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O comandante Pinto de Almeida ordena que as faces atacadas ripostem com fogo disciplinado, por

descargas. Ao mesmo tempo entra em acção a artilharia. Mas não é possível verificar o efeito dos
disparos sobre um opositor que permanece obstinadamente agarrado aos abrigos.

Apesar de as perdas portuguesas começarem a avolumar-se, Pinto de Almeida deixa-se tolher por
estranha letargia. No entanto, Aguiar dispusera assisadamente nas suas ordens de operações que o qua-
drado apenas seria assumido como uma formação preparatória do combate. Com isso pretendia ele
significar que, em caso de hostilidades que obrigassem a tal recurso, deveria o responsável esclarecer
rapidamente a situação, após o que resolveria sobre a manobra a executar - de desenvolvimento, de
avanço ou de recuo do quadrado.

Na Chana B, nesse memorável 25 de Setembro, tais instruções estão a ser tragicamente ignoradas.

O comandante mantém-se sem reacção eficaz, embora seja cada vez mais claro que o destacamento se
acha preso numa ratoeira mortal. Há um momento, uma pequena fracção de tempo, quando a disciplina
ainda impera e as munições abundam, em que teria sido possível - pelo menos - tentar escapar, com
ordem, da clareira da morte. Porém, Pinto de Almeida parece confundido pela violência do ataque e pela
sagacidade de um adversário que, sempre escondido, lhe vai dizimando os homens, expostos a pé firme
e de peito descoberto às balas que chovem do arvoredo.

Decorrem os minutos - cinco, dez, quinze - e está já a ultrapassar-se o ponto sem retorno. O quadrado
avança ou recua? Não há resposta do comandante para esta pergunta vital. É provável que ele continue
psicologicamente abalado pelos acontecimentos da noite de 21 de Setembro, como é de presumir-se
que, por motivo das culpas que arrasta consigo, só muito dificilmente poderia conformar-se com a ideia
de uma retirada. A demora de Pinto de Almeida na Chana B possui todos os cambiantes de um lavar de
face suicida.

Os nervos apoderam-se dos soldados, obrigados a manterem-se direitos e impávidos naquele mata-
douro, percebendo o impacte sinistro dos projécteis nos corpos desprotegidos dos companheiros e o
baque surdo dos que tombam no solo requeimado da chana. Há muito que se perdeu a disciplina de
fogo. O tiroteio do quadrado é agora vivíssimo, o ritmo do consumo das munições torna-se preocupante.
Os oficiais tentam repor a cadência das descargas, e Pinto de Almeida chega mesmo a ordenar o toque
de cessar fogo. Porém, ao fim de quase meia hora deste combate desigual, não há nada que possa ter
mão no tremendo impulso de sobrevivência.
Principiam os rasgos espontâneos. À voz de um cabo - Rapazes, vamos dar uma carga! -, os soldados do
Batalhão Disciplinar abandonam a face do quadrado e precipitam-se de baionetas em riste, soltando
clamores selvagens, em direcção à floresta. Contagiados pelo gesto, alguns soldados da 16.ª Companhia
Indígena seguem na peugada dos companheiros e enfileiram à sua direita na borda do arvoredo. Os
Cuamatos recuam, de árvore em árvore, diante do inesperado contra-ataque. Os soldados vão
sustentando com descargas a posição conquistada.

Entretanto, os pelotões de cavalaria saem também do quadrado numa carga impetuosa. Levam à frente
o seu comandante, o tenente Adolfo Ferreira, um dos incluídos à última hora no destacamento. Não é
uma iniciativa feliz naquele terreno eriçado de espinheiros, de morros de salalé e de arvoredos de ra-
marias baixas. Muitos cavaleiros acabam por ver-se privados das montadas e, para piorar as coisas, o
tenente Adolfo Ferreira tomba, ferido de morte, durante a carga.

Estarrecidos, os cavaleiros retornam ao quadrado, que exibe perigosamente escancarada a face da frente
e parte da face da direita. Os Disciplinares e os soldados africanos da 16.ª recebem então ordem para
deixarem a beira da mata e regressarem ao quadrado, fechando de novo a formação. Quando os homens
obedecem, a vaga de cuamatos reflui no mesmo balanço e reocupa com presteza as posições iniciais. O
quadrado, mais ou menos recomposto, volta a transformar-se num matadouro.

