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CAPA
agronegócio no Brasil
bomba-relógio microbiológica em
crescente tensão.
O enfileiramento de milhares de
animais geneticamente similares
nos galpões do agronegócio também
funciona como uma plataforma de
A entropia interna ao sistema agropecuário global deve ser entendida como uma ameaça testes para o transbordamento de
existencial para toda a humanidade. O admirável mundo novo das pandemias rebaixou os doenças zoonóticas para as popula-
ções humanas. A qualquer momento
limites para a existência humana: agora estamos presos debaixo do teto de zinco das uma cepa recém-emergente de um
granjas de abate de animais em massa, cada uma delas uma fábrica em potencial da coronavírus ou influenza pode assu-
próxima bomba microbiológica mir um rearranjo genético capaz de
infectar humanos – geralmente um
trabalhador do agronegócio –, e
POR ALLAN RODRIGO DE CAMPOS SILVA* pronto: está aberta a longa rampa de
mais uma epidemia mortal. O para-
digma da biossegurança oferece ní-
ADMIRÁVEL MUNDO NOVO veis adicionais de pressão para a
© Alan Santos/PR
A
estratégia diversionista prati- Em junho, no Rio Grande do Sul, 25% que popularizaram a noção de me- em um frigorífico de Hong Kong.
cada pelo governo Bolsonaro dos infectados trabalhavam em frigo- lhoramento genético como forma de O vírus Sars-CoV-2, que causa a
de tola não tem nada. Suas pe- ríficos de aves de porcos. Logo a incremento da dominação humana doença Covid-19, ainda não teve sua
ças se orientam por táticas de doença também alcançou os territó- sobre a natureza. No entanto, ainda origem completamente desvelada
contrainteligência. A confusão dirige rios indígenas. As primeiras contami- que compartilhe esse assoalho co- pelos pesquisadores. No entanto, for-
e antecipa a imagem do inimigo da nações entre guaranis de Mato Gros- mum com a eugenia humana, o me- talecem-se as evidências de que se
vez, enquanto qualquer responsabi- so do Sul aconteceram nos frigoríficos lhoramento genético de plantas e trataria de um vírus zoonótico que
lidade é dirimida em um malabaris- da JBS. O ambiente de ventilação con- animais decantou na ideologia da percorreu uma série de transborda-
mo macabro, nascido do obscuran- trolada, o trabalho ombro a ombro e a modernização capitalista como se se mentos entre espécies de animais até
tismo e do desejo de morte. Foi assim negligência das empresas diante de tratasse de uma conquista civiliza- encontrar seu caminho de infecção
nos episódios do derramamento de funcionários com sintomas da Co- tória biossegura que nos afastaria da em humanos. Ao menos um hospe-
petróleo no litoral brasileiro e nas vid-19 fez dos frigoríficos focos para o insegurança alimentar crônica. deiro intermediário, o pangolim, tem
queimadas da Amazônia, no já dis- superespalhamento da doença. Um olhar mais atento às dinâmi- presença nessa cadeia de contágios
tante ano de 2019. Diante da pande- Logo a pandemia aterrissou tam- cas epidemiológicas do setor pode re- subsequentes por causa da indústria
mia de Covid-19 no Brasil, esse go- bém nas pistas de pouso do garimpo velar o contrário. De acordo com o de carnes exóticas em franco proces-
verno não agiu diferente: comandou ilegal invasor das terras Yanomami e biólogo evolucionista Rob Wallace so de modernização na China.
um esforço coordenado para blindar Ye’kwana. De acordo com um estu- (Pandemia e agronegócio: doenças in- De acordo com Rob Wallace, esta-
o agronegócio diante de sua respon- do conduzido pela Rede Pró-Yano- fecciosas, capitalismo e ciência, Edito- ríamos já diante de uma enxurrada de
sabilidade na emergência e no contá- mami e Ye’kwana, em novembro de ra Elefante e Igrá Kniga, 2020), as ins- novos coronavírus. Em apenas dezes-
gio por doenças infecciosas emer- 2020, um em cada três desses indíge- talações de criação e engorda da sete anos já passamos por três fenô-
gentes. O Ministério da Saúde chegou nas já havia sido exposto ao novo co- pecuária industrial ofereceriam con- menos de transbordamento de coro-
a desviar parte de sua verba para pe- ronavírus. Mas da floresta também dições ideais para patógenos – vírus e navírus que causam doenças em
ças publicitárias para o agronegócio, se erguem vozes que guardam uma bactérias – testarem caminhos evolu- humanos: Sars-1, Mers e Sars-2. Em
num ato de derradeira capitulação. longa memória sobre as doenças tra- tivos que permitiriam o aumento de outubro de 2020, uma pesquisa des-
Em 2020, a saúde não foi pop. zidas pela colonização. O xamã Davi sua virulência e patogenicidade. Até a pertou a atenção de epidemiologistas
Kopenawa nos lembra que entre os chamada revolução agropecuária do ao constatar que outro coronavírus, o
A FUMAÇA DA PANDEMIA Yanomami sempre se falou da xawa- século XX, a criação humana de ani- Sads-CoV, se revelou capaz de infec-
Ao longo do ano, a pandemia se alas- ra, a fumaça que emana do metal ar- mais para consumo sempre esteve li- tar células humanas. O Sads-CoV é
trou pelo território brasileiro como rancado pelo homem branco das en- gada à reprodução dos animais in lo- conhecido por provocar uma síndro-
uma linha de pólvora estendida no tranhas da terra. A xawara, a fumaça co. Essa prática milenar está na base me digestiva grave em porcos de cria-
chão. Fez seu curso através das gran- da epidemia, é uma fecunda alegoria de uma pecuária que amplifica a di- ção nos Estados Unidos. As mensa-
des cidades, depois encontrou seu ca- da produção de doenças pela mo- versidade genética e imunológica dos gens de alerta não param de chegar:
minho de interiorização no país nas dernização capitalista e a destruição bandos de aves, porcos, cordeiros, ca- 17 milhões de visons foram sacrifica-
instalações do próprio agronegócio. da natureza. prinos e bovinos em todo o planeta. A dos para interromper um surto na Di-
JANEIRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 5
namarca. Caso as fazendas de visons grafia global das doenças emergentes aves migratórias selvagens e aves de brar que a destruição das florestas
houvessem produzido um novo rear- está no Delta do Rio das Pérolas, na criação. Quando os vírus das aves sel- tropicais africanas e a pressão do
ranjo genético do vírus Sars-Cov-2, o baía onde estão Hong Kong, Macau e vagens infectam, por exemplo, um ce- agronegócio do óleo de palma pro-
esforço global de produção de vacinas as províncias de Guangzhou e Shen- leiro de frangos de corte, encontram duziram a maior epidemia de ebola
poderia ter sido seriamente compro- zhen, moradia de 22 milhões de pes- uma via livre para testar caminhos de da história, que levou 11 mil pessoas
metido. Uma futura pandemia que soas. Com a abertura da Zonas Eco- evolução para sua patogenicidade e à morte entre 2013 e 2015.
