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José de Assis Moraes

Desenvolvimento
humano e social
Sumário
CAPÍTULO 3 – Sustentabilidade........................................................................................05

Introdução.....................................................................................................................05

3.1 O que é sustentável? Conceitos, vertentes e implicações...............................................05

3.1.1 Para um conceito de sustentabilidade.................................................................06

3.1.2 Sobre a história do debate................................................................................09

3.2 Sustentabilidade: economia solidária e mercado de trabalho.........................................14

3.2.1 Economia Solidária: fundamentos......................................................................15

3.2.2 Economia Solidária e repartição de ganhos.........................................................17

3.2.3 Economia solidária e autogestão........................................................................18

Síntese...........................................................................................................................21

Referências Bibliográficas.................................................................................................22

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Capítulo 3 Sustentabilidade

Introdução
Em 2014, o Estado de São Paulo, e mais especificamente a capital, foram surpreendidos por uma
acentuada redução dos níveis de precipitação das águas das chuvas, e por suas consequências
devastadoras para os níveis dos reservatórios de água que abastecem a vida cotidiana dos mora-
dores e das empresas. Os governantes e os responsáveis pelas companhias de abastecimento de
água tentavam, a todo custo, minimizar a abrangência dos problemas e dos erros cometidos na
administração dos recursos. Enquanto encobria-se a problemática, a vida da população, sobre-
tudo das pessoas abastecidas pelos reservatórios mais atingidos, mudava significativamente. No
começo, ocorreram pequenas reduções na pressão da água e, posteriormente, períodos inteiros
de sistemático racionamento, alterando substancialmente o cotidiano dos cidadãos.

Talvez nunca tenhamos nos perguntado, mas quais são os limites da exploração dos recursos
naturais pelo ser humano? Quais são as fronteiras entre a existência do humano e a sobrevivên-
cia da natureza? Estamos produzindo um futuro para as próximas gerações humanas? Ou, ao
contrário, o legado que deixaremos é o da escassez da biodiversidade e dos recursos do meio
ambiente? Talvez a questão fundamental seja: como produzir modos de vida sustentáveis e que
garantam, às gerações futuras, a continuidade da existência?

Ao longo deste capítulo, abordaremos dois temas principais: a sustentabilidade e a economia


solidária. No primeiro tópico, você estudará a temática da sustentabilidade, seus conceitos,
suas vertentes e implicações. Além disso, acompanhará o desenvolvimento histórico da temática
e saberá como surgiram, no cenário internacional, os debates a respeito do assunto e como eles
acabaram por desencadear uma série de medidas políticas e um conjunto de acordos internacio-
nais para o combate à degradação do meio ambiente e a preservação da biodiversidade.

No segundo tópico, você estudará a economia solidária e os modos de organização e funciona-


mento das empresas que operam nesse regime. Você também verá as diferenças entre elas e as
organizações que operam em uma economia capitalista.

O conhecimento e a compreensão das temáticas desenvolvidas ao longo destes capítulos propor-


cionarão a você uma ampla reflexão a respeito dos impactos ambientais e sociais dos modos de
existência material e econômica do ser humano. Assim, você conseguirá atuar em suas profissões
a partir dos princípios e das diretrizes da sustentabilidade e da solidariedade, construindo modos
de vida em equilíbrio com a sociedade e com o meio ambiente.

3.1 O que é sustentável? Conceitos, vertentes


e implicações
Você já deve ter ouvido falar em sustentabilidade, mas sabe exatamente o que isso significa? O
que é sustentável? Qual é a possibilidade de inventarmos práticas sustentáveis capazes de pro-
longar nossa própria existência e a do meio ambiente?

Neste tópico, abordaremos inicialmente o arcabouço teórico do conceito de sustentabilidade,


desde a sua emergência na história dos debates acadêmicos, políticos etc. tratando também das

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suas implicações para a vida cotidiana a partir do ponto de vista ambiental, social, político e
econômico.

3.1.1 Para um conceito de sustentabilidade


A maioria dos autores admite que o conceito de sustentabilidade propôs-se originalmente a
atuar como uma espécie de contraconceito, na medida em que seu surgimento é resultado da
antítese da ideia de desenvolvimento econômico e social, analisada a partir da perspectiva da
insustentabilidade dos modelos vigentes. Segundo Fenzl (2009), a lógica da insustentabilidade é
fundamentalmente utilitária, antropocêntrica e egocêntrica. Estamos, segundo o autor, “descon-
tando o futuro”, vivendo à custa das gerações futuras (FENZL, 2009, p. 16).

No final da segunda metade do século XX, entretanto, começa a ser produzida e refinada em
todo o mundo uma aguda consciência com relação às questões ambientais e socioeconômicas
que perpassam o cotidiano das sociedades. Os efeitos colaterais dos processos de globalização
e integração socioeconômica das nações parecem devastadores. A reprodutibilidade de modos
de existência com exigências cada vez mais alinhadas à ferocidade dos modos de produção
capitalista provoca, em toda parte, acaloradas discussões a respeito das possibilidades de vida
das gerações futuras. Fenzl (2009, p. 13) elenca alguns dos efeitos mais críticos desse processo:

• impactos ambientais de dimensões planetárias, por exemplo, desgaste da camada de


ozônio, aceleração contínua do efeito estufa etc.;

• níveis de injustiça social crescentes;


• voracidade desenfreada em relação aos recursos naturais.
A questão central, nesse momento, assume o seguinte caráter: as formas de desenvolvimento
vigentes têm futuro? Como alinhar, numa perspectiva possível, avanço, desenvolvimento econô-
mico-financeiro e economia dos recursos naturais existentes? Quaisquer que sejam as respostas
para essas problemáticas, elas adentrarão necessariamente no tema do desenvolvimento susten-
tável ou da sustentabilidade.

