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O Vale do Paraíba e o Império do Brasil

nos quadros da Segunda Escravidão


Mariana Muaze | Ricardo Salles Org.

O Vale do Paraíba e o Império do Brasil


nos quadros da Segunda Escravidão
© 2015 Mariana Muaze e Ricardo Salles Sumário
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação Editorial
Isadora Travassos Introdução11

Produção Editorial
Parte I
Eduardo Süssekind
Rodrigo Fontoura interpretações e grandes questões
Victoria Rabello sobre a bacia do paraíba
Revisão
O Vale do Paraíba escravista
Carolina Lopes
e a formação do mercado mundial do café no século XIX21
Imagem da capa Rafael Marquese
Charles Ribeyrolles, Brazil Pittoresco
Dale Tomich
cip-brasil. catalogação na publicação Novas considerações sobre o Vale do Paraíba e
sindicato nacional dos editores de livros, rj
a dinâmica imperial 57
V243 Mariana Muaze
O Vale do Paraíba e o império do Brasil nos quadros da segunda escravidão / organização Mariana
Muaze, Ricardo Salles. - 1. ed. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2015. A cartografia do poder senhorial:
cafeicultura, escravidão e formação
isbn 978-85-421-0368-7 do Estado nacional brasileiro, 1822-1848 100
1. Paraíba do Sul, Rio, Vale - História. 2. Escravidão - Brasil - História. I. Muaze, Mariana. Rafael Marquese
II. Salles, Ricardo. Ricardo Salles
15-26215 cdd: 981.5
cdu: 94(815) Vale expandido: contrabando negreiro, consenso
e regime representativo no Império do Brasil 130
Imagem da capa: Ribeyrolles, Charles, 1812-1860. Brazil Pittoresco: album de vistas, panoramas, mo- Alain El Youssef
numentos.... [gravura 18]. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_icono-
grafia/icon1113654/icon1113654_20.jpg. Acesso em 18/9/2015. (Acervo: Fundação Biblioteca Nacional,
Bruno Fabris Estefanes
Brasil, impressa sob permissão) Tâmis Parron
Imagem da página 101: © Acervo Arquivo Nacional, ref: BR RJANRIO 4Y.0.MAP.50, impressa sob permissão.
Imagem da página 114: © Acervo Fundação Biblioteca Nacional, Brasil, impressa sob permissão.
Parte II
Imagem da página 161: © Acervo Biblioteca Nacional de Portugal, impressa sob permissão.
população e sociedade
2015
Viveiros de Castro Editora Ltda.
O paradigma da extinção:
Rua Visconde de Pirajá, 580 – sl. 320 – Ipanema desaparecimento dos índios puris
Rio de Janeiro – rj – cep 22420-902 em Campo Alegre, sul do Vale do Paraíba 159
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br – www.7letras.com.br Enio Sebastião Cardoso de Oliveira
Da colonização do Vale à formação de uma família: Parte III
uma introdução à história dos Werneck capital, economia e finanças
e suas estratégias matrimoniais 176
Lucas Gesta Palmares Munhoz de Paiva Terra, comércio e comerciantes na vila cafeeira de Piraí  419
Vladimir Honorato de Paula
A morte do barão de Guaribu.
Ou o fio da meada 197 “Associação de capitalistas” ou “Associação de proprietários”:
Ricardo Salles o Banco Commercial e Agrícola no Império do Brasil,
Magno Fonseca Borges um banco comercial e emissor no Vale do Paraíba (1858-1862) 436
Carlos Gabriel Guimarães
Suspeitos, transeuntes, impermanentes: personagens liminares
e a dinâmica social em um microcosmo do Império 242 Modernidade, ordem e civilização: a companhia Estrada de Ferro
Camilla Agostini D. Pedro II no contexto da direção Saquarema 477
Magno Fonseca Borges
“Tirando leite de pedra”: Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro Marinho
o tráfico africano estimado a partir de dados etários  259
Heitor P. de Moura Filho Terras, escravos, açúcar, café, ferrovias e bancos
em Campos dos Goytacazes: o rol dos negócios de
A força da escravidão ao sul do Rio de Janeiro: Saturnino Braga no século XIX501
Os complexos de fazendas e a demografia escrava Walter Luiz Carneiro de Mattos Pereira
no Vale cafeeiro na segunda metade do oitocentos 302
Thiago Campos Tortuosos caminhos: obras públicas provinciais e
o difícil escoamento das mercadorias de Cantagalo,
A formação da cafeicultura em Bananal, 1790-1830 328 Campos dos Goytacazes e Macaé para o Rio de Janeiro
Breno Aparecido Servidone Moreno (século XIX)524
Ana Lucia Nunes Penha
Laços cativos: uma análise demográfica da família escrava
no plantel de Luciano José de Almeida, Bananal 1854-1882 351 Crédito e finanças no desenvolvimento da economia cafeeira
Camila dos Santos em Vassouras, Vale do Paraíba fluminense, durante o século XIX 545
Rabib Floriano Antonio
O espaço disciplinar escravista das fazendas cafeeiras
e a resistência escrava: Vale do Paraíba, século XIX371
Sobre os autores 571
Marco Aurélio dos Santos

Para matar a liberdade seria preciso fazer desaparecer


a humanidade: o jornal abolicionista 25 de Março
em Campos dos Goytacazes 392
Tanize do Couto Costa Monnerat
Em homenagem a Barbara (in memoriam) Stanley Stein
Introdução

Uma ideia perpassa todos os capítulos dessa obra e preside sua elaboração:
a de que a região do Vale do Paraíba e de suas áreas adjacentes nas provín-
cias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, organizadas em torno
da escravidão, da grande propriedade rural, da produção e exportação do
café, foram centrais na conformação socioeconômica, política e cultural do
Império do Brasil. A ideia não é nova e na época mesmo já circulava o dito
de que “o Império é o café. E o café é o Vale”.
Do ponto de vista da historiografia, o café, a escravidão e o Vale cons-
tituíram-se, desde as décadas de 1920 e 1930, em foco de importantes tra-
balhos, dentre os quais se destaca a monumental História do café no Brasil,
de Afonso Taunay.1 Nos anos 1950, o assunto foi revisitado por Alberto
Lamego, logo seguido, em 1957, pelo clássico Vassouras, fruto das pesquisas
que Stanley Stein desenvolveu na região em fins dos anos 1940.2 O livro de
Stein, tratando da questão da grande propriedade rural exportadora e das
relações entre senhores e escravos por ela engendradas, permanece insu-
perável, ultrapassando todos os modismos historiográficos que se segui-
ram. Ele foi ainda inspiração direta para o trabalho de outro historiador
norte-americano, agora já um brasilianista, Warren Dean, com o seu Rio
Claro, publicado em inglês em 1976 e, no ano seguinte, em português, que
igualmente aborda os temas da monocultura de exportação, da grande pro-
priedade e da escravidão em uma região fronteiriça entre o velho e o novo
1 Em 1927, por ocasião da Exposição do Bicentenário do Café no Brasil, o periódico O Jornal, do Rio
de Janeiro, publicou um suplemento dedicado ao evento. Mais tarde, esse material foi reunido e
publicado em livro pelo Departamento Nacional do Café, com o título O café no segundo centenário
de sua introdução no Brasil, em dois volumes (Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Café,
1934). Em 1929, por sua vez, Afonso d’Escragnolle Taunay iniciou a publicação, da História do café
no Brasil, em 11 volumes, que só se encerraria em 1941, também patrocinada pelo Departamento
Nacional do Café (Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Café, 1929-1941).
2 LAMEGO, Alberto. O homem e a serra. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística, 1950; STEIN, Stanley. Vassouras: a Brazilian coffee county, 1850-1900.
Cambridge, MA: Harvard University Press, 1957 (primeira edição brasileira, com o título Grandeza
e decadência do café no Vale do Paraíba. São Paulo: Brasiliense, 1961. Última edição brasileira com o
título Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990).

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oeste paulista.3 Finalmente, cabe destacar, para a década de 1960, os livros Outros capítulos, no entanto, recolocam a discussão ampla sobre o Vale e
de Emília Viotti da Costa, Da senzala à colônia, de 1966, que, tratando da seu significado em sua conformação com o mundo do Império do Brasil.
cafeicultura escravista brasileira, em especial em seu momento de crise, Tanto em um caso quanto no outro, entretanto, esse livro é, ao mesmo
não deixou de conferir importância ao Vale do Paraíba, e Homens livres na tempo, fonte e resultado de um trabalho coletivo de discussão e pesquisa
ordem escravocrata, de Maria Sylvia Carvalho Franco, de 1969, analisando a que diversos pesquisadores e estudiosos têm desenvolvido sobre o Vale
população livre e pobre com foco no município de Guaratinguetá.4 nos últimos dez ou quinze anos. Nesse sentido, ele visa reunir e divulgar
Desde então, o Vale oitocentista e suas regiões circunvizinhas nunca uma série de trabalhos que se somam na recomposição do papel do Vale do
deixaram de ser frequentados pela historiografia. Nesse mesmo período, Paraíba no século XIX brasileiro.
incrementaram-se a profissionalização e a expansão do campo da História, Esse papel diz respeito, antes de tudo, à relação do Vale com a constru-
com ênfase na pesquisa arquivística e na elaboração de dissertações e teses ção e consolidação do Estado nacional. Mais uma vez, o tema não é novo,
de mestrado e doutorado, e novas abordagens tiveram grande impacto ainda que tenha perdido terreno na nova historiografia brasileira. José
entre os historiadores. O resultado da combinação desses dois processos Murilo de Carvalho, em A construção da ordem (1980) e Teatro de som-
tem sido a redução do escopo e do foco das pesquisas, até mesmo para tor- bras (1988), que afirma a autonomia do projeto da elite política imperial
ná-las viáveis nos prazos estabelecidos pelos programas de pós-graduação. frente aos grandes proprietários rurais, não deixa de reconhecer, insuficien-
Teses, dissertações, monografias, muitas delas publicadas, livros e artigos temente a nosso ver, uma “dialética da ambiguidade” que marcaria a rela-
passaram a tratar prioritariamente de temas como as famílias escravas, a ção do Estado com esses grandes proprietários.5 Outros dois clássicos da
constituição de identidades afro-brasileiras, as formas de resistência das história política do Brasil Império assinalaram a importância da expansão
populações cativas, o papel social, econômico e político de pequenos pro- cafeeira escravista pelo Vale no processo de construção do Estado nacional:
prietários, produtores ou da população livre e pobre, a constituição das As tropas da moderação, de autoria de Alcir Lenharo, publicado em 1976,6
fortunas, a agricultura de subsistência e inúmeros outros assuntos. Esses e O Tempo Saquarema, de Ilmar Rohloff de Mattos, publicado em 1987.7 A
estudos derramaram-se sobre uma vasta dimensão territorial, cobrindo tese de Ilmar Mattos, da relação entre a cafeicultura escravista e o Estado
praticamente todos os recantos, comarcas e municípios do Império, inclu- imperial foi retomada, desta feita em seu momento de crise, por Ricardo
sive os do Vale do Paraíba. O Vale, considerado como um todo, tanto em Salles em Nostalgia imperial, de 1996.8 A temática do Vale do Paraíba e sua
sua especificidade regional quanto em sua articulação central com as confi- relação com a configuração política e socioeconômica do Império voltou à
gurações econômicas, sociais, políticas e culturais mais amplas do Império baila no livro de Jeffrey Needell, The Party of Order, publicado em 2006,9
do Brasil, contudo, deixou de ser objeto direto ou indireto da maioria des- e, mais recentemente, no livro de Tâmis Parron, A política da escravidão no
ses trabalhos. Isso aconteceu tanto por uma recusa, explícita ou implícita,
em buscar grandes temas e explicações, mesmo que a partir de abordagens
5 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro:
mais reduzidas, quanto pela escolha de estabelecer relações entre os traba- Campus, 1980; e Id. Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Vértice, 1988. Nas novas
lhos geograficamente focados e os temas acima elencados. edições as duas partes da tese vêm novamente unificadas.
O livro coletivo que o leitor tem em mãos é, em parte, fruto desse 6 LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil,
1808-1842. São Paulo: Símbolo, 1979.
processo. Alguns de seus capítulos abordam os temas acima mencionados
7 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo:
em localidades específicas do Vale do Paraíba e em regiões circunvizinhas. Hucitec, 1987.
8 SALLES, Ricardo. Nostalgia imperial: a formação da identidade nacional no Brasil do Segundo
3 DEAN, Warren. Rio Claro: a Brazilian plantation system, 1820-1920. Stanford: Stanford University Reinado. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. A segunda edição traz o título modificado para Nostalgia
Press, 1976. E em português Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. São imperial: escravidão e formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado (Rio de
Paulo: Paz e Terra, 1977. Janeiro: Ponteio, 2013).
4 COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: DIFEL, 1966; FRANCO, Maria Sylvia 9 NEEDELL, Jeffrey. The Party of Order: the conservatives, the State, and slavery in the Brazilian
Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: IEB, 1969. Monarchy, 1831-1871. Stanford: Stanford University Press, 2006.

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Império do Brasil, de 2011.10 A centralidade do Vale do Paraíba na formação A noção de Bacia do Paraíba, acima esboçada, que atravessa, explícita
do Império foi ainda tematizada por Mariana Muaze, em As memórias da ou implicitamente, diversos dos capítulos desse livro, estruturou-se, his-
viscondessa, e por Ricardo Salles, em E o Vale era o escravo, ambos de 2008.11 tórica e conceitualmente, em torno da escravidão. Não apenas a escravi-
Uma primeira questão que surge quando se busca entender o Vale do dão remanescente do regime colonial, mas uma escravidão em interação
Paraíba no século XIX brasileiro diz respeito à “definição” do que vinha a ser com a construção de Estados nacionais e com a expansão internacional
essa região. O Vale do Paraíba, de um ponto de vista estritamente geográfico, do mercado capitalista. Uma Segunda Escravidão, de acordo com o con-
compreende as terras banhadas pelo Rio Paraíba do Sul na parte leste do atual ceito cunhado pelo historiador norte-americano Dale Tomich, igualmente
estado de São Paulo e oeste do Rio de Janeiro. Entretanto, já para os contem- presente como fonte de inspiração e de debate nessa obra. Essa Segunda
porâneos do século XIX, a denominação carregava outros significados: café, Escravidão se expandiu, exatamente no momento em que a escravidão
grandes propriedades e proprietários rurais e escravidão. Mais ainda, a região colonial era abolida, pela Revolução Haitiana, e por guerras e reformas
era percebida como esteio econômico do Império e o locus de sua classe domi- em outras regiões americanas. Ela alimentou e, ao mesmo tempo, derivou
nante. Nenhuma outra região, ao longo do Segundo Reinado, foi berço de tan- de um conjunto de tendências e acontecimentos históricos, na virada do
tos títulos nobiliárquicos quanto o Vale. Essa simples designação, aliás, já era século XVIII para o XIX, cujo epicentro foi a Revolução Industrial e a conso-
suficiente para passar a ideia de uma região que compreendia muito mais que lidação da hegemonia britânica no plano internacional. Esses acontecimen-
sua inscrição geográfica. Nessa área, historicamente construída, as relações tos e processos levaram a reconfigurações profundas no mercado mundial,
políticas, econômicas, sociais e culturais emprenharam de significados o aci- acarretando um crescente desequilíbrio nos preços internacionais entre
dente geográfico que lhe servia de base territorial.12 Econômica e socialmente, produtos industrializados e agrícolas; o incremento do consumo de deter-
esse Vale se estendia para o conjunto da província do Rio de Janeiro, para o minados produtos, como o café e o açúcar, demandados pelo aumento da
Oeste Velho paulista e para a Zona da Mata mineira. Ele ainda alimentava eco- população de trabalhadores e da classe média nas cidades da Inglaterra e da
nomicamente o porto e a praça do Rio de Janeiro, e, política e culturalmente,
Europa; a procura por novas matérias-primas, como o algodão. Em regiões
estava em estreita simbiose com a Corte imperial. Por isso, seguindo Orlando
como Cuba, o sul dos Estados Unidos e o Brasil, a escravidão expandiu-se
Valverde, talvez o mais correto fosse falar em Bacia do Paraíba, região que
numa escala maciça para atender a essa crescente demanda mundial por
compreenderia todas essas áreas e suas configurações socioeconômicas.13
essas commodities. Dessa forma, e ainda de acordo com Tomich, a Segunda
Escravidão não seria uma premissa histórica do capitalismo, pressupondo,
10 PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011. Pelo menos três outros trabalhos recentes trataram da política imperial bus-
ao contrário, sua existência como condição para sua reprodução.14
cando afastar-se ou mesmo criticar as teses clássicas de Ilmar Rohloff de Mattos e José Murilo de O terceiro conceito histórico que anima muitas das discussões travadas
Carvalho: DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: neste livro é o de classe senhorial. A noção, elaborada por Ilmar R. de Mattos,
Globo, 2005; MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre polí-
tica e elites a partir do Conselho de Estado – 1842-1889. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007; entende a classe senhorial como uma formação histórica particular que
GOUVÊA, Maria de Fátima. O Império das províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro: teve seus comportamento e valores moldados na escravidão, em particular
Record, 2008. Jeffrey Needell, em The Party of Order (já citado), por sua vez, critica a noção de
classe senhorial de Mattos, sem se deter na tese de Carvalho, ainda que o citando constantemente, naquela praticada no Vale do Paraíba, e em íntima conexão com a constru-
e adotando a terminologia de elite política para designar os dirigentes imperiais. ção do Estado e da ordem imperiais.15 A espinha dorsal da classe senhorial
11 MUAZE, Mariana. As memórias da viscondessa: família e poder no Brasil Império. Rio de Janeiro: foi constituída pelos grandes proprietários escravistas, notadamente aque-
Zahar, 2008; SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo: Vassouras, século XIX – senhores e escravos
no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. les da região da Bacia do Paraíba, e, em especial, por aqueles que detinham,
12 Para o conceito de região como construção histórica aplicado especificamente ao Vale do Paraíba às vezes, mais de uma centena de escravos. Eram os megaproprietários de
e, mais amplamente, à província fluminense como um todo, ver MATTOS, Ilmar R. de. O Tempo
Saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo: Hucitec, 1987. 14 TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp,
13 VALVERDE, Orlando. A fazenda escravocrata de café. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro: 2011. Sobre a Segunda Escravidão e o Vale do Paraíba, ver capítulo 1 adiante.
IBGE, v. 29, n. 1, p. 37-81, jan.-mar. 1967. 15 Ver MATTOS, 1987. Ver também SALLES, 2008; MUAZE e PARRON, 2011.

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cativos que, em conjunto com os grandes proprietários, possuidores de 50 nos espaços definidos pelas grandes propriedades rurais. A terceira e última
ou mais escravos, tinham o controle sobre mais de 70% do total da popu- parte, “Capital, economia e finanças”, composta por 6 capítulos, analisa as
lação cativa do Vale.16 Muitos desses megaproprietários eram proprietários relações e implicações financeiras derivadas da economia cafeeira, o papel
de várias fazendas e outros negócios, diretamente ligados ao ramo do café, da tecnologia, especialmente da ferrovia na manutenção da escravidão e da
como casas comissárias, por exemplo, além de ativos financeiros variados, ordem senhorial, o papel econômico e financeiro da Baixada Campista na
constituindo verdadeiros complexos cafeeiros.17 Constituíam-se em verda- conformação da região histórica da Bacia do Paraíba.
deiros potentados que, em alguns casos, estendiam suas redes de negócios Alguns dos capítulos que se seguem já foram anteriormente publicados
por mais de uma localidade e mesmo província. Entretanto, a classe senho- em revistas, livros e outros espaços de divulgação. Sua reunião no âmbito de
rial, associada à escravidão e à grande propriedade rural, não se formava uma mesma publicação, muitas vezes com modificações, visa salientar sua
apenas em seu fazer econômico. Formava-se, com todo um modo de vida, importância e complementaridade. Em sua maioria, tais trabalhos, inclu-
um habitus, entendido como formas de ser, sentir e agir não apenas reflexi- sive, se desenvolveram e se alimentaram mutuamente no âmbito de discus-
vas, coetâneo com o habitus aristocrático do mundo europeu do século XIX, sões e atividades coletivas que resultaram neste livro.
marcado, no entanto, pela ascensão da burguesia.18 Fruto desse movimento e esforço coletivos de pesquisa, o livro visa
Esses e outros conceitos históricos, bem como análises sobre temas e repor, direta ou indiretamente, a questão da centralidade do Vale do Paraíba
localidades específicas, serão apresentados e debatidos nas três partes em na configuração do Império do Brasil na agenda de debates historiográfi-
que se divide essa obra. A primeira, intitulada “Interpretações e grandes cos. Muito desse esforço foi realizado através de pesquisas individuais con-
questões sobre a Bacia do Paraíba”, está subdividida em quatro capítulos, duzidas nos âmbitos de diferentes departamentos e programas de pós-gra-
onde são apresentadas grandes linhas interpretativas sobre o Vale e seu duação, institutos de pesquisa, em instituições públicas e privadas, sediadas
papel na configuração socioeconômica e política do Império. A segunda nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e em Binghamton,
Nova York, nos Estados Unidos.19 Uma parte significativa dessa empreitada,
parte, “População e sociedade”, se estrutura em 10 capítulos que abordam
que sem dúvida reflete esse esforço individual disseminado por diferentes
questões como a ocupação do Vale e extermínio das populações indíge-
instituições, no entanto, resulta de trabalho coletivo que vem se desenvol-
nas que ali viviam, a formação da cafeicultura, o papel desempenhado por
vendo ao menos nos últimos cinco anos, tanto em nível regional no Brasil
aqueles que, sem serem senhores ou escravos, não obstante pontuavam
quanto em nível internacional em diferentes redes de pesquisas.
aquele mundo, o tráfico internacional de escravos para a região, a forma-
Historiar esse trabalho e os resultados expressivos obtidos até agora
ção de grandes complexos cafeeiros, as relações entre senhores e escravos
demandaria um capítulo à parte, o que foge ao escopo dessa introdução.
16 A ideia de megaproprietário está em: BORGES, Magno Fonseca. Protagonismo e sociabilidade escrava Cabe, contudo, nomear suas articulações e eventos mais significativos. Em
na implantação e ampliação da cultura cafeeira: Vassouras – 1821-1850. 2005. Dissertação (Mestrado
em História Social) – Departamento de História, Universidade Severino Sombra, Vassouras, 2005; primeiro lugar, vale mencionar o Seminário Internacional O Século XIX e as
e SALLES, op. cit. Para Vassouras, cf. SALLES, op. cit. e BORGES, op. cit. Para Bananal, ver MORENO, Novas Fronteiras da Escravidão, realizado no Rio de Janeiro e em Vassouras,
Breno A. S. Demografia e trabalho escravo nas propriedades rurais cafeeiras de Bananal, 1830-
1860. 2013. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências em agosto de 2009. Muitas das ideias debatidas aqui tiveram sua origem ou
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Pesquisas preliminares em Piraí indicam se ampliaram e consolidaram neste evento. Em segundo lugar, não poderia
igual ou maior grau de concentração da propriedade escravista.
deixar de constar o grupo internacional de pesquisadores articulados em
17 Para a ideia de complexo cafeeiro, ver os capítulos 2 e 9 adiante. João Fragoso e Ana Maria Lugão
Rios trabalharam também com a noção de fazendeiro capitalista, como aquele que diversificava torno da Second Slavery Research Network, que tem seu centro de animação
seus investimentos, ver FRAGOSO, João Luís; RIOS, Ana Maria L. Comendador Aguiar Vallim: um
empresário brasileiro dos oitocentos. In: CASTRO, Hebe Maria M. de; SCHNOOR, Eduardo (Org.). 19 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, Universidade Federal Fluminense
Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. – UFF, Universidade do Estado do rio de Janeiro – UERJ, Museu de Astronomia e Ciências Afins –
18 Sobre a marca aristocrática do habitus da classe senhorial, ver MUAZE, op. cit. Sobre o conceito de MAST, Universidade Severino Sombra – USS, Fundação Educacional Dom André Arcoverde – FAA,
habitus em geral, ver ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1995; e ELIAS, Universidade de São Paulo – USP, Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e Universidade
Norbert. O processo civilizador. São Paulo: Zahar, 1993. v. 2. (E volume 1 de 1994). Estadual de Nova York – SUNY.

16 17
no Fernand Braudel Center for the Study of Economies, Historical Systems,
and Civilizations, em Binghamton, EUA, e que conta com a participação
direta de alguns dos autores deste volume.
No entanto, a principal vertente formadora dos debates e ideias conti-
dos aqui é o Grupo de Pesquisas O Vale do Paraíba e a Segunda Escravidão,
que busca reunir, em seminários, simpósios, grupos de discussão e outras
formas de intercâmbio intelectual, pesquisadores e estudantes de diferen-
tes instituições que tenham por fio condutor ou pano de fundo de suas
pesquisas a região da Bacia do Paraíba do Sul no século XIX.20 O grupo PARTE I
vem promovendo seminários anuais desde 2010. O primeiro deles foi rea-
lizado em Vassouras, naquele mesmo ano; o segundo, em Bananal, no ano Interpretações e grandes questões sobre a Bacia do Paraíba
seguinte; o terceiro, novamente em Vassouras, em 2013; e o último, em 2014,
novamente nesta cidade. Estes dois últimos eventos foram promovidos no
âmbito do projeto de pesquisa “O Vale do Paraíba no século XIX e nas pri-
meiras décadas da República”, apoiado pela FAPERJ em seu Programa de
Apoio a Núcleos Emergentes – PRONEM, em sua edição de 2011.21 Membros
do grupo organizaram e participaram ainda de um simpósio temático no
Encontro Regional da Associação Nacional dos Historiadores, seção Rio de
Janeiro – ANPUH-Rio, em 2012, e, novamente, no Encontro de 2014.
Assim, essa iniciativa é um ponto de chegada e, ao mesmo tempo, um
ponto de partida para novas pesquisas e interpretações da escravidão e seu
papel na ascensão e queda do Império do Brasil.

Mariana Muaze
Ricardo Salles
Dezembro de 2014

20 Em seu último seminário, realizado em maio de 2014, em Vassouras, o grupo resolveu ampliar
o escopo de suas atividades e pesquisas e passou a se chamar O Império do Brasil e a Segunda
Escravidão.
21 As instituições participantes do projeto são: UNIRIO, UFF, FCRB, USS, através do antigo Centro de
Documentação Histórica de Vassouras (CDH), a Prefeitura Municipal de Piraí, através de seu Arquivo
Histórico Municipal, e, agregando-se mais tarde, o Museu Casa da Hera, do IBRAM, em Vassouras.

18
O Vale do Paraíba escravista e a formação
do mercado mundial do café no século XIX1
Rafael Marquese
Dale Tomich

a montagem da cafeicultura brasileira na historiografia


Será de ora em diante o escudo de armas deste Reino do Brasil, em campo
verde uma esfera armilar de ouro atravessada por uma cruz da Ordem de
Cristo, sendo circulada a mesma esfera de 19 estrelas de prata em uma orla
azul; e firmada a coroa real diamantina sobre o escudo, cujos lados serão abra-
çados por dois ramos das plantas de café e tabaco, como emblemas da sua
riqueza comercial, representados na sua própria cor, e ligados na parte infe-
rior pelo laço da Nação.2

Essas palavras, firmadas por D. Pedro em 18 de setembro de 1822, estabe-


leciam o escudo de armas a ser gravado na bandeira do Estado nacional
recém-instituído. A letra do decreto expressava, antes de tudo, uma aposta
para o futuro. Naquela altura, ainda que suas exportações verificassem cres-
cimento acelerado há cerca de uma década, o café brasileiro estava longe de
ser um “emblema da riqueza nacional”. Se o escudo pretendesse efetivamente
traduzir o quadro econômico do novo Império, deveria trazer feixes de cana
de açúcar, fardos de algodão e um navio negreiro. A aposta embutida simbo-
licamente no decreto, no entanto, logo demonstraria ter sido certeira.
Com efeito, em 1828, o Brasil despontava como o maior produtor
mundial do artigo. Ao longo da década seguinte, os valores obtidos com
1 Uma versão anterior desse capítulo apareceu em GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.).
O Brasil Imperial: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. v. II, p. 339-383. Para a
presente edição, atualizamos a bibliografia e efetuamos algumas pequenas correções. O capítulo
foi originalmente escrito no âmbito do projeto coletivo “The world of the plantation and the world
the plantations made: the ‘great house tradition’ in the american landscape”, que contou com uma
Collaborative Research Grant da Getty Foundation entre 2005 e 2009.
2 D. PEDRO I, 1822 apud SCHWARCZ, Lilia Moritiz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca
nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 179.

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sua exportação ultrapassariam o que o país amealhava com o envio de à crise da mineração e à retomada das atividades agroexportadoras na
açúcar ao mercado mundial.3 Quase toda essa produção, ademais, vinha virada do século XVIII para o XIX. De acordo com essa interpretação, o
de uma única região. O vale do rio Paraíba do Sul, ou simplesmente Vale café, plenamente adequado às condições naturais do centro-sul do Brasil
do Paraíba, compreendendo terras das províncias de São Paulo, Rio de (terras virgens, clima, altitude, proximidade dos portos litorâneos), come-
Janeiro e Minas Gerais, passou por uma completa alteração no curso de çou a ser produzido em larga escala no momento que a demanda mundial
duas gerações. Relativamente desocupado em 1800, cinquenta anos depois aumentou, após a revolução escrava de Saint-Domingue e o arranque da
havia adquirido o caráter de típica região escravista de plantation. Algo industrialização nos países centrais, mobilizando, para tanto, os recursos
semelhante havia ocorrido em outros momentos e espaços na história do ociosos – capitais e escravos – derivados da crise da mineração.6 Em que
Brasil, como na Zona da Mata pernambucana e no Recôncavo Baiano na pesem as variações de ênfase, todos esses estudos se prenderam ao que
passagem do século XVI para o XVII, ou no Maranhão e em Campos dos Stuart Schwartz denominou como o “paradigma dependentista” de análise
Goitacases nas décadas finais do século XVIII. A escala do que se verificou do passado colonial brasileiro, ou seja, um modelo de interpretação que
no Vale do Paraíba na primeira metade do século XIX, contudo, foi inédita, ressaltava seu caráter escravista, agroexportador, voltado para a geração de
e, seu impacto para a conformação do Estado nacional brasileiro, decisivo. riquezas nos centros da economia mundial capitalista.7
Já se escreveu que, se a cafeicultura tivesse deitado raízes em outra região do Os esforços de revisão desse modelo promovidos a partir da década
território nacional e não nas proximidades da Corte, a história do Império de 1970, aliados à verificação empírica de que o estoque de mão de obra
bem poderia ter sido outra.4 Daí o dito oitocentista “o Brasil é o Vale”, com escrava empregada nos primeiros cafezais não era aquele das antigas zonas
larga carreira no senso comum e mesmo na historiografia. Mas não apenas de mineração, levou alguns historiadores a modificarem as lentes utilizadas
isso. Poder-se-ia igualmente afirmar que o café como produto de massa era para a análise da formação da cafeicultura brasileira. O foco, agora, passou
o Vale. Afora o completo domínio que o Brasil assumiu no mercado mun- a incidir sobre a dinâmica societária local. Um bom exemplo dessa perspec-
dial do artigo ao longo do século XIX, o volume inaudito de sua produção tiva é o trabalho de João Fragoso.8 Com base na constatação de que a expan-
foi central para a própria transformação da natureza daquele mercado, que são definitiva da produção escravista de café do Vale do Paraíba ocorreu em
passou das restrições ligadas ao consumo de luxo para a escala qualitativa- uma conjuntura de queda nos preços internacionais do artigo (1822-1830),
mente distinta do consumo de massa.5 Fragoso voltou sua análise para as formas de produção e de circulação
As articulações entre o mercado mundial e a montagem da cafeicul-
tura brasileira estiveram na pauta de investigação dos pesquisadores desde 6 Ver, a propósito, os trabalhos clássicos de SIMONSEN, Roberto. Aspectos da História econômica
do café. Separata de: Revista do Arquivo, São Paulo, 1940; PRADO JR., Caio. História econômica do
a década de 1940. Encarando a formação da cafeicultura como uma espécie Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.159-167. 1. ed. 1945; STEIN, Stanley J. Vassouras: um município
de “destino manifesto” do Brasil, os historiadores tenderam a relacioná-la brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. 1. ed. 1957; FURTADO, Celso.
Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1974. p. 110-116. 1. ed.
3 Todos os dados referentes à produção mundial de café citados neste capítulo – exceto quando 1959; VALVERDE, Orlando. A fazenda de café escravocrata no Brasil. In: ___. Estudos de geografia
fornecemos outra referência – foram retirados do cuidadoso apêndice preparado por Mario agrária brasileira. Petrópolis: Vozes, 1985. 1. ed. 1965; COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia.
Samper e Radin Fernando para o livro editado por William Gervase Clarence-Smith e Steven São Paulo: Brasiliense, 1989. 1. ed. 1966; CANABRAVA, Alice P. A grande lavoura.
Topik, The Global Coffee Economy in Africa, Asia, and Latin América, 1500-1989 (Cambridge, 7 Cf. SCHWARTZ, Stuart B. Da América portuguesa ao Brasil: estudos históricos. Lisboa: Difel, 2003.
UK: Cambridge University Press, 2003. p. 411-62). Os dados referentes aos valores relativos das
8 Cf. FRAGOSO, João. Comerciantes, fazendeiros e formas de acumulação em uma economia escravista-
exportações brasileiras podem ser vistos em PINTO, Virgílio Noya. Balanço das transformações
colonial: Rio de Janeiro, 1790-1888. 1990. 3 v. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências
econômicas no século XIX. In: MOTA, C. G. Brasil em perspectiva. São Paulo: Difusão Européia do
Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1990; FRAGOSO, João Luís Ribeiro.
Livro, 1968. p. 152; e CANABRAVA, Alice P. A grande lavoura. In; ___. História Econômica: estudos e
Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-
perspectivas. São Paulo: ABPHE: Hucitec: Ed. Unesp, 2005. p. 166. 1. ed. 1971.
1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992; FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo
4 Cf. DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo: como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial
Companhia das Letras, 1996. p. 195. tardia – Rio de Janeiro (c.1790-c.1840). Ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001;
5 Cf. TOPIK, Steven. The Integration of the World Coffee Market. In: CLARENCE-SMITH, W. G.; FRAGOSO, João. Barões do café e o sistema agrário escravista: Paraíba do Sul / Rio de Janeiro (1830-
TOPIK, S. (Org.). The Global Coffee Economy in Africa, Asia, and Latin América, 1500-1989, p. 21-49. 1888). Rio de Janeiro: 7Letras, 2013.

22 23
articuladas em torno da praça mercantil do Rio de Janeiro. Configurando É o que pretendemos fazer neste capítulo, que tratará do papel do Vale
um “mosaico de formas não-capitalistas de produção”, elas teriam permi- do Paraíba na formação do mercado mundial do café ao longo do século
tido a acumulação de capitais nas mãos dos grandes negociantes residentes XIX. Por um lado, a análise do quadro global partirá do pressuposto de que
no Rio de Janeiro, que monopolizavam o tráfico negreiro transatlântico e os espaços produtivos mundiais se formaram uns em relação aos outros. A
operavam no mercado interno. Esses capitais, por sua vez, teriam sido rein- unidade submetida à análise, por conseguinte, não serão as colônias ou os
vestidos em larga escala na produção escravista em zonas de fronteira, a países agro-exportadores tomados de forma isolada, mas sim a arena mais
despeito de sua lucratividade menor em relação às atividades mercantis. O ampla da economia-mundo. Isso é tanto mais premente para o caso dos
movimento todo seria impulsionado pelo ideal “arcaico” que conformava artigos tropicais: como iremos indicar no capítulo, os movimentos do café
o êthos senhorial-escravista, isto é, a posse de terras e homens como sinal e do açúcar guardaram uma estreita relação nos séculos XVIII e XIX. Por
decisivo de distinção social. Nas palavras de Fragoso, “no sistema abor- outro lado, a análise do quadro local levará em conta não apenas a com-
dado, o investimento na produção está subordinado a uma lógica que é a posição regional de terra, trabalho e capital, mas igualmente a dinâmica
da recorrência de uma dada estratificação assentada nas diferenças entre política, vale dizer, as relações entre fazendeiros, trabalhadores escraviza-
os grupos sociais, via prestígio”.9 Nada, portanto, de resposta às demandas dos e o Estado nacional. A formação da cafeicultura escravista brasileira
do mercado mundial: a cafeicultura escravista brasileira teria sido montada dependeu de ações políticas concertadas, no plano da esfera nacional, para
única e exclusivamente em razão das ações locais. criar as condições institucionais necessárias para o arranque da atividade
As inconsistências empíricas e teóricas do modelo de Fragoso – uma e o consequente controle do mercado mundial do artigo. Essas ações inci-
espécie de espelho invertido do “paradigma dependentista” – já foram diram fundamentalmente no campo da política da escravidão. O período
devidamente criticadas pelos historiadores.10 Em todas essas críticas, ou de montagem das grandes unidades cafeicultoras do Vale Paraíba avançou
mesmo nas interpretações mais recentes acerca do tema,11 os pesquisadores na fase de ilegalidade do tráfico negreiro transatlântico (1835-1850), com a
ressaltam a impossibilidade de compreender o processo de montagem da aquisição de escravarias que, de acordo com a lei imperial de 7 de novembro
cafeicultura escravista brasileira sem se remeter a processos globais mais de 1831, seriam formalmente livres. Sem a existência de um quadro interno
amplos, examinando suas interconexões com as condições locais. que desse segurança política e jurídica aos senhores possuidores de africa-
nos ilegalmente escravizados, certamente o Brasil não despejaria nos portos
e armazéns do hemisfério norte as sacas de café com as quais dominou o
9 FRAGOSO, 1992, p. 297. mercado mundial do produto no século XIX.
10 As críticas foram apresentadas, sobretudo, por GORENDER, Jacob., A escravidão reabilitada. São
Paulo: Ática, 1990. p. 81-83; SCHWARTZ, Stuart B. Somebodies and Nobodies in the Body Politic:
mentalities and social structures in colonial Brazil. Latin American Research Review, Albuquerque: a era das revoluções e os novos produtores
University of New Mexico Press, v. 31, n. 1, p. 113-134, 1996; MARIUTTI, Eduardo; NOGUERÓI, Luiz; na arena mundial, c.1790-1830
DENIELI NETO, Mario. Mercado interno colonial e grau de autonomia: crítica às propostas de João
Luís Ribeiro Fragoso e Manolo Florentino. Estudos Econômicos, São Paulo: Edusp, v. 31, n. 2, p. 369-
93, 2001; TEIXEIRA, Rodrigo Alves. Capital e colonização: a constituição da periferia do sistema
A despeito de o café ter sido, desde o século XVI, um dos mais valiosos
capitalista mundial. In: PIRES, Julio Manuel; COSTA, Iraci del Nero da (Org.). O capital escravista- bens agrícolas a entrar nos circuitos mercantis internacionais, os poderes
mercantil e a escravidão nas Américas. São Paulo: Educ, 2010. p. 195-199. Ver, também, MARQUESE, coloniais europeus demoraram a produzi-lo. Até fins do século XVII, os oto-
Rafael de Bivar. As desventuras de um conceito: capitalismo histórico e a historiografia sobre a
escravidão brasileira. Revista de Historia, São Paulo: USP, n. 169, p. 223-253, 2. sem. 2013. manos monopolizaram essa esfera.12 Os primeiros europeus a granjearem
11 Como, por exemplo, os trabalhos de LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert S. Evolução da
sociedade e economia escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: Edusp, 2005. p. 81-106; e 12 Cf. TUCHSCHERER, Michel. Coffee in the Red Sea Area From the Sixteenth to the Nineteenth
TOPIK, Steven; SAMPER, Mario. The Latin American Coffee Commodity Chain: Brazil and Costa Century. In: CLARENCE-SMITH, W. G.; TOPIK, S. (Org.). The Global Coffee Economy in Africa,
Rica. In: TOPIK, S.; MARICHAL, C.; FRANK, Z. (Org.). From Silver to Cocaine: Latin American Asia, and Latin América, 1500-1989, p. 50-66. Ver, também, o volume editado por esse historiador:
commodity chains and the building of the world economy, 1500-2000. Durham: Duke University TUCHSCHERER, Michel. Le commerce du café avant l’ ère des plantations coloniales. Le Caire: Institut
Press, 2006. p. 147-173. Français D’Archéologie Orientale, 2001.

24 25
o artigo foram os holandeses. Na década de 1690, a Companhia das Índias de poucos capitais.16 O sucesso econômico da cafeicultura acirrou, na década
Orientais (V.O.C.) implantou seu cultivo em Java, no que logo foi seguida de 1780, os conflitos entre esses grupos racialmente subalternos, mas endi-
pelos franceses em Reunión. Na década de 1720, quando o arbusto foi nheirados, e a população branca da colônia, vale dizer, os grandes empresá-
também aclimatado em colônias do Novo Mundo (Suriname, Martinica, rios açucareiros e os brancos pobres (petits blancs). Esse quadro altamente
Guadalupe), holandeses e franceses introduziram pela primeira vez quan- explosivo veio abaixo com os eventos revolucionários metropolitanos. A
tidades substantivas do gênero nos mercados metropolitanos. Até meados instituição da Assembleia Nacional em Paris, no ano de 1789, estimulou de
dos setecentos, contudo, o volume não foi vultoso em vista do que seria imediato os anseios autonomistas das classes senhoriais antilhanas. Ainda
obtido posteriormente: os holandeses não lograram produzir em Java mais no segundo semestre de 1789, os senhores das diversas ilhas francesas, nota-
do que 2.500 toneladas anuais, volume um pouco inferior ao que os france- damente os de Saint-Domingue, formaram Assembleias coloniais para lutar
ses obtinham na Martinica na década de 1750.13 por maior liberdade política e econômica. Entretanto, não foram apenas
O salto na produção a cargo dos europeus ocorreu após a Guerra dos Sete os proprietários escravistas brancos que se articularam para obter ganhos
Anos, em larga medida por conta da explosão cafeeira de Saint-Domingue. com a nova conjuntura política: os homens livres de cor, negros e mula-
As exportações dessa colônia pularam do patamar de cerca de 3.100 t, em tos, muitos dos quais lastreados nos recursos obtidos com o café, também
1755, para perto de 34.000 t, em 1790. Na última data, a produção dos fran- se mobilizaram, buscando ampliar seus direitos políticos. Os proprietários
ceses nas Antilhas e no Índico (Saint-Domingue, Martinica, Guadalupe, escravistas negros e mulatos exigiam em especial o direito de participação
Caiena, Reunión) somava cerca de 48.000 t, algo equivalente a 70 % do total nas eleições para a Assembleia colonial. O conflito entre negros e mulatos
do globo, estimado em 69.400 t. Como se vê, às vésperas da revolução, Saint- livres, por um lado, e brancos, por outro, acirrou-se durante o ano de 1790,
Domingue era, por si só, responsável por metade da produção mundial de distendendo-se logo em confronto aberto. Até meados de 1791, essas lutas
café, afora cerca de um terço da produção mundial de açúcar.14 Esse mercado, não comprometeram a economia escravista de Saint-Domingue. A grande
contudo, era relativamente restrito, limitado ao consumo de luxo das cama- virada veio em agosto deste ano: a impressionante revolta dos escravos da
das urbanas da Europa continental e do Levante Asiático.15 parte norte da colônia acabou de vez com o equilíbrio precário que vinha
O crescimento da cafeicultura em Saint-Domingue esteve no coração sendo mantido entre brancos e mulatos desde 1789.17
dos eventos que conduziram à revolução. Por razões técnicas e ecológicas, Não cabe aqui sumariar o processo revolucionário que levou, em janeiro
as terras inicialmente cultivadas com os pés de café foram aquelas que não de 1804, à proclamação do segundo Estado soberano do Novo Mundo.
eram empregadas na empresa açucareira, isto é, os outeiros – ou mornes ­– Importa que a Revolução do Haiti, no curso de seus quinze anos, além de
do interior da colônia, cuja geomorfologia impedia a formação de grandes ter acabado nos campos de batalha com a escravidão negra e assombrado os
unidades rurais. Com exigências iniciais de inversão bem menores que o poderes escravistas em todo hemisfério americano, alterou por completo a
açúcar, a atividade cafeeira oferecia uma via de acumulação de riqueza e configuração da oferta mundial de café e de açúcar. Mesmo que o primeiro
mobilidade social aberta aos pequenos e médios proprietários escravistas, artigo tenha continuado a ser cultivado – agora em bases camponesas – no
sobretudo ao número crescente de mulatos e negros livres que dispunham país recém-independente, ao contrário do abandono do açúcar,18 somente

13 Cf. MAY, Louis-Philippe. Histoire Économique de la Martinique (1635-1763). Fort-de-France: Société 16 Cf. TROUILLOT, Michel-Rolph. Motion in the System: coffee, color, and slavery in eighteenth-
de Distribution et de Culture, 1972. 1. ed. 1930. century Saint-Domingue; GIRAULT, Christian A. Girault. Le commerce du café en Haïti: habitants,
14 Cf. FERNÁNDEZ, Doria González. Acerca del mercado cafetelero cubano durante la primeira mitad spéculateurs et exportateurs. Paris: C.N.R.S., 1981. p. 55.
del siglo XIX. Revista de la Biblioteca Nacional José Martí, Habana, n. 2, p. 154, 1989; TROUILLOT, 17 A melhor análise recente da Revolução de Saint-Domingue está no livro de DUBOIS, Laurent.
Michel-Rolph. Motion in the System: coffee, color, and slavery in eighteenth-century Saint- Avangers of the New World: the story of the Haitian Revolution. Cambridge, MA: Harvard University
Domingue. Review, New York: Research Foundation of SUNY, v. 5, n. 3, p. 337, Winter 1982. Press, 2004.
15 VRIES, Jan de. The Industrious Revolution: consumer behavior and the household economy, 1650 to 18 Sobre as implicações políticas desta reconfiguração, ver TROUILLOT, Michel-Rolph. Haiti, State against
the present. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2008. p. 183. the Nation: the origins and legacy of duvalierism. New York: Monthly Review Press, 1990, p. 36-82.

