2015, p. 84)

Dessa forma, no deslocamento geográfico e linguístico que faz da LH uma LH


(MORONI, 2015), os dados apontam que o sujeito falante de PLH e seus
promotores, pais e mães em geral multilíngues, deveriam buscar se posicionar mais
206

próximo ao ideal do sujeito global plurilíngue (JAFFE, 2012). Isso, embora signifique
renunciar ao falar “sempre” em português ou como um “brasileiro nativo”, não
necessariamente é algo negativo – na verdade, é algo necessário, já que os
paradigmas do cidadão nacional monolíngue, pelos motivos citados, parecem não
fazer sentido no contexto estudado.

O papel dos progenitores não brasileiros: suas práticas linguísticas


e o impacto na proficiência dos filhos

Ao longo da pesquisa, pude observar que, no projeto de transmissão


linguística da família, o progenitor não brasileiro pode assumir diferentes posturas:
num extremo, o apoio explícito ao projeto de transmitir o PLH aos filhos, que se
traduz, na prática, no fato desses progenitores terem adotado o português como
língua de interação com a criança e com o outro progenitor, em detrimento de sua(s)
língua(s) inicial(is); no outro, embora ele possa ser favorável à ideia de que o PLH
seja transmitido ao filho, não chega a envolver-se no processo e não tem interesse
em aprender o português. Evidentemente, entre um e outro extremo há várias
nuances.
No caso da APBC, entendo que a própria participação na associação já
confirma que há, na família, um projeto consciente de transmissão do PLH, embora
eu reconheça que, em outros contextos, a falta de interesse ou mesmo a pressão do
progenitor não brasileiro pode implicar que a possibilidade de transmitir uma LH não
seja sequer considerada. Souza (2015) relata, por exemplo, o caso de um pai inglês
que proibiu a esposa brasileira de falar português com os filhos até que as crianças
tivessem quatro anos de idade.
Para explorar o papel que o progenitor não brasileiro pode desempenhar
na transmissão de PLH, apresentarei três casos ilustrativos: o de um que decidiu
adotar o português em suas interações com os filhos; o de um que não fala
português, mas entende; e o de um que não fala português e declara não entender a
língua.
207

1) “A língua débil era o português, assim que em casa, tudo em


português”
Quando seu filho primogênito nasceu, Jordi, cujas línguas iniciais são o
castelhano e o catalão, e sua então esposa, Fernanda, decidiram que cada um
falaria uma língua com o menino: ele optou pelo catalão e ela, pelo português, para
que o garoto aprendesse ambas – seguindo o modelo em que ele foi educado, com
a mãe falando-lhe em catalão e o pai, em espanhol. Embora essa política linguística
familiar tenha sido colocada em prática, os resultados não foram os esperados, o
que levou o casal a reavaliá-las – e fez com que Jordi decidisse trocar o catalão pelo
português em casa, conforme ele explica:

EXCERTO 48 – Jordi, pai de Daniel, 8 anos, e Pedro, 4 anos


JORDI: Bem, pra decidir que língua que se fala lá em casa?
Inicialmente a ideia era cada um a dele. Feito como fazem os meus
pais, a minha mãe fala catalão e o meu pai fala espanhol, e sempre
com os filhos não tem o mínimo problema, sou criança bilíngue total.
Então eu tinha pensado fazer o mesmo. [...] Quando Daniel começou
a falar, vimos que respondia em catalão e então decidimos que aí não
pode ser. Fernanda me pediu se eu poderia fazer um esforço de falar
com o meu filho em português, eu disse: só com uma condição. Não
esteja batendo o pé pelas minhas falhas. Eu sei que eu vou fazer
falhas. E que nosso filho vai ter falhas por causa das minhas falhas.
Se você vai estar cobrando, pra mim vai ser um inferno. Eu quero tá
tranquilo, relaxado, se eu falar errado e você percebe, por favor, me
corrija, mas não estar em cima batendo o pé. [...] E Fernanda então
falou: prefiro que falem meus filhos português com alguns erros que
não falem. Então a língua débil era o português, assim que em casa,
tudo em português.

A família refez seu planejamento, de modo que o pai, catalão, passou a


se dirigir exclusivamente em português ao filho. O processo de mudança de língua
tampouco aconteceu de maneira “natural”, mas requereu esforço, e quem fez o
esforço extra para utilizar uma língua diferente de suas línguas habituais (catalão e
espanhol) e aumentar a exposição dos filhos ao português foi o progenitor não
brasileiro, o qual, como se vê no caso de Jordi, pode ter um papel decisivo na
transmissão da LH.

EXCERTO 49 – Jordi, pai de Daniel, 8 anos, e Pedro, 4 anos


JORDI: Demorei 15 dias, não é uma coisa imediata, não é “quero
falar português”, não. Tem um processo. Mas depois de 15 dias já
consegui me adaptar e me acostumar e até hoje sem problema. Tanto
208

é assim que a gente, não sei se você reparou, continua mantendo.


[...]
PESQUISADORA: Mas ele passou a usar o português?
J: Sim, claro, como a língua era português, ele passou a usar o
português. Ele não usava o português nesse aspecto era por
preguiça, não era porque não conhecesse. [...]
P: E aí, voltando, quando ela engravidou dos meninos, vocês
chegaram então a definir que cada um falaria a sua língua, e aí
começaram a experimentar esse modelo...
JI: Com Daniel, sim. E com o Pedro, não, com o Pedro já era o
modelo que funcionava.
P: Com o Pedro então vocês já estavam falando português os dois?
J: Sim, sempre nas famílias sempre a escolha é [com] o primeiro
[filho].

Nas palavras de Jordi, o fato de ele e a mãe das crianças falarem


português com os meninos tornou-se, assim, “o modelo que funcionava” e atendia
às expectativas dos pais – flexíveis, também, em relação a como as crianças
falariam português e aos “erros” que poderiam cometer –, pois foi nessa dinâmica
que eles atingiram o objetivo que se propuseram: que os filhos falassem português –
um modelo que foi mantido inclusive após a separação do casal. Um caso análogo é
o de Laia que, após a separação do companheiro brasileiro e do retorno deste ao
Brasil, decidiu adotar o português com o filho, já que o pai não estaria presente para
ensiná-lo.
Assim, a exposição e quantidade de input em português proporcionadas
pelos progenitores não brasileiros no caso de Laia e Jordi foram um fator importante
para que o projeto de transmissão da LH nessas duas famílias fosse bem-sucedido,
ou seja: atendesse às expectativas dos pais até o momento. Graças ao
envolvimento deles, a família pôde redirecionar o planejamento linguístico que tinha
em andamento e não proporcionava os resultados desejados. Portanto, nesses dois
casos, pode-se dizer que o diferencial para que os resultados desejados pelos pais
fossem alcançados – que os filhos falassem português – foi proporcionado pelos
progenitores não brasileiros.
Essa constatação, por si só, já é um dado que revela a importância de
que as pesquisas em transmissão linguística intergeracional considerem não só os
falantes iniciais do idioma que se deseja transmitir e que se trabalhe, no caso do
PLH especificamente e no de outras LHs em geral, com outros paradigmas de
modelos de falantes que não sejam os “falantes nativos” ou o cidadão nacional
monolígue. Os exemplos de Jordi e Laia são interessantes não só por eles serem
209

falantes fluentes do português, mas também em relação à atitude linguística que


transmitem: somos falantes de outras línguas, mas, com você, escolhemos falar
português, ainda que continuemos a usar nossas outras línguas em outros âmbitos.
Essa atitude conta positivamente para a valorização da LH que se deseja transmitir.

2) “Ele não fala português, mas me apoiou 100% nessa decisão”


Há outras maneiras mais sutis – e não menos importantes – de que os
progenitores não brasileiros apoiem o ensino de PLH aos filhos. Nem sempre esse
apoio é tão evidente como nos casos de Laia e Jordi, que decidiram consciente e
explicitamente deixar de utilizar seu idioma inicial com os filhos para favorecer o
português.
Vários dos entrevistados relatam como o fato de o progenitor não
brasileiro ser capaz de entender português, mesmo que não necessariamente o fale,
beneficia e favorece o uso da língua de herança dentro da família. Essa postura e
disponibilidade da parte não brasileira do casal pode, igualmente, funcionar como
um diferencial na frequência de uso do português pela mãe ou pai brasileiro com o
filho:

EXCERTO 50 – Moema, mãe de Mariana, 7 anos, e Laura, 4 anos


MOEMA: Ele [o marido] totalmente de acordo que ela [a filha]
aprendesse o português. [...] Me apoiou por completo, cem por cento,
nessa decisão.
PESQUISADORA: Você comentou que, apesar de você falar
castelhano, ele não fala português.
M: Não, porque ele diz que dá vergonha. Ele entende, mas tem
vergonha. Não se atira. Como eu não me atiro no catalão, também
por vergonha. Mas ele entende perfeitamente o português. [...]
P: Então aqui em casa, quando vocês estão no dia a dia de vocês,
não é um problema você falar em português com as meninas? Ele
não se sente excluído porque ele não entende?
M: Não, não. Porque ele entende. Virou um hábito, eu em português
com as meninas, ele em castelhano, digamos que é uma troca para
ambos.

Segundo a representação de Moema, o fato de que o marido entenda


português propicia que ela se dirija primordialmente em português às filhas,
ampliando a quantidade de input que lhes proporciona – situação também registrada
por Souza (2015). A percepção de Moema é de que, mesmo sem falar português, o
marido “apoiou por completo, cem por cento, nessa decisão”. Ela, além disso, via a
210

diglossia dentro de casa como “uma troca” para ambos os adultos, pois permitia que
ela aprendesse mais espanhol e ele, mais português.
Nas famílias da APBC, pode acontecer que a chegada de uma criança
que tem o português como um de seus idiomas seja um fator que potencialize o
aprendizado de português pelo progenitor não brasileiro. De maneira análoga, Boix-
Fuster (2009a) menciona alguns casos de famílias em que os pais, falantes de
espanhol, melhoram e aprofundam seus conhecimentos em catalão por influência
das crianças. Isso porque os filhos são escolarizados em catalão, o que faz com que
se tornem falantes fluentes e competentes neste idioma e o torna bastante relevante
para suas relações sociais. Boix-Fuster chama esse processo, em que filhos falantes
de catalão potencializam as competências de pais falantes de castelhano na língua
catalã, de “catalanização de baixo pra cima” (BOIX-FUSTER, 2009a).
Conforme relata Rosana no excerto 51, o nascimento da filha, com quem
ela iria falar em português, alterou as dinâmicas linguísticas anteriores do casal e
pode ser visto como outro exemplo de ajuste nas PLFs, promovendo o
“abrasileiramento de baixo pra cima” nas relações com o marido. Nesse caso, o
espanhol era a única língua de interação do casal e, com o nascimento da filha, o
português passa a ser a língua em que Rosana interage com ele quando a filha está
presente – o que, aliás, ela também vê como “natural”:

EXCERTO 51 – Rosana, mãe de Flora, 3 anos, e Jana, 3 meses


ROSANA: Eu comecei a falar em português com ele [o marido] a
partir do momento em que a Flora nasceu. Porque antes disso ele já
entendia português, porque a gente ia pro Brasil [...] Aí quando ela
nasceu que eu falava só português [...] e ele foi aprendendo também,
junto, e eu comecei a falar direto com ele em português também.
PESQUISADORA: E pra ele não tem nenhum problema na dinâmica
dentro de casa de você tá falando em português com as meninas, ele
não se sente incômodo?
R: É supernatural. Até porque eu já falo direto em português com ele
também. Porque se eu tô falando coisa que é em geral, pra todo
mundo, tipo: “Juan, vai lavar a mão dela”, eu falo em português.
“Coloca o pijama que eu tô vendo o jantar”. Ou: “Pega água pra ela,
ela quer água”. Aí depois que ela dorme, quando a gente tá
conversando, aí eu falo espanhol com ele.

Em síntese: não é necessário que o progenitor não brasileiro fale o


idioma para apoiar o projeto de transmissão do PLH na família. O fato de que seja
capaz de entender a língua já é um apoio importante, pois aumenta a exposição da
211

criança à língua ao permitir que o pai ou mãe brasileiro use o português num número
maior de situações, não se restringindo às interações com os filhos, mas expandindo
as situações também para as interações entre os adultos do núcleo familiar. Quando
é esse o caso, e o progenitor não brasileiro compartilha interações em português
com a criança, participa das “formas cognitivas de vinculação afetiva” (DANTAS,
1992; WALLON, 1987) nesta língua, ainda que não chegue a falá-la.

3) Eu, sozinha, eu vejo que não vou conseguir ensinar o português


O último caso que apresento para exemplificar o papel que os
progenitores não brasileiros podem ter no projeto de transmissão do PLH é o de
Gabriela, cujo marido, segundo suas representações, não fala nem entende – ou
tem pouca disponibilidade para entender – português. O contraponto dos excertos
52 e 53, de Gabriela, com os excertos 50 e 51, de Moema e Rosana, ajuda a
entender o quanto o fato de o outro progenitor entender português pode ser um
diferencial para a exposição das crianças à língua:

EXCERTO 52 – Gabriela, mãe de Bárbara, 3 anos


Eu, sozinha, eu vejo que não vou conseguir ensinar pra Bárbara o
português. [...] De ensinar de que ela pelo menos possa entender o
português e falar em português algum dia. Eu, sozinha, eu vejo
incapaz, porque, de segunda a sexta, a correria de escola, trabalho,
casa, eu vou falar com a Bárbara o quê? Uma hora só de português
por dia? É muito pouco pra que ela realmente possa aprender o
idioma desde pequena e que isso fique gravado na mente dela; tem
que ter mais tempo. E é o tempo que eu não tô dando pra ela. E de
repente nessa hora [que eu tenho de português com ela] meia hora o
meu marido já entra e eu troco, meia hora que eu já não tô falando
com ela em português.

EXCERTO 53 – Gabriela, mãe de Bárbara, 3 anos


PESQUISADORA: E o pai da Bárbara, ele não fala português?
GABRIELA: Não, não fala português.
P: Você acha que ele tentou aprender... ou não exatamente...?
G: Não. Não porque... como eu posso te explicar... Não. E ele não
aprenderia porque... primeiro que ele não gosta, nenhum idioma, ele
não gosta, até o catalão, que é o idioma dele, ou seja, que ele tem
amigos em catalão, ele viveu aqui, ou seja, teve toda a vida dele. Ele
não fala, por questão de “eu não vou falar esse idioma”, imagine um
idioma que pra ele só é o idioma da filha, da esposa e da filha, então
pra ele, não. Sim que às vezes eu falo em casa, em português, pra
Bárbara se familiarizar melhor com o português, mas não que ele
tenha a obrigação de aprender pra poder ajudar a Bárbara. Isso ele
212

não quer, esse compromisso, nunca. [...] Tá decidido que o idioma


dele é espanhol e acabou, daí ele não sai.

No caso de Gabriela, assim como nos de Moema e Rosana, ela é a


única dentro de casa que pode proporcionar à filha a exposição à língua de herança
para que esta seja aprendida – a quantidade de input, uma das variáveis que influi
no grau de proficiência que o aprendiz terá da língua. Porém, além de Gabriela ter
pouco tempo em seu dia a dia para conviver com a filha, a possibilidade de que esta
convivência se dê em português é tolhida pelo fato de o marido não saber
português, o que faz com que utilize menos o idioma com a filha do que poderia.
Gabriela se sente “sozinha” e questiona se, nessas circunstâncias, será
capaz de cumprir o que se propôs: “vejo que não vou conseguir ensinar pra Bárbara
o português” – o que, pode-se dizer, tem um impacto em sua autoconfiança
linguística e faz com que veja de maneira muito desfavorável os recursos que tem a
seu alcance. Ora, não necessariamente uma exposição a longo prazo de 30 minutos
ou uma hora diária é pouco tempo para o aprendizado de um idioma – ao contrário,
há cursos de línguas com resultados eficazes com carga horária de duas ou três
horas semanais. Porém, a percepção de Gabriela é de que “é muito pouco”, talvez
porque esse tempo seja “o tempo que eu não tô dando pra ela” ou porque, como os
excertos 9 e 19 parecem sugerir, suas expectativas em relação aos usos linguísticos
da filha se espelham nos do cidadão nacional monolíngue. Cabe, ainda, questionar
se as mesmas condizem com a idade que a garota tem.

Nesta seção, me propus a lançar um pouco de luz sobre a figura do


progenitor não brasileiro no projeto de transmissão do PLH e nas políticas
linguísticas da família. Quando pensamos no ensino, aquisição ou transmissão de
línguas, muita atenção se dá ao “uso” da língua, ao que é dito, ao que é produzido, e
pouco se olha para os silêncios, para as produções e interações que não se dão na
língua-alvo. Os silêncios, no entanto, não são iguais. Há silêncios mais acolhedores
e entendedores, que permitem a voz da LH e se aproximam dela, e há silêncios que
calam e cavam distâncias.
A atitude linguística do progenitor não brasileiro, quando positiva, no
sentido de adotar o uso da LH ou acolher os usos que nela se configuram a seu
redor, pode ser importante no que diz respeito à valorização dessa língua,
213

prestigiando-a e respeitando-a. Graças a ele, as crianças podem ter como referente


positivo um outro modelo de falante, o “não nativo”, que talvez esteja mais próximo
de suas competências linguísticas que o do cidadão nacional monolíngue, o
brasileiro monolíngue em português; podem compreender que esse falante ou
entendedor não nativo também é um exemplo de cidadão plurilíngue, sendo capaz
de se apropriar dessa língua que não é dele e torná-la sua, torná-la útil, usada no
seu dia a dia, em sua intimidade, inclusive como forma de vinculação afetiva com os
filhos. Considero tais elementos importantes para a maneira como essas crianças
poderão construir sua identidade a partir da relação com a LH.

ii-c) Representações de práticas linguísticas x afetividade

Como exposto na seção i-c, entende-se que o valor afetivo do PLH para
os pais é diferente do que pode ter para os filhos. A proficiência nos usos linguísticos
para uns e outros é igualmente diferente em ambas as gerações e, assumindo que o
mais habitual seria as crianças terem maior proficiência num dos idiomas
majoritários da sociedade de acolhida, o uso ou não uso da LH pelos filhos é algo
que mexe com aspectos emocionais desses pais, sendo capaz de deixá-los “felizes”
ou “chateados”:

EXCERTO 54 – Rosana, mãe de Flora, 3 anos, e Jana, 3 meses


[ao ler com a filha, a mãe costuma traduzir as histórias em castelhano
ou catalão para o português. Mas uma história em catalão lhe
pareceu difícil de traduzir e ela a leu para a criança em catalão.]
Ela fala: “Não, mamãe, em português”. E eu falo: “Não, Flora, eu não
consigo, é muito difícil!”. Aí ela fala: “Ah, mãe, esse livro não, eu não
gosto” [...] Ela consegue entender que eu não estou falando em
português e pede pra falar em português. Esses dias eu fiquei muito
feliz que ela pediu: “Não, mãe, fala em português”.