fosse capaz, logo de saída, de infectar nômicas Especiais ao capital virulência, sem, contudo, contar com Definitivamente, as mensagens
humanos e animais de criação seria internacional nos anos 1980, a ecolo- os mecanismos de interrupção de de alerta não param de chegar. Aos
exponencialmente mais difícil de gia do delta foi radicalmente trans- doenças com que as florestas e os ban- poucos a comunidade científica e a
controlar. O Global Virome Project es- formada: terraplanagem, drenagem dos de animais selvagens possuem em sociedade civil tomam conhecimen-
tima que existam mais de 1 milhão de de áreas úmidas, urbanização exten- razão de sua biodiversidade. to da poluição epidemiológica ine-
vírus desconhecidos circulando em siva, industrialização e consolidação A modernização agropecuária da rente ao sistema industrial de criação
animais selvagens, dos quais metade de complexos agroindustriais. China, que encarna esse roteiro, de animais e à produção de alimen-
tem potencial para causar zoonoses. Em todo o planeta, as áreas úmi- eclodiu na epidemia de gripe aviária tos do agronegócio capitalista. Um
A entropia interna ao sistema das como pântanos, turfas e charcos de 2003. O Pantanal brasileiro, uma mundo onde a criação de animais
agropecuário global deve ser enten- atuam como zonas de pousio e inver- das maiores planícies alagáveis do não esteja sujeita aos ditames auto-
dida como uma ameaça existencial nada para bandos de aves migrató- planeta, área de pousio para mais de destrutivos tanto para a biodiversi-
para toda a humanidade. Se nos anos rias que são reservatórios para diver- seiscentas espécies de aves, encaixa- dade como para a própria humanida-
da Guerra Fria a humanidade viveu sas cepas de vírus da influenza. -se de maneira perfeita e terrível nes- de pode ser um ponto de partida para
debaixo do teto de aço da ameaça Contudo, diante de sua alta variabili- se mesmo arranjo ecológico-econô- o enfrentamento mais amplo do sis-
nuclear, o admirável mundo novo dade genética, nesses bandos de aves mico. No Pantanal, a criação de aves, tema capitalista como um todo. To-
das pandemias rebaixou os limites selvagens prevalecem vírus de baixa a pecuária bovina e a produção in- davia, o imperativo por transforma-
para a existência humana: agora es- patogenicidade, já que os de alta pa- tensiva de soja, milho e cana-de-açú- ção já não é mais uma admoestação
tamos presos debaixo do teto de zin- togenicidade em geral infectam al- car avançam pari passu com a drena- proselitista, mas uma terrível atuali-
co das granjas de abate de animais guns indivíduos sem conseguir esta- gem das áreas úmidas. A região zação dos limites para a existência
em massa, cada uma delas uma fá- belecer uma cadeia de contágio. pan-amazônica é o outro bioma sob humana sobre o planeta. Falta muito
brica em potencial da próxima bom- À medida que a produção agrope- profunda ameaça sanitária, já que se pouco para o “tarde demais”.
ba microbiológica. cuária avança sobre as áreas úmidas, trata, com toda a probabilidade, do
drenadas para a formação de campos maior repositório de coronavírus do *Allan Rodrigo de Campos Silva é geó-
ECOLOGIAS PROTOPANDÊMICAS de cultivo, esses bandos de aves per- planeta. A ecologia da Amazônia, grafo e doutor em Geografia Humana pela
A cadeia de contágio de todas as dem suas áreas de pousio e passam a profundamente complexa, contém USP. Traduziu o livro Pandemia e agrone-
doenças infecciosas emergentes co- forragear em meio aos restos das pro- cascatas de controle epidemiológico gócio, de Rob Wallace (Elefante e Igrá
meça com a destruição da natureza. duções de grãos das fazendas. Essa que os cientistas com muito esforço Kniga, 2020) e é membro do Fórum Popu-
Um caso exemplar para a nova geo- pressão aumenta a interface entre começaram a desvendar. Vale lem- lar da Natureza.