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em fins do século XIX a produção de café voltou ao patamar anterior à revo- As terras empregadas na cafeicultura jamaicana eram diferentes das
lução, ou seja, à cifra de 30.000 toneladas anuais; nos anos do conflito e nas que se utilizavam no negócio açucareiro, por razões semelhantes às regis-
décadas imediatamente posteriores, o volume caiu para mais da metade do tradas para a colônia francesa. Ainda que, no que se refere àquele insumo,
que era em 1790. Em uma conjuntura de curva ascendente do consumo, a não houvesse competição entre o açúcar e o café, o mesmo não se pode afir-
retirada brusca de Saint-Domigue do mercado teve impacto imediato sobre mar em relação ao fator trabalho. O quadro se agravou sobremaneira após a
as demais zonas cafeicultoras mundiais. abolição do tráfico transatlântico de escravos para as colônias inglesas, não
De início, os espaços que mais se aproveitaram do vácuo de Saint- sendo de estranhar que o ponto máximo da cafeicultura jamaicana tenha
Domingue foram os que já produziam café antes de 1790. Tome-se, em pri- sido atingido justamente em 1808. Para além da exaustão ecológica e do
meiro lugar, o caso das possessões britânicas. Ao longo do século XVIII, restrito consumo metropolitano,22 os cafeicultores jamaicanos precisaram
a produção cafeeira cresceu lentamente nas Antilhas inglesas, muito por enfrentar, na esfera local, a demanda de braços escravos por parte dos enge-
conta da política tarifária adotada pela metrópole. Por volta de 1730, o nhos de açúcar, que mantiveram a duras penas sua viabilidade econômica
governo imperial estabeleceu uma pesada taxação sobre as importações de nas décadas seguintes. Não obstante a queda de competitividade, decor-
café, com o objetivo de proteger o trato asiático do chá comandado pela rente de quase dois séculos de exploração ininterrupta e de uma planta agro
Companhia Inglesa das Índias Orientais (E.I.C.).19 Na década de 1780, com a manufatureira inadequada diante das novidades trazidas por seus concor-
redução dessas tarifas, a produção colonial aumentou, a ponto de a Jamaica rentes internacionais diretos, nas três primeiras décadas do século XIX os
obter cerca de 1.000 toneladas métricas em 1790. Com o levante escravo engenhos de açúcar jamaicanos provaram ser mais eficazes que seus con-
no norte de Saint-Domingue e a radicalização do processo revolucionário, gêneres cafeeiros.23 Problema análogo de competição entre os engenhos de
a resposta dos senhores de escravos jamaicanos foi imediata. A produção açúcar e as fazendas de café pelos cativos cada vez mais escassos, sempre em
saltou para 6.000 t nos anos finais do século XVIII, atingindo o pico histó- prejuízo das últimas, verificou-se em Demerara, antiga possessão holan-
rico de 13.500 t em 1808.20 Foi nesta conjuntura que P.J. Laborie, cafeicultor desa adquirida pelos ingleses no curso das revoluções atlânticas.24
escravista de Saint-Domingue refugiado na Jamaica, escreveu – em inglês De todo modo, se os proprietários jamaicanos aproveitaram satisfato-
– seu famoso livro, reportado por boa parte do século XIX como o manual riamente o vácuo de Saint-Domingue nas décadas de 1790 e 1800, o mesmo
agronômico mais importante sobre o assunto, traduzido para o português e não se pode afirmar da V.O.C. no espaço do Índico, algo tanto mais notável
o espanhol já na década de 1800.21 em vista do papel que Java desempenharia no mercado mundial a partir da
década de 1830. Na verdade, durante todo o século XVIII, a oferta javanesa
19 Cf. SMITH, S. D. Accounting for Taste: British coffee consumption in historical perspective. Journal
of Interdisciplinary History, Cambridge: MIT Press Journals, v. 27, n. 2, p. 183-214, Autumn 1996. foi inelástica. Nos primeiros anos de exploração sistemática da atividade,
20 Cf. SMITH, S. D. Sugar’s Poor Relation: coffee planting in the British West Indies, 1720-1833. Slavery
os procedimentos de tradução de Laborie para o espanhol e o português, que muito revela sobre
and Abolition: A Journal of Slave and Post-Slave Studies, Coventry, v. 19, n. 3, p. 73, December 1998;
o corte que o Vale do Paraíba trouxe para o mercado mundial do café, ver MARQUESE, Rafael de
HIGMAN, B. W. Jamaica Surveyed: plantation maps and plans of the eighteenth and nineteenth
Bivar. A ilustração luso-brasileira e a circulação dos saberes escravistas caribenhos: a montagem da
centuries. Kingston: University of the West Indies Press, 2001. p. 159-191.
cafeicultura brasileira em perspectiva comparada. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, Rio de
21 A edição em inglês foi publicada sob o título The Coffee Planter of Saint Domingo; with an Appendix, Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, v. 16, n. 4, p. 855-880, out.-dez. 2009.
containing a view of the Constitution,Government, Laws, and State of that Colony, previous to
22 Sobre o consumo metropolitano, ver os artigos de S.D. Smith citados nas notas 19 e 20; sobre a
the Year 1789. (Londres: T. Cadell & W. Davies, 1798). A tradução para o português, a cargo de
questão ambiental, ver MONTEITH, Kathleen E. A. Planting and Processing Techniques on
Antonio Carlos Ribeiro de Andrade, foi inserida na notável coleção dirigida pelo Frei José Mariano
Jamaican coffee plantations, during slavery. In: SHEPHERD, V. (Org.). Working Slavery, Pricing
da Conceição Velloso, O fazendeiro do Brazil: bebidas alimentosa, na parte II: “O café” (Lisboa:
Freedom: perspectives from the Caribbean, África and the African diaspora. Kingston: Ian Randle
Officina de Thaddeo Ferreira, 1800. t. III). A primeira edição em castelhano, vertida por Pablo
Publ.; Oxford: James Currey Publ., 2002. p. 112-29.
Boloix, saiu em 1809, sendo reimpressa onze anos depois: Cultivo del cafeto, o arbol que produce el
café, y modo de beneficiar este fruto. (Habana: Oficina de Arazoza y Soler, 1820). Em 1870, tratando 23 Cf. J.WARD, J. R. British West Indian Slavery, 1750-1834: the process of amelioration. New York:
da cafeicultura no Ceilão britânico, Guilherme Sabonadière considerava o manual de Laborie como Oxford University Press, 1988.
a melhor peça já escrita sobre o assunto. Ver seu O fazendeiro do café em Ceylão. Rio de Janeiro: 24 Cf. COSTA, Emília Viotti da. Coroas de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos escravos de
Typographia do Diário do Rio de Janeiro, 1875. 2. ed. em inglês 1870. Para uma comparação entre Demerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 62-86.

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posteriores a 1725, a V.O.C. coagiu as autoridades autóctones no oeste da de baixa, que conduziu à equalização entre oferta e demanda, mas que, ao
ilha, em Priangan e Ciberon, para que ofertassem café a preços fixos. Esses mesmo tempo, afastou do mercado os produtores menos eficazes.
poderes locais, por sua vez, obrigavam seus súditos a cultivarem o artigo Não por acaso, foram exatamente os anos de 1822 a 1830 que marcaram
em pequena escala, retendo parte ou totalidade da renda obtida por esses a clara diferenciação no mercado mundial entre velhas e novas regiões pro-
camponeses a título de impostos. O método foi aplicado em outras partes da dutoras de café. O processo que conduziu a tanto, todavia, iniciara-se três
ilha nas décadas finais do século XVIII, tendo sido mantido após a dissolução décadas antes. A Revolução do Haiti trouxe uma disjunção no tempo histó-
da V.O.C. em 1800 e o início da administração colonial direta pelo governo rico do mundo atlântico, inaugurando simultaneamente o declínio da escra-
holandês. Tal organização do processo de trabalho dificultava respostas rápi- vidão colonial caribenha francesa e inglesa e a ascensão dos novos espaços
das ao aumento da demanda na arena mundial, pois envolvia necessaria- escravistas do século XIX. Noutras palavras, o período entre as décadas de
mente negociação com as poderes locais: os camponeses, afinal, granjeavam 1790 e 1820 compreendeu tanto a crise da estrutura histórica do escravismo
café em pequena escala e operavam fora do sistema de preços internacio- norte-atlântico – cuja base geográfica eram as Antilhas inglesas e francesas
nais, haja vista que o montante pago por unidade era estabelecido de modo – como a montagem da nova estrutura histórica do escravismo oitocentista
coercivo pela V.O.C. Os esforços dos holandeses para aumentar a produção, – cuja base geográfica passou a residir nas vastas áreas virgens do território
na esteira da Revolução de Saint-Domingue, resultaram na séria rebelião de cubano, brasileiro e norte-americano.27 Esses novos espaços do século XIX
Ciberon, em 1805: na ocasião, os camponeses arrancaram os arbustos de café estavam fora das relações imperiais tradicionais que travejavam o Caribe
que cultivavam e queimaram os armazéns que estocavam as safras passadas. inglês e francês e não apresentavam as constrições geográficas e fundiárias
Doravante, todo o sistema de trabalho e de exploração colonial em Java teria aí presentes. Para o nosso objeto, o sul dos Estados Unidos – peça chave na
que ser reconstruído, o que renderia frutos somente três décadas depois.25 estrutura histórica do escravismo oitocentista – constitui caso à parte, pois
O mercado mundial do café, no período em tela (1790-1830), passou nunca produziu café e tampouco a produção de açúcar da Louisiana se des-
por sensíveis momentos de alta e de baixa, derivados não só do impacto de tacou no mercado mundial. Cuba e Brasil, no entanto, competiram palmo a
Saint-Domingue como também dos conflitos militares que polarizaram as palmo pelo comércio internacional de açúcar e café após 1790.
grandes potências atlânticas. Durante o curso dos eventos revolucionários As raízes do deslanche açucareiro e cafeeiro cubano se encontram no
na colônia francesa (1791-1804), os preços em Amsterdã tiveram forte alta, período das reformas bourbônicas. Cuba dispunha de amplos recursos
que se mantiveram nos três anos seguintes. O bloqueio continental e o agu- naturais para o estabelecimento de uma economia de plantation, mas até
çamento do confronto entre França e Inglaterra entre 1808 e 1812 criaram fins do século XVIII eles permaneciam subexplorados. Entre as décadas de
um descompasso entre os preços (altos) registrados na praça de Amsterdã 1760 e 1780, a política de liberalização comercial gradual promovida pelos
e os preços (baixos) pagos nos portos das regiões produtoras.26 A volta da ministros de Carlos III e a atuação decidida das oligarquias locais possi-
paz trouxe alta global acentuada do café, que perdurou até 1822. No decênio bilitaram a fundação de uma sólida rede de engenhos na parte ocidental
seguinte, os preços caíram continuamente, até atingir patamar correspon- da ilha, em torno do porto de Havana. Em fins dos anos oitenta, o mon-
dente ao que vigorara vinte anos antes. O período de 1812 a 1830, assim, pode tante da produção açucareira cubana era equivalente ao da produção total
ser apreendido como uma quadra de ajuste do mercado, sendo a primeira da América portuguesa.28 Dentre as primeiras medidas do novo monarca
fase (1812-1822) de alta, após a retração artificial, e, a segunda (1822-1830),
27 Cf. TOMICH, Dale. Through the Prism of Slavery: labor, capital, and world economy. Boulder:
Rowman & Littlefield Publ., 2004. Ver, também, BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael; PARRON,
25 Sobre Java no século XVIII, ver as rápidas notas de ELSON, Robert. Village Java Under the Cultivation Tâmis. Escravidão e política: Brasil e Cuba, 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2010. p. 92-93.
System, 1830-1870. Sydney: Asians Studies Association of Australia: Allen and Unwin, 1994. p. 24-25; 28 Ver, a respeito, os dados de FRAGINALS, Manuel Moreno. O engenho: complexo sócio-econômico
e o estudo que lhe critica de CLARENCE-SMITH, W. G. The Impact of Forced Coffee Cultivation on açucareiro cubano. São Paulo: Hucitec: Ed. Unesp, 1989. 3 v, p.355; e ALDEN, Dauril. O período final
Java, 1805-1917. Indonesia Circle, London, v. 64, p. 241-243, 1994. do Brasil Colônia, 1750-1808. In: BETHELL, L. (Org.). História da América Latina: América Latina
26 Cf. FERNÁNDEZ, 1989, p. 157. colonial. São Paulo: Edusp-Funag, 1999. v. II, p. 559.

30 31
Carlos IV, em 1789, esteve a decretação do livre comércio de escravos por baixas, as saídas dos artigos cubanos ao mercado mundial, mas estabelecia
dois anos, uma medida longamente solicitada pelos proprietários cubanos, taxas de importação que protegiam os produtos espanhóis na colônia.30
e que foi reiterada em várias ocasiões nos anos seguintes. Ainda que por As ligações da revolução em Saint-Domingue com o avanço cafeeiro
algum tempo os traficantes hispano-cubanos não fossem capazes de domi- cubano foram bem mais estreitas do que o mero incentivo do mercado. O
nar completamente o negócio (até 1807, o abastecimento de africanos em conflito generalizado que se instaurou na colônia francesa após 1791 levou
Cuba foi realizado basicamente por mercadores ingleses e norte-america- muitos proprietários escravistas ao exílio, dentre os quais vários cafeiculto-
nos), logo o tráfico negreiro transatlântico se tornaria um dos principais res. Dada a proximidade geográfica e as condições ambientais favoráveis,
motores da economia escravista cubana, senão o mais importante.29 a região montanhosa do oriente de Cuba foi a que mais recebeu refugia-
Quando veio a oportunidade do colapso de Saint-Domingue, enfim, dos franceses. Os novos imigrantes foram decisivos para a transmissão do
os produtores cubanos estavam devidamente equipados para aproveitar as know-how técnico necessário à produção do artigo, e esse saber rapidamente
novas condições do mercado mundial. O crescimento da economia escra- foi repassado para os proprietários que estavam montando cafezais na parte
vista de plantation cubana foi vertiginoso após 1791. Foram fundados vários ocidental da ilha (eixo Vuelta Abajo- Matanzas). Até 1807, a produção cubana
novos engenhos de açúcar, os antigos elevaram sensivelmente sua capaci- foi diminuta, não ultrapassando a faixa de 1.000 t, mas o plantio em larga
dade produtiva, e, pela primeira vez, montaram-se plantações escravistas escala efetuado a partir de 1804 permitiu que, em 1810, esse número saltasse
de café, tanto no oriente como no ocidente da ilha. Esse arranque, por sua para 4.600 t. No decênio seguinte, a produção oscilou bastante, chegando
vez, contou com a reordenação do comércio de Cuba, ocorrida em resposta em anos como os de 1815 e 1821 a cerca de 10.000 toneladas métricas anuais.31
à conjuntura das guerras revolucionárias. Em 1796, as trocas de Cuba com Nesta altura (1821), a produção cubana era equivalente à jamai-
a Península Ibérica foram interrompidas, situação essa que durou até 1802. cana, sendo ambas superiores à javanesa. Na década de 1820, no entanto,
Após uma pequena normalização do intercâmbio entre metrópole e colônia, enquanto a produção jamaicana estacionou, as de Cuba e de Java cresce-
ocorreu em 1804 uma nova interrupção do comércio entre Cuba e Espanha, ram de forma substantiva, a primeira mais que a segunda. Não obstante os
que se prolongou até 1812. Nesses anos críticos, o principal parceiro comer- preços internacionais terem caído de modo acentuado entre 1822 e 1830, a
cial da colônia espanhola foram os Estados Unidos: o açúcar e o café cubanos produção cubana praticamente triplicou no período, atingindo, em 1833,
eram adquiridos por mercadores norte-americanos (cuja nação era neutra uma cifra próxima a de Saint-Domingue em 1790, isto é, cerca de 29.500
nos conflitos atlânticos do período), que reexportavam o que não era consu- toneladas. Isso foi resultado da ampliação da área de cultivo e do conse-
mido em seu país para os mercados continentais europeus. Entre 1813 e 1816, quente aumento do número de escravos alocados na atividade. Em 1827, a
com a volta da paz na Europa e a guerra entre Estados Unidos e Inglaterra, a produção açucareira e a de café empregavam em Cuba o mesmo número de
marinha mercante inglesa controlou as exportações agrícolas cubanas. O que trabalhadores escravizados, por volta de 50.000 cada.32 Afora isso, no oci-
importa em tudo isso é o fato de a erosão da Espanha como reexportadora dente da ilha, onde então se localizava a maior parte das fazendas, o arbusto
dos artigos cubanos ter levado à promulgação do livre comércio colonial em
1818, autorizando nas letras da lei o comércio da ilha com mercadores de
30 Cf. TINAJERO, 1996. p. 358-80; FRADERA, Josep M. Colonias para después de un imperio. Barcelona:
todas as bandeiras. A partir deste decreto, o controle espanhol sobre a eco- Edicions Bellaterra, 2005. p. 327-420.
nomia de Cuba tornou-se apenas fiscal: a metrópole facilitava, com tarifas 31 Cf. RIVA, Francisco Pérez de la. El café: Historia de su cultivo y explotación en Cuba. Havana: Jesus
Montero, 1944. p. 50; MARRERO, Levi. Cuba: economia y sociedad. Madri: Playor, 1984. v. 11 de 15,
29 Cf. MURRAY, David R. Odious Commerce: Britain, Spain, and the abolition of the Cuban slave p.108; ALVAREZ, Alejandro García. El café y su relación con otros cultivos tropicales en Cuba colonial.
trade. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1980; TINAJERO, Pablo Tornero. Crescimento In: SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DO CAFÉ: HISTÓRIA E CULTURA MATERIAL, 1., Itu, 2006. Anais...
económico y transformaciones sociales: esclavos, hacendados y comerciantes en la Cuba colonial Itu: Museu Republicano Convenção de Itu; São Paulo: Museu Paulista-USP, nov. 2006; NORMAN
(1760-1840). Madri: Ministério del Trabajo y Seguridad Social, 1996. p. 44-107; JOHNSON, Sherry. JR., William C. Van. Shade-grown Coffee: the lives of slaves on coffee plantations in Cuba. Nashville:
The Rise And Fall of Creole Participation in the Cuban Slave Trade, 1789-1796. Cuban Studies, Vanderbilt University Press, 2013. p. 7-33.
Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, v. 30, p. 52-75, 1 Dec. 1999. 32 Cf. MARRERO, 1984, p. 114.

32 33
era cultivado nas mesmas zonas voltadas para a lavoura canavieira: café e Vice-Reino com as minas de Goiás e Mato Grosso); a disponibilidade de
açúcar, portanto, competiam pelos mesmos recursos naturais. uma enorme área de terras virgens entre a Serra da Mantiqueira e os con-
A década de 1820 é significativa, pois, pela primeira vez, o volume da trafortes da Serra do Mar, derivada da política oficial das “zonas proibidas”;
produção brasileira de café se equiparou ao das grandes regiões cafeicultoras por fim, um complexo sistema de transporte baseado em tropas de mulas,
do globo. Tal como na colônia espanhola, o granjeio do artigo na América muito eficazes – diante dos meios disponíveis do período – para enfrentar
portuguesa foi irrelevante até a última década do século XVIII. Como se sabe, a topografia acidentada do centro-sul do Brasil.
o arbusto foi introduzido no Estado do Grão-Pará e Maranhão na década Essa infraestrutura, contudo, não foi mobilizada para a cafeicultura nas
de 1720, no mesmo movimento que levou à sua introdução na Martinica e décadas de 1790 e 1800. Nesses anos, a resposta dos proprietários escravis-
no Suriname, mas, até fins daquele século, foi unicamente uma planta orna- tas da América portuguesa ao impacto da Revolução de Saint-Domingue se
mental. Ainda que tenha feito parte do cálculo imperial dos administrado- deu, sobretudo, no campo açucareiro. Afora a recuperação e ampliação da
res pombalinos na década de 1760, que pretendiam diversificar a pauta de atividade nas antigas regiões da costa nordeste (Recôncavo Baiano e Zona
exportações agrícolas da América portuguesa, o café não teve os cuidados da Mata de Pernambuco e Paraíba), os produtores do centro-sul montaram
que produtos como o algodão e o arroz – remetidos em grande escala para novos engenhos em Campos dos Goitacases, no Recôncavo da Guanabara,
Lisboa já na década seguinte – receberam. De todo modo, a aclimatação do no oeste de São Paulo (Itu, Jundiaí, Campinas) e mesmo ao longo das vias
cafeeiro no centro-sul da América portuguesa ocorreu nesse período, nas que então cortavam o Vale do Paraíba – um exemplo é o do famoso enge-
chácaras e quintais da cidade do Rio de Janeiro.33 nho Pau Grande, na beira do Caminho Novo. Nos anos noventa, o cres-
Como se leu na introdução do capítulo, os especialistas em história cimento da produção açucareira da América portuguesa acompanhou o
da cafeicultura brasileira relacionaram, desde seus primeiros trabalhos, a mesmo ritmo da produção cubana.34 Cabe lembrar que a conjuntura de fins
crise da mineração à montagem das fazendas de café no início do século do século XVIII estimulou igualmente a produção de mantimentos e a cria-
XIX. Com base no conhecimento atualmente disponível, pode-se afirmar ção de gado para o mercado interno, como o prova a diversificação ocorrida
que de fato existiu relação entre um processo e outro, porém não no sen- na comarca do Rio das Mortes, no sul da capitania de Minas Gerais, ou em
tido tradicionalmente apontado. Certos pontos que seriam decisivos para diversas porções da capitania de São Paulo.35
o deslanche cafeeiro do Brasil já se encontravam presentes em meados do O ponto de virada veio com a fuga da família real portuguesa para o Rio
século XVIII, muito por conta da economia do ouro: um volumoso tráfico de Janeiro. Em primeiro lugar, o súbito aumento do contingente populacio-
negreiro transatlântico bilateral entre os portos da África Central e o Rio nal da agora sede do Império Português – somado às rotas de peregrinação
de Janeiro, controlado por negociantes desta praça; a existência de vias que que o novo estatuto político do Rio de Janeiro imediatamente acionou –
cruzavam o Vale do Paraíba no sentido norte-sul (Caminho Novo entre o ampliou substancialmente a demanda por gêneros de primeira necessidade.
Rio de Janeiro e a capitania de Minas Gerais, aberto na década de 1720) e Para atendê-la, a Coroa joanina buscou aprimorar a rede de caminhos que
leste-oeste (Caminho Novo da Piedade, articulando o Rio de Janeiro a São cortavam o centro-sul da colônia, estimulando a construção de estradas para
Paulo, aberto na década de 1770 para facilitar as comunicações da sede do ligar diretamente a zona produtora de mantimentos do sul de Minas Gerais
à nova Corte. Duas dessas novas estradas, as da Polícia e do Comércio,
33 Sobre o café na América portuguesa setecentista, ver TAUNAY, Affonso de E. Subsídios para a concebidas para regularizar o fluxo de mercadorias de Minas ao Rio, seriam
História do café no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Café, 1935. Sobre as
reformas pombalinas, SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Portugal e Brasil: a reorganização do Império, 34 Sobre o volume da produção açucareira cubana, ver FRAGINALS, 1989, p. 355; sobre a produção da
1750-1808. In: BETHELL, L. (Org.). História da América Latina: América Latina colonial. São Paulo: América portuguesa, ver ARRUDA, José Jobson de Andrade. O Brasil no comércio colonial (1796-1808).
Edusp-Funag, 1997. v. I, p. 488-498; MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência São Paulo: Ática, 1980, p. 360. A respeito do engenho Pau Grande, ver o livro de MUAZE, Mariana. As
Mineira – Brasil e Portugal, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1978. p. 21-53; PALÁCIOS, memórias da viscondessa: família e poder no Brasil Império. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
Guillermo. Cultivadores libres, Estado y crisis de la esclavitud en Brasil en la época de la Revolución 35 Sobre Minas, ver o primeiro capítulo de BERGAD, Laird. Escravidão e história econômica: demografia de
Industrial. México: Fondo de Cultura Econômica, 1998. p. 112-56. Minas Gerais, 1720-1888. Bauru: Edusc, 2004. A respeito de São Paulo, ver LUNA; KLEIN, 2005, p. 41-53.

34 35
absolutamente centrais para o deslanche da cafeicultura no Médio Vale do A avaliação de Saint-Hilaire encontra respaldo nos dados da exporta-
Paraíba: sua abertura gerou uma intensa febre fundiária, e em suas margens ção brasileira. A média anual no período de 1797 a 1811 (refletindo o quadro
seriam em breve fundados dois dos maiores municípios cafeeiros mundiais vigente antes da abertura dos portos) era de cerca de 400 toneladas métri-
do século XIX, Vassouras e Valença.36 Em segundo lugar, a abertura dos cas. No quinquênio de 1812-1816, o impacto do intercâmbio direto com o
portos permitiu, após 1808, a conexão direta dos senhores de escravos da mercado mundial e seus preços em forte alta rapidamente se fez sentir: a
América portuguesa com o mercado mundial. Em conjunção com o cres- produção brasileira de café subiu para uma média anual de 1.500 t. No quin-
cimento demográfico da Corte, o Decreto de Livre Comércio teve impacto quênio seguinte (1817-1821), cresceu quatro vezes em relação ao lustro ante-
imediato sobre a demanda de escravos: na década de 1800, desembarcaram rior, pulando para 6.100 toneladas anuais. Nos anos da independência (1822-
ali uma média anual de 10.000 cativos africanos. No decênio seguinte (1811- 1823), a produção dobrou, chegando a 13.500 t, o que igualava o montante
1820), sob o novo regime de comércio, a cifra praticamente duplicou: cerca de brasileiro ao que então se obtinha em Cuba. D. Pedro tinha razões de sobra
19.000 africanos aportaram anualmente como escravos no Rio de Janeiro.37 para inscrever o ramo de café no escudo de armas do Império recém-fun-
Parte desses escravos obtidos a baixo custo no trato atlântico foi destinada dado: se o valor total de sua exportação ainda não suplantara a do açúcar, o
às crescentes lavouras de café, cujos proprietários tinham à sua disposição, crescimento que o artigo verificava desde 1812 muito prometia para breve.
no porto carioca e em seus satélites ao longo do litoral até Santos, todo um O crescimento, de fato, se acelerou sobremaneira nos dez anos seguin-
sistema comercial (armazéns, casas mercantis etc) montado há tempos para tes, quando a produção quadruplicou, de 13.500, em 1821, para 67.000 t, em
a exportação de açúcar, couros, algodão e outros gêneros.38 1833. Essa cifra equivalia ao montante mundial total de 1790; o teto de Saint-
Os senhores de escravos que investiram em café na década de 1810 res- Domingue pré-revolução, até então inalcançável, era definitivamente coisa
ponderam claramente aos incentivos do mercado internacional. Afora uma do passado. No início da década de 1830, o Brasil reinava como o maior pro-
série de preços pagos diretamente aos produtores entre 1798 e 1830,39 temos dutor mundial, bem à frente dos demais competidores (Cuba, Java, Jamaica,
o registro qualitativo de Saint-Hilaire. Nos primeiros meses de 1822, ao per- Haiti). Como explicar o salto brasileiro da década de 1820, em uma conjun-
correr o Caminho Novo da Piedade, que cortava o Vale do Paraíba paulista tura de queda acentuada dos preços internacionais? Os produtores deixa-
em direção à cidade do Rio de Janeiro, o naturalista francês anotou que “as ram de reagir ao sistema de preços, guiando suas estratégias empresariais
terras dos arredores de Taubaté são muito próprias à cultura da cana e do pelo que vislumbravam em termos de ganhos sociais e simbólicos, como
café. Antigamente, era a cana o que mais se plantava, mas depois que o café argumenta João Fragoso? E por que essa produção se concentrou quase que
teve alta considerável, os agricultores só querem tratar de cafezais”. Mais exclusivamente no Vale do Paraíba?
adiante, na altura de Areias, após entrevistar um senhor de escravos, escre- Para responder às primeiras perguntas, é importante ter em conta duas
veu: “segundo o que me informaram ele, o filho e outras pessoas, a cultura especificidades do artigo. O hiato entre o plantio do arbusto e a venda de
do café é inteiramente nova nesta região e já enriqueceu muita gente”.40 grãos beneficiados no mercado é de, no mínimo, três anos, sendo que a
planta entra em produção plena somente com cinco anos de idade. Como
meio para contornar o problema, os fazendeiros adotaram a prática, desde
36 Cf. LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do
os primeiros anos da atividade no Brasil, de plantar milho e feijão entre as
Brasil, 1808-1842. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Trabalho e Emprego – Prefeitura do Rio
de Janeiro, 1992, p. 47-59. fileiras de arbustos, com o duplo objetivo de garantir sombreamento para
37 Cf. FLORENTINO, Manolo Garcia. Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos os pés recém-plantados e manter a escravaria trabalhando de forma produ-
entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 74.
tiva no amanho de mantimentos. A oferta de mais produto como resposta
38 LUNA; KLEIN, 2005, p. 58-59.
aos preços em alta em um determinado ano, portanto, só se faria sentir de
39 Ibid., p. 87.
40 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo (1822).
três a cinco anos depois. O outro dado importante, como bem ressalta Pedro
São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Itatiaia, 1974. p. 78, 100-101. Carvalho de Mello, é o fato de os arbustos possuírem

36 37
uma característica de bens de capital, pois uma vez plantados, podem pro- café foi de – 2,07 %”.45 Falta examinar, então, quais as condições que per-
duzir frutos de café por muitos anos. [...] Não se podia, pois, abandonar a mitiram que os senhores de escravos brasileiros ofertassem cada vez mais
cultura, sem que isso representasse graves perdas de capital, o que contras-
café no mercado mundial, a despeito da tendência acentuada de queda dos
tava com o algodão e a cana-de-açúcar. Mesmo com os preços em baixa, os
fazendeiros continuavam a cuidar das árvores já plantadas, na expectativa de valores recebidos por unidade de produto.
aumentos futuros no preço do café.41 Aqui entra o papel do Vale do Paraíba como região nova no mercado
mundial do café. Já adiantamos que havia uma infraestrutura adequada
O que os preços da década de 1820 indicam? Os valores pagos ao café no centro-sul do Brasil em fins do século XVIII, como resultado das alte-
em Nova Iorque – novo centro de distribuição mundial – caíram sensi- rações que a mineração trouxe para sua paisagem econômica. Vale reto-
velmente no período de 1823 a 1830, de 21 para 8 centavos de dólares por mar dois desses pontos, a saber, a disponibilidade de terras e o sistema de
libra.42 Todavia, devemos lembrar aqui um aspecto da crítica de Gorender transporte. O Vale do Paraíba pode ser dividido em três sub-regiões: o alto
a Fragoso, a saber, o papel da desvalorização cambial na composição dos Paraíba, ocupado por terras das nascentes até a zona de Queluz e Resende,
preços efetivamente recebidos pelos produtores brasileiros.43 A queda dos na atual divisa dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro; o médio Paraíba,
preços em dólares diminuiu de intensidade entre 1827 e 1830, com tendência de Barra Mansa até a região de São Fidélis; o baixo Paraíba, que engloba as
a se estabilizar em um patamar baixo (de 9 a 8 centavos de dólares), nos terras deste ponto até a foz, correspondentes a grosso modo aos Campos dos
exatos anos em que os fazendeiros brasileiros – conforme dados recolhi- Goitacases. O primeiro trecho foi ocupado já no século XVII, como resul-
dos por Luna e Klein para o fundo Vale do Paraíba paulista44 – passaram tado da expansão paulista em busca de índios; o terceiro trecho o foi desde
a ganhar mais em mil réis por unidade de produto; nesses anos, portanto, a segunda metade do século XVII, com a criação de gado e, posteriormente,
a desvalorização cambial favoreceu claramente os exportadores. A série de produção de açúcar.46 Pouco visitada no século XVII, na centúria seguinte a
Luna e Klein se encerra em 1830; a de Nova Iorque, por outro lado, indica sub-região do médio rio Paraíba teve sua ocupação bloqueada por conta da
alta de quase 30 % nos preços pagos em dólares entre 1830 e 1835. Os índices política oficial portuguesa das áreas proibidas, adotada a partir da década
das exportações brasileiras encontram notável correspondência com esses de 1730; a ordenação buscava “evitar o extravio de ouro ao impossibilitar
preços: a produção cresceu sensivelmente nos anos de 1826 a 1828, fruto de a abertura de novos caminhos e picadas nos matos em áreas onde inexis-
cafezais que foram plantados antes de 1823, quando os preços estavam em tiam registros, passagens e a vigilância das Patrulhas do Mato”.47 É certo que,
alta; de 1828 a 1830 (cafezais plantados entre 1824 e 1826, preços externos e mesmo antes de sua revisão na década de 1780 (no contexto do reformismo
internos em baixa), a produção estacionou em torno de 27.000 t; de 1831 ilustrado), as terras a leste e oeste do Caminho Novo – ou Estrada Real –
a 1834 (cafezais plantados entre 1827 e 1830, preços externos estacionados, foram exploradas por garimpeiros clandestinos e pequenos posseiros, mas
mas os internos em alta), saltou de 32.940 t para 67.770 t. o povoamento sistemático foi barrado de forma eficaz.48 Como resultado
Esses números dão a ver a pronta resposta dos produtores brasileiros ao desta política, havia, no médio Paraíba de fins do século XVIII e inícios do
que sinalizava o mercado. No entanto, permanece o fato de que os preços a
eles pagos caíram efetivamente na década de 1820. Segundo Fragoso, “entre 45 FRAGOSO, 1990, p. 506.
46 Ver, respectivamente, MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens
1821 e 1833, a queda anual registrada (em mil réis) para o preço unitário do
de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 81-85; e FARIA, Sheila de Castro. A colônia
em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
47 As palavras são de ANASTASIA, Carla Maria Junho. A geografia do crime: violência nas minas
41 MELLO, Pedro Carvalho de. A economia da escravidão nas fazendas de café: 1850-1888. Rio de
setecentistas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005. p. 36.
Janeiro: PNPE, 1982. v. 1 de 2, p. 12.
48 Cf. STEIN, 1990, p. 31-34; MUNIZ, Célia Maria Loureiro. Os donos da terra: um estudo sobre a
42 Cf. BACHA, Edmar; GREENHILL, Robert. 150 anos de café. Rio de Janeiro: Marcelino Martins & E.
estrutura fundiária do Vale do Paraíba Fluminense, século XIX. 1979. Dissertação (Mestrado em
Johnston, 1992. p. 333-4.
História) – Instituto de Ciências Humanas E Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói,
43 Cf. GORENDER, 1990, p. 82. 1979. p. 51-53; MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no
44 Cf. LUNA; KLEIN, 2005, p. 87. Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura: APERJ, 1998. p. 34-40.

38 39
XIX, uma enorme quantidade de terras virgens, sem travas fundiárias, ple- da distância dos portos do litoral. Nesse ponto residiu a maior contribuição
namente aptas em termos de altitude e clima à cafeicultura e distantes a da economia da mineração para a cafeicultura oitocentista. Em resposta à
não mais de 150 quilômetros da miríade de ancoradouros naturais localiza- demanda mineira, elaborou-se, na segunda metade do século XVIII, um
dos ao sul do grande porto do Rio de Janeiro. Não havia competição entre complexo sistema de criação e comercialização de mulas que articulava
o açúcar e o café por essas terras, como ocorria em Cuba, e tampouco a o sul da América portuguesa às capitanias de São Paulo, Rio de Janeiro e
ausência de terras virgens como na Jamaica. Trata-se, enfim, de um espaço Minas Gerais, fornecendo o meio básico de transporte para todo o centro-
aberto à montagem de fazendas com escala inédita de operação. sul da colônia. Quando veio o empuxo do mercado mundial na virada do
A produtividade dos plantios em terrenos de derrubadas, já consi- século XVIII para o XIX, esse sistema foi imediatamente mobilizado para
derável em vista do húmus acumulado secularmente pela mata, era ainda o escoamento da produção cafeeira de serra acima. Na medida em que as
maior no Vale em decorrência do método de cultivo não sombreado dos novas fazendas do Vale do Paraíba distavam dos portos do litoral não mais
pés, quando em plena produção. Se, por um lado, os cafezais manejados do que sete dias de jornada (tendo por referência a jornada habitual de três
dessa forma exigiam capinas constantes, tinham rendimento oscilante de léguas ao dia), e dados os custos relativamente baixos de aquisição e manu-
uma safra a outra e seus grãos eram considerados de qualidade inferior, tenção das tropas até meados do século XIX, a equação preço do artigo /
por outro lado apresentavam produção inicial bem mais elevada.49 Os preço do frete / volume a transportar / distância a percorrer foi plenamente
registros disponíveis indicam que a produtividade dos pés de café culti- operacional com o sistema das mulas.53
vados no Vale do Paraíba caiu ao longo do século XIX, mas, para as pri-
meiras décadas, os números são bastante altos. Saint Hilaire anotou, no o domínio do vale do paraíba
relato citado, produção de 91 arrobas de café beneficiado por 1.000 pés, ao sobre o mercado mundial do café, c.1830-1880
passo que o padre João Joaquim Ferreira de Aguiar, no primeiro manual
O gráfico das exportações globais de café entre 1823 e 1892 expressa com
agronômico que apresentou o saber elaborado no Vale do Paraíba, regis-
muita clareza a posição que o Brasil passou a ocupar no mercado mun-
trou a produtividade de 100 arrobas por 1.000 pés na região de Valença.50
dial do artigo a partir da década de 1830. O resultado das safras de 1831 a
Para efeitos de comparação, vejam-se dados relativos a duas outras regiões.
1833, que trouxeram a duplicação do volume anual, isolou-o bem à frente
Carlos Augusto Taunay, com base na observação dos cafezais da Tijuca
dos demais competidores. Outros saltos vieram entre 1843 e 1847, quando
(RJ) em fins da década de 1820, apontou 20 arrobas por 1.000 pés.51 O censo
a produção se estabilizou no patamar de 150.000 toneladas / ano, na
cubano de 1827, por sua vez, deu 27 arrobas de produção média por 1.000
segunda metade da década de 1860 (c.225.000 t/ano) e em fins da década
pés plantados na ilha, número superior às 9,8 arrobas por 1.000 pés que o
de 1870 (c.350.000 t/ano). Com ligeiras alterações de uma safra a outra, o
agrônomo cubano Tranquilino Sandalio de Noa supunha como norma em
Brasil – leia-se o Vale escravista, ao menos até meados da década de 1870,
uma grande plantation em 1829.52
quando o oeste paulista e a Zona da Mata mineira aumentaram o volume
Para escoar a produção crescente do Vale do Paraíba na década de
da produção – dominou de forma inconteste a oferta mundial no século
1820, havia que se ultrapassarem os obstáculos da topografia acidentada e
XIX, tendo por único competidor real as colônias holandesas na Indonésia
(Java), e, no intervalo de 1850-1880, porém em terceiro lugar, a colônia
49 Cf. Warren Dean, A ferro e fogo, p.234.
inglesa do Ceilão.
50 Cf. Saint-Hilaire, Segunda Viagem, p.101; Pe. João Joaquim Ferreira de Aguiar, Pequena memória
sobre a plantação, cultura e colheita do café. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I.P. da Costa,
1836, p. 11.
53 Cf. RIBAS, Rogério de Oliveira. Tropeirismo e escravidão: um estudo das tropas de café das lavouras
51 Cf. Carlos Augusto Taunay, Manual do Agricultor Brasileiro (1ª ed: 1839). Org.Rafael de Bivar de Vassouras, 1840-1888. 1989. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do
Marquese. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 130. Paraná, Curitiba, 1989. p. 170-197; KLEIN, Herbert S. The supply of mules to central Brazil: the
52 Cf. Marrero, Cuba, p. 110-1. Sorocaba market, 1825-1880. Agricultural History, Winter Park, v. 64, n. 4, p. 1-25, 1990.

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produção mundial de café – 1823 – 1892 (milhares de toneladas) produtividade, sob o risco de se verem excluídas do mercado. Para aquelas
antigas regiões produtoras sem reservas de áreas para expansão ou que haviam
sido afetadas pela crise do escravismo colonial (caso de Saint-Domingue em
fins do século XVIII, ou da Jamaica e Suriname nas primeiras décadas do
século XIX), a perda de competitividade logo as afastou das posições centrais
do mercado. Como se sabe este não foi o caso do Brasil e de Cuba, que, por
meio de pactos firmados dentro dos marcos de suas respectivas monarquias
constitucionais (Império do Brasil e Espanha liberal), construíram arranjos
políticos nas décadas de 1810 e 1820 que ajudaram a fundar a instituição escra-
vista em bases mais seguras, capazes de enfrentar as fortes pressões antiescra-
vistas externas capitaneadas pela Inglaterra.55 No entanto, em vista do desem-
penho cubano na produção açucareira, de sua ampla disponibilidade de terras
virgens e da continuidade do tráfico transatlântico de escravos até a década
de 1860, sua exclusão do mercado cafeeiro mundial chama a atenção. Por que
isso ocorreu? E por que Java, na Indonésia, cuja economia não era escravista,
conseguiu se manter como grande região produtora ao lado do Brasil?
Fonte: SAMPER, Mario; FERNANDO, Radin. Historical statistics of coffee production and trade from
1700 to 1960. In: CLARENCE-SMITH, William Gervase; TOPIK, Steven (Org.). The global coffee economy
No que se refere à primeira questão, houve uma relação estreita entre o
in Africa, Asia, and Latin América, 1500-1989. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 411-62. deslanche cafeeiro do Brasil, a crise da cafeicultura em Cuba e seu arranque
açucareiro. Como já escrevemos acima, na região ocidental da colônia espa-
A escala e o caráter do mercado se modificaram de modo igualmente nhola os cafezais haviam sido montados nas mesmas zonas de implantação
profundo no século XIX. Na década de 1880, a produção total de café no
dos engenhos, competindo portanto pelos mesmos recursos em termos de
globo era 10 vezes maior do que cem anos antes. Entre uma data e outra, a
terras e trabalho. Até a década de 1820, não raro os grandes senhores de
grande novidade foi o aparecimento dos Estados Unidos como comprado-
escravos empregaram seus capitais simultaneamente nas duas atividades.56
res. Nesse período, sua população aumentou quinze vezes e o consumo per
O Médio Vale do Paraíba, por seu turno, foi construído entre as décadas de
capita anual passou de apenas 25 gramas para 4 quilos. Tratava-se de um
1810 e 1830 como região exclusivamente cafeeira, distinta das zonas açuca-
mercado aberto, livre de tarifas de importação desde 1832, que pouco exigia
reiras das terras baixas fluminenses e do Oeste Velho de São Paulo. Que as
a respeito da qualidade do café adquirido. Os demais grandes compradores
terras do ocidente de Cuba não fossem tão aptas para a cafeicultura como
do período, todos localizados no norte de uma Europa em rápido processo
as do Vale, comprova-o a diferença na produtividade dos pés, há pouco
de industrialização e urbanização, também se distinguiram no século XIX
pela explosão demográfica e pelo notável aumento nas taxas de consumo aludido. O caráter de bens de capital dos arbustos de café criava uma difi-
per capita. Interessa destacar nisso tudo que a passagem do mercado res- culdade adicional para a atividade no ocidente de Cuba, região bastante
trito e de luxo do século XVIII para o mercado de massa industrial do século visitada por furacões: se a intempérie não constituía obstáculo para os cana-
XIX foi claramente induzida pela oferta a baixo custo do produto.54 viais, capazes de, em um ano, retomar o padrão anterior à sua passagem,
As novas condições da economia internacional de artigos tropicais ela podia ser devastadora para os cafezais, que teriam que se replantados e
exigiram, das regiões que operavam nessa arena, aumento constante de esperar ao menos cinco anos para recuperar a produtividade plena.

54 Cf. TOPIK, Steven. The Integration of the World Coffee Market, p. 37-40; MARQUESE, Rafael de
Bivar. Estados Unidos, Segunda Escravidão e a economia cafeeira do Império do Brasil. Almanack, 55 BERBEL; MARQUESE; PARRON, 2010, p. 95-181.
Guarulhos, n. 5, p. 51-60, maio 2013. 56 Cf. RIVA, 1944, p. 141; ALVAREZ, 2006, p. 10.