EXCERTO 55 – Camila, mãe de Dora, 7 anos, e Luís, 3 anos


Eu posso falar que a Dora e o Luís, que fala pouquíssimo, mas
comigo ele só fala em português, eles falam com muita naturalidade e
eu tô super feliz com isso. Agora, por exemplo, quando eu vou na
piscina, tem uma mãe brasileira que ela só fala em português com a
filha dela, e a filha dela não fala português. Se isso acontecesse
comigo, não é o meu caso, eu ia ficar chateada.
214

Complementando a fala de Camila no excerto 55, Rosana, no excerto 18,


declara que se a filha, no futuro, se recusar a falar português com ela “vai ser um
drama pra mim”. Na linha do que Pavlenko (2005) propõe, deve-se reconhecer que o
uso do português evoca nos pais uma série de vivências e memórias às quais outras
línguas não chegam, daí que haja uma resposta a nível emocional quando esta
língua é usada pelos filhos ou quando a expectativa de seu uso se frustra. Outro
exemplo de resposta emocional é ilustrado por Moema, no excerto 27, a qual
associa o uso do português com outros brasileiros como um momento de prazer.
Mas não é apenas para os pais, que se constituíram como sujeitos e
tiveram grande parte de suas vivências até a idade adulta nesta língua, que o
português provoca respostas afetivas. Por se dar em contextos naturais
(PAVLENKO, 2005), o aprendizado de PLH pelas crianças está marcado pela
afetividade – a primeira delas, na própria relação com os pais, na língua como forma
cognitiva de vinculação afetiva. Ou, retomando a abordagem globalizante de Wallon
(DANTAS, 1992; WALLON, 1987), como experiências de linguagem cujo nível
cognitivo é indissociável do afetivo.
Nesse contexto, deve-se levantar a possibilidade de que a experiência na
LH, por ser menos frequente que na(s) língua(s) majoritária(s), pode exigir mais
esforço da criança aprendiz de herança a tal ponto que não produziria uma
experiência afetiva agradável, não constituindo uma forma cognitiva de vinculação
afetiva eficaz. Como exemplifica Bastardas-Boada (2016), com dados de uma
família sino-catalã em que a mãe desistiu de falar em chinês com o filho, pois o uso
do chinês como LH distanciava a criança da mãe afetivamente, uma situação assim
pode levar a família a abandonar o projeto de transmissão da LH. Segundo dados da
entrevista com o pai da criança, matriculada em creche que atende a faixa etária de
0-3 anos:

– Entrevistadora: então. no começo. você falaria em catalão e ela falaria em


chinês com ele. vocês decidiram\
– J.S.: sim. nós decidimos\
– Entrevistadora: então vocês falavam e voltaram atrás\
– J.S.: voltamos atrás porque:. por causa da afetividade do menino. para
não sacrificar a afetividade dela com ele. percebemos que o garoto vinha
muito mais comigo que com ela. [...] porque, claro. ela falava em chinês.
mas ele a via como uma coisa estranha. porque você diz. todo mundo
falava com ele em catalão. então ele não podia. quer dizer. não tinha jeito\
(BASTARDAS-BOADA, 2016, p. 295)
215

Assim, deve-se ter presente que, embora habitualmente a LH seja parte


das primeiras experiências linguísticas do aprendiz de herança e das formas
cognitivas de vinculação afetiva que terá com seu(s) progenitor(es), há ao menos
outros dois cenários possíveis para essa relação inicial ao pensar as LHs,
identificados ao longo da pesquisa. O primeiro, como relatado por Bastardas-Boada
(2016), de que o uso da LH distancie progenitor e filho, não colaborando para que se
construa o vínculo afetivo (e levando, consequentemente, ao abandono do projeto
de transmissão da LH na família); o segundo, conforme relatado por Souza (2015),
de que a LH não seja usada nos anos iniciais de vida e seu aprendizado seja
iniciado num momento posterior (no caso, quando as crianças tivessem quatro anos
de idade). Essas primeiras experiências com a LH, sejam quais forem, irão marcar a
maneira como o sujeito se relaciona com a língua.
Embora, pelo desenho da pesquisa, não haja entre os dados registros das
representações das crianças, as representações das professoras, como no excerto
56, trazem um contraponto interessante às representações dos pais sobre como
esse aprendizado e as vivências linguísticas são experimentadas por um grupo de
aprendizes no contexto da aula de PLH. Elas ajudam a entender que espaço
emocional o PLH irá ocupar nas experiências de vida dos aprendizes – um espaço,
como se mencionou, diferente do que tem para os progenitores.

EXCERTO 56 – Professora 2
E eu percebo que essa questão do uso da língua tá muito vinculada
ao momento que eles fazem o resgate emocional e que eles trazem
muito a questão da família, a questão do Brasil, das férias, porque,
em geral, a maioria deles viaja ao Brasil todo ano. [...]
E de ver, de perceber que elas estão ali se comunicando, e que
existe um vínculo com o Brasil, porque isso também é muito
importante, não é só o português, o português. É “por que é mesmo
que eu falo essa língua?” Ah, porque existe um lugar maravilhoso,
com sol – que é como eles veem [risos] [...], que é só férias e não tem
nenhum perigo, que se chama Brasil, onde tá geralmente as avós [...],
com cachorros, que fazem sorvete, que fazem batata frita, enfim...

Tanto os pais como as professoras coincidem que os períodos longos de


férias passados no Brasil são oportunidades valiosas de usar e aprender a língua, já
que as crianças estão num ambiente de imersão linguística em português e, em
geral, a família do Brasil e o entorno não usam as outras línguas do repertório da
criança. Esta professora relata:
216

EXCERTO 57 – Professora 1
Às vezes a gente sai de férias e quando a gente volta de férias os
alunos que não falavam nada de português tão falando superbem.
Mas esses alunos também viajam pro Brasil. Tem casos como a
Isabel, que no primeiro semestre falava comigo só em espanhol e
agora só fala em português. Só. Depois das férias ela só fala
português comigo.

Ao contrário do que prega a educação formal, segundo a representação


da professora no excerto 57, no caso do aprendizado de PLH não é na aula que a
aluna se desenvolve melhor e aprende mais: é nas férias. É no período de
descanso, de lazer, de menos obrigações e mais tempo livre e brincadeiras, de
reencontro familiar que o aprendizado da língua é potenciado. Estas experiências
emocionais irão marcar a relação do aprendiz com a língua e, como se verá nas
próximas seções, acompanharão a criança nos momentos de aprendizagem mais
formal em sala de aula.
Por último, complementando o entendimento das respostas emocionais
que o uso do português pode ter nos brasileiros adultos imigrados, esta professora
comenta como o uso da língua a ajuda a “controlar os sentimentos” e a “saudade”:

EXCERTO 58 – Professora 1
Às vezes eu falo pro Jorge [marido], a saudade, a gente até tá
controlando mais a saudade porque a gente fala em português o
tempo inteiro, eu trabalho com o português, eu encontro os
brasileiros, existem festas brasileiras, comida brasileira que a gente
come aqui, então a gente acaba controlando até os nossos
sentimentos aí.

iii-a) Representações de intervenção (APBC) x identificação

Ao longo de toda a seção iii, nos componentes das políticas linguísticas


identificados por Spolsky (2004; 2012), considera-se, para efeitos de análise, que a
“intervenção” nas políticas linguísticas das famílias do estudo corresponde aos
âmbitos da APBC – embora, evidentemente, a intervenção nas práticas linguísticas
seja constante e ocorra de muitas formas, e não só por agência dos adultos, como já
pontuado em alguns exemplos anteriormente. Porém, para a organização e análise
das representações, considero que é ao participar desse novo espaço que a família
217

declara deliberadamente a intenção de que as crianças estejam mais expostas ao


PLH e, de alguma forma, aprendam mais – intervindo, assim, em suas PLs.
Pretendo exemplificar, a partir das representações estudadas, o que uma
associação ou as aulas de PLH podem agregar às PLs da família como um novo
âmbito, do mais local (doméstico) a um mais amplo (comunidade de fala), no modelo
das “camadas de cebola” (MCCARTY, 2011; RICENTO e HORNBERGER, 1996),
ou, no caso mais específico do PLH, no tripé família, comunidade e professor (LICO,
2015b).
Assim, como as próprias práticas linguísticas em português permitem
processos de identificação com a brasilidade, cabe num primeiro momento compilar
as representações das práticas realizadas em português no âmbito da Associação
(Tabela 10, a seguir) e observar como elas se diferenciam daquelas realizadas
dentro de casa (Tabela 9).

1 Os pais levam os filhos às aulas de 6 A família frequenta os eventos da APBC, nos


Língua e Cultura do Brasil da APBC quais predomina o uso do português.
2 Os pais priorizam as aulas de Língua e 7 A família estreita vínculos de amizade com
Cultura do Brasil da APBC em detrimento pessoas que conheceu na APBC, com quem
de outros compromissos da família aos podem falar português
sábados de manhã
3 Os pais frequentam, com os filhos, as 8 Os pais procuram que os filhos tenham
aulas de capoeira para toda a família em amigos de sua idade que também falem
português da APBC português
4 A família utiliza a biblioteca da APBC e 9 Os pais procuram contratar baby-sitters e
leva livros em português para ler em outros serviços (manicure, limpeza,
casa transfers...) dentro da comunidade brasileira,
os quais são oferecidos em português.
5 As famílias frequentam bares e 10 Canta-se parabéns aos aniversariantes em
restaurantes brasileiros durante ou após português durante as aulas da APBC ou
as atividades da APBC, onde podem ser quando há colegas da APBC nas festas (e
atendidas em português. come-se brigadeiro)

Tabela 10 – Representações das práticas realizadas pelas famílias da APBC


para promover a transmissão do PLH com apoio da APBC

No âmbito da APBC, um dos espaços privilegiados das práticas


linguísticas em português é o momento das aulas – não apenas pelo trabalho
pedagógico com os alunos, mas porque a criação do “curso” implica a regularidade
dos encontros semanais entre os associados e permite, ao fazer com que os adultos
218

circulem e convivam fora da sala de aula nesse mesmo espaço, outras


possibilidades de práticas e encontros, como explica um membro da diretoria47:

EXCERTO 59 – Membro da diretoria


PESQUISADORA: Essa associação foi criada pra dar aulas de
português pras crianças?
MEMBRO DA DIRETORIA: Olha, na realidade ela não foi criada pra
dar aula de português pra crianças... aí eu me remeto um pouco a um
dos fundadores [...] que começou com a ideia de reunir pais e filhos
com a intenção de criar um vínculo entre as famílias brasileiras com
filhos. Se não fosse especificamente dar aulas [...] também incluía
encontros. Encontros churrascos, feijoadas, passeios. [...] E acabou
que as aulinhas acabaram vingando. Porque as festas e os eventos
são coisas como... esporádicos. Você não vai fazer festa e encontro
todo fim de semana. Então a necessidade desse contato regular
acabou acontecendo com as aulinhas.

A narrativa de Camila, no excerto 60, sobre suas primeiras impressões ao


conhecer a associação, explica como a regularidade dos encontros proporcionados
pelas aulas fez com que o momento de esperar que a filha realizasse a atividade
fosse identificado como um espaço de brasilidade, cuja utilidade era quase maior
para a mãe que as próprias aulas da filha, pela importância desse momento para
ela, mãe, que podia conversar em português com um grupo de outras mães – um
momento precioso. Essa representação de que estar na APBC também é um
momento “dela”, da entrevistada, foi mencionada de modo similar por Moema, no
excerto 27, para quem estar na APBC é “meu mundo”.

EXCERTO 60 – Camila, mãe de Dora, 7 anos, e Luís, 3 anos


CAMILA: Me senti à vontade. E gostei. E depois desse primeiro
contato eu continuei levando a minha filha aos sábados porque assim
eu batia papo com as mães de manhã [risos]. Eu não tava muito
preocupada com o que ela tava aprendendo ou não naquele
momento. Então eu me encontrava com as mães e... foi isso.
PESQUISADORA: Então a aula era pra você também?
CAMILA: Era pra mim. Era excelente.

Camila mencionou não estar muito preocupada com o que a filha estaria
“aprendendo” na aula. De fato, a maioria dos participantes declara que, embora
reconheçam a APBC como um espaço onde se usa e se pratica a língua

47
Para preservar a confidencialidade dos entrevistados, as falas de membros da diretoria são
identificadas apenas como “Membro da diretoria”, embora tenham sido proporcionadas por mais de
uma pessoa.
219

portuguesa, a principal motivação ou expectativa para que os filhos participassem


das aulas de língua e cultura do Brasil não era o aprendizado de conteúdos
linguísticos – um entendimento muito importante, que será melhor explorado na
seção iii-b. Por exemplo, nos excertos 61 e 62, Iara e Luísa comentam porque levam
as filhas as aulas de português da APBC:

EXCERTO 61 – Iara, mãe de Diana, 8 anos


Mas a ideia... eu acho que era um espaço de convivência e que os
nossos filhos pudessem falar, praticar com uma língua, né? Conviver
com a língua, que nesse caso é o português. Eu queria sociabilizar
um pouco a Diana com essa convivência do português, na verdade.

EXCERTO 62 – Luísa, mãe de Olívia, 3 anos


Eu queria que ela tivesse um outro espaço onde que ela podia ver
que existem outras pessoas que falam português também, que era
normal, que não era só com a mãe nem só dentro de casa que ela
falaria o português.

Na linha do exposto por Camila no excerto 60, as representações de Iara


e Luísa nos excertos 61 e 62 revelam que ambas levam as filhas às aulas para que
elas possam conviver em português e ter outros referentes, diferentes dos de casa,
do uso da língua.
A ideia de promover um espaço de uso e convivência em português está
relacionada ao sentimento de identificação com o grupo, à possibilidade de que os
filhos possam participar de um grupo de crianças com as quais compartilham
elementos comuns como a origem familiar, a língua e as práticas culturais
relacionadas a esse contexto. Tal desejo pode estar presente também nos
progenitores não brasileiros, como exemplifica Jordi, catalão, a seguir, ao lado de
Rosana, brasileira, nos excertos 63 e 64:

EXCERTO 63 – Jordi, pai de Daniel, 8 anos, e Pedro, 4 anos


O fato de que num lugar onde tem outras crianças da mesma
realidade, pai diferente, mãe diferente, que usam isso [português],
poxa, já isto serve pra alguma coisa. Não é uma coisa só que estão
implicando lá em casa, é uma coisa que tem utilidade. E, poxa, tem
conhecimentos. [...] Agora vou no Brasil visitar a família e eu entendo
o que estão falando. Não digo das palavras, digo do contexto. Pouco
a pouco isso faz que a identidade diga: poxa, faço parte disso.

EXCERTO 64 – Rosana, mãe de Flora, 3 anos, e Jana, 3 meses


A Associação eu acho que é uma ajuda. Eu vejo mais pelo lado da
cultura também, das amizades, de ela se sentir parte de um grupo,
220

que não só ela fala português, que não só ela tem uma mãe
brasileira, que não só ela come brigadeiro, que não só ela tem a festa
como é a festa dos brasileiros. Que ela se identifique, que a amiga foi
pro Brasil e tem as Havaianas, ah não, que ela tem as Havaianas
igual. Que ela se identifique. Eu acho que isso vai ajudar muito. Eu
não poderia fazer isso sozinha. Mas o lado de falar... claro, é bem
mais a minha parte, eu acho.

Rosana, além de reconhecer que pertencer ao grupo que usa o português


é compartilhar uma série de práticas específicas (festas, roupas, comidas), diz que
não poderia proporcionar sozinha à filha essas vivências associadas ao coletivo –
diferente do aprendizado linguístico, que ela reconhece ser mais sua
responsabilidade. Observe-se que essas duas representações revelam a percepção
de que a APBC ajuda os pais num projeto que já existe em suas casas: “A
Associação eu acho que é uma ajuda”, diz Rosana, no excerto 64. Participar das
aulas serve para os filhos verem que o uso do português “não é uma coisa só que
estão implicando lá em casa”, diz Jordi, no excerto 63.
Nesse sentido, como espaço de identificação, a participação nas aulas
talvez não possa ser dissociada da participação na própria Associação e no que
ocorre nos espaços fora da sala de aula, como ilustra Gabriela, no excerto 65,
comentando a importância dos eventos, como a festa junina:

EXCERTO 65 – Gabriela, mãe de Bárbara, 3 anos


Até porque pra que Bárbara veja as festas nossas, culturais, coisa
que não tem como explicar pra ela. Vou contar uma historinha pra ela,
mas ela vai ficar só na historinha. Se ela vê [a festa] é muito maior
que uma explicação.

A percepção de que a APBC é um “espaço de identidade”, que não se


restringe à sala de aula, mas ajuda a “difundir e divulgar” a cultura brasileira, dando
visibilidade a ela de modo positivo e permite às crianças se identificarem como
sujeitos plurilíngues no espaço público, pertencentes a “duas culturas”, existe
também entre as professoras. No excerto 66, além dos pontos mencionados, a
professora reconhece ainda a importância desse espaço como parte de um projeto
que existe nas famílias, pra valorizar “essa comunicação [em português] da mãe
com o filho”, e, similar ao que expõem Jordi e Gabriela, nos excertos 63 e 64, “dele
[filho] saber que tem outras crianças que falam o idioma dele, que ele não tá sozinho
nesse mundo”:
221

EXCERTO 66 – Professora 3
Acho que também ajuda a difundir ou divulgar a cultura brasileira
aqui, porque acaba tendo projeção em outras atividades da cidade,
então tem carnaval, quem faz a oficina é a APBC, ou uma feira de
associações, isso é legal também, porque você tá mostrando a
cultura brasileira... claro, a educação das crianças, porque eles têm
dois lados, têm duas culturas, e uma delas tá apagada, porque é isso,
eles não têm tanta relação com essa cultura, então esse espaço é um
espaço de identidade, de se conhecer, de saber que parte dele vem
desse lugar, que eu acho que é muito importante [...]. Então ter um
espaço assim eu acho que deve ser muito bom pras famílias, pra
valorizar essa comunicação da mãe com o filho, e dele saber que tem
outras crianças que também falam o idioma dele, que ele não tá
sozinho nesse mundo.