Pouco depois das oito horas da manhã, ao cabo de trinta minutos de luta, as linhas portuguesas
denotam assustadores indícios de desagregação. Do lado dos Disciplinares, na face da frente, informa-se
que as munições estão a chegar ao fim. A artilharia emudece bruscamente, após cada uma das peças ter
desfechado vinte e quatro tiros sobre a mata fronteira.

Os Cuamatos aproveitam para se aproximarem a coberto dos acidentes naturais e são detectados
guerreiros a cinquenta metros do quadrado. Ao mesmo tempo, os lengas procuram fechar o cerco e
fazem com que se inicie o ataque à face da retaguarda.

Começa então a emergir na batalha o vulto do tenente Carlos da Luz Rodrigues, um lisboeta da freguesia
do Socorro. Comandando o seu pelotão da Companhia Europeia de Infantaria, e auxiliado pelo pelotão
de dragões apeados do alferes Santos Nunes, Luz Rodrigues reage ao assalto com um fogo regular, que
sustém o ímpeto do inimigo. Das outras faces continuam porém a elevar-se gritos angustiados: Estamos
todos perdidos, já não há pólvora! Quando um cabo dos Disciplinares aparece numa correria desabalada
em busca de munições, Luz Rodrigues faz com que lhe encham de cartuchos as copas de dois chapéus.
Depois, com os homens de joelhos em terra, prossegue friamente as descargas na direcção da mata.

E Pinto de Almeida, o que é feito do comandante do destacamento? Ele vagueia pelo interior do
quadrado, perdido num distanciamento de sonâmbulo, contemplando com uma fleuma arrepiante a
inexorável realização do destino. À sua volta desenha-se um espectáculo pavoroso. Com excepção da
retaguarda, as linhas portuguesas oscilam, retrocedem, abrem brechas repentinas. Os homens clamam
que vão ficar ali todos. O doutor Silveira, o amigo de João Roby, rodeado de sangue e de brados de dor,
informa que já não há onde meter tantos feridos. O quadro de oficiais reduz-se a olhos vistos. O capitão
Morais está inutilizado, o tenente Adolfo Ferreira morreu, o tenente António da Trindade tem uma perna
fracturada, o tenente José Maria Ferreira, dos Disciplinares, tombou morto no início da emboscada, e o
alferes Oliveira, da 16.ª, jaz de borco com um orifício na nuca de onde jorra sangue abundante.

João Roby anda numa canseira, de um lado para o outro, adivinhando a iminência do desastre total.
Adverte os soldados: Olhem o quadrado! Olhem as peças! Quando o doutor Silveira lhe implora que
convença o comandante a retirar, responde: Eu já lhe disse para retirarmos, mas ele não me disse nada.
Não sei o que ele quer fazer. Roby exaspera-se, interpela outra vez Pinto de Almeida: Capitão, é melhor
retirarmos, quando não ficamos aqui todos!

O comandante, com a sua calma de pesadelo, replica: Ainda há muita pólvora. E, depois, com idênticos
vagares: Isto vai mesmo à baioneta. Todavia, quando os Cuamatos intensificam o assédio, ele parece
despertar abruptamente para a realidade: Isto já não é quadrado nem é nada. Roby, no auge da
impaciência e do desalento, pressentindo a voz final dos lengas, diz nessa altura o impensável ao seu
superior hierárquico: Se não sabe comandar, entregue-me o comando, capitão! Pinto de Almeida não dá
resposta, lança em torno um olhar parado e desiludido, só agora parece ter adquirido consciência de
que, nestas circunstâncias, a vitória, o feito esplendoroso de que carece para se reabilitar, é impossível.
Num impulso - são oito e um quarto da manhã e o combate dura há quarenta e cinco minutos -, deter-
mina finalmente: Ó rapazes, vamos a retirar, venham fazendo sempre fogo e fazendo barulho.
Soa um toque de clarim, a ordem propaga-se, o quadrado move-se na direcção da floresta envolvente do
trilho que conduz à Chana A.