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Ao longo da década de 1820, os produtores cubanos tomaram consciên- que os senhores de engenho do Brasil ocupavam no mercado mundial.
cia do peso da competição brasileira. Os preços em queda no mercado mun- Durante a vigência do tráfico transatlântico de escravos, a economia açu-
dial eram resultado evidente do aumento global da produção. Em setembro careira brasileira acompanhou a duras penas a expansão dos cubanos nesse
de 1828, o Consulado de Havana, em resposta a inquérito solicitado pelo ramo, mas isso se tornou inviável após 1850.60
Intendente da colônia, informava que A última observação nos conduz ao ponto central para a compreensão
las nuevas plantaciones que inundaran las regiones equinociales han hecho do crescimento da produção cafeeira do Vale do Paraíba, isto é, o trabalho
bajar el precio en términos que apenas da para costear los gastos de su pro- escravo. Nos anos vinte e trinta do século XIX, era voz corrente em Cuba
ducción, viéndose arruinar rápidamente multitud de cafetales que constituían que os escravos custavam lá o dobro do que se pagava no Brasil.61 Os dados
gran parte del capital de la Isla, el cual no sería exagerado decir había dismi- fornecidos por David Eltis corroboram a percepção dos contemporâneos:
nuido en dos terceras partes.57 até a década de 1850, as curvas nos preços dos cativos adquiridos no tráfico
Diante da crise, a Sociedade Econômica dos Amigos do País de Havana transatlântico para o Brasil e para Cuba foram estritamente congruentes,
convocou, em 1829, debate sobre o assunto. Dentre as questões sobre o cul- mas os valores cubanos estiveram sempre acima dos brasileiros.62 A expli-
tivo do café colocadas na mesa, uma indagava se seria “prudente abando- cação para a diferença é simples. O tráfico para o centro-sul do Brasil era
narlo” em vista dos ganhos decrescentes.58 A resposta, na ocasião, foi nega- comandado desde a virada do século XVII para o XVIII por negociantes luso
tiva, mas os debatedores concordaram sobre a necessidade de reduzir custos -brasileiros residentes na praça do Rio de Janeiro, que operavam fundamen-
e aumentar a eficiência para fazer frente aos competidores brasileiros. talmente na zona congo-angolana: comando local das operações, viagens
No início da década de 1830, com a revisão da política tarifária nor- mais curtas e contatos mais sólidos no continente africano possibilitavam a
te-americana que tornaria o café tax free no país, os produtores escravis- redução do preço final dos africanos embarcados como escravos. Os trafi-
tas brasileiros excluíram daquele mercado seus rivais caribenhos. Em um cantes hispano-cubanos, a despeito de serem tão eficazes como seus pares
quadro de queda acentuada dos preços, a incapacidade de os produtores brasileiros e portugueses, tinham entrado no infame comércio somente no
cubanos competirem com os produtores brasileiros no principal mercado início do século XIX, e a distância a ser percorrida no Atlântico era bem
comprador do período selou o destino da cafeicultura na ilha. O início da maior do que a rota dos negreiros que se dirigiam ao centro-sul do Brasil. A
construção da malha ferroviária cubana em 1837, ao aumentar a vantagem eficiência dos traficantes cariocas permitiu inclusive a importação, após 1811,
comparativa do açúcar cubano nos mercados internacionais, levou a uma de quantidades expressivas de escravos da costa oriental da África.63
massiva transferência de recursos – terras e escravos – de uma atividade
para outra. Os devastadores furacões de 1844 e 1846 acabaram de uma vez change: hurricanes & the transformation of nineteenth-century Cuba. Chapel Hill: The University
of North Carolina Press, 2001. p. 56-108.
por todas com as perspectivas da outrora florescente cafeicultura do oci-
60 Entre 1820 e 1850, enquanto a produção de açúcar do Brasil triplicou, a de Cuba quintuplicou; nos
dente de Cuba.59 Houve, entretanto, o outro lado da moeda. O arranque quinze anos seguintes (1851-1865), contudo, a produção brasileira estacionou, ao passo que a cubana
açucareiro cubano a partir da década 1830 roubou paulatinamente o espaço duplicou. Na última data, Cuba produzia cinco vezes mais açúcar que o Brasil. Os dados são de
FRAGINALS, Moreno. O engenho, v. III, p. 356-357; e das ESTATÍSTICAS históricas do Brasil. Rio de
57 MARRERO, 1984, p. 112. Janeiro: IBGE, 1987. p. 342.
58 A citação é de Francisco de Paula Serrano: NOA, Tranquilino Sandalio de. Memoria publicada por 61 Cf. FERNÁNDEZ, 1989, p. 163.
la Real Sociedad Patriotica sobre esta cuestión del programa: “Cuáles son las causas a que puede 62 Cf. ELTIS, David. Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade. New York: Oxford
atribuirse la decadencia del precio del café, y si en las actuales circunstancias de su abatimiento seria University Press, 1987. p. 262-263. Ver também BERGAD, Laird; GARCÍA, Fe Iglesias; BARCIA, Maria
perjudicial empreender su cultivo, o prudente abandonarlo”. Programa publicado en el Diário del del Carmen. The Cuban Slave Market, 1790-1880. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. p. 150.
Gobierno de la Habana en 10 de abril de 1829. In: ACTA de las Juntas Generales que celebro la Real 63 Sobre o tráfico para o Brasil, ver, além de Florentino, Em costas negras, ALENCASTRO, Luiz Felipe de.
Sociedad Económica de Amigos del País de la Habana, en los dias 14, 15 y 16 de diciembre de 1829. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia
Havana: Imprenta del Gobierno: Capitanía General: Real Sociedad, 1830. p. 79. das Letras, 2000. Para o tráfico cubano, afora os trabalhos citados na nota 27, ver FRANCO, José
59 Cf. GARCÍA, Antonio Santamaría; ALVAREZ, Alejandro García. Economia y colonia: la economia Luciano. Comércio clandestino de esclavos. Havana: Editorial de Ciencias Sociales, 1980, e Leonardo
cubana y la relación con Espana, 1765-1902. Madri: CSIC, 2004. p. 129; PEREZ JR., Louis A. Winds of Marques, The United States and the Transatlantic Slave Trade to the Americas, 1776-1867. New Haven:

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O custo dos escravos, contudo, não pode ser tomado como uma variá- patamar até 1838, quando voltou a crescer, de início lentamente, para dar
vel econômica independente, vinculada apenas ao jogo da oferta e da pro- um novo salto a partir de 1842, com 84.221 toneladas; em 1843, 89.550; em
cura. A campanha sistemática comandada pela Inglaterra contra o tráfico 1844, 91.980; em 1845, 97.440; em 1846, 123.300. A produção de 1847 chegou
negreiro transatlântico e a própria escravidão exigiu dos espaços escravistas a 141.810 t, maior volume anterior ao tráfico, estabilizando-se até o novo
em expansão uma resposta política concertada. No caso do Brasil, sua inde- salto da safra de 1855, de 181.290 t.
pendência em 1822 abrira um flanco para a pressão inglesa, pois desde o Com os números das safras da década de 1840, queremos ressaltar a
Tratado de 1817 com a então Coroa portuguesa a questão estivera congelada correlação estreita que houve entre o crescimento da cafeicultura e a escra-
no plano diplomático. Em troca do reconhecimento formal do novo Estado varia adquirida no trato atlântico, e, em particular, o quanto a produção de
soberano, a Inglaterra exigia de D. Pedro I compromisso efetivo com o 1842 em diante contou com cativos africanos comprados após 1835. Para
encerramento do tráfico. A matéria se resolveu apenas em 1826, com a assi- tanto, a ação ensaiada dos fazendeiros do Vale do Paraíba com os grupos
natura da convenção que previa o fim do tráfico entre África e Brasil para políticos ligados ao Regresso foi fundamental. Conforme a letra do tratado
três anos após sua ratificação pela Inglaterra, o que ocorreu em 13 de março anglo-brasileiro de 1827, o tráfico cessaria em março de 1830. Com o obje-
de 1827. A arenga diplomática, além de erodir parte não desprezível do capi- tivo de reafirmar a soberania brasileira na questão, um Parlamento bastante
tal político do primeiro imperador do Brasil e contribuir para sua queda em fortalecido com a queda de D. Pedro I aprovou a Lei de 7 de novembro de
1831, foi acompanhada de perto por negreiros e fazendeiros, que aceleraram 1831, que trazia disposições draconianas para combater o tráfico: os afri-
as importações na segunda metade da década de 1820.64 Entre 1821 e 1825, canos que doravante fossem introduzidos em território nacional seriam
foram desembarcados no porto do Rio de Janeiro cerca de 112.000 africanos automaticamente libertados, prevendo-se seu retorno imediato à África; os
escravizados, ao passo que, no lustro seguinte, chegaram 186.000 cativos.65 transgressores – vendedores ou compradores – seriam submetidos a pro-
A aceleração das importações expressava com nitidez a concepção coeva de cesso criminal; as denúncias contra a prática tanto do desembarque ilegal
que o tráfico seria efetivamente encerrado em 1830.
como da mera posse de escravos ilegais poderiam ser apresentadas por
Os anos de maior introdução de cativos africanos pelo porto carioca
qualquer indivíduo. Nas letras da lei, portanto, os fazendeiros que adquiris-
(1828 e 1829, com 45.000 e 47.000 africanos respectivamente) encontraram
sem africanos no trato transatlântico ficariam expostos a severas punições.
correspondência nas safras abundantes de 1833 e 1834, quando a cafeicul-
Usualmente reputado como “para inglês ver”, o Decreto de 7 de novembro
tura do Vale dobrou o volume da produção obtida em 1831. Vê-se, por-
pretendia, de fato, acabar com o tráfico transatlântico, e deste modo foi lido
tanto, que parte considerável desses novos escravos foram parar em fazen-
pelos coetâneos. Tanto é assim que, entre 1831 e 1835, as entradas diminuí-
das de serra acima. A produção de café brasileira girou em torno desse
ram abruptamente, tornando-se o tráfico como que residual.66
Yale University Press, no prelo. Sobre o trato de Moçambique no século XIX, ver KLEIN, Herbert S. O De 1835 em diante, ocorreu uma reversão profunda nesse quadro. As
tráfico de escravos no Atlântico. Ribeirão Preto: FUNPEC, 2004. p. 70-71.
vozes pró-escravistas voltaram a se articular nos espaços de opinião pública
64 A diplomacia do tráfico nas décadas de 1810 e 1820 pode ser acompanhada em BETHELL, Leslie. A
abolição do comércio brasileiro de escravos: A Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do comércio de escravos após um período de refluxo, e uma ampla coalizão de ex-liberais modera-
– 1807-1869. Brasília: Senado Federal, 2002. p. 21-112. 1. ed. 1970. Sobre as discussões no parlamento dos e ex-caramurus com setores dos proprietários rurais mais capitalizados
brasileiro a respeito do tratado de 1826, ver RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e
experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Ed. Unicamp,
do centro-sul – base da formação do futuro Partido Conservador67 – pas-
2000; SCANAVINI, José Eduardo Finardi Álvares. Embates e embustes: a teia do tráfico na Câmara do sou a advogar pura e simplesmente a anulação da Lei de 7 de novembro de
Império (1826-1827). In: MARSON, Isabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília H.L. de S. (Org.). Monarquia,
liberalismo e negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Edusp, 2013. p. 167-209; e, em especial, PARRON, 66 A ideia central deste e do próximo parágrafo foi retirada de PARRON, 2011, p. 121-191. Sobre o
Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, volume do tráfico ilegal para o centro-sul do Brasil entre 1831 e 1835, ver THE TRANS-ATLANTIC
2011. p. 64-80. Sobre o tratado em si, ver SANTOS, Guilherme de Paula Costa. Política e diplomacia: SLAVE TRADE DATABASE VOYAGE. Atlanta, 2009. Disponível em: <www.slavevoyages.org>.
os tratados assinados entre Brasil e Inglaterra, 1817-1831. 2015. Tese (Doutorado em História Social) – 67 Cf. NEEDELL, Jeffrey D. Party formation and State-making: the conservative party and the
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. reconstruction of the Brazilian State, 1831-1840. Hispanic American Historical Review, Durham:
65 Cf. FLORENTINO, 1995, p. 59. Duke University Press, v. 81, n. 2, p. 259-308, May 2001.

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1831. Nesse movimento de mão dupla entre as demandas de grupos sociais africanos ilegalmente escravizados, número que subiu para 308.000 na
expressivos e os esforços de arregimentação de eleitores por parte de uma década seguinte, os saquaremas conseguiram impor integralmente sua
nova força política, os fazendeiros de café do Vale do Paraíba desempenha- agenda à política imperial.69
ram papel fulcral. Por meio de pressão política direta e de ações no espaço Vê-se, por conseguinte, que o avanço cafeeiro do Brasil dependeu de
público, davam a ver sua disposição para reabrir o tráfico. Dos vários modo estrito de acordos políticos internos que dessem segurança institu-
exemplos que poderiam ser citados, cabe lembrar uma representação que cional aos que investiam no ramo. Todos os escravos africanos importados
a Câmara de Valença – município do coração cafeicultor do Médio Vale depois de 1831 eram formalmente livres, mas em momento algum o Estado
do Paraíba fluminense – endereçou ao Parlamento imperial em meados de brasileiro questionou a posse efetiva dos fazendeiros. A massa de africanos
1836. Assinado por figuras de proa do senhoriato local (Manoel do Vale ilegalmente escravizados se tornou questão política somente após a segunda
Amado, Camilo José Pereira do Faro, João Pinheiro de Souza, Visconde de metade da década de 1860, já no contexto de perda de legitimidade social e
Baependy), dizia o documento: política da instituição.70 Em meados do século XIX, os municípios cafeeiros
do Médio Vale do Paraíba se encontravam suficientemente abastecidos de
Augustos e Digníssimos Senhores Representantes da Nação. A Câmara
Municipal da Vila de Valença, tendo-vos já pedido providências sobre a lei de 7 trabalhadores cativos; de agora em diante, a reposição dessa força de traba-
de Novembro de 1831, vem hoje novamente lembrar-vos que lanceis Vossas vis- lho, bem como a aquisição dos escravos necessários à expansão em novas
tas sobre a mais respeitável e interessante porção da população do Império, que frentes, como as de Cantagalo (RJ), a da Zona da Mata mineira e do oeste de
a maior parte está envolvida na infração da mencionada lei, porque a necessi- São Paulo, ocorreria basicamente por meio do tráfico interno, que foi articu-
dade a ela os levou; cumpre portanto a Vós, Augustos e Digníssimos Senhores, lado econômica e politicamente logo nos primeiros anos da década de 1850.71
evitar a explosão que nos ameaça, derrogando em todas as suas partes a dita lei
Com ampla oferta de terra e de trabalho, as fazendas do Vale se diferen-
de 7 de Novembro de 1831, porque sua execução é impraticável e ela, longe de
trazer benefício a Vossos Concidadãos, os insinua à imoralidade; sua derroga- ciaram de suas equivalentes em outras partes do globo por suas dimensões
ção é de reconhecida utilidade, e sua execução seria concitar os Povos a uma espaciais e quantidade de mão de obra empregada. A historiografia clássica
rebelião e formal desobediência, por que essa maioria respeitável de Vossos veiculou a ideia de que a produção cafeeira do Brasil no século XIX advi-
Concidadãos de qualquer das formas procurará com todas as suas forças con- nha, sobretudo, de grandes unidades rurais, usualmente com o emprego
servar intactas suas fortunas, adquiridas com tantas fadigas e suores.68 de uma centena ou mais de escravos.72 Pesquisas cuidadosas no campo da
Contra a eventualidade de execução da lei, que libertaria os cativos demografia histórica posteriores à década de 1980 procuraram rever essa
importados após 1831 e colocaria nas barras dos tribunais seus possuidores, imagem. Valendo-se de fontes pouco exploradas anteriormente, como as
os representantes dos cafeicultores ameaçavam o poder público com a pos-
sibilidade de resistência aberta. O que estava em jogo, no entanto, não eram 69 Sobre o volume do tráfico ilegal, conferir os dados em <www.slavevoyages.org>. Sobre a política
dos saquaremas para a escravidão, ver, além de Parron, A política da escravidão, o estudo clássico
apenas os africanos até então adquiridos, mas os que doravante seriam
de MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial.
comprados. Ao tornarem a matéria – desde 1835 – pauta de campanha polí- 70 Ver, a propósito, os capítulos de Beatriz Galloti Mamigonian, “O direito de ser africano livre:
tica, os agentes do Regresso Conservador acenaram aos traficantes e cafei- os escravos e as interpretações da Lei de 1831”, e de Elciene Azevedo, “Para além dos tribunais:
cultores que dariam sinal verde à retomada do infame comércio. A estra- advogados e escravos no movimento abolicionista em São Paulo”, ambos inseridos no livro editado
por Silvia Hunold Lara e Joseli Maria Nunes Mendonça, Direitos e justiças no Brasil: ensaios de
tégia funcionou muito bem, pois, na segunda metade da década de 1830, História Social. (Campinas: Ed. Unicamp, 2006. p. 129-160, 199-238).
enquanto desembarcavam nos portos do centro-sul do Império 238.000 71 Cf. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978. p. 63-87. 1. ed. 1972; SLENES, Robert W. The Brazilian Internal Slave Trade, 1850-1888: regional
68 O SETE D’ABRIL. Rio de Janeiro, 13 jul. 1836. Para a análise da série completa em que se inscreve economies, slave experience, and the politics of a peculiar market. In: JOHNSON, Walter (Org.). The
esse artigo, bem como o papel crucial da imprensa do Rio de Janeiro na campanha pela reabertura Chattel Principle: internal slave trades in the Americas. New Haven: Yale University Press, 2004; MOTTA,
do tráfico, ver YOUSSEF, Alain El. Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do José Flávio. Escravos daqui, dali e de mais além: o tráfico interno de cativos na expansão cafeeira paulista
Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850). 2010. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de (Areias, Guaratinguetá, Constituição/Piracicaba e Casa Branca, 1861-1867). São Paulo: Alameda, 2012.
Filosofia, Letras e Ciências Sociais. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. 72 Ver as publicações arroladas na nota 6.

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listas nominativas de habitantes e os registros de matrícula de escravos ela- cafeeiros do Médio Vale fluminense. Escravaria numerosa, entretanto, não
borados após 1871, os investigadores apontaram para a existência de uma significa necessariamente latifúndio. Não raro houve fazendas com mais de
grande quantidade de pequenos e médios proprietários escravistas envolvi- cem escravos que contavam com menos de 100 alqueires geométricos (480
dos diretamente na produção de café. A posse média de escravos, afirmam, hectares). Aliás, os trabalhos sobre a estrutura fundiária do Vale documen-
estaria bem abaixo do número tradicionalmente anotado.73 tam a presença substantiva de sítios e situações, unidades com menos de 50
A questão, no entanto, permanece em aberto, pois grande parte dos alqueires que englobavam a maioria das posses rurais, afora uma miríade
estudos demográficos disponíveis versa sobre os municípios cafeeiros de de agregados e pequenos posseiros que dependiam de acordos com os
São Paulo nas primeiras décadas do século XIX. Com exceção de Bananal grandes senhores para sua permanência na terra, em uma relação eivada de
e de Campinas, antes do quarto final dos oitocentos nenhuma localidade tensões. O tamanho usual para as fazendas que empregavam mais de cem
paulista rivalizou em volume de produção e montante relativo e absoluto escravos girava de cem a trezentos alqueires, sendo poucas as propriedades
de escravos com os grandes municípios escravistas do Vale fluminense, com área superior a isso; seja como for, eram seus donos que controlavam a
isto é, Vassouras, Valença, Piraí, Barra Mansa, Paraíba do Sul e Cantagalo. quase totalidade da superfície de seus municípios.75
Faltam pesquisas demográficas detalhadas a respeito desses municípios flu- A distribuição das propriedades rurais em uma espécie de colcha de
minenses, porém temos à disposição dois trabalhos pormenorizados sobre retalhos, com uma mescla caótica de grandes fazendas, fazendolas, sítios e
Vassouras e Bananal. Se a propriedade escrava nesses dois municípios foi posses de agregados, ligava-se não só às particularidades da ocupação agrária
desde o início da cafeicultura disseminada no tecido social, com um grande da região, em especial o papel que essa assimetria desempenhava no jogo
número de homens livres possuindo escravos, a concentração foi, não obs- político local baseado em práticas de clientelismo,76 como também às espe-
tante, muito acentuada. Os dados agregados de Vassouras para o período cificidades da organização do processo de trabalho e de produção. Por um
de 1821 e 1880, por exemplo, informam que os mega-proprietários, donos lado, a produção de café era plenamente viável em pequenas unidades que a
de mais de cem escravos e correspondentes a 9% dos senhores, possuíram
combinavam com o plantio de mantimentos destinados à venda no mercado.
48% da escravaria total; somados aos que tinham de 50 a 99 escravos (gran-
Por outro lado, dadas as necessidades de controle espacial da escravaria,77 as
des proprietários), equivaleram a 21% dos senhores donos de 70% dos cati-
vos. Os autores desses dois estudos esclarecem ainda que a acumulação de 75 A informação das fazendas com grandes escravarias, porém inferiores a 100 alqueires, foi retirada de
escravos nas mãos desses grandes e mega-proprietários ocorreu na fase de RIBAS, 1990, p. 47. Sobre a composição fundiária do Vale cafeeiro e suas tensões, ver os trabalhos de
MUNIZ, 1990; MOTTA, 1998; SANTOS, Aldeci Silva dos. À sombra da fazenda: a pequena propriedade
expansão das lavouras de café, isto é, de 1836 e 1850, durante a vigência do agrícola na economia da Vassouras oitocentista. 1999. Dissertação (Mestrado em História) – Programa
tráfico transatlântico ilegal e não após seu encerramento.74 de Pós-Graduação em História, Universidade Severino Sombra, Vassouras, 1999; NARO, Nancy
Em vista desses dados, pode-se afirmar que o grosso da produção Priscilla. A Slave’s Place, a Master’s World: fashioning dependency in rural Brazil. Londres: Continuum,
2000. p. 30-43. Para grandes fazendeiros e suas propriedades, temos à disposição bons estudos de caso:
de café de Vassouras e Bananal era obtido em unidades com escravarias MUAZE, 2008; MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. O visconde de Guaratinguetá: um fazendeiro de
numerosas, conclusão passível de generalização para os demais municípios café no Vale do Paraíba. São Paulo: Studio Nobel, 2002. 1. ed. 1976; SILVA, Eduardo. Barões e escravidão:
três gerações de fazendeiros e a crise da estrutura escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984;
CASTRO, Hebe Maria Mattos de; SCHNOOR, Eduardo (Org.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio
73 A bibliografia sobre o assunto já é bastante numerosa. Ver, dentre outros, MOTTA, José Flávio. de Janeiro: Topbooks, 1995; COHN, Marjorie Rocha. A fazenda Santa Sofia: cafeicultura e escravidão no
Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: Vale do Paraíba Mineiro, 1850-1882. 2013. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de
Annablume: FAPESP, 1999. p. 67-108; MARCONDES, Renato Leite. Small and Medium Slaveholdings Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013; LOURENÇO, Thiago
in the Coffee Economy of the Vale do Paraíba, province of São Paulo. Hispanic American Historical Campos Pessoa. O Império dos Souza Breves nos oitocentos: política e escravidão nas trajetórias dos
Review, Durham: Duke University Press, v. 85, n. 2, p. 259-281, May 2005; e a síntese mais recente de comendadores José e Joaquim de Souza Breves. 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto
LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert S., Escravismo no Brasil. São Paulo: Edusp, 2010. p. 108. de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
74 Cf. SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo: Vassouras, século XIX – senhores e escravos no coração 76 Cf. MOTTA, 1998; GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro:
do Império Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; MORENO, Breno A. S. Demografia e trabalho Ed. UFRJ, 1997.
escravo nas propriedades rurais cafeeiras de Bananal, 1830-1860. 2013. Dissertação (Mestrado em História 77 Cf. MARQUESE, Rafael de Bivar. Moradia escrava na era do tráfico ilegal: senzalas rurais no Brasil
Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. e em Cuba, c. 1830-1860. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, São Paulo, v. 13, n.

50 51
grandes unidades em plena operação tinham um tamanho máximo que era e bem espaçado dos pés, residia o propósito de otimizar o processo de tra-
ditado pelo tempo de deslocamento dos trabalhadores da quadra da senzala – balho. A adoção da primeira técnica permitia o rápido preparo do terreno
sempre acoplada à casa de vivenda e às instalações produtivas – ao eito. Nisto sem dispêndio excessivo de tempo de trabalho. A segunda técnica permitia,
reside o porquê de muitos dos mega-proprietários de escravos, donos de cen- por meio da visualização, o controle estrito do trabalho dos escravos. No
tenas e por vezes milhares de cativos, fundarem várias fazendas contíguas, amanho dos cafezais, os escravos, organizados em turmas (ou ternos, na
cada qual com sua sede (senzalas, terreiros, engenhos, tulhas), ao invés de linguagem oitocentista) sob o comando de um capataz, eram alocados cada
integrarem-nas em um único latifúndio. Fazendas com mais de 400 alquei- qual em uma fileira de arbustos, com o objetivo de seguirem todos o mesmo
res, afinal, exigiriam longas caminhadas da senzala aos cafezais, com o con- ritmo de trabalho. Dado que o espaçamento entre as fileiras era considerável
sequente dispêndio desnecessário de tempo e de energia dos trabalhadores. (de 12 a 15 palmos, 2,64 a 3,3 metros), o capataz, na base do outeiro, poderia
A configuração interna das fazendas era igualmente a de uma paisagem observar se a linha de cativos prosseguia no mesmo passo ditado pelos tra-
descontínua, algo determinado antes de tudo pela topografia dos mares de balhadores das pontas. No período de colheita, a organização do trabalho
morros. Mas não apenas isso, pois as próprias estratégias de gestão agrá- era distinta, seguindo um sistema de tarefas atribuídas individualmente a
ria adotadas conduziam a tal conformação. O plantio alinhado vertical dos cada escravo do eito e variáveis conforme o volume estimado da safra.79
pés de café ocorria nos morros de meia laranja, em terrenos de derrubada e A cafeicultura escravista brasileira combinou, assim, as duas modali-
queima de mata. No entanto, não se alocava o arbusto em todos os outeiros. dades básicas de organização do processo de trabalho escravo presentes nas
De acordo com a altitude em que se situava a fazenda, as fileiras eram dis- demais regiões de plantation do Novo Mundo, as turmas sob comando uni-
postas ou nas faces dos morros que recebiam o sol da manhã (“noruegas”), ficado (gang system) e o sistema de tarefas individualizado (task system).80
ou nas que eram ensolaradas à tarde (“soalheiras”). Durante o período de Tal arranjo, ademais, permitiu aos senhores a imposição de uma taxa assom-
crescimento dos arbustos, cultivava-se milho e feijão entre as fileiras bastante brosa de trabalho a seus cativos. Na cafeicultura de Saint-Domingue, a um
espaçadas dos pés de café; baixios, várzeas e brejos, inadequados ao cafeeiro, escravo de eito eram atribuídos usualmente entre 1.000 e 1.500 pés de café,
eram cultivados com arroz e cana. Os arbustos assim plantados permaneciam o mesmo que se imputava aos escravos jamaicanos. Em Cuba, estimava-se
produtivos por no máximo 25 anos, mas seus rendimentos eram perceptivel- que um cativo de roça cultivaria em média 2.000 pés, número semelhante
mente decrescentes a partir de 15 anos. Para manter a produção em patamares ao do início da cafeicultura no Vale do Paraíba, onde, no entanto, pres-
estáveis, fazia-se necessário replantar constantemente pés de café em matas supunha-se que os trabalhadores cultivariam também seus próprios man-
de derrubada, com vistas à substituição dos arbustos velhos e improdutivos timentos.81 Registros posteriores dão conta do que se passou a exigir dos
prestes a serem convertidos em pasto, roças de subsistência ou capoeiras.78
Na base desses esquemas de administração da paisagem, cujos dois 79 Os manuais agrícolas mais importantes para a cafeicultura escravista do Vale do Paraíba, que
expressavam as práticas efetivamente empregadas pelos fazendeiros, foram a Pequena memória do
pontos essenciais eram o cultivo em derrubadas e o plantio alinhado vertical Padre Aguiar, de 1836, e o famoso opúsculo de Francisco Peixoto de Lacerda Werneck (Barão do
Paty do Alferes), Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro (1ª ed.
2, p. 165-188, jul.-dez. 2005. Ver, também, SANTOS, Marco Aurélio dos. Geografia da escravidão na em 1847), com a organização de Eduardo Silva (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa:
crise do Império: Bananal, 1850-1888. 2014. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Senado Federal, 1985). Para uma análise da série completa dessas publicações, ver MARQUESE,
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. Rafael de Bivar. Administração & escravidão: idéias sobre a gestão da agricultura escravista
brasileira. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 157-189.
78 Para a gestão agrícola empregada no Vale, ver FRAGOSO, João Luis Ribeiro. Sistemas agrários em
Paraíba do Sul (1850-1920): um estudo de relações não-capitalistas de produção. 1983. Dissertação 80 Cf. MORGAN, Philip. Task and Gang Systems: the organization of labor on New World plantations.
(Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1983. Sobre as In: INNES, P. (Org.). Work and Labor in Early America. Chapel Hill: The University of North
articulações entre administração da paisagem e administração do trabalho escravo, ver MARQUESE, Carolina Press, 1988.
Rafael de Bivar. Diáspora africana, escravidão e a paisagem da cafeicultura escravista no Vale do 81 Sobre Saint-Domingue, ver GEGGUS, David P. Sugar and Coffee Cultivation in Saint-Domingue
Paraíba oitocentista. Almanack Braziliense, São Paulo, n. 7, p. 138-152, maio 2008. Ver também and the Shaping of the Slave Labor Force. In: BERLIN, I.; MORGAN, P. (Org.). Cultivation and
STEIN, 1990, p. 260-265, e o relato contemporâneo de LAËRNE, C. F. van Delden. Brazil and Java: Culture: Labor and the Shaping of Slave Life in the Americas. Charlottesville: University Press
report on coffee-culture in America, Asia, and Africa. Haia: Martinus Nijhoff, 1885. p. 253-382. of Virginia, 1993. p. 77; para a Jamaica, HIGMAN, 2001, p. 159-191; sobre Cuba, NOA, Tranquilino

52 53
escravos com a progressiva especialização das fazendas. Um livro de con- em grandes unidades pertencentes a investidores privados. Em resposta ao
tas de Cantagalo consultado pelo diplomata Johann Jakon von Tschudi em problema, Van den Bosch propôs um esquema – logo implementado pelo
1860 apontava cerca de 3.800 pés por escravo de roça. A tese que Reinhold Estado holandês – no qual os camponeses indonésios seriam compelidos a
Teuscher – médico de partido das fazendas de Antonio Clemente Pinto pagarem imposto fundiário. Tratava-se de uma reconfiguração em novas
(barão de Nova Friburgo), também em Cantagalo – apresentou alguns anos bases de práticas pretéritas da V.O.C: sob o Kultuur Stelsel, os camponeses
antes à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro veiculava um número deveriam alocar um quinto de suas terras para o granjeio de artigos deter-
ainda maior: “5 a 6000 pés de café” para cada escravo de eito.82 As conse- minados pelo governo, fornecendo-os a preços fixos aos armazéns oficiais
quências do método agronômico que possibilitava tais taxas de explora- sem serem supervisionados no processo de produção. O café se tornou a
ção do trabalho eram a erosão, o esgotamento do solo e o envelhecimento espinha dorsal do sistema e a principal fonte de rendas para o Estado colo-
precoce dos pés, o que, por sua vez, demandava replantios periódicos em nial. Os preços pagos aos camponeses não seguiam os valores do mercado
matas virgens. Sobre-exploração dos trabalhadores e devastação ambiental mundial do café, o que resultava em uma imensa transferência de exceden-
eram faces da mesma moeda na dinâmica da cafeicultura escravista do Vale tes para os poderes coloniais. Os ganhos se ampliavam com as operações
do Paraíba e na formação do mercado de massa da bebida. da Nederlandsche Handelmaatschappij, uma companhia semimonopolista
De 1840 em diante, a única região produtora mundial que se mostrou que remetia o artigo para venda no mercado de Amsterdã.83
capaz de competir com o Vale do Paraíba foi a possessão holandesa de Java, O “sistema de cultivo” permitiu um notável aumento da produção de
na Indonésia. Suas trajetórias, porém, foram bastante distintas: enquanto café de Java em relação ao século XVIII, levando-a a oferecer parte signifi-
a produção brasileira verificou aumento constante, a de Java estacionou cativa do volume importado pela Europa no século XIX. O produto javanês,
no patamar de 75.000 toneladas métricas anuais. A discrepância muito entretanto, só poderia crescer caso ocorresse o mesmo com sua população
revela sobre a natureza do complexo cafeeiro escravista do Vale. Vimos, na camponesa, mais preocupada com a combinação de atividades econômicas
segunda parte do capítulo, que a economia de Java passou por sérias atribu- que garantiam o provento de suas famílias do que com a maximização da
lações na virada do século XVIII para o XIX. Os esforços de reforma poste- produção cafeeira, vista como uma imposição do Estado colonial.
riores ao fim da V.O.C. levaram, na década de 1830, à construção de um novo O contraste com o Império do Brasil não poderia ser mais completo.
modelo de exploração colonial, o Kultuur Stelsel, ou “sistema de cultivo”. Em 1883, já no contexto da crise do escravismo, C.F. Van Delden Laërne,
Seu elaborador, Johannes Van den Bosch, avaliava que, diante da proximi- um agrônomo holandês com vasta experiência de terreno em Java, visitou
dade com os mercados europeus e o baixo custo do trabalho proporcio- as províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo para examinar
nado pela escravidão negra nas Américas, seria impossível a Java competir qual o segredo do volume da produção brasileira. Após uma estadia de seis
no mercado mundial valendo-se unicamente do emprego de trabalho livre meses, redigiu um minucioso relatório que ainda hoje é uma das melho-
res fontes para o estudo da escravidão na cafeicultura brasileira. Após fazer
Sandalio de. Memoria publicada por la Real Sociedad Patriotica sobre esta cuestión del programa:
“Cuáles son las causas a que puede atribuirse la decadencia del precio del café, y si en las actuales uma avaliação da quantidade de cativos empregados diretamente nas fai-
circunstancias de su abatimiento seria perjudicial empreender su cultivo, o prudente abandonarlo”. nas do café, Laërne advertia o leitor que prestasse atenção “a esses cálculos,
Programa publicado en el Diário del Gobierno de la Habana en 10 de abril de 1829, p. 131-133. As
informações para o Brasil das décadas de 1820 e 1830 estão na Pequena memória de Padre Aguiar e
por mais que pareça neste país [Holanda] que o plantio do café no Brasil
no Manual do agricultor brasileiro, de Carlos Augusto Taunay, p. 130. requeira mais mãos do que efetivamente ocorre. No capítulo a respeito
82 Cf. VON TSCHUDI, Johann Jakob. Viagem às províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. São Paulo: da agronomia do café, vamos aprender como é possível, com tão poucas
Edusp; Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. p. 41. 1. ed. 1866; TEUSCHER, R. Algumas observações sobre a
estatística sanitária dos escravos em fazendas de café. 1853. 12 f. Tese (Para verificação de diploma) –
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 83 Sobre o Kultuur Stelsel e a cafeicultura javanesa, ver ELSON, 1994; CLARENCE-SMITH, 1994;
1853. p. 6. Pedro Carvalho de Mello (A economia da escravidão nas fazendas de café, p. 17), trabalhando FURNIVALL, J. S. Netherlands India: a study of plural economy. Cambridge: Cambridge University
com documentos do Banco do Brasil produzidos entre 1867 e 1870, anotou de 2.976 a 4.955 pés de café Press, 1944. p.80-147; BAARDEWIJK, F. V. The cultivation system, Java 1834-1880. Amsterdã: Royal
por escravo, indicando que, quanto menor a propriedade, maior era a taxa de exploração. Tropical Institute (KIT), 1993. p. 12-14.

54 55
pessoas, produzir uma safra com mais de seis milhões de sacas [360.000 Novas considerações sobre o Vale do Paraíba
toneladas]”.84 A resposta ao enigma não era difícil de ser encontrada. A
fronteira aberta e a mobilidade proporcionada pelo trabalho escravo, soma-
e a dinâmica imperial
das, após a década de 1860, à construção da malha ferroviária e à adoção de
maquinário avançado de beneficiamento que permitia poupar mão de obra
Mariana Muaze
e deslocar mais cativos ao eito,85 tornaram a produção brasileira altamente
elástica, apta não somente a responder rapidamente aos impulsos do mer-
cado mundial, como, sobretudo, a comandá-los.
É aqui que se encontra o caráter radicalmente moderno da escravidão
no Vale do Paraíba. Com base nela, o Brasil se tornou capaz de determinar
o preço mundial de um artigo indissociável do cotidiano das sociedades
O presente artigo1 trabalha com a interpretação de que a ascensão da eco-
urbanas industriais, cujos ritmos de trabalho passaram a ser marcados pelo
nomia cafeeira na região do Vale do Paraíba fluminense e a expansão da
consumo da bebida. Nas fábricas, no comércio, nas repartições públicas,
classe senhorial do Império são processos interligados e interdependentes.
nos hospitais, nas escolas ou em qualquer outro lugar no qual a cadência
Sendo assim, considera que os lucros, demandas e interesses constituídos
fosse ditada pelo tempo do relógio, o estimulante se tornou onipresente.
em torno da cafeicultura no centro-sul foram imprescindíveis para a conso-
Não por acaso, Brasil e Estados Unidos – o paradigma do novo modo de
lidação da classe senhorial na sua dimensão nacional. A economia cafeeira
vida industrial e do consumo de massa – foram as duas pontas principais
e as identidades constituídas em torno da manutenção da escravidão cria-
da cadeia da mercadoria ao longo do século XIX, algo que se estreitou na
ram condições para que esta classe entretecesse práticas de vida – materiais,
centúria seguinte. E, como em vários outros momentos do capitalismo his-
econômicas, sociais, culturais e políticas – em torno da construção de um
tórico, a formação de uma nova commodity frontier para o abastecimento
Estado nacional, conformando-o como sua principal fonte de sustentação
das zonas centrais articulou de forma direta a degradação do trabalho e da
social e objeto de direção política.2
natureza nas zonas periféricas. A novidade do Vale do Paraíba, em rela-
Portanto, na perspectiva aqui apresentada, a história local do Vale do
ção às outras fronteiras que o haviam precedido, consistiu em sua escala,
Paraíba fluminense e o contexto político, econômico e social do Brasil no
até então sem precedentes. Seus fazendeiros não só promoveram um dos
oitocentos possuem conexões essenciais. Dentre elas, pode-se destacar a
mais intensos fluxos de africanos escravizados para o Novo Mundo, parte
transformação do Vale do Paraíba fluminense em maior exportador mun-
do qual sob a marca da ilegalidade, como igualmente arrasaram, no espaço
dial de café, processo viabilizado por uma política pró-escravista, de cunho
de apenas três gerações, uma das mais ricas coberturas florestais do mundo.
nacional, claramente desenhada para garantir a continuidade desta ins-
Produção em massa, consumo em massa, escravização em massa, destrui-
tituição no Brasil.3 Contudo, não se trataria mais de uma escravidão em
ção em massa: tais foram os signos da modernidade que conformaram a
paisagem histórica do Vale do Paraíba.
1 Esta é uma nova versão do texto “o Vale do Paraíba fluminense e a dinâmica imperial” publicado
84 LAËRNE, 1885, p. 124. em Inventário das fazendas do Vale do Paraíba fluminense: fase III. Rio de Janeiro: Instituto Estadual
do Patrimônio Cultural: Secretaria de Estado de Cultura, 2010. E em Instituto Cidade Viva. Rio de
85 Cf. SUMMERHILL, William R. Order against progress: government, foreign investment, and railroads
Janeiro, 2010. Disponível em: <www.institutocidadeviva.org.br>.
in Brazil, 1854-1913. Stanford: Stanford University Press, 2003; SLENES, Robert W. Grandeza ou
decadência? O mercado de escravos e a economia cafeeira da Província do Rio de Janeiro, 1850- 2 Sobre as relações entre escravidão e construção do Estado imperial, ver: MATTOS, Ilmar Rohloff de.
1888. In: COSTA, Iraci del Nero (Org.). Brasil: história econômica e demográfica. São Paulo: IPE: O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo: Hucitec, 1990.
USP, 1986; FRAGOSO, João L. R. A roça e as propostas de modernização na agricultura fluminense 3 Ibid. Ver ainda, SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo: Vassouras, século XIX – senhores e escravos
do século XIX: o caso do sistema agrário escravista-exportador em Paraíba do Sul. Revista Brasileira no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; PARRON, Tâmis. A política da
de História, São Paulo: Anpuh, v. 6, n. 12, p. 125-150, mar.-ago. 1986. escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. São Paulo: Civilização Brasileira, 2011.

56 57
moldes coloniais, arcaica;4 mas uma escravidão “moderna”,5 uma “Segunda em poucos anos, senhores e negociantes escravistas se articularam politi-
Escravidão”,6 cujas marcas seriam a alta lucratividade, a relação com o mer- camente e o número de africanos traficados ilegalmente cresceu de forma
cado internacional, a exploração intensiva da mão de obra propiciada pela avassaladora. Esta tendência só foi interrompida em 1850, com a assinatura
inovação técnica e organizativa da exploração, além da proximidade polí- da Lei Eusébio de Queiroz, quando o tráfico tendeu à extinção definitiva.
tica com o estado nacional.7 Nesta ocasião, a quantidade de escravos traficados que se encontravam tra-
A estrutura produtiva e comercial montada na localidade, em torno da balhando nos complexos cafeeiros do Vale do Paraíba já era suficiente para,
praça do Rio de Janeiro e suas regiões adjacentes, entre os anos de 1820 e através da formação de famílias e da reprodução natural, garantir a sobrevi-
1840, beneficiava os fazendeiros do Vale, mas também um seleto grupo de vência numérica da escravidão e o sistema produtivo das plantations cafeei-
negociantes estabelecidos na Corte e responsáveis pelo escoamento da pro- ras funcionando por muito tempo.11
dução de café para o mercado internacional. Quando as tropas de mulas, Partindo dos princípios interpretativos acima apresentados e conside-
comandadas por arreadores, muitos deles portugueses, desciam a serra lota- rando a temporalidade entre a edificação dos complexos cafeeiros flumi-
das de carregamentos de café com destino à Corte,8 imediatamente retorna- nenses, ocorrida nos anos 1820/1830, e o auge da produção na década de
vam ao Vale com africanos escravizados recém-adquiridos, além de outras 1870,12 este texto apresenta as seguintes proposições: I– a noção de Vale do
encomendas enviadas pelas casas comissárias de confiança dos fazendeiros.9 Paraíba como uma região eminentemente cafeeira foi construída, ao longo
Como se vê, a Corte foi uma espacialidade fundamental para a estru- do século XIX, concomitantemente com a ascensão política e econômica
tura política imperial e os negócios cafeeiros. Até a década de 1830, os escra- dos plantadores de café, atuando como mais um elemento de identidade da
vos africanos desembarcavam no porto do Rio de Janeiro e de lá subiam classe senhorial do Vale; II– os agentes sociais que atuaram na ocupação do
a serra para trabalharem nas plantations. Com a Lei de 1831, declarada a Vale do Paraíba fluminense bem como o capital investido na montagem dos
ilegalidade do tráfico Atlântico, os desembarques foram dificultados pelo complexos cafeeiros tiveram múltiplas origens; III– as plantations do Vale
governo brasileiro e passaram a se dar clandestinamente.10 No entanto, se organizavam como complexos cafeeiros que mantinham uma dinâmica

4 FRAGOSO, João Luis; FLORENTINO, Manolo. Arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade 2011. Duração 43 min; e MEMÓRIAS do cativeiro. Direção acadêmica: Hebe Mattos e Martha Abreu.
agrária e elite mercantil numa economia colonial tardia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Coordenação geral e roteiro: Hebe Mattos. Niterói: Labhoi-UFF, 2005. Ambos em UffTube: portal
5 A denominação de escravidão moderna para o século XIX é utilizada por ambos os autores a de vídeos. Disponível em: <www.labhoi.uff.br>.
seguir, contudo com definições distintas: ALENCASTRO. Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada 11 SALLES, 2008.
no Império In: ___. (Org.). História da vida privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade
12 A cronologia proposta por Stanley Stein para o Vale, durante muito tempo, foi tomada pela historio-
nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 (História da Vida Privada no Brasil, v. 2); LUNA,
grafia sem grandes questionamentos. Nesta interpretação, até 1850, seria o período da montagem do
Francisco Vidal; KLEIN, Herbert S. Escravismo no Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009.
complexo cafeeiro no Vale, seguido dos anos de 1850 a 1864, quando a produção e as exportações do
6 TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão, trabalho: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: produto chegariam ao auge. A falta de investimentos tecnológicos, o esgotamento das matas virgens
Edusp, 2011. Não se tratava apenas de aumentar a exploração do trabalhador escravo, aumentando para continuar crescendo, o alto preço da mão de obra escrava, a escassez das terras de “fazenda velha”
suas horas de trabalho na produção de mercadorias, mas da intensificação, dada pela introdução de seriam alguns dos elementos que desencadearam uma crise maciça do sistema a partir da segunda
inovações tecnológicas, propiciadas pela inovação técnica e organizativa, da exploração. metade dos anos sessenta. Contudo, estudos mais pontuais têm mostrado que, dependendo da pro-
7 Ibid. priedade e das estratégias de manutenção do patrimônio de seus proprietários, a história era diferente.
Portanto, a crise descrita por Stein não foi generalizada e nem a mesma em todas as fazendas do Vale
8 LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil,
fluminense. Não se trata de dizer que os problemas de esgotamento dos solos, envelhecimento dos
1808-1842. Rio de Janeiro: Moysés Baumstein, 1979.
cafezais e da mão de obra, apontados por Stein, inexistiram concretamente; mas de afirmar que seus
9 FERREIRA, Marieta de Moraes. A crise dos comissários de café do Rio de Janeiro. 1977. Dissertação efeitos foram sentidos, mais seriamente, na fronteira dos anos oitenta, e que as famílias encontraram
(Mestrado em História do Brasil) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universiadade formas diversas de lidar com o problema. Aqueles que conseguiram superar a crise e manter suas
Federal Fluminense, Niterói, 1977. fazendas investiram em títulos da dívida pública, ações de bancos e empresas, montagem de empre-
10 Sobre o tráfico ilegal de escravos, ver: MAMIGONIAN, Beatriz G. A proibição do tráfico atlântico e a sas, compra de imóveis urbanos, etc. Consultar: STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro
manutenção da escravidão. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. (Org.). Coleção Brasil Imperial: do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. SLENES, Robert W. Grandeza ou decadência?
1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. v. 1; PARRON, 2011. Para relatos de descen- O mercado de escravos e a economia cafeeira da Província do Rio de Janeiro, 1850-1888. In: COSTA,
dentes de africanos e os lugares de memória do tráfico, consultar os vídeos: PASSADOS presentes Iraci del Nero (Org.). Brasil: história econômica e demográfica. São Paulo: IPE: USP, 1986; MUAZE,
– memória negra no sul fluminense. Direção de Hebe Mattos e Martha Abreu. Niterói: Labhoi-UFF, Mariana. As memórias da viscondessa: família e poder no Brasil Império. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

58 59
social e de trabalho hierarquizante a despeito da diversidade de sujeitos his- No vale do Paraíba (Rio de Janeiro, S. Paulo, Minas) concentram-se um milhão
tóricos que viviam e se relacionavam naquele espaço. de escravos. Outrora, os interesses da sua grande propriedade procrastinaram
a repressão do tráfico, humilhando a nação inteira.16

I Mais de meio século de grandes transformações no Império do Brasil


distanciam as falas de Saint-Hilaire e Tavares Bastos. Neste período, no
Entre os anos de 1816 e 1822, o naturalista francês Auguste Saint-Hilaire per-
que compete ao vale do Paraíba, as mudanças vão muito além da paisagem
correu diversas localidades do Império do Brasil. Para descrever a região
ou da geografia do lugar. A própria noção de “Vale do Paraíba” havia sido
aqui estudada, usou a expressão Vale do Paraíba uma única vez: “a habita-
resignificada. Não se tratava mais somente de um acidente geográfico, uma
ção de Boa Vista da Pampulha é mais elevada que Sumidouro, que, entre-
referência territorial, um mero localizador. Tornara-se uma região especí-
tanto, é mais próximo três léguas da cadeia marítima, e, por conseguinte,
fica, parte importante da província do Rio de Janeiro, com características
mais afastado do vale do Paraíba”.13 Nesta passagem, o termo foi usado como
políticas, econômicas e sociais próprias. Esta singularidade foi percebida
um marco espacial para facilitar a localização especificada pelo viajante. Em
por Tavares Bastos quando a descreveu como possuidora de muitos escra-
outros momentos do mesmo texto, o rio Paraíba do Sul consta como refe-
vos, com o predomínio de grandes fazendas e com um grupo de proprietá-
rência principal, mas mantém a mesma conotação de acidente geográfico:
rios com respaldo político e cabedal econômico suficientes para resistir ao
“estrada nova do Paraíba”, “caminho novo do Paraíba”. Quase chegando a vila
fim do tráfico de escravos. Portanto, na década de 1870, o Vale do Paraíba já
de Nossa Senhora da Glória Valença, com o mesmo sentido, descreveu: “che-
havia se constituído como uma região. Mas não qualquer uma. Tratava-se
guei às margens do Paraíba, que aqui tem, mais ou menos, a mesma largura
de uma região com projeção econômica e política no âmbito nacional.
do que no lugar em que o atravessamos, perto de Ubá. Corre o rio, majestosa-
O reconhecimento do potencial da região do Vale era assunto comen-
mente, num vale circundado de altas montanhas cobertas de mata virgem”.14
tado nas províncias e na Corte, onde era comum se ouvir nas ruas o bordão
No ano 1870, Tavares Bastos usou Vale do Paraíba duas vezes em seu
“o Império é o café e o café é o Vale”. O dito era tão popular que o político
livro A província: estudos sobre a descentralização do Brasil.15 Na primeira, ao
gaúcho Gaspar Silveira Martins, durante a campanha abolicionista, com-
precisar por onde passava o telégrafo brasileiro, relatou: “apenas uma curta
pletou-o dizendo: “O Brasil é o café, e o café é o negro”.17 Suas palavras, ape-
linha percorre o litoral do Rio de Janeiro até Campos, outra corta o vale do
sar de críticas à escravidão, reconheciam claramente a indissociabilidade
Paraíba”. Suas palavras, assim como as de Saint-Hilaire, ressaltavam o papel
entre o estado Imperial, o café, a região do Vale do Paraíba e a escravidão.
do vale como referência geográfica. Contudo, na segunda menção feita pelo
A noção de Vale do Paraíba como região política e economicamente
político e escritor brasileiro, já havia a preocupação em apresentar as especi-
consolidada também já aparecia nos anos sessenta, quando do debate sobre
ficidades econômicas daquelas terras, dando-lhes um novo significado:
a construção da Estrada de Ferro D. Pedro II na imprensa:
13 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do rio S. Francisco e pela província de Goiás. São
[...] A estrada de Ferro D. Pedro II, cujos destinos foram previstos e delinea-
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. v.1, p. 23. Brasiliana Eletrônica. Disponível em: <www.
brasiliana.com.br>. Acesso em: 26 set. 2014. dos, ganhasse forças servindo ao rico Vale do Paraíba da Cachoeira até o Porto
14 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo (1822).
Novo do Cunha. (A ACTUALIDADE: Jornal Político, Litterário e Noticioso, Rio
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1932. v. 5, p. 34. Brasiliana Eletrônica. Disponível em: de Janeiro, 2 fev. 1862).
<www.brasiliana.com.br>. Acesso em: 26 set. 2014. A estrada de Ferro D. Pedro II foi feita especialmente para servir ao vale do
15 Tavares Bastos foi um importante escritor e político alagoano. Ocupou a cadeira de deputado geral Paraíba e para suas partidas de imensa produção que ali se encontram. (A
pela província de Alagoas, entre 1861 e 1868. Consultar: BASTOS, Aureliano Tavares. A província:
ACTUALIDADE: Jornal Político, Litterário e Noticioso, 19 fev. 1862).
estudos sobre a descentralização do Brasil. São Paulo: Companhia Editora nacional, 1937. p. 302, 368.
Brasiliana Eletrônica. Disponível em: <http://www.brasiliana.com.br>. Acesso em: 3 maio 2011. Para
efetuar a pesquisa sobre a designação Vale do Paraíba, usamos os noventa e sete livros da Coleção
Brasiliana que estavam disponíveis na internet. Dentre os autores que também utilizaram a expres- 16 BASTOS, 1937.
são Vale do Paraíba, ainda encontramos: Alberto Torres, Manoel Bonfim e João Pandiá Calogeras. 17 TOPLIN, Robert Brent. The Abolition of Slavery in Brazil. New York: Atheneum, 1975. p. 136.

