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Revmanicômios

Os Bras Crescimento Desenvolvimento


judiciários no Brasil Rev Bras Crescimento Desenvolvimento PESQUISA
Hum. 2010; 20(1): 16-29 Hum. 2010; ORIGINAL
20(1): 16-29
ORIGINAL RESEARCH

A HISTÓRIA ESQUECIDA: OS MANICÔMIOS


JUDICIÁRIOS NO BRASIL*

THE FORGOTTEN HISTORY: THE JUDICIARY ASYLUM


IN BRAZIL
Sérgio Luis Carrara 1

Sérgio Luis Carrara. A história esquecida: os manicômios judiciários no Brasil. Rev Bras
Crescimento Desenvolv Hum. 2010; 20(1): 16-29

Resumo
Apoiado em uma perspectiva antropológica, o artigo aborda a história do surgimento dos
manicômios judiciários no Brasil na passagem dos séculos XIX-XX. Tal história é analisada
tomando como caso exemplar o processo de criação, no Rio de Janeiro, do Hospital de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho, primeira instituição do gênero no país.
Indaga como se construiu a ambígua figura do louco-criminoso e a instituição que dele se
ocupa, explorando o significado social do crime ou da transgressão a partir dos diversos
discursos e práticas que os tomaram como objetos de reflexão e de intervenção. Coloca em
foco, de um lado, as discussões teóricas que, na passagem do século, versavam sobre as
relações entre criminalidade e loucura; de outro, a prática judicial concreta sobre a qual
tais discussões incidiam e que se desenrolava então nos tribunais cariocas.

Palavras-chave: manicômio judiciário; crime; loucura; história.

Abstract
This article approaches the history of the asylums for the criminal insane from an
anthropological perspective, particularly the foundation in Rio de Janeiro of the Hospital
de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho, the first Brazilian institution of
this kind. The focus is on the social construction of the criminally insane and on how this
ambiguous figure was connected to the historical debates about the social meanings of
crime and the public interventions supposed to deal with deviant behaviors. Special attention
is dedicated to the way criminological theories were incorporated by Brazilian courts and
how this problematic incorporation led to the creation of the new asylum.

Key words: asylum; crime; madness; history.

* Texto elaborado como base para apresentação proferida no I Simpósio Internacional sobre Manicômios Judiciários e Saúde
Mental, realizado em São Paulo nos dias 16, 17 e 18 de setembro de 2009.
1 Antropólogo, professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro e Coordenador Geral do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ).
Contato: carrara@ims.uerj.br

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INTRODUÇÃO guns indivíduos, a quem designa de “crimino-


sos natos”, nasceriam com uma marcada ten-
Em alguns países, indivíduos que come- dência para o mal. No entanto, a construção de
tem crimes e são considerados irresponsáveis um estabelecimento especial teria ainda que
devido à presença de algum tipo de doença ou aguardar quase duas décadas para ser concre-
perturbação mental são enviados a setores es- tizar. Somente em 1920 seria lançada a pedra
peciais de hospitais psiquiátricos. Em outros, fundamental da nova instituição, oficialmente
são enviados para setores especiais das prisões. inaugurada em 1921 (Dec. 14831 de 25/5/
Parece ter sido a Inglaterra o primeiro país a 1921). Surgia então o Manicômio Judiciário
erigir um estabelecimento particularmente des- do Rio de Janeiro, primeira instituição do gê-
tinado para os delinqüentes alienados, a prisão nero no Brasil. Sua direção foi entregue ao
especial de Broadmoor, em 1863.a Antes dela, médico psiquiatra Heitor Pereira Carrilho, que
tanto na França quanto nos Estados Unidos anteriormente chefiava a Seção Lombroso do
havia apenas anexos especiais a alguns presí- Hospício Nacional. Na década de 50, em ho-
dios para a reclusão e tratamento dos delinqüen- menagem ao seu primeiro diretor, a instituição
tes loucos ou dos condenados que enlouqueci- passou a ser chamada de Manicômio Judiciá-
am nas prisões. rio Heitor Carrilho. Depois de 1986, no bojo
No Brasil, quanto aos chamados “crimi- das reformas da legislação penal brasileira,
nosos loucos”, o Código Penal de 1890 apenas passou a ser designado como Hospital de Cus-
dizia que eram penalmente irresponsáveis e tódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor
deviam ser entregues a suas famílias ou inter- Carrilho. No Brasil, é em instituições desse tipo
nados nos hospícios públicos se assim “exigis- que são mantidos, através de medidas de segu-
se” a segurança dos cidadãos. O arbítrio em rança, os indivíduos que, por sofrerem algum
cada caso era uma atribuição do juiz. Em 1903, tipo de doença ou distúrbio psíquico, são con-
a lei especial para a organização da assistência siderados penalmente irresponsáveis por algum
médico legal a alienados no Distrito Federal, crime ou delito. É para lá que também são en-
modelo para a organização desses serviços nos viados os presos que enlouquecem nas prisões.
diversos estados da União (Dec.1132 de 22/12/ Os manicômios judiciários são institui-
1903), estabeleceu que cada estado deveria reu- ções complexas, que conseguem articular, de
nir recursos para a construção de manicômios um lado, duas das realidades mais deprimen-
judiciários e que, enquanto tais estabelecimen- tes das sociedades modernas - o asilo de alie-
tos não existissem, deviam ser construídos ane- nados e a prisão - e, de outro, dois dos fantas-
xos especiais aos asilos públicos para o seu mas mais trágicos que “perseguem” a todos: o
recolhimento. A partir da legislação de 1903, criminoso e o louco.
no bojo das reformas introduzidas no Hospí- Pesquisei sobre manicômios judiciári-
cio Nacional de Alienados, localizado no Rio os em meados dos anos 19801,2, momento em
de Janeiro, cria-se uma seção especial para que na seara das ciências sociais ou históricas
abrigar os “loucos criminosos”. Significativa- nada havia sobre o assunto. Desde a primeira
mente, a seção foi batizada de “Seção visita que fiz então ao manicômio judiciário
Lombroso”, em homenagem ao psiquiatra e do Rio de Janeiro (daqui em diante, apenas
antropólogo criminal italiano César Lombroso MJHC), tive a impressão (dessas tão caras à
que, em finais do século XIX, notabilizou-se antropologia) de estar entrando em uma insti-
por desenvolver uma teoria segundo a qual al- tuição híbrida e contraditória, de difícil defini-

a A instituição chamava-se inicialmente Broadmoor Criminal Lunatic Asylum.

