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INTRODUÇÃO

Quando falamos de Anarquia e Cristianismo, logo identificamos duas


doutrinas antagônicas. A primeira é uma doutrina política, libertária e materialista. A
segunda, mística, metafísica e dogmática. Porém, ambas se encontram no pensamento
de Liev Tolstói, que interpreta o Evangelho de uma forma moralmente radical, livre do
caráter sobrenatural das Escrituras, e desenvolve argumentos muito próximos à
ideologia anárquica de um Bakunin, de um Proudhon e de um Thoreau. Essa simbiose
pode ser explicada através de um conceito presente na sociologia: a Afinidade Eletiva.
Entende-se por “Afinidade Eletiva” um movimento de convergência capaz de
se chegar a uma fusão entre duas configurações sociais ou culturais. O termo aqui não
é sinônimo de influência ou correlação, mas sim um conceito que nos permite explicar
processos de interação irredutíveis à causalidade direta. A expressão é oriunda de
alquimistas medievais, mas é Max Webber que a emprega numa perspectiva
sociológica para analisar a relação entre a religião e o ethos econômico. O termo já
mencionado ganha fundamentação na clássica obra: A Ética Protestante e o Espírito
do Capitalismo.
Em 1989, o cientista social Michel Löwi lança no Brasil o livro: Redenção e
Utopia: O Judaísmo Libertário na Europa Central, que analisa, utilizando-se da
“Afinidade Eletiva” para entender a ligação entre, o messianismo e as ideias libertárias
de um grupo de intelectuais judeus que surge, na Europa Central, no fim do século XIX.
Um objetivo similar está presente neste trabalho, que estuda o anarquismo contido na
forma em que o Evangelho é entendido por Tolstói. Ao se converter, o escritor russo
sequer imaginaria que a sua experiência espiritualista o conduzisse ao legítimo
anarquismo. Isso só acontece quando a “Não Resistência” passa a ser rigidamente
observada por ele. A pesquisa trata de uma temática pouco explorada e se utilizou do
método bibliográfico para sua execução. O Reino de Deus Está em Vós é o principal
livro analisado, além de outros escritos tolstoianos e também de outros clássicos de
notáveis anarquistas.
A estrutura do trabalho se dá em três capítulos: O primeiro deles faz uma
breve conceituação da doutrina anárquica e em seguida se propõe a correlacionar o
pensamento de Bakunin e Proudhon com o do próprio Tolstói. Nele, também é sugerido
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que antes mesmo de se “converter” ao cristianismo, seus renomados romances já


traziam as contestações necessárias para taxá-lo como subversivo.
O segundo capítulo aborda o preceito da Não Resistência e a condenação
de todo e qualquer tipo de violência. Essa é a razão do anti-estatismo em Tolstói, pois
o Estado nada mais é do que o detentor do monopólio legal da violência, e o
cristianismo, em sua concepção verdadeira e mais racional, deve destruir o governo.
Por fim, o terceiro capítulo: trata da Desobediência Civil, como uma arma
eficaz para extirpar o Estado e ver a sociedade totalmente livre da opressão. Nesse
ponto, Thoreau e Tolstói são bem próximos: é preciso ignorar o Estado para vê-lo ruir.
Não há método de combate mais eficiente que este, pois sua adesão em massa
impossibilitaria os governos de deter uma revolução organizada e pacífica.
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CAPÍTULO I

1.1 O ANARQUISMO E SEUS EXPOENTES TEÓRICOS

Anarquia é a ausência de senhor, de soberano, tal é a forma de governo que


nos aproximamos todos os dias e que o hábito inveterado de tornar o homem
por regra e sua vontade por lei nos faz olhar como o cúmulo da desordem e a
expressão do caos (PRODHON, 2007).

George Woodcock definiu o Anarquismo como sendo um “movimento de


1
filosofia social” que tem por objetivo final a transformação da sociedade. Embora
existam várias correntes, todas elas “desembocariam no mesmo rio”, pois é comum a
todas substituir o Estado autoritário por alguma forma de cooperação mútua entre
homens livres, ou seja, uma autogestão que não precisasse mais da tutela estatal,
utilizando-se do poder coercitivo para determinar aquilo que está dentro ou fora da
legalidade.
O Estado é o mal que precisa ser aniquilado, para que enfim a humanidade
seja livre e estabeleça uma relação de igualdade ainda não experimentada, uma vez
que o Governo está a serviço de uma classe dominante que, para assegurar sua
dominação, necessariamente promove uma distribuição desigual de renda e
oportunidade. Esse Estado além de deter o monopólio da força - com seus exércitos,
guardas pretorianas e departamentos de polícia - também conta com aparelhos
ideológicos que manipulam a população e induzem o povo a viver resignado em meio a
tanta miséria. Dentre esses aparelhos, a Religião, de forma institucionalizada, é um dos
alvos principais dos que se professam anarquistas. É tanto que um dos lemas mais
populares do movimento dizia: “Nem Deus, nem Senhor.”
Desde a Antiguidade vemos a relação próxima entre Igreja e Estado e a
divinização dos seus representantes. Os anarquistas, mesmo não formando um
movimento coeso, foram os críticos mais ferrenhos dessa proximidade e por isso
receberam o contra-ataque com muita força. O Clero manifestou-se excomungando e
praguejando contra esses libertários. A população, mística e supersticiosa foi

1
WOODCOCK, George.História das Idéias e Movimentos Anarquistas, Vol.1. A Idéia. Porto Alegre:
LP&M 2010.
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convencida de que esses homens mereciam “arder no fogo do Inferno” e também


passou a odiá-los.
Mas surpreendentemente, um famoso escritor russo, que ainda em vida foi
mundialmente reconhecido por obras como Guerra e Paz e Ana Karenina, num
segundo momento de sua vida passa a escrever ensaios sobre uma sociedade de
iguais, na qual as pessoas governariam a si mesmas. Isso é anarquia? Sim, é. Pregada
por Liev Tolstói, só que com uma diferença gritante da maioria: Seu embasamento era
o Evangelho. Se anarquistas como Reclus2 chegaram a propor a descristianização do
povo para libertar a humanidade, Tolstói ia pelo sentido inverso. Antes de nos
aprofundarmos no pensamento tolstoiano, vamos analisar outros dois expoentes
teóricos do Anarquismo. O russo Mikhail Bakunin e o francês Pierre Proudhon.

1.2 BAKUNIN: ABOLIÇÃO DE DEUS

Bakunin, o russo que ambicionava “destruir para criar”, tornou-se um dos


mais atuantes do movimento libertário, chegando a participar da I Internacional,
divergindo de Marx e ameaçando a sua hegemonia até ser expulso em 1872. Cria
então a Internacional “Antiautoritária” e rompe os vínculos com o marxismo. O
pensamento bakuniniano foi bastante assimilado pelos anarquistas, sendo mais
influente do que o próprio Proudhon, considerado por muitos o pai do Anarquismo.
Segundo ele, o desenvolvimento humano é composto por três elementos: 1- a
animalidade, 2- o pensamento e 3- a revolta. O primeiro corresponde a economia
individual e social, o segundo, a ciência e o último, à liberdade.
Contrariando os idealistas, afirma ser o homem produto da “vil matéria” e
não um ser criado por uma inteligência superior chamada Deus. No entanto essa
matéria é extremamente dinâmica e produtiva. Está sempre em movimento e no caso
dos homens, os direcionam para libertá-los da sua condição primitiva: através da razão,
estes se tornam conhecedores de sua própria existência, emancipando-se. Tal o
percurso da evolução. Tal é a origem de seu antiteísmo.
A partir do momento em que os teólogos atribuem toda a vileza aos homens
e tudo o que for de belo, justo e puro como sendo atributos de Deus, o homem torna-se

2
Élissée Reclus foi geógrafo e anarquista francês, autor de O Homem e a Terra (5 volumes) entre
outros.
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escravo da divindade e isso é um entrave ao seu próprio desenvolvimento que tem por
finalidade a libertação. A ideia de Deus faz com que o homem abandone a razão e,
sem ela, ele nunca atingirá a liberdade. Por isso Bakunin (2011) propõe a abolição da
divindade: “inverto a frase de Voltaire e digo que, se Deus existisse, seria preciso aboli-
lo.”
Dentre as suas obras, destaca-se Deus e o Estado, fragmento do livro O
império cnuto-germânico e a revolução social, que ainda no século XIX foi extraído e
publicado, tendo edições feitas por Reclus e Nettlau3. Um texto primordial para quem
deseja compreender o pensamento bakuniniano, pois este seu trabalho filosófico
apresenta de maneira condensada os demais temas debatidos pelo autor, destacando-
se os conceitos de liberdade, livre-arbítrio e materialismo. Aborda também o papel da
ciência no processo libertário. Um texto escrito em 1871, onde Bakunin em sua fase
anarquista, no qual é evidente todo o seu entusiasmo, afirma:

Numa palavra, rejeitamos toda legislação, toda autoridade e toda influencia


privilegiada, titulada, oficial e legal, mesmo emanada do sufrágio universal,
convencidos de que ela só poderia existir em proveito de uma minoria
dominante e exploradora, contra os interesses da imensa maioria subjugada.
Eis o sentido no qual somos realmente anarquistas (BAKUNIN, 2011,p.58).

Sobre Bakunin, escreveu Woodcock:

Havia nele grandeza suficiente – bem como adequação à época que viveu –
para fazer dele um dos homens mais importantes não só na tradição
revolucionária quanto na história do anarquismo. E ele conseguiu isso tanto
pelos seus fracassos, que não foram poucos, quanto pelos seus triunfos
(WOODCOCK,2011,p.162).