Apesar de a formação se apresentar meio desalinhada, há um arremedo de disciplina no início do


movimento. Os Portugueses trazem consigo os seus mortos e feridos, e arrastam também, com o auxílio
de muares, as peças de artilharia.

O alferes Vendeirinho cavalga com os dragões e, apoiado pelos auxiliares humbes de Pacheco Leão, tenta
romper caminho a tiro para a evacuação das forças. Assim que as munições se esgotam, os cavaleiros
começam a fazer uso das armas brancas. O tenente Luz Rodrigues desloca os seus homens para a face
oposta, agora transformada em retaguarda, e procura proteger a retirada. O destacamento deixa com
lentidão a Chana B e encaminha-se de novo para as profundezas da mata de Mucohimo.

Os lengas esperaram pacientemente por este instante. Levam contabilizadas as baixas dos invasores,
aperceberam-se da desorientação que lavra entre eles, estão seguros de que muitos não dispõem já de
um único cartucho. Logo que o quadrado inicia o recuo, ordenam às etangas da última linha que
avancem.

De um salto, com uma gritaria ensurdecedora, centenas de guerreiros munidos de armamento tradici-
onal arrojam-se para diante, como uma vaga colossal e irreprimível, atropelando os companheiros
atiradores, acercando-se do quadrado para cerrarem um amplexo de morte sobre os soldados. Um
oficial português registou o momento do tremendo embate à entrada do arvoredo:

O inimigo viu bem que não podíamos continuar a resistir por mais tempo e, temendo que viessem
reforços em nosso auxílio, precipitou-se em massa sobre nós, travando-se um combate corpo-a-corpo, à
zagaia, à faca, a machadinho, ao porrinho, defendendo-se os nossos à espada, à baioneta, à pistola,
fazendo das espingardas achas de armas (...). Houve rasgos de heroicidade e de loucura!

A partir daqui, esboroa-se o simulacro de disciplina que ainda sustentava o recuo do destacamento.

Tombam mais oficiais, as unidades fraccionam-se em pequenos grupos descomandados, há homens


isolados e sem armas a correrem loucamente pela espessura, buscando, aflitos, pistas que levem ao
acampamento do Cunene. Mas a mata de Mucohimo transformou-se para os invasores num lugar mau e
mortífero, povoado de gigantescos e audaciosos guerreiros cuamatos, que surgem de zagaias em punho,
semelhantes a fantasmas, de esconderijos insuspeitados.
Para os Portugueses, a Chana B foi somente a antecâmara do inferno, o inferno em que se debatem
agora, consumindo as últimas energias e munições em ferozes lutas individuais, procurando salvar as
suas vidas. Há vultos e ameaças de morte por detrás de cada tronco de árvore e de cada maciço de
espinheiros, em todos os covais e tufos de capim. As baixas portuguesas elevam-se a números
aterradores, há cadáveres trucidados por todo o lado.

E Pinto de Almeida, onde está Pinto de Almeida? O comandante paga enfim o seu preço. A sorte acaba
por mostrar-se misericordiosa para com este homem atormentado, provavelmente já sem hipóteses de
uma sobrevivência digna: uma bala entra-lhe pela boca, sai-lhe pela nuca, o capitão repousa agora,
liberto das suas culpas e remorsos, no chão acolhedor da mata.

João Roby, campeão de tantas batalhas, presencia abismado, do cimo da montada, o assombroso
desastre. Num arranco, guia o cavalo para junto de um bando de soldados que retrocedem, disparando
ainda as suas espingardas diante das vagas inimigas, e tenta com um derradeiro gesto alterar os
desígnios da fortuna. Encarando a mole imensa dos Cuamatos, grita para os soldados: Rapazes, não me
abandonem!

Nesse instante decisivo está tal como ficou no seu auto-retrato, o mesmo ser nodoso, agudo, todo em
arestas, nunca seguindo o trilho da estrada comum, sempre aos saltos pelos valados, aos ziguezagues
pelos carreiros, tendo teimas invencíveis, energias de herói, resistências de mártir. Mas Roby, que vê
crescer a massa de guerreiros inimigos, sente afinal que não é humano pedir o sacrifício maior àquele
punhado de soldados sem moral, já só impelidos pelo instinto de conservação, que o fitam de rostos
compungidos. Então, como num adeus, diz-lhes: Quem puder retirar, retire.