C
omumente se apregoa o caráter comparação entre mulheres e homens, Nas periferias, as precárias condi- social latino-americana de que, nu-
democrático da contaminação para elas os dados indicaram 57,8%, ções de moradia, o desemprego, a fal- ma mesma sociedade, as classes que
causada pelo coronavírus (Sars- ante 42,2% no que se referia à apresen- ta de saneamento, a baixa presença e a compõem mostrarão condições de
-CoV-2) causador da Covid-19, tação dos sintomas.2 Esses números a difícil situação dos equipamentos saúde-doença distintas.6
que supostamente não diferenciaria sugerem questões de extrema impor- de saúde expõem esses territórios a É por essas lentes que observamos
gênero, etnia e conta bancária, atin- tância para a análise da pandemia: índices de contágio muito maiores do com atenção o avanço da pandemia
gindo toda a população. Afirmamos, desmentem a “democracia” da conta- que nas áreas nobres das cidades.4 nos frigoríficos, setor que sempre teve
em contraposição, que a preservação minação pelo vírus e apontam para a São as trabalhadoras e trabalhadores como características as condições de
da saúde em meio à pandemia é uma necessidade de abordar a determina- que não possuem o direito ao traba- trabalho degradantes, com inúmeros
questão que reforça desigualdades es- ção social do processo saúde-doença. lho remoto nem ao isolamento – por- casos de acidentes e doenças do tra-
truturais.1 Levantamento do Instituto No Brasil, o vírus chegou por via tanto, obrigados pelas condições de balho,7 como as lesões por esforços
Brasileiro de Geografia e Estatística aérea, ou seja, por meio da parcela da sobrevivência a ir para a rua, a usar repetitivos (LER/Dort) e agravos à
(IBGE), de junho de 2020, indicou que, população com condições financei- transportes coletivos lotados e a tra- saúde mental, empregos com baixa
entre as pessoas que disseram ter al- ras de viajar de avião, mas vitimou balhar nos serviços essenciais5 – os remuneração (no Brasil, 86% dos tra-
gum sintoma de síndrome respirató- Rosana Aparecida Urbano, a traba- mais atingidos pela pandemia. Esse balhadores ganham no máximo três
ria, 68,3% eram pretos ou pardos, con- lhadora doméstica da casa, primeira contexto reforça a atualidade do ar- salários mínimos) 8 e intensa rotativi-
tra apenas 30,3% de brancos. Na morte no estado do Rio de Janeiro.3 gumento dos estudos da medicina dade da mão de obra. Tais caracterís-
6 Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
Geopolítica da fome
Não surpreende que a falsa promessa de acabar com a fome por meio do aumento da produtividade
agropecuária nunca tenha se cumprido. Verdade seja dita, desde a consolidação do setor agroindustrial,
a fome continuou crescendo. Dados da FAO revelam que, antes da pandemia, uma em cada quatro
pessoas no mundo passava fome: quase 2 bilhões de pessoas
N
o início do século XX, as duas sociais capitalistas (em especial a pro- mente desigual.4 Chama atenção, nes- Caso essa projeção se confirme, a
grandes guerras explicitaram a priedade privada da terra) e que na- se sentido, a combinação entre a doci- pandemia será responsável por mais
importância estratégica dos ali- quele momento serviu de justificativa lidade com a qual as classes mortes relacionadas à fome e à má
mentos para os Estados nacio- para impor uma Revolução Verde aos proprietárias aceitam o controle ex- nutrição do que às infecções pelo no-
nais. Como em outros conflitos arma- países periféricos. terno de suas economias e a violência vo coronavírus. Contudo, se 2020 por
dos, a pilhagem de alimentos dos A universalização do modelo que dispensam aos trabalhadores no muito tempo será lembrado por conta
países ocupados foi acompanhada de agroindustrial ocorreu em meio a is- campo e na cidade. dos efeitos desastrosos da pandemia,
estratégias como bloqueios navais e so e contribuiu decisivamente para a Além disso, os questionáveis ga- ao mesmo tempo foi particularmente
cercos militares para debilitar a dis- constituição de um novo padrão de nhos de produtividade obtidos por positivo para o setor agroindustrial,
ponibilidade de alimentos dos inimi- dominação, que assumiu uma forma meio da integração com a agroindús- que entre outros feitos atingiu uma
gos. Não se tratava apenas de prejudi- mais complexa após os processos de tria impõem uma exploração ainda safra mundial recorde de cereais e se
car os suprimentos alimentares das independência das antigas colônias mais intensa dos recursos naturais, beneficiou com a valorização das
forças militares, mas de utilizar os ali- europeias.2 Motivados pelos ganhos com uma lista de consequências am- commodities agrícolas (o índice de
mentos como armas de guerra tam- econômicos que a incorporação do bientais já bem conhecida e docu- preço dos alimentos da FAO atingiu
bém contra os civis, provocando o alardeado pacote tecnológico pode- mentada: o avanço do desmatamen- seu ponto mais alto desde 2014).7
caos em território inimigo. Por essa ria proporcionar, os grandes proprie- to, a perda da biodiversidade, a erosão Desse modo, a pandemia não fez
razão, somente na Segunda Guerra tários de terra (elite latifundiária) e contaminação dos solos, a poluição mais do que aprofundar os danos
Mundial pelo menos 20 milhões de também se interessavam pela prote- do ar e das águas, entre outras. Por causados pelo modelo agroindustrial
pessoas morreram de fome e doenças ção política e, por vezes, militar que fim, como Rob Wallace evidencia, a e explicitar como o uso ideológico da
associadas à má nutrição, cifra similar os Estados Unidos ofereciam a seus expansão da agroindústria está dire- noção de segurança alimentar serve
aos 19,5 milhões de militares mortos.1 aliados em um contexto internacio- tamente relacionada com as infec- apenas para apresentar os interesses
É nesse contexto que emerge a no- nal marcado pela perspectiva de re- ções pandêmicas, tais como a do no- particulares dos grandes proprietá-
ção de segurança alimentar. Prove- formas sociais ou revoluções de cará- vo coronavírus.5 rios de terra e das empresas transna-
niente da terminologia militar, ela ter socialista.3 cionais desse setor como se fossem
constituiu parte importante das estra- É nesse contexto que se consolida interesses gerais, ocultando os anta-
tégias de defesa dos Estados direta ou em escala global um setor agroindus- A pandemia pode ser gonismos e contradições que carac-
indiretamente envolvidos nesses con- trial caracterizado pela intensificação responsável pelo terizam a forma como os alimentos e
flitos. Porém, terminada a Segunda das trocas entre os produtores agro- a fome são produzidos.