Figura 1 – A discussão sobre sustentabilidade nos faz refletir sobre qual será o nosso legado para as próximas
gerações.
Fonte: Shutterstock, 2015.

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NÃO DEIXE DE VER...
Assista ao documentário Uma verdade inconveniente (EUA, 2006), dirigido por Davis
Guggenheim. Ele analisa o tema do aquecimento global, apresentando dados que
comprovam a relação entre comportamento humano e degradação ambiental. O filme
ainda sublinha a urgência de repensar as relações entre o homem e o meio ambiente,
desde a Educação Primária até a reeducação e conscientização dos adultos. Vale a
pena conferir!

Para que você compreenda o conceito de sustentabilidade, retomaremos uma definição que se
tornou clássica, presente no livro Nosso Futuro Comum, da Comissão Mundial sobre Meio Am-
biente e Desenvolvimento, das Nações Unidas:

O desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem


comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades.
Ele contém dois conceitos-chave:
• O conceito de “necessidades”, sobretudo as necessidades essenciais dos pobres do mundo,
que devem receber a máxima prioridade;
• A noção de “limitações” que o estágio da tecnologia e da organização social impõe ao meio
ambiente, impedindo-o de atender às necessidades presentes e futuras (ORGANIZAÇÃO
DAS NAÇÕES UNIDAS, 1991, p. 46).

A partir da definição clássica, podemos constatar duas implicações imediatas para o conceito de
sustentabilidade, como o próprio texto adianta: primeiro, a noção de “necessidade” e de satis-
fação desta e, em segundo, a consciência do que a satisfação das necessidades presentes pode
acarretar para as gerações futuras.

Do ponto de vista das necessidades, a história da humanidade, desde seus primórdios, tem nos
mostrado que a produção das condições materiais de existência do ser humano é a única razão
de sua sobrevivência na Terra. Há milênios, o humano tem garantido sua existência por meio de
artefatos e instrumentos que, com o decorrer dos anos, compuseram uma espécie de essência
prática da vida cotidiana.

Com o desenvolvimento econômico, sobretudo após o advento do capitalismo, as necessida-


des humanas têm crescido ferozmente na quantidade e na qualidade de suas exigências, e as
distâncias existentes entre as camadas empobrecidas e as camadas ricas da sociedade têm se
alargado cada vez mais. Tal distanciamento tem aprofundado os dilemas sociais contemporâneos
e direcionado a reflexão a respeito dos limites da satisfação de determinados padrões de vida.
Conforme o texto da Comissão propõe: “[...] padrões de vida que estejam além do mínimo bási-
co só são sustentáveis se os padrões gerais de consumo tiverem por objetivo alcançarem o desen-
volvimento sustentável a longo prazo.” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1991, p. 47).

A partir da compreensão desses pressupostos básicos, vemos a possibilidade de uma dupla abor-
dagem do conceito de sustentabilidade: de um lado, a ambiental, que trata substancialmente
dos problemas ambientais concernentes à exploração desequilibrada dos recursos naturais. De
outro, a abordagem com enfoque ético e social, que consiste fundamentalmente na percepção
das diferenças de distribuição, no campo social e humano, das riquezas como produtos diretos
do desenvolvimento insustentável dos modelos econômicos e sociais atuais.

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Desenvolvimento humano e social

Figura 2 – Sustentabilidade como centralidade do ambiente, da economia e da sociedade.


Fonte: Shutterstock, 2015.

Contudo, a análise dos problemas ambientais e sociais, no sentido estrito apresentado acima,
não representam o todo da pesquisa em torno do tema da sustentabilidade. Acselrad (2009, p.
43) nos apresenta outras cinco matrizes que, segundo ele, compõem o conjunto da discussão a
respeito do tema.

• Matriz da eficiência: a proposta central consiste:


»» no combate ao desperdício da base material do desenvolvimento;

»» no estabelecimento de uma “racionalidade econômica na escala do planeta”; e

»» na manutenção do mercado como instituição reguladora do bem-estar dos indivíduos.

• Matriz da escala: pretende delimitar quantitativamente o crescimento econômico e a


pressão exercida sobre os recursos naturais, de acordo com a “capacidade de suporte”
do planeta.

• Matriz da equidade: com base na afirmação de que “os pobres são as principais vitimas
da degradação ambiental”, procura articular analiticamente os princípios de justiça e
ecologia.

• Matriz da autossuficiência: apregoa a desvinculação de economias nacionais e sociedades


tradicionais dos fluxos do mercado mundial como estratégia para assegurar a capacidade
de autorregulação comunitária das condições de reprodução da base material do
desenvolvimento.

• Matriz ética: inscreve o uso social do mundo material e a atitude humana correspondente
no debate ético sobre os valores de bem e mal, alinhando o uso desequilibrado da base
material do desenvolvimento com as condições de continuidade da vida das gerações
futuras.

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Com base nos estudos desenvolvidos por Ignacy Sachs, Enríquez (2008, p. 61) propõe o seguinte
quadro, em que nos apresenta as cinco dimensões do conceito de desenvolvimento sustentável.

Dimensão Componentes Objetivos

• Criação de postos de trabalho – melhor condição


de vida e maior qualificação profissional. Redução das
Sustentabilidade
desigualdades
social
• Produção de bens dirigida às necessidades bási- sociais
cas sociais.
• Fluxo de investimentos públicos e privados, com
especial destaque ao cooperativismo.
Aumento da
produção e da
Sustentabilidade • Manejo eficiente dos recursos naturais.
riqueza social,
econômica
sem dependên-
• Absorção, pelas empresas, dos custos ambientais.
cia externa.
• Independência de forças externas.
• Respeito aos ciclos ecológicos dos ecossistemas. Melhoria da
qualidade do
• Prudência no uso de recursos naturais renováveis. meio ambiente e
preservação das
Sustentabilidade
• Prioridade à produção de biomassa e à industria- fontes de recur-
ecológica
lização de insumos naturais não renováveis. sos energéticos
e naturais para
• Redução da intensidade energética e aumento da as próximas
conservação de energia. gerações.
• Desconcentração espacial (de atividade, de po-
pulação).
Evitar excesso
Sustentabilidade • Desconcentração/democratização do poder local
de aglomera-
espacial/geográfica e regional.
ções.
• Relação cidade-campo equilibrada (benefícios
centrípetos).
Evitar conflitos
• Soluções adaptadas a cada ecossistema.
Sustentabilidade culturais com
cultural potencial re-
• Respeito à formação cultural comunitária.
gressivo.