60 61
[...] O Vale do Paraíba dará produção para pagar e indenizar amplamente os capi- década de 1830.21 O caso da fazenda Pau Grande, uma das sesmarias mais
tais que se empregarem ali em estrada de ferro, e então se aproveitará em toda antigas da região, fundada na segunda metade do XVIII, por José Rodrigues
a extensão desse dinheiro que aí estará bem guardado. (CORREIO MERCANTIL:
da Cruz, é bem representativo:22
Jornal Noticioso, Commercial e Político, Rio de Janeiro, 10 set. 1867).
AÇÚCAR AGUARDENTE RECEITA TOTAL
Tantos investimentos em uma só localidade despertaram críticas áci-
das e deboches de representantes das províncias não contempladas: 1797 4:661$540 (1960@e30ss) 1:818$540 (60 pipas) 6:480$080

O Vale do Paraíba é importante, vale até estrada de ouro. O resto do país não 1801 48:916:476 (3707@) 2:450$800 (92 ½ pipas) 52:492$661
vale nada, contentam-se com postos da guarda nacional, com os filões dos car- 1805 83:038$634 (não consta) 2:089$040 (107 ½ pipas) 85:127$675
gos policiais, e com os diplomas de eleitores para fabricar deputados e sena-
dores, porque de Minas é só isso que querem, com lombo de porco e feijão 2:997$920
1810 102:747$529 (1035@26ss) 105:745$449
fresco. Além da Mantiqueira, só campos estéreis, e o Vale do Paraíba produz (63 pipas e 132 medidas)
café e pode dar [...] boas empreitadas as custas do tesouro. (O GLOBO: Jornal
Philosophico, Literario, Industrial e Scientifico, Rio de Janeiro, 29 dez. 1867).18 A análise das receitas expostas demonstra a franca expansão dos negó-
cios e confirmam que a maior parte dos lucros da fazenda advinha do comér-
Os diferentes significados dados ao Vale do Paraíba ao longo do século
cio do açúcar e da aguardente para consumo interno e exportação, ainda
XIX permitem caracterizá-lo como uma construção histórica. Nos primei-
nos anos de 1810. A produção era comercializada com diferentes compra-
ros anos do século XIX, a experiência da escassa ocupação e das imensas
dores estabelecidos nas localidades vizinhas de Barra do Inhomirim, Pillar e
matas virgens projetava o rio Paraíba como localizador para os que ali passa-
Corte. As numerosas pipas de aguardente relacionadas tinham como destino
vam, com o intuito de traçar direções que facilitassem a exploração daquelas
final Benguela e Lisboa, onde a bebida era usada no tráfico transatlântico de
terras. Não obstante, à medida em que o território foi colonizado, houve o
escravos africanos. Com negócios tão consolidados, só houve interesse em
crescimento de vilas, cidades, entrepostos comerciais, estradas, pequenos e
investir maciçamente na cultura do café por volta da década de 1830, quando
médios sítios,19 além de imensos latifúndios. As transformações sociais, eco-
o preço da rubiácea já estava em ascensão no comércio mundial. Da mesma
nômicas, políticas, culturais e de meio ambiente ocorridas alteraram as per-
forma que no exemplo descrito, muitos proprietários exploraram as duas
cepções individuais e coletivas constituídas sobre aquela espacialidade. Das
culturas concomitantemente até que, enfim, os lucros do cafeeiro superaram
relações estabelecidas e vivenciadas pelos agentes sociais, emergiu a noção
de Vale do Paraíba como região cafeeira, escravista, exportadora e economi- os da cana de açúcar redundando numa substituição definitiva.23
camente próspera.20 Esta associação foi facilitada pela rápida ampliação do
21 Para a década de 1820, os principais produtos exportados no Império tinham os seguintes índices
cultivo da rubiácea nas terras banhadas pelo rio Paraíba; também conheci- gerais: 27,8% açúcar, 21% algodão e 19,2% café. Na segunda metade do século XIX, os índices do
das como “Serra Acima”. Portanto, como fica aqui demonstrado, o espaço café bateram 60% das exportações e o Vale do Paraíba tornou-se o maior exportador mundial do
produto. O açúcar, em outras localidades do Rio de Janeiro, manteve sua força econômica e o poder
é um produto social, resultado histórico das disputas sociais e políticas em
político de muitos de seus produtores durante boa parte do XIX.
torno da significação do território. E com o vale do Paraíba não foi diferente. 22 Sobre a fazenda Pau Grande e as famílias Ribeiro de Avellar e velho da Silva, consultar: MUAZE,
Nas primeiras décadas do oitocentos, o café disputava espaço com Mariana. 2008.
algumas culturas de subsistência e, principalmente, com a cana de açúcar, 23 Para fazer esta afirmação, comparamos dois inventários de membros da família. No primeiro,
pertencente à D. Antônia Maria da Conceição (1828), não foram relacionados instrumentos de
gênero mais lucrativo na balança comercial brasileira até, pelo menos, a trabalho, bens de raiz ou plantações referentes ao seu cultivo de café. Tal constatação indica que,
até aquele momento, o cafeeiro ainda não havia se tornado o principal sustentáculo da riqueza
18 Grifos meus. Todas as quarto citações acima foram consultadas no site: Biblioteca Nacional Digital
familiar, logo, a fazenda continuava vigorando como um engenho por excelência. Já no inventá-
Brasil. Rio de Janeiro. Disponível em: <hemerotecadigital.bn.br>. Acesso em: 5 jun. 2014.
rio de seu filho, barão de Capivary (1863), encontram-se listados milhares de árvores de diferen-
19 Sobre a agricultura de subsistência e a fundação da vila de Paty do Alferes, ver: MUAZE, 2008, cap. 4. tes idades, tendo as mais antigas 24 anos, levando-me a concluir que a substituição de culturas
20 Sobre espaço e relações sociais na história, consultar: KNAUSS, Paulo. Introdução. In: ___. Cidade deve ter sido iniciada na década de 1830. A fortuna acumulada por este fazendeiro foi da ordem
vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. p. 7. de 858:670$300, conforme seu inventário. Documentos consultados: INVENTÁRIO do Barão de

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Desde a virada do século XIX, com a industrialização europeia e a Diante da demanda crescente, o plantio da rubiácea cresceu imensa-
revolução escrava de São Domingos, houve uma reestruturação significa- mente através de dois eixos principais. O primeiro partiu de Laranjeiras,
tiva dos lugares produtores de commodities. Segundo o historiador Rafael Tijuca e Serra do Mendanha, na cidade do Rio de Janeiro, e atingiu o Vale
Marquese,24 esta colônia francesa respondia por parte significativa da pro- do rio Paraíba do Sul, onde tomou dois sentidos distintos. Para São Paulo,
dução de gêneros tropicais (como açúcar, algodão e café) até 1791, quando margeando o Caminho Novo da Piedade (desbravado em 1770 para facilitar
foi declarada a independência do Haiti. Na nova conjuntura política, houve a comunicação entre o Rio de Janeiro e as minas de Goiás e Mato Grosso),
a desestruturação dos largos plantéis ali existentes e seu espaço no mercado se destacaram as localidades de São João Marcos do Príncipe, Resende,
internacional foi suprido por novas áreas produtoras, a exemplo do Vale do Piraí e São Sebastião de Barra Mansa. Em direção à Minas Gerais, nos veios
Paraíba. Por outro lado, a Revolução Industrial inglesa e o novo ritmo de do Caminho Novo (aberto para o transporte do ouro na década de 1720),
trabalho impulsionaram a popularização do açúcar na dieta do trabalhador, foram fundadas as vilas de Paty do Alferes, Vassouras e Nossa Senhora da
o aumento do consumo de bebidas estimulantes a exemplo do café e o cres- Glória de Valença. No último caso, lembro que a proliferação das fazendas
cimento da demanda de algodão para a indústria têxtil em expansão, o que cafeeiras também foi facilitada pelas duas variantes do Caminho Novo, as
tornou a exportação destes produtos bastante lucrativa.25 estradas do Comércio (1813/1817) e da Polícia (1817), que serviram de vias
As primeiras experiências de plantio do café no Brasil foram no Pará. de escoamento para os portos fluviais de Iguaçu, Estrela e Porto das Caixas,
Na Corte, a rubiácea foi cultivada como uma planta de quintal para con- de onde o café seguia para as casas comissárias da Corte e, enfim, para seus
sumo doméstico e, entre 1760 e 1820, já se percebiam plantações pioneiras. diferentes destinos nos Estados Unidos e Europa.29
Sobre esse período inicial, Monsenhor Pizarro atestou que a Tijuca era a O segundo eixo de expansão partiu da baixada fluminense com desta-
localidade de maior produção no início do século XIX: “não há chácara ou que para as vilas de São Gonçalo e Santo Antônio de Sá (atual Itaboraí). De
fazenda que deixe de cultivar o precioso gênero”.26 Entre os primeiros plan- lá, o cultivo do café chegou a Cantagalo na década de 1840 e fez uma nova
penetração para o nordeste onde alcançou Nova Friburgo, Aldeia da Pedra
tios na urbe, destacava-se: a rua dos Barbonos (hoje, rua Evaristo da Veiga)
(atual Itaocara), Bom Jesus de Monte Verde (atual Cambuci) e São Fidélis
pertencente aos padres capuchinhos; a encosta do Corcovado e morros
de Sygmaringa. Como se vê, nos idos de 1830, a cultura do cafeeiro já havia
vizinhos com mais 3 mil pés; a da região ao norte do maciço da Carioca e
tomado quase toda a bacia do rio Paraíba,30 incluindo Entre-Rios, Paraíba
o plantio do Mata-Porcos, atual Largo do Estácio, pertencente ao holandês
do Sul, Santo Antônio de Sapucaia e Porto Novo.31 Neste processo, foram
João Hoppman.27 Para fora do centro da cidade, a cultura do café se alastrou
imprescindíveis as imensas florestas virgens que se traduziram em uma área
nas encostas de Jacarepaguá e elevações que circundam a baixada de Santa
de fronteira agrícola aberta para exploração e as vias de escoamento estabe-
Cruz e Inhaúma, onde se localizava a fazenda do padre Antonio Couto da
lecidas desde a extração aurífera.
Fonseca, no local chamado Mendanha.28
Não obstante os aspectos externos, o rápido crescimento do café no
Capivary. Vassouras: Faculdade Severino Sombra, 1863. CDH, caixa 116; INVENTÁRIO Antônia vale do Paraíba também foi facilitado pela enorme disponibilidade de terras
Maria da Conceição. Vassouras: Faculdade Severino Sombra, 1828. CDH, caixa 76. (fronteira agrícola aberta), uma rede de estradas e caminhos consolidada, um
24 MARQUESE, Rafael. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos
escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
know how de transporte executado por mulas desenvolvido durante a minera-
25 TOMICH, D; MARQUESE, R. “O Vale do Paraíba escravista e a formação do Mercado mundial de café”. ção, uma estrutura de tráfico negreiro eficazmente montada e uma volumosa
In: GRIMBERG, Keila; SALLES, Ricardo. Coleção Brasil Imperial: 1831-1871. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2009. Este texto recebeu uma nova edição revisada que compõe o primeiro capítulo deste livro. 29 Sobre a abertura dos caminhos e sua importância para a ocupação e expansão comercial do Vale
26 PIZARRO, Monsenhor apud MACHADO, Humberto. Escravos, senhores e café. Niterói: Cromos, 1993. p. 20. do Paraíba fluminense, consultar: NOVAES, Adriano. Os caminhos antigos do território fluminense.
27 VALVERDE, Orlando. Estudos de geografia agrária brasileira. Petrópolis: Vozes, 1985. In: INVENTÁRIO das fazendas fluminenses. Rio de Janeiro: INEPAC, 2008. t. I, p. 53-78.
28 Nestas localidades, o russo Langsdorff possuía vasta plantação na Fazenda Mandioca e o antigo 30 Para o geógrafo Orlando Valverde, a denominação bacia do Paraíba seria mais completo, pois tam-
lavrador de São Domingos, Sr. Lessesne, foi fornecedor de mudas de café com mais de sessenta mil bém incluiria as terras não diretamente banhadas pelo rio Paraíba do sul. VALVERDE, 1985.
pés plantados em sua fazenda em Jacarepaguá. 31 SALLES, Ricardo. 2008.

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reserva de capitais privados, acumulados em outras áreas de produção, mas Buscando as relações aqui propostas no âmbito local, pode-se verifi-
que foram investidos nos complexos cafeeiros aos primeiros sinais de pos- car que, no mesmo período (1840-1860), houve a consolidação do poder
síveis lucros a partir da expansão da demanda no mercado internacional.32 dos grandes e mega proprietários “serra acima”, no Vale do Paraíba, con-
Todo este processo de montagem de uma estrutura cafeeira escravista firmando a supremacia da região mercantil do centro-sul.37 Partindo dos
de grande porte na região do Vale do Paraíba aqui descrito deve ser enten- dados levantados por Ricardo Salles para Vassouras, pode-se dizer que os
dido de forma indissociável à construção do estado imperial e da própria senhores com mais de 100 escravos ampliaram a posse de cativos de: “34,5%
classe senhorial. A partir dos anos de 1840, após a intensa experiência federa- para 74,23% entre 1836 e 1850; para 72,2% entre 1851 e 1865 e para 70,24%
lista da Regência, houve a ascensão de uma política de estado centralizadora entre 1866 e 1880”.38 Neste processo, o grupo de pequenos e médios pro-
levada a cabo pelos conservadores Saquaremas. No novo contexto, os ideais prietários, muitos dependentes dos grandes cafeicultores (para emprésti-
de manutenção da ordem e expansão da civilização foram legitimados como mos de dinheiro, transporte de mercadoria, etc.), acabaram em dificuldades
capazes de unir diferentes interesses políticos e econômicos da classe senho- financeiras e perderam suas posses, o que auxiliava ainda mais a concen-
rial em torno da Coroa, representada pela figura do Imperador.33 Enquanto o tração de terras nas mãos dos grandes latifundiários que as adquiriam por
primeiro garantia a escravidão como peça fundamental para a sobrevivência módicos preços. Em Paraíba do Sul, o mesmo processo de concentração
do Império, o segundo valorizava as formas de comportamento e o habitus de terras e escravos também foi percebido por João Luis Fragoso.39 Ambos
europeu como modelo de civilidade a ser seguido, vislumbrando colocar o os trabalhos demonstram que os mega e grandes senhores tiveram con-
Brasil no rol das grandes nações.34 Tal processo foi definido pelo historia- dições excelentes em termos de disponibilidade de terra, mão de obra e
dor Ilmar Mattos como “expansão para dentro.” Ou seja, ao transformar os demanda por produto para competirem no mercado internacional de café.
ideais de ordem e civilização em elementos de coesão e identidade social, os Tais condições não eram de todo espontâneas: havia uma política de estado
Conservadores não só apaziguavam as diferenças no interior da classe senho- escravista favorecedora da reprodução destas relações, já que as mesmas lhe
rial, fortalecendo-a;35 mas também incorporavam as classes médias urbanas
proporcionavam base de sustentação política e econômica.
e os profissionais liberais à chamada boa sociedade do Império. Com a base
Portanto, mesmo não ocupando as mais altas posições do Executivo
de sustentação social ampliada e consolidada, foi possível manter uma polí-
e do Legislativo central, os senhores do Vale do Paraíba estiveram, direta
tica conservadora pró-escravista favorecedora dos interesses dos senhores de
e indiretamente, ligados à política imperial.40 Muitos mantinham cone-
escravos até, seguramente, a Lei do Ventre Livre, em 1871.36
escravos não era ignorado pelos conservadores, muito pelo contrário. O propósito destes políticos
32 MARQUESE; TOMICH, 2009, p. 353. era “reformar para conservar”, aprovar a emancipação do ventre escravo como forma de garantir
33 MATTOS, I. 1990. a sobrevivência da escravidão por mais alguns anos, num mundo em que esta instituição ruía.
Desejavam o menor abalo possível das estruturas sociais a fim de manter a ordem imperial e o
34 O conceito de habitus aqui trabalhado é entendido a partir das considerações de Norbert Elias, para
controle dos meios de produção pela classe dominante. SALLES, 2008.
quem habitus é a forma de sentir e agir não reflexiva, o equivalente a uma segunda natureza, que, atra-
vés do autocondicionamento psíquico, pouco a pouco vai fazendo parte da estrutura da personalidade 37 Ibid.
do indivíduo. Para compreender melhor a forma como Elias entende e trabalha com este instrumental 38 Ibid, p. 156.
teórico, deve-se inseri-lo no contexto de sua teoria geral do “processo civilizador”. Sobre o conceito 39 FRAGOSO, João Luís. Barões do café e sistema agrário escravista: Paraíba do Sul/Rio de Janeiro (1830-
de habitus ver: ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1995; Id. Mi trayectoria 1888). Rio de Janeiro: Faperj: 7Letras, 2013.
intelectual. Barcelona: Ediciones Península,1984; Id. Processo civilizador. São Paulo: JZE, 1993. v. I-II.
40 Neste aspecto, discordo da noção de “dialética da ambiguidade” desenvolvida por José Murilo, para
35 Desta forma, os conservadores conseguem construir a Coroa como Partido, ou seja, unem a classe quem os interesses dos proprietários rurais e da Coroa entraram por diversas vezes em descompasso
senhorial e a boa sociedade em torno da figura do imperador e do funcionamento das instituições durante o Segundo Reinado. Segundo o autor, isso pode ser percebido em relação às despesas com
do estado Imperial, ao mesmo tempo em que reforçam os ideais favorecedores desta classe (ordem justiça, administração, educação, obras de infraestrutura e assistência pública nas províncias, onde a
e civilização) como política de estado. No bojo deste processo, muitos membros da classe senhorial participação da Coroa sempre deixou a desejar. Contudo, é preciso que se pense que, ao não ocupar
abrem mão de seu poder privado (casa) em prol da defesa de interesses maiores representados pelo este espaço a nível local no tocante às províncias, a Coroa deixava um vazio que era preenchido
Império. MATTOS, I., op. cit. pelos grandes senhores de terras e homens que o almejavam em troca de prestígio social, aquisição
36 A Lei Rio Branco foi aprovada, em 1871, com o intuito de minimizar as reivindicações pela abo- de títulos e privilégios políticos. A distribuição de nobiliarquia parece ter sido o mais comum meca-
lição surgidas após a guerra do Paraguai. Seu custo político em relação aos grandes senhores de nismo de compensação, pois 14% de todos os títulos conferidos por D. Pedro II foram a fazendeiros

66 67
xões com importantes nomes da Corte como forma de garantir os inte- prestígio social nas mãos das poucas famílias que conseguiram receber seu
resses cafeeiros na esfera nacional. No nível local, havia o domínio quase quinhão até as primeiras décadas do século XIX.
absoluto das câmaras municipais, assembleias provinciais, guarda nacional O pioneirismo na ocupação de terras no Vale comentado por Stanley
e execução de obras públicas por estes grandes senhores que gozavam de Stein certamente foi um fator importante para que algumas famílias con-
uma vasta rede de solidariedades tecidas entre as “principais famílias” de centrassem riqueza e poder numa fase posterior, quando o preço do café
cada localidade.41 Contudo, tal forma de articulação política não prescindia despontou no mercado internacional. Contudo, em muitos casos, tais fortu-
de disputas intra-classe, a exemplo das querelas entre o Partido Liberal e nas familiares foram erguidas ou ampliadas com base em outras atividades
Conservador ocorridas tanto no cenário nacional como local. econômicas que não o plantio do café para o mercado externo, tais como:
comércio de grosso trato, tráfico de escravos, mineração, investimento em
II imóveis, e empréstimo de dinheiro a juros. Os exemplos são distintos de
localidade para localidade. Mas, na maioria dos casos, o café não foi a única
Na década de 1950, a ocupação do vale do rio Paraíba do Sul foi estudada base na qual foram erguidas as principais fortunas da região.
pelo historiador Stanley Stein em seu trabalho clássico Grandeza e decadên- Em 4 de setembro de 1820, D. João VI assinou o decreto que permitia
cia do café. Segundo o autor, este movimento populacional foi impulsio- a criação da vila de Paty do Alferes. Daquele momento em diante, todas
nado por dois fatores principais. De um lado, a concessão de sesmarias na as casas de fazendas, casebres, ranchos para pouso de tropeiros e viajan-
região que se intensificou durante a estada da Corte portuguesa no Brasil tes, vendas, e demais formas de morada e trabalho, construídas dentro
devido à distribuição de terras em agradecimento aos serviços prestados a dos limites das antigas freguesias de Nossa Senhora da Conceição do Paty,
sua Majestade. De outro, o aumento de posses de terras derivadas da intensa Sacra Família do Caminho Novo do Tinguá, Nossa Senhora da Conceição e
movimentação proveniente da região mineradora, quando o Vale ainda era Apóstolos São Pedro e São Paulo da Paraíba Nova e os curatos de Santana de
numa zona de fronteira agrícola aberta.42 A convivência entre sesmeiros Sebolas e Senhor Bom Jesus de Matosinhos, passavam a fazer parte da vila
e posseiros, que inicialmente foi pacífica, tendeu a se acirrar na medida de Paty do Alferes.43 A região era bastante visitada por aqueles que se des-
em que as áreas de expansão agrícola foram se escasseando e os litígios tinavam as Minas Gerais pelos caminhos do ouro e se mantinham através
pelas terras foram se intensificando. O resultado de tal dinâmica histórica da produção de gêneros agrícolas como cana de açúcar, mandioca, milho,
foi uma enorme concentração de terras, escravos, poder político-militar e legumes, café, marmelos e diversas frutas. Os produtos se destinavam ao
auto-abastecimento e, em escala reduzida, o fornecimento para Corte, com
de café. Conferira a tabela abaixo. Consultar: MUAZE, 2008, p. 66-68; CARVALHO, José Murilo de.
Teatro de sombras: a política imperial. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. exceção do açúcar, que era levado, em grandes quantidades, ao porto da
41 Como exemplo, podemos citar o caso do barão de Capivary e do visconde de Uruguai, na oca- Estrela para ser encaixotado e transportado para armazéns da capital.44
sião de Membro do Conselho de Estado e chefe do Partido Conservador, que trocaram correspon- A decisão de criar uma vila em Paty do Alferes privilegiava os núcleos
dências em 1862 para acertar os nomes indicados para a próxima eleição da assembleia provincial.
Consultar: SOUSA, Paulino José Soares de – visconde do Uruguai. [Carta ao barão de Capivary]. Rio Ribeiro de Avellar e Werneck, pertencentes à mesma família de origem e
de Janeiro, 7 jan. 1862. Arquivo Nacional, Fundo Fazenda Pau Grande, notação 74. Ainda podemos pioneiros na ocupação da região desde o século XVIII, com a fundação das
citar o caso da revolta de Manoel Congo, ocorrida em Vassouras em 1838, estudada pelo historiador
Flávio Gomes. Na ocasião, o comandante da Guarda Nacional acionado para capturar os fugitivos
primeiras sesmarias do Pau Grande, Ubá e Guaribu.45 Já em 1711, André
era Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, futuro barão de Paty do Alferes e um dos maiores pro-
prietários fundiários da região com cerca de mil escravos. As demais autoridades responsáveis pela 43 Sobre o assunto, consultar: ALVARÁ de criação da Vila de Paty do Alferes, 4 de setembro de 1820
averiguação do caso – os juízes de paz e o juiz de direito – eram todos seus parentes: “o juiz de paz da apud PIRES, Fernando Tasso Fragoso. Antigas fazendas de café da província fluminense. Rio de
freguesia de Pati do Alferes, José Pinheiro de Sousa Werneck, era irmão do juiz sendo ambos primos Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 14-15 e RELATO de Monsenhor Pizarro e Araújo apud RAPOSO,
legítimos de Lacerda Werneck.” GOMES, Flávio. História de quilombolas: mocambos e comunidades Inácio. História de Vassouras. 2. ed. Rio de Janeiro: SEEC, 1978. p. 21.
de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 198. 44 Ibid.
42 A concessão de sesmarias foi abolida em 1822, quando se instituiu o reconhecimento legal das pos- 45 Sobre a família Werneck, consultar o trabalho do historiador: SILVA, Eduardo. Barões e escravidão:
ses. Ver: STEIN, 1990. três gerações de fazendeiros e a crise da estrutura escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

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João Antonil, ao traçar o “roteiro do Caminho Novo da cidade do Rio de primeiros anos, a produção era diversificada (mandioca, feijão, banana e
Janeiro para as minas” no livro Cultura e opulência do Brasil, fez o primeiro porcos) e escoava para a capital através das estradas do Comércio (1813) e
registro referente às terras do Pau Grande que se tem notícia. da Polícia (1820), à margem das quais nasceram as primeiras culturas dos
cafeeiros.49 Na verdade, a introdução dos cafezais na região é anterior à cria-
Dos Pousos Frios se vai à primeira roça do capitão Marcos da Costa; e dela, em
duas jornadas, à segunda roça, que chamam do Alferes. Da roça do Alferes, ção da vila de Paty do Alferes. Os tropeiros que transitavam entre os centros
numa jornada se vai ao Pau Grande, roça que agora principia, e daí se vai pou- da mineração e a cidade do Rio de Janeiro plantaram as primeiras mudas
sar no mato ao pé de um morro que chamam Cabaru. Desse morro se vai ao de café ao longo do Caminho Novo, buscando garantir alimento em futuras
famoso rio Paraíba, cuja passagem é em canoas. Da parte de aquém, está uma paradas. O grande florescimento da localidade de Vassouras acabou influen-
venda de Garcia Rodrigues e há bastantes ranchos para os passageiros; e da
ciando a alteração do centro político e facilitando a exploração do café na
parte d’além, está a casa do dito Garcia Rodrigues, com larguíssimas roçarias.46
região que já, em 1836, alcançou o índice de 300 mil arrobas exportadas.50
O citado Garcia Rodrigues Paes havia sido o principal responsável pela Para Stanley Stein, “três acontecimentos se conjugaram para completar
abertura do Caminho Novo em fins do século XVII e recebeu como recom- o povoamento de Vassouras no último quartel do século XVIII e no pri-
pensa quatro sesmarias para si e uma para cada um de seus doze filhos. meiro do século XIX: a exaustão das Minas ao norte, a expansão da cultura
Pouco tempo depois, em 1739, o capitão Francisco Tavares, também mora- do café e a eliminação dos índios Coroados na região atualmente ocupada
dor do caminho das Minas Gerais, ergueu uma capela em homenagem à por Valença na margem norte do Paraíba”. A decisão regencial de transferir
Nossa Senhora da Conceição em sua fazenda ao redor da qual outros habi- a vila para Vassouras veio satisfazer interesses políticos e econômicos das
tantes se estabeleceram. Em 1816, foi a vez do francês Saint-Hilaire passar famílias Teixeira Leite e Correia e Castro, que enriquecidas com a minera-
pela localidade. O cenário antes descrito por Antonil havia mudado e as ção, haviam se instalado na região de Vassouras na virada do século, após
terras do Pau Grande já comportavam um grande engenho de açúcar. A a exaustão das minas de ouro, procurando outra atividade econômica. A
partir delas, a família Ribeiro de Avellar se fixou na região desde 1748 e mudança da capital política também contou com a aceitação dos Ribeiro de
exerceu seu poder durante todo o Oitocentos.47 Avellar e Werneck que, na época, possuíam membros na câmara municipal
As festividades de criação da vila de Paty do Alferes e a posse da pri- de Paty que votaram pela alteração.51 O florescimento da nova vila foi rápido
meira Câmara municipal ocorreram em 23 de fevereiro de 1823. Contudo, e, em 1850, já possuía 35.000 residentes entre pessoas livres e escravos. Em
menos de 2 anos depois a mesma foi extinta para a criação da povoação 1872, este número era de 39.253 habitantes, incluindo 20.158 escravos, 19.085
de Vassouras em seu lugar.48 A nova vila de Vassouras, assim como Paty do livres de diferentes raças e origens.
Alferes, tinha sido ocupada a partir da decadência da mineração. Em seus No caso de Valença, que também seria uma das principais exportado-
ras de café, as primeiras sesmarias distribuídas foram doadas para Francisco
Para uma abordagem memorialista, ver: MORAES, Roberto Menezes de. O casal Furquim Werneck
e sua descendência. Vassouras: Liney, 1985; CASTRO, Maria Werneck de. No tempo dos barões. São Nunes Fagundes (1770), Garcia Rodrigues Paes Leme (1771) e Francisco
Paulo: Bem-te-vi, 2004. Antonio de Paula Nogueira da Gama (1797), ainda no século XVIII. A fun-
46 Grifos meus. ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. São Paulo: Melhoramentos:
dação da aldeia Nossa Senhora da Glória de Valença, em 1803, é atribuída
MEC, 1976. p. 184.
47 Concessão de meia légua de terras em Pau Grande aos irmãos Manuel e Francisco Gomes Ribeiro
da Cruz, Manoel João Goulart, capitão José Lopes França, o alferes José de Souza Vieira e os juizes
(o moço) e ao sócio Antônio da Costa Araújo. A carta de sesmaria foi requerida pelos três sócios,
ordinários capitão-mor Manoel Francisco Xavier e o Capitão Francisco das Chagas Werneck.
em 9 de outubro de 1748. Entretanto, na ocasião de sua assinatura, em 3 de outubro de 1750, foi
registrada uma légua de terras no nome dos dois irmãos portugueses. MORAES, Roberto Menezes 49 STEIN, 1990, p. 10.
de. Os Ribeiro de Avellar na Fazenda Pau Grande. Paty do Alferes: [s.n.], 1994. p. 8. 50 Ibid., p. 30.
48 WERNECK, Francisco Peixote de Lacerda. [Sem Título] O Vassourense, Vassouras, 31 dez. 1893 apud 51 Para acompanhar melhor esta discussão sobre a política local, consultar: FONSECA, Magno;
RAPOSO, Inácio. História de Vassouras, p. 21. Sobre a data da solenidade de fundação da vila há contro- SALLES, Ricardo. Vassouras – 1830/1850: poder local e rebeldia escrava. In: CARVALHO, J. M. de;
vérsias, enquanto Raposo aponta 23 de fevereiro de 1821, Antônio Martins afirma ser 21 de fevereiro do NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das (org). Repensando o Brasil do oitocentos: cidadania, política
mesmo ano. A primeira Câmara eleita (1821-1824) foi composta pelos procuradores Antônio Gomes e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

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a Ignácio de Souza Werneck, José Rodrigues da Cruz e ao padre Manoel depois, os irmãos fundaram a sociedade Avellar & Santos que, além das ter-
Gomes Leal – o primeiro e o terceiro da família Werneck e o segundo da ras de Pau Grande e Ubá, também realizava serviço de comissariado para
Ribeiro de Avellar, previamente citadas –, após terem sido nomeados pelo diversos fazendeiros do Vale, além do comércio de grosso trato com sede na
vice-rei para “proceder à civilização”, “domesticar e aldear” os índios coroa- Corte. Seus interesses se alastravam, ainda, para área de transporte e abaste-
dos que ocupavam a região. No aldeamento, foi construída e benzida a cimento do mercado interno colonial, pois faziam o comércio de mercado-
capela de Nossa Senhora da Glória que veio a originar a cidade de Valença. rias, principalmente açúcar, do interior para a capital pelo rio Inhomirim.55
A família Werneck chegou ao Vale em 1712. Seu pioneiro foi o migrante Como se vê, das quatro principais famílias do Médio Vale, todas tiveram
português João Berneque que constituiu família e se estabeleceu como lavra- fortuna originária no comércio e/ou mineração e puderam ampliá-las atra-
dor e comerciante na pequena localidade de N. Senhora do Pilar do Iguaçu. vés da aquisição de terras e da expansão do café.
Após um período em Minas Gerais investindo na exploração do ouro, seus Na região do Vale que se aproxima de São Paulo, os primeiros indícios
descendentes se fixaram no Vale fluminense por todo o século XIX. Ignácio de povoamento que se tem notícia foram concessões de sesmarias feitas na
de Souza Werneck, natural da freguesia de Nossa Senhora da Piedade da década de 1760. Nos anos de 1820, muitas destas terras já pertenciam ao
Borda do Campo, atual Barbacena, por exemplo, alcançou benesses da Coroa coronel Custódio Ferreira Leite, o barão de Aiuruoca, importante comer-
portuguesa devido aos serviços prestados na “civilização de índios” e na cons- ciante e minerador que foi contratado por D. João VI, em 1816, para coman-
trução da estrada Werneck, então chamada de Caminho da Aldeia, primeira dar a abertura da estrada da Polícia. Com o tempo, um núcleo populacional
estrada para o sertão de Valença.52 No início do século XIX, ao passar pela foi crescendo em torno da capela de São Sebastião e do rio de mesmo nome
fazenda Piedade, localizada na freguesia de Conceição do Alferes de Serra até que, em 3 de outubro de 1832, foi criada a Vila de São Sebastião de Barra
Acima (atual município de Miguel Pereira), o historiador Monsenhor Pizarro Mansa. Outros membros da família Leite também migraram para o Vale
comentou que o engenho de Ignácio Werneck “distanciava 3 ½ léguas em N. fluminense motivados pelo cultivo dos cafezais e as vantajosas atividades
S. da Piedade, no rio Sant´Anna.” Poucas décadas depois, em 1866, a proprie- comerciais e financeiras dele derivadas. No caso da família Leite, os laços
dade tinha 135 escravos e era parte do complexo formado por três fazendas de solidariedade familiar foram muito importantes na formação de uma
pertencentes ao barão e à baronesa de Paty do Alferes, seus herdeiros.53 rede de poder e prestígio na região. Afonso Taunay, em “História do café no
José Rodrigues da Cruz migrou de Portugal para o Rio de Janeiro Brasil”,56 conta que, na fundação de Barra Mansa, o coronel Custódio Ferreira
juntamente com seus irmãos Antônio Ribeiro de Avellar e Antônio dos Leite esteve acompanhado de Manoel, enquanto os outros irmãos Floriano e
Santos, para trabalhar com o tio no comércio de grosso trato. Segundo Anastácio se afazendaram em Valença e Conservatória, respectivamente. Em
Saint-Hilaire, José Rodrigues da Cruz recebeu como recompensa aos ser- Piraí e Vassouras, o coronel investiu juntamente com o cunhado Francisco
viços prestados à Coroa portuguesa as sesmarias de Ubá, onde estabeleceu
vítimas de doenças de pele, venéreas e varíola, adquiridas a partir do contato com o homem branco.
um engenho de açúcar, uma serraria e um moinho de fubá.54 Pouco tempo (BRASIL, Gerson. O ouro, o café e o Rio. Rio de Janeiro: IHGB: Livraria Brasiliana, 1970). De acordo
com rumores recorrentes na cidade de Vassouras, um dos fundadores de Valença, um grande lati-
52 PAIVA, Lucas Gesta Palmares Munhoz de. Lembranças da saudade: estratégias para a manuten- fundiário, havia eliminado os índios, seus protegidos, dando- lhes cachaça envenenada. BELLO, Luiz
ção de uma família cafeicultora. 2013. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Alves Leite de Oliveira. Relatório apresentado ao excelentíssimo vice-presidente da província do Rio de
Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. Janeiro..., p. 35 apud STEIN, 1990, p 11.
53 INVENTÁRIO do barão e da baronesa de Paty do Alferes. Vassouras: Centro de Documentação 55 Segundo Riva Gorenstein, os Pereira de Almeida eram proprietários de navios que faziam a ligação
Histórica da Universidade Severino Sombra, [18--?]. p. 205-209. O barão e a baronesa de Paty do entre o Rio de Janeiro e as demais cidades costeiras do Brasil, atuando no ramo de abastecimento e
Alferes possuíram três fazendas principais: Piedade, Freguesia e Monte Alegre, sendo a última sua navegação de cabotagem. GORENSTEIN, Riva; MARTINHO, Lenira Menezes. Negociantes e caixeiros
residência oficial. na sociedade da independência. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1993. p. 165. O Rio Inhomirim
54 Ibid., p. 42. Atribui-se ainda a José Rodrigues da Cruz, juntamente com Ignácio de Souza Werneck e cortava a região do vale do Paraíba e, por ser navegável, era utilizado juntamente com outros rios
o padre Manoel Gomes Leal, a fundação de Nossa Senhora da Glória de Valença, elevada, em 1823, à da província fluminense, como Paraíba, Macaé, São João, Guandu, Magé-Assu, Macacu e Iguaçu,
condição de Vila de Valença por D. Pedro I. Ainda segundo Saint-Hilaire, os índios coroados foram para o escoamento da produção para a capital até o advento das estradas de ferro. PIRES, 1984.
migrando para as florestas vizinhas de Rio Bonito, mas também muitos adoeceram e morreram 56 TAUNAY, Afonso de E. Pequena História do café. Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Café, 1945.

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José Teixeira (futuro barão de Itambé) e com os sobrinhos José Eugênio, Durante a segunda década do século XIX, a cultura do café se intensi-
Joaquim José e Francisco José Teixeira Leite (futuro barão de Vassouras) que ficou na localidade que assumiu a condição de vila, em 9 de março de 1814,
lá fixaram residência, aumentando assim suas fortunas. sob o título de “São Pedro de Cantagallo”. O crescimento da referida vila
O capitão-mor. José de Souza Breves, natural dos Açores, obteve uma foi grande. Em 1820, já reunia três lojas de fazenda, mais de uma dezena de
rápida ascensão política ao chegar ao Brasil. Através de conquista de car- tabernas, uma estalagem e vinte e oito engenhos de açúcar, além de uma
gos importantes, foi acumulando terras e poder numa área de fronteira população de 1800 pessoas livres e, aproximadamente, 2.700 escravos. Na
agrícola aberta. A mando da coroa Portuguesa, ocupou os postos de: capi- ocasião, a produção de café já girava em torno de 100 mil arrobas.59 A alta
tão e sargento-mor da Companhia do distrito de Pirahy, juiz Almotacel e produtividade da localidade foi reconhecida nos anos sessenta e assim se
capitão-mor da Vila de São João Marcos, sede do extinto município de São manteve nos anos oitenta do oitocentos, quando outras partes do vale já
João do Príncipe. Em 1817, fundou juntamente com a família Moraes a fre- figuravam com queda na produção.
guesia de Sant’Ana do Piraí. Seus filhos José de Souza Breves e Joaquim José O principal personagem da região foi Antônio Clemente Pinto, primeiro
de Souza Breves multiplicaram a fortuna familiar tirando múltiplas vanta- barão de Nova Friburgo, imigrante português que enriquecera com o comér-
gens do tráfico ilegal de africanos. O primeiro, também chamado “rei do cio de grosso e o tráfico de escravos. Em meados do século XIX, já era uma
café”, possuía um complexo de propriedades que iam de Mangaratiba, no das maiores fortunas de todo o país, proprietário de duas dezenas de fazen-
litoral, onde ficavam os principais portos clandestinos para desembarque das, nas regiões de Nova Friburgo, Cantagalo e São Fidélis, e imóveis urba-
de escravos, até São João Marcos, no Vale, onde resplandecia a imponente nos, como os palacetes Nova Friburgo, (atual palácio do Catete) localizado
fazenda São Joaquim da Grama.57 na Corte, e do Gavião em Cantagalo. Nos anos de 1826, Antonio Clemente
A atual região serrana do estado passou grande parte do século XVIII Pinto fechou sociedade com João Antonio de Moraes e sua esposa Basília. No
com sua ocupação proibida pela Coroa portuguesa em virtude do controle negócio, o casal empenhou ao sócio as fazendas Santa Maria do Rio Grande
e Macabu que correspondiam à metade do que possuíam. Em troca, João
que buscava implementar sobre o tráfico ilegal de metais e pedras preciosas
Antônio receberia 600 mil réis por ano por seu trabalho na administração das
nas Minas Gerais. Os únicos habitantes desta região eram os índios coroa-
fazendas de café, além de uma retirada mensal do que fosse necessário para o
dos e goitacases, que há muito ali viviam, e as ocupações clandestinas, sendo
sustento de sua família dos proventos da fazenda Santa Maria do Rio Grande.
a principal comandada por Manoel Henrique, conhecido como “Mão de
Em poucos anos, Antonio de Moraes já havia recuperado as propriedades
Luva”. Após 1786, com o degredo de “Mão de Luva”, a Coroa resolveu mudar
empenhadas e adquirido outras, vindo a se tornar barão de Duas Barras, com
de estratégia e facultou as terras de Cantagalo aos colonos que quisessem
um patrimônio superior a quatro mil contos de réis em 1872, certamente um
se estabelecer. Em 1818, foi a vez da migração suíça. Os recém chegados se
dos mais significativos do Império.60 Histórias como estas comprovam a alta
instalaram na localidade denominada Morro Queimado, onde atualmente
lucratividade dos negócios cafeeiros durante o segundo reinado.
é Nova Friburgo, e cultivaram milho, feijão, cana e mandioca. Em 1809, foi a
Os casos aqui citados não esgotam os exemplos das famílias que foram
vez do inglês John Mawe que recebeu autorização de D. João para visitar as
pioneiras na ocupação das terras do Vale do Paraíba fluminense e que conquis-
jazidas de diamantes de Minas Gerais e do interior. Na viagem, ele observou taram destaque político, econômico e social nas localidades onde constituí-
que a mineração se esgotara e que a atividade predominante no “arraial e ram fazendas. Além da primazia na ocupação de terras numa área de fronteira
distrito das Novas Minas de Cantagallo” era a agricultura.58 agrícola aberta, estas famílias tinham em comum um passado de migração
portuguesa relativamente recente, além de serviços prestados à Coroa, o que
57 LOURENÇO, Thiago Campos Pessoa. O Império dos Souza Breves nos oitocentos: política e escravidão
nas trajetórias dos comendadores José e Joaquim de Souza Breves. 2010. Dissertação (Mestrado em 59 FERREIRA, 1977, p. 116.
História) – Programa de pós-graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. 60 FERREIRA, loc. cit. Ver também: MELNIXENCO, Vanessa Cristina. Friburgo & Filhos: tradições
58 MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil: principalmente aos distritos do ouro e dos diamantes. do passado e invenções do futuro (1807-1914). 2014. Dissertação (Mestrado em História Social). –
Rio de Janeiro: Z. Valverde, 1944. Programa de Pós-Graduação, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

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facilitou a aquisição de terras, prestígio e a ocupação de cargos políticos e XIX como bem demonstram seus inventários. A atividade usurária auxiliava
administrativos nas localidades onde se fixaram.61 Chama a atenção também no aumento de patrimônio dos grandes senhores, já que aqueles que pediam
o fato que muitas das fortunas constituídas no rastro do café possuíam um empréstimos, na maioria das vezes, hipotecavam suas fazendas e escravos na
capital previamente acumulado em outros setores bastante rentáveis da eco- negociação. Assim, se os pagamentos fossem feitos regularmente, lucrava-se
nomia, tais como a mineração, o comércio de grosso trato, empréstimo a juros com os juros cobrados, caso contrário recebiam-se as propriedades, bens
e o tráfico de escravos. Em alguns casos, uma ou mais de uma atividade foram móveis e semoventes dos inadimplentes, dependendo do contrato.64
exercidas concomitantemente com o cultivo da lavoura para exportação, con- A vasta extensão de terras e escravaria acumuladas por estes poucos
forme explicitado nos exemplos acima. Fosse pelo recebimento de sesmarias, fazendeiros os colocava no topo da classe senhorial. Estudos recentes rela-
fosse pela posse de terras, a aquisição de vastas propriedades era facilitada tivizam o tamanho dos plantéis de escravos e demonstram que fazendeiros
àqueles (indivíduos ou famílias) que possuíam uma posição econômica e/ou com mais de cem escravos eram considerados grandes proprietários e cons-
social de destaque, reiterando a lógica social hierárquica vigente.62 tituíam uma minoria numérica no vale do Paraíba. Contudo, mesmo sendo
Desde tempos coloniais, a terra era um fator de produção que estava poucos, na região de Paraíba do Sul, por exemplo, estes homens controla-
disponibilizado no mercado, pois, na maioria das vezes, a sesmaria podia vam de 45 e 84% do valor das fazendas entre 1830 e 1885. Para se ter uma
ser alienada ou alugada por seus titulares. Desta forma, mesmo se tratando ideia mais aprofundada, os oito patronos das famílias Werneck, Pereira
de uma apropriação política, concedida através de merecimento militar ou Nunes, Andrade, Corrêa Tavares, Alves Barbosa, Moreira Castilho, Ribeiro
benefícios ao poder público, a sua transmissão ocorria através da venda, Avellar e Barroso Pereira possuíam 56,4% das terras do mesmo município
mesmo que de parte do terreno. Assim, a terra não se constituiu como um em 1879 e 21,5% da mão de obra cativa em 1872. Suas propriedades eram
bem ilimitado e acessível a todos.63 Pelo contrário, no Vale, essa tendência à empresas completas, verdadeiros complexos cafeeiros, que possuíam não
concentração se acentuava ainda mais quando os grandes senhores de terras e só a grande lavoura, mas também todos os mecanismos ligados ao benefi-
escravos se tornavam fazendeiros-capitalistas, ou seja, emprestavam dinheiro
ciamento do café (terreiro, tulha, ventiladores, despolpadores e outros tipos
a juros a outros fazendeiros, o que foi bastante comum durante todo o século
de maquinários especializados), os equipamentos acessórios à empresa
(ferreiro, serraria, olaria, etc.), os animais para o abastecimento interno da
61 João Luís Fragoso, ao estudar a formação da primeira elite senhorial no Brasil, afirmou que, no fazenda e as bestas para transporte serra abaixo até o Rio de Janeiro. Muitos
século XVI, as pressões demográficas sobre Portugal e as crises de fomes recorrentes transformaram
a região de Entre Douro e Minho numa área de migração, inicialmente para as ilhas Atlânticas e destes homens possuíam, ainda, sociedades nas casas de comissão da Corte
depois para a colônia portuguesa nas Américas. Esses migrantes seriam, principalmente, proce- e recebiam de outros fazendeiros menores (que não controlavam todas as
dentes da pequena fidalguia ou da elite de alguma capitania pobre, que, ao aportarem no Rio de
Janeiro, dariam origem às melhores famílias. Nos casos aqui abordados, mesmo se tratando de uma etapas de produção, beneficiamento, transporte e venda) uma parte signi-
imigração bastante tardia, se comparada aos estudos de Fragoso, pode-se presumir que era uma ficativa dos lucros com a rubiácea por eles produzida. As possibilidades
gente com nobreza no passado, contudo com dificuldades de manter a fortuna condizente com seu
status social, o que explicaria, inicialmente, suas transferências para o Brasil, na segunda metade do
de negócio e enriquecimento destes indivíduos se ampliam ainda mais se
setecentos. Do outro lado do Atlântico, muitos desses portugueses não tiveram dificuldades de se for considerada sua inserção na família extensa, em que diferentes mem-
integrarem às formas de comércio e atividades econômicas mais lucrativas bem como a prestação bros do grupo familiar possuíam terras, frotas de bestas, maquinários, casas
de serviços à Coroa, auxiliados por laços de parentesco, compadrio e solidariedade. FRAGOSO, João
Luís. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (sécu- comissárias, recursos e contatos na Corte.65 Não foram poucas as famílias
los XVI e XVII). In: FRAGOSO, João Luís; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima enraizadas no Vale que, como os Furquim Werneck, os Clemente Pinto e os
(Org.). O Antigo Regime nos Trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
Pereira de Almeida, mantiveram parentes, ou foram eles mesmos acionistas
62 Como afirma Oliveira Viana, era costume dominante “concederem sesmarias, de preferência, a
pessoas fidalgas, ou com posses bastantes para construir engenho, excluindo assim da propriedade em casas comissárias, bancos e companhias de estrada de ferro.
da terra, as classes pobres ou desfavorecidas.” VIANA, Oliveira apud ANDRADE, Eloy. O Vale do
Paraíba. Rio de Janeiro: Real Rio Gráfica, 1989. p. 29.
63 FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de 64 FRAGOSO, 2001.
Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 65 MUAZE, 2008.