Guerra, essa noção passou a servir a pecuários (em especial o latifúndio
crescimento de 83
novos propósitos. Em um período de monocultor, mas também os peque- milhões a 132 milhões *José Raimundo Sousa Ribeiro Junior é
intensa disputa por áreas de influên- nos e médios produtores) e as indús- na quantidade de doutor em Geografia Humana pela USP,
cia política, econômica e militar entre trias (sobretudo grandes empresas pessoas cronicamente professor visitante do Instituto de Saúde e
os blocos capitalista e socialista, os Es- transnacionais) que lhes fornecem Sociedade da Unifesp e membro do Grupo
tados Unidos souberam explorar o pa- bens e serviços e processam, transfor-
desnutridas no mundo de Trabalho sobre a Questão Alimentar da
pel estratégico dos alimentos em sua mam e distribuem a produção agro- Associação dos Geógrafos Brasileiros
busca pela hegemonia global. Com o pecuária. Gradativamente esse setor Não surpreende, portanto, que a (AGB-SP).
apoio de organizações internacionais também foi atravessado pela finan- falsa promessa de acabar com a fome
1 L izzie Collingham, The taste of war: world war
como a Organização das Nações Uni- ceirização, que penetrou tanto a ativi- por meio do aumento da produtivida- II and the battel for food [O sabor da guerra:
das para a Alimentação e Agricultura dade produtiva como a comercializa- de agropecuária nunca tenha se cum- Segunda Guerra Mundial e a batalha por co-
(FAO) e o Banco Mundial, criadas no ção dos alimentos (commodities). prido. Verdade seja dita, desde a con- mida], Nova York, Penguin, 1992.
2 Florestan Fernandes, Capitalismo dependen-
pós-guerra, construiu-se a compreen- Apesar de se apresentar como ino- solidação do setor agroindustrial, a te e classes sociais na América Latina , Rio de
são de que a persistência da fome na vador e promotor da segurança ali- fome continuou crescendo. Dados da Janeiro, Zahar, 1975.
periferia do capitalismo era resultado mentar, esse setor reforçou o papel FAO revelam que, antes da pandemia, 3 D avid Harvey, O novo imperialismo, São Pau-
lo, Loyola, 2012.
da baixa produtividade de seus setores historicamente atribuído aos territó- uma em cada quatro pessoas no mun- 4 Ariovaldo Umbelino de Oliveira, A mundializa-
agropecuários, incapazes de fornecer rios periféricos na divisão internacio- do passava fome (quase 2 bilhões de ção da agricultura brasileira , São Paulo, Iãnde
alimentos em quantidade suficiente nal do trabalho, fixando-os priorita- pessoas), a imensa maioria em países Editorial, 2016.
5 R ob Wallace, Pandemia e agronegócio: doen-
para uma população crescente. Ocul- riamente como exportadores de periféricos: um quinto da população ças infecciosas, capitalismo e ciência , São
tando que a fome era um dos produtos alimentos e matérias-primas com asiática (996 milhões), um terço da Paulo, Elefante e Igrá Kniga, 2020.
de séculos de dominação e coloniza- baixo valor agregado. Nesses territó- população latino-americana (203 mi- 6 Com o objetivo de não subdimensionar o fenô-
meno da fome, tomamos aqui os dados referen-
ção, impunham como única alternati- rios, ele reproduz de maneira amplia- lhões) e pouco mais da metade da po- tes à insegurança alimentar moderada e grave,
va para os países periféricos a adesão a da a concentração de terras e de capi- pulação africana (653 milhões).6 e não aquele que remete apenas a seu estágio
um modelo agroindustrial que prome- tal, por meio da contínua expropriação Segundo projeções da própria mais grave: a desnutrição crônica. FAO, The
State of Food Security and Nutrition in the
tia acabar com a fome por meio da de camponeses e de povos e comuni- FAO, os efeitos econômicos da pande- World – 2019 [Quadro da segurança alimentar
adoção de um “pacote tecnológico”. dades tradicionais, além da intensa mia poderão ser responsáveis pelo e da nutrição no mundo – 2019], Roma, 2020.
Consolidava-se, com isso, uma noção exploração da força de trabalho em crescimento de 83 milhões a 132 mi- 7 “World food prices hit 6-year high amid COVID
pandemic” [Preços mundiais de alimentos são
de segurança alimentar que não pro- toda sua cadeia produtiva, reforçando lhões na quantidade de pessoas cro- os maiores em seis anos durante pandemia de
blematiza as relações econômicas e uma estrutura econômica extrema- nicamente desnutridas no mundo. Covid], Deutsche Welle, 3 dez. 2020.
8 Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
O
trocadilho entre as palavras Em meados deste ano, a governa- produzida, são necessários 3 quilos CORRESPONDÊNCIA ESPACIAL
“pandemia” e “pandemônio” dora do Michigan emitiu uma ordem de cereais; estes são em sua maioria NOS ESTADOS UNIDOS
parece-nos cada vez mais apro- de segurança exigindo que os frigorí- transgênicos, produzidos em grande Os mapas que apresentamos à direita
priado quanto mais avançamos ficos adotassem um protocolo de pro- parte na América Latina. A produção mostram – inequivocamente – uma
nos meses e nos deparamos com uma teção mais rigoroso para a segurança intensiva de grãos no Brasil envolve correspondência na distribuição es-
angústia que arrebata a humanidade sanitária de seus funcionários (State graves problemas ambientais e so- pacial entre as áreas com grande pre-
de uma forma jamais vista. Muitas of Michigan, 2020). Ao emitir o docu- ciais: desde o desmatamento da sença de suinocultura e/ou de frigo-
perguntas nos rodeiam. Entre elas: o mento, a governadora afirmou que os Amazônia (Express Informer, 2020), ríficos e aquelas com alta taxa da
que há de específico neste momento frigoríficos provaram ser uma porta passando pelo uso intensivo de agro- população infectada por Covid-19
da humanidade que poderia estar na de entrada para infecções por Co- tóxicos, até um impacto na seguran- nos Estados Unidos.
raiz da disseminação de um vírus vid-19 em outros estados (MSN, 2020). ça alimentar do país em função da Nota-se, no Mapa 1, que a maior
com a “virulência” que tem se dado? Em recente artigo de discussão, diminuição de áreas voltadas à pro- densidade de porcos nos Estados
Há algo de alvissareiro no pande- elaboramos a hipótese – ainda não dução de alimentos. Para efeito de Unidos tem um núcleo bastante claro
mônio trazido com a Covid-19? Dian- comprovada – de que as infecções comparação: a área ocupada com o na região Meio-Oeste, abrangendo
te de quais desafios estamos? A vaci- por Covid-19 podem ocorrer não cultivo da soja no Brasil é maior do Minnesota, Iowa (que é o centro des-
na resolve um problema efetivamente apenas por transmissão de pessoa a que todo o território da Alemanha, e a sa região produtora de porcos), Ne-
ou é um paliativo para enfrentarmos pessoa, ou por vírus dispersos em expansão agrícola também se revela braska, Illinois, Missouri, Indiana e
este momento? Qual é a chance de partículas de saliva humana e/ou como uma das principais causadoras Ohio. Há também uma importante
novos vírus com esse mesmo poten- presentes em suas secreções e excre- do aumento nas taxas de desmata- concentração da suinocultura na
cial surgissem? Que condições per- mentos, mas também por meio de mento da floresta amazônica. Pensilvânia e na Carolina do Norte.