Quadro 1 – As cinco dimensões do desenvolvimento sustentável.


Fonte: Enríquez, 2008.

3.1.2 Sobre a história do debate


Em 1971, o matemático e economista Nicholas Georgescu-Roegen publicou um trabalho pro-
fundamente pioneiro, intitulado The Entropy Law and the Economic Process, e iniciou os debates
a respeito da insustentabilidade do modelo econômico vigente. Embora não utilize o termo “de-
senvolvimento sustentável”, a análise do pesquisador trata da temática de forma absolutamente
nova para aquele período.

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Desenvolvimento humano e social

VOCÊ O CONHECE?
Nicholas Georgescu-Roegen nasceu em 4 de Fevereiro de 1906. Matemático e estatís-
tico formado pela Universidade de Paris, iniciou seus estudos em Economia, em 1934,
com Joseph Schumpeter, em Harvard. Em 1946, mudou-se para os Estados Unidos. Foi
professor de Economia na Universidade Vanderbilt, em Nashville. Em 1971, publicou
The Entropy Law and the Economic Process, dando origem ao debate sobre sustentabi-
lidade.

Ao avaliar a insustentabilidade do modelo econômico, Georgescu-Roegen chegou à conclusão


de que a economia precisará, em algum momento de sua história, ser absorvida pela ecologia
(VEIGA, 2008). Partindo da análise (realizada entre 1935 e 1973) da teoria dos comportamentos
dos consumidores, das teses posteriores de caráter evolucionista e da proposição de um progra-
ma mínimo de “bioeconomia”, Georgescu advoga que o desenvolvimento humano, em algum
momento, precisará compatibilizar-se com a “retração”, isto é, com o “decréscimo do produto”
(VEIGA, 2008, p. 121). Por essa razão, o desenvolvimento humano e o ritmo do processo produ-
tivo precisam alinhar-se, em um curto espaço de tempo, à conservação da natureza. Georgescu
não advoga, a partir de suas teorias, um “crescimento zero” ou de uma “condição estacionária”
de crescimento, conforme nos indica Veiga (2008, p. 121), pois tais posturas seriam demasia-
damente ingênuas.

Segundo Cechin (2010), o desenvolvimento humano e os processos produtivos possuem duas


fontes básicas para sua reprodução material: em primeiro lugar, os estoques terrestres de mine-
rais e energia concentrada e, em segundo, o fluxo solar.

Os estoques terrestres de minerais e energia concentrada são limitados e finitos. Nesse sentido,
a proporção de sua utilização implicaria, para o futuro, na sua indisponibilidade. O fluxo solar,
por sua vez, embora nos pareça praticamente ilimitado, é altamente limitado, sobretudo se con-
siderado em relação à taxa com que chega à Terra (CECHIN, 2010).

A escolha da humanidade, segundo Georgescu, portanto, circunscreve-se a dois caminhos pos-


síveis:

• esgotar aceleradamente os estoques de recursos terrestres e influir drasticamente na


reprodutibilidade material das próximas gerações, assumindo uma espécie de predileção
por uma “vida curta, porém excitante” (CECHIN, 2010, p. 86); ou

• evitar o uso desiquilibrado e desnecessário dos recursos, a fim de prolongar sua vida útil.
No ano de 1972, Donella H. Meadows, Dennis L. Meadows, Jørgen Randers e William W. Behrens
III publicam Os limites para o crescimento: um relatório do Clube de Roma sobre o dilema da
humanidade, outro importante marco histórico no debate a respeito da temática do desenvolvi-
mento sustentável.

Como resultado de uma pesquisa realizada pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos
Estados Unidos, o trabalho ficou também conhecido como Relatório do Clube de Roma, uma
associação informal e internacional que havia sido criada, em abril de 1968, por um grupo de
30 pessoas advindas de dez nacionalidades distintas, em reunião na Accademia dei Lincei, em
Roma, na Itália.

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NÓS QUEREMOS SABER!
O Clube de Roma ainda existe? Qual é a sua influência no debate sobre sustentabilida-
de? Atualmente, o Clube de Roma possui Secretariado Internacional localizado na ci-
dade de Wintherthur, Suíça. Há três anos, inaugurou um novo programa intitulado The
New Path for World Development (Novo Caminho para o Desenvolvimento Mundial),
com o objetivo de produzir material educativo e informativo e majorar sua atuação nas
mídias em todo o mundo, abordando diversos temas globais, tais como clima, energia,
paz, segurança e transformação social.

Em um dos pontos fundamentais do relatório, os autores ressaltam que a “[...] compreensão das
restrições quantitativas do meio ambiente mundial e das consequências trágicas de uma ultra-
passagem dos limites é essencial para a iniciação de novas maneiras de pensar.” (MEADOWS,
1972, p. 186). Essa “nova consciência” conduziria a humanidade, inexoravelmente, a uma revi-
são fundamental de seu próprio comportamento e, por consequência, da estrutura da sociedade
contemporânea.

Figura 3 – A humanidade precisa garantir uma estratégia para repensar sua relação com o meio ambiente.
Fonte: Shutterstock, 2015.