Retomando o momento da aula, embora alguns progenitores declarem


que a preocupação principal é que as crianças socializem em português, sendo
secundário o tipo de atividade realizada nesse momento, outras representações
valorizam o fato de que os filhos possam aprender conteúdos e práticas que eles
não poderiam ensinar, porque não conhecem – uma percepção que é mais
acentuada nos progenitores estrangeiros, mas não exclusiva deles:

EXCERTO 67 – Jordi, pai de Daniel, 8 anos, e Pedro, 4 anos


Pra mim, sinceramente, minha preocupação, sendo eu estrangeiro,
[é] que transmita conhecimento da cultura infantil deles. Pra mim, é
obrigatório que eles conheçam quem é Turma de Mônica, que eu não
vou conseguir transmitir isso. Te diz Turma de Mônica, te diz saci
Pererê, te diz sapo cururu, te diz um montão de coisas que pra quem
nasce em Brasil são básicas e que, aqui, um pai como eu nem
conhece.

EXCERTO 68 – Iara, mãe de Diana, 8 anos


Ela sempre comenta o que eles estão aprendendo, agora são os
animais em extinção, o ano passado foi o tema das lendas... ela até
me explicava lenda que eu não sabia, lenda da Matita Perê.

Tais representações exemplificam como a chamada “cultura brasileira”,


com a qual a Associação, como instituição, se identifica, e com a qual os pais
desejam que os filhos o façam, não vem dada pronta, mas é uma constante
construção, uma reinvenção (HALL, 2011; GARCÍA CANCLINI, 2013). Iara, apesar
de ser brasileira, não conhece alguns dos conteúdos “brasileiros”, como lendas, que
a filha aprende nas aulas.
222

Nesse aspecto, as professoras funcionam como agentes importantes da


política linguística (e cultural) da instituição, pois são as responsáveis por selecionar
os conteúdos a serem trabalhados – o currículo – e exercem, assim, o papel de
curadoras dessa “brasilidade”. Como revela a professora no excerto 69, há, por um
lado, um trabalho de pesquisa e seleção de conteúdos culturais contemporâneos
(como os livros) e tradicionais (como os da tradição oral) e, por outro, um resgate da
própria experiência pessoal vivida na infância, que norteia o processo.

EXCERTO 69 – Professora 1
Porque como a ideia é trabalhar com língua de herança e tem esse
laço de cultura, de família, é como se a gente tivesse essa ideia de
transmitir, mesmo, essa cultura ou essa tradição, então isso faz parte
um pouco da base do nosso projeto [...] Fiz uma seleção de músicas
tradicionais, fiz uma seleção de parlendas, fiz uma seleção de livros
infantis... fui procurar quem eram os grandes escritores de livro infantil
do Brasil, que era uma coisa que eu já tava fora, [...] uma música que
você consiga desenvolver como uma ciranda. A maioria é um pouco
de resgate do que eu aprendi na minha época de escola e que eu
tenho uma certa memória.

Em diversos momentos das entrevistas, as professoras dão a entender


que, no planejamento das atividades de sala de aula, há um olhar atento para
aquelas que parecem ser as expectativas das famílias. O resgate de conteúdos e
práticas orais, populares, vinculados à cultura da infância, entra nesse leque do “laço
com a família”. As duas representações a seguir, nos excertos 70 e 71, permitem
verificar como essa percepção pode estar alinhada entre pais e professores:

EXCERTO 70 – Adriana, mãe de Elena, 6 anos


Às vezes ela chega em casa cantando uma música que eu já não me
lembrava, ou contando uma história, não sei, uma brincadeira de
criança do Brasil que eu já não me lembrava. É importante ela ir,
porque realmente ela vai aprender coisas que eu não vou poder
passar pra ela.

EXCERTO 71 – Professora 3
Uma coisa é você aprender uma brincadeira de criança, mas você
não tem ninguém pra brincar. A sua mãe contar: “eu brincava [d]isso”,
mas com quem você vai brincar? Ali não, ali tem outras crianças
brasileiras e ele pode brincar de elástico, de... não sei, de alguma
coisa que era a brincadeira da mãe dele. Então aquilo torna... aquilo
dá mais sentido.
223

Assim, ao lado do “ensinar” aquilo que os pais não conseguiriam ensinar


aos filhos, porque não sabem, também adquire importância o “recordar”. E, como
parte desses conteúdos são práticas sociais e coletivas, não basta “saber”, é preciso
“viver”, é preciso “brincar”. O brincar, como uma das principais formas de as crianças
realizarem práticas sociais significativas coletivas, parece estar presente de modo
destacado no currículo:

EXCERTO 72 – Professora 3
E também a gente trabalha muito o lúdico e esse produtos culturais
do Brasil que são as lendas, que são as cantigas, que são as
músicas... brincadeiras, muita brincadeira que a gente trabalha...

Assim, tanto as representações como a observação participante em sala


de aula apontam a que os conteúdos trabalhados na APBC estão em consonância
com os possíveis conteúdos para um currículo de PLH descritos por Destro (2015) e
estruturados em torno de três temáticas: “Meu lugar na LH”, “Minha vida cotidiana” e
“relacionar-se com o outro, com as ideias, com a cultura” – sendo que o brincar se
encaixa como estratégia nos três.
Porém, o posicionamento identitário do professor enquanto brasileiro,
através de uma maneira “brasileira” de se relacionar com as crianças, entra nessa
paisagem do que se ensina em sala de aula e talvez possa ser considerado parte do
currículo. Embora Destro (2015) não considere essa possibilidade abertamente,
reconhece que uma das diretrizes curriculares das iniciativas que trabalham no
modelo de aulas deve ser “criar relações de pertencimento na língua-cultura de
herança” (DESTRO, 2015, p. 125), e, para isso, a postura do professor e sua forma
de se relacionar com os alunos pode contribuir para que os mesmos se identifiquem
com uma maneira específica de “se relacionar”, como exemplificado no excerto 73:

EXCERTO 73 – Professora 2
Eu penso que [para] essas três primeiras turmas, os menores, a base
é a cultura, as cantigas, as festas, o próprio falar, “querida, vem aqui”,
o diminutivo que a gente tanto fala no Brasil, a forma como a gente se
relaciona é muito importante. Isso vai se sedimentando na construção
da identidade deles.

O professor, assim, não é apenas alguém que ensina a “falar” ou a


“fazer”: a partir de seu posicionamento, também é alguém que ensina a “ser”,
224

funciona como outro modelo com o qual a criança pode se identificar pela língua e
pelas práticas compartilhadas. No contexto da aula de PLH, sua relação com este
espaço e com os discursos de brasilidade e quanto ele se aproxima deles – e dos da
cultura de acolhida – também parecem ser aspectos a serem observados.
Por exemplo, embora as três professoras entrevistadas tenham
experiência anterior como professora no Brasil, vale destacar como todas tiveram
que trabalhar sua própria identidade de educadoras para construir representações
do que é ser “professor de PLH”, um conceito cujo entendimento não está bem
definido, como se argumentou anteriormente, já que o campo é recente e passa por
um processo de amadurecimento. Elas relatam que o ensino de PLH tem suas
especificidades e não se corresponde exatamente a suas experiências anteriores
como educadoras, segundo os excertos 74 a 76 revelam. Neles, duas delas relatam
um processo de compreender tais especificidades: “não era a aula que eu achava
que seria”, “vi que realmente não se ensina como uma língua estrangeira”:

EXCERTO 74 – Professora 2
Eu achei tudo muito caótico, porque era um espaço pequeno
realmente, os pais ficavam esperando ali fora, e a professora às
vezes deixava a porta aberta, as crianças entravam e saíam, e eu me
lembro que eu pensei como professora: “nossa, isso não é uma aula!”
E depois eu fui descobrir que realmente não era a aula que eu
achava que seria, porque não era a proposta de uma aula formal
como a gente tem nas escolas.

EXCERTO 75 – Professora 3
Você sente que tá fazendo um trabalho diferente, que não é uma
escola formal, uma escola de arte, uma escola de esporte, é uma
mistura de tudo isso, e é legal também.

EXCERTO 76 – Professora 1
Tanto que eu fiz Letras e nunca ouvi falar disso [PLH]. E perguntei
pra [outra professora da APBC]: eu acho que na minha universidade
não se estuda isso! [risos] Ela falou: Não, não se estuda! [...] Aí eu
fiquei sabendo que era uma coisa nova. E aí eu vi que realmente não
se ensina como se fosse uma língua estrangeira, porque não é a
mesma coisa, é isso.

De fato, nas entrevistas, as três relataram o processo de experimentação


com os conteúdos e rotina de aula até chegarem numa rotina que funcionasse,
incluindo, em alguns casos, a participação dos pais nas aulas como parte do
currículo: eles trazem em primeira mão relatos de como viveram certas práticas
225

culturais no Brasil (Carnaval, São João), os costumes de sua região de origem


(comidas típicas, hábitos, narrativas sobre espaços urbanos e não urbanizados), o
relato biográfico do que viveram na infância (brincadeiras, escola, férias) ou mesmo
conhecimentos específicos – no eixo “ciências”, por exemplo. Neste último caso,
ressalto que o pai participante da atividade de aula não era brasileiro, embora sua
participação tenha sido em português.
Em relação à fronteira física da sala de aula, segundo a representação
das professoras, o espaço parece ser identificado pelas crianças como um ambiente
específico de protagonismo do português. Exemplificando:

EXCERTO 77 – Professora 1
E é isso que me espanta. É por isso que eu falo que algumas
crianças reconhecem aquela sala como uma sala de língua
portuguesa, porque quando elas saem dali, às vezes elas estão ainda
no ambiente da Associação, mas já tão fora da sala, e elas brincam
em espanhol. Entre elas. As mesmas crianças que estavam falando
só em português. [...] Existe esse reconhecimento do lugar, do
espaço. E também da pessoa, enfim, eu falo com eles só em
português, dentro e fora.

Por último, em relação aos aspectos de identificação, vale comentar que a


aula de PLH, além de ser o espaço de práticas e conteúdos relacionados ao que se
identifica como brasileiro, também está composta por momentos nos quais são feitos
paralelos com as vivências não identificadas como brasileiras das crianças,
explorando as possibilidades de construir o que se é com base no que não se é
(HALL, 2011; SILVA, 2012).
Destaco, no período de geração de dados, o projeto “O mundo pelos
brasileirinhos”, realizado sobre a temática do Natal, em que alunos da APBC
trocaram cartas e desenhos com alunos de iniciativas de outros países. A proposta
era que cada aluno contasse, em português, como passa o Natal no lugar em que
mora (ASSOCIAÇÃO DE PAIS DE BRASILEIRINHOS NA CATALUNHA, 2016), o
que lhes deu a possibilidade de expressar e dialogar com outras facetas de sua
identidade na aula de PLH, por exemplo, contando as tradições catalãs da data que
são parte de suas vivências – e comparando-as com as vivências dos brasileirinhos
de outros países. Nesse aspecto, a aula de PLH acolhe paradigmas plurilíngues, já
que promove o conhecimento intercultural.
226

Assim, em relação aos processos de identificação proporcionados pela


APBC, as representações permitem observar que: a APBC é vista como um espaço
que dá à criança a possibilidade de se identificar com um grupo que, segundo as
políticas da instituição, deseja ser percebido como “brasileiro”; a identificação com
as práticas culturais identificadas como brasileiras acontece tanto dentro como fora
da sala de aula; as aulas são identificadas como importantes não só pelo trabalho
pedagógico, mas por ser o que proporciona a regularidade dos encontros entre os
associados da APBC dentro e fora de aula e dialogam com um projeto de
transmissão do PLH existente nas famílias. Para os pais, a APBC é um espaço de
identificação que pode promover bem-estar; as professoras são elementos
importantes na construção dessa representação de brasilidade, pois são as
responsáveis por selecionar conteúdos “brasileiros” para o trabalho em sala de aula;
num primeiro momento, as professoras não se identificavam como “educadoras de
PLH” e esse entendimento, bem como aquilo em que consiste a aula de PLH, foi
construído (e continua em construção).

iii-b) Representações de intervenções (APBC) x proficiência


linguística

Na seção iii-a, foi explorada a forma como a APBC é identificada pelos


pais e professores. Um dos aspectos que se destaca, em relação às práticas
linguísticas, é que o fato de algumas famílias frequentarem a associação e
matricularem os filhos nas aulas não está relacionado nem exclusiva nem
principalmente aos aspectos linguísticos do aprendizado. A seguir, aprofundarei um
pouco mais essas representações.
A expectativa de que as professoras sejam as responsáveis por ensinar a
língua às crianças e potenciar suas competências linguísticas pode-se dizer que é
bastante moderada. Por um lado, alguns entrevistados assumem claramente que
essa responsabilidade é dos pais, como Rosana, no excerto 64, para quem “o lado
de falar... claro, é bem mais a minha parte”, ou Moema, no excerto 29, que declara
“ter trabalhado com as filhas” para que elas falassem português. Também Jordi e
Adriana, nos excertos 78 e 79, compartilham essa percepção:

EXCERTO 78 – Jordi, pai de Daniel, 8 anos, e Pedro, 4 anos


227

Então, foi nesse aspecto que dizemos: poxa, é importante que ele
esteja com outras crianças. Ele já falava português. O que era a
APBC, sinceramente, ele não tinha muita necessidade, ele realmente
já sabia. [...] Mas, como ensinar que as crianças também usam e
falam de outro jeito?

EXCERTO 79 – Adriana, mãe de Elena, 6 anos


Eu acho isso [o aprendizado formal da língua] interessante também,
mas eu não vejo como durante a aula da APBC, uma vez por
semana, sábado, isso possa ser feito bem feito. Eu acho que é pouco
tempo [...] E realmente, acho que aprendendo aqui [em Barcelona],
isso também é um papel dos pais, ensinar isso em casa e tentar fazer
exercício, não sei.

Essa percepção também foi expressa no grupo focal, quando foi solicitado
claramente que os participantes se posicionassem em relação à seguinte afirmação:

EXCERTO 80 – Grupo focal


PESQUISADORA: “O principal momento do meu filho/filha/filhos/filhas
aprender português são as aulas da APBC”. Vocês concordam,
discordam, sim, não?
PARTICIPANTE 1: Não, eu discordo.
PESQUISADORA: Discorda? Por quê?
PARTICIPANTE 1: É um complemento. Não é o principal... a principal
fonte de aprendizagem é o pai, no nosso caso. […]
PARTICIPANTE 2: Eu acho que a APBC serve mais, mais que a
principal fonte de aprendizagem, é que elas vejam que existem mais
pessoas que falam português, que é uma língua usada com
normalidade, não só em casa.
PARTICIPANTE 3: É mais como um complemento.

Outro momento da discussão em grupo revela o entendimento de que a


APBC não é uma escola de idiomas, e nem mesmo uma escola, o que se relaciona
às expectativas existentes em relação ao aprendizado da língua na Associação:

EXCERTO 81 – Grupo focal


PARTICIPANTE 4: A questão é que até hoje a APBC não é uma
escola de idiomas.
[vários]: Não, não.
PARTICIPANTE 4: Não é. E nem também não é uma escola. Aí de
repente essa é uma decisão da APBC, das pessoas que fazem parte
da APBC, se a APBC deveria ter esse serviço, ou seja, um curso ou
uma coisa de educação formal.

A consciência de que a aula de português não é o único ou principal


momento em que as crianças aprendem a língua se reflete ainda nas
representações das professoras. A esse respeito, já foi registrada, como no excerto
228

57, a percepção de que às vezes os alunos avançam mais no aprendizado do


português nas férias. A seguir, no excerto 82, uma professora compara o
aprendizado dos alunos na aula de PLH ao aprendizado na aula de LE,
reconhecendo que o aprendizado de LH é um trabalho “conjunto”, ou seja, realizado
com os pais e a família, e não só do professor:

EXCERTO 82 – Professora 1
Uma língua estrangeira muitas vezes você terminou essa lição... eu
falando como professora de língua estrangeira: eu terminei essa lição,
os meus alunos sabem até onde eu ensinei. Numa língua de herança,
não! Eles não sabem até onde eu ensinei. Porque eles trabalham
com essa língua fora, e eles vêm e me trazem coisas que eu às vezes
nunca passei, um vocabulário que a gente nunca trabalhou. Mas eles
sabem, porque eles recebem isso de outras partes. Então é um
trabalho muito conjunto ali, né, não é um trabalho só do professor.

Então, de certa forma, embora se espere que o momento da aula


proporcione aprendizado sobre temas relacionados ao Brasil, não necessariamente
o foco estará em aprender a língua, mas em usar a língua (pois os alunos já trazem
um conhecimento prévio dela, em diferentes níveis) e através dela compartilhar
práticas e explorar conteúdos (e novos usos linguísticos). Assim, tendo como ponto
de partida as representações das professoras, centradas principalmente no espaço
da sala de aula de PLH, será possível explorar como os espaços da APBC intervêm
na proficiência linguística dos aprendizes de PLH e suas repercussões no entorno
familiar – afinal, reconhece-se que há também aprendizado linguístico.
O primeiro ponto a se ter presente no cenário da sala de aula é que as
proficiências dos aprendizes são, por um lado, heterogêneas – já que alunos de um
mesmo grupo se distribuem em diferentes pontos do continuum de competências
linguísticas, como relatado na literatura sobre LH (VALDÉS, 2001; 2000; VAN
DEUSEN-SCHOLL, 2003), indo dos que não entendem português (uma minoria,
casos pontuais), passando pelos que entendem (a grande maioria) e demonstram
algum grau de competência na expressão oral (os que utilizam apenas algumas
palavras, passando por falar “portunhol” a um excelente uso), com, no caso dos
mais velhos, dos grupos 3 (5 a 7 anos) e 4 (7 a 12 anos), algum nível de
competência na leitura e escrita. Nesse contexto, o domínio da leitura normalmente
acompanha as habilidades das crianças em sua língua de escolarização
(habitualmente o catalão, com aprendizado de castelhano como L2) e o aprendizado
229

dos dígrafos e ortografia do português para que os alunos possam ler nesta língua
são trabalhados especificamente no grupo 3, contrastando os conhecimentos que
eles já têm de catalão e castelhano com as diferenças próprias do português.
Além de os alunos apresentarem competências heterogêneas, a
diversidade nas origens familiares, com progenitores provenientes de diferentes
países, se reflete nas línguas em uso na sala de aula de PLH: apesar do uso do
português ser privilegiado, ele vem acompanhado do catalão e do castelhano, mas
também do alemão e do italiano, por exemplo, nos casos de famílias nas quais há
uma LH2 em jogo. A observação participante registrou ainda o uso de inglês, croata
e francês nas aulas, sendo que o uso da língua majoritária foi registrado ainda por
Souza (2010b) e Yonaha e Mukai (2016) em aulas de PLH: no Reino Unido, o inglês,
e, no Japão, o japonês, respectivamente, dividem as práticas linguísticas ao lado do
português na sala de aula.
A partir das informações apresentadas até o momento, observa-se que o
desenvolvimento das competências comunicativas dos alunos em português não é
linear e nivelado como nos programas de ensino de língua estrangeira, nos quais os
conteúdos são apresentados em níveis e o conhecimento adquirido nos níveis
anteriores é comum a todos os alunos. Como relatado nos excertos 57 e 82, as
representações indicam que esses alunos estão expostos à língua em outros
contextos além do da sala de aula e seu aprendizado se dá igualmente nesses
outros âmbitos, com input heterogêneo e períodos de imersão como o das férias no
Brasil. Como ilustra Felipe no excerto 83, trata-se de um aprendizado cíclico, com
avanços e retrocessos na intensidade dos usos:

EXCERTO 83 – Felipe, pai de Carolina, 3


O que foi meio impressionante, principalmente pra mãe, foi que ela
[filha] chegou lá [no Brasil] e parecia uma falante nativa, tipo, tava
falando bem solto o português com ela, com um pouco de portunhol
mas... [...] Foi impressionante e surpreendente porque tudo o que ela
absorveu nesses 10-12 dias... foi de ver de como ela tem um
vocabulário de 50 palavras e de repente tem um vocabulário de 200 e
voltar pra cá e depois de uma, duas semanas, claro, mais tempo com
os pais, na creche, que é em catalão e tudo, então já de esquecer
grande parte do que ela aprendeu.