E, metendo esporas ao cavalo, galopa solitário em direcção ao inimigo, de espada desembainhada e


revólver em punho. Mais do que uma luta breve e desigual, vai tratar-se de uma verdadeira auto-
imolação, que os deuses escolheram para despedida do arcanjo da guerra que deitaram a este mundo.
Roby engolfa-se no mar de guerreiros negros que disparam sobre ele, tomba do cavalo sob um refulgir
brusco de lâminas sem clemência. Alto, magro, esgalgado, trigueiro, o herói travou o seu último
combate.
(...) No acampamento português do Pembe, escuta-se desde as sete e trinta da manhã o fragor do
combate. São perfeitamente audíveis as descargas iniciais, espaçadas pela disciplina, e o som cavo dos
disparos de artilharia. A passagem a um ritmo de fogo vivo, intensíssimo, suscita alguma inquietação.

A partir de dado momento, porém, o tiroteio abranda, tornando a ouvir-se, cerca das oito e meia, umas
descargas mais espaçadas e regulares, cujo som parecia vir de pontos sucessivamente mais próximos do
acampamento. Isto fez supor a João Aguiar e aos seus comandados que o destacamento de Pinto de
Almeida, entrando em contacto com o inimigo, iniciava uma retirada em boa ordem, aproximando-se,
com segurança, do rio. Essa foi apenas mais uma das ilusões desse domingo maldito para os invasores.

Há uma explicação objectiva para o equívoco que se instalou no acampamento.

Com efeito, no meio do pandemónio de sangrentas correrias que revolve a mata de Mucohimo, subsiste
milagrosamente entre os Portugueses um pequeno núcleo de ordem, frieza e coragem: o tenente Carlos
da Luz Rodrigues, da Companhia Europeia, teve artes de congregar à sua volta umas poucas dezenas de
homens e, valendo-se das munições de que ainda dispõe, ergue diante das investidas dos Cuamatos uma
barreira móvel e mortífera.

Acompanhado pelo alferes de cavalaria Santos Nunes, dos dragões apeados, e pelo alferes de artilharia
Joaquim Rodrigues, o tenente mantém o grupo coeso e calmo, retrocedendo pelo trilho que conduz à
Chana A, desfechando sobre o inimigo um fogo controlado.

É o som regular destas descargas que leva a tranquilidade e o optimismo ao acampamento lusitano. Luz
Rodrigues, impressionante de autodomínio e de capacidade de comando, ordena aos soldados que não
se dispersem, que poupem munições, que só façam fogo pela certa. De tronco em tronco, de espinheiro
em espinheiro, os homens recuam vagarosamente para o acampamento. Mil metros, dois mil metros, a
Chana A é ultrapassada e o minúsculo agrupamento embrenha-se de novo no arvoredo, acercando-se do
Cunene e da salvação.

À volta deste corpo de resistentes, a mata continua a enlear em armadilhas de morte centenas de
fugitivos desgarrados, exaustos e, em grande parte, já desarmados, que procuram esquivar-se à fúria de
bandos de cuamatos ávidos de luta e de vingança. Muitos dos soldados tentam encurtar os caminhos da
fuga, enfiando por atalhos em direcção ao rio. A maior parte vai meter-se na boca do lobo.
Sucumbem mais oficiais - os tenentes de cavalaria Francisco Resende e Alberto Temudo, o tenente
Matias Nunes e o alferes Albino Chalot, de infantaria.

Há cenas lancinantes. O alferes Correia da Silva, da 6.ª Companhia, e o doutor Silveira, que vêm feridos
às costas de soldados, são descobertos por guerreiros cuamatos e de imediato chacinados. O soldado
Ricardo Fernandes, que transportava o doutor, fica estendido, incólume, sob o cadáver deste, de onde só
sairá ao cair da noite para uma fuga sobressaltada até ao Humbe.

O tenente António da Trindade e o capitão Morais, conduzidos em macas, numa correria desenfreada,
por enfermeiros espavoridos, são repentinamente depositados no chão e abandonados à sua sorte,
quando uma onda de guerreiros se arremessa sobre eles. Trindade, indefeso, com os movimentos
impedidos pela perna fracturada, é liquidado sem demora. Morais, por quem as asas da morte roçaram
várias vezes sem sucesso nesse dia, tem melhor sina: deparando com uma montada sem cavaleiro, que
deambula espantada pelo teatro da carnificina, apodera-se dela e logra escapulir-se a galope para fora
do alcance dos perseguidores.