Em outro ponto distinto abordado pelo relatório, os autores afirmam que “[...] o problema global
do desenvolvimento está intimamente ligado a outros problemas globais.” (MEADOWS, 1972,
p. 187), admitindo o caráter multidisciplinar do tema da sustentabilidade. Além disso, expressam
que “[...] uma estratégia geral deve ser desenvolvida para atacar todos os grandes problemas,
incluindo especialmente aqueles que dizem respeito à relação do homem com seu meio ambien-
te.” (MEADOWS, 1972, p. 187).

No relatório, os autores ainda advogam a favor de um “[...] congelamento do status quo de


desenvolvimento econômico de todas as nações do mundo.” (MEADOWS, 1972, p. 190), defen-
dendo, assim, que a estabilidade econômica e ecológica somente será alcançada com o cresci-
mento zero da “população global” – do ponto de vista do crescimento demográfico desenfreado
e de todas as implicações sociais dele decorrentes para as cidades – e do “capital industrial”,
conforme nos indica Fenzl (2009, p. 22).

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Desenvolvimento humano e social

Outro marco relevante para a história do conceito de sustentabilidade foi o ano de 1987, pois
representou profundos avanços no campo da economia, da ecologia e do debate ético em torno
da questão do desenvolvimento sustentável. Segundo alguns pesquisadores, nessa época ocor-
reu um amplo movimento de internacionalização das discussões a respeito da sustentabilidade.
Dois eventos iniciais determinaram os rumos da discussão do tema naquele ano: o economista
Robert M. Solow recebeu o Prêmio Nobel em reconhecimento inédito à importância de sua teoria
do crescimento econômico que aborda, entre outros, o tema da sustentabilidade. Além disso, a
Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD), ligada à Organização das Nações
Unidas, publicou o livro Nosso Futuro Comum, conhecido como Relatório Brundtland, em um dos
mais importantes momentos do debate a respeito da sustentabilidade.

Em sua teoria, Solow assume uma postura ultraotimista com relação à escassez dos recursos
ambientais, admitindo que, a longo prazo, não haveria qualquer limite oferecido pelos ecos-
sistemas aos processos produtivos. O autor mantém, ao longo de sua análise, uma posição de
extrema confiança no progresso científico e tecnológico que, a despeito da crescente escassez
dos recursos naturais, sempre será capaz de substituir os eventuais recursos ao inovar os outros
dois ingredientes fundamentais do processo produtivo: o trabalho humano e o capital produzido,
conforme demonstra Veiga (2008, p. 122).

O Relatório Brundtland, por sua vez, apresenta outros avanços no debate em torno da temática
da sustentabilidade:

[...] ele estabelece (i) uma relação direta entre o modelo de desenvolvimento econômico vigente
e a pobreza, a ineficiência na satisfação das necessidades básicas de alimentação, saúde,
habitação e (ii) mostra a necessidade de estabelecer uma matriz energética que privilegie as
fontes renováveis e do processo de inovação tecnológica e a degradação ambiental (FENZL,
2009, p. 23).

A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida de 3 a 14


de Junho de 1992, no Rio de Janeiro, foi outro momento importante para o debate da susten-
tabilidade. Desde a sua realização, a ideia de sustentabilidade tem ocupado cada vez mais o
centro dos debates políticos, econômicos e éticos. A partir dessa data, dois discursos prevalecem,
ganhando espaços no campo das disputas ideológicas: de um lado, o desenvolvimentista, que
investe na possibilidade de correção dos rumos, a partir do esverdeamento dos projetos e da
readequação dos processos decisórios (ACSELRAD, 2009, p. 44). De outro lado, no campo das
ONGs, prevalece o discurso crítico com relação aos conteúdos e programas desenvolvidos pelos
governos e instituições oficiais que insistem, por sua vez, numa falaciosa categorização daquilo
que seja “desenvolvimento sustentável”.

NÓS QUEREMOS SABER!


Você já ouviu falar em economia verde? O que significaria “esverdear projetos”?
A Iniciativa Economia Verde (IEV), do inglês Green Economy Initiative (GEI), é uma ação
do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), sediado em Nairóbi,
no Quênia. A IEV foi lançada em 2008, e pretende equacionar crescimento econômico,
bem-estar humano e igualdade social, reduzindo concomitantemente os riscos ambien-
tais e a escassez ecológica. A IEV possui três fundamentos básicos: redução significativa
da emissão de carbono, eficiência do uso dos recursos naturais e inclusão social.

A despeito dos posicionamentos díspares com relação às heranças da Conferência de 1992, sua
realização lançou definitivamente o debate a respeito da sustentabilidade no campo internacio-
nal, propondo para diversos países ainda afastados das discussões o processo autorreflexivo.

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NÃO DEIXE DE LER...
A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a fim
de assegurar a plena execução dos compromissos assumidos pelos países-membros,
lançou uma agenda de trabalho para o próximo século, a Agenda 21. Esse documento
identificou as questões prioritárias e os recursos-meios necessários para enfrentá-las,
além de estabelecer as metas a serem alcançadas no próximo século. Quer saber
mais? Acesse o site: <http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/7706>.

Veja um quadro que sintetiza os principais eventos ocorridos entre as décadas de 1970 e 1990
que, de alguma forma, foram responsáveis pela consolidação do conceito de desenvolvimento
sustentável.