1.3 PROUDHON: O ATAQUE A PROPRIEDADE

A máxima “A propriedade é um roubo” ressoou durante todo o século XIX


nos ouvidos da burguesia, que nutriu um ódio mortal contra Pierre Proudhon, seu
criador. Nas palavras de Netllau, tal expressão continha à força de uma revolução.
Quando lançou O que é a propriedade?, esse filósofo autodidata e promissor, filho de
camponeses, que outrora havia sido um tipógrafo falido, provocou um verdadeiro
alvoroço entre os intelectuais de sua época, sendo elogiado até mesmo por Karl Marx,

3
Max Nettlau, austríaco, considerado por muitos, como sendo, o maior historiador do anarquismo.
15

que tornar-se-ia seu principal desafeto até a sua morte, aos 56 anos, no dia 16 de
Janeiro de 1865 na capital francesa.
Foi Proudhon quem primeiro reclamou para si o status de anarquista. E fez
através de uma prosa vigorosa, simulando um diálogo repleto de questionamentos
sobre seu posicionamento político, desembocando na seguinte afirmação: “(...) vós
acabais de ouvir a minha profissão de fé, séria e maduramente refletida; ainda que
muito amigo da ordem, eu sou, com toda a força do termo, anarquista. Escutai-me.” 4
A propriedade a que se refere, não é o pedaço de terra que o homem se
utiliza para habitar, lavrar, e nem os instrumentos necessários para o seu trabalho e
sua sobrevivência. Pois estes são direitos individuais garantidos, daí a sua crítica aos
comunistas. Para Proudhon, o direito coletivo não deveria suplantar o direito do
indivíduo, já que a individualidade é a coluna da liberdade. Em que consiste então a
sua crítica?
O controle dos meios de produção é o alvo do proudhonismo. A denúncia é
dirigida a propriedade na qual uma pessoa explora o trabalho alheio, sem esforço
próprio, negando a maioria dos produtores de gozar do fruto do seu trabalho, sendo
essa propriedade incompatível com a justiça. Ideia que será assimilada por outros
pensadores do movimento libertário. Sobre isso, Woodcock declara que:

Ao rejeitar o governo e o proprietário improdutivo, ao defender a igualdade


econômica e as relações contratuais livres entre operários independentes, O
que é a propriedade? contem os elementos básicos que darão origem a
doutrinas libertárias e descentralistas que surgiriam depois, embora não
chegue a desenvolvê-los (WOODCOCK, 2011,p.127).

Proudhon é um opositor de toda a forma de autoridade, denunciando os


seus malefícios, seja esta oriunda da religião, do governo, do sistema econômico ou
até mesmo do socialismo. Em História do Anarquismo, Netllau cita uma passagem de
Confissões de um Revolucionário, escrita em 1849. Eis um trecho:

O capital, que sobre o terreno político equivale ao governo, tem por sinônimo
em religião o catolicismo. A ideia econômica do capital, a política do governo
ou da autoridade e a ideia teológica da Igreja são três ideias idênticas e
diferentemente religadas, combater uma delas é atacar todas as outras, como
sabem hoje todos os filósofos. O que o Capital faz ao trabalho e o Estado à
liberdade, a Igreja, de seu lado o faz ao espírito. Essa trindade do absolutismo

4
PROUDHON, Pierre Joseph, A Propriedade é um Roubo e outros escritos anarquistas. Porto Alegre:
LP&M 2008, pág 26.
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é tão funesta na prática quanto na filosofia (PROUDHON apud NELTLAU,


2008,p.75).

Contra essa maldita tríade, Proudhon descarrega toda sua raiva ao redigir
Contradições Econômicas, acentuando o discurso antirreligioso. Devido às condições
miseráveis da humanidade, questiona o conceito de uma deidade benevolente e
conclui que se Deus existe, de fato, então ele é mau. Para triunfar sobre a tirania, faz-
se necessário opor-se a Deus. Note-se que ele não negou a existência do Divino,
apenas se opôs a ela.
Nesse ponto, assemelha-se aos anarquistas que o sucederam, dentre eles o
próprio Bakunin. Criticava o dogmatismo com ênfase, por isso mesmo não adotava o
extremo de se declarar ateu. Proudhon enxergava Deus e o Homem como duas forças
antagônicas, realidades incompletas, que se opõem. Para o bem da humanidade, esse
Deus dominador, precisava ser rejeitado.

1.4 TOLSTÓI: A NOVA DOUTRINA

Leon Tolstói dedicou três anos de sua longa vida - morreu aos 92 anos - ao
escrever O Reino de Deus está em vós. A obra gerou imensa polêmica e dividia os
leitores entre os que aplaudiam e concordavam e os que rechaçavam o seu conteúdo.
Seu livro foi tirado de circulação na Rússia czarista dos Romanov e a Igreja Ortodoxa
determinou a sua excomunhão. Qual o conteúdo da obra afinal? O subtítulo do ensaio
começa por nos elucidar: O Cristianismo apresentado não como uma doutrina mística,
mas como uma moral nova.
Segundo ele, o verdadeiro Cristianismo estava longe de ser compreendido
tal como é, e o motivo disso é a deturpação das palavras de Jesus Cristo, e a ação do
clero que não focava no ensino do Mestre, ao invés disso, elaborava catecismos,
liturgias e sacramentos que apenas serviam para tornar as pessoas cada vez mais
supersticiosas e manipuláveis. A sua tese central dar-se a partir do preceito encontrado
no Sermão do Monte: “Não resistais ao mal” (Mateus 5:39). O sentido defendido por ele
é de que a “Não Resistência” é a não utilização da violência. Sob nenhum aspecto,
Tolstói considera legítimo o uso da força. Aquela máxima jurídica de repudiar a
violência usando a própria violência é totalmente anticristã. Por isso não gostava de ser
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chamado anarquista, por não compactuar com os métodos terroristas ligados ao


movimento. Denominava-se apenas cristão.
Rejeitando o Estado e a propriedade, defende a abolição de ambas para que
a humanidade venha gozar do Reino de Deus na Terra. Não existe o Paraíso ensinado
pelos sacerdotes, tampouco a salvação vicária resultado do derramamento de sangue
na cruz. Jesus Cristo não é divindade, é homem. É o professor que disseminou a Lei
do Amor como sendo inerente do espírito humano. Essa Lei é a única que deve reger
as relações sociais. É universal e atemporal, gradativamente pode ser vivenciada por
todos os homens. E por que ainda não foi assimilada? Porque vem sendo ensinada por
uma minoria de pessoas, ao passo que o pseudocristianismo ganhou vários adeptos
que inculcaram através da tradição de séculos esse ensinamento deturpado no qual
acreditam ser a Palavra de Deus transmitida por seus representantes.
Tal como Bakunin, era um iconoclasta. Todavia, foi nas ideias de Proudhon
que Tolstói mergulhou. Este foi responsável pela visão de que as guerras se originam e
se desenvolvem, não pelas decisões das lideranças políticas e militares, mas na psique
social. Vemos isso claramente no seguinte trecho de Guerra e Paz (obra que foi
intitulada igualmente a um artigo de Proudhon, seu enredo tem as Guerras
Napoleônicas como pano de fundo):

Para nós, a posteridade, nós que não somos historiadores, nem nos deixamos
levar pelo entusiasmo das investigações, e examinamos por conseguinte, com
um bom senso imperturbável, os acontecimentos, as causas aparecem-nos em
número incalculável. (...) Uma delas, por exemplo, o fato de Napoleão ter-se
recusado a retirar suas tropas para o outro lado do Vístula e restituir o ducado
de Oldemburgo, parece-nos valer tanto como a recusa de um primeiro-cabo
francês a realistar-se, pois a verdade é que, se este não tivesse querido voltar
a atividade e o seu exemplo houvesse sido seguido por milhares de soldados,
teria havido muito menos homens no exército de Napoleão e este ver-se-ia
impossibilitado de declarar a guerra (TOLSTÓI, 2007, p.742).

Mesmo antes de sua conversão, no auge da sua carreira literária, Tolstói


aborda temas tão recorrentes entre os pensadores libertários. O naturalismo, o
populismo, a utopia de uma sociedade fraterna e o ataque à vileza do progresso,
sempre visto com desconfiança, fazem parte da tradição anárquica e estão na narrativa
de Os Cossacos, Anna Karenina e o já citado Guerra e Paz. Personagens como
Olenin, Pedro Besucov, e Levin abrem mão de uma vida artificial, luxuosa e imoral e
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passam a buscar a simplicidade campesina, redimindo-se a partir do momento em que


se aproximam da natureza. Na perspectiva tolstoiana, a “verdadeira vida” pertence
aqueles que valorizam as coisas simples. Nisto, vemos mais uma semelhança com
Proudhon, que exaltava as glórias da pobreza, desde que essa não assaltasse a
dignidade do homem. A oposição ao luxo faz com que mude até mesmo seu conceito
de arte. Só seria artística, a obra que conseguisse comunicar a sua mensagem a todos,
e não apenas a aristocracia e seus anseios.
O culto a liderança e as falácias do patriotismo também recebem ataques
deliberados em seu principal romance. Note-se ferrenha crítica no fragmento que se
segue; nele o jovem Pétia deseja ver o tsar:

O pequeno erguera-se na ponta dos pés, empurrava os vizinhos, agarrava-se a


eles, mas nada mais podia ver além da multidão que o cercava. Em todos os
rostos, havia o mesmo entusiasmo e o mesmo carinho. (...) Pétia, sem dar
conta do que fazia, de dentes cerrados e os olhos esbugalhados, precipitou-se
também, distribuindo socos e gritando ‘Hurra!’. Parecia que naquele momento
estava pronto a matar os outros e a matar-se a si. Ao seu lado, pessoas com
expressões idênticas e igualmente selvagens, soltavam os mesmos clamores
(TOLSTÓI, 2007, p.826).