mitiram que surgisse? Essas e tantas porcos infectados. Ao final, questio- 2. Como esses animais são criados? As No Mapa 2, utilizamos o mapa an-
outras perguntas têm nos rodeado e, namos: será que os porcos contrai- condições de criação, em especial no terior como base e sobrepusemos a
no entanto, estamos apenas tateando riam Covid-19, carregariam o vírus e, caso de porcos e galinhas, são consi- taxa da população infectada por Co-
pistas para construir as hipóteses por sua vez, nos infectariam? E, se deravelmente degradantes e inade- vid-19, por condado, até 26 de junho
que respondam a elas. infectados com o Sars-CoV-2, os se- quadas: não há espaço para os ani- de 2020. Nota-se que os estados loca-
Entre tais pistas, os autores que res humanos poderiam transmitir o mais se moverem e eles não têm lizados nas porções leste e sudeste
aqui escrevem passaram a investigar vírus aos porcos? (Fiebrig; Bombar- acesso ao solo, tampouco à luz solar. dos Estados Unidos são os que mais
uma possível correspondência espa- di; Nepomuceno, 2020). Como tal, os animais se alimentam, se destacam em relação às altas taxas
cial entre as áreas com criação inten- Estudos recentes têm indicado defecam e dormem praticamente no de população infectada, o que, de
siva de porcos e aquelas com altas ta- que há a possibilidade de porcos con- mesmo lugar. Para evitar a propaga- certa forma, é esperado, em função
xas de população infectada por traírem Covid-19. Eles se apoiam na ção de doenças e a exacerbação de da alta densidade demográfica nes-
Covid-19. Essa investigação teve iní- semelhança imunológica e fisiológi- seus sintomas, é bastante comum in- sas áreas (Mapa 3), uma vez que a in-
cio com a divulgação na imprensa, a ca entre porcos e humanos (Sachs, cluir antibióticos e outros fármacos fecção se propaga por meio do conta-
partir de abril de 2020, de diversos 1994) e entre porcos e primatas em em suas dietas (Fiebrig; Bombardi; to interpessoal.
casos de trabalhadores da indústria geral (Yu et al., 2015), bem como se- Nepomuceno, 2020). Pela comparação dos mapas 2 e 3
da carne infectados pelo novo coro- melhanças entre as mucinas suínas 3. Como esses animais são abatidos? O pode-se notar também que a maioria
navírus. De acordo com as notícias, no intestino e nas doenças das vias abate desses animais e o trabalho nos das áreas com altas taxas de popula-
muitas dessas plantas industriais aéreas (Rampoldi et al., 2014; Osted- matadouros causam alguns tipos de ção infectada por Covid-19 corres-
têm se revelado hotspots de dissemi- gaard et al., 2017). sofrimento tanto nos animais como ponde àquelas com alta densidade
nação do vírus. Em reportagem recente (SCMP, nos seres humanos. Reclamações demográfica e/ou contíguas a elas,
As doenças infecciosas não são 2020) relatou-se uma experiência quanto às más condições de trabalho sobretudo nas porções nordeste e su-
novidade entre os animais criados conduzida pelo serviço militar dos nos frigoríficos crescem diariamente deste do país. Curiosamente, no en-
nesse modelo industrial. Rob Wallace Estados Unidos que concluiu que é e incluem a aglomeração de trabalha- tanto, há outro hotspot de altas taxas
relembra que o Sars-Cov-2 “represen- possível a permanência do vírus Sar- dores em seus ambientes de trabalho, de população infectada por Covid-19,
ta apenas uma das novas cepas de pa- s-CoV-2 em peles de porcos por até condições degradantes de moradia, que corresponde exatamente às áreas
tógenos que subitamente surgiram quatro dias em temperatura ambien- jornadas extensas e ininterruptas, com criação intensiva de porcos.
como ameaça aos seres humanos te e, sob refrigeração, por até duas baixos salários e falta de pagamento Observa-se que os estados da re-
neste século” (Wallace, 2020, p.527). semanas. de horas extras. Além disso, boa parte gião Meio-Oeste e, dentro destes, as
Foquemos nossa atenção nos Es- dos trabalhadores é migrante. Essa áreas com intensa produção de suí-
tados Unidos, que, no mundo ociden- INDÚSTRIA DA CARNE condição degradante de trabalho, nos são os mesmos em que existem
tal, são o maior produtor de porcos e, 1. Como esses animais são alimenta- aliada com a condição precária de altas taxas de casos confirmados de
de alguma maneira, protagonizaram dos? Essencialmente com ração pro- criação desses animais, está, prova- Covid-19.
esse modelo de produção intensiva duzida com grãos como soja e milho. velmente, na raiz da disseminação da É importante notar também que
de animais. Para cada quilo de carne de porco infecção nessas regiões. as áreas com maior densidade demo-
JANEIRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 9
VENENO REMÉDIO
de doenças e de crises
médios” do cotidiano da agricultura.
Desse modo, a citricultura moderna
paulista convive com epidemias de-
vastadoras desde sua instalação. As
“vacinas” científicas solucionam
temporariamente o problema, que
As respostas para os problemas reiterados no campo têm sido dobrar a aposta retorna rápida e periodicamente, na
na produtividade, que vai levando ao extremo a noção de monocultura, a qual forma de crises sanitárias agravadas,
com variedades resistentes de ácaros,
parece querer se produzir por si mesma, sem diversidade ambiental e sem gente insetos (moscas e cigarrinhas suga-
doras), vírus (CVC) e bactérias (como
a causadora do greening), desafiando
POR CÁSSIO ARRUDA BOECHAT* as soluções de agrônomos e vendedo-
res de agrotóxicos, ao mesmo tempo
que justificam a própria existência
desses profissionais especializados.