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Como se vê, a grande concentração de terras e de escravos foi uma que não se limitavam simplesmente às terras que possuíam e nem à região
característica do Vale do Paraíba no século XIX. No período de 1836 a 1850, onde estavam estabelecidos, podendo chegar até a Corte.68
quando houve a grande expansão da rubiácea, os grande e mega proprietá- A história da expansão do café pelas diversas regiões do Vale do Paraíba
rios chegaram a possuir quase a metade dos escravos da região, conseguindo fluminense se confunde com a própria história da expansão da classe senho-
ampliar esta porcentagem para 72,2% entre 1851 e 1865.66 Nesta configura- rial do Império em termos políticos, econômicos e sociais. Homens e mulhe-
ção, também era comum aos mesmos possuírem mais de uma fazenda, for- res que, através da exploração maciça da mão de obra escrava, da concen-
mando verdadeiros complexos cafeeiros que se estendiam por diversas loca- tração da propriedade da terra, do estabelecimento de redes de sociabilidade
lidades e se complementavam em termos de mão de obra, equipamentos, e poder locais, além de suas relações com a Corte, conseguiram acumular
bens imóveis e semoventes, como fica claro nas descrições dos inventários. riqueza, prestígio social e político fortalecendo, assim, o poder de suas famí-
Ancoradas na herança acumulada previamente, em fortunas constituí- lias nas localidades em que viviam. No interior deste reduzido grupo, muitos
das em outras áreas, no tamanho da propriedade, na antiguidade da ocupa- foram os casos das fortunas que se expandiram no rastro do café. Como
ção de terras, nas heranças materiais e imateriais dos membros de suas famí- forma de ostentá-las e de gozar de um estilo de vida próprio à sua classe,
lias; esses senhores puderam exercer seu controle político e econômico por muitas famílias ergueram imponentes casas de vivenda em suas terras agre-
quase todo o século XIX. Muitos membros destas famílias da classe senho- gando valor às imensas fazendas de seus complexos cafeeiros.
rial foram vereadores, deputados provinciais, juízes de paz, comandantes da Buscando modelos de comportamento, ideais de civilização e hábitos
guarda nacional e outros postos-chave diretamente ligados à política. A esses de consumo próximos do europeu, a classe senhorial se legitimou enquanto
aspectos ainda se somavam as relações de compadrio, vínculos pessoais, grupo hegemônico ao mesmo tempo em que respaldou a política de cen-
favores, interesses eleitorais, arrendamento de terras e/ou instrumentos de tralização do Estado nacional baseada na aproximação com valores euro-
trabalho, estabelecidas com os chamados “homens livres e pobres”, seus peizados e na manutenção da ordem escravocrata.69 Mas a estreita relação
agregados. A influência destes senhores se estendeu não só aos arrendatários entre estas famílias e o estado Imperial não para por aí. Em se tratando dos
e sitiantes que se dedicavam à agricultura em suas terras e deles dependiam, grandes cafeicultores da bacia do Paraíba fluminense, é possível afirmar que
mas também aos vendeiros, tropeiros e comerciantes de pequeno porte com sem uma política de estado permissiva com a ilegalidade do tráfico transa-
negócios em suas localidades. Isso sem falar do comando exercido sobre seus tlântico de escravos (1831/1850) não teria sido possível a montagem do com-
plantéis de escravos que era garantido através do “monopólio da violência” plexo produtivo que permitiu que o Brasil dominasse o mercado mundial
sobre aqueles que não tinham o controle sobre a própria vida e liberdade. de café durante praticamente todo o século XIX.70
Como vimos, a própria dinâmica de poder exercida por essas famílias
as colocavam no papel de classe dirigente67 com supremacia na política e
68 Sobre a relação de cafeicultores do Vale com importantes políticos da Corte, ver: MUAZE, 2008,
na economia local. Suas forças extrapolavam os limites da família extensa e cap. 1 e SALLES, Ricardo. As águas do Niágara, 1871: crise da escravidão e o caso saquarema. In:
teciam uma verdadeira capilarização de influências e distribuição de favores SALLES, Ricardo; GRIMBERG, Keila. Brasil imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro: 2010. v. III. Nesse artigo, o autor discute de forma bastante interessante o caso do marquês
de Paraná, importante político e articulador saquarema que adquiriu a fazenda Lordello, na locali-
66 SALLES, 2008. dade de Sapucaia, em 1836, período da expansão cafeeira escravista na região, e que, na ocasião de
seu falecimento, já possuía 189 escravos trabalhando.
67 A noção de classe dirigente utilizada nesta pesquisa tem por parâmetro as reflexões de Ilmar
Mattos, para quem o conceito de classe dirigente não se restringe à burocracia do Estado em seus 69 MUAZE, op. cit.
diferentes níveis. Portanto, por classe dirigente entendem-se todos aqueles que aderiram aos prin- 70 As relações entre a política escravista do Estado imperial e a criação das condições para o arranque
cípios de ordem e civilização, envolvendo um conjunto que engloba tanto a alta burocracia imperial da produção do café brasileiro no mercado mundial são analisadas em: TOMICH, Dale; MARQUESE,
– “senadores, magistrados, ministros e conselheiros de Estado, bispos, entre outros – quanto os pro- Rafael. Op. cit., p. 64. Os autores destacam também que sem um ambiente político que assegurasse
prietários rurais localizados nas mais diversas regiões e nos mais distantes pontos do Império, mas juridicamente aqueles que adquirissem africanos escravizados ilegalmente, provavelmente, as con-
que orientam suas ações pelos parâmetros fixados pelos dirigentes imperiais, além de professores, dições para o estabelecimento da região como maior produtora mundial de café seriam outras e,
médicos, jornalistas, literatos e demais agentes não públicos”. MATTOS, I., 1990, p. 3-4. consequentemente, os lucros obtidos pelo estado com a exportação do produto também.

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Se numa perspectiva macro vislumbram-se as relações entre estado, costume – de hierarquia, autoridade e dependência”.73 Tal lógica de domina-
classe senhorial, política escravista e montagem da estrutura produtiva no ção permeava a sociedade imperial em todos os seus estratos sociais e tinha
vale do Paraíba, reduzindo o foco de observação, é possível analisar a diver- nas plantations escravistas um lócus privilegiado de experiência.
sidade de sujeitos históricos que interagiam cotidianamente nos diferen- Nos grandes complexos cafeeiros, muitos formados por mais de uma
tes espaços das plantations cafeeiras. Senhores, escravos do eito, mucamas, propriedade rural, senhores, escravos e os mais diversos tipos de homens
pajens e toda sorte de cativos domésticos, feitores, homens livres e pobres, livres e pobres que ali residiam, transitavam e trabalhavam, pautavam suas
sinhazinhas, capitães do mato, condutores de tropas, crioulos, africanos - relações pessoais pela diferença e pelo ato de apartar-se daqueles que não
múltiplos agentes que, através de experiências distintas, mantinham uma eram seus pares na configuração social vigente. Assim, as fronteiras intra-
dinâmica social e de trabalho baseada na hierarquia e nas relações desi- e extra-grupo eram qualificadas e requalificadas a todo momento. Como
guais. É parte desta história que contarei a seguir. resultado, os espaços de circulação, formas de trabalho, educação, alimen-
tação, sociabilidade, vestimenta, acesso à terra e formação familiar a que
III estes grupos sociais estavam autorizados eram fortemente demarcados.
Contudo, se na lógica paternalista tais espaços de fronteira estavam conso-
Deus e Nossa Senhora lhe darão alívios e tudo quanto deseja, minha boa mãe,
pelo bem e alívio que me deu emprestando-me a sua grande escrava que, lidados, na prática cotidiana as expressões de resistência e de não aceitação
quando se comporta bem, não há dinheiro que pague.71 das regras de dominação se faziam valer através de experiências diárias,
como as que aparecem grifadas nas afirmações da viscondessa do Arcozelo
Há dias que me fugiu da Fazenda Manga Larga o preto Adão, oficial de fer-
e o barão de Paty do Alferes citadas acima.74
reiro, e foi à casa de Sabino José Neves que mora cerca de uma légua [...] dessa
vila. [...] Mandei àquela fazenda o feitor João Henrique [...], mas o maldito Os proprietários eram o grupo social que mais se diferenciava interna-
negro não quis vir, por mais diligências que lhe fizeram, atirando-se no chão mente, considerando o tamanho das propriedades, escravaria e composição
como um louco, e dizendo que cá não vem senão morto! Em tais circunstân- das redes políticas locais e nacionais tecidas. No que compete ao Vale do
cias recorro à autoridade de V. S. para que haja de prestar-me alguma força Paraíba, já ficou demonstrado que esta hierarquização interna se adensou
policial (cuja despesa pagarei) para que o obriguem a vir e, até mesmo, se for
com o fim do tráfico em 1850, quando alguns poucos fazendeiros adquiri-
possível usar de forte correção corporal, para que ele não prossiga em sua per-
sistência e teima que é decerto um péssimo exemplo para outra escravatura.72 ram terras e escravos de um sem fim de pequenos proprietários locais que
tiveram dificuldades financeiras para manter seus plantéis. Além destes ele-
As relações sociais e de poder que se configuravam no universo das mentos, a partir da segunda metade do século XIX, valores tais como educa-
fazendas de café do Vale do Paraíba fluminense, por mais diferentes que ção, instrução, etiqueta, refinamento e novas práticas de consumo, passaram
fossem suas localidades, obedeciam à lógica excludente e hierárquica do constituir o novo habitus social da classe senhorial, tornando-se também um
Império. Como forma de domínio, o paternalismo vigiava e instituía uma campo privilegiado para disputas intra-classe por representação e prestígio.75
“política de favores” constituída através de uma vasta rede de distribuição de
benefícios e geração de dependências, que só reconhecia as relações sociais 73 CHALHOUB, Sidney. Diálogos políticos em Machado de Assis. In: CHALHOUB, S; PEREIRA, L. A
História contada: capítulos de História social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
na sua verticalidade. Nesta ideologia de sustentação do poder senhorial, o 1998, p. 96. O paternalismo, como qualquer outra política de domínio, possuía uma tecnologia
lugar social que os sujeitos ocupavam dependia de suas relações pessoais e própria, pertinente ao poder exercido em seu nome: rituais de afirmação, práticas de dissimula-
“não existia fora das formas instituídas – formalmente, mas também pelo ção, estratégias de estigmatizarão de adversários sociais e políticos, eufemismos e, obviamente, um
vocabulário sofisticado para sustentar e expressar todas essas atividades.
71 Grifo meu. Carta manuscrita de Mariana Velho de Avellar para Leonarda Maria Velho da Silva. 74 JOHNSON, Walter. On agency. Jornal of Social History, Oxford: Oxford University Press, v. 37, n. 1,
Petrópolis, 13 de novembro de 1862. Coleção particular Roberto Meneses de Moraes. Fall 2003. Do mesmo autor, o artigo: Agency: a ghost story. In; FOLLETT, R; FONER, E; JOHNSON,
72 Grifos meus. WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerdan - Barão do Paty. [Carta ao senhor delegado W. Slavery’s ghost: the problem of freedom in the age of emancipation. Baltimore: Johns Hopkins
de polícia do termo da Paraíba, s.d.] apud SILVA, Eduardo. Barões e escravidão: três gerações de University Press, 2011.
fazendeiros e a crise da estrutura escravista, p. 156. 75 MUAZE, 2008.

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Nas muitas fazendas do Vale, essa lógica se traduziu na construção de mesmo um suntuoso edifício em qualquer grande cidade”.78 Zaluar se encan-
novas sedes mais sofisticadas, na maioria em estilo neoclássico, com jardins tara não somente com a construção, mas com todo o seu entorno:
contendo palmeiras imperiais como símbolo do poder e riqueza de seus
A propriedade do Sr. Comendador José de Souza Breves é pois, como já disse,
proprietários.76 Paralelamente, houve ainda o investimento da classe senho- uma das maiores e das mais ricas da Província do Rio de Janeiro. A grande
rial na compra de móveis, louças, viagens, indumentárias, joias, além do extensão dos terrenos e a fertilidade deles, as vastíssimas plantações de café
aumento e especialização da escravaria doméstica. Todos os esforços eram que cobrem um largo espaço de elevados morros, o número prodigioso de
reunidos no sentido de representar a riqueza que essas famílias foram capa- cativos consagrados aos trabalhos agrícolas, os grandes auxiliares de que
dispõe o proprietário, já como abastado capitalista, já como homem de bom
zes de acumular. Tal preocupação fomentava a disputa por representação
senso e praticamente conhecedor da nossa lavoura, conferem a este estabele-
entre os membros da classe senhorial onde o ser se igualava, cada vez mais, cimento as honras de primeira grandeza.79
ao parecer, e fomentava a hierarquia interna.
A análise dos objetos e bens listados nos inventários de grandes pro- Na visão de Zaluar, o complexo cafeeiro do comendador Breves mere-
prietários do início e de meados do Oitocentos são fontes importantes para cia destaque, pois elencava características importantes para uma fazenda “de
se perceber a valorização do luxo no interior da residência, bem como nas primeira grandeza”: fertilidade dos campos, tamanho dos cafezais já exis-
formas de viver e conviver no ambiente privado. Não são raros os inventá- tentes e grandes extensões de mata virgem, esta última vista como um fator
rios onde aparecem listadas as sedes da “fazenda velha” e da nova erguida importante para garantir o investimento empregado já que a cultura do café,
com padrões de consumo bem mais sofisticadas. Eduardo Schnoor fez da forma como era praticada no Brasil oitocentista, constantemente necessi-
esse estudo para as fazendas Pinheiro e Rio Manso, pertencentes à família tava da derrubada de mata virgem para novo plantio. Além disso, o elevado
Aguiar Vallin e localizadas em Bananal, principal cidade do lado paulista número de escravos e trabalhadores livres – estes últimos denominados
do Vale produtora de café no século XIX. Comparando diferentes inven- “auxiliares” – garantiram a José de Souza Breves e a outros grandes cafei-
tários desta família, ele demonstrou que, ao longo do século XIX, a rustici- cultores do Vale a posição de “abastados capitalistas”, como se dizia à época.
dade e os padrões de organização do espaço marcadamente coloniais, que A disposição interna da casa de vivenda e os eventos sociais lá ocor-
valorizavam somente os lugares e instrumentos de produção da fazenda, ridos também receberam atenção não só de Zaluar, mas também do casal
se transformaram. Neste processo, a fazenda não será mais vista somente Agassiz, que lá esteve:
como um local de trabalho, mas também de moradia e representação. Seu Um delicioso jardim se desdobra com um tapete de flores pelo pendor da
senhor passava de simples agricultor escravista para membro da base social colina sobre que está assentada esta suntuosa habitação, e dá-lhe um novo
do novo Império.77 realce. Duas escadas laterais de mármore levam a uma espaçosa varanda, para
O investimento em luxo nas novas sedes das fazendas e as múltiplas fun- onde deita a porta do salão de espera, que é uma vasta quadra cujas paredes
ções dos complexos cafeeiros foram alvo de comentário de muitos viajantes
78 ZALUAR, Augusto Emílio. Peregrinações pela província de São Paulo (1860-1861). São Paulo: Itatiaia:
que por ali passaram ou fizeram pouso. Em sua estada em uma das proprie- EdUSP, 1975. A fazenda do Pinheiro, localizada em São João Batista do Arrozal, próximo de Piraí,
dades do comendador José de Souza Breves, o viajante português, poste- foi herdada pelo comendador José de Souza Breves de seu finado sogro, barão de Pirahy, e ampliada
ao longo dos anos. Este complexo cafeeiro teve grande importância no século XIX e, na década de
riormente naturalizado brasileiro, Augusto Zaluar comentou: “a fazenda do 1860, sua produção correspondeu a cerca de 20% de todo café produzido em Piraí. Enquanto a
Pinheiro, não é uma habitação vulgar da roça; é um palácio elegante, e seria média anual ficava em torno de quinhentos e vinte mil arrobas de café, a fazenda do Pinheiro con-
tribuía com noventa mil arrobas e a fazenda Barra Mansa, outra propriedade do comendador, com
mais dez mil. Na região de Piraí, estes números eram superados somente pelo irmão do comen-
76 D’ELBOUX, Roseli Maria Martins. Uma promenade nos trópicos: os barões do café sob as palmei- dador Joaquim José de Souza Breves, que além de noventa mil arrobas colhidas em Piraí, ainda
ras-imperiais, entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Anais do Museu Paulista: História e Cultura contava com outras cem mil arrobas provenientes de fazendas em Resende, São João do Príncipe e
Material, São Paulo, v. 14, n. 2, jul.-dez. 206. nas freguesias de São João Marcos, Passa Três, São Vicente Ferrer e São Sebastião. Sobre os irmãos
77 SCHNOOR, Eduardo. Das casas de morada à casa de vivenda. In: CASTRO, Hebe M. M. de; Breves, consultar: LOURENÇO, 2010.
SCHNOOR, Eduardo. Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. 79 ZALUAR, op. cit.

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estão adornadas pelos primorosos retratos de Sua Majestade o Imperador e que não se distanciavam muito daquelas compartilhadas pela maioria dos
Sua Majestade a Imperatriz, devidos ao hábil pincel de Cromoelston. [...] A membros da classe senhorial do Império à época.
sala nobre é uma peça soberba. Grandes espelhos de Veneza, ricos candela-
Os estrangeiros descrevem ainda que as grandes propriedades conta-
bros de prata, lustres de cristal, mobília, tudo disputa a primazia ao que deste
gênero se vê de mais ostentoso na própria capital do Império”.80 vam com farmácia, hospital, cozinhas para os hóspedes, cozinha para os
negros, capelas, pomar, roça, vasto cafezal, estradas e toda a infraestrutura
À noite, quando depois do jantar tomávamos o café na varanda, uma orquestra para beneficiamento do café. Tudo funcionando na mais perfeita ordem.
composta de escravos pertencentes à fazenda nos proporcionou boa música.
A paixão dos negros por essa arte é um fato observado em toda parte; esfor-
Nestas narrativas, a vida nos grandes complexos cafeeiros aparece esvaziada
çam-se muito para aprendê-la, aqui, e o Sr. Breves mantém em sua casa um de violência e conflito. A escravidão era “mimetizada” na grandiosidade
professor a quem os alunos fazem honra na verdade. No fim da noite, os músi- estrutural das plantations. Em termos de organização e gerenciamento dos
cos foram introduzidos nas salas e tivemos um espetáculo de dança, dado por negócios, a narrativa instituída valorizava a modernidade e o empreendi-
negrinhos que eram dos mais cômicos. Como uns diabretes, dançavam com mento de grande sucesso. Portanto, as falas dos viajantes aqui apresentados
tal rapidez de movimentos, com tal animação de vida e alegria espontânea que
era impossível não os acompanhar.81
estava em sintonia com o discurso senhorial escravista, sendo possível a
convivência entre modernidade, liberalismo e escravidão.83
A sede da fazenda é ressaltada como espaço de moradia e represen- A visão da fazenda de café como um lugar moderno variava de acordo
tação. Zaluar destacou vários elementos de composição do espaço da casa com a magnitude do complexo cafeeiro encontrado e o prestígio de seus
e de seu interior que lhe atribuíam o título de requintada residência, tais donos. Como relatam Elizabeth e Luiz Agassiz:
como: jardim bem cuidado; o uso de materiais nobres como o mármore
[...] penetramos na zona das mais ricas plantações de café. [...] Próximo
e espelhos; a disposição de objetos e mobilhas luxuosos. Contudo, o casal à última estação, há uma grande exploração rural ou fazenda, que produz,
Agassiz preferiu valorizar a preocupação do anfitrião em manter habitus segundo nos disseram, cinco a seis mil quintais de café nos bons anos. Essas
civilizados, como a apreciação da música clássica europeia. Contudo, cha- fazendas são edifícios de aspecto singular, baixos (comumente de um só
mou-lhes a atenção o fato das canções serem executadas por uma banda de andar) e muito compridos; as maiores cobrem uma área considerável. Como
se acham inteiramente isoladas e afastadas das demais habitações, os que nelas
música formada por escravos.82 Para nossos viajantes suíços, a escravidão
moram têm que fazer provisão de tudo o que é preciso para as suas necessida-
continha um lado civilizatório para os negros. Ao senhor, cabia o mérito des. Isto conserva nos proprietários costumes inteiramente primitivos.84
de custear um professor para ensinar música a seus escravos músicos. Na
descrição de Agassiz, a música clássica europeia, considerada como civili- Para o casal suíço, um dos aspectos que explicaria o “primitivismo de
zada, contrastava com as danças e lundus das crianças escravas tidas como costumes”, não obstante o potencial da propriedade em número de cafeei-
exóticas e o pitorescas. Tal contraste pode ser percebido na denominação ros plantados, era o isolamento em que a fazenda se encontrava. Contudo, a
utilizada. Enquanto os primeiros escravos eram descritos como “músicos”, descrição de Zaluar para a fazenda Ribeirão Frio supervalorizava sua orga-
os outros eram denominados de “negrinhos” e “diabretes”, qualificações nização espacial e eficiência produtiva:

80 Ibid. [...] assentada no meio de uma vasta planície, circundada por um horizonte de
81 AGASSIZ, Luis; AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil: 1865-1866. Brasília: Senado Federal, montanhas cujo recorte se desenha com facilidade, a casa espaçosa e branca
2000, p. 107. avulta dentro de um terreiro de trezentas e onze braças de circunferência! É o
82 Os escravos Benjamim, Bruno, Domingos, Elias, Emiliano, Fabiano, Roque, Valeriano eram alguns maior que tenho visto. Esta imensa praça é fechada em torno pelas senzalas,
dos cativos que formavam a banda de música da fazenda do Pinheiro. “Estavam entre os 385 escra-
vos avaliados no espólio da fazenda no início da década de 1880 e conformavam o rol dos cativos 83 MATTOS, Hebe. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. Ver
mais valiosos do Comendador, cerca de 700 mil réis cada um, só se igualando a outros escravos também: MUAZE, Mariana. A escravidão no Vale do Paraíba pelas lentes do fotógrafo Marc Ferrez.
profissionais. Interessantemente todos eles eram pretos crioulos, com exceção de Domingos, ava- In: BASTOS, Lúcia; CARVALHO, José Murilo. Dimensões e Fronteiras do Estado Brasileiro no século
liado como pardo. Aliás, quase todos eram crias da fazenda, já que somente Benjamim teria vindo Oitocentos. Rio de Janeiro: EdUERJ. 2014.
de outra propriedade.” Ver: LOURENÇO, 2010, p. 108-109. 84 Grifo meu. AGASSIZ, L.; AGASSIZ, E., 2000.

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engenho e mais oficinas, de modo que forma uma larga cidadela para onde dos. Tudo era contado e controlado: horário, quantidade de refeições, roupa,
se entra por dois grandes portões laterais. As senzalas, caiadas todas e cons- colheita e preparação do café, orações matinais, dias e formas de descanso,
truídas uniformemente, destacam-se, bem como a casa, do verde graduado
etc. Contudo, o tempo passava de forma diversa para os diferentes sujeitos
das florestas, e dão a esta propriedade um aspecto novo e agradável. [...] Uma
propriedade rural montada no pé em que se acha, o Ribeirão Frio é mais do sociais que habitavam e trabalhavam nas plantations do Vale.87
que um prédio de simples vivenda; é uma cidade em ponto pequeno, onde se Para os proprietários, a administração da produção cafeeira era sinônimo
cultivam muitos ramos de indústria e se põem em movimento todas as gra- de preservação da riqueza, do patrimônio e de sua continuidade enquanto
dações do trabalho.85 membros da classe senhorial. Para os homens livres, as possibilidades e for-
A casa de vivenda da fazenda figura, na narrativa acima, não só como mas de trabalho eram múltiplas e diferenciadas nos complexos cafeeiros:
moradia dos senhores, mas também como uma empresa agrícola, local da feitores, médicos, jornaleiros, pequenos comerciantes, arrendatários, arrea-
gerência dos negócios e da produção. Sua disposição espacial no centro era dores,88 dentre outros. Para os escravos do eito, eram mais de 16 horas de
vista como fundamental para que a fazenda mantivesse uma organização atividades diárias, um tempo de trabalho que se esgarçava, parecia não passar,
do trabalho diversificada, em larga escala, com altos índices de produti- e só era amenizado pelos descansos aos domingos e dias santos. Uma rotina
vidade, comparável com uma “pequena cidade”, espaço do progresso e do exaustiva e extenuante em meio à violência e formas de controle incessantes.
desenvolvimento. As “pequenas cidades” (complexos cafeeiros) eram, por- Não obstante estejamos tratando aqui dos complexos cafeeiros perten-
tanto, aquelas com produção e exploração do trabalho em larga escala que centes à grande e mega cafeicultores, estes não eram a maioria numérica
atendiam ao mercado mundial de café em franca expansão. dos lavradores do Vale; pelo contrário. Nas fazendas menores, os atributos
A fazenda como empresa agrícola, onde tudo é organizado em fun- de trabalho e produção falavam mais alto e a preocupação com elementos
ção do trabalho e da produção, não era uma mera impressão dos viajantes de representação não estavam na ordem do dia. As sedes eram simples e
que percorriam o Vale. Os grandes cafeicultores pensavam o conjunto de se diferenciavam da arquitetura das novas casas de vivenda que buscava
suas propriedades de forma a articularem suas produções e controlarem o demonstrar a opulência e o requinte dos senhores residentes. Contudo, não
tempo daqueles que lá moravam e trabalhavam. No documento “Instruções importando os símbolos de poder e prestígio empregados, a escravidão
gerais para a administração das fazendas”, que vigorou na fazenda Areias marcava o cotidiano de ambos os tipos de propriedades e ritmava os longos
e em outras propriedades do barão de Nova Friburgo e do conde de São dias de trabalho passados na lavoura. A escravidão era não só o cenário
Clemente, por exemplo, o tempo de todos os habitantes era regulado em fun- 87 A percepção de fazenda cafeeira como empresa organizada e produtiva também aparece em outros
documentos para além das narrativas dos viajantes. Como exemplo, podemos citar os livros de
ção do trabalho executado.86 O administrador “é responsável pelo emprego conta ou cadernos de assento das fazendas Taquara e Pau Grande. Em ambas encontramos anota-
do tempo”, afirmava o documento. Um suceder de dias e noites eram pon- ções minuciosas da safra de café vendida, empréstimo de dinheiro a juros, pagamento de dívidas,
tuados pelos sinos que batiam uma hora antes do sol nascer e badalavam em compra de produtos de subsistência, serviços médicos para os escravos, compra de material, dentre
outros gastos, que demonstram o envolvimento de um grande número de pessoas e principalmente
vários outros momentos da longa jornada a que os escravos eram submeti- do proprietário, na administração da fazenda. Mas não era só isso. As fazendas aparecem como gran-
des empresas com interdependência entre contabilidades e índices de produção. Outro documento
que também corrobora esta ideia é o diário da viscondessa do Arcozelo, filha dos barões de Paty do
85 Grifo meu. ZALUAR, 1975, p. 29. Augusto Zaluar chegou ao Brasil na década de cinquenta, se estabe- Alferes, escrito em 1887. Nele, a escrita ligeira e pontual de Maria Isabel, não deixava de demonstrar
leceu na Corte, trabalhou como jornalista no Correio Mercantil e no Diário do Rio de Janeiro. que a produção do café era uma preocupação de toda a família, inclusive das mulheres, mesmo
86 Em 1828, o Brasil atinge a marca de maior exportador de café do mundo e a região do Vale irá não estando diretamente ligadas ao trabalho no eito. Portanto, todos aqueles que viviam na fazenda
receber um grande fluxo de escravos africanos quase que diariamente. O diplomata Johann Jakon cafeeira compartilhavam uma percepção do tempo marcada pelo trabalho. Sem negar as diferenças
von Tschudi registrou no livro de contas de Cantagalo o índice de 3.800 pés de café por escravo e o brutais que separavam escravos e senhores na sociedade imperial, todos aqueles que integravam os
barão de Nova Friburgo, Antonio Clemente Pinto, operava com 5 a 6.000 pés em suas proprieda- “mundos da fazenda” vivenciavam o tempo a partir de um ponto em comum: a produção do café.
des. A região do Vale do Paraíba passava a ser uma peça chave no mercado mundial de produção, 88 As tropas de mulas que transportavam o café eram conduzidas pelos arreadores, encarregados da
distribuição e consumo de café em massa. INSTRUÇÕES Gerais para a Administração das Fazendas. direção dos escravos tropeiros (20% da força masculina da fazenda), cuja responsabilidade era a
Boa sorte, 1870. In: AGUILLAR, Nelson (Org) Negro de corpo e alma: mostra do redescobrimento. entrega segura da mercadoria no armazém do comissário no Rio de Janeiro. Geralmente, para isso,
São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo: Associação Brasil 500 anos artes visuais, 2000, p. 108, 110. eram contratados imigrantes portugueses.

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vislumbrado, mas a base da expansão social, econômica e política da classe para o barão de Nova Friburgo e o conde de São Clemente, a doença devia ser
senhorial do vale do Paraíba.89 curada o mais rápido possível para não prejudicar a produção:
Em Monte Alegre, Arcozelo, Guaribu, Paraíso, Ubá, Piedade, Pau
examinar com muitíssima atenção os pretos que tiverem dado parte de doentes,
Grande, Ribeirão Frio, Areias, Pinheiro, Taquara, São Joaquim da Grama, e os que já estão no hospital. [...] Convencendo-se que o enfermeiro tenha fiel-
São Luís da Boa Sorte, Cachoeira Grande, Forquilha, Resgate e em outras mente administrado aos doentes o que o doutor tiver prescrito, ou quando a boa
várias fazendas e sítios do Vale cafeeiro, a lida diária se repetia. Antes de o razão e experiência indicarem moléstias leves, mandem imediatamente chamar
sol nascer, os cozinheiros eram os primeiros a se levantarem para preparar a o acultativo nas que não se conhecerem ou apresentarem aspecto grave.93
primeira refeição composta de café, melaço e fubá cozido. Em seguida, um Além dos enfermos, permaneciam na fazenda escravos com funções
feitor ou capataz tocava o sino para acordar os escravos que se lavavam em especializadas no espaço doméstico ou fora dele. O habitus civilizado
um tanque de água, pegavam os instrumentos de trabalho e iam para fora da vigente na classe senhorial oitocentista exigia, cada vez mais, um requinte
senzala aguardar a reza matinal. Após a oração, o administrador da fazenda dos modos de comportamento como elemento de diferenciação interno.
contava os escravos, dividia-os em turmas com seus respectivos feitores e No ambiente das casas de vivenda, percebe-se pelos inventários e anúncios
capatazes responsáveis. Neste momento, o administrador determinava “a de jornal, uma maior especialização dos serviços domésticos. Cozinheiras,
cada feitor o serviço que deve fazer, e entregava o necessário mantimento engomadeiras, doceira, lavadeiras, costureiras, amas de leite, pajens, vallet
que de véspera devia estar preparado, mandando seguir, levando cada feito de chambre, mucamas, copeiro, cocheiro, passaram a ser funções específi-
diante de si todos os escravos de seu terno”.90 cas, com exigências distintas para as tarefas executadas. No caso dos servi-
Nas grandes fazendas, a maioria dos cativos ia para a lavoura de café, ços especializados mais ligados à produção da fazenda propriamente dita,
mas também havia aqueles que permaneciam na fazenda ou por estarem contava-se com: alfaiate, candeeiro, carpinteiro, carreiro, pedreiro, sapa-
incapacitados, com algum problema de saúde, ou porque eram incumbidos teiro, despenseiro, tanoeiro, enfermeiro, tropeiro, falqueador (derrubada
dos serviços domésticos, ou outras atividades especializadas. No caso dos de matas), ferreiro, formigueiro (extermínio de pragas), e demais ativida-
escravos enfermos, Flávio Gomes demonstra que a sociedade vassourense do des relacionadas às demandas por maior produtividade e profissionaliza-
século XIX entendia que “o senhor não era só aquele a quem deveria ser des- ção impulsionadas pelo crescimento do mercado externo do café durante
tinado o produto do trabalho, mas também aquele que deveria prover seus o século XIX.
escravos de alimento, roupas, moradias, tratá-los nas enfermidades e casti- De uma maneira ou de outra, estudos comprovam que os cativos com
gá-los quando necessário”.91 Em seu testamento, o barão de Paty do Alferes funções especializadas tinham mais probabilidade de conquistarem bene-
demonstrava que a saúde de seus escravos o preocupava não só por obrigação fícios, acumularem pecúlio e até adquirirem a tão sonhada alforria, do que
moral, mas também por medo de perdas financeiras já que a morte de uma seus colegas cativos do eito.94 Todavia, é bom lembrar que a proximidade
“peça” significava prejuízo para seus donos: “Os escravos ficavam sujeitos a com a família senhorial tanto abria chances para uma possível mobili-
infecções respiratórias, nos lugares onde descascavam e peneiravam o café, dade espacial, troca de favores e aquisição de benefícios, quanto expunha a
exposto ao sol por meio de pilões e peneiras produziam pó muito fino pre- enorme fragilidade da condição de cativo, caso este fizesse algo que direta-
judicial à saúde dos escravos afetando-lhes particularmente os pulmões”.92 Já mente desagradava aos senhores.95
89 STEIN, 1990.
90 INSTRUÇÕES Gerais para a Administração das Fazendas, p.108, 110. 93 INSTRUÇÕES Gerais para a Administração das Fazendas, p. 108, 110.
91 GOMES, 2006. 94 SLENES, Robert. Senhores e subalternos no oeste paulista. In: ALENCASTRO, L. F (Org.). História
92 INVENTÁRIO de 1862, falecido barão do Pati do Alferes; fazendas Monte alegre, Manga Larga, da vida privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das
Piedade, Sant’Ana, Palmeiras, Monte Líbano, Conceição. Vassouras: Cartório do 1° Ofício de Letras, 2001 (História da Vida Privada no Brasil, v. 2).
Vassouras apud PONDÉ, Francisco de Paula e Azevedo. A fazenda do barão de Pati do Alferes: 95 A fragilidade das relações instituídas no contexto da escravidão doméstica nos EUA é narrado por:
fazenda Piedade. RIHGB, Rio de Janeiro: IHGB, n. 327, p. 120, abr.-jun. 1980. FOX-GENOVESE, Elizabeth. Within the plantation household: black & white women of the old south.

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Para a maioria que permanecia trabalhando no eito, eram realizadas labuta, quando geralmente era permitido que os escravos dançassem e can-
mais 4 refeições, sempre entremeadas com o trabalho duro, durante o qual tassem ao ar livre, e nos domingos, dia do descanso semanal e da distribui-
muitos cativos cantavam o jongo para passar o tempo.96 O almoço era ser- ção de tabaco e roupas limpas aos cativos. Nestes recessos, muitos senhores
vido às 10:00 horas composto de angu, um pouco de feijão temperado com permitiam que seus escravos cultivassem roças próprias, como era o caso
toucinho e gordura de porco. Em alguns casos, a refeição ainda podia con- de Francisco Peixoto de Lacerda Werneck:
ter outros ingredientes como abóbora, batata doce e farinha de mandioca.
O fazendeiro deve, o mais próximo que for possível, reservar um bocado de
Esta breve pausa de mais ou menos uma hora também era aproveitada terra onde os pretos façam as suas roças; plantem o seu café, o seu milho, feijão,
pelas escravas para amamentarem seus bebês antes de voltarem ao trabalho. banana, batata, cará, aipim, cana etc. Não se deve porém consentir que a sua
Aproximadamente às 13:00 horas, recebiam café acompanhado do resto do colheita seja vendida a outrem, e sim a seu senhor, que deve fielmente pagar-
angu do almoço e o jantar ocorria por volta das 16:00 horas. O trabalho lhe por um preço razoável, isto para evitar extravios e súcias de taberna. Este
dinheiro serve-lhe para o seu tabaco, para comprar sua comida de regalo, sua
prosseguia até o anoitecer, quando os capatazes chamavam os escravos para
roupa fina, de sua mulher se é casado, e de seus filhos. Deve, porém proibir-se-
a nova contagem, seguida pelas atividades noturnas, tais como: secagem do lhe severamente a embriaguez pondo-os de tronco até lhes passar a bebedeira.
café nos meses de inverno, moagem do milho para fazer fubá, confecção [...] Estas suas roças, e o produto que delas tiram, faz-lhe adquirir certo amor ao
da farinha de mandioca, preparação do café para consumo, corte de lenha, país, distraí-los um pouco da escravidão, e entreter com esse pequeno direito de
transporte de água, etc. Ao voltar para a senzala, recebiam uma ceia e iam propriedade. [...] O extremo aperreamento desseca-lhes o coração, endurece-os
e inclina-os para o mal. O senhor deve ser severo, justiceiro e humano.99
dormir.97
Sobre a noite nas senzalas, o viajante suíço Johann Jakob von Tschudi Tanto a chamada brecha camponesa, quanto a permissão oficial para a
descreveu:98 constituição de famílias no cativeiro faziam parte de uma política senhorial
Cada negro possui de 3 a 4 cobertores que usa também como colchão, se não de domínio e tratamento dos escravos que articuladas buscavam manter a
prefere utilizar-se da esteira. Um pequeno travesseiro completa a cama pri- “paz nas senzalas”.100 Na fazenda Pinheiro, por exemplo, 1/3 dos cativos pos-
mitiva. [...] As senzalas ficam abertas até às 10 horas da noite, havendo até suíam uniões estáveis, totalizando 48 famílias, sendo a metade formada de
lá, um convívio misto nas mesmas. A um sinal dado por uma campainha, os casais com filhos, o que também garantia a reprodução da escravaria.101 Já a
homens e as mulheres se retiram, cada qual para sua habitação, e o guarda as
permissão para o cultivo de pequenas porções de terra além da função ideo-
fecha a chave, abrindo-as na manhã seguinte, uma hora antes de iniciar-se a
tarefa diária. As crianças menores dormem com as mães, as maiores possuem lógica de controle social também dirimia os custos da manutenção desta
suas tarimbas individuais, dormindo em geral duas crianças em cada uma. Os mão de obra. Sobre este aspecto em particular, Flávio Gomes afirma que:
negros casados vivem em recintos menores, devidamente separados.
[...] em vez de dar rações diárias aos cativos, alguns fazendeiros os dispen-
A dura rotina aqui descrita só era quebrada em casos de alguma intem- savam por um ou dois dias na semana para que cultivassem suas roças, de
onde tiravam produtos para a alimentação. Quanto aos escravos, o direito de
périe ou problema na administração da fazenda, exceto nos sábados após a
utilização de tempo para cultivar suas roças era visto como conquista. [...]
Por meio destas práticas, os cativos desenvolveram uma economia própria,
Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1988; GLYMPH, Travolia. Out of house of bond- comerciando com taberneiros e cativos de fazendas próximas.102
age: the trasnformation of the plantation household. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
96 LARA, Silvia Hunold; PACHECO, Gustavo. Memória do jongo: as gravações históricas de Stanley
Stein – Vassouras, 1949. Rio de Janeiro: Folha Seca; Campinas: Cecult, 2007. Sobre o assunto, assistir 99 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na província
também ao vídeo Jongos, calangos e folias: música negra, memória e poesia (2007) realizado pelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa: Senado Federal, 1985. p. 63.
professoras Hebe Mattos e Martha Abreu. 100 FIORENTINO, Manolo; GÓES, J. R. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico – Rio de
97 SLENES, OP. CIT, 1997. Janeiro, 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
98 VON TSCHUDI, Johann Jakob. Viagem às províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. São Paulo: Edusp; 101 LOURENÇO, 2010, p. 64.
Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. p. 56. 102 GOMES, 2006, p. 202.

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Segundo o historiador Rafael Marquese tais concessões faziam parte da de acontecer. Jogando no território do possível sem se contrapor diretamente
“política do bom tratamento do escravo”, descrita pelo marquês de Abrantes à lógica vigente, os escravos mapeavam estratégias de subordinação que lhes
em seu livro, e composta de: fornecimento de alimentos, roupas e moradia permitiam pequenas conquistas: constituição de família, terras para plan-
adequados aos cativos; permissão para que amealhassem alguma proprie- tio, descansos em domingos e dias santos, compra da liberdade, alforria, etc.
dade como forma de inspirar no cativo o desejo do trabalho; incentivo a Várias foram as estratégias de subordinação dos escravos domésticos e do eito
formação de famílias; cuidado com as crianças escravas e diminuição da para ganhar a confiança de seus senhores e feitores. No meio de uma vida tão
carga de trabalho das grávidas e mães com crianças pequenas; algum tempo precária, pequenos benefícios podiam significar muito e aliviar um pouco
livre para lazer e descanso; tratamento dos enfermos; punições corporais as agruras do cativeiro.107 Em seu diário, a viscondessa do Arcozelo enumera
justas e bem aplicadas.103 algumas destas grandes e pequenas conquistas às vésperas da abolição:
Como se vê, eram variadas as táticas que compunham a política senho-
Os pretos de casa cantarão os Reis. (6 de janeiro de 1887, dia de Reis)
rial de domínio. O barão de Paty do Alferes, certa vez, prometeu “prêmios” Os escravos farão festa. (23 de junho de 1887, dia de São João)
de 40 réis de gratificação para cada escravo que cumprisse a tarefa de cole- Chico acabou de fazer a matricula. Ficarão livres das três fazendas 37 escravos.
tar cinco alqueires de café. No entanto, explicava ele: “com este engodo
MONTE ALEGRE: Ventura, Miguel, Mathias, Domingos Carreiro, Caetano,
que era facilmente observado, consegui que apanhassem sete alqueires, Dionísio, Jachinto, Custodio Cabinda, Laureano, Polycarpo, Eufrazia,
que ficou depois estabelecido como regra geral”.104 Para o barão, a quebra Carolina, Anacleto, Luiza, Maria Conga.
do acordo era justificada pelo fato dos escravos não estarem rendendo o PIEDADE: Madalena, Eugenia, Bento, Mathias, Antonio Monjolo, Faustino,
máximo da sua capacidade de trabalho. Portanto, a vigilância deveria ser Felipe, Thereza, Mª Cassange, Domingos Congo, Gertrudes Benguela,
constante e realizada durante o trabalho para que os escravos não lesas- Francisca Benguela, Candido, Drezida, Ambrosio Fromigueiro, Clemente,
Tude, Marcelina.
sem seus senhores em sua produção, seja prejudicando o cafeeiro durante
FREGUESIA: João Cassange, Ephigenia, Miguel, Rodrigo. (31 de janeiro de 1887)
a coleta ou em qualquer outra fase da produção, seja produzindo menos
do que sua capacidade de trabalho, ou até roubando sacas de café, outros Do embate entre a violenta política da dominação legitimada pelos
produtos ou ferramentas de trabalho. Este foi o caso do escravo Manoel, senhores e as estratégias de sobrevivência articuladas pela população
pertencente a Augusto Soares de Souza, que foi flagrado vendendo uma escrava, emerge uma dinâmica social calcada no sentimento do “sobres-
saca de café roubada para um taberneiro na paróquia de Ferreiros.105 salto” que permeava os mundos da fazenda.108 Ao conseguir pertencer à
Em resumo, pode-se dizer que a política senhorial de domínio imple- rede e fazer parte da “política de favores” de seus senhores, o escravo aca-
mentada possuía dois lados, mesmo que com potenciais desiguais de luta. bava enredado em seus anseios, cativo de suas próprias conquistas, porque
Enquanto os senhores buscavam a “paz das senzalas” através de diversos passava a conviver com o temor de perdê-las. Por outro lado, na outra ponta
recursos, entre eles a distribuição de pequenos benefícios e de posse do da gangorra de forças, os senhores viviam em constante “estado de alerta”.
monopólio da violência,106 aos escravos cabia a negociação por dentro do sis- As políticas de negociação implementadas cotidianamente eram instáveis
tema instituído. A convivência cotidiana entre livres e cativos fundava espa- e podiam rapidamente se tornar motivo de conflito, sobretudo através
ços ambíguos em que o diálogo – mesmo que entre desiguais– era passível de fugas individuais ou coletivas, rebeliões nas senzalas, roubos e ataque
103 MARQUESE, 2004, p. 268-269.
104 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória sobre a fundação de uma fazenda na Província do 107 Sobre este tema, ver: CHALHOUB, S. Visões de liberdade: uma história das últimas décadas da escra-
Rio de Janeiro, sua administração e épocas em que se devem fazer as plantações, suas colheitas etc, etc. vidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. SLENES, 1997, p. 236. Ver ainda: MATTOS,
1. ed. Rio de Janeiro: Tipografia Universal Laemmert, 1847. p. 21 apud. SILVA, E.; REIS, J. J. Negociação e H. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil, séc. XIX. Rio de
conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 28. Janeiro: Nova Fronteira, 1998. GUEDES, Roberto, Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e
105 Caso estudado por SLENES, 1997, p. 209. mobilidade social (Porto Feliz, SP, 1798-1850). Rio de Janeiro: Mauad: Faperj, 2008.
106 Sobre o monopólio da violência como elemento de poder na sociedade imperial, ver: MATTOS, I., 1990. 108 SLENES, 1997.