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ção. Além disso, o MJHC me parecia totalmen- caráter delinqüente ou desviante. Ao nível do
te incapaz de atingir os objetivos terapêuticos senso comum, julgo ser bastante arraigada a
a que se propunha. É certo que uma bibliogra- idéia de que o crime se opõe à loucura como a
fia já clássica nas ciências sociais vinha reve- culpa à inocência. Do mesmo modo, a idéia de
lando que, sob a fachada médica das institui- “pena” e a idéia de “tratamento” ainda se ex-
ções psiquiátricas, desenrola-se, na verdade, cluem, pois, apesar de todas as oscilações por
uma prática secular de contenção, moralização que já passou, a prisão, como reação penal por
e disciplinarização de indivíduos socialmente excelência, nunca deixou de significar expli-
desviantes. De certo modo, denunciava-se as- citamente castigo ou expiação de uma culpa.
sim a “prisão” que existiria atrás de cada hos- Assim, a despeito de infinitas nuances,
pício. Nesse sentido, o trabalho instaurador de continuamos a distinguir claramente os atos
Erving Goffman3 chegou mesmo a mostrar que desviantes que seriam frutos da loucura dos atos
uma única estrutura de relações sociais pode- desviantes que seriam fruto da delinqüência e
ria ser encontrada tanto em presídios quanto os apreendemos através de conjuntos de repre-
em manicômios, ambos podendo ser bem com- sentações que se opõem em relação ao estatuto
preendidos através de um único conceito: o de de sujeito responsável que atribuem ou não aos
instituição total. No entanto, se o manicômio transgressores. Frente a tais representações, o
e a prisão são verdadeiramente “espécies” de MJHC, instituição destinada a loucos-crimino-
um mesmo “gênero”, como o demonstrou sos, não deixava de parecer fundado sobre uma
Goffman, o MJHC chamava minha atenção contradição. A instituição apresentava a
justamente para a diferença que existe entre as ambivalência como marca distintiva e a ambi-
duas “espécies”; e isso por sobrepô-las em um güidade como espécie (se os psiquiatras me per-
mesmo espaço social. O MJHC se caracteriza- mitem o uso da expressão) de “defeito constitu-
va fundamentalmente por ser ao mesmo tempo cional”. Através da legislação e do tratamento
um espaço prisional e asilar, penitenciário e dispensado aos loucos-criminosos, foi possível
hospitalar. ainda perceber que essa ambivalência poderia
Prenhe de conseqüências práticas, a di- ser detectada em vários níveis. Uma linha, a um
ferença entre o asilo e a prisão, visível através só tempo lógica e sociológica, parecia atraves-
do MJHC, está amplamente ancorada nas de- sar toda a instituição, marcando desde a legisla-
finições opostas que mantemos a respeito do ção que a suportava até a identidade auto-atri-
estatuto jurídico-moral dos habitantes de cada buída dos internos e das equipes de profissionais
uma das instituições. Para a prisão enviamos encarregadas do estabelecimento. Os internos
culpados; o hospital ou hospício recebe ino- referiam-se a si mesmos como “presos” e não
centes. Sem dúvida, a moderna percepção da como “pacientes” e o tempo mínimo de interna-
loucura e do crime é fruto de um processo que, ção ainda era medido em relação à pena que o
embora tortuoso, já dura mais de dois séculos. individuo receberia caso tivesse sido conside-
Através desse processo, em que se empenha- rado são e responsável.
ram médicos, juristas e outros profissionais, No MJHC, lidava com a existência de
generalizou-se a idéia de que existe uma dife- duas definições diferentes e, em certo nível,
rença essencial entre as transgressões realiza- contraditórias, a respeito de um mesmo espa-
das por sujeitos considerados “alienados” - que ço social, o hospício-prisão. A existência des-
não teriam controle nem consciência de suas sas duas definições e de sua articulação pro-
ações - e aquelas provenientes de indivíduos blemática se revelava ao menos em dois planos:
considerados “normais” - que teriam controle no plano legal e no institucional. É importante
sobre suas ações e plena consciência de seu ressaltar ainda que essa “fronteira” que perpas-