Ano Evento Contribuição

Ressaltou a importância de as estratégias de desenvol-


Conferência de Founex
1971 vimento se integrarem ao meio ambiente, discutindo os
(Suíça).
efeitos colaterais da atividade agrícola sobre ele.
Clube de Roma e a pu- Levou a uma intensa discussão dentro e fora do meio
1972 blicação de Os limites acadêmico, mostrando resultados já alarmantes para o
do crescimento. final da década de 1970.
As ideias de ecodesenvolvimento não podem negar a sua
relação com a teoria do self-reliance, defendida nas dé-
cadas anteriores por Mahatma Gandhi ou Julius Nyerere.
Uma nova proposta:
1973 Ul Haq (1973) e Dieter Senghaas (1977) radicalizaram
ecodesenvolvimento.
a argumentação, defendendo a necessidade de dissocia-
ção entre os países centrais e os países periféricos, para
garantir o desenvolvimento dos últimos.
Ela contribui para a discussão sobre desenvolvimento e
Declaração de Co-
meio ambiente, destacando as seguintes hipóteses: a) a
coyok, das Nações
explosão populacional tem como uma das suas causas
Unidas UNCTAD (Con-
a falta de recursos de qualquer tipo; a pobreza gera o
ferência das Nações
desequilíbrio demográfico; b) a destruição ambiental na
1974 Unidas sobre Comércio-
África, Ásia e América Latina é também o resultado da
-Desenvolvimento) e
pobreza que leva a população carente à superutilização
do Unep (Programa
do solo e dos recursos vegetais; c) os países industrializa-
de Meio Ambiente das
dos contribuem para os problemas do subdesenvolvimen-
Nações Unidas).
to por causa do seu nível exagerado de consumo.
As potências coloniais concentraram as melhores ter-
ras das colônias nas mãos de uma minoria, forçando
a população pobre a usar outros solos, promovendo a
devastação ambiental. O Relatório Dag-Hammarskjöld
Relatório Dag-Hammar- compartilhou, com a Declaração de Cocoyok, o otimismo
1975
skjöld, da ONU. e a confiança em um desenvolvimento a partir da mobi-
lização das próprias forças (self-reliance). O radicalismo
dos dois documentos expressa-se na exigência de mudan-
ças na estrutura de propriedade no campo, esboçando o
controle dos produtores sobre os meios de produção.

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Desenvolvimento humano e social

Nesse documento, já consta uma seção intitulada “Em di-


Estratégia de Conserva- reção ao Desenvolvimento Sustentável”, talvez a primeira
1980
ção Mundial da UICN. vez em que o termo tenha sido usado como um objetivo a
ser alcançado.
O Relatório Brundtland define desenvolvimento sustentá-
vel como aquele que satisfaz as necessidades do presente
sem comprometer a capacidade que as próximas gera-
Comissão Mundial da
ções terão de satisfazerem as suas próprias demandas.
ONU sobre o Meio Am-
Partiu de uma visão complexa das causas dos problemas
biente e Desenvolvimen-
1987 socioeconômicos e ecológicos da sociedade global,
to (CMMD): sustentabi-
sublinhando as interligações entre economia, tecnologia,
lidade como estratégia
sociedade e política. O documento também chama a
de desenvolvimento.
atenção para uma nova postura ética, caracterizada pela
responsabilidade tanto entre as gerações quanto entre os
membros contemporâneos da sociedade atual
Conferência das Mostrou um crescimento de interesse mundial pelo futuro
Nações Unidas sobre do planeta. Muitos países deixaram de ignorar as rela-
1992
o Meio Ambiente e De- ções entre desenvolvimento socioeconômico e modifica-
senvolvimento – Rio 92. ções no meio ambiente.

Quadro 2 – Os principais eventos ocorridos entre as décadas de 1970 e 1990 que contribuíram para a criação e
difusão do conceito de desenvolvimento sustentável.
Fonte: Enríquez, 2008.

Neste tópico, você estudou os principais elementos da ideia de sustentabilidade. Partimos da


compreensão de que a sustentabilidade atua, fundamentalmente, como um contraconceito, na
medida em que emerge para o debate econômico a partir da constatação do caráter insustentá-
vel das práticas econômicas vigentes. Em seguida, você viu a definição clássica de sustentabili-
dade, descrita pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, das Nações
unidas. Mais adiante, você foi apresentado às diversas matrizes de abordagem da ideia de
sustentabilidade, com base nos estudos de Henri Acselrad, entre outros. Finalmente, conheceu
a história do debate em torno da temática da sustentabilidade, desde o seu surgimento nos es-
critos de Nicholas Georgescu-Roegen, em meados de 1971, até os eventos da Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como Rio 92.

3.2 Sustentabilidade: economia solidária e


mercado de trabalho
Ao constatar as implicações ambientais e sociais dos modos de composição da economia tra-
dicional, perceberemos a urgência de proposições alternativas. O estilo econômico clássico, vi-
gente há alguns séculos, tem aumentando vertiginosamente o nível das degradações ambientais
e sociais.

Do ponto de vista ambiental, o modo de produção capitalista tem produzido a aceleração do uso
desregulado dos recursos naturais e, do ponto de vista social, tem produzido enormes distancia-
mentos classistas, proliferando o número de desiguais infindavelmente. Por isso, os tempos atuais
urgem um novo modelo econômico mais humanizado.

Nos tópicos a seguir, você conhecerá os princípios fundamentais da economia solidária e suas for-
mas de organização, investigando, primeiramente, o papel central do trabalho. Em seguida, você
verá dois conceitos-base da economia solidária: o de repartição dos ganhos e o de autogestão.

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3.2.1 Economia Solidária: fundamentos
A constatação de que outra economia é possível talvez seja o fundamento básico e o motor das
proposições da economia solidária. Essa outra economia, contudo, difere da clássica e tradi-
cional, pois possui outro princípio: a centralidade da associação para o trabalho e não para o
lucro. O cerne de suas questões, portanto, circunscreve-se à reflexão e à prática de outra forma
de organização da produção, da distribuição e do consumo (CORAGGIO, 2002), para além dos
modos capitalistas.

No modo de produção capitalista, todas as relações são pautadas por um único interesse preva-
lecente: a obtenção irrestrita do lucro. Veja um exemplo: para o capitalismo, o trabalho assume,
na perspectiva do lucro, a categoria de “custo de produção”. Para produzir, o capitalista compra
a força de trabalho dos operários, gastando, para tanto, certa quantia de capital. Por essa razão,
segundo uma equação bastante ingênua, a maximização do lucro está ligada, inexoravelmente,
à redução dos custos com a produção e, por consequência, à redução dos gastos com salário,
a uma rigorosa regulação dos benefícios, entre outros mecanismos. Logo, o que se estabelece,
aqui, é uma relação de exploração.