O comportamento bestial da sociedade é fruto de uma hipnose que forma


cidadãos obedientes. Eles não questionam, não se recusam, apenas cumprem ordens.
E nesse papel, de formar uma sociedade extremamente submissa às autoridades
vigentes, a Igreja tem participação fundamental. As contradições do que Tolstói
denomina pseudocristianismo, representado na Rússia pela religião Ortodoxa também
pode ser observado numa cena de Guerra e Paz, onde a personagem Natacha Rostov
após rezar para conceder indulgência aqueles a quem odiava, foi conduzida a rogar a
Deus pela salvação russa, ameaçada de ser invadida pelos franceses:

No estado impressionante em que se encontrava, Natacha sentiu-se


profundamente abalada por esta oração. Escutando as palavras referentes a
vitória de Moisés sobre Amelek, de Gedeão sobre Midiã, de Davi sobre Golias
e à ruína de Jerusalém rezava com toda a doçura e com toda ternura do seu
coração. Contudo, não compreendia muito bem o que estava a rogar a Deus.
Com toda a sua alma, pedia que se purificasse o seu espírito, que se
fortalecesse o seu coração com a fé e a esperança e que nela reinasse o amor.
Era-lhe impossível, porém, orar para que os seus inimigos fossem esmagados
quando minutos antes desejara ter ainda mais inimigos para por eles poder
rezar. No entanto, não podia duvidar da justiça da oração que se rezara de
joelhos (TOLSTÓI, 2007, p.815).
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Sua crítica constante levou a igreja Ortodoxa publicar no dia 25 de fevereiro


de 1901 a resolução do Sínodo de Excomunhão na qual, Tolstoi respondeu por meio
de uma carta - meses após ter sido excomungado - no dia 4 de abril:

Dizer que eu reneguei a Igreja que se chama Ortodoxa, isso é inteiramente


justo. Porém eu a reneguei não porque tenha me insurgido contra o Senhor,
mas, ao contrário, apenas porque queria servi-lo com todas as forças de minha
alma. Antes de renegar a Igreja e a unidade com o povo, que me era
inexprimivelmente cara, e diante de certos sinais tendo duvidado da correção
da Igreja, dediquei alguns anos a pesquisar a teoria e a prática do seu
ensinamento: na parte teórica, li tudo o que pude sobre o ensinamento da
Igreja, estudei e analisei criticamente a teologia dogmática; na prática, obedeci
com rigor, no decorrer de mais de um ano, todas as ordens da Igreja,
observando todos os jejuns e frequentando todas as cerimônias religiosas. E
então me convenci de que o ensinamento da Igreja é, em sua maioria, uma
mentira pérfida e maléfica e, em sua prática, a reunião das supertições mais
grosseiras e de sortilégios que ocultam completamente todo o sentido do
ensinamento cristão (TOLSTÓI, 2011, p.187).

No arremate de sua carta, orgulha-se de ter percorrido a estrada oposta:

Eu fiz o caminho inverso. Comecei por amar a minha profissão de fé ortodoxa


mais do que a minha tranquilidade, depois passei a amar mais meu
cristianismo do que a minha igreja, e agora amo a verdade mais do que tudo no
mundo. E, até este momento, para mim, a verdade coincide com o cristianismo
como eu o compreendo (TOLSTÓI, 2011, p.195).

Destacando-se pela sua singularidade, até então, em conciliar o Evangelho


com a anarquia, Tolstói, sem abolir e nem tampouco se opor a Deus, teve seu
5
pensamento inserido na pesquisa pioneira de Paul Eltzbacher sobre as várias
correntes anárquicas, realizada em 1900. Nada mais justo, uma vez que elementos
essencialmente anarquistas como a rejeição ao Estado e a Propriedade são abordados
desde seus romances, como já vimos, até suas obras panfletárias.
Sua conversão em nada atrapalha o anarquismo que trazia consigo. Não
existem dois “Tolstóis”, o aclamado romancista e o asceta cristão. Existe um único
homem, que vai maturando uma ideologia na qual já acreditava, mas que ainda não
tinha conseguido sistematizar. É no lançamento de O Reino Deus está em Vós, que
enfim demonstra a sua fé na Anarquia. Esta é a obra central e de transição entre um
anarquista latente e um anarquista convicto, embora recusasse ser chamado assim.

5
Paul Eltzbacher, judeu alemão,Doutor em Direito e pesquisador do Anarquismo.
20

CAPÍTULO II

2. O PRINCÍPIO DA RESISTÊNCIA NÃO VIOLENTA

Para entendermos a ligação entre o Evangelho e a Anarquia em Tolstói, é


necessário tomar ciência de que o deísmo é a sua crença, e que, como deísta, ele
concebe a ideia de uma divindade impessoal. Deus é uma força mística, criadora do
Universo e a humanidade é autônoma em suas decisões. Essa impessoalidade faz
com que o mesmo não tenha um nome. Logo, Iavé, Alá, Shiva, e outras nomenclaturas,
estão todas se referindo ao mesmo ser. Tolstói além dos Evangelhos mergulhou em
outras crenças, tal como o hinduísmo para sistematizar aquilo que viria chamar de
“Doutrina da Não Resistência ao Mal”.
A tolerância religiosa, num sentido lato, a busca pela unidade entre os
credos (também conhecido por ecumenismo) é uma característica do deísta. Nessa
perspectiva, toda religião cultua o mesmo deus, mesmo que a terminologia seja
distinta. No fundo, os valores religiosos são idênticos. O próprio Tolstói fala isso, num
artigo intitulado O que é religião e em que consiste sua essência? :

(...) Esses valores são: que existe um Deus e é o princípio de tudo; que no ser
humano há uma partícula desse princípio divino, que ele pode enfraquecer ou
fortalecer de acordo com o modo em que conduz a própria vida; que, para
fortalecer esse princípio, o ser humano deve conter suas paixões e cultivar
dentro de si o amor; que o meio prático de alcançar isso é fazer aos outros
aquilo que queremos que façam a nós. Todos esses valores são comuns ao
bramanismo, ao judaísmo, ao confucionismo, ao taoismo, ao budismo, ao
cristianismo e ao judaísmo (.TOLSTÓI, 2011, p.203).

Nas palavras acima, outro aspecto do deísmo é esmiuçado: O homem é


responsável pela sua evolução. Ele não precisa da figura sacerdotal para mediar o seu
relacionamento com o divino. Também não se faz mais necessário um emaranhado de
ritos expiatórios, pois a conduta é o meio para o aperfeiçoamento. No deísmo a ética é
o pilar para salvação da humanidade. É por acreditar nesse aperfeiçoamento moral
capaz de salvar a si mesmo, que Tolstói dedica-se aos últimos anos de sua vida a viver
como se fosse um asceta. Torna-se um profeta denunciando as práticas nefastas da
sociedade, levando-o muitas vezes ao moralismo extremista. Além de abraçar a
21

doutrina evangélica, começa a pregar também em favor do vegetarianismo, da


abstinência de álcool, de tabaco e de sexo.
Devido a essa concepção, o cristianismo adotado por Tolstói não promove
Jesus Cristo a divindade. Mais absurdo ainda o conceito da trindade. Deus é um ser
superior, Jesus, apenas um homem que deve ser visto como exemplo ético. Suas
palavras e ações, deixando os milagres de fora, devem ser seguidas a risca, pois a
perfeição é alcançada à medida que negamos nossas paixões em detrimento do bem
coletivo. O amor ao próximo é o fim supremo e principal do homem. O próprio Cristo
teria dito que todo aquele que ama, cumpriu a Lei e os profetas.
Em contrapartida, o teísmo afirma que Deus é pessoal, revelou-se aos
homens e manifesta-se em três pessoas distintas: Deus-Pai, Deus-Filho e Espírito
Santo. Fundamentando-se nesse dogma, todo e qualquer seguimento divergente é
considerado falso e, em muitos casos, combatido veementemente. Ademais, uma
divindade que interfere até mesmo nas escolhas humanas, torna o problema do mal
injustificável. Se tudo está debaixo da Intervenção, qual seria a responsabilidade dos
homens? Outra questão central é: Onde estaria a liberdade?
Esse teísmo autoritário não representa o ensino de Jesus, Tolstói nega crer
nesse evangelho imposto “goela abaixo” e defende a ruptura com o
pseudocristianismo. Empenha-se em traduzir os quatro Evangelhos a seu modo,
retirando dele toda a metafísica. Durante anos esmera-se nesse trabalho e é a partir
dele que a “Não Resistência” surge como o principal conceito do pensamento
tolstoiano:

Eu compreendi, não por meio de fantasias exegéticas ou de combinações


textuais profundas e engenhosas; compreendi tudo porque joguei fora de
minha mente todos os comentários. Esta foi a passagem que me deu a chave
do todo. ‘Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, lhes digo: Não resistam ao
mal.’ (Mateus 5:38,39). (TOLSTÓI, 2011, p.28).

2.1 “NÃO RESISTAM AO MAL”

O conceito da “Não Resistência”, ou como chamam os adeptos do


movimento Humanista: “Não Violência Ativa” é o cerne do anarquismo tolstoiano. É a
ideia central de O Reino de Deus está em Vós, livro que o próprio Tolstói considera o
mais importante de todos que escreveu. O princípio já havia sido abordado em Uma
22

Confissão, mas é com “O Reino” que o Apóstolo da Não Violência (assim Gandhi o
classificou) sistematiza a doutrina que lhe abriu os olhos, tornando-o um cristão
convicto de que a moral incutida no Sermão do Monte era a chave para libertação dos
indivíduos.
O primeiro capítulo de “O Reino” demonstra que a doutrina da Não
Resistência foi ensinada por outros homens e grupos cristãos, que embora sendo
minoria, contribuíram para elucidar o verdadeiro significado do evangelho: o amor.
Através do exemplo de concórdia e paz entre os seguidores de Jesus, a doutrina
evangélica penetrará na consciência dos homens. Não se pode impor a aceitação
dessa doutrina, é a atitude humilde de resistir ao mal sem uso da força que levará a
sua aceitação. O amor é o guia para levar a humanidade a atingir a perfeição:

O cristão, conforme os ensinamentos do próprio Deus, não pode ser guiado,


em suas relações com o próximo, senão pelo amor. Assim, não pode existir
autoridade alguma capaz de constrangê-lo a agir contrariamente aos
ensinamentos de Deus e ao próprio espírito do cristianismo (TOLSTÓI, 2011,
p.10).