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sava todo o MJHC era em si mesma inglória. moral e penalmente responsabilizado por suas
Não distinguia o “sagrado” do “profano”, o ações. De outro lado, há a versão que poderia
“positivo” do “negativo”, o que seria melhor ser denominada psicológico-determinista, que
do que seria pior. Os internos se viam então vê o indivíduo (principalmente o indivíduo ali-
colocados frente a uma estranha encruzilhada: enado) não enquanto sujeito, mas enquanto ob-
inocentes, mas tutelados e sem direitos de um jeto de seus impulsos, pulsões, fobias, paixões,
lado; culpados, mas sujeitos de certos direitos desejos etc. Nessa última versão, as estruturas
e deveres de outro. Um período de interdição determinantes do comportamento, estando
menor, mas que podia se estender por toda a aquém da consciência e da vontade, não permi-
vida, de um lado, um período de interdição le- tem que o indivíduo seja moralmente responsa-
gal maior mas com saída certa, de outro. bilizado no sentido do modelo anterior, não sen-
O que se encontrava, tanto na legislação do, portanto, passível de punição.
referente aos loucos-criminosos quanto no des- Por colocá-los muito próximos, combi-
tino social que lhes continua sendo reservado, nando-os de maneira contraditória, os manicô-
era justamente a superposição complexa de mios judiciários não deixavam de chamar a aten-
dois modelos de intervenção social: o modelo ção para a existência, em nossa sociedade, desses
jurídico-punitivo e o modelo psiquiátrico-te- dois códigos incompatíveis de compreensão das
rapêutico. Superposição e não justaposição, ações humanas e da responsabilidade individu-
pois, o modelo jurídico-punitivo parecia englo- al. Ainda sob outras formas, tais códigos estão
bar o modelo psiquiátrico-terapêutico, impon- presentes em nossas avaliações mais cotidianas
do limites mais ou menos precisos ao poder de e são atualizados segundo situações muito con-
intervenção dos médicos e demais técnicos. cretas. Vivemos em sociedades que consegui-
Dessa maneira, comecei a pensar o ma- ram (e seria muito importante saber como con-
nicômio judiciário como uma “solução final” cretamente o fizeram) articular duas concepções
de um conflito histórico de competências, de conflitantes da pessoa humana: uma é moral e
projetos e de representações sociais mais axiomática; a outra é “objetiva” e objetivante -
abrangentes e não, simplesmente, como um acor- científica. Aprendemos a lidar com esses dois
do entre funções sociais complementares. Ge- códigos distintos e, a partir deles, qualquer com-
nericamente, o que transformava o MJHC em portamento pode ser apreendido tanto em ter-
um espaço social paradoxal era justamente o fato mos morais (culpado versus não culpado; res-
de combinar dois conjuntos de representações e ponsável versus irresponsável) quanto em
de práticas sociais que se fundam em concep- termos médico-psicológicos, ou seja, como re-
ções distintas e opostas sobre a pessoa humana sultante de doenças, desequilíbrios nervosos,
sem que nenhum deles prevaleça plenamente. traumas, socialização problemática etc.
De um lado, há a versão que poderia ser O que e propus fazer foi indagar a partir
chamada jurídico-racionalista e que vê o indiví- de que relações significativas entre represen-
duo como sujeito de direitos e de deveres, ca- tações e práticas que se ocupam da transgres-
paz de adaptar livremente seu comportamento são às normas e valores sociais foi possível
às leis e normas sociais, capaz de escolher trans- surgir a figura do louco-criminoso e a institui-
gredi-las ou respeitá-las, capaz, enfim, de ser ção que dele se ocupa?b Tal enunciado me pa-

b É importante notar que, embora indiretamente, o desenvolvimento dessa questão contribui ainda à compreensão do surgimento
da própria medida-de-segurança; instituto que foi inicialmente aplicado aos chamados loucos-criminosos, buscando fundar
uma nova modalidade de contenção. Incorporada à maioria dos códigos penais do Ocidente ao longo do século XX, a medida-
de-segurança esteve na base da estruturação legal dos regimes políticos autoritários, pois permitia que, em várias situações, os
direitos individuais fossem suprimidos frente ao que se julgava ser os interesses da sociedade ou do Estado.

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recia mais satisfatório porque colocava em foco ses ocidentais, de uma ampla e sistemática re-
o que eu julgava ser fundamental para a com- flexão em torno do crime e dos criminosos que
preensão do surgimento do manicômio judiciá- não se continha apenas nos limites do chama-
rio, ou seja, a maneira como se constituiu o do “mundo científico”. Nas grandes cidades,
significado social do crime ou da transgressão ela alcançava as ruas e os lares através de uma
a partir dos diversos discursos e práticas que incipiente mas promissora imprensa popular,
os tomaram enquanto objetos de reflexão e de ávida de novidades e de escândalos4, e de um
intervenção, particularmente do discurso e prá- novo gênero literário, o romance policial, fi-
tica da medicina mental. lho legítimo desse tipo de imprensa.5,6
É sem dúvida importante perceber como Antes de mais nada, é importante lem-
a construção de um manicômio judiciário em brar do aumento significativo do número de cri-
particular foi encaminhada no Brasil, quais os mes nas grandes metrópoles da passagem do
grupos profissionais que lutavam por ele, quais século. Tal aumento é geralmente explicado pela
governos foram mais sensíveis aos seus apelos intensificação do processo de urbanização e in-
etc. Penso, entretanto, que isso só teria pleno dustrialização a que tais cidades assistem. Ao
sentido depois de ser revelado como tal insti- que parece, essa intensificação não se restrin-
tuição pode ter se tornado algo pensável e de- giu apenas às grandes metrópoles dos países
fensável. Parece-me que a generalidade da mi- mais desenvolvidos (onde Jack, o estripador,
nha primeira abordagem é em si mesma zombava da polícia), mas também, guardadas
justificável, mas ela ainda encontrava apoio no as proporções e especificidades, às dos países
fato mesmo de tais asilos prisões terem surgi- periféricos. Para o Brasil, trabalhos importan-
do quase simultaneamente em diferentes paí- tes foram feitos explorando a relação entre as
ses. Essa simultaneidade levava a supor que profundas alterações sociais que experimentam
seu surgimento esteve largamente relacionado as suas grandes cidades da belle époque, espe-
a processos sociais mais amplos, ou que não cificamente Rio de Janeiro7 e São Paulo8, e o
se restringiam a questões propriamente nacio- aumento das taxas de criminalidade e do inte-
nais. Dessa forma, escolhi pensar o apareci- resse em torno da questão. Aumento populacio-
mento dessa estrutura institucional peculiar re- nal intenso, liberação não planejada da mão-de-
lacionando-a a “variáveis” sociológicas mais obra escrava, incorporação de grandes
genéricas. Basicamente, as “variáveis” esco- contingentes de imigrantes nacionais e estran-
lhidas poderiam ser dispostas em dois planos: geiros, industrialização, formação de um mer-
de um lado, o plano das discussões teóricas que, cado de trabalho competitivo em moldes capi-
na passagem do século, versavam sobre as re- talistas, modernização da estrutura urbana e
lações entre criminalidade e loucura; de outro, mudanças significativas no estilo de vida são
o plano da prática judicial concreta sobre a qual apenas alguns dos elementos apontados mais
tais discussões incidiam e que se desenrolava freqüentemente como fontes de agudização dos
então nos tribunais. conflitos sociais naquele momento.
Entretanto, para além das tensões sociais
inerentes a um acelerado processo de urbani-
A QUESTÃO DO CRIME NA PASSAGEM zação e industrialização, as grandes cidades do
DOS SÉCULOS XIX-XX final do século XIX assistem ainda à emergên-
cia de um outro fenômeno social que não pode
O período entre final do século XIX e ser desprezado e que se apresenta como efeito
início do século passado apresenta como mar- da formação de um meio delinqüencial fecha-
ca característica o surgimento, em vários paí- do, recortado principalmente entre infratores