A
té aqui, o agronegócio não pa- dos me contaram, não se tratava de dades produtoras em busca de novos No entanto, a gestão disso implica
rou durante a pandemia de co- acabar com as formigas ou com as er- casos. Ao menor indício de cancro, custos crescentes que nem sempre
ronavírus e se vangloria de ser vas daninhas, mas de controlá-las. estava dada a sentença. podem ser externalizados da conta-
responsável por ter evitado Independentemente de quanto vene- Esse controle epidemiológico era bilidade das firmas, como o são no
uma crise econômica que chegou a no é posto, elas voltam todo ano. In- mais aceito nos anos 1980 do que nos caso da pesquisa pública.
ser anunciada como a pior da histó- gênua pergunta: “Mas e o veneno, pa- dias atuais, em que medidas de qua- A crise da citricultura tem outra
ria, com prognósticos que aponta- ra onde vai?”. Silêncio... A solução ali rentena são questionadas, talvez por- dimensão quando observamos a eli-
vam para uma queda superior a 8% dada, desse modo, não parece ser su- que ainda estivesse fresca na memó- minação recente de mais de 20 mil ci-
do PIB no Brasil. Com isso, reforça-se ficiente ou definitiva para acabar ria de muitos citricultores a lembrança tricultores (dados da Associtrus), em
a ideologia vitoriosa do assim chama- com “nossos” problemas, cujas raízes da praga da tristeza, que dizimou ra- geral pequenos sitiantes que traba-
do “agro”, que se coloca como a cura estão muito além das saúvas e podem pidamente os pomares paulistas nos lhavam com suas famílias, excluídos
para os males nacionais. É bom lem- estar também nas formas de enfren- anos 1940. Essa epidemia só chegou a do setor nos últimos vinte anos por
brar, porém, do phármakon, de onde tarmos as doenças e as crises. ser “superada” graças aos estudos de não darem conta dos custos crescen-
provém a palavra “farmácia”, que po- A memória e os estudos nos permi- pesquisadores que descobriram que o tes de manutenção dos pomares
de curar ou intoxicar, sendo ao mes- tem voltar no tempo para comparar enxerto das laranjeiras em raízes de diante dos preços decadentes da la-
mo tempo remédio e veneno. Ou seja, aquela cena da profilaxia recente de limão-cravo as tornava resistentes ao ranja paga pelas indústrias de suco,
procuramos uma reflexão de até que formigas e mato com algumas outras vírus CTV (Citrus tristeza virus). Gra- altamente concentradas nas mãos de
ponto a suposta solução é parte da profilaxias, inclusive de trabalhado- ças à “vacina” pelas práticas de en- dois grupos econômicos.
causa dos problemas. res, de um passado não muito distan- xertia, descoberta pela pesquisa pú- A eliminação acelerada dos citri-
Visitando recentemente o interior te, e avaliar a produção social de blica, os negócios puderam ser cultores mais vulneráveis também
paulista, em meio a uma seca terrível, doenças e de crises no agronegócio. retomados e a citricultura foi restabe- teve uma conotação higienista, na
observei alguns poucos trabalhado- lecida em “moldes industriais”. alegação de que eram aqueles agri-
res aplicando defensivos num cana- * Não parece ter sido cogitado efeti- cultores familiares que cuidavam
vial recém-cortado por monstruosas Próximo de onde se encontra vamente que as causas da rápida pro- menos de seus pomares e, assim, ace-
máquinas em terras arrendadas por aquele canavial, vi quando criança, liferação e da alta letalidade da triste- leravam a proliferação das pragas. Ao
uma grande usina francesa. O cená- assombrado, uma cena semelhante za talvez estivessem na forma como a lado da imputação de falta de contro-
rio era inóspito, desabitado e soando àquela da chegada dos federais nor- monocultura e a busca pela produti- le sanitário, a citricultura tentava li-
a desértico. Queimadas desponta- te-americanos (seriam da Nasa?) pa- vidade agrícola haviam aglomerado dar com a superprodução não exata-
vam no horizonte. Os homens, irre- ra cercar a casa suburbana dos meni- espécimes de umas poucas varieda- mente de pragas, mas também de
conhecíveis, caminhavam mascara- nos que acolheram o E.T. no filme de des de cítrus em vastos pomares qua- laranjas e do próprio suco de laranja.
dos sob o sol ardente. Alguns com Spielberg. Completamente cobertos, se contínuos. Até aproximadamente A disputa com outras mercadorias in-
tubos de PVC na mão jogavam algu- técnicos da Fundação de Defesa da os anos 1930, a produção de cítrus era dustrializadas (refrescos, refrigeran-
ma coisa aqui e ali pelo interior dos Citricultura (Fundecitrus) vinham completamente descentralizada e se tes etc.) e a crescente produtividade
tubos até o chão; outros, com um re- isolar um pomar e erradicar laranjei- dava em pequenos pomares disper- dos pomares adensados anunciavam
cipiente atado às costas, aplicavam ras num enorme raio para evitar a sos. O sistema de cultivo havia muda- certa saturação do mercado.