Além do caráter cíclico, de avanços e retrocessos, o aprendizado de PLH


pode ser considerado fragmentado se comparado ao fio condutor do que um
230

programa de ensino de LE propõe, já que os temas e situações linguisticamente


trabalhados – e aprendidos – não dependem apenas do trabalho de sala de aula,
mas se intercalam com as vivências do aprendiz fora desse espaço. Ou, como
coloca Destro (2015):

Essas proposições [curriculares] partem do princípio de que o ensino de


PLH reconhece os conhecimentos adquiridos pelos aprendizes no âmbito
familiar e tem o comprometimento de ampliá-los. [...] É importante que os
professores das escolas comunitárias de LH lembrem-se de que o
desenvolvimento das competências comunicativas de seus alunos é um
projeto de vida e não está limitado ao tempo que essa criança participará
das atividades da escola. Os conhecimentos serão adquiridos e
desenvolvidos ao longo de toda uma experiência de vida, como viagens,
visitas de família e amigos, na escola, na universidade, etc. (DESTRO,
2015, p. 125;133)

Embora a proposta educativo-cultural da APBC acompanhe e se norteie


mais pelos processos de aquisição de linguagem do aprendiz como um todo (em
qualquer forma de expressão, não especificamente em português), como ilustrado
na Figura 12, as representações das professoras dão uma ideia de como o aprendiz
pode progredir em seus usos linguísticos em português ao longo do curso. As
informações apresentadas a seguir se referem aos grupos 2 (3-5 anos), 3 (5-7 anos)
e 4 (7-12 anos) no momento da geração de dados.
No grupo 2, o objetivo da professora é que os alunos entendam os
enunciados orais em português. Para esse fim, ela utiliza algumas estratégias para
proporcionar que haja, paralelamente, um avanço em sua expressão oral em
português. Uma delas é repetir a produção oral feita pelos alunos em outras línguas
em português:

EXCERTO 84 – Professora 1
PESQUISADORA: Esse texto não verbal (pinturas, quadros) também
estimula eles a falarem...?
PROFESSORA 1: Claaaro, eles vão adquirindo vocabulário ali, fazem
a descrição em espanhol, ou em outra língua, porque os alunos
acabam circulando com várias línguas, nem sempre o castelhano é a
língua que eles usam em casa, às vezes é o catalão, tem criança que
fala em italiano. Então eles vão me descrevendo em várias línguas e
a gente vai repetindo em português até que eles começam, de pouco
em pouco, a reproduzir também em português.

Embora possa parecer um desafio, ter um aluno que se expressa


oralmente numa língua que o professor não domina – italiano, no caso – pode
231

proporcionar uma interação pedagógica rica e desafiadora para a criança: talvez


como uma oportunidade preciosa de interagir com alguém que não compartilha essa
língua na qual ele é mais proficiente, forçando-o a utilizar seus conhecimentos de
português – ainda que receptivos – para chegar a se comunicar. A professora ilustra
no excerto 85 como acolhe a produção oral do aluno em italiano nessa situação:

EXCERTO 85 – Professora 1
E tem um aluno que fala em italiano, que não fala catalão, e não sei
se ele fala castelhano, na verdade. E ele fala comigo em italiano. E
ele me entende em português! Só que ele responde em italiano. [...] É
interessante porque eu não falo italiano, então às vezes eu entendo
mais ou menos o que ele tá me falando e eu tenho que falar pra ele...
eu repito o que ele me fala, ou eu tento repetir em português, eu me
certifico se é isso: é isso, Enzo? Você tá querendo me dizer isso e
isso e isso? E ele responde se sim ou se não. Então ele vai me
guiando também pra gente poder se compreender. É interessante.

O fato de o uso do português não ser imposto ou exigido, mas que o


repertório plurilíngue dos alunos seja acolhido, talvez seja importante para que o
aluno decida se atrever a experimentar na língua-alvo. No excerto 86, a professora
comenta como traça as próprias expectativas e reage diante da produção que não
se dá em português para esses alunos de 3 a 5 anos:

EXCERTO 86 – Professora 1
Como eu já tinha essa ideia de não impor o português pra nenhum
aluno, pelo menos agora nessa fase, a minha preocupação era que
eles me entendessem. Se eles me entendessem, tava tudo bem.
Então eu sempre tentei agir da mesma maneira com o aluno que fala
comigo em português, em espanhol ou em qualquer outra língua.
Quer dizer: não impor, mas reproduzir o português, depois tentar
notar se ele falou a palavra que eu falei...

O ambiente de competências heterogêneas na sala de aula mostra alguns


movimentos específicos desse cenário, o qual, num primeiro momento, pode parecer
pouco planificado para a aprendizagem da língua em si, se comparado às
metodologias já amplamente sistematizadas e estudadas de ensino de LE. Um deles
é a existência de um grupo de alunos proficientes na língua-alvo; o outro, o olhar da
professora em relação ao percurso de aprendizagem dos alunos menos proficientes:

EXCERTO 87 – Professora 1
A gente tem um número interessante de alunos [...] que falam comigo
em português, e cada vez mais eu vejo que os que falam outras
232

línguas tendem a ir pro português. E aí, como que eu vejo isso?


Porque antes eles montavam toda uma frase em outra língua, e agora
eles incluem uma palavra ou outra em português nessa frase, então
essa frase ela já vem misturada pra mim, ela não vem totalmente na
língua que ele usava no começo. Então eu vejo que eles tentam
incluir o português na hora de falar comigo.

Por um lado, ter contato com crianças mais proficientes em português


impulsiona o uso da língua por aquelas menos proficientes, pois o grupo gera um
ambiente de maior uso da língua que o que a criança teria, por exemplo, num curso
de LE. Neste segundo caso, não necessariamente haveria um grupo de colegas
capazes de se expressar predominantemente na língua-alvo. Porém, na aula de
PLH, as crianças mais proficientes podem proporcionar uma série de interações
linguísticas espontâneas que também são fonte de aprendizagem e estão no
universo de interesses (o brincar) e das formas de falar de uma criança (algo
desejado por algumas famílias: que os filhos possam falar português como crianças,
e não como adultos, como revela o excerto 78). Assim, na aula de PLH, o ponto de
partida das conversas e interações linguísticas (e aprendizagem) também é aluno-
aluno (ou criança-criança), e não só professor-aluno (ou adulto-criança).
Por outro lado, nesse ambiente, as expectativas e o posicionamento do
professor podem ser muito diferentes aos dos progenitores e do núcleo familiar: na
sala de aula, pode haver menos pressão para um uso sistemático e consistente da
língua que o de um pai, cujas representações se regem nos paradigmas do cidadão
nacional monolíngue. Neste uso do português incipiente e fragmentado, de palavras
soltas em português inseridas em frases construídas em outras línguas, o olhar do
professor é capaz de ver que o aluno “tende a ir pro português” e que há um
progresso. O professor, à diferença de Gabriela, por exemplo, no excerto 19 (“‘Você
falou melancia?’ Mas não é o que eu queria, eu queria que ela tivesse muito mais,
tivesse mais vocabulário do que ela tem agora”), é capaz de ver que essas
produções são avanços, e não insuficientes. Isso, somado aos processos de
identificação descritos na seção iii-a – e aos demais usos do português em outros
contextos gerados a partir de contatos feitos na Associação – seriam alguns dos
fatores que atribuem um valor positivo à aula de PLH como um momento importante
de experimentação na língua-alvo, no qual o erro é permitido, no qual atrever-se na
língua não é um problema. Um espaço, portanto, privilegiado para o aprendiz, pois
lhe proporciona referentes diferentes dos encontrados na família.
233

No grupo 3, de crianças de 5 a 7 anos, a heterogeneidade também é


relatada, pois de acordo com suas representações, a professora reconhece ter
“vários níveis” de alunos, com práticas linguísticas em castelhano (nesse grupo, o
catalão tem pouca força) e alemão:

EXCERTO 88 – Professora 2
PESQUISADORA: E com você, você vê que eles querem se dirigir
em português? Eles querem?
PROFESSORA 2: Sim, a maioria. Tem dois alunos que resistem, que
dizem: “Mas eu já entendo”, “yo te entiendo, yo no quiero hablar
portugués, ya está” [“eu te entendo, eu não quero falar português, já
tá bom”]. Mas isso são 2 de 18, que às vezes eu vejo que se
esforçam e sai super mesclado, às vezes nem eu entendo, mas não,
vamos lá, vamos continuar. E eu sempre falo português. Sempre,
sempre, [...] todos me entendem, 100%.” [...]
Eu tenho vários níveis, até poderia classificar depois. [...] São poucos,
eu diria que são 3 ou 4 que falam comigo como se eu estivesse... é
óbvio que existe um pouco de sotaque, mas enfim, não é isso o que
importa, eles conseguem se comunicar em português numa boa. E
depois vem o portunhol, e depois vem aqueles que “socorro, me
ajuda!”

EXCERTO 89 – Professora 2
Eu tenho duas alunas do colégio alemão e entre elas, elas me falam
em alemão – na aula de português dentro da Catalunha.

Para trabalhar com a heterogeneidade em sala de aula, uma das


abordagens utilizadas por essa professora é preparar atividades diferentes para
alunos com competências diferentes. No caso, como se mencionou, há um trabalho
focado nas diferenças ortográficas do português em relação ao catalão e ao
castelhano, com o objetivo de que o aluno possa ler em português. Como esse
trabalho complementa o processo de alfabetização da escola regular, a competência
que o aluno terá em leitura depende diretamente do momento em que se encontra
seu processo de aprendizagem da leitura na escola regular. A atividade diferenciada
considera, portanto, não só a competência do aluno em português, mas sua
competência em leitura e escrita na sua língua de escolarização.
Assim, para esse objetivo de aprendizagem específico – dotar o aluno das
competências necessárias para que ele possa ler em português –, dependendo da
proposta pedagógica da escola regular, é possível que um aluno A, de 5 anos, mais
proficiente nos usos orais do português, porém mais no início de seu aprendizado de
234

escrita e leitura em catalão (em fase silábica do aprendizado de leitura), realize uma
atividade de nível mais fácil que um aluno B de 7 anos, menos proficiente que o
aluno A nas competências orais em português, mas com conhecimentos de leitura e
escrita mais avançados em catalão e castelhano. São competências heterogêneas e
quem faz a atividade mais “avançada” para esse objetivo não necessariamente é o
aluno com maior desenvoltura nos usos orais em português – e talvez esta seja uma
forma de empoderar o aluno menos proficiente em relação a outros conhecimentos
de seu repertório linguístico, não especificamente de português. Mesmo sem ser tão
fluente no uso oral da língua-alvo, de alguma maneira o aluno B, mais velho, mais
adiantado na escola, ainda “sabe mais” que o aluno A.
Em relação à proficiência nos usos da língua portuguesa, essa professora
do grupo 3 relata, no excerto 90, que é capaz de ver o avanço da turma. Embora, à
diferença do que se relata no excerto 87, do grupo 2, não haja uma representação
dos usos da língua pelas crianças, ela proporciona uma visão holística do
aprendizado de PLH relacionado a vários fatores, que passam pela “postura da
família”, pelas amizades e convivência em português fora da sala de aula, sendo
“pouco pelo trabalho de sala de aula”:

EXCERTO 90 – Professora 2
E tão avançando, porque essa turma tá comigo desde o início de
2014 e agora eu percebo que eles avançaram muito. Pouco pelo
trabalho da sala de aula, que é muito pouco tempo, mas eu vejo que
é todo um processo também de frequentar, de fazer uma turminha, de
ter as amigas que vão em casa brincar e tal. São vários fatores que
eu acho também que não a aula em si, talvez a aula também, mas
não somente isso, mas também... a questão da postura da família,
que começa a levar e começa a se dar conta da importância de dividir
bem os códigos, de falar uma língua ou outra, então eu percebo que
eles avançaram muito. Tô bem feliz com o desenvolvimento dessa
turma em especial.

Por fim, no grupo 4, o das crianças mais velhas (7-12 anos), a


representação da professora no excerto 91 é contraditória, o que parece apontar
para a heterogeneidade de competências do grupo: se, por um lado, ela declara que
“todos falam português”, também diz que não cobra que cada palavra seja em
português se “vê que o aluno não fala”. Ela marca, porém, a exigência de que todos
falem – tentem falar – português nesse nível, uma expectativa de uso da língua
bastante diferente da do Grupo 2. Além disso, ela relata que continua a haver usos
235

do catalão e do espanhol durante a aula e que adquirir conhecimentos da escrita em


português entra nos objetivos de aprendizagem:

EXCERTO 91 – Professora 3
Atualmente todos falam português. Tem algum momento em que um
solta uma frase em espanhol, em catalão. Eu sempre exijo que eles
falem português na minha aula. [...]: É... eles vão aprendendo, né? É
claro que quando é uma pessoa que você vê que não fala, você não
vai cobrar que cada palavra seja em português, você cobra um
esforço que ela sempre tem que falar em português [...]
Eu acho que a minha turma fala bem o português. Eu acho que o
escrever que eles confundem muito.

Devido ao aprendizado dos alunos relacionado ao currículo – tanto nos


aspectos relacionados à proficiência linguística como em relação às práticas
culturais – não acontecer somente no espaço da aula, mas numa série de outros
espaços, as professoras têm dificuldade em identificar os resultados do trabalho
pedagógico. Complementando o entendimento do excerto 82, onde se menciona
que os alunos “não sabem até onde o professor ensinou”, e 90, no qual o avanço da
turma se dá “pouco pelo trabalho de sala de aula”, os excertos 92 e 93 a seguir
ilustram as dificuldades em avaliar o resultado do trabalho de sala de aula:

EXCERTO 92 – Professora 3
PESQUISADORA: Você consegue ver o resultado do seu trabalho
com as crianças como professora?
PROFESSORA 3: Sim e não. Eu consigo ver que eles absorvem
coisas que se ensinam, mas eu não sinto que eu modifico tanto
assim. [...] Eu sou uma coisa muito pequena dentro desse universo.
[...] Então eu não consigo materializar muito bem os resultados.

EXCERTO 93 – Professora 2
O mais difícil é estabelecer um planejamento e avaliar o que eles
realmente aprenderam nessa heterogeneidade. [...] Mas “o que eu
quero conseguir no final deste ano com essas crianças?” Isso é o
mais difícil pra mim, é um desafio. Estressante. [...] É avaliar isso, é
escolher.

Isso sugere, talvez, que ainda seja necessário um amadurecimento no


campo do PLH no que diz respeito à avaliação em sala de aula, e que tal avaliação
não deva se pautar unicamente pela proficiência linguística, mas considerar o
aprendizado dos conteúdos e práticas culturais trabalhadas.
236

Por último, em relação às práticas linguísticas, além do trabalho que


realizam em sala de aula, as representações das professoras sugerem que, dentro
dessa abordagem holística dos usos e aprendizagens do PLH, o fato de que os
filhos frequentem as aulas pode ter um impacto nos usos linguísticos das famílias
em casa. Esta possibilidade se menciona no excerto 90, com uma alteração na
“postura da família”, que “começa a se dar conta da importância de dividir bem os
códigos, de falar uma língua ou outra”, e também segundo outra das professoras no
excerto 94:

EXCERTO 94 – Professora 1
Então eu acho que até aqueles pais que não falam o português com
seus filhos, depois que começam a frequentar a Associação, que os
filhos começam a frequentar a aula, passam a usar mais o português
com a criança. Talvez não o tempo inteiro, eles já têm uma língua
estipulada dentro de casa, mas eu acho que já existe um esforço
maior dos pais.

Assim, as aulas de português interviriam não apenas nas práticas


linguísticas das crianças, mas também nas práticas linguísticas dos adultos em
outros espaços, fora da APBC.

iii-c) Representações sobre intervenção (APBC) x afetividade

Embora, mais recentemente, a produção bibliográfica em torno à temática


de LHs em geral (por exemplo, He (2010)) e o PLH, especificamente (por exemplo,
Souza (2016a; 2015); Ortiz Álvarez (2016b); Piipo (2016); Mendes (2015)),
reconheça que há aspectos afetivos vinculados ao contexto, minha percepção é de
que este ponto ainda não foi abordado de maneira destacada na agenda de
pesquisas do campo. Como tenho tentado retomar ao longo deste trabalho, entendo
que a dimensão afetiva deve ser central a qualquer reflexão numa pesquisa que
busque trabalhar com as representações em torno da LH. Espero, a seguir, fornecer
alguns exemplos que possam aprofundar o entendimento e as discussões, não só
no âmbito familiar, mas no do papel do professor e no das iniciativas.
Começando por um enfoque a partir da sala de aula, as professoras
reconhecem em suas representações que um bom acolhimento das necessidades
emocionais tanto dos alunos como dos pais pode resultar em diferenciais para a
237

aprendizagem. Em relação a essas “necessidades emocionais”, as quais sempre


existirão em qualquer contexto de educação, vale retomar que os falantes de
herança apresentam necessidades específicas (BEAUDRIE, 2012). Por exemplo, no
excerto 95, a professora relata como, por um lado, os pais podem considerar mais
importante para os filhos, os alunos, que haja espaço para “um carinho em
português” ou uma música que compunha seu repertório de práticas infantis, do que
atividades formais no momento da aula:

EXCERTO 95 – Professora 2
Esse diálogo com a família é importante, por mais que eles não
saibam questões pedagógicas, eles têm como te dizer que de repente
esse tipo de atividade formal não é tão importante quanto uma
musiquinha em português, um carinho em português, que de repente
eles não tenham... Acho que é importante.