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das classes populares urbanas. Como já apon- nas “românticas” transgressões de indivíduos
tou Michel Foucault9, a circunscrição de tal criminosos ou “malditos” (como Byron,
meio foi em grande parte conseqüência da prá- Rimbaud, Álvares de Azevedo, De Quincey,
tica prisional que se instalou no coração dos entre outros), quanto nas transgressões políti-
sistemas penais a partir do final do século co-ideológicas também “românticas” de anar-
XVIII.c Através da prisão, o “crime” se organi- quistas, comunistas ou socialistas utópicos. Atra-
za, se especializa e se profissionaliza no meio vés do crime, juristas, criminalistas,
urbano, e a nova feição que adquire aparece criminólogos, antropólogos criminais, médicos-
marcada pelo fenômeno da reincidência.10 Des- legistas, psiquiatras, todos fortemente influen-
ligado de seu meio social de origem, dados os ciados por doutrinas positivistas ou cientificistas,
longos períodos de reclusão a que é submeti- discutiam de fato uma questão política maior:
do, e preso nos jogos da marginalização, co- os limites “reais” e necessários da liberdade in-
meçava a se desenhar para o criminoso uma dividual, que, vista como excessivamente pro-
trajetória social sem retorno. Foi, sem dúvida, tegida nas sociedades liberais, era apontada
frente a uma tal realidade sociológica que se como causa de agitações sociais ou, ao menos,
tornou possível conceber o criminoso como um como empecilho à sua contenção.
“tipo natural”; concepção que selava a irrever- Assim, através das discussões em torno
sibilidade de uma trajetória delinqüente no do crime, tratava-se não somente de atacar a
momento mesmo em que passava a percebê-la ordem política e jurídica liberal, mas também
enquanto manifestação de uma natureza indi- de consolidar uma nova concepção do homem
vidual anômala, de um psiquismo perturbado e de sua relação com a sociedade, amplamente
pela doença. Assim a reflexão em torno da exis- ancorada em formulações positivistas e
tência de um “tipo natural” criminoso que cientificistas.
emergia na segunda metade do século XIX, não No Brasil, como bem apontou
se tecia então apenas com os fios do imaginá- Schwarz11, apesar de negarem frontalmente o
rio, pois se apoiava em parte sobre um proces- clientelismo e a lógica do favor que caracteri-
so histórico de constituição do criminoso en- zavam as relações sócio-políticas tradicionais,
quanto um “tipo social”. os princípios liberais que foram mais fortemen-
Compreender por que o crime se colo- te incorporados às instituições nacionais com
cou naquele momento como objeto privilegia- o advento da República de 1889, em vez de
do de reflexão é também visualizar a crise pela destruí-los, a eles se incorporaram em uma es-
qual passava o liberalismo, quer enquanto dou- pécie de “coexistência estabilizada”. Tal coe-
trina política com determinada fundamentação xistência, como sabemos, deu origem a “insti-
filosófica - a filosofia das Luzes, quer enquanto tuições” tão peculiares quanto o voto de
modo específico de organização social e políti- cabresto ou o uso da lei como momento supre-
ca. Nesse sentido, refletir sobre o crime era tam- mo de arbítrio (“aos amigos, tudo; aos inimi-
bém refletir sobre o que se julgava ser os exces- gos, a lei”, segundo conhecido ditado popu-
sos do individualismo, alimentado pela doutrina lar). Entretanto, se o liberalismo assumiu entre
liberal. Tais excessos eram identificados tanto nós uma “cor local”, ele ainda nos chegou

c O Código Criminal de 1830 prescrevia como penas: perda ou suspensão de emprego, multas, privação do exercício de direitos
políticos, desterro, degredo, banimento, a morte e ainda a pena-prisão, com ou sem trabalhos forçados. No estudo que fazem
sobre a polícia fluminense no século XIX, Brandão e companheiras enfatizam que um grande número de crimes era então
punido através da prisão com trabalho. Dizem ainda as autoras que, embora tal trabalho “devesse ser realizado quase sempre no
recinto da própria prisão, tendo em vista as sentenças proferidas e os regulamentos policiais das mesmas prisões, fica manifesta
a intenção de encontrar trabalhadores entre a população livre para obras públicas numa sociedade onde o trabalho é caracterizado
como uma maldição”.