Se o amor fraterno é o mandamento necessário para o cumprimento da


vontade de Deus e nisto consiste a salvação da alma humana, logo toda e qualquer
ordem que leve o cristão ao descumprimento dessa doutrina, é um entrave ao
aperfeiçoamento. Daí surge a figura do Estado como uma obstáculo na observância
desse mandamento:

A regra da necessidade do Estado não pode obrigar a traição da lei de Deus,


exceto para aqueles que, por interesse da vida material, procuram conciliar o
inconciliável. Mas para o cristão que crê firmemente que a salvação reside na
prática da doutrina de Cristo, essa necessidade não pode ter qualquer
importância. (TOLSTÓI, 2011, p.10).

A Não Resistência não seria uma interpretação exagerada? O uso da força


para preservação da própria vida, isto é, o princípio de legítima defesa, não pode ser
respaldado? Não. Tolstói não admite brechas interpretativas, conforme observado no
início do segundo capítulo do livro Minha Religião:

Quando entendi claramente as palavras ‘Não resistam ao mal’, minha


concepção da doutrina de Jesus mudou inteiramente; e não fiquei espantado
por não ter compreendido antes, e sim por tê-la entendido tão estranhamente
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mal. Eu sabia, como todos sabemos, que o verdadeiro significado da doutrina


de Jesus estava compreendido na regra de amar o seu próximo. Quando
dizemos ‘Vire a outra face’, ‘Ame seus inimigos, estamos falando da própria
essência do cristianismo.Eu sabia disso tudo desde a infância; mas porque não
compreendi corretamente essas palavras simples? (...) ‘Não resistam ao mal,
significa nunca resistir, nunca opor violência; ou, em outras palavras, nunca
fazer algo contrário a lei do amor. Se alguém se aproveitar dessa postura e
afrontar você, suporte a afronta e, acima de tudo, não faça uso da violência.
Isso Jesus disse em palavras tão claras e simples que seria impossível
expressar a ideia de modo mais coerente (TOLSTÓI, 2011, p.35).

A respeito das críticas de que o mandamento é tão elevado que ninguém


seria capaz de cumpri-lo, Tolstói escreve:

O mandamento ‘Não resistam ao mal’ é o ponto principal da doutrina de Jesus;


e não é uma simples declaração verbal; é uma regra cuja prática é obrigatória.
Na verdade é a chave de todo o mistério; mas a chave deve ser enfiada até o
fundo da fechadura. Quando o consideramos um mandamento difícil de
cumprir, o valor da doutrina inteira passa despercebido. Quando suprimimos a
proposição fundamental de uma doutrina, como ela não pareceria impraticáve?
Não é estranho que aqueles que não creem em Jesus o considerem totalmente
absurdo. Quando declaramos que é possível ser cristão sem observar o
mandamento ‘Não resistam ao mal’, simplesmente deixamos de fora o
elemento que da força para por a doutrina de Jesus em prática (TOLSTÓI,
2011, p.38).

Sendo a base da doutrina cristã a “não violência”, Tolstói afirma que o


cristianismo destrói qualquer governo, pelo simples fato deste ser uma violência:

O homem submisso ao poder não age como quer, mas como é obrigado; e é
somente por meio da violência física, isto é, da prisão, da tortura, da mutilação
ou da ameaça desses castigos que se pode forçar o homem a fazer aquilo que
não quer. Nisto consiste e sempre consistiu o poder (TOLSTÓI, 2011, p.167).

Não importa qual a sua forma, apenas existem para manter a desigualdade
e a opressão de uma minoria sobre a imensa maioria. E o forte instrumento em seu
poder é o Exército e o alistamento obrigatório é o germe corruptor da sociedade:

A base do poder é a violência física; e a possibilidade de submeter os homens


a uma violência física é, sobretudo, devida a indivíduos mal organizados, que
agem concordando embora estejam se submetendo a uma só vontade. E,
reunidos, indivíduos armados que obedecem a uma vontade única formam o
exército. O poder encontra-se sempre nas mãos dos que comandam o exército,
e sempre todos os chefes do poder – dos cézares romanos aos imperadores
russos e alemães – preocupam-se com o exército mais do que com qualquer
outra coisa, e somente a ele adulam, sabendo que, se ele está do seu lado,
seu poder está assegurado (TOLSTÓI, 2011, p.168).
24

A formação desses exércitos serve principalmente para controlar os próprios


cidadãos, e não, como costumam dizer os representantes do governo, para defender
as fronteiras do país. É o último grau de violência para manter a submissão de todos.
São estes soldados que irão combater as greves dos operários, que vão pras ruas
conter as reivindicações populares, que vão usar da força bruta contra pessoas
comuns. Assim termina o ciclo de violência que começa com a intimidação através das
leis punitivas pré-estabelecidas, depois vem a corrupção que retira a riqueza do povo e
coloca nas mãos de poucos, em seguida o hipnotismo, que nada mais é do que a
manutenção da população no mais arcaico nível intelecto e cultural até o recrutamento
de homens, ainda adolescentes, para embrutecidos obedecerem apenas as ordem do
hipnotizador:

A intimidação, a corrupção, o hipnotismo criam soldados, os soldados dão o


poder, o poder dá o dinheiro com que se compram as autoridades e se
recrutam os soldados. É um círculo no qual tudo se encadeia firmemente e de
onde é impossível sair por meio da violência (TOLSTÓI, 2011, p.192).

Esse embrutecimento tira das pessoas a capacidade de perceberem o óbvio.


(Como a não manifestação a um discurso proferido por Guilherme II 6, em 1892, no
qual ameaçado pelos “ardis socialistas”, diz a seus soldados que caso fosse
necessário, eles deveriam atirar em seus familiares.) A população não enxerga que
vem sendo usada por um grupo minoritário, que usa sua força para expandir o seu
domínio de poder. O caráter belicoso do Estado não é, sobremaneira, capaz de abrigar
uma sociedade ética movida pela razão:

E é com uma sociedade assim, composta de homens embrutecidos a ponto de


prometerem matar os próprios parentes, que certos homens públicos –
conservadores, liberais, socialistas, anarquistas – desejariam construir uma
sociedade racional e moral. Assim como não é possível construir uma casa
com traves contorcidas e podres, com homens dessa espécie não é possível
organizar uma sociedade moral e racional. Eles podem construir apenas uma
manada dirigida com gritos e o chicote do pastor. E é o que acontece
(TOLSTÓI, 2011, p.202).

6
Guilherme II foi o terceiro e último Imperador da Alemanha e último Rei da Prússia.
25

2.2 PATRIOTISMO E GOVERNO


Entre os recursos hipnóticos utilizados pelos mantenedores do poder, o
conceito de patriotismo é o sustentáculo do instrumento de violência chamado Estado.
Em Patriotismo e Governo, ensaio datado em 10 de maio de 1900, Liev Tolstói
classifica esse sentimento como sendo “antinatural, insensato, prejudicial, causador de
grande parte das catástrofes pelas quais sofre a humanidade, e que por isso esse
sentimento não pode ser alimentado.” Para romper o elo Governo-Sociedade, faz-se
extremamente necessário despertar da hipnose do patriotismo.
As guerras, e toda devastação causada pela mesma, é fruto do surto
patriótico que ensina aos homens que sua nacionalidade é superior. Um engodo, pois
tendo cada povo ou Estado, decidido se considerar o melhor dos povos e dos Estados,
todos estarão grosseiramente enganados, prejudicando uns aos outros, uma vez que
tal ensinamento vem acompanhado de uma postura beligerante. Os anseios da pátria
são a causa mor para a deflagração do combate entre as nações. Na verdade, tais
anseios, são de uma minoria que deseja aumentar a sua rede de poder e também obter
mais rendimentos financeiros. A autoridade de um rei ou de um governante
democrático, em parceria com a elite (aristocrática ou capitalista) nutre em seus
cidadãos o “amor pela pátria” fazendo com que estes peguem em armas para defender
um inimigo, que alguém do topo da estrutura social, disse que deveria ser combatido.
Alguns pensadores contemporâneos a Tolstói afirmavam que havia uma
diferença entre o bom e o mau patriotismo, sendo que o primeiro desejaria o bem-estar
de sua nação, sem prejudicar as demais. Ele contesta esse conceito, afirmando ser
imaginativo e sem fundamentos:

Portanto, não o imaginário, mas o patriotismo real – aquele que todos nós
conhecemos, sob cuja influência se encontra a maioria das pessoas de nosso
tempo e por causa do qual a humanidade tanto sofre – não significa desejar o
bem espiritual ao próprio povo (não se pode desejar o bem espiritual apenas ao
próprio povo), nem se resume às particularidades das individualidades de cada
povo (isso é uma característica, não um sentimento); é um sentimento muito
específico de predileção pelo próprio povo ou Estado em detrimento de todos
os outros povos ou Estados e , consequentemente, um desejo de que esse
povo ou Estado tenha maior bem-estar e poder, que podem ser obtidos e
sempre são obtidos apenas em prejuízo do bem-estar e do poder de outros
povos ou Estados. (...) Parece muito evidente que o patriotismo, como
sentimento, seja um sentimento ruim e danoso; já como ensinamento, é um
ensinamento estúpido. (TOLSTÓI, 2011, p.161).
26

Ao que se refere as particularidades de cada povo, estas não servem para


definir ou defender a ideia de que haja um bom patriotismo:

Do mesmo modo não são patriotismo as particularidades de cada povo, com as


quais outros defensores do patriotismo, intencionalmente, o definem. Eles
dizem que as particularidades de cada povo são condição indispensável ao
progresso da humanidade, e que por isso o patriotismo direcionado a
manutenção dessas particularidades, é um sentimento bom e útil. Mas não
será evidente que se, em certa época, as particularidades de cada povo,
hábitos, crenças , idioma eram condição indispensável a vida da humanidade,
em nosso tempo essas mesmas particularidades servem como principal
obstáculo à concretização do ideal já reconhecido de união irmanada dos
povos? Por isso, a manutenção e a conservação de particularidades, sejam
quais forem – russas, alemãs, francesas, anglo-saxãs –, ao despertar também
a manutenção e conservação não apenas do espírito nacional húngaro,
polonês, holandês, mas também basco, provençal, mordoviano, tchuvaque 7e
de muitos outros povos, servem não para a aproximação e unidade dos povos,
mas para um isolamento e uma separação cada vez maiores (TOLSTÓI, 2011,
p.161).