Vêem-se outros cavaleiros na floresta, esgueirando-se por entre o arvoredo. Dão origem a episódios de
excruciante agonia, quando fugitivos desvairados se lhes agarram às pernas, implorando-lhes que os não
deixem ali. Mas os cavaleiros seguem adiante, porque, como escreverá Gomes da Costa sobre esse dia
terrível, a besta humana, espicaçada pelo instinto de conservação, atirou ao ar com todas as
conveniências.

A vitória de Igura adquire proporções inimagináveis há poucas horas.

A dado passo, os Cuamatos conseguem importantes troféus de guerra, quando, depois de abatido o
gado de tracção e debelada a resistência das guarnições, se apoderam das duas peças de artilharia.

Quantos soldados perderam já a vida? Cinquenta, cem, duzentos. Mas o número continua a avolumar-se,
escorrem torrentes de sangue pelos matagais de Mucohimo.

E, contudo, mergulhado neste paroxismo de horror e morte, o grupo do tenente Luz Rodrigues prosse-
gue, com disciplina inabalável, a sua extraordinária retirada. Está a poucas centenas de metros da orla da
mata, de onde poderão já divisar-se as instalações amigas do Pembe. Luz Rodrigues e os companheiros
não sabem - nem podem prever - que será justamente do lado dos seus irmãos de armas que virá até
eles a mais temível das ameaças.
Pouco antes das nove e meia da manhã, quando assomam à beira da floresta os primeiros fugitivos,
desce sobre o acampamento do Pembe um véu de assombro. Alguns homens aparecem a cavalo,
esbracejantes, numa confusão de gritos, até que começam a distinguir-se na distância os seus clamores:
Tudo morto! Eles aí vêm!

Aguiar, fulminado, não quer crer nos seus olhos. Irrompem da floresta outros fugitivos, brancos e negros,
muitos deles banhados em sangue, soltando brados de arrepiar. Tudo derrotado! Tudo morto!

O governador, de cabeça perdida, monta a cavalo e rompe numa galopada furiosa rumo ao arvoredo.
Recobrando alguma presença de espírito, refreia a corrida, vacila, acaba por regressar ao acampamento.
Aqui, à medida que as tropas se vão apercebendo da magnitude do desastre, instala-se a mais profunda
das estupefacções.

Chegam mais fugitivos, informam que na mata há ainda forças portuguesas assediadas pelo inimigo.

No ângulo sueste do quadrado, o alferes Mendes Abóbora abre repentinamente fogo de artilharia na di-
recção do arvoredo. Uma, duas granadas assobiam no espaço, sobrevoam larga extensão de floresta, vão
explodir muito para além da extremidade desta. A intenção consiste em interpor uma cortina de fogo
entre os Cuamatos e os eventuais fugitivos. A verdade, porém, é que esta barragem de artilharia se faz
estranhamente às cegas, sem alvos à vista.

Mais tarde, Abóbora afiançará a pés juntos que foi Aguiar quem lhe deu ordem para disparar, o que o
comandante negará com idêntica veemência. Seja como for, do quadrado parte agora uma terceira gra-
nada: devido a um problema de alça ou a qualquer deficiência da carga, o projéctil efectua uma viagem
muito mais curta do que os anteriores e explode junto à orla da mata de Mucohimo.

Assim que se ouvem os primeiros estrondos da artilharia, os Cuamatos suspendem a perseguição ao


grupo do tenente Luz Rodrigues e buscam pressurosamente abrigo em posições mais recuadas. Todavia,
vários portugueses sentem também as vidas em perigo devido à metralha. Um deles é o soldado António
Exposto, da Bateria Mista de Artilharia, a que pertenceu também o malogrado Pinto de Almeida.