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acompanhado de uma “bula” que apontava seus das. Já enquanto objeto de uma antropologia,
vários “efeitos colaterais” e “contra-indica- o crime (ou seus referentes mais abstratos: a
ções”. As instituições liberais nasceram, entre maldade, a ferocidade, a impulsividade etc.)
nós, sob o fogo cerrado de “positivistas”, será pensado como espécie de atributo peculi-
“evolucionistas” e “socialistas” de vários ma- ar a certas naturezas humanas. Através desse
tizes. Todos eles, de uma maneira ou de outra, crime-atributo, uma espécie de reflexão
denunciavam as bases “metafísicas” do libera- ontológica irá equacionar comportamentos in-
lismo e advogavam que a “boa lei” não deve- dividuais desviantes a configurações
ria pretender apoiar-se sobre princípios abstra- psicossomáticas particulares e hereditariamen-
tos, eternos e universais como queria o te adquiridas. Em fins do século XIX, os cami-
jusnaturalismo, mas sim nas necessidades ob- nhos indicados pelas entradas abertas pela psi-
jetivas de cada povo ou nação, nas particulari- quiatria e pela antropologia criminal se cruzam
dades cientificamente demonstradas da reali- sobre um espaço que é ao mesmo tempo médi-
dade sobre a qual ela pretendia legislar. co e legal. Desse cruzamento, surgirão os ma-
Igualdade, liberdade etc. seriam apenas pala- nicômios judiciários e outras instituições do
vras vazias se não correspondessem a qualquer gênero.
realidade verificável.
Assim, embora o contexto fosse diferen-
te, também aqui, como nos países europeus, AS NOVAS FIGURAS DO MAL: OS
através das discussões em torno do crime e da MONOMANÍACOS, OS
desigualdade cientificamente demonstrável que DEGENERADOS E OS CRIMINOSOS
o crime parecia tematizar, surgiram as mesmas NATOS
críticas ao liberalismo e à concepção de ho-
mem veiculada pelo Iluminismo. Formuladas Para a compreensão dos impasses que
no bojo de sistemas de pensamento antiliberais, se colocavam na prática judicial quando se le-
tais críticas tiveram ao que parece ampla acei- vantava suspeitas sobre a sanidade mental do
tação na elite intelectual brasileira daquele acusado e também do surgimento dos manicô-
momento, contribuindo para a formação das mios judiciários, parece fundamental a apre-
bases de um pensamento autoritário cuja rele- sentação do significado de basicamente três
vância já tem sido bastante evidenciada há al- categorias: “monomania”, “degeneração” e
guns anos. É dentro desse amplo quadro que “criminalidade nata”. Tais categorias articula-
devem ser compreendidas as relações signifi- vam diferentemente a transgressão moral nos
cativas que, na passagem do século, forjaram- termos da doença ou da anomalia, colocando
se em torno do crime e da loucura. alguns criminosos ora como objetos da pato-
Enquanto objeto da psiquiatria, o crime logia, ora como objetos da teratologia.
será visto em algumas de suas formas como É importante salientar que o aparecimen-
sintoma de uma doença mental: comportamen- to da noção de monomania, visceralmente
to referido a uma situação excepcional por que implicada na interpretação psiquiátrica de cer-
passariam alguns indivíduos durante certos tos crimes, teve uma importância enorme na
períodos de suas vidas. É importante salientar própria história da psiquiatria e de seu objeto.
que tal concepção do crime-doença não deixa- Foi através dela que se forjou a concepção da
va de revelar uma avaliação “otimista” do ser loucura enquanto alienação mental, ou seja,
humano, que naturalmente bom, apenas even- enquanto doença que não se caracterizava ne-
tualmente teria sua natureza pervertida por cau- cessariamente pelo delírio. Como aponta
sas ou razões externas, contingentes, inespera- Michel Foucault12, foi através da monomania,

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principalmente da monomania instintiva, que irá enfatizar, sobretudo, essa característica ina-
se pode visualizar com clareza em que se trans- ta e constitutiva de algumas perturbações men-
formou a loucura no correr do século XIX: um tais já tematizada incipientemente pela
“mal” que implicou a “objetificação” do ho- monomania, permitindo que a discussão psi-
mem e que passou, nas palavras do autor, a quiátrica oscile entre uma reflexão sobre as
“...estendê-lo finalmente ao nível de uma na- doenças que podem acometer os homens, tor-
tureza pura e simples, ao nível das coisas...” nando-os infelizes, e uma reflexão sobre a pró-
(p. 516). pria natureza humana e sobre como os homens
Contudo, na segunda metade do século podem se tornar a causa da infelicidade uns
XIX a noção de monomania receberia golpes dos outros.
decisivos no interior do campo psiquiátrico, O comportamento criminoso - ao me-
quando aparece a teoria da degeneração, nos nos casos em que se percebia uma “ten-
esboçada primeiramente pelo médico francês dência precoce para o mal” – encontrava seu
A. Morel. Foi então que começaram a surgir, espaço entre as manifestações degenerativas
no âmbito das discussões sobre o crime, “os da espécie humana. Na verdade, a doutrina da
degenerados”. Estes seres, embora continuas- degeneração fez com que o crime, em si mes-
sem a equacionar o crime nos jogos da sanida- mo, pudesse se tornar objeto de uma aborda-
de/insanidade mental, permitiam que se esbo- gem psicopatológica, tornando possível uma
çasse uma primeira “criminologia”, na forma primeira “criminologia”, como dito anterior-
de uma reflexão médica específica sobre o cri- mente.
me, uma vez que, segundo a teoria da degene- Ao longo do século XIX, a psiquiatria
ração, qualquer ato criminoso podia ser lido expandiu suas categorias nosológicas e, con-
como um sintoma de doença mental ou de ins- seqüentemente, abarcou nos quadros da alie-
tabilidade psíquica. Com o aparecimento dos nação mental um número crescente de com-
degenerados, os médicos começaram a questi- portamentos desviantes, que até então tinham
onar os fundamentos do direito penal liberal. sido apenas objeto da moral, da ética, da lei.
É importante salientar, entretanto, que a expres- Através de categorias como as de monomania
são monomania continuou a ser utilizada pe- ou degeneração, vários crimes começaram a
los médicos durante todo o século XIX e não ser compreendidos medicamente, e já se per-
desapareceu com o surgimento das teorizações cebia inclusive uma zona fronteiriça, onde cri-
em torno da degeneração. O que acontece é que me e loucura se confundiam, ou melhor, onde
os indivíduos antes considerados o crime podia ser interpretado como resultan-
monomaníacos (impulsivos e loucos te de um psiquismo perturbado ou anômalo.
raciocinantes ou loucos morais) são, a partir Através da degeneração, o crime como desvio
da segunda metade do século XIX, classifica- moral pôde também ser compreendido enquan-
dos preferencialmente como degenerados. to disfunção orgânica. Entretanto, o foco da
Degeneração e monomania apresentam- reflexão médica não era propriamente o cri-
se, portanto, como noções concorrentes, pre- me, nem os criminosos eram seu objeto de in-
tendendo abordar diferentemente um mesmo tervenção privilegiado. Ao que parece, a psi-
conjunto de comportamentos: transgressões quiatria somente podia abordar o crime sob
aparentemente irracionais onde o delírio não pena de desqualificá-lo enquanto tal, para
está em causa e que partem de indivíduos cuja compreendê-lo como sintoma de uma molés-
situação doentia parece ser um estado perma- tia mental qualquer.
nente, indicando uma espécie de doença con- A naturalização do crime fora da oposi-
gênita e incurável. A doutrina da degeneração ção sanidade/insanidade, bem como o estabe-