92 93
a senhores e feitores seguidos de morte. Como afirma Robert Slenes, os são conhecidos em Paraíba do Sul, Bemposta e Piabanha, onde trabalham,
senhores sabiam que estavam “dormindo com o inimigo”, pois os líderes das e no município de Vassouras. Quem quer que os ajude será processado por
lei. Acima a recompensa para quem devolvê-los a senhora D. Luiza Rosa
revoltas nas senzalas eram, frequentemente, os escravos mais chegados.109
Sampaio, em Tatuhy, ou quem possa dar informações sobre seus paradeiros.111
Para corroborar a afirmativa de Slenes, vale citar a revolta de Manoel
Congo ocorrida no dia 5 de novembro de 1838, em Vassouras. O episódio Convivendo bem de perto com os escravos, existia toda sorte de
teve início quando os escravos de Manuel Francisco Xavier se sublevaram e homens livres que atuavam na fazenda ou nas margens das fronteiras terri-
seguiram para a fazenda Maravilha, pertencente ao mesmo dono. Ao che- toriais da mesma, realizando trabalhos diários ou sazonais. Eram ex-escra-
garem, atentaram contra o feitor, roubaram mantimentos e ferramentas do vos, feitores, arreadores, pequenos agricultores, trabalhadores por jornada
paiol e puseram uma escada na cozinha da casa de vivenda para possibilitar que se distinguiam dos cativos por possuírem o atributo da liberdade. Se
a fuga dos escravos domésticos que por ali dormiam.110 a liberdade os diferenciava dos cativos, não os equiparava aos senhores,
Para a discussão que nos interessa no momento, vale frisar aqui três cidadãos ativos, que detinham o direito de votar e serem votados, assegu-
aspectos que relativizam a completa eficácia da política de domínio senho- rado pela prerrogativa do voto censitário garantida na Constituição de 1824.
rial. Em primeiro lugar, nenhum dos escravos domésticos da fazenda Apesar de viverem apartados do mundo dos senhores por outros elementos
Maravilha resistiu à fuga ao serem convocados pelos cativos já subleva- diferenciadores como grau de instrução, práticas de consumo, etiqueta e
dos. Em segundo lugar, Manoel Congo, acusado de ser o principal líder da habitus social, os homens livres e pobres, considerados cidadãos passivos
revolta, era ferreiro e casado. Em terceiro lugar, a maioria dos escravos indi- na lógica política vigente, jogavam cotidianamente com suas relações pes-
ciados no inquérito como cabeças do movimento eram escravos domésti- soais e laços de dependência em busca de melhores condições de vida.112
cos ou possuíam alguma especialização. Portanto, nenhum dos benefícios O que definia toda a sorte de homens pobres, não escravizados, que
concedidos pela política senhorial de dominação – atuar no serviço domés- viviam no Vale do Paraíba fluminense e em toda a sociedade Imperial era o
tico, ter um trabalho especializado, constituir família – foram capazes de fato de serem livres. Contudo, se atributo da liberdade os igualava, o da pro-
impedir a fuga e a revolta por parte dos escravos que deles gozavam. priedade os hierarquizava reproduzindo a lógica “verticalizadora” da socie-
É importante que se tenha em mente que a política de dominação dade imperial. Portanto, a posse de escravos e de terras eram elementos de
senhorial vivia um equilíbrio tênue, instável e que a aceitação da mesma por diferenciação importantes no interior de um grupo social com funções tão
parte dos escravos era passível de ser alterada no menor sinal de possibili- diversas. Todavia, estas conquistas se tornaram cada vez mais difíceis na
dade de liberdade. Os escravos também tinham suas estratégias. Estavam conjuntura pós 1850, quando o preço do cativo e as possibilidades de acesso
capacitados a resistir ao sistema de dominação imposto à medida que, por à terra se restringiram na região.
fazer parte dele (como dominado), conheciam a fundo suas brechas, limi- Na sociedade oitocentista, os critérios de liberdade e propriedade
tes e imperfeições. Neste contexto, as desobediências e fugas eram bastante estavam imbricados. Ou seja, o reconhecimento social de uso da terra era
comuns e os anúncios de escravos fugidos povoaram os jornais da Corte e respaldado por favores, relações pessoais e familiares historicamente cons-
das províncias do Vale. tituídas na região e que garantiam o acesso a tal.113 Relações de fidelidade
construídas ao longo de uma vida entre homens livres e pobres e grandes
50$000. O escravo chamado Antonio fugiu em 29 de junho da fazenda Tatuhy
de Pati do Alferes. Ele é carpinteiro, africano de Benguela, com marcas de
varíola, alto, pés grandes, lábios grossos, corpulento, barba branca. Como ele 111 O MUNICÍPIO 5 de julho de 1877 apud STEIN, 1990, p. 180.
fugiu com a escrava Damiana, africana de Benguela sua esposa, muito escura, 112 Para uma discussão acerca da cidadania no Império, consultar: GRINBERG, Keila. O fiador dos bra-
baixa, robusta, faltam-lhe 3 dedos na mão direita, fala bem. Esses escravos sileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antônio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002; MATTOS, H., 2000; MATTOS, I., 1990.
109 Ibid., p. 236. Ver ainda: MATTOS, H., 1998. 113 MATTOS, H. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil, séc.
110 GOMES, Flávio. “As raízes do efêmero: a insurreição quilombola de Vassouras (1838)”. In: Op. cit. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

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senhores podiam ser recompensadas no futuro. O barão de Capivary, por porque a renda mínima anual exigida era relativamente baixa para a época e
exemplo, beneficiou em testamento dois de seus “agregados”. Ao compadre a fiscalização da Coroa da lista de votantes não era das mais eficazes. Desse
José de Oliveira Barcellos deixou 3:000$000 em terras que já eram de seu modo, em tempos de eleições, muitos eleitores negociavam favores com os
usufruto e à agregada Anna Isabel do Parahyso Ribeiro doou os escravos e chefes políticos locais porque sabiam que a derrota destes grandes proprie-
as terras já arrendados por ela, além da quantia de 50$000.114 tários significaria desprestígio e perda do controle de cargos públicos.118
O estudo pioneiro de Maria Sylvia de Carvalho Franco sobre os homens Desta forma, se por um lado a pouca oferta de terras, que era uma rea-
livres na ordem escravocrata enfatizou a pluralidade de condições e de rela- lidade no Vale fluminense após a década de 1850, deixando uma grande par-
ções que este grupo social constituía junto aos grandes proprietários rurais cela da população livre vulnerável as relações pessoalizadas impostas pelos
ao nível de relações de compadrio, vínculos pessoais, favores prestados, grandes senhores; por outro, estas mesmas relações pessoalizadas abriam
interesses eleitorais, arrendamento de terras e/ou instrumentos de trabalho, possibilidades de acesso à terra, benefícios e oportunidades de inserção na
etc. Assim como Stanley Stein e Warren Dean, a autora destacou a pouca comunidade local, como demonstrou a análise do testamento do barão do
oferta de terras como favorecedora de um pequeno grupo de ricos proprie- Capivary. Obviamente que não se trata de dizer que as partes envolvidas na
tários que exercia seu poder, autoridade e controle político sobre um certo negociação se colocavam em iguais condições. O caráter violento e desigual
número de homens pobres.115 A influência destes poucos senhores não ficava das relações entre senhores e homens livres e pobres não pode ser desmere-
circunscrita aos arrendatários e sitiantes que se dedicavam à agricultura em cido. Todavia, os espaços sociais para o desenvolvimento de negociações, bar-
suas terras, mas se propagava também a vendeiros, tropeiros, jornaleiros ganhas, conflitos e rebeldias devem ser levados em consideração sob pena de
e comerciantes de pequeno porte e outros trabalhadores com negócios e encobrir as especificidades destes homens livres e despossuídos e acabar por
interesses na região.116 Como decorrência, os vínculos pessoais constituídos considerá-los uma massa de manobra sem valores e pensamentos próprios.119
entre os chamados “agregados” e os grandes proprietários locais dificulta- Mas o trabalho como lavrador agregado e pequeno sitiante ligados aos
vam a possibilidade de um existir politicamente autônomo destes homens grandes senhores não era a única função que os homens livres e pobres
livres e pobres, ao mesmo tempo em que legitimava a imposição da vontade exerciam nas grandes fazendas. Nas Instruções gerais para a administração
do mais forte sobre o mais fraco.117 das fazendas, enumerava-se: “todo o pessoal livre da fazenda, camaradas
Para José Murilo de Carvalho, ao contrário, o voto era um importante como oficiais de ofício, enfermeiros estão debaixo das ordens do adminis-
instrumento de barganha dos homens pobres frente aos senhores. Apesar trador e ele é responsável pelo bom emprego do tempo dos mesmos.[...]
de o pleito ser censitário, o número de eleitores no Império era considerável Tem o administrador o direito e a obrigação de demiti-los logo que cum-
se comparado a outros países no mesmo período. No Brasil, isso ocorria pram seus deveres”.120 Além dos citados acima, era comum nas fazendas
o emprego de trabalhadores livres para outras funções específicas e este
114 TESTAMENTO do barão de Capivary, Pau Grande 20 de fevereiro de 1863. Vassouras: Centro de
Documentação Histórica da Universidade Severino Sombra, 1863. Caixa 242. número podia aumentar de acordo com o volume de trabalho nas diferen-
115 Stanley Stein estudou o sistema da grande lavoura em Vassouras e Warren Dean desenvolveu traba- tes safras e colheitas. Na contabilidade da fazenda Pau Grande, por exem-
lho semelhante para Rio Claro, região do vale do Paraíba paulista. Ver: STEIN, 1990. plo, entre os anos de 1872 e 1876, aparecem gastos com pagamento de salá-
116 FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4. ed. São Paulo: Unesp, 1997. rios a feitores (126$000 réis/ano), jornaleiros e tropeiros.121
Sobre o espaço de sobrevivência dos homens livres e pobres na ordem escravocrata, a autora lembra
que “foi na fímbria do sistema econômico organizado para a produção e comercialização do café
que emergiram as atividades a eles relegadas. Foram esses serviços residuais, que na maior parte não
118 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização
podiam ser realizados por escravos e não interessavam aos homens com patrimônio, que ofereceram
Brasileira, 2003. p. 33.
as oportunidades aos trabalhadores livres”. p. 65.
119 A discussão desta questão no tocante aos escravos é apresentada por REIS; SILVA, 1989.
117 Ibid., p. 94. Esta afirmação está baseada numa interpretação clássica na historiografia brasileira a
qual enfatiza uma relação desigual entre proprietários de terras e seus trabalhadores e agregados. 120 INSTRUÇÕES Gerais para a Administração das Fazendas, p. 108.
Ver: LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no 121 ARQUIVO NACIONAL. Caderno de assentamentos financeiros das despesas e rendimentos mensais da
Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca CCS da UERJ, 1949. fazenda –1870-1876. Rio de Janeiro, 1870-1876. Fundo Fazenda do Pau Grande, notação 798.

96 97
Como vimos, os diversos agentes sociais que compunham o universo dos interpretada como uma prova do forte comprometimento das forças políti-
complexos cafeeiros estavam ligados por uma imbricada teia de dependên- cas do Império com a classe senhorial escravista do Vale.124
cias, solidariedades e relações de poder que eram respaldadas por uma lógica Desta forma, se por um lado a concentração de mão de obra escrava,
de domínio verticalizada, hierarquizada e excludente que operava a partir de terras e riqueza no Vale do Paraíba proporcionou uma projeção política
critérios de liberdade e propriedade. No cotidiano das plantations cafeeiras, e econômica da região no âmbito nacional, por outro, isolou os interes-
as relações sociais e de trabalho instituídas variaram no tempo e no espaço ses escravistas naquela espacialidade. Com o fim do infame comércio, o
sem, contudo, prescindirem dos princípios da hierarquia, tão caro ao fun- aumento do preço do escravo e a intensificação do tráfico interprovincial, o
cionamento das sociedades escravistas. Tais relações de força tencionavam as mapa da escravidão mudou no Brasil.125 Nos anos de 1880, a nova configu-
dinâmicas entre os diversos grupos sociais, mas também no interior dos mes- ração apontava uma concentração maciça de escravos no Vale do Paraíba,
mos. Nas comunidades de senzala de grandes plantations, por exemplo, estas enquanto outras localidades tendiam ao esvaziamento deste tipo de mão
diferenciações eram sentidas através de conflitos entre africanos e crioulos, de obra.126 A escravidão como instituição havia perdido sua capacidade de
cativos antigos e recém-chegados.122 A situação das pessoas livres e pobres que amalgamar interesses de grupos sociais distintos. Tornara-se reduzida aos
trabalhavam nas grandes fazendas não fugia à regra.123 Contudo, a dinâmica interesses de um grupo de grandes proprietários do centro-sul, enfraque-
social vigente acenava com hipotéticas conquistas: aos escravos com a possi- cendo-a como projeto nacional.127
bilidade de constituírem famílias, fazerem roça própria, realizarem festas aos
domingos e dias santos ou serem alforriados; aos homens livres e agregados
com promessas de proteção, melhor remuneração, lotes de terra, recebimento
de escravos ou pequenas doações após a morte do proprietário a quem foram
fiéis; aos senhores com a aquisição de títulos de nobreza, enriquecimento ou
boas relações com pares mais endinheirados. Todavia, as clivagens entre os
grupos sociais em questão eram fulcrais. Enquanto para os escravos a aquisi-
ção de “benefícios,” em muitos casos, significava a garantia da própria sobre-
vivência; para os senhores se tratava da manutenção de um status quo.
A título de conclusão, pode-se dizer que, como resultado histórico
do processo de ocupação das terras “serra acima”, da rápida montagem
dos complexos cafeeiros e da ascensão dos mega proprietários de terras e 124 No âmbito interno, cito o crescimento do movimento abolicionista, a Guerra do Paraguai, o
escravos que residiam no centro-sul, em pouco tempo, o Vale do Paraíba aumento das fugas de escravos e ascensão das classes médias urbanas incluindo o grupo dos milita-
res. No âmbito externo, destaco a Guerra Civil Americana com a derrota do sul escravista e o forte
tornou-se uma peça fundamental para a economia e a política imperial, crescimento da opinião pública internacional contrária à escravidão.
sendo socialmente reconhecida como uma região. A opção conservadora 125 “As estimativas indicam que entre 1850 e 1888, foram transferidos aproximadamente duzentos mil
escravos do Nordeste para a lavoura cafeeira. Além da venda dos cativos ter sido uma das formas
pela emancipação gradativa da escravidão a despeito de todas as transfor-
de muitos proprietários de terras nordestinos saldarem suas dívidas, as secas ocorridas na região,
mações ocorridas tanto no cenário nacional quanto internacional pode ser no final da década de 1870, também contribuíram para que perdessem aproximadamente 50% do
seu plantel de escravos. O trabalhador livre foi substituindo paulatinamente a mão de obra nas
122 FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico Atlântico, lavouras nordestinas.” BASTOS, Lúcia; MARTINS, Humberto. O Império do Brasil. Rio de Janeiro:
c.1790 – c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.. Sobre a temática da família escrava, Nova Fronteira, 1999. p. 350.
Robert Slenes apresenta uma interpretação oposta de que no âmbito das comunidades de senzala e 126 Neste processo, destaco a extinção da escravidão em 1884 nas províncias do Ceará, Amazonas e na
da formação de famílias foi possível aos africanos e seus descendentes manterem relações de solida- cidade de Porto Alegre e o movimento dos caifazes em São Paulo.
riedade e elementos da cultura africana. SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Rio de Janeiro: Nova 127 SALLES, Ricardo. Nostalgia imperial: a formação da identidade nacional no Brasil do Segundo
Fronteira, 1999. Reinado. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. Id. Guerra do Paraguai: memórias & imagens. Rio de
123 SLENES, 1997, p. 283. Janeiro: Biblioteca Nacional, 2003.

98 99
A cartografia do poder senhorial:
cafeicultura, escravidão e formação
do Estado nacional brasileiro, 1822-1848
Rafael Marquese
Ricardo Salles

o mapa de 1848 e a cartografia das fazendas de café


Em 1848, o engenheiro militar e coronel Conrado Jacob de Niemeyer, então
superintendente da fazenda imperial de Santa Cruz, localizada na provín-
cia do Rio de Janeiro, coordenou a composição e impressão de um ambi-
cioso mapa da propriedade e de seu entorno. Dentre suas peculiaridades,
encontra-se a combinação simétrica de representações planimétricas e vis-
tas frontais dos edifícios que compunham o complexo do palácio imperial
de Santa Cruz (parte direita do mapa) com uma representação cartográfica
dos imensos fundos territoriais dos antigos domínios jesuíticos, da baía de
Mangaratiba ao rio Paraíba do Sul (parte esquerda). Nesta segunda ses-
são, destaca-se a anotação, muito rara no Brasil, das fronteiras de diversas
Imagem 1: Planta corográfica de uma parte da província do Rio de Janeiro na qual se inclui a Imperial
propriedades rurais, nas quais foram anotados os nomes de seus respecti-
Fazenda de Santa Cruz segundo as primitivas medições dos jesuítas em 1729 e remedição de 1783,
vos donos (Imagem 1). Essa última característica torna o mapa da fazenda medição anulada de 1827 e de sua posse atual para ser anexa às reflexões tendentes a determinar
de Santa Cruz uma peça ímpar para a análise da história do Império do definitivamente os seus limites. (Acervo: Arquivo Nacional, ref.: BR RJANRIO 4Y.0.MAP.50)

Brasil, em que pouco – ou mesmo nada – se mapeou a estrutura fundiária.


O contraste entre esse documento único e as práticas cartográficas vigen-
O presente capítulo parte da seguinte pergunta: por que o mapa de
tes em outros espaços de fato chama a atenção. Em projeto comparativo
Niemeyer constitui peça única no Brasil imperial, quando, na quadra his-
sobre as zonas de ponta da chamada “Segunda Escravidão” (baixo vale do
tórica oitocentista, os Estados nacionais americanos e os poderes coloniais
rio Mississippi, zona algodoeira; ocidente de Cuba, zona açucareira; Vale do
europeus demonstravam intensa preocupação com o mapeamento de
Paraíba, zona cafeeira), foi possível constatar essa especificidade do Brasil.1
territórios e de recursos naturais? Por meio do exame do mapa de 1848,
iremos explorar em que medida os processos de construção dos Estados
nacionais da Segunda Escravidão envolveram graus distintos de esquadri-
1 O projeto, financiado pela Getty Foundation e desenvolvido entre 2005 e 2009, foi desenvolvido
pela equipe composta por Reinaldo Funes, Rafael Marquese, Dale Tomich e Carlos Venegas. nhamento de territórios e de relações entre as estruturas do poder político

100 101
e suas bases sociais de sustentação, notadamente junto às classes de pro- onde nasce o rio, em São Paulo; o Médio Vale, que nos interessa mais de
prietários de terras e escravos. Em outras palavras, ao procurarmos uma perto, compreendendo as terras que vão de Cachoeira Paulista até Itaocara,
resposta para a pergunta concernente ao caráter singular do mapa de 1848, no Rio de Janeiro; o Baixo Vale, quando o rio Paraíba vai se nivelando, aos
poderemos iluminar o processo mais amplo de formação da classe senho- poucos, até a foz na Baixada Campista. No século XIX, a expansão do café,
rial escravista no Vale do Paraíba e suas relações com a construção do que chegou à região por diferentes vias, converteu o vale geográfico em uma
Estado nacional brasileiro. unidade socioeconômica e ambiental, com ligações diretas com a Zona da
A composição do mapa de Niemeyer, em fins da década de 1840, Mata mineira, o norte da província de São Paulo, a baía de Ilha Grande,
remonta aos anos imediatamente posteriores à independência do Brasil, o nordeste da província do Rio de Janeiro, a zona canavieira de Campos,
quando uma disputa por terras opôs, de um lado, a primeira geração de a Baixada e o Recôncavo em torno da Baía de Guanabara e, finalmente,
cafeicultores escravistas do Vale do Paraíba ocidental, e, de outro, D. Pedro com a praça mercantil do Rio de Janeiro e a Corte imperial. É essa região
I. Acompanhar essa disputa nos permitirá compreender o papel do processo que, seguindo o geógrafo Orlando Valverde, denominamos de Bacia do
de penetração do café na região, especialmente em uma área-chave, o Médio Paraíba.2 Num segundo círculo de desdobramento, essa região escravista,
Vale do Paraíba, para a configuração do poder senhorial. Examinaremos a organizada em torno do café e, em menor dimensão, em torno da cana-
formação de suas primeiras fazendas; o suporte que seus donos de terras e de-açúcar, conectava-se com o restante das províncias de Minas Gerais e
escravos deram ao projeto de rompimento das relações com a metrópole, São Paulo, com ramificações para o extremo meridional da América portu-
capitaneado pelo próprio príncipe português; o progressivo divórcio pos- guesa, constituindo a região Centro-Sul.
terior entre D. Pedro I e os grupos escravistas em ascensão, que culminou As terras compreendidas pelo Médio Vale do Paraíba no século XVIII,
com sua abdicação em 1831; a articulação do Regresso Conservador como e, particularmente, a porção ocidental do Médio Vale, foram regidas no
parte do processo de formação da classe senhorial radicada no Vale e con- período colonial pela política de terras proibidas, que visava interditar o con-
solidação do Estado imperial; a coroação do novo imperador em 1840 e trabando de ouro e diamantes, o que, por sua vez, permitiu que populações
o arranjo político então construído. Nesse percurso, poderemos, enfim, indígenas continuassem a habitar a região até o início do século XIX.3 Não
entender o que Niemeyer pretendia em 1848. obstante, durante os setecentos, a Coroa portuguesa promoveu a ocupação
de faixas dessa região por meio da concessão de sesmarias em dois grandes
a fazenda de santa cruz, a montagem da cafeicultura eixos. O primeiro corria grosso modo de sul a norte, ao longo do chamado
escravista no vale do paraíba ocidental Caminho Novo de Paes Leme, que ligava o porto do Rio de Janeiro às Minas
e a independência do brasil Gerais.4 O segundo eixo dispunha-se em uma faixa de leste a oeste, em torno
da Estrada Geral para São Paulo. É ele que nos interessa mais de perto.
O rio Paraíba do Sul nasce em terras paulistas, na confluência dos rios
Paraitinga e Paraibuna, na Serra do Mar. Ele corre, inicialmente, em dire-
2 VALVERDE, Orlando. A fazenda de café escravocrata no Brasil. 1. ed. 1965. In: ___. Estudos de geo-
ção oeste, até a altura de Jacareí, quando faz uma inflexão para o Norte e em grafia agrária brasileira. Petrópolis: Vozes, 1985.
direção a leste, adentrando terras fluminenses, até dobrar ao sul e desem- 3 Sobre a política de zonas proibidas, ver, dentre outros, ANASTASIA, Carla Maria Junho. A geogra-
bocar no Oceano Atlântico em São João da Barra. Seu percurso é paralelo fia do crime: Violência nas Minas Setecentistas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005. Como ressalta
Marina Monteiro Machado (Entre fronteiras: terras indígenas nos sertões fluminenses (1790-1824).
ao Oceano Atlântico, formando e ocupando uma grande calha que se situa 2010. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. p. 35), as
entre a Serra do Mar, que se alastra paralela e próxima ao litoral, e Serra da populações indígenas que habitavam o Vale foram importantes para a eficácia relativa do bloqueio à
colonização na região durante o século XVIII.
Mantiqueira, que divide o Vale do Paraíba do altiplano mineiro. O Vale do
4 Sobre as sesmarias concedidas nesse eixo, ver LEMOS, Marcelo Sant’Anna. O índio virou pó de
Paraíba, por suas características geoecológicas, pode ser dividido em Alto café? A resistência dos índios Coroados de Valença frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba
Vale, compreendendo a região mais elevada, incrustada na Serra do Mar, (1788-1836). 2004. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004. p. 39. Para o processo mais amplo,

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O chamado “Caminho Novo da Piedade”, ligando o que hoje é o muni-
cípio de Lorena à fazenda Santa Cruz, começou a ser aberto na década
de 1720 com o objetivo de garantir um acesso terrestre entre a cidade do
Rio de Janeiro e a capitania de São Paulo, de modo a evitar os ataques
às partidas de ouro descidas de Minas Gerais e até então embarcadas em
Parati.5 A abertura da via deu ensejo às primeiras concessões de sesmarias
na zona ocidental do Médio Vale do Paraíba, algumas das quais localizadas
em terras da fazenda de Santa Cruz. A propriedade fora constituída por
concessões de sesmarias à Companhia de Jesus e da agregação de terras
doadas por particulares à mesma ordem, formando, entre as décadas de
1590 e 1650, seus imensos fundos territoriais, que iam da baía da Restinga
da Marambaia até a margem esquerda do rio Paraíba do Sul (Imagem 1).
Uma estimativa recente afirma que “em quilômetros quadrados, a proprie-
dade dos jesuítas equivaleria a 10% do atual território do estado do Rio de
Janeiro”.6 A notícia da abertura do Caminho Novo em 1725, que cruzaria Imagem 2: detalhe da imagem 1
as terras da fazenda, encontrou viva oposição dos padres. A concessão de
sesmarias como a de Francisco Cordovil de Siqueira, em 1729 (Imagem 2), Como o processo de medição de 1729-1731 deixava claro, todo o foco
na subida da Serra do Mar, porém em área do domínio jesuítico, levou os da exploração econômica da fazenda estava na baixada, com uma combi-
inacianos à primeira medição sistemática de seus fundos territoriais, fina- nação de pecuária semi-intensiva e produção de mantimentos (sobretudo o
lizada em maio de 1731.7 arroz), ambas dependentes das obras bastante sofisticadas de drenagem de
pântanos e construção de canais que tanto notabilizariam a fazenda de Santa
Cruz. Suas terras na região de serra acima, contudo, permaneceram inex-
ploradas ou, quando muito, utilizadas apenas para a retirada de madeira de
lei.8 Eram os indígenas não reduzidos que exerciam o domínio efetivo sobre
as terras da fazenda no Vale do Paraíba, algo que derivou tanto da opção
jesuítica pela exploração exclusiva de escravos negros na Baixada, como da
MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: Conflito e direito à terra no Brasil do própria política metropolitana de interdição fundiária das zonas proibidas.
século XIX. 2ª ed. Niterói: Eduff, 2008. O início das obras de construção do Caminho Novo da Piedade trouxe
5 RODRIGUES, Píndaro de Carvalho. O Caminho Novo: Povoadores de Bananal. São Paulo: Governo
para a fazenda de Santa Cruz as tensões que já vinham polarizando jesuítas
do Estado de São Paulo, 1980. p. 23-27.
6 A avaliação é de José MENESES, José Newton Coelho. Se perpetue a Companhia nessas partes: materiali-
e autoridades régias em outros quadrantes do império português. A resis-
dade da fazenda de Santa Cruz no tempo da expulsão dos jesuítas. In: ENGEMANN, Carlos; AMANTINO, tência jesuítica à nova via foi demovida por ordem de 1732, que os obrigou
Marcia (Org.). Santa Cruz: de legado dos jesuítas a pérola da Coroa. Rio de Janeiro: EdUerj, 2013. p. 80. a permitir a abertura do caminho na propriedade. Até 1758, outras sesma-
Para a história da formação da fazenda, ver, além deste livro coletivo, o trabalho exaustivo de FREITAS,
Benedicto. Santa Cruz: Fazenda Jesuítica, Real, Imperial. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 1985. v. 1 de rias seriam concedidas ao longo da Estrada Geral para São Paulo. De todo
3; e o artigo esclarecedor de FRIDMAN, Fania. De chão religioso a terra privada: o caso da Fazenda de modo, as décadas de 1730 a 1750 representaram o apogeu da fazenda sob
Santa Cruz. In: Cadernos IPPUR, ano XV-XVI, n. 2-1, p. 311-343, ago.-dez. 2001/jan.-jul. 2002.
o domínio inaciano, encerrado com a expulsão e o confisco dos bens da
7 Sobre a sesmaria concedida em 1729, representada no mapa de Niemeyer no canto inferior esquerdo
como “antiga sesmaria do Cordovil”, ver FRIDMAN, 2001-2002, p. 315; sobre a medição de 1729-1731, Companhia em 1759. A política de ampla reordenação do Império português
ver O TOMBO ou cópia fiel da medição, e demarcação da fazenda nacional de. Rio de Janeiro:
Tipografia de Lessa & Pereira, 1829. p. 62-112. 8 FREITAS, 1985, p. 92-226.

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promovida pelo futuro marquês de Pombal – dentre as quais se assomam a No início do século XIX, o café começou a se firmar ao longo do
mudança da sede do vice-reinado para o Rio de Janeiro e os esforços para Caminho Novo da Piedade, sempre combinado com outras atividades
dinamizar a agricultura escravista da América portuguesa por meio do estí- como a produção de açúcar, de aguardente e de mantimentos, ou a cria-
mulo a novos produtos e à ocupação de áreas despovoadas – trouxe grandes ção de animais.11 O estabelecimento da família real portuguesa no Rio de
implicações para a história de Santa Cruz, transformada em patrimônio da Janeiro, em 1808, trouxe um renovado impulso para a cafeicultura e demais
Coroa de Portugal. No período pombalino, verificou-se uma concessão mais atividades econômicas, seja pelo simples aumento da demanda urbana, seja
sistemática de sesmarias em terras de serra acima da fazenda, iniciando-se, pelo incremento do fluxo de capitais, abertura de novas vias e intensificação
para todos os efeitos, o processo de privatização do antigo domínio inaciano. do tráfico negreiro transatlântico.12 Todas essas transformações se articula-
Afora o entorno do Caminho Novo da Piedade, foram concedidas, a par- ram diretamente à organização espacial da fazenda de Santa Cruz, tanto na
tir de 1764, várias sesmarias na calha do rio Piraí, um afluente da margem baixada quanto na serra. Se modificações importantes, como a montagem
direita do Paraíba, logo transformada em zona de fricção com os índios, que, e o posterior leilão dos engenhos de Itaguaí e Piaí (adquiridos, em 1806,
contudo, não demorariam a ficar confinados à margem esquerda.9 pelo grande traficante de escravos Antonio Gomes Barroso), antecederam
Nesse meio tempo, a área da baixada entrava em um período de regres- a chegada da comitiva de D. João ao Rio de Janeiro, foi com sua Corte que
são econômica aguda, em decorrência da dilapidação do patrimônio pecuá- os usos da fazenda de Santa Cruz adquiriram novo sentido.13 Já em 1808,
rio por particulares, da ausência de manutenção do sistema de canais, dos o príncipe regente converteu a antiga sede jesuítica em palácio real, com
problemas com a escravaria. Na década de 1790, sucederam-se planos de amplas reformas no risco arquitetônico para adequá-la à nova função. Ao
recuperação econômica da fazenda Real, que procuraram retomar a antiga mesmo tempo em que transformava a antiga morada jesuítica em palá-
opulência pela aplicação de estratégias de gestão, muitas das quais se inspi- cio, na zona de serra acima, o príncipe regente concedia amplas sesmarias
ravam nas práticas jesuíticas. Na documentação produzida nessa ocasião, na fronteira norte da fazenda, isto é, na margem esquerda do rio Paraíba,
lemos os primeiros registros de cultivo de café nas terras da fazenda real,
território indígena que estava sendo “clareado” com o estabelecimento de
mas, em uma data tardia como 1804, o terreno de serra acima formalmente
aldeamentos em futuras terras da vila de Valença e com o fim definitivo da
pertencente à Coroa (mesmo que com a presença de sesmeiros e posseiros)
política de “zonas proibidas”.14 Adotou-se, com essas concessões, um novo
ainda era descrito como “mais inculto, e em parte mais fragoso, [...], dila-
padrão: seguindo as normativas do alvará de 5 de outubro de 1795 – que
tando-se ao ocidente para o sertão da Paraíba do Sul, onde confina com seis
estipulavam a obrigatoriedade de demarcação e medição prévia das terras
léguas ainda não reconhecidas completamente, e nem tão pouco demarca-
a serem dadas em sesmarias, confirmadas por alvará firmado já no Rio de
das.” Essas terras, no entanto, muito prometiam caso fossem solucionados
Janeiro –, em 25 de janeiro de 1809, o terreno além-Paraíba foi mapeado
os problemas relativos ao acesso:
sendo também esta segunda parte de admirável qualidade, fertilíssima, e espe- de recuperação da fazenda em fins do século XVIII, ver ENGEMANN, Carlos; RODRIGUES, Cláudia;
cial: porque oferece nos seus produtos ao agricultor cento por um: tem con- AMANTINO, Márcia. Os jesuítas e a Ilustração na administração de Manoel Martins do Couto Reis da
tudo o defeito de serem mais demorados os transportes, ainda que poderão Real Fazenda de Santa Cruz (Rio de Janeiro, 1793-1804). In: ENGEMANN, Carlos; AMANTINO, Marcia
(Org.). Santa Cruz: de legado dos jesuítas a pérola da Coroa. Rio de Janeiro: Eduerj, 2013. p. 291-314.
melhorar à medida do tempo da indústria da crescida população, dos interes-
11 Esse processo é bem documentado pelas listas nominativas de habitantes compostas para a capita-
ses, e comércio.10
nia de São Paulo. Ver, dentre outros, MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de
cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: Annablume: Fapesp, 1999. p. 109-126; e
9 Para o impacto geral da política de fomento ilustrada pós-1763 sobre a zona da fazenda de Santa LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert S. Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo,
Cruz, ver SANCHES, Marcos Guimarães. Sertão e fazenda: ocupação e transformação da serra de 1750 a 1850. São Paulo: Edusp, 2005. p. 81-106.
fluminense entre 1750 e 1820. RIHGB, v. 151, n. 366, p. 16-41, jan.-mar. 1990; sobre as sesmarias,
12 Sobre a questão, ver o capítulo 1 deste livro.
FRIDMAN, 2001-2002, p. 315; sobre os índios, LEMOS, 2004, p. 37-43.
10 REYS, Manoel Martins do Couto. Memórias de Santa Cruz: seu estabelecimento e economia primi- 13 FREITAS, Benedicto. Santa Cruz: fazenda jesuítica, real, imperial – vice-reis e reinado, 1760-1821.
tiva – seus sucessos mais notáveis, continuados do tempo da extinção dos denominados jesuítas, Rio de Janeiro: Edição do Autor, 1987a. v. 2 de 3.
seus fundadores, até o ano de 1804. RIHGB, v. 17, p. 143-144, abr. 1843. Para uma análise desses planos 14 Sobre a política de aldeamentos dos coroados, ver LEMOS, 2004, e MACHADO, 2010.

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antes de ser distribuído (imagem 3). Poderosos traficantes de escravos com Na futura província do Rio de Janeiro, a primeira zona de produção
amplo trânsito na burocracia joanina, capazes de arrematar os lucrativos cafeeira em larga escala foi exatamente a que se estruturou em torno da
contratos da Coroa, como os Faro, e gente pioneira na ocupação da região Estrada Geral de São Paulo, em São João Marcos e Piraí, na década de 1810.
de Piraí, como os Gonçalves Moraes, foram agraciados com mais de uma Somente nas décadas de 1820 e 1830 é que o café se firmaria em Vassouras
sesmaria nessa zona quadriculada.15 e Valença.16 É o que estava ocorrendo na propriedade em tela, a fazenda
Olaria, situada no Caminho Novo da Piedade, fomentada por Hilário
Gomes Nogueira em sesmaria comprada em 1801. Hilário era natural de
Baependi, Minas Gerais; produtor de mantimentos para o mercado interno
e envolvido no comando de tropas de mulas, deslocou-se para a fronteira
das capitanias de São Paulo e Rio de Janeiro na virada do século XVIII para o
XIX. Em 1807, foi um dos signatários da petição demandando a fundação da
vila de São João do Príncipe, atendida por D. João em 1813, período em que
obteve mais sesmarias na região. Entre essa data e seu falecimento, em 1824,
foi um dos grandes traficantes de escravos locais, com constantes compras
de africanos na praça do Rio de Janeiro para vendê-los serra acima. Hilário
era primo de Manuel Jacinto Nogueira da Gama, futuro visconde e marquês
de Baependi (títulos recebidos em 1824 e 1826), igualmente proprietário de
terras e escravos no Médio Vale do Paraíba, na região de Valença, e, assim
como o parente, figura proeminente no Primeiro Reinado.17
Imagem 3: detalhe da imagem 1
As trajetórias dos Gomes Nogueira, dos Pereira Faro, dos Gonçalves de
Esse duplo processo de transformação, da fazenda de Santa Cruz e de Moraes e de outros núcleos familiares envolvidos com negócios cafeeiros,
seu entorno de serra acima, pode ser acompanhado pela chamada “missão demonstram a dimensão molecular do complexo processo de formação da
austríaca” de 1817. Amplas reformas no palácio foram concebidas para o nova classe senhorial brasileira e de suas relações com a independência do
casamento do príncipe D. Pedro com a princesa Leopoldina. A chegada país. A montagem da cafeicultura no Vale do Paraíba envolveu tanto um
dessa última foi precedida pela missão científica da qual fez parte o artista movimento “serra acima”, isto é, de grandes negociantes (traficantes tran-
Thomas Ender, que percorreu a Estrada Geral de São Paulo em toda sua satlânticos de escravos, em especial) e de burocratas da praça do Rio de
extensão. No fantástico conjunto de desenhos a lápis que Ender produziu, Janeiro que aplicaram seus vultosos capitais na nova atividade econômica,
temos o que talvez seja o primeiro documento visual a respeito da intro- como um movimento “serra abaixo”, isto é, de produtores de mantimentos
dução da cafeicultura escravista no Vale do Paraíba, a imagem intitulada e tropeiros do Sul de Minas Gerais que desceram a Serra da Mantiqueira
Plantação de açúcar e de café do Hilário [Gomes Nogueira], a meia milha de para investir em uma atividade muito mais rentável, voltada ao mercado
São João Marcos e a 22 milhas do Rio de Janeiro. mundial, do que suas operações no mercado interno.18 Se o movimento
16 SANCHES, 1990, p. 44-56.
15 Sobre os alvarás de 1795 e 1809, ver MOTTA, M., 2008, p. 133-134; e SILVA, Ligia Osório. Terras
devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. Campinas: Ed. Unicamp, 1996. p. 70; sobre as sesma- 17 A respeito de Hilário Gomes Nogueira e seus negócios, ver SCHNOOR, Eduardo. Na penumbra: o
rias concedidas além-Paraíba, Fridman, “Do chão religioso à terra privada”, p.316; sobre os Faro, entrelace de negócios e famílias (Vale do Paraíba, 1770-1840). 2005. Tese (Doutorado em História)
ver GORENSTEIN, Riva. Comércio e política: o enraizamento de interesses mercantis portugueses – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de Sâo Paulo, São Paulo, 2005.
no Rio de Janeiro (1808-1830). In: MARTINHO, Lenira Menezes; GORENSTEN, Riva. Negociantes e p. 19, passim.
caixeiros na sociedade da Independência. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Trabalho e Emprego 18 Para o movimento serra acima, ver FRAGOSO, 1992; para o movimento serra abaixo, ver LENHARO,
– Prefeitura do Rio de Janeiro, 1992. p. 150-186. 1992. Ver, a respeito, os capítulos 1 e 7 deste livro, bem como o artigo de MARQUESE, Rafael. As

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“serra cima” foi, em larga medida, mas não exclusivamente, decorrente da O projeto de independência capitaneado por D. Pedro, enfim, contou
vinda da Corte para o Brasil, o movimento de “serra abaixo” obedecia a com o suporte decisivo de uma série de agentes econômicos que operavam
influxos mais antigos de expansão e povoamento, originários da ampliação na zona compreendida pela antiga fazenda de Santa Cruz, tanto na Baixada
e diversificação da economia mineradora, principalmente em sua fase de como na Serra: grandes traficantes e negociantes, como Antonio Gomes
declínio a partir da segunda metade do século XVIII.19 Quando da necessi- Barroso e Joaquim José Pereira de Faro, bem como o crescente de proprie-
dade de costurar uma ampla base de apoio para seu projeto político contra tários escravistas que estavam abrindo fazendas ao longo do Caminho Novo
as determinações das Cortes de Lisboa, o príncipe regente D. Pedro se fiou da Piedade e nas terras serra acima que haviam pertencido a Santa Cruz
nessas amplas redes de negócio e de família que articulavam as províncias – os irmãos Breves, José Gonçalves de Moraes, Hilário Gomes Nogueira,
de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, e que tinham na zona oci- Brás de Oliveira Arruda, dentre outros. O Escudo de Armas do Brasil, esta-
dental do Vale do Paraíba um de seus principais loci. Em abril de 1821, no belecido em 18 de setembro de 1822, logo após a viagem de D. Pedro pelo
episódio crucial da Assembleia na Praça do Comércio, Joaquim José Pereira Caminho Novo da Piedade, pode ser tomado como um reconhecimento
do Faro, sesmeiro e cafeicultor em Piraí e Valença, fora eleito para a Junta do peso crescente do café para a economia do império recém-fundado. O
Provisional que auxiliaria o regente na inspeção dos atos dos Ministros de ramo de tabaco, um dos principais produtos da área de Baependi, no sul de
Estado indicados por Lisboa. Algo semelhante pode ser observado na via- Minas, por sua vez, expressava a via especificamente interiorana na forma-
gem realizada em março/abril de 1822 para Minas Gerais e, em especial, na ção desse complexo socioeconômico que estava na base do novo império.
viagem de agosto/setembro para São Paulo. A passagem de D. Pedro pelo
Vale do Paraíba foi calculada com o objetivo de obter o suporte de todos o tombo de 1827 e a reação dos fazendeiros
os potentados em ascensão, que, com seus filhos, formaram a Guarda de
Honra do príncipe regente – o que incluía os irmãos Breves.20 O palácio da fazenda de Santa Cruz era o preferido do primeiro imperador
do Brasil. Desde sua adolescência, quando seu pai havia modificado os usos
desventuras de um conceito: capitalismo histórico e a historiografia sobre a escravidão brasileira. dados àquele espaço pelos jesuítas e pelos administradores coloniais que se
Revista de História, São Paulo: USP, p. 223-254, 2. sem. 2013. seguiram à expulsão da ordem, D. Pedro tinha por costume realizar longas
19 Esses dois movimentos se retroalimentaram e antecederam a vinda da Corte para o Rio de Janeiro. estadias na fazenda. Entre 1826 e 1828, procedeu a uma ampla reforma da
Toda a região do sul de Minas, principalmente a Comarca do Rio das Mortes, em torno de São João
del Rei, com irradiações pela Zona da Mata e pelo Vale do Paraíba, foi irrigada pela produção de fachada e da arquitetura interna do palácio, sob o encargo do engenheiro
gêneros de abastecimento (grãos, carnes, queijos, aguardente, entre outros), através de caminhos e militar francês José Pezerat, que lhe conferiu as feições neoclássicas obser-
estradas locais, percorridos por tropas de muares, que visavam tanto a própria zona de mineração
váveis na parte direita do mapa de Niemeyer (Imagem 1). Naquela altura, o
quanto a cidade do Rio de Janeiro. Esta, por sua vez, era o grande centro fornecedor de cativos para o
interior, tanto para as minas quanto para a zona de abastecimento. Caio Prado Júnior, em Formação superintendente da fazenda imperial de Santa Cruz era Boaventura Delfim
do Brasil contemporâneo. (São Paulo: Brasilense, 1969. 1. ed. 1942), já havia chamado a atenção para Pereira, barão de Sorocaba, título recebido em 12 de dezembro de 1826.
a formação e a força dessa economia mercantil de abastecimento. Cf. LENHARO, 1992, p. 60-61, que
salienta a contribuição pioneira do historiador paulista. Além da região mineradora, em torno do Delfim Pereira fora nomeado para administrar a propriedade nacional em
eixo Rio de Janeiro/São João del Rei gravitavam o sul da colônia portuguesa, o interior paulista, toda 21 de abril de 1824, pouco após D. Pedro I ter um caso com sua esposa,
a zona da Baixada Campista no Rio de Janeiro, indiretamente, Bahia e Pernambuco, e todo o comér-
cio de escravos com a costa ocidental da África, principalmente em sua zona central (cf. FRAGOSO,
Maria Benedita de Castro Canto e Melo, irmã de Domitila de Castro Canto
1992). Na verdade, foram essas condições socioeconômicas mais amplas que, em parte, propiciaram e Melo, a futura marquesa de Santos (também em 12 de dezembro de 1826).21
a vinda da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, que, por sua vez, fortaleceu, expandiu e consoli-
dou o papel do Rio de Janeiro e do centro-sul no Império português. de Janeiro: J. Olympio, 1972, e Id. D. Pedro: jornada a Minas Gerais em 1822. Rio de Janeiro: J. Olympio,
20 Sobre a Assembleia da Praça do Comércio, ver SOUSA, Octávio Tarquínio de. História dos fundadores 1973; SCHNOOR, 2005; BITTENCOURT, Vera Lúcia Nagib. Bases territoriais e ganhos compartilhados:
do Império do Brasil: a vida de D. Pedro I. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. t I de III, v. II, p. 237- articulações políticas e projeto monárquico-constitucional. In: MARSON, Izabel; OLIVEIRA, Cecília H.
238, 285-286; e OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. Imbricações entre política e negócios: os conflitos L. de S. (Org.). Monarquia, liberalismo e negócios no Brasil: 1780-1860, p. 139-166.
na Praça do Comércio do Rio de Janeiro, em 1821. In: MARSON, Izabel; OLIVEIRA, Cecília H. L. de 21 As relações entre o affair de D. Pedro com Maria Benedita, cuja filha com o imperador nasceu em
S. (Org.). Monarquia, liberalismo e negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Edusp, 2013. p. 69-107. novembro de 1824, e a nomeação de Delfim Pereira para Santa Cruz, em abril daquele ano, foram
Sobre as viagens de D. Pedro, ver BARREIROS, Eduardo Canabrava. Itinerário da Independência. Rio estabelecidas por SOUSA, Octávio Tarquínio de. História dos fundadores do Império do Brasil: a vida

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Durante a administração de Delfim Pereira, a lua de mel entre D. Pedro I de julho de 1824, afirmou que a medição de 1731 ainda era válida, sendo des-
e os fazendeiros de serra acima azedou. A questão fundiária na fazenda de necessário, portanto, a confecção de um novo mapa da propriedade, como
Santa Cruz esteve no centro dessa virada. A conjuntura era amplamente advogava o desembargador procurador da Fazenda Nacional, José Joaquim
favorável ao crescimento da atividade cafeeira, e esses fazendeiros vinham Nabuco de Araújo. Em 2 de setembro de 1824, o imperador demonstrou
promovendo uma forte expansão de seus investimentos em terras e escra- aparente concordância com o parecer do Conselho. Poucos meses depois,
vos na área. A delimitação das propriedades, nestas circunstâncias, ganhou, no entanto, ocorreu uma grande reviravolta: noticiou-se, em 28 de fevereiro
então, uma relevância que não tinha tido até aquele momento. de 1825, que os originais do Tombo de 1731, ao serem transportados do palá-
Desde a expulsão dos jesuítas, havia uma imprecisão quanto aos fun- cio de Santa Cruz para o palácio de São Cristóvão, haviam sido roubados em
dos territoriais da fazenda. Uma medição iniciada em 1783 fora suspensa Campo Grande, por marginais de beira de estrada. Instaurado o inquérito,
em 1784, retomada em 1787, e considerada inválida em 1814. Por Decreto nada se apurou. Diante do sumiço dos originais, o que restava fazer senão
de 10 de outubro de 1820, D. João VI mandou que se fizesse nova medição proceder a uma nova medição? Era o que Delfim Pereira vinha advogando
e demarcação do Tombo da propriedade, aviventando os marcos da medi- desde que se tornara superintendente de Santa Cruz em 1824, e que a ban-
ção jesuítica de 1731. A necessidade de corrigir ou sanar as imprecisões, didagem miúda tornara necessidade com o assalto de fevereiro de 1825. Mas
atualizando o conhecimento exato do que realmente pertencia à Coroa, era havia bandidagem graúda nessa história: um mês após o 7 de abril de 1831,
evidente. Desde 1808, houvera um processo de amplas concessões de ses- quando D. Pedro I foi forçado à renunciar ao Império do Brasil em nome de
marias serra acima, precedidas pelas sesmarias concedidas, após 1763, ao seu filho, foram encontrados em seu gabinete os originais do Tombo de 1731,
longo do Caminho Novo da Piedade e na calha do rio Piraí. Como vimos, os mesmos que teriam sido furtados seis anos antes.22
essa onda de concessão de sesmarias e de ocupação territorial expressava o Imperador envolvido em adultérios, filhos fora do casamento, assaltos
aquecimento da economia colonial na hinterlândia carioca que vinha ocor- fajutos: dias animados, esses do Primeiro Reinado. A despeito de, desde
rendo desde fins do século XVIII. Foi essa aceleração e seu correspondente 1822, haver cópia do Tombo original feita pelo tabelião Caetano de Oliveira
adensamento social, com a formação de uma camada social superior de Gusmão, Delfim Pereira – sempre com a anuência, ainda que não explícita,
grandes comerciantes, traficantes e proprietários escravistas, que deu sus- de D. Pedro I – tocou adiante o novo processo de medição, que tampouco foi
tentação ao estabelecimento da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, e não tranquilo. No meio da tarefa, quando os pilotos preparavam-se para iniciar
na Bahia. No reverso da medalha, o evento de 1808 aprofundou o processo a medição serra acima, o engenheiro militar César Cadolino recusou-se a
de fortalecimento desse novo grupo social dominante. A Independência do incluir nos fundos da fazenda imperial as terras do antigo sesmeiro Manoel
Brasil, em 1822, capitaneada pelo príncipe português e sustentada, mate- Pereira Ramos, confinante dos jesuítas em 1731. Consequência: foi demitido
rial e socialmente, pelos grandes proprietários, comerciantes e traficantes pelo novo barão de Sorocaba. Em 24 de julho de 1827, o superintendente,
fluminenses, mineiros e paulistas, aparentemente representou o ponto de não obstante pequenos percalços como esse, deu a medição por concluída. O
chegada de todo esse processo. No entanto, mais correto seria considerá-la importante a registrar é que, com este novo mapeamento, a fazenda imperial
como o ponto de partida da consolidação de uma nova classe senhorial. de Santa Cruz avançara bastante para a margem esquerda do rio Paraíba,
Em 19 de dezembro de 1823, D. Pedro I suspendeu a medição das ses- passando a englobar praticamente toda a calha do rio Piraí (Imagem 4).
marias concedidas em anos anteriores que se acreditava estarem dentro da
fazenda de Santa Cruz, até a feitura do novo Tombo determinado pelo Decreto
de outubro de 1820. O Conselho de Fazenda do Império, em consulta de 5

de D. Pedro I, t. II, p. 612-613. Sobre Delfim Pereira à frente de Santa Cruz, ver FREITAS, Benedicto. 22 Para todo o episódio da confecção do Tombo de 1827, ver os ótimos esclarecimentos de Antonio Keating
Santa Cruz: fazenda jesuítica, real, imperial – Império, 1822-1889. Rio de Janeiro: Edição do Autor, inseridos em FREITAS, 1987b, p. 213-217. A notícia sobre os originais do Tombo de 1731 encontrados no
1987b. v. 3 de 3, p. 125-129. gabinete de D. Pedro I, em maio de 1831, pode ser lida em A Verdade, 19 de Outubro de 1833, p. 1-2.