Figura 4 – A economia solidária vai de encontro à lógica clássica do capitalismo, centrado no lucro.
Fonte: Shutterstock, 2015.

O modo de produção capitalista, portanto, produz, desde seus fundamentos, profundas desi-
gualdades, na medida em que aumenta, por meio da relação exploratória, a distância entre os
proprietários dos meios de produção do trabalho e os trabalhadores, em geral, empobrecidos.
Além disso, sob a égide da competitividade, imposta a partir do final da segunda metade do
século XX, os discursos neoliberais:

“[...] vêm pretendendo validar o princípio do mercado total, afirmando que todas as atividades
humanas podem realizar-se de melhor forma se se organizarem como mercados livres, em que
cada indivíduo procure, de forma egoísta, o melhor para si, competindo sem limites com todos
os demais.” (CORAGGIO, 2002, p. 15).

Esse novo paradigma social, se analisarmos de perto, pretende aumentar ainda mais as desigual-
dades humanas, legitimando-as sob a racionalidade da competição, dita “natural” do mercado
de trabalho. Esses modelos de dinâmica social pretendem, a todo custo, naturalizar os ditames
capitalistas, associando-os aos instintos mais ancestrais e naturais do ser humano. Contudo,

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Desenvolvimento humano e social

conforme constata Paul Singer, em seu livro Introdução à Economia Solidária, as desigualdades
e a competição jamais poderão tornar-se “naturais”, no sentido de pertencerem intrinsicamente
à natureza humana. Ao contrário, desigualdade e competição, sobretudo no contexto do merca-
do, resultam dos modos de organização das atividades econômicas humanas que, ao longo da
história, foram constituindo diversos modos de produção (SINGER, 2002). As desigualdades e a
competição são, portanto, frutos dos modos de produção.

Ao observarmos os discursos das atuais instituições financeiras do capitalismo (Fundo Monetário


Internacional – FMI, Banco Mundial – BM e Organização Mundial do Comércio – OMC, por
exemplo), constataremos, certamente, o florescer de alguns discursos aparentemente muito de-
mocráticos e igualitários. Se observadas mais atentamente, porém, tais instituições, na prática,
apenas corroboram o antigo paradigma capitalista do lucro. Tanto que o acelerado desenvol-
vimento do conhecimento, fomentado por tais instituições a serviço do lucro “[...] tem desenca-
deado um ritmo acelerado de inovações, muitas das quais avassalam os direitos do trabalho e
acarretam a destruição das sociedades e o equilíbrio ecológico do planeta.” (CORRAGIO, 2002,
p. 16).

Em contrapartida, a ideia de economia solidária surge, substancialmente, da percepção da


centralidade do trabalho, assumindo-o como essência constitutiva do ser humano e do processo
de produção dos insumos necessários à sua existência. Não ignora, evidentemente, a necessida-
de de obtenção do lucro, tema a ser discutido mais adiante. No entanto, centrada no trabalho,
pretende imprimir novos arranjos sociais, a fim de promover a “[...] valorização e o desenvolvi-
mento pleno das capacidades humanas.” (CORAGGIO, 2002, p. 17) e reorganizar, de forma
adequada e justa, a utilização dos recursos naturais e a aplicação do conhecimento.

A economia solidária resulta, portanto, de uma plena consciência das relações entre padrões de
consumo e produção, sobretudo se analisados a partir da ótica da sustentabilidade, e preten-
de ainda equacionar, nos moldes associativos, as soluções possíveis para o prolongamento da
existência do homem e do meio ambiente. Nesse sentido, pretende assegurar “[...] a reprodução
ampliada da vida” (CORAGGIO, 2002, p. 17-18). Nos termos do autor, economia solidária é:

[...] uma economia que não represente a autojustificação do enriquecimento à custa dos demais,
mas que represente a moral das classes trabalhadoras num amplo espectro, em que sociedade,
política e cultura se revitalizem, encarnando-se em formas econômicas centradas no trabalho
e na lógica da reprodução em condições de vida sempre melhores de todos os indivíduos,
comunidades e sociedades, cada uma nos seus próprios termos (CORAGGIO, 2002, p. 20).

Os conceitos que fundamentam a definição de economia solidária estão distribuídos em cada


uma de suas inúmeras vertentes possíveis, das pequenas estruturas eclesiais, por exemplo, às
grandes empresas cooperativas. Para fins didáticos, abordaremos apenas dois dos conceitos con-
siderados principais: o tema da repartição de ganhos e a autogestão, articulando-os a partir
da distinção de sua prática em relação à das empresas de economia capitalista.

NÃO DEIXE DE LER...


No artigo A problemática da economia solidária: uma perspectiva internacional, o
Prof. Dr. Genauto Carvalho de França Filho apresenta a origem, os fundamentos e
o contexto de emergência da ideia de economia solidária. Para tanto, elabora uma
desconstrução da ideia clássica de economia, pretendendo fazer emergir alguns fenô-
menos antes despercebidos. Acesse em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0102-69922001000100011&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>.

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3.2.2 Economia Solidária e repartição de ganhos
Em uma empresa de economia capitalista, a repartição dos ganhos ocorre por meio dos salários.
Se aprofundarmos nossa análise, contudo, perceberemos que os ganhos propriamente ditos são
repartidos apenas entre os detentores de grandes cargos executivos, restando aos operários tão
somente o pagamento pela sua força de trabalho, que é quase sempre injusto e incompatível.
Os salários são desiguais, na medida em que são quantificados a partir de “[...] uma escala que
reproduz aproximadamente o valor de cada tipo de trabalho, determinada pela oferta e deman-
da pelo mesmo no mercado de trabalho.” (SINGER, 2002, p. 11).