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lecimento de suas conseqüências para a práti- se antropologicamente distinta no interior do


ca penal e penitenciária, só se realizarão plena conjunto dos seres humanos. O que se tentava
e sistematicamente através de um discurso demonstrar era a existência de um Homo
médico-legal embasado nas formulações de criminalis, de um “criminoso nato”.
uma disciplina que, nas últimas décadas do Em finais do século XIX, as teorias em
século XIX, reivindicava foros de ciência na- torno da monomania, da degeneração e da cri-
tural, positiva, legítima: a antropologia crimi- minalidade nata passam a ser utilizadas nos tri-
nal. É justamente no âmbito desse pensamen- bunais para classificar certos criminosos, co-
to que se forjarão as críticas mais radicais ao locando sérios problemas ao andamento de
sistema jurídico-penal característico das socie- processos e julgamentos. Se o funcionamento
dades liberais.d Tal sistema, como se sabe, ori- do sistema jurídico penal liberal assentava-se
entava-se por princípios jurídicos estabeleci- na possibilidade de distinguir claramente lou-
dos no seio do pensamento iluminista e que cos de sãos, responsáveis de irresponsáveis, e
foram sistematizados pelo italiano Cesare na existência do hospício, como instituição
Beccaria em seu famoso livro Dos delitos e complementar à prisão, os médicos passavam
das penas, publicado em 1767. As bases do agora a manipular categorias diagnósticas que,
chamado direito clássico assentavam-se sobre ou supunham um contínuo entre sanidade e lou-
três postulados fundamentais13,14. O primeiro cura (como era o caso da degeneração), ou
estabelecia a igualdade de todos os homens pe- (como era o caso dos criminosos nato) uma
rante a lei. O segundo propunha que a severi- concepção biodeterminista da pessoa humana
dade da pena deveria se pautar exclusivamen- que comprometia o próprio julgamento de res-
te pela gravidade do delito cometido. ponsabilidade, uma vez que os indivíduos pas-
Finalmente, o terceiro dizia que a lei penal não sam, em seus termos, a serem considerados
poderia ser retroativa, ou seja, que não have- naturalmente bons ou maus. Todos, em certo
ria crime sem lei anterior que o previsse. To- sentido, seríamos irresponsáveis, movidos por
dos esses princípios serão colocados em xe- nossas tendências naturais. Como queriam os
que a partir das formulações da antropologia adeptos das novas teorias sobre o crime e os
criminal.15,16 criminosos, todo o sistema penal liberal devia
Constituída pelas “descobertas” de um ser reformulado, com a abolição dos próprios
outro italiano, o médico psiquiatra Cesare tribunais, com a substituição de juízes por téc-
Lombroso (1835-1909), a antropologia crimi- nicos, com a adoção de medidas de contenção
nal consistiu na aplicação das técnicas da e recuperação de duração indeterminada etc.
antropometria e da cranioscopia, desenvolvi- Um exemplo do tipo de confusão que a
das anteriormente por médicos como Broca e incorporação dessas categorias na prática judi-
Gall, ao exame dos corpos dos criminosos e cial concreta é o caso que analisei mais
no tratamento estatístico dos resultados obti- aprofundadamente em outro momento, envol-
dos por tais técnicas. Os frutos desses proce- vendo o assassinato, em 1896, do Comendador
dimentos, interpretados de uma maneira que Belarmino B. P. de Melo, que, aos setenta anos
logo foi considerada pouco metódica e não- de idade, foi vítima do jovem Custódio Alves
científica, conduziam à conclusão de que al- Serrão. Belarmino era amigo íntimo do pai do
guns criminosos podiam ser considerados uma assassino e, depois da morte dele, tornou-se
variação singular do gênero humano, uma clas- tutor dos dois irmãos de Custódio: do irmão
d Além das obras explicitamente citadas, a descrição que farei nesta seção apóia-se principalmente em manuais com fins didáticos
ou de propaganda, nos quais juristas e médicos brasileiros, apoiados nas formulações da antropologia criminal, expõem as
idéias do novo pensamento em matéria penal.