De modo similar, no excerto 96 a professora revela como tais aspectos


emocionais são percebidos e a “emoção do pai” em relação à experiência com a
“cultura brasileira” entra no currículo:

EXCERTO 96 – Professora 3
Então, uma das coisas que a gente pensou era trazer mais os pais,
trazer mais as experiências dos pais, coisas que a emoção do pai
seja o que representa a cultura pra eles, essa lembrança do que eles
viveram, do que eles têm em mente que seja a cultura brasileira.

Durante a observação participante, notei a intenção explícita de que os


pais entrassem e participassem das aulas em determinadas atividades, dando
depoimentos, sendo entrevistados pelos alunos ou ensinando conteúdos
específicos. Percepções como as anteriores podem ter motivado essa postura
pedagógica.
Evidentemente, em seu relacionamento com os alunos, as professoras
relatam que é necessário que o aluno se sinta acolhido – ver, por exemplo, a
discussão a respeito do excerto 86, sobre como a professora acolhe os usos
plurilinguísticos em sala de aula –, relatando no excerto 97 esse “acolhimento” como
um “fator emocional muito importante”, que pode repercutir no desejo ou na
resistência do aluno em se atrever nos usos do português:
238

EXCERTO 97 – Professora 2
E eu posso dizer que eu não obrigo ninguém a falar. Claro que a
criança tá falando em português e eu tô assim, né, feliz da vida [com
um sorriso de orelha a orelha], eles percebem isso, né, de repente
“ah, ela tá contente porque eu tô tentando falar!”, porque a criança,
ela é muito sensível. Mas jamais eu vou dizer “fale em português”, eu
não costumo dizer isso. Porque a minha ideia é que eles falem de
alguma maneira e que eles se sintam acolhidos ali, esse fator
emocional é muito importante.

No excerto 97, observa-se ainda que a resposta emocional da professora


por meio da comunicação não-verbal pode funcionar como um estímulo e motivação
para que o aluno se arrisque em seu percurso de falante: um grande sorriso é
entendido como “ela tá contente porque eu tô tentando falar”, já que as crianças são
sensíveis a esses códigos. A mesma professora relata no excerto 98 como, no início
da aula, a qual se inicia com a roda de conversa, há um momento de “troca de
sorrisos e olhares” que os alunos “precisam”. Esse espaço, em que eles podem falar
livremente de si e do que lhes aconteceu na semana, é um “quebra-gelo”,
necessário para que se passe de um uso predominante do castelhano aos que
privilegiem o português:

EXCERTO 98 – Professora 2
E a rodinha é o momento que a gente troca sorrisos, troca olhares,
que eu conheço um pouco... “ah, essa semana, não sei, veio o meu
primo”, é o momento que eles se abrem. Geralmente eles iniciam um
pouco com o castelhano e depois vão trocando. Eles precisam desse
momento. [...] É um quebra-gelo, que faz falta.

O tempo destinado ao brincar, à convivência e até mesmo ao “fazer nada”


também parece ser medido de acordo com o que os alunos demandam e esperam
do momento da aula – “eu quero brincar”. No excerto 99, a professora relata a
importância desses momentos para que eles estreitem os laços com outras crianças
(façam amizade) e construam uma relação de turma, de grupo:

EXCERTO 99 – Professora 2
Eu vejo que, claro, a ideia é brincar. “O que que eu vou fazer sábado?
Não é aula de português, né, eu quero brincar! Eu quero encontrar
minha amiga ali, mostrar minha boneca que eu trouxe, o bichinho” e
tal. E eu penso, eu numa aula formal não daria tanto tempo pra isso,
porque a gente tem objetivos a seguir numa escola. Mas aqui eu acho
que é de suma importância esse tempo que eles têm de conviver, eu
acho que isso melhorou muito a aprovação deles mesmo, o interesse
239

deles pelas aulas. Não só na minha atitude porque eu acho que eu


sou só um elemento ali. A relação que eles construíram de turma, que
eles não tinham antes, e agora eles são uma turma. Então, através
desse espaço, desse tempo que eles têm, até pra brincar de nada
mesmo, de ficarem sentados ali conversando e aí: “Quem vai
desenhar?” e aí um desenha. É pouco tempo, mas eu vejo que é o
que ajuda que eles se interessem mais.

Permitir que a relação com o grupo se construa, que as crianças possam


se identificar com seus pares, revelou ser de suma importância para as famílias
dentro do que elas esperam que as aulas da APBC proporcionem, conforme
explorado na seção iii-a. Esses vínculos com os pares, as relações de amizade que
se estabelecem além da sala de aula, foram descritos pela professora no excerto 90
como parte do processo responsável pelos progressos dos alunos, o qual inclui
“fazer uma turminha, de ter as amigas que vão em casa brincar”. A criação de
vínculos afetivos com outras crianças falantes de português, dentro e fora da aula,
pode ser, portanto, um diferencial no rendimento do aluno de PLH.
Já para os pais, os vínculos surgidos entre as crianças em sala de aula
podem significar atingir certos objetivos de seu planejamento linguístico familiar,
como relata Rosana, comentando sobre a amizade da filha com outra criança da
APBC:

EXCERTO 100 – Rosana, mãe de Flora, 3 anos, e Jana, 3 meses


Mas eu vejo que elas duas já falam em português e eu fico superfeliz,
porque é a primeira relação delas, de amizade, em português. Que
legal, né? Que é um objetivo que eu tinha, que ela tivesse amigos
que falassem em português. E já tem, pelo menos.

Os exemplos anteriores ilustram como as necessidades emocionais dos


pais e dos alunos são incorporadas à aula de PLH e mesmo ao currículo.
Procurando criar oportunidades para que se desenvolvam relações afetivas em
português – através do carinho, através do brincar, da presença dos pais nesse
espaço – pode-se dizer que o que se busca é que, também na sala de aula de PLH,
a língua seja usada como forma cognitiva de vinculação afetiva, assim como o é na
família. Ou seja: trata-se de aproximar, na sala de aula, a significação afetiva que
essa língua tem fora da aula, de acordo com as experiências de vida de outros
atores envolvidos no processo (pais e familiares): o “sentir amor” descrito no excerto
33. Isso, para as crianças, é um aprendizado, já que a relação afetiva dos adultos
240

com o português é diferente da delas, e é preciso ensinar-lhes a “sentir amor” pelo


Brasil – através das práticas linguísticas e culturais.
Exemplos de como se forma essa teia emocional sobre a qual tais
práticas se dão na APBC foram fornecidos em outros momentos. As relações
estabelecidas entre os pais nos espaços da APBC foram ilustradas, por exemplo,
nos excertos 27 e 60. Os próximos dois excertos, 101 e 102, nos quais Luísa
comenta que encontrou uma de suas melhores amigas na APBC e Rosana explica
como o marido fez amizade com outro pai, exemplificam os modos de essa teia
afetiva continuar a se construir nos espaços fora da APBC:

EXCERTO 101 – Luísa, mãe de Olívia, 3 anos


A Marta se tornou uma das minhas melhores amigas aqui, e ela é
minha vizinha então eu vejo ela sempre.

EXCERTO 102 – Rosana, mãe de Flora, 3 anos, e Jana, 3 meses


Eu que levo sempre [nas aulas]. Os dois. Nós dois vamos. Vai toda a
família. A gente ficou muito amigo da Juliana e do Enric, o marido
dela, e o bom é que foi uma coisa que incentivou o Juan também.
Porque no começo muitas vezes ia eu, iam os dois, mas ele ficava um
pouco assim, de lado, porque eu ficava conversando com as meninas
e ele não conhecia nenhum menino. E até que ele ficou amigo do
Enric, e agora ele sempre vai. Então o programa de família de sábado
era piscina [natação] e os Brasileirinhos, a gente mudou a piscina e
agora é só Brasileirinhos, todo sábado.

Se os vínculos e aspectos emocionais das crianças podem representar


um diferencial para o aproveitamento das aulas, a forma como a família se envolve
na construção dessa teia afetiva fora da APBC também o é. Se, no excerto 102, o
fato de Juan ter feito amizade com Enric transformou o tempo dedicado a ir à APBC
aos sábados num momento de toda a família – e de lazer para os pais –, pois é o
que o motiva a ir, Camila, no excerto 103, exemplifica como o fato de o marido não
se envolver com a Associação, ou seja, não ter criado vínculos com seus membros,
foi um fator que contribuiu para que os filhos deixassem de frequentar as aulas.
Jacques desejava passar esse tempo do sábado de manhã em família, e frequentar
a APBC não era visto por ele como uma opção interessante:

EXCERTO 103 – Camila, mãe de Dora, 7 anos, e Luís, 3 anos


PESQUISADORA: E por que vocês pararam de ir às aulas?
CAMILA: Porque sábado pra gente é um dia... que a gente sempre
tem programação com o Jacques, que trabalha de segunda à sexta-
241

feira e ele quer passear por aqui sábado de manhã... [...] por ser um
dia “sábado”.

Aparentemente, o fato de que as aulas de português ocupem um espaço


do tempo de lazer da convivência familiar é um fator que pode desmotivar as
famílias a participarem das aulas. O fato de as aulas de PLH ocuparem um momento
do final de semana é comum a muitas iniciativas que trabalham com alguma LH, não
necessariamente brasileiras, as quais são inclusive mencionadas na bibliografia
como “Saturday schools” [escolas que funcionam aos sábados] (SOUZA, 2016b;
CURDT-CHRISTIANSEN, 2009; CHINEN e TUCKER, 2009). Então, seria preciso
que a família, de alguma forma, como explica Rosana, no excerto 102, conciliasse o
momento da aula com a agenda familiar do fim de semana, por exemplo, sendo
capaz de ressignificar essa “aula” como um momento de lazer/prazer para toda a
família – ou ao menos para os adultos responsáveis por que as crianças frequentem
as aulas.

Ao longo da observação participante, o conflito com o tempo de lazer foi


detectado como um dos fatores de desistência das aulas durante o estudo – seja
pela maneira como repercute na agenda dos pais, como exemplificado, mas também
na dos filhos, pois em alguns casos há a resistência dos alunos mais velhos em
participar das aulas48.
De fato, nem sempre a relação afetiva com a associação é positiva.
Embora a representação dos pais seja de que os filhos gostam de ir às aulas e que
apenas pontualmente ofereceram resistência, o relato das professoras e a
observação participante sugerem que nem sempre o cenário seja esse. Por
exemplo, no excerto 88, a professora relata ter alunos que não desejam falar
português, estando satisfeitos com o fato de entender e, a seguir, no excerto 104
outra professora relata que, para alguns alunos, participar das aulas é percebido
como uma “obrigação” que ocupa um tempo que o aluno preferia dedicar a outras
atividades:

48
Outros fatores identificados incluem separação dos pais, o fato de a família morar longe, a possível
desmotivação de famílias de brasileiros recém-chegadas de outros países europeus cujos filhos
tinham pouco conhecimento do português e das línguas locais usadas pelos colegas em aula.
242

EXCERTO 104 – Professora 3


Não sinto uma dor neles, uma pressão. Talvez uma obrigação,
alguma criança fala: “eu tô aqui porque meu pai me obriga”, mas não
por causa do português, porque ele queria tá jogando bola na praça,
seria igual se fosse português, espanhol, francês, castelhano, não o
idioma em si, mas que ele tem uma energia diferente e queria tá
gastando aquela energia de uma outra maneira. [...] Gostar, eu não
sei exatamente. Por prazer, né? Eu não sei se eles gostam do
português.

Essa percepção também é registrada por Piipo (2016), em cuja pesquisa


38% dos alunos declararam preferir estar “a descontrair”, em vez de frequentar as
aulas de LH após o horário escolar (PIIPO, 2016, p. 123). Tais informações, bem
como os dados da presente pesquisa, sugerem que a percepção da aula de
português como “obrigação” e “aula”, e não como lazer, é algo que se desenvolve
nas crianças mais velhas, a partir dos 7 anos, não sendo observado, na APBC, de
modo tão contundente nas crianças mais novas. Outro fator relatado por Piipo
(2016) que impacta a motivação é o fato de muitos alunos sentirem que não
aprendem nas aulas: “apenas 33% respondem sentir que aprendem muito nas
aulas” (PIIPO, 2016, p. 143), e cabe levantar a hipótese de que esta percepção
também exista nos alunos da APBC, embora não se disponha de dados para
comprová-la.
Até o momento, foi explorada a forma como a teia afetiva de relações na
APBC se estabelece entre professores x alunos, pais x alunos, pais x professores,
outros pais x outros alunos. Também é relevante observar como ela se expande nas
relações afetivas, positivas e negativas, entre o que se identifica como a instituição e
aqueles que formalmente trabalham nela. A esse respeito, a representação de uma
das professoras no excerto 105 revela que estar em contato com a APBC foi
importante, em seu momento de imigrante recém-chegada à Barcelona, para
construir seus vínculos, o que agregaria valor à sua relação “empregado x
empregador”. Ela não se pauta unicamente por uma prestação de serviços, pois
ajudou a “criar vínculos”:

EXCERTO 105 – Professora 1


Então, acho que facilitou a minha vida, encontrar a Associação e o
grupo dos brasileiros aqui, foi mais fácil me estabelecer aqui, enfim,
criar os meus vínculos, arrumar uma casa, trabalhar, enfim, arrumar a
vida.
243

A respeito dos vínculos que os professores podem estabelecer com as


iniciativas, Souza e Gomes (2016) registram, num estudo realizado no mesmo
contexto deste, mas em comparação com o contexto de uma escola complementar
em Londres, que os professores de ambos os lugares se encontram
“emocionalmente ligados” à iniciativa e aos seus membros:

Um professor em Barcelona diz que “o relacionamento com a escola não é


apenas profissional”, pois estava ‘emocionalmente ligado a ela e aos seus
membros. Outros comentários semelhantes foram feitos pelos participantes
em Londres. (SOUZA e GOMES, 2016, p. 127)

Há indícios, assim, de que os vínculos emocionais entre os atores


envolvidos no funcionamento das iniciativas de PLH não sejam exclusivos à APBC,
mas podem ser um fator comum às iniciativas que promovem o ensino de alguma
LH em geral. Dessa forma, os dados anteriores sugerem que os fatores emocionais
seriam importantes não só para o rendimento dos alunos ou para os pais, mas
também para os professores de PLH em sua práxis profissional.

Entre os atores sociais envolvidos no funcionamento da iniciativa,


destacam-se ainda, no caso da APBC, os membros da diretoria. A maneira como tal
experiência emocional é vivida – nem sempre positivamente – repercute em suas
motivações para atuar na instituição. Se, por um lado, um membro diz no excerto
106 gostar da Associação, cujas atividades “preenchem seu coração” –
representação que revela uma alta carga de afetividade –, por outro ele diz que as
reclamações dos sócios e pouca ajuda para executar as atividades da instituição o
desmotivaram, a ponto de, segundo a observação participante, ele evitar frequentar
a associação, embora continuasse realizando o trabalho administrativo. Talvez essa
alta carga de afetividade influa em como as “reclamações” são percebidas, sendo
difícil recebê-las com objetividade e como sugestões ao trabalho da Associação,
mais que como uma crítica pessoal – “esse ‘gostou, não gostou’ começou a me
atrapalhar muito”:

EXCERTO 106 – Membro da diretoria


As pessoas elas não precisam agradecer esse trabalho. Mas,
também, se elas reclamam e não ajudam muito, isso daí desmotiva.
Isso daí que foi... a maior dificuldade. Porque eu achava que eu não
ia fazer caso [ligar]. Essas atividades da associação preenchem o
meu coração. Eu gosto de fazer, eu faço, gostou, não gostou... Mas
244

esse “gostou, não gostou” começou a me atrapalhar muito. Então, a


minha dificuldade em relação à Associação é lidar com os
associados. É suprir o sonho, a vontade que a gente tem de fazer as
coisas e não consegue fazer, por falta de apoio, de pessoas se
envolvendo e decidindo e fazendo. Então esse foi o maior desafio pra
mim.

Tal representação também revela uma alta carga de afetividade na


relação do membro da diretoria e dos sócios com a instituição: é ela que irá “suprir o
sonho”, o ideal defendido com paixão. Assim, as tensões nessa relação entre
instituição e sócios pode impactar a maneira como a teia afetiva se desenvolve e
repercutir sobre o funcionamento da Associação, pois, como argumentam Yonaha e
Mukai (2016, p. 216) de maneira análoga em relação ao projeto ARTEL, no Japão,
“O engajamento familiar merece destaque, pois o elo entre o projeto e os familiares
tem fortalecido o crescimento e manutenção do projeto”.
O ideal de brasilidade que é sugerido através do “sonho” defendido
coletivamente segundo a representação anterior é percebido, em algumas situações,
como um sentimento de orgulho por ser brasileiro. Conforme descreve esta
progenitora não brasileira no grupo focal:

Excerto 107 – Grupo focal


Eu acho que isso também é importante... porque eles sentem que
são... que são brasileiros, acho. E também ensinam a ter orgulho de...
porque vocês estão SUPER orgulhosos de ser brasileiros! [...] Mas
isso é muito importante também, sabe, passar essa brasilidade
também, esse amor...