Exposto está prestes a culminar uma longa fuga isolada pela floresta da morte. A dado passo, já muito
próximo das saídas da mata, é atacado por um grupo de cuamatos, que o prostram com uma série de
golpes. O soldado resvala por uma baixa do terreno, supõe chegados os seus últimos momentos, resolve
fingir-se morto. Os Cuamatos desarmam-no, subtraem-lhe as munições, mas deixam-no em paz quando
se ouvem as primeiras explosões de artilharia. Exposto compreende o que se passa, cola-se ao solo,
encolhe-se, apresta-se uma vez mais para entregar a alma ao Criador. Pensa: Já que me não mataram os
pretos, matam-me os brancos. Milagrosamente, conseguirá sair ileso daquele inferno.

Quem luta também por livrar-se o mais rapidamente possível das armadilhas de Mucohimo é Luz
Rodrigues, com o seu grupo disciplinado.

Por uns segundos a esperança converte-se em certeza, já se avistam as saídas, a segurança acha-se a
dois passos. O tenente apressa os homens.

De súbito, dispara-se do quadrado a terceira granada.

Há um uivo longo nos ares, um estampido brutal, um coro de gritos e gemidos. O rebentamento
produziu-se, com diabólica precisão, no seio da pequena força que lograra transpor, quase incólume,
cerca de uma légua de perigos mortais.

Agora, a aventura findou. Imóveis, esfacelados, espalham-se em redor do lugar da explosão os cadáveres
de vinte e dois soldados portugueses e dos alferes Joaquim Rodrigues e Santos Nunes. Perdeu também a
vida o oficial que brilhantemente os conduziu até à beira da salvação: o tenente Luz Rodrigues jaz
estendido, mutilado, o rosto enegrecido, com escoriações no braço que estava erguido numa posição de
defesa da cabeça.

Na floresta, entre os escassos sobreviventes do grupo, reinam o espanto, a dor e a cólera. Cobertos de
ferimentos, aturdidos, cambaleantes, galgam os derradeiros metros de arvoredo, surgem junto à orla e
gesticulam, terríveis, na direcção do acampamento: Ai, cães, que nos mataram!

No entrincheiramento do Pembe, ante as proporções da catástrofe, a confusão e o pânico são neste


momento generalizados. Aguiar, esmorecido, ultrapassado, assiste à chegada de bandos tresmalhados
de sobreviventes, que espalham histórias de horror entre os seus camaradas. Contam-se dezenas de
feridos: o espectáculo que oferecia o hospital de sangue era de molde a incutir pavor em ânimos des-
prevenidos. São recuperados alguns cadáveres, poucos, apenas os que se encontram caídos mais perto
da borda da mata, como o tenente Luz Rodrigues, o alferes Joaquim Rodrigues e meia dúzia de soldados.
Aguiar hesita. Ele teme, acima de tudo, que os lengas se decidam a explorar o seu estrondoso sucesso: O
inimigo era inquestionavelmente valente e ousado e mais o seria depois da vitória.

O comandante vislumbra enfim o pretexto para a retirada por que parecera aguardar durante seis longos
dias junto da margem do rio. E explica-se: As notícias aterradoras que as praças poupadas pelo desastre
traziam para o acampamento, a sua excitação perante os acontecimentos, a vista dos mortos e feridos,
causaram indubitavelmente um abatimento moral nas forças da coluna. O pânico e o pavor são con-
tagiosos. Manda então que se retroceda para o forte do Humbe. Embora não dê conta disso, a sua sorte
à testa da expedição chega a estar por um fio, quando o corpo de oficiais, dominado pela revolta, pensa
em destituí-lo para o substituir pelo capitão Gomes da Costa. Este, de cabeça fria, recusa tomar o co-
mando: Não tomei oficialmente, porque era inútil; mas ordenei tudo, sem que o comandante me fosse à
mão; pelo contrário.

A retirada inicia-se pouco depois do meio-dia. Os Cuamatos, sempre protegidos pelo arvoredo,
contentam-se com disparos soltos sobre as tropas em fuga. Os Portugueses reagem a tiros de canhão.
Tudo sem consequências de parte a parte. Com a morte na alma, os soldados voltam a transpor o rio
com o pesado equipamento e percorrem lentamente a estrada que leva ao forte: Durante a marcha,
observámos a passagem, a grande altura, das aves de rapina, que se encaminhavam para o campo do
massacre, e ouvimos os gritos festivos das hienas e de outros carnívoros.