um líquido periodicamente. Faziam propagação do cancro cítrico, causa- do radicalmente desde então, incor- Desse modo, foram os pequenos e
a chamada “catação”: matavam mato do pela bactéria Xanthomonas citri. porando uma busca constante pelo médios agricultores os escolhidos
e formigas, respectivamente, apli- Naquela época, o noroeste de São aumento da produtividade dos po- para ser tratados como sendo a pró-
cando produtos químicos na entrada Paulo tinha mais laranjais do que mares, e com ele vieram as primeiras pria “praga” e efetivamente “erradi-
dos formigueiros e nas touceiras de canaviais. A paisagem era dominada epidemias fitossanitárias. Como de cados”, com contratos que pagavam
capim-colonião (que tem o hilário por laranjeiras enfileiradas até onde praxe em nossa sociedade, a busca menos que os custos de produção
nome científico Panicum maximum). a vista alcançava. Uma medida tão pela solução de um problema é pro- mais básicos e com a imputação de
“Inimigos” persistentes da produtivi- dura como aquela da erradicação curada num produto mágico e rara- novos custos, como os da colheita,
dade da lavoura. chamava atenção para a ocorrência mente é apontada uma crítica à ma- antes a cargo das indústrias. Contra-
A cena poderia representar a solu- de epidemias que afetavam a “popu- neira como as mercadorias são ditoriamente, eram eles os que entre-
ção para a angústia antediluviana do lação” de árvores. Depois de arran- produzidas. Reitera-se, na cabeça de gavam laranjas a preços mais baixos
lavrador, expressa pelo viajante Au- cadas as laranjeiras infectadas e médicos, agrônomos e de quem quer às agroindústrias e ao mercado em
guste de Saint-Hilaire (1779-1853), suas vizinhas, a pilha de troncos ain- que seja, o fetichismo da forma so- geral, porque se valiam do trabalho
que teria afirmado – antes, claro, de da carregados de laranjas era incine- cial, pautada por relações entre pes- familiar e não precisavam remunerar
ser lembrado por Macunaíma – que rada em altas fogueiras. A área isola- soas sempre mediadas por coisas. alguns “fatores de produção”. Com
“ou o Brasil acaba com a saúva, ou a da ficava em quarentena, e os Assim, uma enxurrada de novas sua erradicação, as pragas em si não
saúva acaba com o Brasil”. A bem da técnicos vestidos de branco da cabe- pestes se acumularia posteriormente foram eliminadas – é, inclusive, ques-
verdade, como os próprios mascara- ça aos pés rodavam todas as proprie- nos pomares, que, desde os anos tionável que a situação esteja mais
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controlada –, mas uma importante ção da chamada Revolução Verde. Embora fossem tratados como “os de De modo contraditório, porém, a
fonte de acumulação das próprias in- Embora ainda não se autoproclamas- fora”, estigmatizados como “nortis- energia supostamente “limpa” se va-
dústrias deixou de existir. se assim, era o surgimento do “agro” tas arruaceiros” nas cidades interio- lia de produzir sistematicamente
O exemplo mostra como os pre- com as feições que hoje são positiva- ranas, engoliam o orgulho ferido e a queimadas, para abrir caminho para
conceitos e as soluções fetichistas das em propagandas televisivas. fuligem da cana queimada e, com fa- o corte da cana, feito pelos migran-
dos gestores do agronegócio repro- O trabalhador de turma, assalaria- cões afiados, batiam anualmente re- tes. Como equacionar essa prática
duzem às suas costas as doenças e do precariamente e tornado boia-fria cordes de produtividade. Assim co- com o discurso ambiental? “Proí-
também as crises. Como consequên- irreconhecível perante os próprios mo a formiga e o mato, retornavam bam-se as queimadas...” Entretanto,
cia, tornaram-se frequentes novas fo- patrões, também foi novidade na épo- todo ano, mas não representavam como cortar cana crua sem cortar to-
gueiras de laranjeiras, empilhadas ca. O adoecimento do boia-fria se da- apenas custos. Também produziam a do o cortador nas finas folhas afiadas
nos pomares por todo o noroeste va corriqueiramente na forma de le- maior parte da “riqueza” do setor. da cana? Para acabar com as queima-
paulista. Dessa vez, a “epidemia” não sões pelo trabalho repetitivo, embora Em 2008, eram quase 300 mil; hoje, das e “limpar” o agrocombustível se-
era de cancro, como em minha lem- também fossem (e ainda sejam) co- menos de 30 mil. A rápida mecaniza- ria necessário transformar o proces-
brança de infância, mas de laranjas e muns as intoxicações por agrotóxicos. ção do corte, com a introdução de gi- so de trabalho. Porém, com isso,
citricultores mesmo. A própria fruta, Porém, o não pertencimento à comu- gantescas colhedoras, erradicou seus impunha-se “varrer” os próprios cor-
que supostamente traz saúde a quem nidade local, a pressão por trazer di- empregos. No campo desabitado, a tadores do interior paulista e substi-
a consome, se tornara uma praga pa- nheiro de volta à família e cidade de cana é agora cortada por uns poucos tuí-los por colhedoras mecânicas,
ra quem a produzia. A erradicação origem e o ritmo ditado pelas máqui- operadores de máquinas, que se re- desde que as máquinas se tornassem
partia agora não mais da Fundeci- nas agrícolas ou pelas esteiras das vezam dia e noite. acessíveis para serem compradas.
trus, e sim dos próprios produtores, agroindústrias também compunham De 2002 a 2010/2011, os preços in- Assim, a mecanização se apresentava
cansados dos prejuízos – quantos um contexto de gradativa internaliza- ternacionais das commodities atingi- como a “vacina” para o problema. No
não terão adoecido com a situação? –, ção da necessidade de trabalhar no li- ram altas históricas, num afluxo de entanto, ela exigia investimentos e
e o arrendamento das terras às usi- mite, muitas vezes até a morte. Um escala inédita de capital fictício para adaptação, que o boom das commo-
nas de cana surgia como “remédio” triste exemplo: entre 2004 e 2007, a produção de mercadorias agrícolas dities tornava possíveis.