A classe dominante usa tão bem o ideal patriótico que o ensinam desde a
mais tenra infância e, à medida que as pessoas crescem, outros instrumentos são
utilizados na consolidação desse preceito:

Nas mãos da classe dirigente estão o exército, o dinheiro, as escolas, a religião


e a imprensa. Nas escolas, elas atiçam o patriotismo nas crianças com
histórias que descrevem o próprio povo como sempre correto e melhor do que
todos os outros; nos adultos, atiçam esse mesmo sentimento com espetáculos,
cerimônias, monumentos e uma imprensa patriótica mentirosa; e, o mais
importante, atiçam o patriotismo pelo fato de que, ao promover todo tipo de
injustiça e crueldade contra outros povos, despertam neles a hostilidade contra
seu próprio povo e depois utilizam essa hostilidade para despertar atitudes
hostis em seu próprio povo (TOLSTÓI, 2011, p.166).

Toda a opressão governamental vem da doutrinação patriótica que cega a


sociedade civil, fazendo com que as pessoas alimentem a rede de poder, aumentando
o julgo sobre si mesmas. Faz-se necessário que entendam quem realmente é o
inimigo, ou seja, a ameaça não é externa, e sim, interna:

Pensem bem e entendam que seus inimigos não são os bôeres, nem os
ingleses, nem os franceses, nem os alemães, nem os boêmios, nem os
finlandeses, nem os russos, seus inimigos, seus únicos inimigos, são vocês
mesmos, que sustentam com o próprio patriotismo os governos que os
oprimem e promovem sua infelicidade (TOLSTÓI, 2011, p.182).

7
Mordavianos e Thuvaques são povos originários da Finlândia.
27

Utilizando de um argumento puramente deísta, Tolstói encerra Patriotismo e


Governo conclamando que todos são filhos do mesmo Deus, não importando nenhuma
particularidade cultural/nacional:

Se as pessoas compreendessem que não são filhas de nenhuma pátria ou


governo, mas Filhas de Deus, e que por isso não podem ser escravas nem
inimigas de outras pessoas, essas instituições perniciosas, insensatas,
inteiramente desnecessárias e antiquadas chamadas governos, e os
sofrimentos, as violências, as destruições e os crimes que elas provocam
seriam eliminados (TOLSTÓI, 2011, p.184).

2.3 AS CONTRADIÇÕES DE UM MUNDO CRISTÃO


O mundo ocidental, autodeclarado cristão, independente da confissão –
luterana, católica, anglicana, ortodoxa, calvinista – vive numa grande contradição entre
cumprir os ensinos de Cristo e cumprir as normas de conduta dos governos. O
cumprimento das leis é a base para uma vida em sociedade, mas, segundo já vimos,
as leis dos homens do Estado são opostas a Lei do Amor, a única que deve ser
observada entre os cristãos. Sendo assim, ao participar da estrutura de poder, aquele
que se fiz seguidor da doutrina evangélica está traindo o cristianismo, pois este não
reconhece o Parlamento, o Exército, os Tribunais e qualquer outra instituição
governamental.
Quando os homens se deparam com a clareza da “Não Resistência”, ao
invés de mudarem sua postura, tentam persuadir a si mesmos de que não estão
vivendo de maneira contraditória em relação ao que Jesus pregou. Para justificar seu
estilo de vida, incoerente com o evangelho, utilizam-se dos mais absurdos argumentos
e situações hipotéticas para respaldar que a maneira como vivem, não é condenável.
8
Numa carta endereçada a Howard Crosby, em 1896, Tolstói lança como exemplo,
uma situação em que um assaltante agride e ameaça uma criança. Nesse caso: matar
o assaltante seria aceitável? Ao que responde:

Se uma pessoa é cristã, e portanto reconhece Deus e o sentido da vida na


realização da sua vontade, e um terrível assaltante atacasse uma criança
inocente e maravilhosa, teria menos fundamentos para renegar a lei divina e
fazer com que o assaltante o que o assaltante quer fazer com a criança – ela
pode implorar ao assaltante, pode lançar seu corpo entre o assaltante e sua
vítima, mas uma coisa ela não pode: renunciar conscientemente à lei divina,
cuja realização é o sentido da sua vida. Pode até ser que, por sua falta de

8
Ernest Howard Crosby, um romancista novaiorquino que se tornou um grande divulgador do tolstoísmo
nos Estados Unidos.
28

educação, por seu caráter animal, uma pessoa, pagã ou cristã, mate o
assaltante não só em defesa da criança, mas para defender a si mesma ou até
sua carteira, mas não significa de jeito nenhum que isso é o que deve fazer,
que deve se acostumar e fazer com que os outros se acostumem a pensar que
é isso que precisa ser feito (TOLSTÓI, 2011, p.113).

O exemplo do assaltante imaginário demonstra que, para Tolstói, não existe


situação ameaçadora capaz de respaldar o uso da violência. Considerando que o ser
humano é um ser passional, se motivado pela emoção, alguém matasse o criminoso
seria, até certo ponto, compreensivo, todavia conscientemente, não há desculpa para
tal medida, pois existem outros fatores não pensados: 1- o assaltante poderia não levar
a cabo a vida da criança, sendo assim, sua morte foi um crime desnecessário. 2- temos
que preservar a vida e não julgarmos se a vida de “A” tem mais ou menos valia que a
vida de “B”.
Essas contradições, mascaradas por discursos grandiloquentes,
principalmente proferidos por integrantes do clero, que deturpam o verdadeiro
evangelho, ficam óbvias no que se refere ao militarismo (a escola de assassinos),
porém estão enraizadas em diversos setores da sociedade. No capítulo terceiro de
Minha Religião, Tolstói denuncia o contracenso dos tribunais, afirmando que eles são
uma instituição anticristã, pois o ensino de Jesus proíbe o julgamento:

Não julguem para não serem julgados...’ (Mateus 7:1). ‘Não julguem e não
serão julgados, não condenem e não serão condenados’ (Lucas 6:37). Os
tribunais em que servi – e que garantiam a segurança da minha propriedade e
de minha pessoas – pareciam instituições indubitavelmente sagradas e tão
inteiramente de acordo com a lei divina, que nunca me passou pela cabeça que
as palavras que acabei de citar pudessem ter outro significado além de uma
proibição de falar mal do próximo. Nunca me ocorreu que, com essas palavras,
Jesus falava dos tribunais da lei e da justiça humanas. Só quando compreendi
o verdadeiro significado das palavras ‘Não resistam ao mal’ é que surgiu a
questão do conselho de Jesus em relação aos tribunais. Quando compreendi
que Jesus queria denunciá-los, perguntei a mim mesmo se esse não seria o
real significado: não apenas não julgar o próximo, não falar mal dele, mas não
julgar nas cortes, não o julgar em quaisquer dos tribunais que você instituiu.
Ora, em Lucas (6:37,49) essas palavras se seguem imediatamente à doutrina
que nos aconselha a não resistir ao mal e fazer o bem a nossos inimigos. E,
depois do conselho ‘Sejam misericordiosos, como seu Pai é misericordioso’
(Lucas 6:36), Jesus diz: ‘Não julguem e não serão julgados, não condenem e
não serão condenados.’ ‘Não julguem’, isto não significa não instituir tribunais
para o julgamento de seu próximo? Bastou enfrentar corajosamente a questão
que meu coração e minha razão se uniram em uma resposta afirmativa
(TOLSTÓI, 2011, p.45).
29

O objetivo dos tribunais nega a doutrina cristã da “Não Resistência”, pois só


existem para retribuir o mal com o mal e anulam o sublime conceito do perdão.
Comparando a vida com uma estrada, em determinado momento dela iremos nos
deparar com uma bifurcação pela qual devemos escolher o caminho de Cristo ou o
caminho do Estado. Seria estupidez tentar conciliar o inconciliável. Tolstói se presta ao
papel de Pilatos que bradou aos judeus: “Cristo ou Barrabás?” Só que diferente do
governante romano, o Profeta da “Não Resistência” não lavará suas mãos. “Não
resistir” não significa resignar-se frente a opressão. Existe outro método combativo que
não se faz necessário o emprego da violência: A desobediência civil.
30

CAPÍTULO III

3.1 O EMPREGO DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL

Quando o rei italiano, Humberto I, foi morto com três tiros disparado por um
anarquista Gaetano Bresci, em julho de 1900, Tolstói escreveu Não Matarás. No início
desse texto diz não compreender o motivo de tanto assombro, uma vez que os
monarcas promovem a morte de centena de milhares de pessoas através da guilhotina,
da forca, do fuzilamento e das inúmeras guerras deflagradas. E essa culpa é atribuída
até aos reis considerados “bons”. E a repercussão da mídia é diferente de quando se
executa os reis pela sentença de um tribunal, como no caso de Carlos I e Luís XVI.
Aqueles que empregam a máxima “olho por olho e dente por dente”, abolida
por Cristo não tem sequer o direito de sentirem indignação quando um atentado dá
cabo à vida de um soberano. Considerando o número de vitimas que eles já
produziram nos campos de batalhas ou através da arbitrariedade penal, é de se
admirar que tais atentados sejam tão escassos. A crueldade dos reis é
incomparavelmente maior que os assassinatos cometidos pelos anarquistas:

O assassínio de reis, tal como o último assassinato, o de Humberto, é terrível,


mas não por sua crueldade. Os atos realizados por disposição de reis e
imperadores, não só no passado, como o massacre da Noite de São
Bartolomeu, massacres por causa da fé, horríveis repressões das revoltas
camponesas, os massacres de Versalhes, mas as execuções governamentais
presentes, o confinamento em prisões isoladas, os batalhões disciplinares, os
enforcamentos, as decapitações, as refregas na guerra, são
incomparavelmente mais cruéis do que os assassinatos cometidos pelos
anarquistas. São terríveis esses homicídios, e não por causa de sua injustiça.
Se Alexandre II e Humberto não mereciam seus assassínios, muito menos o
mereciam milhares de russos que pereceram em Pléven, ou de italianos que
pereceram na Abissínia. São terríveis esses homicídios, não por sua crueldade
e injustiça, mas pela insensatez de quem os executa (TOLSTÓI, 2011, p.153).