Conforme sabemos, empregados e empregadores são livres. Por isso, os empregados, a qualquer
instante, podem angariar melhores salários no mercado de trabalho, e os empregadores, por sua
vez, dentro dos limites estabelecidos legalmente, também podem demitir seus empregados, bus-
cando um trabalhador mais barato, mais eficiente etc. Essa dinâmica impõe um escalonamento
salarial pautado na oferta e demanda de determinado trabalho no mercado. A racionalidade do
escalonamento salarial impõe, portanto, a noção de hierarquia dos trabalhos. Por isso, os ope-
rários recebem baixos salários, e os altos executivos, em geral, obtêm os mais altos, compostos,
em alguns casos, por benefícios extraordinários, como bônus por merecimento, seguro-saúde
particularizado, entre outros.

Na empresa de economia solidária, contudo, não existem empregados e empregadores. Todos


são sócios e não recebem salário, e sim retirada, que pode variar conforme a receita obtida.

A igualdade/desigualdade das retiradas é decidida em assembleia, podendo ocorrer decisão


unânime pela desigualdade das retiradas, em conformidade com o escalonamento das empresas
de economia capitalista. Nesses casos, no entanto, a distância entre a menor e a maior retirada
– admitida, em geral, em função do caráter do trabalho realizado (se manual ou intelectual, por
exemplo) – é delimitada por máximos, a fim de não criar entre os cooperados uma sensação de
diferença acentuada.

Figura 5 – Em uma empresa que trabalha com economia solidária, todos são sócios.
Fonte: Shutterstock, 2015.

17
Desenvolvimento humano e social

São basicamente duas as razões para a compreensão e aceitação da desigualdade das retiradas.
Primeiro, porque vigora ainda uma antiga mentalidade, advinda das experiências da economia
capitalista, que, em certa medida, naturaliza a noção de que determinados tipos de trabalho –
como o gerenciamento, por exemplo – possuem mais “valor” do que outros. Em segundo lugar,
em função de uma medida protetiva, a maioria dos sócios admite o escalonamento das retiradas
para que a colaboração de cooperados mais qualificados não seja ameaçada por ofertas mais
vantajosas das empresas capitalistas no mercado de trabalho. Nesse sentido, parece prevalecer
um cálculo bastante razoável: admitir a maior retirada dos cooperados mais qualificados permi-
tirá à cooperativa continuar angariando ganhos maiores, o que acarretaria o benefício de todo
o conjunto de sócios.

Segundo Singer (2002), a distinção que marca a distribuição dos ganhos na empresa solidária,
sobretudo em relação às empresas de economia capitalista, é que “[...] na empresa solidária,
o escalonamento das retiradas é decidido pelos sócios, que têm por objetivo assegurar boas
retiradas para todos e principalmente para a maioria que recebe menores retiradas.” (SINGER,
2002, p. 14).

Outra característica marcante da distinção entre os dois modelos de economia diz respeito à
repartição do excedente anual. Nas empresas capitalistas, tais excedentes são chamados de
lucro, enquanto nas empresas de economia solidária, são denominados sobra. As distinções, no
entanto, não são apenas de nomenclatura.

Nas empresas de economia capitalista, o destino dos excedentes é decidido por uma assembleia
de acionistas. A prática geral é a seguinte: uma parcela do excedente é entregue aos acionistas
em dinheiro, como dividendos, e outra parcela é destinada aos fundos de investimento. Em ciclos
financeiros, a cada período, uma parcela dos fundos de investimento é novamente integrada à
empresa, que a acrescenta ao seu capital, proporcionando, assim, nova emissão de ações que,
por sua vez, são alocadas novamente nas mãos dos acionistas.

Nas empresas de economia solidária, o destino do excedente – as sobras – é decidido na assem-


bleia de sócios. Singer (2002) descreve a mecânica de distribuição das sobras em uma empresa
de economia solidária nos seguintes termos:

Uma parte delas é colocada num fundo de educação (dos próprios sócios ou de pessoas
que podem vir a formar cooperativas), outra é posta em fundos de investimento, que podem
ser divisíveis ou indivisíveis, e o que resta é distribuído em dinheiro aos sócios por algum
critério aprovado pela maioria: por igual, pelo tamanho da retirada, pela contribuição dada à
cooperativa etc. (SINGER, 2002, p. 14).

O fundo divisível, conforme descreve Singer (2002), é utilizado para a expansão do patrimônio
da cooperativa, sendo contabilizado individualmente para cada sócio. Ao se retirar da coopera-
tiva, o sócio tem direito à sua cota de fundo divisível e aos juros a ele acrescidos.

O fundo indivisível, por sua vez, é um patrimônio da cooperativa, no sentido mais amplo possí-
vel. Está a serviço da manutenção da cooperativa, impedindo, por exemplo, a sua descapitaliza-
ção caso parte dos sócios se retire (SINGER, 2002). Por essa razão, esse fundo não pertence aos
sócios, que não recebem nenhuma parte quando se retiram. Esse modelo de gestão dos fundos
sinaliza que a empresa de economia solidária não está adstrita aos seus sócios atuais, mas a
toda sociedade.

3.2.3 Economia solidária e autogestão


No campo das teorias da Administração, o modelo de autogestão se caracteriza como uma
das diferenças constitutivas cruciais entre as empresas de economia solidária e as de economia
capitalista. Para que você compreenda essas distinções, partiremos da análise dos modelos de
autogestão e de heterogestão, seguindo a indicação clássica de Paul Singer.