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mais velho, porque ele se encontrava interna- se a assinar a internação, dizendo que para tais
do no Hospício Nacional de Alienados, e da casos o ideal seria um manicômio-criminal.
irmã mais nova, que ainda não havia alcança- Como tal instituição ainda não existia, o psi-
do a maioridade. quiatra reenvia Custódio à polícia para que o
O caso é tão singular que, a primeira vis- processo criminal fosse retomado. Novos mé-
ta, beira a ficção. O próprio nome do assassino dicos são chamados a examiná-lo e o diagnós-
- Custódio – parecia fazer alusão à discussão tico de degeneração (ou criminalidade nata) é
que seu ato desencadearia. A história de vida mantido. Dadas as posições de Brandão, o fa-
da vítima misturava-se à história das institui- moso professor de medicina-legal da Faculda-
ções penais, uma vez que Belarmino havia sido de da Bahia, Raimundo Nina Rodrigues, entra
o chefe da Casa de Correção da Corte e havia na disputa. Para ele, era incompreensível que,
se notabilizado pela defesa da introdução do frente ao fato de inexistir um manicômio judi-
sistema de isolamento celular nas prisões bra- ciário, Teixeira Brandão aceitasse a condena-
sileiras. Além disso, Custódio afirmava que ção e punição de alguém que ele mesmo sabia
matara Belarmino porque ele o acusava de ser ser um degenerado e, portanto, um irresponsá-
louco e ameaçava interná-lo no Hospício Na- vel. Custódio é julgado e, considerado irres-
cional, junto do irmão. ponsável penalmente, absolvido. Muito prova-
Frente a tudo isso, logo depois de sua velmente acabou em liberdade, uma vez que
prisão, dois médicos-legistas da polícia, foram os psiquiatras do Hospício Nacional, na ausên-
chamados para avaliar o caso e classificaram cia de um manicômio judiciário, recusavam-
Custódio como monomaníaco, atingido pela se a acolher tais casos.
monomania das perseguições, aconselhando
seu internamento no Hospício Nacional. De-
pois de um curto período de internação no DEGENERADOS, CRIMINOSOS NATOS
Hospício Nacional, Custódio foge e se E O SURGIMENTO DO PRIMEIRO
reapresenta à polícia, exigindo que fosse res- MANICÔMIO JUDICIÁRIO
peitado o seu direito de ser julgado pelo crime BRASILEIRO
que havia cometido. Além disso, faz duras crí-
ticas ao Hospício, desencadeando uma pesada Parece-me já estar claro, o tipo de pro-
campanha contra o diretor do estabelecimen- blema que a incidência de categorias como a
to, o Dr. Teixeira Brandão. Um dos nomes mais de “degenerado” ou “criminoso nato”, ou me-
notáveis da psiquiatria de então, Brandão era lhor, que a incidência da noção biodeterminista
o primeiro catedrático de Psiquiatria da Facul- da pessoa humana que elas expressavam, im-
dade de Medicina do Rio de Janeiro e o res- punha às formas socialmente previstas para a
ponsável pela expulsão das irmãs de caridade contenção e repressão dos transgressores. Ao
que controlaram o Hospício Nacional até a pro- nível da prática judiciária, as contradições e
clamação da República. Depois da fuga, Cus- impasses vão se acumulando ao longo das duas
tódio foi reconduzido pela polícia ao hospício. primeiras décadas do século XX. Casos mais
Depois do período de observação, o médico da ou menos escandalosos vão surgindo e moti-
instituição o diagnostica como degenerado, vando psiquiatras e magistrados a lutar em prol
dizendo com isso, que embora não fosse res- da construção de um asilo criminal, que come-
ponsável por suas ações, Custódio não era pro- ça a ser considerado amplamente a única saída
priamente um doente e sim o portador de um possível para o impasse que opunha médicos e
defeito constitucional que o predispunha ao juristas, e, às vezes, psiquiatras e médico-
crime. Frente a isso, Teixeira Brandão recusa- legistas. É sem dúvida significativo que, alguns

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anos após o caso Serrão, apareça na legislação o congresso votaria crédito para sua constru-
referente à organização da assistência a alie- ção. Talvez não tivesse sido erguido tão pron-
nados no Brasil (Dec. nº1132 de 22/12/1903), tamente sem a interveniência do segundo acon-
amplamente influenciada por Teixeira Brandão tecimento, que consistiu em uma séria rebelião
e Juliano Moreira, seu sucessor na direção do ocorrida a 27 de Janeiro de 1920 na Seção
Hospício Nacional, a obrigatoriedade de cons- Lombroso do Hospício Nacional, onde segun-
trução de manicômios judiciários em cada es- do os jornais, estariam internados 41 “loucos
tado, ou, na sua impossibilidade imediata, da da pior espécie”, “gente perigosa” “sempre com
circunscrição de pavilhões especialmente des- o intuito do mal” (JC, OP, O Jornal, 28/01/
tinados aos loucos-criminosos nos hospícios 1920). Liderados por Roberto Duque Estrada
públicos existentes. Foi depois dessa lei que, Godefroy, alcoólatra e preso diversas vezes por
instituiu-se a Seção Lombroso do Hospício vadiagem e pequenas agressões, os internos da
Nacional, especialmente destinada ao recolhi- Seção Lombroso conseguiram sair de suas ce-
mento dos loucos-criminosos. Homenagem ao las, agrediram funcionários do hospício e ate-
criador da teoria dos criminosos-natos, o nome aram fogo nos colchões, produzindo enorme
da do serviço atesta o fato de que era para o comoção.
abrigo de tais figuras que a seção se destinava. A campanha pela construção de um ma-
Porém, o problema não estava ainda resolvi- nicômio judiciário na capital tem efeitos posi-
do. Dois outros acontecimentos viriam preci- tivos e imediatos. A 21 de abril de 1920 - dia
pitar o surgimento de um manicômio judiciá- que entre nós é dedicado à luta pela liberdade
rio entre nós, engajando mais fortemente a política - era lançada, nos fundos da Casa de
imprensa e os poderes públicos. Correção, na Rua Frei Caneca, a pedra funda-
O primeiro deles ocorreu em 1919, quan- mental do primeiro asilo criminal brasileiro,
do um outro “degenerado”, um taquígrafo do que seria inaugurado a 30 de maio do ano se-
senado, mata D. Clarice Índio do Brasil, mu- guinte. Cumpria-se assim, como expressou um
lher de um Senador da República e figura co- “desvanecido” Juliano Moreira em seu discur-
nhecida da alta sociedade carioca17. A possibi- so, “uma velha aspiração não só dos alienistas
lidade de o assassino vir a ser absolvido faz nacionais, mas ainda dos jurisconsultos e ma-
com que a própria imprensa se engajasse in- gistrados desse país, que de há muito viam co-
tensamente na luta pela criação de um manicô- nosco a inadiabilidade desta construção” (JC,
mio judiciário. Porém, em oposição aos médi- 22/04/1920, 2ª p.).
cos, os jornalistas, ao defenderem a construção Frente a uma concepção cientificista da
do estabelecimento, não enfatizavam o seu ca- pessoa humana, da qual o criminoso nato não
ráter terapêutico ou humanitário; antes, apon- era senão um dos fetiches, havia necessidade,
tavam sua urgente necessidade para uma re- como bem defendiam os membros da Escola
pressão mais eficaz aos delinqüentes. Os Positiva de Direito Penal, de mudanças pro-
termos em que a discussão aparece nos jornais fundas, radicais e globais das leis, dos proce-
atestam de forma clara a ambigüidade da per- dimentos processuais e das instituições peni-
cepção social que se construía em torno dessas tenciárias. Desse ponto de vista, o MJ não
estranhas figuras, meio inocentes e meio cul- parece ter sido apenas uma solução adequada
padas, que eram os degenerados, os crimino- ao destino a ser dado a determinados tipos de
sos natos, os anômalos morais enfim. alienados, mas também uma maneira de con-
Logo após o assassinato de Clarice, o ter em limites mais ou menos precisos os efei-
governo federal começaria a mobilizar-se para tos de um conflito entre ciência e moral, cuja
fundar o novo estabelecimento e ainda em 1919 extensão ameaçava as instituições liberais