Tolstói repete que os atentados que mataram os soberanos são terríveis,


não por serem injustos ou cruéis, mas sim, por serem um ato insensato, e que são
insuficientes para abalar as estruturas de um governo. Matar os que sentam no trono
de suas nações é como cortar a cabeça daquele mitológico ser, que quando
decapitado, surgi uma cabeça nova no lugar da que foi extirpada. A estrutura dos
governos - compara Tolstói - é semelhante a um carregador de espingarda: uma vez
31

que uma bala cai, outra é instantaneamente fixada na mesmíssima posição. Sendo
assim, para que matá-los? O povo oprimido, em nada sairá beneficiado:

Os desastres do povo procedem não de uma pessoa particular, mas da


estrutura da sociedade em que as pessoas estão de tal forma relacionadas que
se encontram todas sob o poder de uns poucos, ou, com mais frequência, sob
o poder de uma pessoa, a qual ou as quais estão tão corrompidas pela sua
situação antinatural sobre o destino e a vida de milhões de pessoas que se
encontram sempre em maior ou menor grau obcecadas por uma mania de
grandeza que só é dissimulada do conhecimento geral em virtude de sua
excepcional condição (TOLSTÓI, 2011, p.154).

Se de um lado, os anarquistas estão equivocados, do outro os pacifistas


também não terão êxito com as suas conferencias, tratados e medidas pacificadoras.
Convidado para palestrar no Congresso da Paz de Estocolmo (1909), Tolstói, aos
oitenta anos de idade, denunciou a inutilidade daquele evento em seu discurso. Apelar
às autoridades para que se desarmem, ironiza, é o mesmo que pedir para um homem
cortar o galho em que está sentado. Posto que os exércitos são a base do Estado, e as
guerras são o combustível do militarismo, propor o pacifismo aos representantes do
mesmo é propor o seu autoextermínio. Sendo assim, qual medida deve ser tomada
para por um fim a opressão? A quem devemos nos reportar? A chave para essas
questões está no próprio povo:

Portanto, os culpados da opressão aos povos e dos assassínios na guerra não


são os Alexandres, e Humbertos, e Guilhermes, e Nicolaus,e Chamberlains
que decretam essa opressão e essas guerras, mas os que os puseram na
condição de soberanos da vida das pessoas. E por isso não se deve matar os
Alexandres, Nicolaus, Guilhermes, e Humbertos, mas deixar de sustentar essa
estrutura da sociedade que os produz. E o que sustenta a estrutura atual da
sociedade é o egoísmo das pessoas, que vendem sua liberdade e sua honra
por pequenos ganhos materiais. (...) Os próprios povos, ao sacrificar sua
dignidade humana seus ganhos, produzem essas pessoas que não podem
fazer nada diferente do que eles fazem, e depois se zangam por suas
estúpidas e más ações. Matar essas pessoas é a mesma coisa que mimar as
crianças e depois açoita-las (TOLSTÓI, 2011, p.156).

Os assassinatos fortalecem a hipnose e não são capazes de libertar os


povos. O que se deve fazer é libertá-los através da doutrina da “Não Resistência”.
Ensinar o povo que o melhor a se fazer é parar de cooperar com todo esse aparato de
violência – exércitos, polícia, tribunais – e assim fazer ruir os governos. Estes sabem
muito bem como punir os revolucionários que aderem ao terrorismo, mas seriam
32

incapazes de lidar com uma multidão de desertores, que não mais vendem a sua
liberdade, agindo segundo a sua própria consciência, sem cumprir ordens arbitrárias.
Décadas antes de Tolstói, um jovem escritor estadunidense, Henry David
Thoreau, havia sido preso quando ia buscar um par de sapatos. Passou a noite na
prisão e foi liberado assim que o dia amanheceu, graças a sua tia que pagou a fiança
pela sua soltura. A primeira coisa que Thoreau fez foi voltar à sapataria, em seguida
redigiu um ensaio relatando o motivo pelo qual fôra encarcerado: Deixara de pagar os
impostos, pois não queria contribuir com um governo escravocrata e belicoso.
Em A Desobediência Civil, Henry Thoreau diz acreditar na máxima “o melhor
governo é o que menos governa”, em seguida diz que é ainda melhor que os governos,
absolutamente, não governassem. Por isso que muitos o consideram um anarquista
individualista. Apesar de sua desobediência ser um protesto contra um governo injusto,
afim de que este possa corrigir a injustiça, e não a sua extinção:

Leis injustas existem: devemos contentar-nos em obedecer a elas ou


esforçamo-nos em corrigi-las, obedecer-lhes até triunfarmos ou transgredi-las
desde logo? Num governo como este, os homens geralmente pensam que
devem esperar até que a maioria seja persuadida a alterá-las. Pensam que, se
resistissem ao governo, o remédio seria pior que o mal. Mas é culpa do próprio
governo que o remédio seja, efetivamente, pior que o mal. É ele que o torna
pior. Por que ele não está apto a antecipar e proporcionar a reforma? Por que
não trata com carinho a sua sábia minoria? Por que suplica e resiste ates de
ser ferido? Por que não encoraja os seus cidadãos a prontamente apontarem
seus defeitos e agir melhor do que lhes pede? Por que sempre crucifica Cristo,
excomunga Copérnico e Lutero e declara Washington e Franklin rebeldes?
(THOREAU, 1997, p.10).

Sua reclamação se dirige àqueles que já identificaram as injustiças, todavia


nada fazem para erradicá-las. Além de defender o fim da escravidão, denuncia a
guerra de 1846 entre os EUA e o México. Todo o homem justo, segundo o mesmo, não
tem o dever de erradicar qualquer espécie de injustiça, mas deve, no mínimo, não
cooperar com ela, isto é, não apoiá-la em termos práticos:

Se a injustiça faz parte do atrito necessário à máquina do governo, deixemos


que assim seja: talvez amacie com o passar do tempo, e certamente a máquina
irá se desgastar. Se a injustiça tem uma mola, polia, cabo ou manivela
exclusivamente para si, talvez possamos questionar se o remédio não será pior
que o mal. Mas se ela for de natureza tal que exija que nos tornemos agentes
de injustiça para com os outros, então proponho que violemos a lei. Deixemos
que nossas vidas sejam um antiatrito capaz de deter a máquina. O que
devemos fazer, de qualquer maneira, é verificar se não estamos prestando ao
mal que condenamos (THOREAU, 1997, p.26).
33

A decisão de não pagar impostos foi a alternativa que Thoreou descobriu


para não cooperar com um governo injusto. Ele nega o seu reconhecimento, na medida
em que não aceita o imposto, pois tem a ciência de que o dinheiro coletado pelo
Estado irá servir para financiar causas pelas quais ele considera, moralmente, erradas.
É com a figura do coletor, ou seja, um homem que decidiu ser um emissário
governamental, que a negação da ordem deve ser manifesta:

Encontro diretamente, frente a frente, esse governo americano, ou seu


representante, ou seu representante, o governo do Estado, uma vez por ano –
não mais – na figura do coletor de impostos. Este é o único modo pelo qual um
homem na minha situação pode necessariamente encontrá-lo. E então ele
afirma claramente: ‘Reconheça-me’. E a maneira mais simples, mais efetiva e,
no atual estado das coisas, mais indispensável de tratar com ele, então é negá-
lo. O coletor de impostos, meu semelhante, é exatamente o homem com quem
tenho de tratar – pois afinal, é com homens que brigo e não com pergaminhos
– e ele escolheu voluntariamente ser um agente do governo (THOREAU, 1997,
p.28).

Tolstói partilha da mesma doutrina, e declara também, guerra ao Estado. A


luta acontece quando as pessoas deixam de colaborar com a máquina, rebentando
assim o sustentáculo do poder que oprime e sufoca os homens. Para aniquilar o
governo, basta aderir a desobediência. É o que diz claramente em Os Acontecimentos
Atuais Na Rússia, texto escrito em Fevereiro de 1905:

Para livrar-se do governo não é necessário lutar contra eles pelas formas
exteriores (insignificantes até o ridículo diante dos meios de que dispõem os
governos) é preciso unicamente não participar em nada, basta não sustentá-los
e então cairão aniquilados. E para não participar em nada dos governos nem
sustentá-los é preciso está livre da fragilidade que arrasta os homens aos laços
do governo que lhes fazem seus escravos ou seus cúmplices (TOLSTÓI, 2011,
p.23).