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Imagem 4: Mapa da medição de 1827. In: O TOMBO ou cópia fiel da medida e demarcação da Fazenda
Nacional de Santa Cruz, e possuída pelos padres da Companhia de Jesus, por cuja extinção passou.
Rio de Janeiro: Tipografia de Lessa & Pereira, 1829. Em cinza, terras na calha do Piraí. (círculo preto) e
na margem esquerda do Paraíba (círculo branco). (Acervo: Fundação Biblioteca Nacional, Brasil)

Vejamos, com uma notação nossa feita no mapa de Niemeyer


(Imagem 5), quais eram as implicações desta nova medição para a configu-
ração fundiária do Vale do Paraíba: em preto, vemos o que eram os fundos
da fazenda quando Niemeyer foi seu superintendente, em 1848; em ponti-
Imagem 5: detalhe da Imagem 1
lhado, a área do mapeamento jesuítico de 1731; em branco, o que resultou
da medição promovida por Delfim Pereira em 1827. De um momento para Para chegar ao que Niemeyer cartografou em 1848, os fazendeiros do
outro, muitas das sesmarias concedidas entre 1763 e 1822 passariam a fazer Vale do Paraíba tiveram que agir politicamente, o que fizeram assim que se
parte da fazenda de Santa Cruz e, portanto, estariam compelidas a pagar tornou público o resultado da medição de 1827. A dianteira foi tomada pela
foros, ou, no limite, a serem restituídas, haja vista a suspensão do estatuto imprensa liberal, já em franca campanha de oposição a D. Pedro I. Em 11 de
das sesmarias em 1822. agosto de 1828, o jornal Astréa afirmava que

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uma questão de grande importância, e em que se acha comprometida a pro- portanto, era o caráter da prática do exercício do poder por D. Pedro I, ou
priedade de muitos cidadãos, qual tem sido a da nova medição da nacional seja, se ela era efetivamente constitucional ou se, ao contrário, expressava
Fazenda de Santa Cruz, merece que dela se dê informação ao público, para um conteúdo marcadamente absolutista. Para o conjunto dos fazendeiros
que consultando o que aqui se refere, e os Documentos que irão aparecendo
pelos tipos, façam juízo de uma atroz injustiça, em que parecem calcar-se a de Piraí, o tratado ratificado em 1827 com a Grã-Bretanha era uma calami-
equidade a Constituição, e as Leis com escândalo, e prepotência. dade, tendo-se em conta a necessidade incessante de mais escravos para
responder à bonança cafeeira. Para alguns deles, a matéria do tráfico era
Com essas palavras, anunciava-se que o combate se daria em torno ainda mais sensível. Naqueles anos, por exemplo, os irmãos Breves já se
dos limites da ordem constitucional da novíssima monarquia brasileira. destacavam por seus negócios negreiros transatlânticos.25
Toda a sequência de publicações nos meses seguintes repisou esse ponto, Diante das negativas dos porta-vozes da Coroa de que nada havia sido
salientando as irregularidades da medição de 1827, sua ausência de amparo feito de ilegal em vista do roubo da documentação de 1731, o que impusera
legal ao negar validade aos títulos de sesmaria há muito sancionados pelos a necessidade de uma nova medição, os fazendeiros – com o auxílio da
reis de Portugal e regularmente exploradas, com atividades agrícolas, pelos pena do “Zelador do Direito de Propriedade”, autor anônimo responsável
seus donos, e o quanto ela afrontava a carta outorgada em 1824 ao atacar os por grande parte dos textos que apareceram na imprensa em 1828 e 1829 –
direitos de propriedade dos fazendeiros.23 deram um passo ousado em dezembro de 1829, mandando imprimir um
É importante lembrar que a erosão do capital político de D. Pedro I com grosso volume com a transcrição completa do levantamento jesuítico do
os fazendeiros do Vale do Paraíba vinha, pelo menos, desde junho de 1827, século XVIII, com os mapas demonstrativos daquela medição, contrasta-
quando a convenção antitráfico assinada com a Grã-Bretanha em novem- dos com o mapa da medição de 1827 (Imagem 4) promovida por Delfim
bro de 1826 chegara à Câmara dos Deputados. Para além das substantivas Pereira – que, aliás, falecera há pouco, em março daquele ano. Ou seja, o
defesas do tráfico negreiro e da escravidão como forma de inscrição positiva documento dos inacianos existia, estava disponível em cópia nos cartórios
do Brasil no concerto das nações modernas, a linha de frente pró-escravista do Rio de Janeiro, e vinha à luz para esclarecer a chamada “opinião pública”.
da Câmara valeu-se da discussão sobre a natureza do regime constitucional O mais importante, no entanto, não era tanto o Tombo de 1731, e sim as
em construção para questionar o acordo que D. Pedro I firmara com os representações “à Nação” que lhe foram acrescentadas.26
britânicos. Em pauta, o equilíbrio dos poderes e a natureza da responsa- A que abria o volume, de 20 de novembro de 1829, era assinada pelo
bilidade ministerial sobre assuntos que feriam a independência nacional, “Zelador”, e sumariava os argumentos esgrimidos em mais de um ano de
tendo em vista que a pessoa do imperador, conforme a carta que ele pró- campanha na imprensa. Na avaliação dos fazendeiros, o impulso imperial
prio outorgara em 1824, era inviolável. Abdicar da soberania brasileira em para a nova medição resultara diretamente do sucesso econômico da ativi-
matéria tão sensível para a viabilidade econômica do Império, como era o dade cafeeira:
tráfico transatlântico de escravos, por uma medida exclusiva do Executivo,
a nossa indústria, e desvelado trabalho de tantos anos, à custa de imenso dis-
sem que ela passasse pelo crivo do Poder Legislativo, representava, para os pêndio, e fadigas, fora abençoado pela Providência; mas suscitou a cobiça desses
deputados pró-escravistas, a corrupção do princípio constitucional elemen- homens, já de longe afeitos a sangrar os Povos, para com seus despojos irem
tar de equilíbrio de poderes.24 Tal como nas vindicativas da imprensa liberal negociar aos pés do Trono, e à face da Nação, iludindo a um, e oprimindo a outra.
em torno da medição da fazenda de Santa Cruz, o que estava em debate,
25 LOURENÇO, Thiago C. P. Os Souza Breves e o tráfico ilegal de africanos no litoral sul fluminense.
23 Dentre a pesada campanha da imprensa liberal em torno da querela da fazenda Santa Cruz, ver os In: MATTOS, Hebe (Org.). Diáspora negra e lugares de memória: a história oculta das propriedades
artigos em Aurora Fluminense, 13 e 27 de agosto, 1 e 29 de setembro, e 3 de outubro de 1828; Astréa, voltadas para o tráfico clandestino de escravos no Brasil imperial. Niterói: Eduff, 2013. p. 11.
27 de setembro de 1828; Astro de Minas, 18 de setembro de 1828; A Malagueta, 13 de janeiro, 6 de 26 Salvo engano nosso, Affonso Taunay, (História do café no Brasil. Rio de Janeiro: DNC, 1939. v. 5 de 15,
fevereiro e 28 de abril de 1829. p. 257-259), foi o primeiro a chamar a atenção para esse documento importantíssimo para a história
24 PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização do café no Primeiro Reinado. Sanches, Sertão e fazenda, e Fridman, Do chão religioso à terra pri-
Brasileira, 2011, p. 64-80. vada, também dele se utilizaram, mas em uma chave de leitura distinta da que apresentamos aqui.

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Pelo que se pode notar na última oração, a representação modulava de Piraí; Antonio Gonçalves de Moraes, primogênito do barão de Piraí,
com cuidado o ataque a D. Pedro I, manejando o velho topos do desconhe- casado com uma das filhas de Mambucaba; padre Joaquim José Gonçalves
cimento do monarca em relação ao que era feito em seu nome. Parece claro de Moraes, irmão do barão de Piraí; capitão-mor José de Souza Breves,
que o grupo em nome do qual o “Zelador” falava pretendia deixar uma linha primo de Mambucaba, pai de um filho homônimo e de Joaquim José de
de escape para o imperador, que não era diretamente responsabilizado pelo Souza Breves, os dois últimos casados com filhas do barão do Piraí, e donos,
que ocorria. Nesse contexto, contudo, em que a vida pessoal questionável do na segunda metade do século XIX, de uma das maiores – senão a maior –
imperador era alvo constante da oposição liberal, atacar Delfim Pereira não escravarias do Império do Brasil.29 Como se vê, um grupo coeso, poderoso,
poderia deixar de ser lido pelos coevos como um ataque – mesmo que indi- que tivera papel importante no momento da costura da independência do
reto – a D. Pedro I. A artilharia por vias tortas contra o imperador também Brasil, e que vinha cobrar a fatura de seu apoio anterior a D. Pedro I, “espe-
procurou se valer da carta por ele outorgada em 1824. A atuação da oposição rando benigno acolhimento à presente suplica, de que não pouco depende
apresentava-se como um esforço genuíno, patriótico, de fortalecimento da o crédito do Governo Imperial”. Essas figuras de proa do senhoriato de Piraí
ordem liberal no Brasil. “Os abusos do Poder Judiciário tem sido o nosso fla- puxaram um abaixo assinado no qual constavam 168 proprietários, que, em
gelo, e o Poder Executivo até agora surdo aos nossos ais”: o que mais sobrava conjunto, possuíam 6.309 escravos e produziam 173.820 arrobas de café.
aos fazendeiros senão recorrer ao Poder Legislativo e à “Opinião Pública, Para não caber dúvidas em nome de que poder efetivo falavam os signatá-
esse Poder sobre-Soberano, que mais tarde ou mais cedo se faz obedecer, rios da Representação, para cada proprietário, identificava-se o número de
aplicando já a censura, já o desprezo, e a infâmia, e afinal as penas legais”?27 escravos e as arrobas de café produzidas. Joaquim Pereira de Sousa Faro e
A carga mais pesada veio com as representações inseridas ao final do seus filhos eram os que possuíam o maior número de escravos, 540, produ-
volume. No que se refere à argumentação, nada de novo em relação ao que zindo 10.000 arrobas de café. Eram seguidos por José Gonçalves de Moraes
aparecera na imprensa entre agosto de 1828 e novembro de 1829, e que fora e companhia, com 400 cativos e, igualmente, 10.000 arrobas de café. Ao
sumariado na abertura do volume. O ponto chave estava na identificação de
todo, os 15 proprietários com cem ou mais escravos, isto é, 9% dos assinan-
quais eram os agentes diretamente interessados na matéria.
tes, tinham 2.900, ou 42%, do total de cativos e produziam 74.200 arrobas
SENHOR = O Sargento Mor José Luiz Gomes, O Coronel José Gonçalves de de café, 43% do total. Oitenta e oito signatários, 52% do total, tinham entre
Moraes por si, e seus filhos, o Coronel Joaquim José Pereira do Faro por si, e um e 19 escravos. Os 65 fazendeiros restantes, 39%, tinham entre 20 e 99
seus filhos, o Capitão Mor José de Souza Breves, O Capitão Antônio Gonçalves escravos. Esses dados mostram que a propriedade escravista da cafeicultura
de Moraes, o Reverendo Joaquim José Gonçalves de Moraes, o Capitão Manoel
Thomás da Silva, o Capitão Joaquim Gomes de Souza, o Padre Gonçalves de
nascente já vinha ao mundo concentrada e, ao mesmo tempo, difundida.30
Moraes, Francisco Luís Gomes, Antônio Esteves de Magalhães Pusso, José Tal peculiaridade, e sua importância para a conformação da classe
Correia Porto, Joaquim Antônio de Oliveira, e outros, fundados no §.30.do senhorial em seu domínio direto sobre terras e homens, mas também em
art. 179 da Constituição, e bem assim no art. 99, vêm à Presença Augusta de sua relação com o poder central, era evidente na estratégia de quem assinou
V.M.I., esperando benigno acolhimento à presente súplica, de que não pouco
a representação. Tanto grandes quanto pequenos o fizeram, mas os primeiros
depende o crédito do governo Imperial, pois que a nação inteira espera ansiosa
o resultado da luta entre os Suplicantes e alguns Agentes do poder que nela 29 Sobre os entrelaces familiares e breves informações biográficas desses fazendeiros, ver ALEGRIO,
comprometem a glória de Vossa Majestade Imperial, julgando fazer serviços.28 Leila Vilela. O café no Vale do Paraíba fluminense no século XIX: terras, fazendas, plantações, comér-
cio e famílias. Rio de Janeiro: Centro do Comércio de Café do Rio de Janeiro, 2008. p. 29-44.
Coronel Joaquim José Pereira do Faro, primeiro barão do Rio Bonito, 30 Veja-se, para efeitos de comparação, as trajetórias congruentes de Vassouras e Bananal, estudadas res-
que já vimos atuando no processo de independência; José Luiz Gomes, pectivamente por SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo: Vassouras, século XIX – senhores e escra-
vos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; MORENO, Breno Aparecido
futuro barão de Mambucaba; José Gonçalves de Moraes, em breve barão Servidone. Demografia e trabalho escravo nas propriedades rurais cafeeiras de Bananal, 1830-1860.
2013. Dissertação (Mestrado História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
27 O TOMBO ou cópia fiel da medição, e demarcação da Fazenda Nacional de Santa Cruz..., p. i-xiii.. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. São necessárias pesquisas sobre o assunto, mas pode-se
28 Ibid., p. 129. aventar que a propriedade escrava em Piraí nasceu mais concentrada do que em Bananal e Vassouras.

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encabeçaram a lista e foram salientados com as marcas de asterisco. Esses assim em propriedade plena de seus donos anteriores, justamente os que
signatários adotaram uma estratégia de demonstração explícita de riqueza haviam puxado a representação de 1828.32
e poder. Dentro do quadro periclitante das finanças do Primeiro Reinado e Aprovado no final do ano legislativo, o Decreto de novembro foi
da quase que exclusiva dependência dos recursos obtidos com as taxas sobre expressão cabal da corrosão do poder de D. Pedro I e, portanto, do processo
a exportação para mantê-las de pé, os dados relativos ao volume da produ- que em poucos meses levaria à sua queda. Ele deve ser lido de modo con-
ção cafeeira eram uma referência direta da importância crescente do Vale do junto com o envolvimento do imperador com a questão dinástica portu-
Paraíba para o Império, no exato momento em que seu comandante havia guesa, com a derrota na Cisplatina, mas, sobretudo, com seus choques com
rifado o acesso irrestrito de seus fazendeiros à força de trabalho africana. O a Assembleia Geral, nos quais a questão do encerramento do tráfico transa-
artigo 99 da Constituição de 1824, citado no trecho, rezava que “a Pessoa do tlântico negreiro e a afirmação da soberania nacional brasileira ocuparam
Imperador é inviolável, e Sagrada: Ele não está sujeito a responsabilidade papel central. O imbróglio de Santa Cruz, em realidade, representou a outra
alguma.” Daí a estratégia de fustigá-lo pelo ataque indireto a seus prepostos, face da luta dos senhores de escravos contra o imperador que colocara em
por meio de representações endereçadas à Câmara dos Deputados, conforme risco a reprodução de sua força de trabalho. O evento de 25 de novembro
rezava o parágrafo 30 do artigo 179, também citado: “todo o Cidadão poderá de 1830 marcou uma espécie de “desforra” dos fazendeiros, que viam seus
apresentar por escrito ao Poder Legislativo, e ao Executivo reclamações, quei- interesses diretamente ameaçados pela iminente extinção do tráfico inter-
xas, ou petições, e até expor qualquer infração da Constituição, requerendo nacional, em relação a D. Pedro. O imperador tentou, com a medida, recu-
perante a competente Autoridade a efetiva responsabilidade dos infratores”.31 perar terreno, mas já era tarde. Para sintetizar nosso argumento, cremos
Quais foram os desdobramentos parlamentares da ação dos fazendei- que a questão da fazenda de Santa Cruz na década de 1820 deve entrar no
ros e dos políticos que se valeram do caso para fustigar o primeiro impera- rol dos vetores que trouxeram a queda do primeiro imperador brasileiro. E
dor do Brasil? Em 5 de outubro de 1830, Bernardo Pereira de Vasconcelos, também, uma década mais tarde, da afirmação e da consolidação no poder
um dos expoentes da oposição liberal moderada a D. Pedro I, e que muito do segundo imperador.
em breve se destacaria como o campeão do tráfico transatlântico de escra-
vos para o Brasil, apresentou à Câmara dos Deputados um projeto de lei a afirmação do poder senhorial e o mapa de 1848
que atendia por completo à representação dos fazendeiros de dois anos
antes, anulando para todos os efeitos a medição promovida por D. Pedro I Até 1837, a freguesia de Sant’Anna pertenceu ao termo da vila de São João
e Sorocaba entre 1825 e 1827. A classe senhorial do Vale do Paraíba já encon- do Príncipe. Em dezembro daquele ano, foi elevada à categoria de vila de
trara seu grande porta-voz e líder no Parlamento brasileiro. Rapidamente Piraí, com instalação definitiva em outubro do ano seguinte. Ao longo das
décadas de 1830 e 1840, os potentados que haviam se engajado na luta con-
discutido em 13 de outubro, o projeto foi aprovado com poucas alterações,
tra D. Pedro I em torno dos direitos sobre suas terras promoveram vários
sendo finalmente sancionado por um D. Pedro I então enfraquecido. O
melhoramentos na região do novo município, como a abertura e conserva-
Decreto de 25 de novembro de 1830, composto por três curtos artigos, esta-
ção de estradas e pontes e a construção da infraestrutura do espaço urbano.
belecia que a fazenda imperial de Santa Cruz compreendia “somente os
O paço da Câmara Municipal, por exemplo, foi erigido inteiramente a
terrenos em cuja efetiva e legitima posse se achava o Senhor D. Pedro I no
expensas de José Gonçalves de Moraes, José Luis Gomes, Joaquim Gomes
dia 25 de março de 1824”, isto é, no dia em que foi outorgada a Constituição
de Souza, Raymundo de Souza Breves, Silvino José da Costa, Felisberto
brasileira; todos os terrenos anexados pela medição de 1825-1827 ficavam
Ribeiro Franco, Carlos de Souza Pinto de Magalhães, Manoel Gonçalves
Vallim, José da Conceição, Antonio José de Barros Vianna, Manoel José de
31 Sobre a prática mais ampla das petições ao Parlamento no Primeiro Reinado, ver PEREIRA, Vantuil.
Ao soberano Congresso: direitos do cidadão na formação do estado imperial (1822-1831). São Paulo: 32 ANAIS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, [S.l.], p. 591, 5 out. 1830; Id., p. 600, 13 out. 1830; COLEÇÃO
Alameda, 2010. das Leis do Império do Brasil, 1830. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1876. p. 63.

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Barros Vianna, Domingo Pereira dos Santos e Manoel Gonçalves Pereira empresarial bastante complexa para fazer frente à pressão antitráfico bri-
– os quatro primeiros, nomes centrais das representações de 1828 e 1829. A tânica em águas africanas e brasileiras. Afora isso, os potentados de Piraí
igreja matriz, tendo sido destruída por um incêndio, foi reconstruída entre expressaram sua militância pró-tráfico nas instâncias formais de represen-
1839 e 1841 ao custo total de 48 contos de réis, para o que contou com uma tação política, apoiando e subscrevendo o conteúdo das várias petições que
comissão encarregada de levantar os fundos necessários entre os fazendei- foram endereçadas à Assembleia provincial do Rio de Janeiro e ao Parlamento
ros da região, composta por José Gonçalves de Moraes, José Luiz Gomes, imperial demandando a anulação da Lei de 7 de novembro de 1831 e a lega-
Raimundo de Souza Breves, Manoel Gonçalves Vallim, José da Silva Penna lização do tráfico transatlântico de escravos, sob o argumento de que ele era
e Francisco Marques de Moraes. Os nomes se repetem.33 imprescindível para a riqueza do Império, escorada na exportação de café.
Notável, também, a expressão social e política obtida pelo grupo após a Essa campanha teve desdobramentos práticos: em 1840, três anos após a ins-
queda de D. Pedro I. José Gonçalves de Moraes recebeu o título de barão de tituição do município, havia 11.186 escravos em Piraí, equivalendo a 64,91%
Piraí em 1841, com grandeza em 1848. Joaquim José Pereira de Faro e filhos, do total de habitantes, número que cresceu para 19.090 cativos em 1850, ou
centrais nas representações do final da década de 1820, teriam sua base de quase três quartos do total de habitantes. Em pouquíssimas regiões do Brasil
atuação política e econômica no município de Valença; Pereira Faro tornou- o desequilíbrio demográfico entre senhores e escravos chegou aos patamares
se o primeiro barão do Rio Bonito no mesmo ano em que José Gonçalves de verificados em Piraí durante a vigência do tráfico ilegal.35
Moraes recebeu seu título, em 1841. Como se vê, ambos foram agraciados Em conjunto e do ponto de vista não tão imediato e de maior alcance da
logo nos primeiros anos do Segundo Reinado. José Luiz Gomes tornou-se conformação das relações sociais e do Estado, a atuação desses fazendeiros
barão de Mambucaba em 1854. Afinado politicamente a esses potentados na esfera local, provincial e imperial assinala um momento decisivo na for-
– todos eles quadros importantes do chamado Partido da Ordem – José mação da classe senhorial, na qual eles fizeram valer sua voz em relação ao
de Souza Breves filho foi Comandante Superior da Guarda Nacional nos Estado nacional por meio de uma articulação política específica: o Regresso
municípios de Piraí e Itaguaí (1844) e deputado na Assembleia provincial conservador. Atores importantes da consolidação da hegemonia saquarema
do Rio de Janeiro em três legislaturas (1838-1843; 1844-1845; 1848-1849). Seu durante a década de 1840, os fazendeiros de Piraí foram, portanto, peças-
irmão, Joaquim José de Souza Breves, se do ponto de vista político consti- chave para a construção do desenho institucional do Segundo Reinado.
tuía exceção em vista de sua atuação nas fileiras liberais (com participação Para escoar o volume cada vez maior de café obtido com uma escra-
importante no levante de 1842), também foi por várias vezes deputado na varia em crescimento, o melhoramento das vias que serviam ao sistema de
Assembleia provincial do Rio de Janeiro (1842-1843; 1846-1847; 1848-1849), transporte baseado em mulas era imprescindível. Nesse campo, os grandes
e, em 1846, presidente da Câmara Municipal de Piraí.34 fazendeiros de Piraí contaram com o suporte técnico do engenheiro militar
Com pares de outros municípios do Vale do Paraíba, esses grandes Conrado Jacob de Niemeyer, responsável, entre 1837 e 1839, pela Primeira
fazendeiros de café foram os maiores responsáveis pela reabertura do trá- Seção da Diretoria de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro, que
fico transatlântico ilegal de escravos para o Brasil na segunda metade da abrangia todo o litoral sul e a zona ocidental do Vale do Paraíba fluminense.
década de 1830. Nesses anos, os irmãos Breves, em associação com o barão Sua trajetória e algumas de suas realizações como funcionário público gra-
de Piraí, tornaram-se eles próprios agentes negreiros, com uma organização duado, particularmente quando esteve à frente da fazenda nacional de Santa
Cruz, na década de 1840, expressam a constituição da classe dos fazendei-
33 A informação sobre a construção do Paço Municipal pode ser lida no Almanack Laemmert Provincial
do Rio de Janeiro para o ano de 1875, p. 185-186; sobre a reconstrução da matriz de Piraí, ver o Relatório ros escravistas do Centro-Sul, especialmente da região da Bacia do Paraíba
do presidente de província do Rio de Janeiro para os anos de 1840 (p. 31-32) e 1842 (p. 4).
34 Informações obtidas no Almanack Laemmert do Rio de Janeiro (Corte e província) para os anos de
1844 a 1848. Sobre a atuação política dos irmãos Breves, ver também LOURENÇO, Thiago Campos
Pessoa. O império dos Souza Breves nos oitocentos: política e escravidão nas trajetórias dos comen-
dadores José e Joaquim de Souza Breves. 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade 35 Sobre os Breves como traficantes nos anos 1840, ver LOURENÇO, 2010; sobre a campanha pela rea-
Federal Fluminense, Niterói, 2010. p. 78-121. bertura do tráfico, PARRON, 2011, p. 121-252; sobre a demografia de Piraí, SALLES, 2008, p. 258-259.

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e do Médio Vale do Paraíba, em classe senhorial.36 Isto é, em uma classe Durante a segunda metade da Regência, enquanto Niemeyer traba-
nacionalmente dominante, de base territorial, assentada sobre determina- lhava na 1ª seção, a fazenda imperial de Santa Cruz foi gerida pelo coronel
das relações de produção, escravistas, e sobre uma economia, produtora Francisco Gonçalves Fernandes Pires, administrador-geral de 1834 a 1840,
de commodities para o mercado mundial capitalista, cuja dominação se e, por portaria de 30 de junho do último ano, superintendente. Em seu
reproduzia por sua interseção com o Estado imperial. período à frente da propriedade nacional, a produção de arroz foi final-
No verão de 1836-1837, as três pontes da freguesia de Sant’Anna do Piraí mente recomposta após décadas de abandono, e concluída a ala direita do
haviam sido levadas em uma grande enxurrada. Uma delas, orçada em três palácio conforme projeto de Pezerat, que também desenhou o novo edifício
contos de réis, teve metade de seus custos de reconstrução bancados por do Curtume, mais próximo das feições de um grande solar do que de um
José Gonçalves de Moraes, que puxou uma subscrição local para cobrir o local de produção. Os conflitos fundiários do Primeiro Reinado haviam se
restante dos gastos. Outra, “na porção da Estrada que de Angra conduz tornado passado após o Decreto de 25 de novembro de 1830 e a queda de
a São João do Príncipe”, também foi recomposta à custa de particulares, D. Pedro I: Fernandes Pires manteve boas relações com os foreiros, elevou
neste caso com José de Souza Breves à frente. Nas duas pontes, o técnico as rendas da fazenda, e morreu no exercício do cargo em 1 de novembro de
responsável foi Niemeyer. No ano seguinte, o futuro barão de Piraí solicitou 1846. Nessa altura, o palácio de Santa Cruz era o preferido do jovem impe-
a Niemeyer que preparasse um projeto para a construção de uma ponte rador D. Pedro II, peça essencial nas engrenagens do complexo de expres-
“suspensa de ferro” sobre o rio Paraíba na altura da ponte da Escuma, para são simbólica do poder monárquico. Sua troca por Petrópolis, cuja cidade e
ligar a fazenda de Três Saltos à sua unidade satélite do outro lado do rio, palácio começaram a ser construídos após 1844, só se deu após a morte do
além, é claro, de servir aos demais transeuntes. Conforme se lê no relatório príncipe varrão em Santa Cruz, no verão de 1850.39
provincial de 1839, “essa empresa é sem dúvida importante, atenta a largura Cinco dias após o falecimento de Fernandes Pires, Conrado Jacob de
do caudaloso Paraíba, e a afluência de tropas e passageiros, que há de trazer Niemeyer foi nomeado por D. Pedro II como novo superintendente da
o melhoramento dessa estrada, muito principalmente se a levarem até o fazenda de Santa Cruz. Nascido em Lisboa, em 1788, pertencente a uma
extremo da Província”. Ao que tudo indica, o projeto não chegou a ser reali- família de engenheiros militares alemães que se deslocara para Portugal no
zado, o que não impediu Niemeyer de continuar prestando seus serviços aos século XVIII, Niemeyer mudou-se para o Brasil em 1809. Fez parte das tro-
grandes fazendeiros de Piraí. Em 1838, ele projetou e construiu uma grande pas que combateram as revoluções pernambucanas de 1817 e 1824, e atuou
ponte sobre o rio Piraí, bancada por Raymundo de Souza Breves.37 Nesses como comandante de armas do Ceará nos anos 1820. Como vimos, entre
anos em que ocupou a diretoria da 1ª Seção de Obras Públicas, Niemeyer, 1836 e 1839 realizou numerosas obras na zona ocidental do Vale do Paraíba
além de se responsabilizar pelo estabelecimento dos limites dos municípios fluminense. Ao deixar o cargo, o conhecimento acumulado na região lhe
de Valença, Piraí, Barra Mansa e Resende, realizou trabalhos cartográficos permitiu contratar, como empreiteiro particular, as obras de reconstrução
com vistas à composição de uma carta geral da província do Rio de Janeiro, da Estrada do Comércio. Quando as realizava, participou, como projetista,
cujos exemplares foram colocados à venda em 1840.38 da construção da Igreja Matriz de Vassouras. Em 1843, Niemeyer também
cuidou de obras de reparação no sistema hidrográfico de Santa Cruz.40 O
36 Para o conceito histórico de classe senhorial, ver MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: contrato de construção com a província do Rio de Janeiro foi encerrado em
a formação do Estado imperial. São Paulo: Hucitec, 1987; e SALLES, 2008, primeira parte. 1844, ano em que Niemeyer publicou, na imprensa do Rio de Janeiro, um
37 VIEIRA, José Ignácio Vaz. Sem título. Niterói: Typographia Nictheroy de Rego, 1837. p. 48-49; SOUSA,
Paulino José Soares de. Discurso. Niterói: Typographia Nictheroy de Rego, 1838. p. 61; Id. Relatório
do Presidente da Província do Rio de Janeiro... para o anno de 1839 a 1840. Niterói: Typographia de
Amaral & Irmão, 1851. p. 52. 39 FREITAS, 1987b, p. 131-134, 294, 400.
38 Mapa disponível no sítio da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro: NYEMEIER, Conrado Jacob de. 40 Notícia fornecida em O Brasil, em 30 de março de 1843. Sobre a trajetória de Niemeyer, ver também
Carta da Província do Rio de Janeiro, 1840. Rio de Janeiro: Lit. do Arquivo Militar, 1849, 32 x 46,3 PEIXOTO, R.A. A carta de Niemeyer de 1846 e as condições de leitura de produtos cartográficos.
cm. Disponível em: <www.bn.br>. Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p. 299-318, jan.-dez. 2004.

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mapa da Estrada do Comércio, e em que assinou com o poder provincial quem, não sabemos com precisão, mas podemos supor pelo exame de seus
um acordo adicional para sua manutenção.41 critérios de organização visual.42
Em 1846, Niemeyer aceitou o convite do imperador para assumir a Um rápido cruzamento das informações constantes do Registro
Superintendência da fazenda de Santa Cruz. Sua vasta experiência no ser- Paroquial de Terras para a freguesia de Sant’Anna do Piraí, lavrado entre maio
viço público o habilitava para a tarefa, mas o que possivelmente motivou a de 1854 e janeiro de 1856, com o que vemos no mapa de 1848, permite perceber
escolha final de D. Pedro II foi a Carta Geral do Império do Brasil, lançada que as múltiplas unidades anotadas com nomes próprios (de indivíduos, de
em 1845 e premiada pelo imperador no ano seguinte, além, é claro, dos núcleos familiares ou de fazendas) não equivaliam ao que os contemporâneos
relevantes serviços que já havia prestado aos fazendeiros do Médio Vale compreendiam exatamente como as fronteiras das propriedades rurais dessa
do Paraíba e à Província do Rio de Janeiro. Niemeyer exerceu a função em região.43 Niemeyer se valeu da produção cartográfica anterior das sesmarias
Santa Cruz de novembro de 1846 a março de 1856. Nesse longo período, distribuídas entre 1730 e 1823 para projetá-las no mapa da fazenda de Santa
uma de suas medidas foi justamente a composição do mapa de 1848, objeto Cruz. Sesmarias essas que foram bastante reconfiguradas no processo de
deste artigo. montagem das fazendas de café. Como a historiografia vem demonstrando,
Segundo Benedicto Freitas, durante a administração Niemeyer, a sala a cartografia da estrutura fundiária no Brasil encontrou limites intransponí-
da Superintendência era decorada com uma planta topográfica da fazenda, veis para se realizar ao longo do século XIX.44 A própria natureza do primeiro
“em vistosa moldura dourada”. O historiador da propriedade também “cadastro nacional” de terras, o Registro Paroquial dos anos 1850, ao envolver
informa que, por cem cópias litográficas do mapa, pagou-se à sociedade apenas declarações verbais sobre o que eram os limites de cada propriedade,
Heaton & Rensburg a quantia de 265$000. A firma fora fundada em 1840 porém sem quaisquer atos de mapeamento, bem o comprova.
pelo inglês Georges Mathias Heaton e pelo holandês Eduard Rensburg. Houve uma lógica clara na nomeação que Niemeyer adotou para
Dentre seus múltiplos trabalhos de impressão, que incluiu as ilustrações do registrar as fazendas de café que faziam fronteira com as terras da imperial
fazenda de Santa Cruz. Para comprovar isso, basta uma mirada na faixa ao
Brasil pitoresco de Victor Frond, a dupla ganhou a reputação de serem os
longo do rio Paraíba. Na Imagem 6, observa-se como o engenheiro mili-
melhores litógrafos de mapas do Império do Brasil, ainda que seu campo
tar fez questão de inscrever no espaço ou o nome dos grandes potentados
mais rentável fosse a impressão de partituras musicais. Anúncios da firma
cafeeiros, envolvidos ou não no abaixo-assinado de 1828 contra D. Pedro I
no Diário do Rio de Janeiro e no Correio Mercantil da década de 1840 per-
(“Terras dos Breves”, major José Luiz Gomes, major José Luiz Gomes e Faro,
mitem avaliar o valor relativo que foi cobrado para a composição do mapa
João Pereira do Faro, marquês de Baependi etc.), ou das propriedades que
de 1848. As partituras impressas pela Heaton & Rensburg eram vendidas a
os vinham notabilizando (Mangalarga, Três Saltos, o coração das atividades
um valor de 500 a 1.000 réis cada, ou seja, a um preço unitário bem maior
do barão de Piraí, Botafogo, Campo Alegre, propriedades de um de seus
do que a firma recebera para imprimir os 100 exemplares de Santa Cruz.
genros, o barão de Vargem Alegre, Sant’Anna, o coração das atividades de
Ademais, nossa pesquisa não logrou encontrar anúncios de venda do mapa
Pereira Faro etc.). A toponímia empregada pelo mapa marcava claramente
de Santa Cruz na imprensa da Corte, ao passo que vários outros propa-
o domínio desses homens e de suas fazendas sobre a paisagem da província
gandearam a venda, por subscrições, da Carta Geral do Império do Brasil.
Por conseguinte, pode-se aventar a hipótese de que Niemeyer encomen- 42 FREITAS, 1987b, p. 20. Sobre a Heaton & Rensburg, ver HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua
dou a impressão do mapa de Santa Cruz para ofertá-lo como presente. Para história. São Paulo: Edusp, 2003. p. 148, e CARDOSO, Pedro Sánchez. A lithos: edições de arte e as
transições de uso das técnicas de reprodução de imagens. 2008. Dissertação (Mestrado em História)
– Pontífice Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2008. p. 60-62. Os anúncios podem ser lidos em
Diário do Rio de Janeiro, em 20 de setembro e 12 de dezembro de 1845; 16 de junho, 13 de julho e 21 de
dezembro de 1846; 28 de outubro e 4 de novembro de 1847; e no Correio Mercantil de 4 de abril de 1849.
41 O mapa pode ser consultado no sítio da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Sua referência é a
seguinte: NYEMEIER, Conrado Jacob de. Planta hydro-topographica da Estrada do Commercio entre 43 O referido registro pode ser consultado no sítio do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro
os rios Iguassu e Parahiba. Rio de Janeiro: Heaton e Rensburg Lith, 1844. 80 x 17 cm. Disponível em: (http://www.aperj.rj.gov.br/)
<http://www.bn.br>. 44 Ver, em especial, MOTTA, M., 2008; e SILVA, 1996.

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do Rio de Janeiro. Além do mais, se voltarmos para a Imagem 5, vemos Pedro II, que, aliás, os visitara em janeiro daquele ano de 1848, prestando-
que, em 1848, como resultado da Lei de 25 de novembro de 1830, a zona lhes as devidas deferências pelo papel central que vinham desempenhando
dos grandes cafeicultores se encontrava definitivamente fora da alçada da para a construção da ordem institucional do Segundo Reinado.45
imperial fazenda de Santa Cruz.

Imagem 7: detalhe da Imagem 1.

D. Pedro I quisera se impor a esses fazendeiros, que haviam se cons-


tituído em uma de suas principais bases de ascensão ao trono do Império
do Brasil, e por essa razão foi destronado. Seu filho subiu e manteve-se
no poder pelas mãos desses mesmos fazendeiros. Reinou por quase meio
século. Quando finalmente foi derrubado, junto com o regime monárquico,
Imagem 6: detalhe da Imagem 1. por um golpe militar, o mundo da classe senhorial, com a abolição da escra-
vidão, encontrava-se em processo de desagregação. Outros fazendeiros e
Há que se ressaltar, por fim, a bissegmentação da litografia e o sentido outro regime estavam no horizonte, mas isso é assunto para outra ocasião.46
da inscrição, no seu lado direito, da vista frontal do palácio imperial e da
planta do complexo de edificações de seu povoado (Imagem 7). A mensa-
gem era clara: por meio dessa organização visual, o poder do imperador e
o poder dos fazendeiros se tornavam estritamente articulados: enquanto o
primeiro reconhecia sem questionamentos o domínio dos segundos sobre
serra acima e a importância deles para a economia e a ordem social do
Império do Brasil, estes se subordinavam espacial e simbolicamente ao seu
monarca. Todos sabiam que o fundamento da riqueza dos fazendeiros resi-
45 Sobre a visita de D. Pedro II ao Vale em 1848, ver TELLES, Augusto Carlos da Silva. A visita de D.
dia no domínio de terras e de homens, ou seja, sobre uma estrutura fun- Pedro II a Vassouras. RIHGB, Rio de Janeiro: IHGB, n. 290, jan.-mar. 1971.
diária cujo estatuto era relativamente incerto e sobre seres humanos ilegal- * Rafael Marquese agradece ao CNPq pela bolsa de produtividade em pesquisa a que este texto se
vincula, e, Ricardo Salles, ao Pronem-Faperj. Os autores agradecem ainda a todos os membros do
mente escravizados conforme a legislação do próprio país. Composto antes
Grupo Interinstitucional de Pesquisa O Vale do Paraíba e a Segunda Escravidão (parte da Second
de 1850, isto é, antes do encerramento definitivo do tráfico negreiro tran- Slavery Research Network), a Leila Vilela Alegrio, quem primeiro nos chamou a atenção para o
satlântico e da aprovação da Lei de Terras, o mapa de Niemeyer promovia mapa de 1848, e a Iris Kantor, pelas conversas sobre Conrado Jacob de Niemeyer. O texto faz parte
de uma pesquisa mais ampla que resultará em livro, cujo título provisório é Escravidão, Café e
uma associação visual direta entre os fazendeiros do Vale do Paraíba e D. Poder: a vila de Piraí, o Império do Brasil e a economia mundial, 1763-1889.

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Vale expandido: chamada teoria política pluralista. Apoiados na experiência democrática dos
Estados Unidos, presumiam que o processo de tomada de decisões públi-
contrabando negreiro, consenso e cas resultava de contínuas negociações entre grupos movidos por interesses
regime representativo no Império do Brasil1 colidentes e investidos de um poder de barganha relativamente equilibrado,
numa dinâmica que tornava improvável a prevalência hegemônica de uns
Alain El Youssef sobre outros. Em suas análises, adotaram duas noções complementares. De
Bruno Fabris Estefanes um lado, caracterizaram os grupos econômicos, mesmo os mais poderosos,
Tâmis Parron como politicamente incoesos. De outro, entenderam que as fontes de poder
necessárias à atuação dos grupos sociais eram distribuídas com relativa
simetria pelo conjunto da sociedade. Em resultado, julgaram pouco rele-
vante conceituar elites e definir postos formais do Estado como campo para
o exercício do poder. Em vez de estudar o Estado, parecia melhor examinar
o sistema político plural mais amplo no qual a participação democrática de
diversos grupos sociais formava a agenda pública. Como escreveu Robert
estado, sociedade, escravidão Dahl, autor do influente Who governs? (1961), a “teoria sobre elite dirigente”
pode ser “um tipo de teoria quase-metafísica”. Na hipótese de uma elite exis-
As mediações entre Estado e sociedade no Brasil do século XIX é uma das
tir, cumpriria defini-la, delimitar suas preferências e verificar se elas real-
questões perenes da historiografia imperial que foram abordadas desde o
mente prevaleciam na tomada de decisões públicas.2
ensaísmo interpretativo da década de 1930 até os dias de hoje. A evolução
Embora um dos primeiros trabalhos a oferecer uma alternativa cons-
por que o tratamento do assunto tem passado nos últimos quarenta anos,
ciente à teoria pluralista tenha sido The power elite (1956), de C. Wright
após a montagem e o incremento do sistema de pós-graduação no país,
Mills, a redação da investida mais sistemática contra ela coube a Ralph
longe de se esgotar na tradição intelectual brasileira, sofreu influência de
Miliband, que publicou em 1969 The State in capitalist society. Miliband
um debate europeu e norte-americano travado no campo da ciência polí-
levou a sério o desafio de averiguar a existência de uma elite econômica e o
tica entre o imediato pós-guerra e a década de 1980. Nas próximas pági-
modo como ela se impõe aos demais grupos ou classes sociais na formula-
nas, iremos mapear as linhas gerais dessa discussão e seguir seu impacto
ção da agenda pública. Para tanto, definiu o que entendia por elite, a fração
em dois autores que ainda possuem grande influência na pesquisa sobre
dominante da classe capitalista, e o que entendia por Estado, a inter-relação
o Brasil oitocentista: José Murilo de Carvalho e Ilmar Rohloff de Mattos.
de cinco instâncias: aparato de governo (Executivo e Legislativo); aparato
Apurar o entendimento dos termos que eles propuseram para a análise das
administrativo (banco central, burocracia do serviço público, empresas
mediações entre Estado e sociedade contribui não só para situar o lugar
estatais); aparato coercivo (corporações militares e policiais); aparato judi-
historiográfico do presente capítulo, mas também para delinear o sentido
cial; e governos subcentrais (assembleias legislativas locais). A estratégia
dos principais estudos atuais sobre a política nacional no Império do Brasil.
de adotar uma concepção estreita do grupo de acumuladores de capital e
Na crise dos regimes ditatoriais e corporativistas que se seguiu à Segunda
uma concepção ampla dos lugares formais de poder atendia a dois objeti-
Guerra Mundial, cientistas políticos norte-americanos desenvolveram a
vos simultâneos: o de realçar a influência política assimétrica de um grupo
1 O presente texto é uma versão modificada do artigo “Vale expandido: contrabando negreiro e a
social diminuto e o de mostrar que não é preciso ocupar a maior parte do
construção de uma dinâmica política nacional no Império do Brasil”, publicado em Almanack,
n. 7, p. 137-159, 1. sem. 2014. Agradecemos em particular à leitura de André Nicacio Lima, Felipe 2 DAHL, Robert A. A critique of the ruling elite model. The American Political Science Review,
Landim, Luiz Fernando Saraiva, Ivana Stolze Lima, Leonardo Marques, Marcelo Ferraro, Marco Cambridge: Cambridge University Press, v. 52, issue 2, p. 463, Jun. 1958; e Who governs? Democracy
Holtz, Ricardo Salles e Waldomiro Lourenço da Silva. and Power in an American City. New Haven: Yale University Press, 2005.

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governo – nem das cinco instâncias do Estado – para induzir o processo de poder” uma coesão ideológica que do contrário lhe faltaria. As acusações
de decisão política. Com isso, distinguiu poder político de poder eleito- recíprocas e a recepção do debate, todavia, reduziram a visão do Estado em
ral, bem como governo de Estado, confusões comuns na época e hoje em Poulantzas a um determinismo estreito e a de Miliband a um instrumenta-
dia. A noção de que uma fração de classe exerce poder mesmo sem estar lismo vulgar. Nas palavras de um estudioso do assunto, a polêmica “estilha-
no governo o levou a uma leitura gramsciana segundo a qual a hegemonia çou [a incipiente] teoria política marxista”.4
deixava de ser compreendida apenas como efeito das “instituições cultu- O mesmo contexto intelectual da teoria política pluralista que estimu-
rais”, aparecendo também como consequência da ação do Estado, “um dos lou a publicação do livro de Miliband, bem como o debate subsequente
principais arquitetos do consenso conservador” e da “socialização política” entre ele e Poulantzas, também informou a pesquisa de doutorado que José
(universalização) dos interesses peculiares a um grupo.3 Murilo de Carvalho defendeu em Stanford em 1974 sobre a especificidade
The State in capitalist society ajudou a projetar Miliband como “o prin- da política brasileira oitocentista e cujos resultados foram publicados nos
cipal cientista político marxista no mundo anglófono”, tornando-o um dos hoje clássicos A construção da ordem (1980) e Teatro de sombras (1988).
estudiosos mais citados em meados da década de 1970, segundo os cálculos Assim como Miliband, Carvalho rejeitou o axioma da teoria pluralista
da American Political Science Association. O livro, contudo, desencadeou que depositava no equilíbrio dos grupos sociais o sentido do processo de
uma azedada troca de resenhas entre o autor e Nicos Poulantzas nas pági- tomada de decisão política e a consequente noção de que os postos formais
nas da New Left Review que continuou em seus respectivos livros posterio- do Estado eram irrelevantes para uma interpretação política. No início de
res. Nos textos contra Miliband, Poulantzas colocou em destaque proble- A construção da ordem, advertiu que “os estudos mais recentes que se pren-
mas de alto valor heurístico para a pesquisa histórica, entre os quais o do dem excessivamente a questões do tipo ‘quem governa’” – título do livro de
sujeito como ator social e o da autonomia relativa do Estado frente à socie- Dahl – deixam “de lado a natureza do próprio governo e o sentido da ação
dade. Para Poulantzas, o Estado capitalista possuía uma adequação formal da elite [já que as fontes do poder são tidas por difusas].” Carvalho desen-
à reprodução expandida do capital que tornava dispensável a pesquisa do volveu então o conceito de “elite política imperial” para designar os ocupan-
perfil social dos indivíduos alocados em seus postos-chave. Ao estudar os tes dos postos políticos nacionais (deputado geral, presidente de província,
ocupantes do aparelho estatal, Miliband teria usado um método da ciência ministro, senador, conselheiro), os quais, sendo “políticos”, se destaca-
política não-marxista – de Dahl, digamos – para fazer uma análise pre- vam da esfera econômica e, sendo da “elite”, se distinguiam da vida local.
tensamente marxista, adotando, assim, uma concepção instrumentalista Moldados por semelhante formação intelectual (Faculdade de Direito),
de Estado. Segundo Poulantzas, os marxistas deviam usar a noção, por ele percurso profissional (magistratura) e ocupação de cargos (citados acima),
desenvolvida, de “autonomia relativa do Estado”: mesmo desprovido da esses paladinos da lei conduziram com homogeneidade e coesão as grandes
influência direta, pessoal, volitiva, da elite capitalista (autonomia), o Estado transformações que o Brasil sofreu durante a monarquia.5
enseja a reprodução ampliada do capital, beneficiando os acumuladores Carvalho teve um segundo tipo de interlocutor. Pretendia corrigir os
(relativa). Em suas respostas, Miliband identificou a posição de Poulantzas excessos do ensaísmo marxista brasileiro que considerava o Estado oito-
como “super-determinismo estruturalista” irredutível às diferenças empíri- centista epifenômeno de forças sociais ou econômicas. Sua “elite política
cas dos regimes políticos particulares. As análises dos dois possuíam pontos 4 BARROW, Clyde W. The Miliband-Poulantzas debate: an intellectual History. In: ARONOWITZ,
de contato – valendo-se de Gramsci, por exemplo, Poulantzas também con- Stanley; BRATSIS, Peter (Org.). State theory reconsidered: paradigm lost. Minneapolis: University of
Minnesota Press, 2002. p. 3; WETHERLY, Paul; BARROW, Clyde W.; BURNHAM, Peter. Class, power
siderou o Estado um meio importante para que uma fração da classe capi-
and the State in capitalist society: essays on Ralph Miliband. New York: Palgrave Macmillan, 2008.
talista exercesse “papel dominante” sobre as demais e conferisse ao “bloco Os textos de Miliband e Poulantzas estão disponíveis nos números 58 (nov.-dez. 1969), 59 (jan.-fev.
1970), 82 (nov.-dez. 1973) e 95 (jan.-fev. 1976) da New Left Review e podem ser acessados no site da
3 MILIBAND, Ralph. The State in capitalist society. Nova York: Basic Books, 1969. p. 191. Sobre o autor, revista (<http://newleftreview.org/>).
BLACKBURN, Robin. Ralph Miliband, 1924–1994. New Left Review, n. I/206, London, p. 15–25, Jul.- 5 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: teatro de sombras. Rio de Janeiro: Civilização
Aug. 1994. Brasileira, 2003. p. 25. 1. ed. 1980.