Segundo essa representação, o “orgulho” surge quando se consegue


passar a “brasilidade” e o “amor”, o que se relaciona ao “se sentir do país” e “sentir
amor” mencionados no excerto 33. Assim, apesar dos desafios enfrentados pela
instituição, tais excertos sugerem que a APBC contribui para uma representação
positiva da brasilidade, colaborando para que os aprendizes de herança desejem
esse pertencimento ao grupo.
Em relação aos aspectos afetivos aqui expostos, Lico (2015a) menciona,
de maneira análoga, como o “entrosamento do grupo” – a teia afetiva – e o “orgulho
de suas raízes” são vistos como conquistas em outra iniciativa, a ABRACE, nos EUA
– o que leva a crer que os aspectos emocionais são importantes não apenas no
trabalho da APBC, mas também no de outros projetos que promovem o PLH:
245

Uma conquista que precisa ser lembrada é o entrosamento do grupo e o


orgulho que os alunos demonstram de suas raízes. Esse resultado é reflexo
das iniciativas educacionais e culturais que ligam o Brasil e os Estados
Unidos para formar comunidades fortes, participativas e que tenham orgulho
de suas raízes. (LICO, 2015a, p. 223)

Finalmente, o sentimento de orgulho se manifesta também nas


professoras e, nesse sentido, o último excerto é bastante ilustrativo: há orgulho pelo
trabalho realizado, pelos avanços dos alunos no uso da língua e pelo fato de que se
identifiquem como brasileiros. A professora de PLH sintetiza em sua fala, assim, os
três pilares que fundamentam o trabalho com PLH: a afetividade (em sua relação
com o trabalho que realiza: um “trabalho prazeroso”, pela “convivência” com os
alunos); a proficiência (os avanços linguísticos) e a identificação (os alunos se
sentem brasileiros), reconhecendo, ainda, o protagonismo da família no processo:

EXCERTO 108 – Professora 2


É um trabalho, mas é um trabalho MUITO prazeroso, é o de tá ali
escutando, a convivência e ver... o avanço. É quando tu te dá conta
[percebe] que o teu trabalho está ali. Não é só teu, porque eu diria
que a família é muito mais presente, mais importante, mas a tua
semente está ali também, quando de repente, no começo do ano,
essa criança não falava ou não falava tudo, e de repente ela te faz
uma frase com o verbo no subjuntivo, porque ela já tá falando, ela se
comunica nesse idioma, ela não tá aprendendo. [...] Então, claro, pra
mim é muito prazeroso ver o avanço. Como professora e como
pessoa, de ver que lindo é de ver eles aqui falando isso. São
brasileirinhos, sim. Não falam perfeito – não. Mas são brasileirinhos,
se sentem brasileirinhos. Isso é o mais bonito. Não tem preço.

Com isso, espero ter podido explorar, a partir dos dados gerados na
APBC, o modo como os três pilares do PLH – identificação, proficiência e afetividade
– configuram as políticas linguístiscas dessa comunidade. Como agentes do
processo, pais (brasileiros ou não) e professores têm destaque no que podem
oferecer aos aprendizes desta LH: os pais veem o trabalho do professor como um
complemento às práticas que já realizam em casa, e os professores se percebem
apenas como uma parte pequena do processo de aprendizagem de seus alunos –
que acontece em outros âmbitos da Associação, nas relações sociais surgidas entre
seus sócios, em casa e nas férias no Brasil.
246

Os professores são, no entanto, curadores importantes das práticas


culturais e linguísticas que a APBC oferece às crianças, e dão atenção especial aos
aspectos afetivos trazidos tanto pelas crianças como pelos pais. Além disso – ou
taalvez graças a isso –, proporcionam aos alunos oportunidades diferentes de se
atrever nos usos da língua, sob um olhar que vê o avanço, e, à diferença do que
podem ver os pais, não só o que falha nos usos do português. A sala de aula é,
assim, um espaço privilegiado para que os alunos realizem práticas culturais
associadas ao Brasil, na companhia de outras crianças, pautado por um resgate e
construção da cultura da infância, com uso privilegiado (ainda que heterogêneo) do
português – mas não exclusivo, já que o repertório plurilinguístico dos alunos está
presente e é acolhido.
No próximo capítulo, retomarei e me aprofundarei sobre algumas dessas
questões nas considerações finais decorrentes desta pesquisa.
247

CAPÍTULO 6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este ano, a APBC comemorou o Dia das Crianças com atividades bem
especiais que juntaram adultos e crianças. A contadora de história Larissa
Antunes, acompanhada da percussionista Maria Ilha, apresentou um
pequeno espetáculo para as famílias com contos e cantigas de roda para
maiores de 2 anos. A atividade aconteceu no dia 7 de outubro, em Canet de
Mar, e no dia 8 de outubro, em Barcelona.
Já para as famílias com crianças com mais de 5 anos, a oficina de teatro
em família, com Flávio Carvalho, foi uma opção bem divertida. A oficina
ocorreu no sábado, dia 8 de outubro, em Barcelona.
Todas as atividades foram gratuitas e abertas ao público, com o apoio do
Prêmio Ponto de Memória APBC.

Conheça a opinião de quem participou

“Sempre quando vamos fazer uma apresentação criamos um espaço aberto


e muito disponível para o que podemos encontrar. E a experiência na
Associação encheu nosso coração de alegria, satisfação e emoção, porque
encontramos crianças curiosas, envolvidas e expressivas a cada momento
da história, e junto a isso, pais emocionados por relembrar e compartilhar
com os filhos as cantigas de roda tradicionais brasileiras. Foi uma
oportunidade de saudar as origens brasileiras com muita alegria, emoção e
união! Ficamos extremamente felizes em fazer parte disso!” – Larissa
Antunes

“Fazer oficinas de teatro, com mães, pais e filhos juntos (e em português,


pra APBC) demonstra que o caminho de educar, com as emoções, com
arte, dá importantes resultados: como aquela menininha que, no final,
abraçou-se na minha perna por um bom tempo – e eu não a esqueço…” –
Flávio Carvalho

“Estivemos principalmente no “cuentacuentos” musical, que foi muito


divertido e culturalmente enriquecedor. Gerou um ambiente muito positivo,
descontraído e bem brasileiro. No final nos sentimos todos como se
estivéssemos em casa cantando e dançando!” – Aisha Guimarães

“A oficina de teatro foi uma atividade ótima para integrar principalmente os


pais. As crianças, em geral, integram-se com mais facilidade, mas os
adultos costumam ser mais inibidos e essa oficina em família criou um clima
de integração muito bom” – Edilaine Aguiar (ASSOCIAÇÃO DE PAIS DE
BRASILEIRINHOS NA CATALUNHA, 2016b)

Encerro esta tese com uma entrada publicada no blog da APBC sobre as
atividades realizadas pelo Dia da Criança, 12 de outubro, em 2016 – comemoração
que não tem equivalente no calendário catalão. A atividade foi realizada no horário
das aulas (portanto, como parte do currículo), por convidados especiais, e não pelas
educadoras. Tanto a narração de histórias como a oficina de teatro previa que pais e
crianças realizassem as atividades juntos. De acordo com o que a nota apresenta,
foi possível “saudar as origens brasileiras” “como se estivéssemos em casa”, “numa
248

atividade ótima para integrar principalmente os pais” por meio de uma “oficina em
família”, “com mães, pais e filhos juntos”, a qual provocou “emoção” nos oficinistas e
nos pais, ilustrando “um caminho de educar, com as emoções, com arte”.
Esse texto do blog, que fornece representações do que a APBC entende
ser o PLH, sintetiza alguns dos resultados da pesquisa descrita nesta tese e ajuda a
responder duas das perguntas de pesquisa: “Qual é a influência dos discursos e das
ações da APBC na construção das representações discursivas das famílias?” e
“Como as professoras percebem o impacto dos discursos e das ações da APBC no
estabelecimento de políticas linguísticas familiares por parte dos pais e das mães de
seus alunos?”.
Retomando o post, e relacionando com a análise das representações
apresentadas no Capítulo 5, tanto em relação aos pais como às professoras, pode-
se constatar que: a APBC cria um espaço que privilegia o uso do português em
contextos coletivos; favorece a criação de vínculos entre os usuários da língua;
reforça a percepção de que os pais são protagonistas no processo de ensino e o
entendimento de que o aprendizado de PLH se dá em contexto familiar, ainda que
se ofereçam aulas de PLH; traz indícios de que o PLH, por ser língua minoritária
num contexto de outra(s) língua(s) majoritária(s), é parte de um repertório linguístico
heterogêneo daqueles que o usam (Aisha, mãe brasileira, utiliza a palavra
espanhola cuentacuentos em seu depoimento); e evidencia que as práticas culturais
realizadas em português e associadas ao Brasil por esse grupo de brasileiros
emigrados mexem com a afetividade, ao menos dos adultos – a palavra
“emoção(ões)” aparece três vezes e “emocionados”, uma, nesse texto de 340
palavras.
A seguir, sintetizo alguns dos outros resultados importantes que emergem
da investigação – e também desse post –, tratando de retomar as demais perguntas
de pesquisa norteadoras do processo.

6.1 Questões de gênero e progenitores que não têm o


português como língua inicial

Os dados gerados pelos homens e pelos participantes não brasileiros são


valiosos para questionar duas ideias preconcebidas que circulam em várias
249

pesquisas em sociolinguística. A primeira delas consiste em focar as investigações


em aquisição de línguas por crianças e sobre transmissão linguística intergeracional
na figura da mãe (como em BOIX-FUSTER e TORRENS GUERINI, 2011),
considerando o papel do pai menos importante. A outra trata de privilegiar a figura
do “falante nativo” – os brasileiros, no caso do PLH – como modelo linguístico a ser
seguido, ofuscando o protagonismo que os não nativos podem ter em diferentes
situações de aquisição de idiomas – o PLH entre elas.
Nas representações que exploram estas duas ideias, pode-se identificar
algumas ideologias que respondem uma das perguntas de pesquisa (“Que
ideologias linguísticas estão na base dessas representações?”): acredita-se que os
pais (os homens) e os não brasileiros também são responsáveis por ensinar PLH ao
filhos e criar um ambiente propício ao aprendizado (mesmo que não falem
português). Em parte, o apoio dos não brasileiros pode ser atribuído à influência de
algumas ideologias linguísticas em voga na Catalunha, como a de que é preciso
defender a língua débil – o PLH, no caso destas famílias.
Talvez certo tempo atrás, num momento em que as mulheres eram as
principais e quase que exclusivas cuidadoras das crianças, e quando havia menos
mobilidade geográfica, a internet não existia e o contato com outras línguas e as
possibilidades de interação nas mesmas fossem mais reduzidos, essas duas ideias
preconcebidas fizessem mais sentido. Hoje, em tempos de pós-modernidade, em
que os papéis de gênero tradicionais são questionados e reconstruídos, com a
mobilidade geográfica como pano de fundo e fator que permite estar em contato e
vivenciar mais línguas e culturas (BLOMMAERT, 2013; CANAGARAJAH, 2013), a
atenção quase exclusiva dada às mães e aos falantes nativos das línguas a serem
transmitidas às seguintes gerações precisa e deve ser revista nas pesquisas
sociolinguísticas.
Durante as observações participantes na APBC, pude constatar como os
pais, os homens, participam cada vez mais no cuidado dos filhos. Já mencionei que,
dos quatro casais das entrevistas e do grupo focal que não moram juntos, três têm a
guarda dos filhos compartilhada. Paralelamente, na APBC não é raro o pai ser o
principal responsável por levar a criança às aulas de Língua e Cultura do Brasil.
Assim, não seria errado dizer que, ao menos no espaço da APBC – o momento das
aulas de português – a responsabilidade de a criança frequentar essa atividade e o
250

próprio espaço da Associação e de participar das possibilidades de interação em


português proporcionadas pela APBC é compartilhada entre os pais e as mães.
No contexto estudado, o protagonismo feminino existe, sim – as mães
ainda superam em número os pais e as mulheres são maioria entre os diretores e
educadores da instituição. Mas há representatividade masculina. Longe de isso ser
indício de que a igualdade de gênero tenha sido alcançada na Catalunha, a
presença de homens nesses espaços deve ser entendida como um fator que
contribui para a legitimação dos discursos que as mulheres, apesar de
protagonistas, desejam propor – e é bem-vinda como caminho para a própria
construção dessa igualdade.
Em relação aos participantes não brasileiros – sejam homens ou
mulheres – a observação participante revelou que eles normalmente compartilham
com os progenitores brasileiros a responsabilidade de acompanhar as crianças à
APBC. Pude registrar que alguns deles falam com muita fluência o português e,
mesmo entre o grupo que não se expressa oralmente no idioma, não há resistência
ao fato de que alguém se dirija a eles em português – esses pais e mães entendem
a língua e aparentemente não se sentem desconfortáveis quando a mesma está
sendo utilizada ao seu redor, respondendo às interações em castelhano. Ou seja: o
fato de não falarem português não significa que a língua não faça parte de seu
repertório linguístico: faz, tanto que lhes permite participar e interagir em situações
em que o português é usado, ainda que eles respondam em outra língua (o que
tampouco constitui um problema, já que seus interlocutores também sabem
castelhano, idioma utilizado na grande maioria dessas interações, em detrimento do
catalão).
No entanto, uma entrevistada relatou que o marido não fala e não
entende português – e, segundo as observações, ele nunca frequentou a APBC.
Assim, é possível que exista uma pequena parcela de progenitores das crianças da
APBC que não se sinta à vontade com a língua portuguesa e não frequente a APBC.
De acordo com o conjunto de dados de que disponho, no entanto, trata-se de uma
minoria.
Essas informações sugerem que, em geral, há um ambiente de
receptividade ao uso da língua portuguesa entre as famílias nos espaços da APBC,
mesmo pelos progenitores que não chegam a falar o idioma. Segundo as
representações, isso ocorre também nos lares da maioria dos entrevistados.
251

6.2 Repertórios linguísticos heterogêneos e cidadania plurilíngue

Se analisarmos as competências linguísticas em português entre os


adultos da APBC veremos que o conjunto é bastante variado: há quem tenha o
português como língua inicial; falantes de outras línguas muito proficientes em
português e não falantes com competências receptivas em português (leitura,
compreensão oral). Mais uma vez, essas competências podem ser distribuídas num
continuum ou num conjunto difuso (MUNNÉ, 2015) onde se situam todas essas
heterogeneidades.
Para representar tal heterogeneidade de competências visualmente,
proponho o seguinte modelo, ilustrado na Figura 16, na próxima página: o eixo
horizontal representa o continuum das competências de compreensão e produção
oral, sendo 0 = não entende nem fala a língua; 0,5 = tem boa compreensão oral da
língua, mas não fala; e 1 = compreende e se expressa muito bem oralmente na
língua, assumindo que para começar a falar é necessário a compreensão oral do
idioma. Reconheço, no entanto, a limitação deste modelo, já que tal questão é
discutível, pois é possível começar a se expressar oralmente numa língua mesmo
sem ter “boa” compreensão oral da mesma. Com base nessa proposta, alguém que
esteja no ponto 0,75 é capaz de entender bem os enunciados orais e se expressar
oralmente num nível intermediário.
De modo similar, o eixo vertical representa o continuum de competências
de leitura e escrita, sendo 0 = não sabe ler na língua, 0,5 = sabe ler com proficiência
na língua, mas não escreve e 1 = sabe ler e escrever com proficiência na língua. Da
mesma maneira, o modelo tem aqui a limitação de que não é necessário saber ler
com extrema proficiência para começar a escrever na língua, porém não é possível
escrever numa língua que não se sabe ler, assim como não é possível falar uma
língua que não se entende.
A título ilustrativo, situo nesse modelo, na Figura 16, as competências
heterogêneas em português de alguns participantes da pesquisa, mencionados a
seguir e indicados pelas letras A a G:

A – Mulher, brasileira, 36 anos, com pós-graduação. Fala e escreve


português com proficiência. Às vezes utiliza palavras espanholas ou catalãs.
252

B – Homem, catalão, 41 anos, graduação completa. Fala muito bem


português, mas comete alguns erros tanto na produção oral como na escrita.
C – Mulher, espanhola, 41 anos, com pós-graduação. Entende muito bem
português, mas não fala, por vergonha. Lê muito bem em português e escreve bem.
D – Homem, catalão, 57 anos, com pós-graduação. Entende muito bem
português, mas não fala. Lê bem em português, mas não escreve.
E – Menino, 9 anos, nascido na Catalunha, fala muito bem português.
Consegue ler em português, mas teve pouco contato com leituras em nessa língua.
Tem dificuldades para escrever em português.
F – Menina, 7 anos, nascida na Catalunha. Entende bem português, mas
fala pouco. Lê muito bem em catalão e espanhol e consegue ler em português.
Consegue escrever um pouco em português e, por ter tido bastante exposição ao
português escrito, escreve melhor que E nessa língua.
G – Menino, 4 anos, nascido na Catalunha, entende bem português e fala
um pouco. Ainda não sabe ler nem escrever.
H – Menina, 3 anos, nascida na Catalunha. Entende um pouco de
português, mas não fala. Ainda não sabe ler nem escrever