O poder do emprego da Desobediência Civil só será manifesto quando a sua


adesão for ampliada socialmente. Daí a necessidade de ser divulgado. Homens como
Thoreou e Tolstói se empenham na difusão de valores éticos para esclarecer os
homens a não mais negarem aquilo que acreditam, levando-os a subversão. A força do
Estado é física, sua superioridade provém do uso da violência. Moralmente, não possui
energia capaz de deter uma sociedade formada por homens esclarecidos, que trazem
consigo o pensamento de tratarem os outros assim como gostariam de serem tratados.
Fácil seria encarcerar, torturar e até dar cabo da vida de um homem que se
recuse a pagar impostos, ou que se negue a prestar serviços militares. Porém, o que
34

faria o governo, caso uma vila inteira não pagasse os devidos tributos? E se todo um
destacamento abandonasse as trincheiras e dissesse que aquela guerra não era sua e
que por serem cristãos não fariam mal a outrem? Caberiam todos nas prisões? Seriam
todos executados? Cada governo sabe bem o que fazer com os revolucionários, com
as bombas, com as rebeliões, e revoluções; todavia não conseguem lidar com homens
que por não negarem a sua consciência, ignoram todo e qualquer tipo de autoridade,
fazendo com que mesmo sem combate, as bases do poder sejam enfraquecidas. São
esses homens, os mais temidos pelas autoridades:

Que importância pode ser atribuída à recusa de algumas dúzias de loucos,


como os chamam, a prestar juramento ao governo, a pagar impostos, a
participar da justiça do Estado e a servir o exército? Essa gente é punida,
enviada à prisão perpétua, e a vida continua seu curso, como antes.
Entretanto, são esses fatos, mais que qualquer outro, que comprometem o
poder e preparam a libertação dos homens. São as abelhas isoladas, primeiro
desprendidas do enxame, que volteiam ao seu redor, esperando o que não
pode tardar: que todo o enxame pouco a pouco se desprenda. E os governos
sabem disso e temem esses exemplos mais do que temem todos os
socialistas, comunistas e anarquistas com suas conspirações e suas dinamites
(TOLSTÓI, 2011, p.213).

O grande exemplo dos resultados obtidos através da Desobediência Civil, foi


a Satyagraha.9 Embora não tenha sido uma experiência que tenha dissolvido o Estado,
seus princípios, que levaram o povo indiano a conquistar sua independência quase
sem derramamento de sangue, foram influenciados por pensadores libertários. Gandhi
usou a Não-Violência apregoada por Tolstói, e parou de cooperar com o Governo
Britânico estimulado pela ideia de Thoreau, além de intencionar criar no país, uma
descentralização política através das aldeias comunitárias, após ler assiduamente a
obra de Kropotkin. 10
No Brasil, temos Maria Lacerda de Moura, uma mineira nascida em 16 de
Maio de 1887, como representante do anarco-pacifismo. Pioneira do feminismo,
promoveu a igualdade de gênero e o amor livre em seus escritos. Como professora,
utilizava uma pedagogia libertária. Desde cedo se interessou pela causa operária e
pelas lutas sindicais. Anticlerical e Antimilitarista, considerava-se uma individualista,
principalmente por adotar o pacifismo contido em Tolstói. Certa vez chegou a declarar
que apenas Jesus Cristo era o legítimo anarquista. Em 1932, divorciada e sem filhos,

9
Filosofia de resistência Não-Violenta, desenvolvida por Mohandas Gandhi.
10
Piotr Kropotkin, geógrafo e escritor russo, considerado o fundador da vertente anarco-comunista.
35

vivendo em uma colônia comunitária escreve Clero e Facismo – Horda de


Embrutecidos e Facismo – filo direto da Igreja e do Capital.
Eis a arma apresentada para que o Estado caia em ruínas: A desobediência.
Tolstói, como os demais anarquistas, não nos oferece uma visão nítida de como seria a
sociedade sem a tutela de um governo, apenas denuncia o grande mal que este
comete no presente. O embrutecimento, a pobreza, a opressão, a injustiça e a negação
da consciência são produtos do Estado-Violência. Isso precisa acabar, e só terá um fim
quando o Cristianismo for compreendido e aceito pela grande maioria dos homens.
Não o misticismo alienante da Igreja, mas a moral resumida no Sermão do Monte, que
condena todo e qualquer tipo de violência, instruindo as pessoas a não pagarem o mal
com o mal. O tratamento dado ao próximo deve ser aquele que gostaríamos de receber
dele. Quando a humanidade alcançar esse nível de consciência, então teremos o
Reino de Deus manifesto nas relações entre os povos. A única lei que permanecerá
nesse Reino é a Lei do Amor, conduzindo os homens a serem, de fato, livres.
36

CONCLUSÃO

De acordo com os estudos realizados neste trabalho, é inegável que Liev


Tolstói deve ser considerado um pensador anarquista. Sua insistente moral cristã-
libertária desempenhou o papel de denunciar e sabotar o império dos Romanov.Falava
sem temeridades e nenhuma injustiça passava despercebida por ele. Os subversivos
russos se apoiavam no Profeta da Não Violência, pois pelo imenso prestígio que havia
conquistado, acabou ficando livre das perseguições diretas.
Não ficou restrito no campo da teoria. Preocupado com a educação dos
camponeses, cria uma escola rural em Yasnaia Poliana, onde além da alfabetização,
tinha por objetivo libertar as mentes cativas daquela classe embrutecida pela tradição
mística do pseudocristianismo. Não havia ata de presença, lições de casa, palmatória,
provas. Nada que remetesse a figura austera e autoritária de um professor de uma
escola regular. As cartilhas, elaboradas pelo próprio Tolstói, possuíam um estilo
conciso e próximo da oralidade. Estudar, naquele contexto, era uma atividade lúdica,
libertária e afetiva.
A sua relação familiar não era boa, pois, a esposa Sophia, mãe dos seus 15
filhos, não comungava das ideias do marido. Sempre havia conflitos devido ao estilo
simples adotado após a sua conversão. Sophia cobrava-lhe os luxos convenientes a
uma família pertencente à aristocracia e os filhos endossavam as reclamações de sua
genitora. Tolstói já limpava seus aposentos, tecia suas roupas e lavrava a terra, mas foi
quando abriu mão de receber os direitos autorais de sua obra, que a convivência ficara
insustentável. Aos 82 anos, foge de casa e viajando em vagões de terceira classe, o já
debilitado escritor convivendo com o frio e com a fumaça contrai pneumonia e morre na
Estação Ferroviária de Astapovo, no dia 20 de Novembro de 1910.
A influência do pensamento tolstoiano levou diversos homens a fundarem
colônias baseadas numa economia comunitária e com estilo de vida ascético. Não há
muitas informações a cerca delas. O que sabemos é que fracassaram em um curto
espaço de tempo. Todavia, a força dos escritos de Tolstói é atemporal. Como profeta,
alerta para a transformação social advinda da consciência humana. A mudança de vida
de cada um é o ato inaugural de uma revolução, pois não se trata de um individualismo
ético fechado em si. Trata-se de um comprometimento pessoal com o outro. É um
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compromisso social que visa libertar-se da opressão. Para tal, é preciso libertar-se a si
mesmo, porque alguém que ainda permanece preso é incapaz de libertar outrem.
O anarquismo cristão tolstoiano foi e continua sendo singular. Embora
existam outros nomes nesse segmento, como por exemplo, Jacques Ellul, ninguém foi
tão sistemático do que Tolstói. Suas palavras são diretas e compreensíveis até mesmo
para pessoas de baixa escolaridade. Não há elitismo em sua prosa, pois não mais se
via como um escritor renomado. Seus textos libertários tem um endereço certo: o povo.
Pois pertence ao povo, o aguardado Reino de Deus.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKUNIN, Deus e o Estado, São Paulo: Hedra, 2011.

LÖWY, Michel, Redenção e Utopia: O judaísmo libertário na Europa Central: um estudo de


afinidade eletiva, São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

NETTLAU, Max, História da Anarquia – Das origens ao Anarco-Comunismo. São Paulo: Hedra,
2008.

PROUDHON, Pierre Joseph, A Propriedade é um Roubo e outros escritos anarquistas. Porto


Alegre: LP&M, 2008.

RECLUS, Elisée, Anarquia Pela Educação, São Paulo: Hedra, 2011.

TOLSTÓI, Leon, Cristianismo e Anarquismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2011.

_____________, Guerra e Paz – Volume 3, Porto Alegre: LP&M, 2007.

TOLSTÓI, Liev, Minha Religião. São Paulo. A girafa,2011.

_____________, O Reino de Deus está em Vós, Rio de Janeiro: BestBolso,2011.

_____________, Os Últimos Dias. São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2011.

THOREAU, Henry David, A Desobediência Civil. Porto Alegre: LP&M, 1997.

WOODCOCK, George, História das Idéias e Movimentos Anarquistas, Vol.1. A Idéia. Porto
Alegre: LP&M 2010.
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ANEXO – SOBRE A REVOLUÇÃO