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como um todo. Para os que consideravam o foram aos poucos consideradas não-científicas
criminoso nato uma idéia absurda, um atenta- (como as de “anômalo moral”, “degenerado”
do contra a liberdade individual ou um expe- ou “criminosos nato”) ou se tornaram residu-
diente para inocentar criminosos, o manicômio ais no pensamento psiquiátrico (como no caso
judiciário, por não deixar de ser uma prisão, das “personalidades psicopáticas”). É interes-
parecia solução satisfatória. Para os defenso- sante notar que, a partir de determinado mo-
res da idéia de criminoso nato, para os quais a mento, muitos psiquiatras passaram a conside-
liberdade humana era apenas mais uma frágil rar o manicômio como uma instituição que não
e enganadora ilusão, ele não deixava de ser uma deveria mais se dedicar à contenção daqueles
casa de tratamento e regeneração, onde, à re- para os quais ela fora criada. Por exemplo, já
velia do direito instituído, alguns criminosos em 1951, em estudo sobre a questão das perso-
poderiam ser segregados perpetuamente. Um nalidades-psicopáticas frente à legislação pe-
modelo talvez daquilo em que, um dia, deveria nal brasileira, Heitor Pereira Carrilho, que em
se transformar todo o sistema penal. 1920 defendera a construção dos manicômios
judiciários justamente para a repressão dos
“anômalos morais”, afirmava que o manicô-
CONSIDERAÇÕES FINAIS mio judiciário deveria ser uma instituição “de
cunho mais hospitalar”, não sendo adequada
Como apontado ao longo desse artigo, ao abrigo das “personalidades-psicopáticas”.
os manicômios judiciários não foram primor- Desse modo, é possível pensar que, se
dialmente pensados para abrigar, de um modo ao menos originalmente havia uma adequação
geral, qualquer doente mental ou alienado que formal entre a estrutura do MJHC e as figuras
cometesse crimes. Destinavam-se especialmen- que ele se propunha a abrigar - um semi-hospí-
te aos criminosos considerados como “dege- cio ou semi-prisão para semi-loucos ou semi-
nerados”, “natos”, “de índole”, “anômalos criminosos, essa adequação formal foi, entre-
morais”. Todas essas categorias são versões tanto, desaparecendo ao longo do século XX
distintas do que viria a ser chamado mais tarde e, hoje, nos encontramos frente a um semi-hos-
de “personalidades psicopáticas” ou pício ou semi-prisão que recebe indivíduos
“sociopatas”. Asilos e prisões se mostravam considerados doentes mentais.
incapazes de recebê-los porque tais delinqüen- Por fazer parte do sistema penitenciário,
tes eram percebidos ora como habitantes de não é de surpreender que manicômios judiciá-
uma região intermediária entre a sanidade e a rios sejam um dos espaços mais impermeáveis
loucura ou entre a irresponsabilidade e a res- às transformações pautadas na defesa dos di-
ponsabilidade moral, ora como habitantes de reitos humanos dos pacientes e na sua des-hos-
uma região em que tais termos não faziam mais pitalização. Nesse caso, colocar-se ao lado dos
qualquer sentido. pacientes é defender a própria extinção desse
É desse ponto de vista que podemos pen- tipo de instituição e uma profunda reforma da
sar a estrutura ambígua dos manicômios judi- legislação que a suporta, pois, como há três
ciários como a “solução final” de um conflito décadas escrevia um dos expoentes da
histórico. As conseqüências que tal estrutura antipsiquiatria, Thomas Szasz18: “Para o ‘pa-
acarreta para os internos são ainda mais iní- ciente-delinquente’ não existe nem absolvição
quas, aos olhos de um observador contempo- para a sua culpa, nem tratamento. Isso não é
râneo, pois o próprio conflito que a originou mais que um método cômodo para ‘se livrar’
está em larga medida ultrapassado. As catego- de indivíduos que apresentam certos compor-
rias para as quais se destinava originalmente tamentos anti-sociais” (p.148).

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Para finalizar, talvez seja pertinente pro- vistos simultaneamente como livres e escravos,
por a reflexão de que foi justamente o caráter sujeitos e objetos, inocentes e pecadores; e onde
ambíguo e contraditório dos manicômios judi- confusão, contradição ou irracionalidade são
ciários que assegurou que as engrenagens da sempre vistos como atributos de povos que ha-
Justiça continuassem operando, mesmo sob a bitam terras longínquas, onde vivem imersos em
condição de terem, como no caso dos loucos- estranhos rituais. Espero que o resgate da “his-
criminosos, de produzir graves e irreversíveis tória” do surgimento dos manicômios judiciári-
injustiças. Talvez possamos mesmo considerá- os em nossa sociedade possa iluminar os desa-
lo um dos principais dispositivos práticos que fios e contradições que a instituição continua a
nos permitem continuar vivendo em sociedades colocar àqueles que se preocupam com o desti-
nas quais, como bem percebeu o antropólogo no social dos homens e mulheres que neles con-
inglês E. E. Evans-Pritchard19, os homens são tinuam a ser confinados.

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