Para trás, nos tenebrosos labirintos de Mucohimo, fica o quadro horrendo da formidável derrota dos
Portugueses, a maior e mais trágica que alguma vez lhes foi imposta na África Negra. Há cadáveres por
todos os recantos da floresta, num espaço de vários quilómetros. Inebriados pela vitória, os lengas
esquadrinham detidamente com as suas etangas os locais da batalha. As montadas que trotam sem
rumo são capturadas, alguns feridos recebem o golpe de misericórdia.

Os guerreiros de Igura não se cansam de contemplar a cena, que documenta o mais retumbante triunfo
da sua história. Passam pelos corpos dos irmãos-inimigos, os soldados da 6.ª e da 16.ª Companhias
Indígenas, que aceitaram envergar as fardas dos invasores para trazerem a guerra às terras livres dos
Ambós: com desprezo, desapossam-nos do calçado e das roupas. Exactamente como fazem aos brancos,
que estão agora nus, lívidos e ensanguentados, os olhos vítreos, os crânios esmigalhados pelas mocas.

Dos dezanove oficiais empenhados no reconhecimento fatídico, sobreviveram, apenas, três - o capitão
Morais e os alferes Pais Oliveira e Vendeirinho. O número de mortos eleva-se a cerca de três centenas -
cento e onze europeus, cento e trinta e nove soldados africanos e um número indeterminado de auxi-
liares humbes. Cinco em cada dez dos homens levados por Pinto de Almeida à armadilha da Chana B não
vão responder à chamada no forte do Humbe. Vieram combatentes de diversos cantos do império
lusitano para experimentarem a gelidez da morte nas imediações das águas tépidas do Cunene.

Vêem-se cadáveres de Angola, dos Açores, de Goa, de Macau. E da metrópole portuguesa, naturalmen-
te. Está ali o que resta dos soldados Sebastião Coimbra, de Braga, Narciso do Sacramento, de Chaves,
Joaquim de Sousa Carvalho, do Porto, Germano de Jesus, de Pombal. Corpos retalhados, remexidos, à
mercê da alegria e da cobiça dos vencedores.

Estão o cabo António Simões Lopes, de Figueiró dos Vinhos, o soldado Joaquim Fialho Pinto, de Évora, o
primeiro-sargento José Augusto Carrajola, de Elvas, o soldado Joaquim Damião José, de Faro. Não
tardará a haver pesar e pranto em Vinhais, em Curral de Vacas, em Sande, na Várzea de Santarém, em
Gondar, no Rosmaninhal, em Aguiar da Beira, na Sertã - em tantos e tantos outros recônditos lugares do
pequeno, aventuroso e trágico Portugal.

Mas, por enquanto, na floresta de Mucohimo, a hora é apenas dos guerreiros cuamatos.

As etangas empreendem o regresso às ombalas de Mogogo e Nalueque, entoando alegres cânticos de


vitória. Os jovens e destemidos guerreiros trazem consigo as peças de artilharia conquistadas, centenas
de outros troféus de guerra e um único prisioneiro - o auxiliar negro que serviu de intérprete aos
invasores. Permitiram-lhe que andasse com eles pelos sítios da batalha e deixarão que testemunhe as
suas comemorações, após o que lhe concederão a liberdade para ir contar aos Portugueses como fora
inexcedível a bravura dos Cuamatos e esmagadora a sua vitória.

No campo da luta começam entretanto a apodrecer os mártires negros e brancos de um império insólito.
Por ali ficarão, abandonados ao tempo e às feras, até restarem apenas ossadas dispersas.

No Humbe, entre os Portugueses, imperam o desalento e o caos. Gomes da Costa: O comando manda
pôr os feridos na residência e entrincheira-se na fortaleza. Os feridos ao abandono!... Tudo em confusão:
homens, animais e material! (...) Este capitão Aguiar demonstra dia a dia a sua inépcia.

Não obstante o mau juízo que fazem dele, o comandante terá um lampejo de energia e lucidez quando
se opuser à evacuação do forte e à retirada para noroeste, em direcção ao Lubango, como pretendiam os
oficiais.