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Não há pior surdo que aquele que não quer ouvir. Os revolucionários dizem
que sua atividade tem por objeto a destruição do tirânico estado atual de coisas que
oprime e deprava aos homens. Mas, para aniquilá-lo há que contar de antemão com os
meios para ter ao menos uma probabilidade de conseguir isso, caso contrário, não há a
menor probabilidade de derrotá-lo. Os governos existem; desde há muito tempo
conhecem a seus inimigos e os perigos que os ameaçam, e por esta razão tomam as
medidas que tornam impossível a destruição do estado de coisas por meio do qual se
mantém. E os motivos e os meios que os governos usam são os mais fortes que
podem existir: o instinto de sobrevivência e o exército disciplinado.
A tentativa revolucionária de 14 de dezembro ocorreu sob as condições mais
favoráveis; era uma época de transição, e a maior parte dos revolucionários pertenciam
ao exército. E como! Entretanto em São Petersburgo e em Toultchine a insurreição foi
sufocada quase sem esforços pelas tropas submissas ao governo, e logo veio o
reinado de Nicolau I, inepto, brutal, que depravou aos homens e durou cerca de trinta
anos. E todas as tentativas de revolução, sem tapeação, posteriores àquela,
começando pelas aventuras de algumas dezenas de jovens de ambos sexos que
pensavam que armando os camponeses russos com algumas centenas de pistolas,
venceriam um exército aguerrido de milhões de soldados. Bastava os trabalhadores
gritarem com a bandeira em mãos: Abaixo o despotismo! Para logo em seguida serem
facilmente dispersos por algumas dezenas de gorilas e cossacos armados de chicotes.
Tal repressão também foi vista nas explosões e assassinatos de 1870, precursores do
1° de março (2). Todas essas tentativas terminaram, e não poderiam terminar de outra
maneira, com a perda de muita gente de valor e com o aumento da força e da
brutalidade por parte do governo. As coisas não tem mudado de lá para cá. No lugar de
Alexandre II veio Alexandre III, depois Nicolau II. No lugar de Bogoliepov, veio Glazov,
no lugar de Spiagnine, veio Plehwe; e depois de Bobrikov, veio Obolensky.
Eu ainda não havia terminado de escrever este trabalho quando Plehwe
perdeu seu cargo, e para sustituí-lo pensava-se nomear outro ainda mais odioso que
ele, tanto que depois da morte de Plehwe, o governo tornou-se ainda mais cruel.
Ninguém pode negar o valor de homens como Khaltourine (3), Ryssakov e Mikhaikov
(4), e dos que mataram Bobrikov e Plehwe, que sacrificaram suas vidas para alcançar
um fim inacessível. De igual maneira tampouco pode-se deixar de reconhecer o valor e
a abnegação daqueles que a custa dos maiores sacrifícios incitaram o povo à
revolução, e dos que imprimem e propagam folhetos revolucionários.
Mas é impossível não ver que a atividade desses homens não pode resultar
outra coisa senão a derrota e a piora da situação em geral. O que faz com que homens
inteligentes, morais, possam entregar-se inteiramente a uma atividade tão claramente
inútil, pode explicar-se unicamente porque na atividade revolucionaria, há algo de
excitante na luta , no risco de vida, que sempre atrai à juventude. É comovente ver a
energia de homens fortes e capazes direcionada para matar animais, percorrer grandes
trajetos de bicicleta, saltar obstáculos, lutar, etc., e é ainda mais triste ver esta energia
sendo gasta arrastando homens para uma atividade perigosa que destrói sua vida, ou,
pior ainda, para atividades legais, ou, mais precisamente, para atividades definidas
como legais, onde se proíbe, sob pena de castigo, qualquer um que atente contra o
41

que se reconoce ser direito dos individuos. Aqui, a despeito dessa definição ter como
base a liberdade, o que ocorre na verdade é, na maioria dos casos, uma violação à
liberdade do homem. Por exemplo, nossa sociedade reconhece o direito do governo
dispor do trabalho (impostos), e até mesmo da pessoa (serviço militar) de seus
cidadãos. Reconhece que alguns homens tem o direito da posse exclusiva da terra,
quando sem embargo, é evidente que tais direitos, ao proteger a liberdade de uns, não
apenas priva outros de liberdade, como também do modo mais brutal priva a maioria
de dispor de seu trabalho e até mesmo de sua pessoa.
Definir liberdade como direito de fazer tudo o que não atinja a liberdade de
alguns, tudo o que não é proibido pela lei; evidentemente, não corresponde ao conceito
da palavra liberdade. E não poderia ser de outro modo, porque uma definição
semelhante atribui ao conceito de liberdade a qualidade de algo positivo, quando
liberdade é uma concepção negativa. Liberdade é ausência de travas. O homem é livre
somente quando ninguém lhe proíbe, sob a ameaça da violência, de executar certos
atos.
Os homens não podem ser livres em uma sociedade onde os direitos das
pessoas estão definidos de uma maneira onde se exige ou se proíbe certos atos sob
pena de castigo. Os homens podem ser verdadeiramente livres apenas quando todos
igualmente estiverem convencidos da inutilidade, da ilegitimidade da violência, e
obedeçam as regras estabelecidas, não por medo da violência ou da ameaça, e sim,
pela convicção arrazoada.
Mas não faltará quem me objete, dizendo que não há uma sociedade
semelhante, logo, em nenhuma parte pode existir a verdadeira liberdade; mesmo
admitindo não haver sociedade que não reconheça a violência como necessária, esta
necessidade também tem seus diversos graus. Toda a história da humanidade é a
gradual substituição da violência pela convicção razoável. Ademais, a sociedade
reconhece claramente a estupidez da violência, e se acerca cada vez mais da
verdadeira liberdade. Isto é elementar e deveria ser claro para todos se desde há muito
não se houvesse estabelecido entre os homens a inércia diante da violência e o
emaranhado voluntário dos conceitos para sustentar esta violência que só é vantajosa
para os dominadores.
A influência mútua pela convicção razoável, baseada nas leis de uma razão
comum a todos, é própria dos homens e dos seres razoáveis. Esta submissão
voluntária de todos às leis da razão e o fato de proceder cada um para com os demais
da mesma forma como quer que procedam para com ele, é própria à natureza do
homem razoável que é comum a todos. Esta relação mútua dos homens, que realiza o
mais elevado ideal de justiça, é propagada por todas as religiões, e a humanidade não
cessa de aproximar-se dela.
Por esta razão é evidente que nos espera uma liberdade cada vez maior,
não pela introdução de novas formas de violência como fazem os revolucionários que
tratam de aniquilar a violência existente com o emprego de outra violência, e sim
propagando entre os homens a consciência do ilegítimo, da criminalidade, da violência
e a possibilidade de ser substituída pela convicção arrazoada, ao mesmo tempo em
que cada indivíduo vai empregando cada vez menos a violência. Esparramando este
42

convencimento e abstendo-se da violência, cada homem tem um meio acessível e o


mais poderoso: convencer-se a si mesmo, ou seja, aquela pequena parte do mundo
que nos é submissa, e graças a este convencimento, separar-se de toda participação
na violência e levar uma vida na qual a violência deva resultar inútil.
Pensa com seriedade, compreende e define o sentido de tua vida e de teu
destino -- a religião te ensinará -- trata, na medida do possível, de realizar em tua vida
o que consideres como teu destino. Não tomes parte no mal que reconheces e
censuras. Vive de maneira que a violência não te seja necessária, e te ajudarás da
maneira mais eficaz a adquirir a consciência da criminalidade, da inutilidade da
violência, e procedendo assim, pela via mais segura, poderás esperar a libertação dos
homens, o objetivo dos revolucionários convictos.
Não há liberdade quando não se permite dizer o que se pensa, nem quando
não se pode viver como se crê necessário.
Ninguém pode obrigar-te a dizer o que não acreditas ser útil e nem a viver
como não queiras, e todos os esforços dos que te contradizem não farão mais que
fortalecer a influência de tuas palavras e de teus atos.
Mas essa negativa de atividade exterior, não seria um sinal de debilidade, de
covardia, de egoísmo? Esse distanciamento da luta não ajudaria o aumento do mal?
Existe uma opinião semelhante; e provocada por revolucionários. Mas esta
opinião não é apenas injusta, como também revela má fé. Cada homem que deseja
colaborar para o bem geral de todos os homens deverá tratar de viver sem recorrer em
nenhum caso à proteção de sua pessoa e de sua propriedade pela violência, deverá
tratar de não submeter-se às exigências das superstições religiosas e governamentais,
não deverá em nenhum caso tomar parte na violência governamental, seja nos
tribunais, seja nas administrações, ou em qualquer outro serviço, não deverá usufruir,
sob nenhuma forma, de dinheiro arrancado do povo pela força, não deverá tomar parte
no serviço militar, fonte de todas as violências. Atento a estas coisas, este homem
saberá por experiência, quais são os verdadeiros valores e quais são os sacrifícios
necessários para seguir o caminho do emprego de uma atividade completamente
revolucionária.
A recusa em pagar impostos ou tomar parte no serviço militar, tem amparo
na lei religiosa e moral, que os governos não podem negar, apenas esta recusa, firme e
atrevida, quebra as estruturas sobre as quais se sustêm os governos e isso será mil
vezes mais seguro que o emprego das greves por mais longas que sejam, que os
milhões de folhetos socialistas, que as revoluções melhor organizadas ou a matança de
políticos.
E os governantes sabem disso, o instinto de conservação lhes diz onde está
o perigo principal. Não tem medo das tentativas violentas, pois tem em suas mãos uma
força invencível; mas sabem também que são impotentes contra a convicção razoável,
afirmada pelo exemplo da vida.
A atividade espiritual é a força maior e mais poderosa. Move o mundo. Mas
para que seja a força que move o mundo é preciso que oshomens creiam em sua
potência, que se sirvam dela sem mesclar procedimentos de violência que aniquilam
sua força. Os homens devem saber que todas as muralhas da violência, mesmo
43

aquelas que parecem mais fortes, não se derruba pelas conjurações, pelos discursos
parlamentares, ou pelas polêmicas dos periódicos, e muito menos pelas revoluções ou
matanças; se derruba unicamente pela explicação que cada um faz do sentido e do
objetivo de sua vida e a execução firme, valorosa, sem compromissos, em todos os
aspectos da vida, das exigências da lei superior, interior da vida. Seria bem desejável
que os jovens, que não ligam para o passado, que querem com sinceridade servir ao
bem dos homens, que compreendessem que a atividade revolucionária que lhes atrai,
não somente não alcança um fim persuasivo, como também lhe é completamente
contrário, esgota suas melhores forças da vida, pela qual podem servir a Deus e aos
homens. A atividade revolucionária, com mais freqüência, produz um efeito contrário ao
seu objetivo, que não se alcança exceto pela clara consciência de cada indivíduo sobre
seu destino e sobre sua dignidade humana, e, portanto, pela vida firme, religiosa e
moral que não admite nenhum compromisso, nem por palavras ou atos, com o mal da
violência que se censura e se deseja destruir.
Se um por cento da energia que é gasta agora pelos revolucionários para
alcançar fins exteriores inalcançáveis fosse empregada no trabalho interior espiritual,
há muito tempo essa energia haveria derretido esse mal, como a neve ao sol do verão,
contra o qual os revolucionários tanto tem lutado e ainda lutam em vão.

Yasnaia Poliana, 22 julho (4 agosto 1904).

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