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Na heterogestão, modelo adotado, em geral, por grande parte das empresas capitalistas, pre-
valece uma administração de tipo hierárquica, com um rígido nivelamento das autoridades, cuja
estrutura obedece, a rigor, à lógica piramidal. Nela, “[...] as informações e consultas fluem de
baixo para cima e as ordens e instruções de cima para baixo.” (SINGER, 2002, p. 17). Com base
nessa dinâmica, os processos decisórios são assumidos, então, por altos executivos, contratados
especificamente para exercer função de gerência e, por isso, detentores dos conhecimentos téc-
nicos e de base necessários para a administração. Conforme descemos os níveis hierárquicos, os
graus de conhecimento e corresponsabilidade administrativa diminuem, restando aos níveis mais
baixos apenas o conhecimento estritamente necessário à execução de suas tarefas (que, via de
regra, são repetitivas e rotineiras) e uma baixíssima corresponsabilidade administrativa.

Na empresa de economia solidária, o modelo de autogestão pratica a gestão democrática das


empresas. Não pretende romper com a estrutura organizacional dos níveis administrativos, mas
abole seu caráter hierárquico correspondente, assumindo postura essencialmente democrática.
Segundo Esteves (2003, p. 271), nessas empresas, “[...] a igualdade política [...] é formalmente
independente do número de cotas-parte que alguém possua, do cargo ou função que ocupe
[...], do número de anos de estudos pelos quais tenha passado ou do tempo em que esteja no
empreendimento: não há ponderação de voto”. O projeto das empresas de economia solidária
está assentado, portanto, numa democracia direta.

Em uma empresa de menor porte, as decisões são discutidas e tomadas em assembleia por todos
os sócios. Nas de maior porte, as assembleias-gerais são menos frequentes, na medida em que
inviabilizam a discussão e a participação efetiva de todos os sócios. Por essa razão, em cada
seção ou departamento, são eleitos delegados que representam e deliberam em nome de todos
os sócios. Contudo, as pequenas decisões rotineiras são assumidas por encarregados e gerentes,
escolhidos direta ou indiretamente pelos sócios.

Ao contrário de suas congêneres capitalistas, nas empresas de economia solidária, “[...] as or-
dens e instruções devem fluir de baixo para cima e as demandas e informações de cima para
baixo” (SINGER, 2002, p. 18). Nesse sentido, todos os sócios têm acesso às informações bá-
sicas necessárias à administração da empresa, podendo, nas assembleias, intervir nos rumos e
destinos assumidos. Conforme descreve Singer (2002, p. 18), nesse tipo de organização, “[...] a
autoridade maior é a assembleia de todos os sócios, que deve adotar as diretrizes a serem cum-
pridas pelos níveis intermediários e altos da administração” (2002, p. 18).

Veja um exemplo de como funciona a estrutura administrativa de uma empresa baseada na eco-
nomia solidária.

CASO
O Instituto Banco Palmas é uma experiência pioneira desse tipo no Brasil. Criado em 1998, com
sede no Conjunto Palmeiras, na região periférica de Fortaleza, no Ceará, tem natureza associati-
va e comunitária. Através de diversas linhas de microcrédito, incentiva a produção e o comércio
local, com base nos princípios da economia solidária.

A administração do banco funciona da seguinte forma: ele é dirigido por um conselho gestor,
composto por 25 pessoas que, ao longo de suas trajetórias pessoais, demonstraram sensibilidade
e compromisso com a emancipação humana e com a justiça social. Cada conselheiro possui
mandato de dois anos, prorrogáveis por mais dois, mediante acordo coletivo. Em média, 90%
dos seus membros residem no próprio Conjunto Palmeiras ou nas adjacências.

Em 2013, o Instituto Banco Palmas foi laureado com o Prêmio Aicesis, da International Asso-
ciation of Economic and Social Councils and Similar Institutions, entregue durante o V Fórum de
Inclusão Financeira do Banco Central, em 4 de Novembro de 2013, em Fortaleza.

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Desenvolvimento humano e social

Você acabou de conhecer os fundamentos da ideia de economia solidária, que parte da cen-
tralidade do trabalho para a composição dos modos de produção. Você ainda aprendeu quais
são os modos de repartição de ganhos para uma organização desse tipo, observando profundas
diferenças entre o modo de conceber os ganhos na empresa solidária e na de economia capita-
lista. Você ainda viu os princípios fundamentais da autogestão, elemento democrático básico da
administração das empresas solidárias.

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Síntese Síntese
• O tema da sustentabilidade nasce como um contraconceito, na medida em que funciona
como antítese do conceito de insustentabilidade, elaborado a partir da constatação da
falência dos modelos econômicos vigentes na preservação dos recursos naturais essenciais
para a manutenção da vida humana.

• A definição clássica de desenvolvimento sustentável foi proposta pela Comissão Mundial


sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, da Organização das Nações Unidas,
representando aquele desenvolvimento que “[...] atende às necessidades do presente
sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias
necessidades.” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1991, p. 46).

• Segundo Acselrad (2009), existem diversos âmbitos do desenvolvimento sustentável. São


eles: âmbito da eficiência, da escala, da equidade, da autossuficiência e da ética.

• Em 1971, Nicholas Georgescu-Roegen publicou The Entropy Law and the Economic
Process, inaugurando os debates em torno da temática do desenvolvimento sustentável e
da ineficiência dos modelos econômicos vigentes em gerir os recursos naturais.

• A economia solidária consiste em um novo modelo econômico. Nele, o trabalho assume


caráter distintivo, em detrimento do antigo paradigma da obtenção irrestrita do lucro.

• Na economia solidária, as empresas são autogestionárias, ou seja, sua gestão


é compartilhada entre os sócios. Os ganhos de todos são decididos em assembleia,
podendo haver repartição igual ou desigual, sempre pautadas em critérios discutidos
entre os sócios.

• A compreensão dos temas da sustentabilidade e da economia solidária ampliará as


possibilidades de nossa atuação profissional. Por um lado, nos fará mais conscientes
com relação às questões sociais e ambientais e, por outro, abrirá um imenso leque
de possibilidades para organizar a economia, sobretudo a partir dos paradigmas da
autogestão e da repartição dos ganhos.

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Referências Bibliográficas
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duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: Lampari-
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