Com isso, Aguiar salva para os Portugueses a chave do acesso ao além-Cunene, evitando a derrocada das
posições planálticas. No resto, vive-se a penosa tomada de consciência da esmagadora dimensão do
desastre. Trocam-se telegramas apressados, nervosos, cheios de ansiedade. De Aguiar para o
governador Custódio Borja, deste para o ministro do Ultramar, do ministro para Borja.

Aguiar, logo no dia 25: Maior sentimento participar v. ex.ª que coluna a que mandei fazer um
reconhecimento ofensivo derrotada completamente porque a atacaram em grande número.

E no dia 26: Abatimento moral que desastre produziu entre tropa foi grande. Não se pode contar com ela
para entrar novamente em operações.

Borja fica ciente e vê confirmados os seus mais negros presságios. Informa o ministro do Ultramar - e de
imediato se abatem, sobre Portugal inteiro, o assombro, as lágrimas e o luto.

Do ministro para Borja: Queira v. ex.ª comunicar comandante coluna que lamento profundamente
desastre, mas que sorte das armas está sujeita a estas eventualidades e outros países as têm tido.

Borja dá notícia a Aguiar dos sentimentos do ministro. No Humbe, isto representa um débil lenitivo para
os sobreviventes, que procuram exorcizar os seus fantasmas através de tocantes cerimoniais fúnebres.
Amortalham em serapilheiras o tenente Luz Rodrigues e os outros cadáveres recolhidos, e, por entre as
descargas da ordem, fazem-nos baixar à terra madrasta e quente do Humbe. O que sobrou da coluna
ajoelha, muitos dos soldados choram, Gomes da Costa vocifera oratórias heróicas diante das sepulturas:

Soldados! O ideal, a consolação suprema e o último desejo do soldado que não pôde vencer é uma bala
inimiga na testa e um palmo de terra a cobri-lo para sempre! (...) O soldado não vence quando quer, mas
sempre que pode! Se, porém, ao lutar cai vencido, ao morrer só quer uma coisa: quer que o vinguem!

Despojos da força portuguesa derrotada no Pembe (recuperados em 1907 no Cuamato Pequeno)

Lisboa, um ano depois. No dia 25 de Setembro de 1905 fica a saber-se, por uma certa página do
prestigioso jornal O Século, que o tempo se conserva brusco e que os aguaceiros transformaram as ruas
em lodaçais tristes, afastando delas a cor e a animação do costume. Não houve, por isso, músicas nos
passeios.

Há informação de que em Sintra se pensa numa manifestação de simpatia à rainha Amélia, por ocasião
da sua retirada da vila.

Em Cascais, devido à violência do temporal, não puderam realizar-se as regatas previstas.

Na Covilhã, um matador de porcos dementado por ciúmes atacou a esposa com a faca do ofício.
O conselheiro João Franco, ilustre chefe do partido regenerador-liberal, partirá com a mulher e o filho,
no comboio das nove e meia da noite, para a sua casa do Alcaide.

A cultura de cana sacarina prospera na província de Moçambique e vão de vento em popa as obras do
porto de Lourenço Marques.

Naufragou no Amazonas o vapor Cyril, abalroado pelo Anselm por imperícia dos práticos.

A página do jornal informa ainda que se recorda em Portugal, nesse dia 25, um funesto acontecimento:

É hoje dia de luto nacional e mui principalmente para as armas portuguesas, por passar o primeiro
aniversário do trágico massacre das nossas forças na margem esquerda do Cunene (...). Atacados de
surpresa por forças cuamatas muito superiores, não temendo a aventura perigosa que se ia travar, mal
imaginando o seu fim tenebroso, oficiais e praças, numa comunhão de pensamento, somente se
lembraram de que, ali, no interior do sertão, representavam a honra do País, que deviam conservar
imaculada, e o nome português, que tinham de levantar bem alto.

.Na mesma página de O Século, na parte reservada aos sufrágios, podia ainda ler-se uma comunicação
lacónica: Amanhã, pelas 11 horas da manhã, na igreja dos Mártires, rezar-se-á uma missa por alma do
tenente Luz Rodrigues, outra vítima da catástrofe, missa a que tencionam assistir os oficiais do batalhão
de caçadores de el-rei, a que o desditoso extinto pertenceu. (...)".

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