Lê e
1 A
escreve bem
Compreensão leitora e produção escrita

C
B

F
E

Lê bem, mas D
0,5
não escreve

H G
Não lê 0
0 0,5 1
Não entende Entende bem, Entende e
mas não fala fala bem

Compreensão e produção oral

Figura 16 – Competências linguísticas heterogêneas em português de alguns membros da


comunidade de fala da APBC
253

Tal modelo pode, por exemplo, ser usado como ferramenta que norteie os
processos de avaliação dos alunos pelas educadoras – e, porque não, também
pelos pais em relação aos filhos. Ele ajuda a entender que desenvolver
competências em PLH é um aprendizado que pode estar atrelado também ao
aprendizado de leitura e escrita na escola, além de dar visibilidade às competências
receptivas (compreensão oral e leitura) dos usuários da língua, as quais costumam
ficar apagadas ou serem menos percebidas nas expectativas de uso da língua
demonstradas pelos pais.
Se, dentro desse um repertório linguístico heterogêneo, por um lado é
necessário dar visibilidade às competências receptivas em português desse grupo,
por outro é igualmente importante ver as marcas das demais línguas do entorno
(catalão e castelhano) no português dos adultos entrevistados, com destaque para
aqueles que nasceram e moraram no Brasil nas primeiras décadas de sua vida. Não
é apenas o português falado pelas crianças aprendizes de PLH que tem
heterogeneidades: o dos adultos, tidos por “falantes nativos”, também.
Em diferentes momentos, os participantes, inclusive os brasileiros, lançam
mão do espanhol – e às vezes do catalão – durante as entrevistas (as quais foram
reproduzidas nos excertos transcritos com uso de itálico, seguidas da respectiva
tradução). Na própria entrada do blog que abre este capítulo, uma das mães utiliza,
como já dito, a palavra cuentacuentos. Essa reflexão é importante no sentido de
desconstruir a ideia de que o português hoje falado por estes adultos brasileiros
continua a ser o mesmo que falariam caso morassem no Brasil, a qual se relaciona
ao ideal do cidadão nacional monolíngue (JAFFE, 2012). É preciso dar visibilidade a
esse repertório heterogêneo e às marcas das outras línguas que o compõem no
português que usam, inclusive no caso de adultos brasileiros com alta escolaridade
e com um projeto declarado de ensinar português aos filhos. Talvez uma maior
consciência de tais usos linguísticos por parte dos próprios pais os levasse a melhor
entender os usos linguísticos dos filhos, também heterogêneos, já que por vezes as
expectativas dos pais no que se refere ao uso do português feito pelas crianças se
espelham no ideal do cidadão nacional monolíngue.
Para essas famílias, o multilinguismo é muito valorizado e é parte de sua
história de vida e do que viveram e vivem em diferentes línguas – com práticas
culturais diferentes, identificadas respectivamente com diferentes idiomas, o que
254

responde outra das perguntas de pesquisa: “Como a relação entre língua e cultura é
percebida?”. Esse conhecimento cultural diverso, somado ao repertório linguístico
heterogêneo – com níveis variados de conhecimento em cada língua, como o que os
dados desta pesquisa descrevem – apontam, como afirmado anteriormente, na
direção do paradigma do cidadão global plurilíngue descrito por Jaffe (2012). A
oscilação entre o paradigma do cidadão nacional monolíngue versus o do cidadão
global plurilíngue responde, da perspectiva das famílias, a outras das perguntas de
pesquisa: “Que conceitos de língua e competência linguística orientam a construção
dessas representações?” e “Que relação estabelecem entre o PLH e outra(s)
língua(s) presente(s)?”. Por outro lado, nas representações das professoras e dos
membros da diretoria, pode-se dizer que predominam as que apontam para o
cidadão global plurilíngue.
Assim, considerando que, independentemente do contexto, seja a
Catalunha ou outro, o PLH será sempre minoritário e estará em contato com outras
línguas, deve-se considerar que o referente de cidadão global plurilíngue é mais
adequado que o do cidadão nacional monolíngue para as reflexões que concernem
o PLH – e cabe supor que isso seja pertinente para as reflexões de LHs em geral.
Dispor de mais pesquisas e aprofundar o conhecimento de pesquisas existentes
sobre outras LHs ampliaria a discussão em torno dessa ideia, o que poderia trazer
valiosas contribuições para campo de estudo das Línguas de Herança.
Por último, em relação à percepção positiva do multilinguismo, a pesquisa
realizada sugere que as ideologias linguísticas da sociedade de acolhida influenciam
as dos imigrantes responsáveis pela transmissão de uma LH que ali residem. Cabe
destacar que o contexto em que esta pesquisa se realizou, a Catalunha, é de
bilinguismo. Assim, é válido questionar se haveria alguma correlação entre o fato de
o contexto de pesquisa ser um espaço bilíngue e tais representações positivas do
multilinguismo, e se haveria equivalentes ou diferenças significativas em relação às
representações de multilinguismo em cenários predominantemente monolíngues.
Para isso, seria interessante dispor de mais pesquisas que relacionem as ideologias
linguísticas dos espaços em que as LHs se desenvolvem e, especificamente, em
que o PLH é transmitido, dando importância às línguas de uso oficial na sociedade
de acolhida.
255

6.3 A afetividade: expectativas e investimento no contexto de LH

Apesar de o PLH não ser a única língua do repertório de seus aprendizes,


argumenta-se que ele é parte das formas cognitivas de vinculação afetiva (DANTAS,
1992; WALLON, 1987) se usado desde a mais tenra infância. Porém, a língua inicial
não é a única em que pais brasileiros podem construir seus vínculos com os filhos:
caso os progenitores brasileiros decidam não utilizar o português, outras línguas
podem ser usadas – tal como alguns progenitores catalães utilizam de forma
preferente o português com seus filhos. Entre as motivações para que os pais
transmitam o PLH a seus filhos – outra das perguntas de pesquisa – destacam-se as
emocionais, embora elas não sejam as únicas.
Primeiramente, ao se contrastarem os dados analisados com a
bibliografia levantada, deve-se lembrar que não há uma narrativa única quanto ao
que é “melhor” ou “pior” em relação a transmitir uma LH aos filhos. Se, para uma
mãe, ensinar sua língua à criança é visto como sumamente importante, para outra, a
língua pode não remeter a experiências passadas agradáveis. Sabe-se que quando
a língua inicial remete a um trauma e o falante migrou para um espaço onde outra
língua é utilizada, ele pode decidir abandoná-la e passar a usar a nova língua como
forma de fechar as portas a esse passado que não se deseja recordar (PAVLENKO,
2005). Em casos assim, seria lógico que esse pai ou mãe não desejasse transmitir
sua LH aos filhos.
Os envolvidos com as questões relacionadas ao PLH devem ser
conscientes dessas outras narrativas possíveis e cuidadosos ao associar a
proficiência linguística de seus filhos à ideia de “boa ma(/pa)ternidade”. Os fatores
que tornam viável a transmissão de uma LH variam: passam, primeiramente, pelo
modo como os progenitores estabelecem suas expectativas (conhecer as práticas
culturais relacionadas à LH, sem que seja necessário conhecimento da língua;
alguma compreensão oral da LH; saber se expressar na LH; saber ler e escrever em
diversos registros da LH etc.), pois é a partir desse referente, muito variável de uma
pessoa para outra e que também se ajusta com o passar do tempo, que irão definir o
sucesso ou fracasso de seu projeto de transmissão linguística intergeracional.
Além disso, mesmo que o brasileiro decida de modo consciente transmitir
o PLH ao filho, os dados desta pesquisa revelam que a participação do progenitor
não brasileiro tem um grande impacto na quantidade de input ao qual o aprendiz
256

está exposto, e tal cooperação pode ser um diferencial no sucesso do projeto. A


isso, somam-se a disponibilidade de tempo do progenitor para dedicar-se à
empreitada (para conviver com os filhos na LH, procurar recursos e materiais em
português, acompanhá-los a aulas e encontros), os fatores econômicos (que têm
impacto na compra de materiais, frequência das viagens ao Brasil, participação nas
aulas) e as ideologias do entorno, as quais podem influenciar a postura adotada
pelos pais.
A seguir, o depoimento de uma mãe brasileira residente nos EUA, por
exemplo, revela ideologias diferentes das identificadas nos participantes desta
pesquisa na Catalunha:

Não queria que eles se sentissem diferentes, então me aderi ao modelo de


“mãe americana”, porque os amo e achei que isto seria o melhor para eles.
Passei a falar quase só em inglês com eles, com exceção de algumas
palavras e frases. [...] Pensei apenas no que ia fazer com que nos
sentíssemos iguais aos outros americanos ao nosso arredor. Até que um
dia eu me dei conta de que falhei.
Meus filhos têm uma mãe brasileira e uma família imensa no Brasil e eles
não falam português. Agora que são adolescentes, eles me culpam por eu
não ter ensinado o meu idioma nativo pra eles. Eu os culpo por não terem
se interessado em aprender. Foi recentemente que realmente percebi o
tamanho do impacto que isto causou na vida deles: nenhum dos meus filhos
desenvolveram um relacionamento afetivo com os avós, tios e primos no
Brasil. Passear no Brasil se tornou, pra eles, uma tortura. Eu me sinto muito
culpada e sinto que falhei como mãe. (ABC MULTICULTURAL, 2017)

Essa mãe diz ter aderido ao modelo de “mãe americana” para que os
filhos não se sentissem diferentes, o que se conseguiria por meio do uso da língua
hegemônica, o inglês. Os dados da pesquisa, por sua vez, apontam para o modelo
de “mãe/pai catalão”, bilíngue, o que parece influenciar o modo como essas famílias
encaram o projeto de transmissão da LH. Apenas uma das entrevistadas declarou
que o marido, cuja família era originária de uma região monolíngue em castelhano,
não tinha interesse em aprender português nem em usar o catalão, apesar de ter
sido escolarizado na Catalunha e conhecer o idioma. Talvez não seja uma
coincidência o fato de ela sentir que a responsabilidade de ensinar português à filha
fosse só dela e, por vezes, sentir que estava fracassando – como a referida mãe
americana, que fracassou sozinha numa responsabilidade que nem sabia ser sua.
Mesmo quando o PLH não foi transmitido, as relações afetivas se viram abaladas
(“nenhum de meus filhos desenvolveram um relacionamento afetivo com os avós,
tios e primos no Brasil”, além do atrito e da “culpa” entre mães e filhos) – e este
257

tópico também merece atenção em pesquisas futuras que desejem explorar a


temática da afetividade nas LHs.
Assim, além das ideologias do entorno, outra das questões que parece
ser determinante para o investimento que a família fará no ensino da LH diz respeito
ao (não-)rompimento na comunicação intergeracional. Os dados aqui analisados
sugerem que, para alguns, investir e promover a LH é fundamental, seja porque é
nessa língua que os pais sentem que se expressam melhor com os filhos, porque é
a que possibilita construir e manter vínculos com as famílias no país de origem e há
o desejo de mantê-los, ou, como relatado por Mota (2010) e em algumas das
representações desta pesquisa, porque os pais não falam com proficiência a língua
majoritária da sociedade de acolhida e a LH seria o único canal de comunicação
eficaz entre pais e filhos. No entanto, esse tema pode ser interpretado de outra
perspectiva.
Por esta pesquisa ter sido focada num grupo altamente comprometido
com a transmissão do PLH, não surpreende que não haja dados que sugiram que o
uso da LH pode prejudicar a comunicação – e o estabelecimento de vínculos – dos
progenitores com seus filhos. Essa situação, no entanto, pode acontecer. Como
Bastardas-Boada (2016) relata, o uso da LH por uma mãe chinesa na Catalunha
também pode significar o afastamento e a possibilidade de rompimento na
comunicação da mãe com o filho: o menino passou a evitá-la por ela se dirigir a ele
em chinês, uma língua que a criança não dominava. Ou, como o depoimento da mãe
americana (ABC MULTICULTURAL, 2017) sugere, usar a LH significaria a
possibilidade de que os filhos fossem estigmatizados nos EUA por serem
identificados como imigrantes. Nesse sentido, seria interessante realizar pesquisas
para entender o que levam famílias a não transmitirem suas LHs aos filhos.
Ainda considerando os dados desta pesquisa, há evidências de que as
experiências emocionais vividas em português podem aumentar os vínculos e a
importância emocional da língua para seu falante – tanto para os progenitores não
brasileiros que usam o PLH com os filhos como para as crianças aprendizes. Por
exemplo, estabelecer vínculos emocionais por meio da LH pode alterar as práticas
linguísticas: o vínculo aluno-professor e entre alunos pode proporcionar mais uso do
português na sala de aula e fora dela, através das relações de amizade que se
estabelecem na classe – e entre os adultos, fora da classe, enquanto esperam os
filhos que estão na aula.
258

Como se explicou, a oportunidade de que as famílias criem vínculos está


entre os propósitos da Associação (ver excerto 59 e também o Estatuto da APBC
(ASOCIACIÓN DE PADRES DE BRASILEIRINHOS EN CATALUÑA, 2009)). As
famílias valorizam a possibilidade de que suas crianças convivam com outras
crianças de origem brasileira, e as professoras identificam essa convivência como
parte do que ajuda os alunos a desenvolverem suas competências em PLH –
sugerindo, inclusive, que o fato de as famílias frequentarem a APBC altera e
potencializa os usos do português em casa. Assim, a existência da Associação se
justifica e se fundamenta também em base às políticas linguísticas de potenciar os
usos do português não só nos espaços institucionais, mas nas práticas linguísticas
realizadas em casa por seus associados. Trabalhar as relações de afetividade,
“educar, com emoções”, é, desse modo, uma das formas de intervir nas políticas e
usos linguísticos dessas famílias – o que é reconhecido pelas professoras em suas
representações e responde a outra das perguntas de pesquisa: “Como as
professoras caracterizam a política e o planejamento linguístico da APBC?”
Como pesquisadora – e mais ainda como pesquisadora situada –, não
estou isenta desse aprendizado emocional, o qual acompanhou meu
posicionamento íntimo com os entrevistados para gerar os dados que apresentei.
Talvez um primeiro passo em minha jornada tenha sido dado ao identificar algumas
respostas emocionais que essa causa que defendo, a promoção do PLH, pode ter
entre os envolvidos, e perceber que nem todas são positivas: orgulho e fracasso
(nos pais, que desejam ensinar), gratidão e rancor (nos filhos, que podem – ou não –
querer aprendê-lo). O resultado do caminho de aprendizagem não é fácil de prever
nem de trilhar e, às vezes, é percorrido sob as sombras da culpa.
Como feminista, espero ter contribuído para um maior entendimento do
fenômeno do PLH e suas variáveis. Entre elas, que a mãe (brasileira, em geral) é,
sim, um fator importante dessa equação, mas não o único: está a postura do pai,
estão as ideologias do entorno, está toda uma história de vida que marca a relação
afetiva (boa ou ruim) dessa mãe com sua língua inicial e das crianças com sua LH.
Transmitir o PLH deve ser entendido como uma possibilidade, não como um dever.
Desejo que esse entendimento ajude a que nenhuma mãe, seja qual for sua história
de vida, se sinta culpada pelo fato de os filhos usarem ou não a língua de herança.
Espero, ainda, que esta pesquisa e suas repercussões sirvam de subsídios para que
se elaborem políticas públicas para o PLH que levem em conta não só as questões
259

de sala de aula, mas também as de casa. E que, de alguma forma, o conhecimento


que sistematizei, às vezes apresentado de forma ousada e provocativa, instigue
questionamentos, respostas, novas pesquisas e mais luz sobre outras perguntas
que não fui capaz de listar.
260

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275

Anexo I: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)

PORTUGUÊS COMO LÍNGUA DE HERANÇA EM BARCELONA: Política e planejamento linguístico


familiar na Associação de Pais de Brasileirinhos na Catalunha
Nome do responsável: Andreia Sanchez Moroni
Número do CAAE: 44633515.3.0000.5404

Você está sendo convidado a participar como voluntário de um estudo. Este documento,
chamado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, visa assegurar seus direitos como
participante e é elaborado em duas vias, uma que deverá ficar com você e outra com o pesquisador.
Por favor, leia com atenção e calma, aproveitando para esclarecer suas dúvidas. Se houver
perguntas antes ou mesmo depois de assiná-lo, você poderá esclarecê-las com o pesquisador. Se
preferir, pode levar para casa e consultar seus familiares ou outras pessoas antes de decidir
participar. Se você não quiser participar ou retirar sua autorização, a qualquer momento, não haverá
nenhum tipo de penalização ou prejuízo.

Justificativa e objetivos:
O Português como Língua de Herança (PLH), ou a língua portuguesa falada e transmitida
pelos brasileiros que moram fora do Brasil a seus filhos, é um fenômeno recente, que começou a se
consolidar a partir das ondas de imigração na década de 1980, e ainda está pouco estudado.
O cenário em que o PLH se desenvolve é muito diferente daquele do português como língua
materna falado no Brasil, pois o PLH é sempre uma língua minoritária, em contato com outras línguas
majoritárias faladas nos países em que estes brasileiros moram. O PLH também é diferente do
português aprendido como língua estrangeira. Atualmente, iniciativas coletivas, como a Associação
de Pais de Brasileirinhos na Catalunha (APBC), desempenham um importante papel na promoção e
transmissão do PLH. Até o momento, a forma de atuação e as estratégias dessas iniciativas foram
pouco estudadas.
Esta pesquisa pretende aprofundar os conhecimentos sobre algumas questões do PLH,
especificamente sobre o planejamento linguístico e as políticas linguística familiares adotadas por um
grupo de famílias sócias da APBC. Para entender o papel que uma associação como a APBC tem na
transmissão do PLH, esta pesquisa pretende conhecer a representação da APBC, através de suas
famílias, do que é PLH.
“Representações” é um conceito usado nos Estudos Culturais para se referir ao processo pelo
qual as pessoas usam a linguagem para atribuir significados e pensar culturas. As representações
podem ser encontradas em discursos pessoais (de pessoas, através de entrevistas, conversas,
atitudes), institucionais (da APBC, através de sua comunicação institucional) ou mesmo através de
práticas sociais.
Os objetivos desta pesquisa são i) descrever e analisar os discursos da APBC sobre políticas
linguísticas para PLH; ii) conhecer as representações das famílias-membros da APBC sobre o
planejamento e as políticas linguísticas para PLH desenvolvidas pela APBC e por suas famílias; e iii)
verificar se esses discursos são coerentes com as práticas observadas nas famílias e na APBC.

Procedimentos:
Participando do estudo você está sendo convidado a:
1. Preencher um questionário com algumas informações biográficas sobre você, sua família (o
outro progenitor de seu(s)/sua(s) filho(s)/a(s) e seu e seu(s)/sua(s) filho(s)/a(s)) e seus usos
linguísticos, que leva cerca de 15 minutos para ser preenchido;
Rubrica do pesquisador:______________ Rubrica do participante:______________

Página 1 de 6
276

2. Participar de uma entrevista individual, de cerca de 1 hora de duração, a ser realizada em um


lugar de sua conveniência (sua casa, restaurante, universidade ou outro de sua preferência)
sobre seus usos linguísticos e os de sua família, incluindo algumas perguntas que podem ser
de cunho pessoal ou sobre sua vida privada familiar. A entrevista será gravada em áudio. A
pesquisadora poderá se deslocar até o lugar escolhido por você para realizar a entrevista.
3. Participar de um grupo de discussão, de cerca de 1 hora de duração, com 5-15 participantes,
para conversar sobre suas opiniões em relação à APBC e às maneiras de cada família
promover as diferentes línguas de seus membros em âmbito social e familiar. Pode ser
necessário que você se desloque até o local em que o grupo de discussão seja realizado. A
discussão ocorrerá numa sala que será reservada para este propósito e à qual apenas a
pesquisadora e os participantes terão acesso.
4. Ser observado em situações sociais promovidas pela APBC, ou por seus membros, por um
período máximo de 24 meses. A pesquisadora irá fazer anotações, mas não irá filmar,
fotografar ou gravar essas situações, que devem ser observadas de modo natural, sem que a
pesquisadora intervenha na rotina ou interação dos participantes e sem que você precise
agendar ou comunicar sua presença ou ausência nessas situações. A pesquisadora também
irá observar a(s) criança(s) pela(s) qual(is) você é responsável nessas situações e você pode
autorizar ou não que a pesquisadora observe as crianças além de você (ver Anexo I).