para uma sobrevida das famílias, ao mais de vinte cortadores de cana e minerais no mundo todo e no Bra- Usinas avalizaram empréstimos
longo dos anos 2000. O carvão de la- morreram por exaustão em serviço! sil. Essa abundância monetária per- bancários de seus fornecedores e se
ranjeira ainda é vendido em super- Afinal, o que as máquinas e ou- colou o solo da sociedade brasileira. valeram de linhas especiais de fi-
mercados para fazer churrasco. tros “avanços científicos” represen- No campo paulista, as usinas de cana nanciamento estatal, como do BN-
tam para o trabalho na agricultura e, se esbaldaram em novos projetos, DES e do Moderfrota, para comprar
* assim, para a reprodução do próprio novas aquisições, ampliando os ca- colhedoras. Desse modo, a “cura”
A utilização de tratores, arados, agronegócio? Em que situação as naviais para os pastos e para o Cerra- para o adoecimento dos trabalhado-
adubos e pesticidas químicos, ex- pessoas são elas mesmas tratadas co- do de estados vizinhos. Renovaram e res rurais e para a poluição das quei-
pressão da indústria nacional que se mo ervas daninhas e o que isso oca- aumentaram as dívidas, abriram ca- madas nos canaviais chegou com a
desdobrava sobre o campo, altamen- siona? Até menos de dez anos atrás, pital em Bolsa e emitiram papéis pa- aquisição de maquinário pesado pa-
te fomentada pelo crédito rural sub- cortadores manuais eram recrutados ra financiar a euforia, que tinha las- ra a mecanização do corte. Os traba-
sidiado pelo Estado, foi uma grande aos montes em cidades do norte de tro frágil na promessa de que o etanol lhadores haviam se tornado a “pra-
novidade dos anos 1960/1970. São Minas e do Nordeste para passar a viria logo a substituir o petróleo e nos ga” a ser erradicada, em prol de uma
Paulo assumiu aí a dianteira na ado- maior parte do ano em São Paulo. livrar de seus males. produtividade bancada pelo capital
financeiro. Sendo eles, todavia, a
© Thomas Bauer
P
rimeiro eles pararam de comer, nização das Nações Unidas para a dos veículos), mas também – o que le- número de epidemias que atingem
em seguida tiveram uma forte Alimentação e Agricultura (FAO). Ela vanta questões – as orientações técni- as criações quase triplicou ao longo
febre. Criador de Jiangxi, no su- nos apresenta a classificação das fa- cas e econômicas de sua exploração. dos últimos quinze anos. Isso não
deste da China, Chen Yun pos- zendas segundo sua suposta resis- Essa abordagem, que leva a nor- constitui um perigo apenas para a
suía 10 mil porcos. Em uma semana, tência ao risco infeccioso. “O setor 1 malizar e compartimentar a produ- vida dos animais, mas também para
todos morreram da peste suína afri- é uma criação densa e fechada, com ção, cria o impasse quanto ao risco a humanidade, pois algumas dessas
cana.1 Entre 2018 e 2019, o vírus aco- uma produção intensiva e integrada causado pela escala industrial e pela doenças podem ser transmitidas ao
meteu todas as províncias do país, le- à indústria. O setor 2, uma grande concentração de animais em locais homem – em especial a gripe H5N1,
vando à eliminação da metade do criação intensiva e fechada, mas não exíguos. As criações em massa são ainda que os casos tenham sido mais
gado porcino nacional. Originário da integrada à indústria. O setor 3 é então apresentadas como uma solu- raros do que se temia.
África, onde teria sido descoberto há uma fazenda intensiva média não ção para o problema que contribuí- “‘Quantos quilos de frango será
mais de cem anos, o vírus dessa peste integrada à indústria, e o setor 4, ram para criar, pois, se a destruição que posso produzir? Quantos ovos?’
continua inofensivo para o ser huma- uma criação extensiva onde os ani- da natureza e dos habitats selvagens Os criadores devem se fazer essas
no, mas pode causar até 100% de mor- mais, menos numerosos, vivem no – quase sempre para fins industriais perguntas”, prossegue Kalpravidh.
talidade nos porcos. A partir da Chi- exterior com, quase sempre, uma – levou à transmissão de novos vírus,3 “Devem aumentar a produção e a
na, o vírus se propagou pelo Sudeste mistura de espécies.” Esses quatro a aceleração das epizootias deve mui- produtividade para obter mais bene-
Asiático. Já causando estragos na Eu- setores correspondem a níveis de- to também à industrialização da fícios, o que gera uma receita suple-
ropa central, foi detectado na Bélgica crescentes de biossegurança, do pecuária, como sublinham diversos mentar que lhes permite investir na
em 2018. A França e seus vizinhos te- mais elevado ao mais fraco. estudos.4 Na Tailândia, por exemplo, biossegurança.” Para designar essa
mem desde então sua chegada. dados reunidos em 2004 indicam que posição tomada em favor do desen-
Para erradicar a epidemia, que “AUMENTAR A PRODUTIVIDADE” “as probabilidades de epidemias de volvimento intensivo da pecuária em
avança, o Estado chinês apoia a Segundo essa doutrina, a propagação H5N1 e das infecções eram significa- escala mundial, teríamos podido uti-
construção de fazendas de no míni- de um vírus fica limitada quando os tivamente mais elevadas nas explora- lizar o termo “industrialização”. Ao
mo quinhentos porcos, seguindo os animais são criados em estabeleci- ções avícolas comerciais de grande oferecer-lhe certa respeitabilidade, o
preceitos da “biossegurança”. “As fa- mentos fechados ou atrás de barreiras escala do que nos galinheiros”.5 Nas termo “biossegurança” se torna a re-
zendas familiares serão levadas ao que impeçam qualquer contato com instalações industriais, a fraca diver- ferência indiscutível de um modelo
desaparecimento, em benefício das animais selvagens, suscetíveis de sidade genética e as recorrências econômico e social imposto. Seu en-
criações industriais”, explica Jian transmitir micróbios patogênicos. maciças a tratamentos profiláticos foque universal se dirige a todas as
Huang, especialista do Instituto Na- Devem ser nutridos com alimentos provocam um enfraquecimento imu- criações do planeta.
cional do Porco, da França. 2 A China comprados no comércio e de qualida- nológico, ao passo que a concentra- “Com a gripe aviária de 2015-2016,
aplica assim a resposta sanitária des sanitárias garantidas, em vez de ção geográfica de criações, a densida- as medidas de biossegurança se tor-
preconizada pelas instâncias inter- produtos da fazenda. A biossegurança de de animais e a multiplicação dos naram obrigatórias para os detento-
nacionais em matéria de epizootias condiciona não apenas os gestos do transportes favorecem a difusão de res de aves”, recorda um boletim da
(epidemias que atingem animais), criador em matéria de higiene (lava- agentes patogênicos. Academia Veterinária Francesa, fa-
confirma Wantanee Kalpravidh, res- gem das mãos, troca de roupa na en- Esse episódio da peste suína não zendo referência à portaria publicada
ponsável pela saúde animal na Orga- trada de cada instalação, desinfecção é inédito. Ao longo dos trinta últimos pelo Ministério da Agricultura em 8
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