Desconfortos e riscos:
Durante sua participação na pesquisa, na entrevista individual e no grupo de discussão
podem ser abordados temas de sua intimidade familiar e questões relacionadas à imigração (sua ou
do outro progenitor de seus filhos) que podem gerar desconforto emocional no participante. Caso
você se sinta desconfortável, deve informar à pesquisadora que não deseja abordar o tema ou falar
sobre esse assunto e ele não será abordado.
Você pode se sentir desconfortável ou coibido a agir com naturalidade ao saber que está
sendo observado pela pesquisadora. A pesquisadora tentará agir com naturalidade nas situações
sociais a que tiver acesso para diminuir esse desconforto. Você pode pedir para não ser observado
para as finalidades de pesquisa em certas situações, e a pesquisadora se compromete a respeitar seu
pedido.
Não há riscos físicos previsíveis pela participação neste estudo.
Estima-se que seja necessário cerca de 15 minutos para responder ao questionário, 1h para a
participação na entrevista individual e 1h para a participação no grupo de discussão. O período de
observação pode se estender por até 24 meses. Você pode participar só na entrevista ou só no grupo
de discussão ou em ambos, devendo responder ao questionário em qualquer caso.
Caso deseje retirar seu consentimento total ou parcial para participar na pesquisa ou para
que as informações geradas a partir de sua participação sejam utilizadas, pode fazer isso a qualquer
momento, sem qualquer prejuízo pra você, devendo informar a pesquisadora por escrito.

Benefícios:
Os participantes do grupo de discussão terão a oportunidade de conhecer outras opiniões e
compartilhar experiências de vida com pessoas que têm preocupações semelhantes em relação ao
ensino do PLH aos filhos, o que pode ser enriquecedor para você.
Os participantes das entrevistas individuais terão a oportunidade de ser ouvidos e ter sua
experiência de vida valorizada.
Posteriormente, o conhecimento gerado a partir desta pesquisa e das informações
fornecidas pelos participantes estará disponível à comunidade científica e ao público geral através da
tese de doutorado da pesquisadora, incluída no acervo das bibliotecas da Unicamp e disponível para
consulta, e de artigos científicos sobre este campo do conhecimento. Espera-se que este
conhecimento ajude a gerar um diagnóstico da atuação da APBC, identificando potencialidades
Rubrica do pesquisador:______________ Rubrica do participante:______________

Página 2 de 6
277

e áreas a serem melhoradas, e que possa ser útil na futura gestão desta associação. Caso isto ocorra
e o participante continue vinculado à APBC, poderá ser beneficiado dos resultados desta pesquisa.

Acompanhamento e assistência:
Além de sua participação na entrevista individual e/ou grupo de discussão, a pesquisadora
pode observá-lo em situações sociais vinculadas à APBC (eventos organizados pela mesma, presença
no Centro Cívico Parc Sandaru durante o horário das atividades da APBC), sempre de modo discreto e
em caráter coletivo – ou seja, considerando as interações sociais que ocorrem nessas situações, e
não sua conduta individual. Essa observação será realizada por um período máximo de 24 meses a
partir da assinatura deste termo de consentimento. Não é necessário comunicar à pesquisadora que
você estará nesses espaços e a pesquisadora não irá contatá-lo(a) para saber se você estará
presente, e você pode continuar a frequentar a APBC com a periodicidade que desejar sem que isso
interfira na pesquisa.
A pesquisadora também poderá observar sua interação com outros sócios da APBC em
situações sociais e encontros organizados entre particulares, e não pela APBC, caso tenha acesso a
eles de modo natural e espontâneo (ou seja, sem que seja preciso agendar para que a pesquisadora
esteja presente). Em todo caso, o foco desta observação são as situações sociais e interação entre os
participantes, e nunca seu comportamento individual.
A pesquisadora tentará contatar os participantes para informar que os resultados da
pesquisa se encontram disponíveis, na forma da tese de doutorado, após sua conclusão.
Os riscos de que sejam necessárias intervenções médicas ou terapêuticas em decorrência de
sua participação na pesquisa são considerados desprezíveis e não haverá acompanhamento dos
participantes após o término da pesquisa.

Sigilo e privacidade:
Você tem a garantia de que sua identidade, e a da(s) criança(s) por qual(is) é responsável
legal, será mantida em sigilo e nenhuma informação será dada a outras pessoas que não façam parte
da equipe de pesquisadores. Na divulgação dos resultados desse estudo, o nome de vocês não será
citado.
Após a tabulação das informações dos questionários, os mesmos serão destruídos. Após a
conclusão da tese de doutorado, prevista para março/2017, as gravações das entrevistas e dos
grupos focais serão transferidas para o banco de dados do Grupo de Pesquisa certificado pelo CNPq
“Vozes na Escola: cultura e identidade em cenários sociolinguisticamente complexos”, co-liderado
pela orientadora da pesquisadora, profa. Dra. Terezinha de J. Machado Maher, e pela profa. Dra.
Marilda Cavalcanti, do qual a pesquisadora responsável é membro, e serão apagados de quaisquer
dispositivos de armazenamento de dados da pesquisadora (computador, gravador digital, tablet, HD
externo etc.). As gravações não serão armazenadas ou compartilhadas na rede ou em espaços
virtuais como Dropbox, Google Drive etc.
As anotações das observações serão destruídas ou apagadas dos dispositivos de
armazenamento após o término da pesquisa.

Ressarcimento:
Não haverá ressarcimento de despesas aos participantes. A pesquisadora tentará se adequar
aos espaços e horários mais convenientes do participante para evitar que você tenha que se descolar
ou tenha gastos com transporte.

Contato:
Em caso de dúvidas sobre o estudo, você poderá entrar em contato com a pesquisadora:

Rubrica do pesquisador:______________ Rubrica do participante:______________

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278

Andreia Sanchez Moroni


Universidade Estadual de Campinas – Unicamp
Instituto de Estudos da Linguagem
Rua Sérgio Buarque de Holanda, no 571
CEP 13083-859 - Campinas - SP - Brasil
Tel: +34 678 823 524, +55 19 3251-7573
e-mail: andreiamoroni@gmail.com

Em caso de denúncias ou reclamações sobre sua participação e sobre questões éticas do estudo,
você pode entrar em contato com a secretaria do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da UNICAMP:
Rua: Tessália Vieira de Camargo, 126; CEP 13083-887 Campinas – SP; telefone (19) 3521-8936; fax
(19) 3521-7187; e-mail: cep@fcm.unicamp.br

Consentimento livre e esclarecido:


Após ter sido esclarecido sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos,
benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar, aceito
participar:

Nome do(a) participante:


________________________________________________________

_______________________________________________________ Data:
____/_____/______.
(Assinatura do participante)

Responsabilidade do Pesquisador:
Asseguro ter cumprido as exigências da resolução 466/2012 CNS/MS e
complementares na elaboração do protocolo e na obtenção deste Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido. Asseguro, também, ter explicado e fornecido uma cópia deste
documento ao participante. Informo que o estudo foi aprovado pelo CEP perante o qual o
projeto foi apresentado. Comprometo-me a utilizar o material e os dados obtidos nesta
pesquisa exclusivamente para as finalidades previstas neste documento ou conforme o
consentimento dado pelo participante.

______________________________________________________ Data:
____/_____/______.
(Assinatura do pesquisador)

*** Este documento deve ser assinado em duas vias, uma para a
pesquisadora e uma para o participante. ***

Rubrica do pesquisador:______________ Rubrica do participante:______________

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279

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO


ANEXO I:
OBSERVAÇÃO DE CRIANÇAS PELAS QUAIS
O PARTICIPANTE É RESPONSÁVEL LEGAL

PORTUGUÊS COMO LÍNGUA DE HERANÇA EM BARCELONA: Política e planejamento linguístico


familiar na Associação de Pais de Brasileirinhos na Catalunha
Nome do responsável: Andreia Sanchez Moroni

A pesquisadora irá observar as crianças da APBC em situações sociais, como aulas de


português, o Centro Cívico Parc Sandaru, eventos organizados pela APBC, aulas de capoeira, oficinas
artísticas, tanto em sua interação com outras crianças como com adultos, sempre de modo discreto e
em caráter coletivo – ou seja, considerando as interações sociais que ocorrem nessas situações, e
não a conduta individual da criança. Essa observação será realizada por um período máximo de 24
meses a partir da assinatura deste termo de consentimento. Não é necessário comunicar à
pesquisadora que a criança estará nesses espaços e a pesquisadora não irá entrar em contato com
você para saber se a criança irá estar presente em uma dada situação, e a criança pode continuar a
frequentar a APBC e as atividades organizadas por esta associação com a periodicidade que o
responsável legal desejar, sem que isso interfira na pesquisa.
A pesquisadora também poderá observar a interação da criança com outros sócios, crianças
ou professores da APBC em situações sociais e encontros organizados entre particulares, e não pela
APBC, caso tenha acesso a eles de modo natural e espontâneo (ou seja, sem que seja preciso agendar
para que a pesquisadora esteja presente ou sem que a pesquisadora precise entrar em contato com
os responsáveis legais para ter acesso a essas situações). Em todo caso, o foco desta observação são
as situações sociais e interação entre os participantes, e não o comportamento individual da criança.

Consentimento livre e esclarecido:


Após ter sido esclarecido sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos,
benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar, aceito a
participação dos seguintes menores de idade pelos quais sou responsável legal:

Nome da criança (LETRA DE FORMA) Documento No. (RG, DNI, NIE ou


passaporte)

Nome do(a) responsável legal: __________________________________________________

_____________________________________________________ Data: ____/_____/______.


(Assinatura do RESPONSÁVEL LEGAL)

Rubrica do pesquisador:______________ Rubrica do participante:______________

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280

Responsabilidade do Pesquisador:
Asseguro ter cumprido as exigências da resolução 466/2012 CNS/MS e
complementares na elaboração do protocolo e na obtenção deste Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido. Asseguro, também, ter explicado e fornecido uma cópia deste
documento ao RESPONSÁVEL LEGAL pela criança participante. Informo que o estudo foi
aprovado pelo CEP perante o qual o projeto foi apresentado. Comprometo-me a utilizar o
material e os dados obtidos nesta pesquisa exclusivamente para as finalidades previstas neste
documento ou conforme o consentimento dado pelo participante.

______________________________________________________ Data:
____/_____/______.
(Assinatura do pesquisador)

*** Este documento deve ser assinado em duas vias, uma para a
pesquisadora e uma para o participante. ***

Rubrica do pesquisador:______________ Rubrica do participante:______________

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281

Anexo II: Questionário para entrevistados

Representações sobre PLH na APBC

Data em que respondeu o questionário: / /

Sobre você Sobre o outro progenitor da criança

Data de nascimento: / / Data de nascimento: / /

Idade: Idade:

Sexo:  Masculino (sou o pai) Sexo:  Masculino (ele é o pai)


 Feminino (sou a mãe)  Feminino (ela é a mãe)

Local de nascimento: Local de nascimento:


Cidade: Cidade:
Estado ou comunidade: Estado ou comunidade:
País: País:

Há quanto tempo mora na Espanha? Onde o outro progenitor mora?


 Comigo
E na Catalunha?  Em outro lugar: _____________

Cidade onde mora hoje:

Você morou em algum outro país além da O outro progenitor morou em algum outro país
Espanha? Onde e quando? além da Espanha? Onde e quando?

Qual seu nível de escolarização? Qual o nível de escolarização do outro progenitor


de seu(s) filho(s)/sua(s) filha(s)?

 ESO/Ensino Fundamental completo  ESO/Ensino Fundamental completo


 Bachillerato/Ensino Médio completo  Bachillerato/Ensino Médio completo
 Universidade incompleta  Universidade incompleta
 Universidade completa  Universidade completa
 Especialização/Postgrado  Especialização/Postgrado
 Mestrado/Máster  Mestrado/Máster
 Doutorado/Doctorado  Doutorado/Doctorado
282

Profissão: Profissão do outro progenitor:


__________________________________ ____________________________________
Trabalha no momento?  Sim  Não
Trabalha no momento?  Sim  Não

Seu estado civil:

Quem mora na mesma casa que você?

Você mora com seu(s) filho(s)/sua(s) filha(s)?  Sim  Não

Se não mora com ele(s)/ela(s), com que frequência o(s)/a(s) vê?

Qual sua(s) língua(s) materna(s)?

Que línguas você fala com seu(s)/sua(s) filho(s)/filha(s)? (Se forem línguas diferentes com cada criança,
especificar)

Que língua você fala com as outras pessoas que moram com você, além de seu(s) filho(s)/sua(s)
(s)/filha(s)? (Se forem línguas diferentes com cada pessoa, especificar)

Que língua você mais usa nas suas relações sociais fora de casa?
a) Com amigos:
__________________________________________________________________________

b) No trabalho:
___________________________________________________________________________

c) Em cursos, atividades esportivas, associações:


________________________________________________

d) Na igreja ou centro religioso:


______________________________________________________________
283

Além de sua língua materna, que outras línguas você fala?


Conhecimento (assinale com um X)
Língua
básico intermediário avançado fluente

Qual a língua que você mais gosta de falar?

Sobre seus filhos

Filho(a) 1

Nome (opcional):

Data de nascimento:

Sexo:  Masculino  Feminino

Que outras línguas seu filho ou sua filha conhece e por quê? (aprende na escola, língua da família, faz
curso, língua do lugar que morou...)

Ele/Ela frequenta as aulas de português da APBC?  Sim  Não


Se sim: Desde quando?
Em que turma está?

Que língua seu filho/sua filha fala com você?

Que língua seu filho/sua filha fala com o outro progenitor da criança?

Que língua seu filho/sua filha fala com os irmãos?

Em que língua(s) seu filho/sua filha está sendo escolarizado? Em que língua(s) são os livros didáticos que
ele/ela usa?
284

Filho(a) 2

Nome (opcional):

Data de nascimento:

Sexo:  Masculino  Feminino

Que outras línguas seu filho ou sua filha conhece e por quê? (aprende na escola, língua da família, faz
curso, língua do lugar que morou...)

Ele/Ela frequenta as aulas de português da APBC?  Sim  Não


Se sim: Desde quando?
Em que turma está?

Que língua seu filho/sua filha fala com você?

Que língua seu filho/sua filha fala com o outro progenitor da criança?

Que língua seu filho/sua filha fala com os irmãos?

Em que língua seu filho/sua filha está sendo escolarizado? Em que língua são os livros didáticos que
ele/ela usa?

Filho(a) 3

Nome (opcional):

Data de nascimento:

Sexo:  Masculino  Feminino

Que outras línguas seu filho ou sua filha conhece e por quê? (aprende na escola, língua da família, faz
curso, língua do lugar que morou...)
285

Ele/Ela frequenta as aulas de português da APBC?  Sim  Não


Se sim: Desde quando?
Em que turma está?

Que língua seu filho/sua filha fala com você?

Que língua seu filho/sua filha fala com o outro progenitor da criança?

Que língua seu filho/sua filha fala com os irmãos?

Em que língua seu filho/sua filha está sendo escolarizado? Em que língua são os livros didáticos que
ele/ela usa?
286

Anexo III: Roteiro de entrevista

Pesquisa de campo de Andreia Moroni:


Representações sobre PLH na Associação de Pais de Brasileirinhos na Catalunha

1. Como você chegou a Barcelona? Por que você veio morar em Barcelona? [se for brasileiro]
Como você se aproximou do Brasil? De onde você é? Por que veio morar em Barcelona? [se
não for brasileiro]

2. Como você conheceu o pai/mãe de seu(s) filho(s)/sua(s) filha(s)? Que língua falava com
ele/ela quando se conheceram? Essa língua mudou com o passar do tempo? Se sim, que
língua vocês passaram a utilizar um com o outro e qual foi o motivo dessa mudança?

3. Você teve que aprender a língua materna do companheiro/a? Seu companheiro/a teve que
aprender sua língua materna?

4. Como foi esse processo de aprendizagem para vocês? Foi difícil? Foi prazeroso?

5. Você chegou a pensar sobre que língua falaria com seu filho quando estava grávida/sua
companheira estava grávida? Vocês conversaram sobre isso em algum momento após o
nascimento da criança? Chegaram a fazer algum plano em relação a isso?

6. O que você acha de ser brasileiro/a na Catalunha? [se for brasileiro]

7. Como você vê os brasileiros que moram na Catalunha? Como você vê a comunidade


brasileira na Catalunha? Que línguas os brasileiros que moram aqui falam? Falam bem?

8. Como você vê o multilinguismo da Catalunha? Você fala espanhol? Catalão? Qual dessas
línguas você acha mais bonita, mais fácil e mais importante?

9. Você acha fácil ou difícil entender o português? [se não for brasileiro]

10. Como você soube da existência da APBC?

11. Qual foi sua primeira impressão dessa Associação?

12. O que você acha da APBC hoje? O que tem de bom nessa Associação? O que você não gosta
nela?

13. Por que você traz/não traz seu filho às aulas de português da APBC?

14. Você acha importante ele aprender a língua portuguesa ou para você é mais importante ele
conhecer a cultura do Brasil que a língua?
287

15. O que o outro progenitor do seu filho/da sua filha acha de ele/ela vir às aulas? Ele traz a
criança?

16. Na sua opinião, o que seu filho/sua filha aprende nas aulas?

17. Com que frequência você vem à APBC? Todo sábado? Nem sempre? Por quê?

18. Como você se relaciona com as outras famílias da APBC? O que você faz enquanto seu
filho/sua filha está assistindo as aulas de português? Você vê essas pessoas fora do Centro
Cívico Sandaru?

19. Você gosta de ser sócio da APBC?

20. Você frequenta os eventos da APBC? De quais atividades você participa? Por quê?

21. Você fala português com seu filho/sua filha em casa? Em que situações? Por quê? Que outras
línguas você usa em casa e com seu filho/sua filha?

22. Você fala português com seu filho/sua filha fora de casa? Em que situações? Por quê? Que
outras línguas você usa fora de casa e com seu filho/sua filha?

23. Você fala português com seu filho/sua filha na frente dos seus amigos? E dos amigos da
criança?

24. O que você acha de seu filho/sua filha aprender mais de uma língua? Quais línguas ele/ela
fala? Qual delas é mais importante pra você?

25. Para você, como é educar seu filho em mais de uma língua? [fácil/difícil/me sinto inseguro/a
etc.] E para seu/sua atual companheiro/a? [Caso o/a companheiro/a não seja o pai/mãe da
criança:] E para o outro progenitor da criança?

26. O que seu filho/sua filha acha de ter que fazer um curso aos sábados?

27. O que seu filho/sua filha acha de falar português? Qual a atitude dele/dela em relação a essa
língua?

28. O que seu filho/sua filha acha de falar outras línguas? Qual a atitude dele/dela em relação a
essas outras línguas? [qual a língua da escola/da família/das brincadeiras, qual língua a
criança prefere usar]

29. O que você acha do papel da professora de português na vida do seu filho/sua filha?

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