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imperial”, afastada das bases materiais da vida social, elegeria como plata- 1985. Tal como a pesquisa de Carvalho, o livro reagiu contra a teoria plura-
forma a unidade nacional, o controle civil do poder e a democracia limitada lista do sistema político e as abordagens marxistas por serem ambas “teimo-
dos homens livres. Com a escravidão, instituição máxima do mundo econô- samente centradas na sociedade”, e condenou os “debates teóricos” travados
mico, seu contato seria de concessão circunstancial ou “tática”, isto é, tole- na década anterior como “altamente especulativos”. Não é à toa que a longa
rava-a por depender dela para fechar o orçamento público: “não podiam”, lista das pesquisas que Skocpol cita no capítulo que dá nome à obra inclui
escreveu, “matar sua galinha dos ovos de ouro”. Tão logo terminasse seu um texto de José Murilo de Carvalho. Em linhas gerais, pode-se dizer que
“acúmulo primitivo de poder”, essa elite conduziria a nave do Estado à erra- Skocpol propôs estudar o Estado como ator dotado de racionalidade pró-
dicação do cativeiro. A esse jogo de espera e destruição o autor chamou pria e capaz de reunir seus membros em torno de um conjunto de interesses
“dialética da ambiguidade”.6 socialmente autônomos. Embora assuma que “o contexto socioeconômico e
Em seu diálogo com a teoria pluralista norte-americana e com o sociocultural” não deve ser desprezado na análise, ela concentra seu esforço
ensaísmo marxista brasileiro, Carvalho adotou dois pressupostos de aná- de reflexão em elencar: a) os casos em que o Estado goza de autonomia; b) os
lise. O primeiro era político. O modelo da teoria pluralista podia se apli- meios de que dispõe para fazê-lo (financeiros, pessoais, institucionais); e c)
car a países “como Inglaterra e Estados Unidos”, onde “o papel do Estado o poder que possui para mudar o comportamento dos atores, “em especial
tendeu a ser menos relevante e, portanto, predominaram na elite política os economicamente dominantes”. Como notou Leo Panitch em “The impov-
elementos oriundos dos mecanismos de representação parlamentar”. Em erishment of State theory”, o livro que pleiteava ver as instituições políticas
contrapartida, “a estrutura política do Império era suficientemente sim- como fatores causais autônomos foi publicado “bem no momento em que
ples”, sendo “as decisões da política nacional” tomadas “por pessoas que o poder estrutural do capital e o alcance estratégico e ideológico das clas-
ocupavam os cargos do Legislativo e do Executivo”. O outro pressuposto ses capitalistas tinham se tornado, talvez, mais plenamente visíveis do que
era socioeconômico. Nos “países de revolução burguesa abortada”, como nunca”. Em que pese o paradoxo histórico, Skocpol, Evans e Rueschemeyer
Portugal e Brasil, “o elemento burocrático” predominou sobre as classes avalizaram o institucionalismo e o empiricismo desprovido de teoria como
sociais na composição de uma agenda pública, visto que faltaria densidade posturas científicas promissoras em diversas áreas das ciências humanas.8
à vida social brasileira devido à ausência de um mercado interno por onde Justamente em 1985, ano da publicação de Bringing the State back in,
se aglutinassem setores do mundo produtivo. Com os dois pressupostos, Ilmar Rohloff de Mattos defendeu na Universidade de São Paulo a tese
Carvalho procedeu à simplificação da estrutura política e à simplificação de doutorado que seria publicada no ano seguinte com o título O tempo
da vida socioeconômica para que seu modelo pudesse concentrar poderes saquarema – assim como Carvalho redigira sua tese antimarxista no auge
decisórios nas mãos da “elite política imperial” e afastar essa elite dos influ- da teoria marxista do Estado, Mattos arrematou sua pesquisa marxista no
xos do mundo material.7 auge da abordagem antimarxista do Estado. Seu livro é bem conhecido,
Concebida e realizada no auge da teoria marxista do Estado, a pesquisa mas o teor de seu enquadramento analítico, talvez pela filiação ao gênero
de José Murilo de Carvalho se desdobrou em livros quando os instrumentos estilístico do ensaísmo brasileiro, nem sempre é devidamente apreendido
heurísticos de Miliband e Poulantzas tinham sido reduzidos às caricaturas por seus leitores. Mattos examinou a construção do Estado imperial e a
do instrumentalismo e do determinismo. A publicação mais representativa formação da classe senhorial como dois processos que se tornaram associa-
da troca de paradigmas então em curso talvez seja Bringing the State back in, dos sob a “intervenção consciente e deliberada de uma determinada força
que Peter Evans, Dietrich Rueschemeyer e Theda Skocpol organizaram em social”. Incorporando a historiografia disponível sobre o mercado interno,

6 Ibid., p. 42, 166, 138, 194, 232. Essa leitura foi desenvolvida em CARVALHO, José Murilo de. Escravidão 8 SKOCPOL, Theda. Bringing the State back in: strategies of analysis in current research. In: EVANS,
e razão nacional. In: ___. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: Ed. Peter B.; RUESCHEMER, Dietrich; SKOCPOL, Theda. Bringing the State back in. Cambridge:
UFMG, 1998. p. 35-64. Cambridge University Press, 1985. p. 3-37; PANITCH, Leo. The impoverishment of State theory. In:
7 CARVALHO, 2003, p. 32-62. WETHERLY; BARROW; BURNHAM, 2008, p. 92.

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argumentou que essa “força social” se compôs de atores provenientes da mais capazes de universalizar valores particulares no Brasil eram a Coroa e o
região de agricultura mercantil-escravista, isto é, um complexo econô- Estado estritamente definido: “à Coroa incumbe ainda tornar cada um dos
mico integrado pelo polo açucareiro da baixada fluminense, pelos tropei- Luzias parecido com todos os Saquaremas”. Na mesma passagem, endos-
ros engajados no comércio de abastecimento, pelos negociantes radicados sando a célebre frase de Joaquim Nabuco, advertiu que na monarquia “tudo
na Corte e, com destaque, pelos proprietários cafeicultores espalhados no se espera do Estado [...], a única associação ativa”. O peso conferido ao apa-
curso médio do Vale do Paraíba. E definiu os saquaremas, núcleo histó- rato formal do Estado na universalização de valores e interesses específicos
rico do Partido Conservador, como o grupo político mais envolvido com a não deixava de possuir precedente na historiografia brasileira e nas próprias
defesa dos interesses da região.9 leituras de Gramsci que Miliband e Poulantzas tinham feito.10
Ao reintroduzir a escravidão na história política pela porta da frente, Nos últimos dez anos, as análises da política disputada na arena nacio-
Mattos procurou contornar os dois extremos que estigmatizaram, de modo nal do Império do Brasil têm delineado um panorama eclético que em
impreciso, o debate teórico marxista da década de 1970: reduzir o Estado grande medida deriva ou é consequência das posições mencionadas acima.
a epifenômeno instrumental da classe econômica dominante e fundar sua Elas avançam nas sendas abertas pelo marxismo gramsciano (Ricardo Salles,
análise em categorias abstratas estruturalmente deterministas. Para tanto, 1996 e 2008), se inscrevem no institucionalismo não-marxista (Miriam
fez duas leituras filtradas. Evitou referências diretas a Miliband e Poulantzas, Dolhnikoff, 2005) ou adotam um empirismo desprovido de teoria que iden-
assimilando deles, no entanto, o entendimento de que os escritos de Gramsci tifica as múltiplas dimensões do processo histórico com o ponto de vista dos
podiam conciliar teoria, ação social e tendência conjuntural. E procedeu a atores estudados (Richard Graham, 1990; Roderick Barman, 1999; Jeffrey
uma sutil, porém crucial, adaptação da matriz gramsciana ao cenário brasi- Needell, 2006).11 O presente capítulo, reconhecendo como válido o que há em
leiro oitocentista. O segundo ponto merece comentário à parte. comum às interpretações de Mattos e Carvalho, bem como à maior parte das
Gramsci tinha rejeitado a classificação do Estado e da sociedade como pesquisas atuais – o Estado nacional como ator de peso nas práticas políticas
unidades discretas da história, propondo no lugar da dicotomia o que pode do Império –, pretende reinterpretar algumas mediações entre a economia
ser entendido como Estado ampliado. Por essa perspectiva, a organização do escravista da Bacia do Vale do Paraíba, a arquitetura institucional do Estado
Estado compreende tanto monopólios coercivos (extração do fisco, regra- imperial e a dinâmica política nacional nos quadros da expansão da econo-
mento da conduta, exercício da violência) como instituições ditas privadas mia mundial na primeira metade do século XIX. Seu propósito é delinear:
(partidos, agremiações, imprensa, escolas), que universalizam interesses a) o papel do comércio negreiro transatlântico ilegal na projeção em nível
de grupos sociais específicos. O uso de meios repressores e suasórios para nacional de um grupo de políticos da Bacia do Vale do Paraíba (chamados na
a generalização de valores particulares está na raiz da hegemonia, compo-
nente intrínseca à natureza dos Estados ampliados contemporâneos. Porque 10 MATTOS, 2004, p. 215, 192. A leitura que Mattos fez de Gramsci se afasta da mais recorrente
os termos de Gramsci descrevessem a fundação das democracias europeias entre os gramscianos; tecnicamente, porém, dir-se-ia que ela não contradiz a obra do italiano.
Em um conhecido artigo, Perry Anderson demonstrou que Gramsci chegou a usar, embora não
após 1870, Mattos evitou aplicá-los à organização do Estado brasileiro que frequentemente, “direção” como sinônimo de “hegemonia”; e que, em algumas passagens dos
ocorreu de 1830 a meados de 1860. Tanto é assim que o vocábulo hegemonia Cadernos do Cárcere, o conceito de “hegemonia” pode até descrever o resultado do predomínio do
Estado sobre a sociedade civil. Ver ANDERSON, Perry. The antinomies of Antonio Gramsci. New
ocorre uma única vez em seu livro e designa justamente o mundo que a Left Review, v. 1, n. 100, p. 5-78, Nov.-Dec. 1976.
burguesia criou na Europa no final do século XIX. Ao contrário do que se 11 SALLES, Ricardo. Nostalgia imperial: a formação da identidade nacional no Brasil do Segundo
escreve amiúde, seu livro não contém a expressão “hegemonia saquarema”, Reinado. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996; e Id. E o Vale era o escravo: Vassouras, século XIX – senhores
e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; DOLHNIKOFF,
mas “direção saquarema”. O detalhe não é uma curiosidade lexical. Sem des- Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005; GRAHAM,
prezar o papel da imprensa e da educação, Mattos sugeriu que as instituições Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997. 1. ed. 1990;
BARMAN, Roderick J. Citizen emperor: Pedro II and the making of Brazil – 1825-91. Stanford:
9 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo: Stanford University Press, 1999; e NEEDELL, Jeffrey D. The Party of Order: the conservatives, the
Hucitec, 2004. p. 14, 36-37, 69 e 78. State, and slavery in Brazilian Monarchy, 1831-1871. Stanford: Stanford University Press, 2006.

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historiografia de saquaremas); e b) o impacto do Estado que eles moldaram, a convenção entrar em vigência e redigiram uma norma mais draconiana
ao aprovar a reforma do Código de Processo Criminal (Lei de 3 de dezembro que o próprio acordo anglo-brasileiro. O regulamento, longe de ser uma
de 1841), sobre a nacionalização das disputas partidárias no Império do Brasil “lei para inglês ver”, conferiu o status de livres (não de libertos) aos africa-
e sobre o sentido de um dos poderes previstos na Constituição de 1824, o nos contrabandeados, previu processo criminal não apenas à tripulação dos
Poder Moderador. Espera-se que, ao fim da exposição, seja possível assimilar navios apreendidos, mas a todos aqueles envolvidos no comércio (interme-
elementos aparentemente distantes – mercado mundial, escravidão, Bacia do diários, proprietários etc.) e permitiu a qualquer indivíduo delatar desem-
Vale do Paraíba, Código do Processo Criminal, eleições, Poder Moderador barques ilegais às autoridades responsáveis, com direito a uma recompensa
– como engrenagens de um conjunto dinâmico que começou a operar paula- de 33$000 por africano localizado. De 1831 a 1834, os índices do comércio
tinamente em meados da década de 1830 e que veio a ser objeto de sucessivas negreiro transatlântico para o Brasil bateram em seu nível histórico mais
reformas na segunda metade do século XIX. baixo desde o final do século XVII.13
A Lei de 7 de novembro de 1831 criou o enquadramento institucional
sociedade e regresso para as ações e para o discurso dos parlamentares e publicistas brasileiros no
problema do tráfico negreiro transatlântico. Um caso notável é o de Evaristo
Assim que D. Pedro I abdicou (7 de abril de 1831), um grande debate cons- Ferreira da Veiga. Arauto dos moderados na imprensa do Rio de Janeiro, ele
titucional desaguou na ascensão do grupo parlamentar conhecido na his- se convenceu de que “o principal meio a se empregar, para obter a efetiva
toriografia como moderado. O clima político era emocionalmente carre- abolição do tráfico, é a persuasão” e se pôs a pregar nas páginas de sua Aurora
gado, pois estava em jogo a possibilidade de redesenhar o Estado imperial Fluminense os lugares-comuns do antiescravismo britânico. Entendia que o
centralista consagrado na Constituição de 1824. A feição que a monarquia comércio de africanos representava grande risco para a estabilidade social
devia ter – se federativa, se próxima da fórmula adotada na república norte do país, uma vez que o tornava um “barril de pólvora” em contato com o
-americana, se parecida com a da monarquia francesa – ocupou as mentes, facho da revolta escrava. O papel da Lei de 7 de novembro na formulação
compassou os corações e pautou os jornais da época.12 de seu discurso terrificante é decisivo: “ficando ladinos, e sabendo que têm
Tão relevante quanto a arquitetura do edifício imperial era, por assim a lei por si, [os africanos importados ilegalmente] podem e hão de para o
dizer, o chão social em que ele se ergueria, isto é, o assunto do tráfico negreiro futuro demandá-[la], ou mesmo, para obterem a sua liberdade, recorrerão a
transatlântico. Entre as barganhas subjacentes ao reconhecimento interna- meios que ameacem a tranquilidade do país, as propriedades, e que até com-
cional de sua independência, o Brasil tinha assinado com a Grã-Bretanha prometam a obediência do restante da escravatura”. Os artigos de Evaristo
dois tratados na segunda metade da década de 1820, um comercial fixando da Veiga foram acompanhados de perto por decisões contrárias ao tráfico,
por 15 anos suas tarifas aduaneiras a 15% ad valorem e outro proibindo o tomadas pela principal agremiação civil da época, a Sociedade Defensora
comércio negreiro transatlântico três anos após sua ratificação (1827-1830). da Liberdade e Independência Nacional. Seus membros chegaram a abrir,
A Câmara dos Deputados explorou o tratado antitráfico em sua campa- em 1834, um concurso para premiar quem apresentasse “a melhor memória
nha contra D. Pedro I, acusando-o de ceder demais a Londres. Todavia, analítica acerca do odioso tráfico de escravos africanos”.14
dado o isolamento internacional do Império no assunto, os parlamentares
13 Cf. os dados em THE TRANS-ATLANTIC SLAVE TRADE DATABASE VOYAGE. Atlanta, 2009.
descriam da viabilidade de se manter o tráfico negreiro transatlântico após Disponível em: <www.slavevoyages.org>.
14 AURORA FLUMINENSE. Rio de Janeiro, 10 mar./7 abr. 1834. As referências a Wilberforce e ao
12 A bibliografia sobre o assunto é extensa. Ver, entre outros, SILVA, Wlamir. Liberais e povo: a construção movimento abolicionista inglês estão nas edições de 14/05/1834 da Aurora e no Jornal do Commercio
da hegemonia liberal-moderada na província de Minas Gerais (1830-1834). São Paulo: Hucitec, 2009; de 17/01/1834, quando este encampava o projeto dos moderados em suas páginas. Para o quadro
NEEDELL, 2006; BASILE, Marcello. O Império em construção: projetos de Brasil e ação política na geral da imprensa moderada, cf. YOUSSEF, Alain El. Imprensa e escravidão: política e tráfico
Corte imperial. 2004. Tese (Doutorado em História Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850). 2010. Dissertação (Mestrado em História
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004; DOLHNIKOFF, 2005; e MOREL, Marco. Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de Sâo Paulo, São Paulo,
O período das regências (1831-1840). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003. 2010. p. 111-164.

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Ocupando posições estratégicas no governo nacional, o moderado de escravos) e das tendências dos processos globais que o próprio Estado
Diogo Antonio Feijó, padre e fazendeiro de São Paulo, pôde reduzir a atos brasileiro – que dizer então do governo? – não tinha condições de controlar.
administrativos a palavra antiescravista posta em circulação na imprensa da No plano externo, a reorganização mundial do comércio após o
Corte. Como ministro da Justiça, mandou distribuir cartazes com as multas Congresso de Viena ocasionou uma guerra fiscal entre os Estados Unidos e
e as penas estipuladas pela Lei de 7 de novembro de 1831, a fim de estimu- a Grã-Bretanha que, indiretamente, repercutiu nos interesses escravistas do
lar os delatores e inibir os contraventores. E redigiu despachos aos juízes de Vale do Paraíba. Na república norte-americana, grupos manufatureiros do
paz solicitando-lhes bons olhos de ver e bons ouvidos de ouvir no cerco à Norte que desejavam fechar o mercado doméstico à Grã-Bretanha suscita-
clandestinidade. Ao vencer as eleições para o cargo de regente, tentou firmar ram uma oposição do sul livre-cambista na década de 1820, produzindo no
com o governo português uma cooperação bilateral para o combate do con- Congresso anos de disputas tarifárias cujo desfecho teve um trágico timing
trabando. E, por causa dos desfalques que as tarifas aduaneiras rebaixadas a com a proibição do tráfico negreiro transatlântico para o Brasil. Sob uma
15% ad valorem abriam no orçamento imperial, enviou a Londres o marquês intensa pressão política do sul, de 1830 a 1833, os Estados Unidos reduziram
de Barbacena, autor da Lei de 7 de novembro de 1831, numa missão espe- o direito de entrada sobre a libra do café de 5 centavos de dólar para 2, de 2
cial para rediscutir com os britânicos o conjunto das barganhas negociadas para 1 e, finalmente, de 1 centavo de dólar para a isenção. A tarifa alfandegá-
por ocasião do reconhecimento internacional da Independência brasileira. ria zerou em março de 1833, depois de atingir, em 1831, um pico de 61% sobre
Barbacena devia solicitar a revisão para cima dos direitos de entrada no Brasil o preço do produto. A abertura irrestrita das aduanas tornaria os Estados
e oferecer em troca um acordo antitráfico mais severo que o vigente. Segundo Unidos o maior mercado consumidor de café na economia global, e isso
instruções de Feijó, o marquês empregaria “todos os meios a seu alcance [...] teve efeito imediato sobre a atuação dos produtores e negociantes do Vale do
para que se possa mais efetivamente reprimir no mar o tráfico de africanos”.15 Paraíba. Outro evento de magnitude no sistema internacional foi o experi-
A despeito do esforço, se não de todos, ao menos dos mais proeminen- mento abolicionista que o Parlamento britânico iniciou com o Emancipation
tes moderados ligados a Feijó na luta contra a introdução de novos africa- Act, de agosto de 1833. Além de intensificar a leitura negativa das conse-
nos no Brasil, a partir de 1834, se tornou cada vez mais acentuada na Bacia quências econômicas da emancipação, a lei tornou patente a alguns políticos
do Vale do Paraíba a tendência à rearticulação do comércio negreiro sob brasileiros que, a partir dali, abolicionistas e colonos do Caribe britânico se
a forma de contrabando em escala sistêmica. O empenho de Feijó e seus uniriam no combate ao tráfico negreiro em outros espaços do continente
aliados mostra, na realidade, que não bastava assumir o governo (Poder americano. Essa frente antiescravista deveria ser contida para que o Brasil
Executivo) para abafar a pressão escravista pela reabertura do infame aproveitasse as oportunidades econômicas que se abriam no mercado livre
comércio. Era preciso engajar diversas instâncias do Estado e diferentes do Atlântico Norte com a reformulação alfandegária dos Estados Unidos e
grupos sociais em uníssono. Mas o arco de alianças que torna concebível e com o próprio experimento abolicionista nas Antilhas britânicas.16
realizável uma ação eficaz do Estado dependia da atuação de atores locais Os processos globais ajudam a entender por que, em 1834 e 1835, os
(políticos, membros da burocracia, homens de grosso trato e proprietários moderados de Feijó e Evaristo sentiram no sabor de suas maiores vitórias
um travo de derrota. Enquanto celebravam o Ato Adicional e a eleição de
15 A distribuição de cartazes está em CONRAD, Robert. Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil. Feijó para o cargo de regente, o tráfico negreiro começou a readquirir sua
São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 95. A tentativa de acordo com Portugal está em MARQUES, João
Pedro. Os sons do silêncio: o Portugal de oitocentos e a abolição do tráfico de escravos. Lisboa:
Imprensa de Ciências Sociais, 1999. p. 242-243. Sobre o envio de Barbacena a Londres, BETHELL, 16 MARQUESE, Rafael; PARRON, Tâmis. Internacional escravista: a política da Segunda Escravidão.
Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do Topoi, Rio de Janeiro, v. 12, n. 23, p. 97-117, jul.-dez. 2011; MARQUESE, Rafael. Estados Unidos,
comércio de escravos, 1807-1869. Brasília: Senado Federal, 2002. p. 140-145. 1. ed. 1970; e ELLIS JR., Segunda Escravidão e a economia cafeeira do Império do Brasil. Almanack, n. 5, p. 51-60, 1º sem.
Alfredo. Feijó e a primeira metade do século XIX. São Paulo: Cia. Editora Nacional do Livro, 1980. p. 2013; e PARRON, Tâmis, Disputas locais, competições globais: a crise da nulificação e o mercado
224-229. Ver também RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do de café e açúcar nos Estados Unidos. In: SEMINARIO INTERNACIONAL: CUBA Y LA PLANTACIÓN
tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). (Campinas: Ed. Unicamp, 2000. p. 142-164), sobre a ESCLAVISTA – EL TERRITÓRIO Y EL PAISAGE SOCIAL, 5., 2013, Habana. Anais... Habana: Fundación
ineficácia dos juízes de paz para a supressão do contrabando. Antonio Núñez Jiménez de la Naturaleza y el Hombre, 6-9 nov. 2013.

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antiga intensidade. No instante em que assumiu o governo, o padre paulista 70 mil toneladas métricas,20 muitas câmaras municipais enviaram petições
começou a perder o controle sobre o Estado que tinha ajudado a reformu- ao Parlamento solicitando a revogação da Lei de 1831, em clara sintonia com
lar. A ironia se torna evidente à luz da cruzada encabeçada pelo mineiro o grupo liderado por Vasconcelos. A grande maioria das vilas peticionárias
Bernardo Pereira de Vasconcelos, que, saído das fileiras moderadas, viria se localizava nas áreas articuladas à produção cafeeira no Vale do Paraíba:
a liderar, na segunda metade da década, o grupo conhecido por Regresso. Areias, Bananal, Mangaratiba, Resende, Barra Mansa, Vassouras, Valença,
Astuto orador, o político transformou-se no campeão do comércio de afri- Paraíba do Sul e Vila do Presídio. Quando as representações chegavam à
canos no plenário da Câmara dos Deputados, acompanhado de perto por Câmara, representantes do Regresso costumavam aproveitar o ensejo para
seu conterrâneo Honório Hermeto Carneiro Leão e pelos aliados fluminen- defender a revogação da Lei de 7 de novembro de 1831, fazendo, assim, com
ses Joaquim José Rodrigues Torres e Paulino José Soares de Sousa. Juntos, que a notícia fosse espalhada pelos proprietários do Vale e incitasse-os a
esses homens deram forma ao que se pode chamar de política do tráfico peticionarem novamente ao Parlamento. O grau de coesão entre regressis-
negreiro, cujo propósito consistia em reabrir o comércio de escravos sob a tas e cafeicultores em particular pode ser visto no fato de uma curiosa peti-
forma de contrabando em nível sistêmico, escolhendo como alvo a Lei de 7 ção da Câmara Municipal de Vila de Valença ser publicada na edição de 13
de novembro de 1831. Eles elaboraram um discurso legal que previa a revo- de julho de 1836 de O Sete d’Abril. O texto prometia “rebelião e formal deso-
gação do diploma pelo Parlamento, mas, por conta de pressões domésticas bediência” dos senhores em caso de cumprimento da legislação antitráfico
e britânicas, adotaram uma linha de atuação que, na prática, suspendeu pelo Estado. Ao publicá-la em seu jornal, Vasconcelos divulgou um projeto
informalmente sua aplicação. No lugar de um instrumento jurídico oficial, senhorial que delimitava o raio de ação tolerável do Estado.21
forjaram um procedimento político oficioso.17 Os membros do Regresso também teceram alianças com notabilidades
Os efeitos da manobra não foram pequenos. À semelhança do que políticas das províncias açucareiras da Bahia e de Pernambuco. Desde pelo
tinham promovido os moderados, a campanha que resultou na reabertura menos 1837, o baiano Francisco Gonçalves Martins e os pernambucanos
do tráfico negreiro também teve amplo desdobramento nos espaços públi- Francisco do Rego Barros e Pedro de Araújo Lima – o último viria a se
cos do Rio de Janeiro, sobretudo no que diz respeito à imprensa. Enquanto tornar regente após a renúncia de Feijó – engrossaram o coro regressista na
Vasconcelos emitia discursos no Parlamento, seu jornal, O Sete d’Abril, Câmara dos Deputados,22 tornando-se fundamentais para a formação de
publicava uma série de textos abertamente escravistas.18 Um deles, de 1º uma maioria parlamentar em prol do tráfico negreiro.
de agosto de 1835, resumiu a plataforma dos regressistas, estampando com As alianças entre os parlamentares do Regresso e, em especial, os ato-
todas as letras que a escravidão “era acomodada aos nossos costumes, con- res da Bacia do Vale do Paraíba coincidiram com o aumento explosivo do
veniente aos nossos interesses e incontestavelmente proveitosa aos mesmos volume do tráfico negreiro transatlântico para o Brasil. Se, de 1831 a 1834,
africanos, que melhoravam de condição”. A abolição do comércio de cativos entraram no país pouco mais de 46 mil cativos (média anual de 11 mil e
não deveria, portanto, ser “objeto de lei, mas que devia se deixar ao tempo quinhentos), apenas no ano de 1835 cerca de 37 mil africanos ingressaram de
e ao progresso do país”.19 forma ilegal no país, a grande maioria deles (30 mil) na região sudeste, onde
A atuação na imprensa e no Parlamento ajudou a selar os interesses dos irrigaram o coração da economia exportadora brasileira. Em 1836, o tráfico
cafeicultores e de outros atores econômicos da Bacia do Vale do Paraíba aos entrou na casa dos 50 mil e aí permaneceu nos anos seguintes. É importante
dos políticos do Regresso. Em meados da década de 1830, quando o Brasil atentar para a cronologia: não foi o governo do Regresso, iniciado apenas
se tornou o maior produtor mundial de café com uma safra anual superior a
20 MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial
17 PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização do café no século XIX. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. O Império do Brasil (1808-1889): 1831-
Brasileira, 2011. p. 121-178. 1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. v. II, p. 339-374.
18 YOUSSEF, 2010, p. 165-187. 21 PARRON, 2011, p. 163-171; e YOUSSEF, 2010, p. 168-187. Cf. O SETE D’ABRIL, 13 jul. 1836.
19 O SETE D’ABRIL, 1 ago. 1835. 22 NEEDELL, 2006, p. 68-69.

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em setembro de 1837, que reabriu o tráfico negreiro transatlântico sob a regresso e estado
forma de contrabando sistêmico. A retomada do infame comércio começou
de baixo para cima: penetrando primeiro nas instâncias inferiores da polí- De 1824 a 1841, a monarquia brasileira não possuía um aparelho oficial
cia e do Judiciário, passando depois às Câmaras Municipais e, por fim, che- capaz de controlar as eleições em nível nacional. Como não havia justiça
gando às Assembleias Legislativas Provinciais e ao próprio Parlamento. O eleitoral, isto é, uma instância dedicada ao assunto que fosse apartada dos
Regresso assumiu o Executivo sendo ao mesmo tempo vetor e efeito dessa demais ramos administrativos do Estado, o processo de organização, apu-
força e, uma vez aboletado no poder, definiu em favor do tráfico a posição ração e supervisão do sufrágio cabia a uma série de autoridades inespecífi-
do governo imperial, garantindo a segurança jurídica da propriedade ilegal. cas. Uma das mais importantes era a figura do juiz de paz. Segundo uma lei
A ação dos regressistas, ao lado de uma guinada imperialista da diplomacia ordinária de 1827 e o Código de Processo Criminal (1832), o juiz de paz era
britânica a partir de 1839 que não cabe analisar neste espaço, contribuiu um cargo eleito nas paróquias que agregava funções hoje tidas como poli-
para que, na década seguinte, a defesa do contrabando se tornasse uma ciais (vigilância da ordem pública), pré-processuais (inquérito e exame de
espécie de consenso suprapartidário.23 corpo de delito), processuais (apresentação de denúncia) e eleitorais (qua-
Em síntese, a entrada clandestina no Brasil dos africanos escravizados lificação dos cidadãos em não-votantes, votantes e eleitores). Os parlamen-
conformou não apenas a reprodução ampliada da agroexportação escravista tares que lhe deram poderes tão dilatados provinham da oposição formada
por algumas décadas, provendo aos proprietários a mão de obra de que care- no I Reinado, a qual receava investidas abusivas de um Estado centralista
ciam para montar novas fazendas ou aumentar as antigas. Forneceu também (conforme a Carta de 1824) dirigido por um suposto tirano (D. Pedro I).
capital político aos regressistas, ligando a trajetória de seus líderes aos interes- Os textos legais que aprovaram ainda investiram os munícipes de poderes
ses de uma base social bem definida na Bacia do Vale do Paraíba do Sul, aqui na nomeação dos juízes de órfãos, dos juízes municipais e dos promotores,
entendida como o complexo composto pelo norte açucareiro fluminense, bem como ampliaram as atribuições do júri, autorizando-o a formalizar
pelo curso médio do Vale do Paraíba dedicado à cafeicultura, pelas linhas do ou a barrar aberturas de processo.25 Nessa configuração, as eleições parla-
mercado interno entre a Corte e o sul de Minas Gerais e pela praça mercantil mentares dependeram, em parte, da atuação do juiz de paz, blindado na
do Rio de Janeiro.24 Essa união trouxe benefícios aos proprietários da região paróquia contra as ordens do Executivo.
e à liderança do Regresso. Para os agentes da esfera econômica, ela conteve a A reforma constitucional de 1834, conhecida como Ato Adicional, alte-
pressão britânica até a destruição definitiva do tráfico negreiro transatlântico rou o quadro jurídico-político que fortalecera as localidades. Como os par-
(1850), consagrou a legitimação da propriedade ilegal e garantiu a estabilidade lamentares pareciam ter perdido o controle social (segundo alegavam) e
da escravidão até a promulgação da Lei do Ventre Livre (1871). Aos atores do eleitoral nas localidades, conseguiram consagrar no Ato Adicional uma fór-
mundo político, rendeu o apoio necessário para que tocassem adiante uma mula que, sem deixar de tolher o governo central, esvaziou também o poder
concepção particular de Estado. Cumpre ver agora como um grupo gestado municipal. Um de seus principais aspectos foi a instituição das Assembleias
no interior da Bacia do Vale do Paraíba interferiu na dinâmica política de Legislativas Provinciais, que podiam criar ou suprimir postos do Judiciário,
outras regiões do Brasil. Como o Vale se tornou um Vale expandido. à exceção do de desembargador (art. 10º,§7º). Valendo-se do expediente,
algumas províncias (São Paulo, Pernambuco, Ceará, Sergipe, Paraíba do
Norte e Maranhão) transferiram atribuições do juiz de paz à figura do pre-
23 Os dados do tráfico negreiro foram retirados de <www.slavevoyages.org>. Propondo outra visão do feito, cargo por elas inventado e cujo ocupante era designado pelo presi-
problema, Jeffrey Needell escreveu: “Alguns acusam o apenas o partido reacionário pelo apoio a tal dente de província, o qual, mesmo sendo preposto do Executivo, agia sob
comércio [contrabando negreiro]. As estatísticas mostram, contudo, que ele começou sob Feijó e
floresceu por todo o Quinquênio Liberal [1844-1848]. Os estadistas de ambos os partidos concordavam consulta das Assembleias Legislativas Provinciais. Pela perspectiva local, o
com o óbvio – sem escravidão, nada de economia”. NEDELL, 2006, p. 120. Tal interpretação só é
sustentável se for suposto que o controle do governo coincide com o controle do Estado. 25 FIGUEIRAS JR., Araújo. Código do processo do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1874. p.
24 Definição baseada em MATTOS, 2004, p. 45-113; e SALLES, 2008. 162-231.

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controle dos recursos estratégicos passava da paróquia para as províncias. 7º do art. 10º do Ato, proibindo que as províncias redefinissem funções de
O Ato centralizava. Na ótica da Corte, o centro tolerava que as periferias agentes previstos por Lei Geral (como a de 1827 e o Código do Processo a
redefinissem o júri, os juízes municipais, os promotores e, encaminhando o respeito do juiz de paz). No ano seguinte, procederam à reforma do Código
problema do juizado de paz, regulassem a seu modo o tempo de serviço, as de Processo Criminal, chamada na época de Lei de 3 de dezembro de 1841.
competências e os critérios de remoção dos prefeitos. O Ato fragmentava.26 Resumido a seu teor central, o texto depositou as funções policiais, pré-pro-
De 1835 a 1841, a paulatina diversidade provincial do Judiciário deu o que cessuais e processuais do juizado de paz – aquelas que tinham sido transfe-
pensar aos deputados e senadores do Império do Brasil. Durante os embates ridas aos prefeitos em algumas províncias, o que agora era considerado irre-
parlamentares que então se travaram, os líderes do Regresso formularam gular – para os novos cargos de delegado e de subdelegado, nomeados ou
uma saída que aparentava destinar-se somente à administração racional do pelos presidentes de província ou, para driblar demandas das Assembleias
bem comum. Propuseram uniformizar e centralizar o aparelho judiciário, Legislativas Provinciais, pelo governo central. Também incluiu o comissá-
passando seu controle dos níveis local e provincial para o nacional. Em seus rio fardado na mesa eleitoral responsável pela qualificação dos cidadãos
discursos, argumentavam que as alterações judiciais efetuadas por algumas em não-votantes, votantes e eleitores; colocou as posições da magistratura
Assembleias tornavam o país pouco administrável; e que os poderes dos juí- togada (promotores, juízes municipais, juízes de órfãos e juízes de direito)
zes de paz nas províncias que os mantinham intactos impediam a aplica- à mercê do bico de pena dos ministros da Justiça e do Império, que os
ção imparcial da lei, pondo em risco a ordem social e a unidade territorial podiam remover com relativa liberdade; e criou o cargo de chefe de polí-
do país, principalmente nos casos em que se devia julgar os implicados em cia para cada província, que, designado pelo Executivo, deteve o controle
revoltas regionais. Criminalidade, punição de separatistas e administração de inúmeros postos menores, como inspetores de quarteirão, carcereiros,
pública foram os valores substanciais de suas falas parlamentares.27 amanuenses, escrivães de paz etc.28
A defesa do contrabando negreiro também pode tê-los ajudado a fazer Os regressistas tinham prometido uniformizar o Judiciário, e assim fize-
ser aceito o novo arcabouço institucional de um Judiciário centralizado. ram. Embora a historiografia consensualmente identifique a Interpretação
Como o conjunto das reformas conservadoras tinha por fim esvaziar os do Ato Adicional e a reforma do Código de Processo Criminal como obras
poderes das autoridades locais, justamente daquelas cujo consentimento do Regresso, não há um único entendimento sobre o sentido que elas
tinha sido crucial para a retomada inicial do tráfico negreiro em larga adquiriram. José Murilo de Carvalho e Ilmar Rohloff de Mattos, a despeito
escala, a defesa do infame comércio que os líderes do Regresso encampa- de suas diferenças metodológicas e teóricas, partilharam a leitura de que as
ram a partir de 1836 parece ter cumprido um papel político obscuro, o de reformas conservadoras efetuaram uma centralização judiciária, adminis-
oferecer ao eleitorado da Bacia do Vale do Paraíba e de outros enclaves de trativa e política que selou a unidade do país quando as revoltas regionais
plantation do Império a fiança de que a centralização do regramento da ameaçavam despedaçá-lo. Essa visão, que em linhas gerais provém do pró-
conduta poderia atingir diversas ações sociais, menos a dos envolvidos no prio século XIX, foi contestada por Miriam Dolhnikoff. Em O pacto impe-
contrabando. Os efeitos práticos do projeto que os regressistas propuseram rial, a historiadora definiu o Ato Adicional como um arranjo federativo
não se esgotavam na questão do tráfico ilegal nem possuíam a neutralidade que se tornou o maior fator isolado na preservação da unidade nacional
que suas falas parlamentares davam a entender, como se percebe na aná- brasileira e argumentou que as leis do Regresso não expressavam uma con-
lise das reformas propriamente ditas. Em 1840, os regressistas aprovaram cepção particular de Estado nem “atacava[m] o cerne do pacto federativo”.29
uma lei de “Interpretação do Ato Adicional”, com a qual modificaram o § Representaram apenas uma remodelação, desejada pela virtual totalidade
dos parlamentares, de um ramo específico do Estado, o Judiciário.
26 FLORY, Thomas. Judge and jury in imperial Brazil, 1808-1871: social control and political stability
in the new State. Texas: University of Texas Press, 1981. p. 28-84, 158-163; e DOLHNIKOFF, 2005, p. 28 FIGUEIRAS JR., 1874. p. 162-231; e GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX.
97-100. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997. p. 82-100. 1. ed. 1990.
27 FLORY, op. cit., p. 28-84; e NEEDELL, 2006, p. 73-116. 29 DOLHNIKOFF, 2005, p. 131.

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Correta em alguns aspectos, a análise de Dolhnikoff subestima o fun- eleitoral” era um preceito ético incontestável. Todavia, alegando não poder
damento social das mudanças institucionais, esvaziando as diferentes con- abrir mão do recurso, explicaram como entendiam a relação entre o rodí-
cepções de Estado dos atores do tempo e desatendendo a base econômica zio partidário no governo, a ciranda nas nomeações para diferentes cargos
do processo histórico subjacente à aprovação e à manutenção das leis do públicos e a construção das fidelidades partidárias no Brasil:
Regresso. Sua leitura não leva em conta que, na ausência de uma justiça
Há em todos os partidos muitos homens que os seguem, não por convicções e
eleitoral autônoma, instituída apenas na década de 1930, o desenho do princípios, mas por paixão ou conveniência. Era natural que esperassem que,
Judiciário modelava a dinâmica político-partidária no país. Isto é, se os quando o seu subisse ao poder, os tratasse com a mesma largueza com que seus
conservadores tinham prometido uniformizar o Judiciário, e assim o fize- adversários tinham tratado os seus. [...] Os denominados saquaremas, sobre
ram, os efeitos de sua ação extrapolaram em muito essa esfera específica do os quais unicamente podia apoiar-se o ministério, alguns pelo natural desejo
de vingança, outros pelo de verem consolidado o domínio de suas ideias,
Estado. Dotando o governo central de centenas de cargos que podiam ser
outros por quererem recuperar as posições que ocupavam, saudavam o dia
oferecidos às localidades como moeda de troca por apoio eleitoral – como 29 de setembro de 1848 com grandes esperanças. Não faltou quem esperasse
os de delegado e subdelegado, que controlavam os recursos estratégicos da e reclamasse uma inversão nas posições oficiais igual àquela que havia feito o
vida local –, a Lei de 3 de dezembro de 1841 deu ao Executivo influência Ministério de 2 de Fevereiro [de 1844, do Partido Liberal]. Muitos que durante
inédita sobre o resultado dos pleitos para a Câmara dos Deputados.30 essa administração e as subsequentes haviam perdido emprego e posição, as
reclamavam como indenizações. [...] Se não satisfizesse essas exigências, [o
Se a face mais evidente e propagandeada do Judiciário centralizado
ministério] descontentaria aqueles de quem unicamente podia esperar apoio
era seu papel ordenador na luta contra a anarquia regencial, os próceres e daria assim força aos seus adversários.31
do Regresso não deixaram de confessar sua importância na construção dos
partidos e na condução das eleições nacionais. Uma das mais explícitas A defesa do sistema político-eleitoral pós-1841 não permaneceu oculta
dessas defesas se encontra num pedido de demissão coletiva que o famoso nos escaninhos da administração imperial. Quando foi combatido na
Ministério de 29 de setembro de 1848 – aquele que abrigaria a trindade saqua- década de 1850, o esquema recebeu apoio na imprensa. Num artigo de 1853
rema – apresentou a D. Pedro II em 1851. A motivação do gesto foi a desinte- publicado no Velho Brasil, Justiniano José da Rocha mimetizou, em tom
ligência entre a Coroa e os ministros no assunto da interferência do governo satírico, o discurso que a oposição liberal vazou depois de uma vitória elei-
central sobre as eleições para a Câmara dos Deputados. O Imperador dese- toral do Executivo: “nessas eleições interveio o governo [...]; houve uma
java cercear as nomeações partidárias para cargos não políticos, possibilita- completa invasão do Poder Executivo na eleição que é do povo”. Mas per-
das sobretudo pela Lei de 3 de dezembro de 1841. Por decoro, os signatários guntou: “O que é o governo entre nós” no discurso da oposição? Concluiu
elogiaram em abstrato sua iniciativa: “Não fazer das mercês, dos empregos que não eram apenas “os seis ministros e os dezoito presidentes de pro-
e das recompensas devidas aos servidores do Estado unicamente moeda víncia”, isto é, cargos previstos na Constituição, mas também “um subde-
legado, um inspetor de quarteirão” etc., ou seja, postos regulados pela Lei
30 A primeira pesquisa a acusar isso talvez tenha sido a de Thomas Flory, cujas observações ganharam de 3 de dezembro de 1841. Era aceitável que tais cidadãos, “que estão nas
desdobramentos nos estudos focados na arena política nacional – de Roderick Barman, Richard
Graham e Jeffrey Needell –, bem como nos que identificaram o impacto das nomeações do governo posições oficiais”, exercessem “cada qual a sua influência”, desde que “dentro
central sobre a dinâmica política regional – de Judy Bieber, Jeffrey Mosher, Marcus Carvalho. Para dos limites imprescritíveis da legalidade”, o que excluía a força física. O que
as referências, ver nota 10 e ainda BARMAN, Roderick J. Brazil: the forging of a nation, 1798-1852.
Stanford: Stanford University Press, 1988; BIEBER, Judy. Power, patronage, and political violence: state
“o partido ministerial fez para vencer as eleições” foi “o mesmo que fez a
building on a Brazilian frontier, 1822-1889. Nebraska: University of Nebraska Press, 1999; MOSHER, oposição: combinou chapas, candidatos, eleitores, reuniu suas influências
Jeffrey. Political struggle, ideology and state building: Pernambuco and the construction of Brazil, 1817-
1850. Nebraska: University of Nebraska Press, 2008; CARVALHO, Marcus J. M. Os nomes da revolução: 31 VIANNA, Hélio. O pedido de exoneração coletiva do Ministério de 29 de setembro de 1848. In: ___.
lideranças populares na Insurreição Praieira, Recife, 1848-1849. Revista Brasileira de História, São Vultos do Império. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968. p. 145-153. Assinaram o documento:
Paulo: Anpuh, v. 23, n. 45, p. 209-238, jul. 2003; e CARVALHO, Marcus J. M.; CÂMARA, Bruno Visconde de Monte Alegre, Eusébio de Queirós, Joaquim José Rodrigues Torres, Paulino José Soares
Dornelas. A Rebelião Praieira. In: DANTAS, Monica Duarte (Org.). Revoltas, motins, revoluções: de Sousa, Manuel Felizardo de Souza e Melo e Manuel Vieira Tosta, em 15 de novembro de 1851.
homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011. p. 355-389. Como se sabe, os regressistas foram apodados de saquaremas a partir da década de 1840.

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[nomeações], concentrou seus esforços: a diferença única é que esta foi sistema. É sua parte integrante. Como escreveu Paulino, “eleição livre, par-
vencida, aquele vencedor”. O que o articulista não esclareceu é por que o lamento independente, em linguagem parlamentar, quer dizer eleição nossa
governo central foi – e sempre tinha sido desde 1841 – triunfante nas elei- e dos nossos amigos; parlamento composto de nós e dos nossos amigos”.34 É
ções para a Câmara dos Deputados. A resposta veio, surpreendentemente, forte sua descrença na autonomia das urnas.
numa obra de doutrina jurídica.32 O sistema que os homens do Regresso inventaram possuía um aspecto
Em 1862, na esteira da discussão sobre o sistema representativo no delicado e controverso, ao menos para um partido que blasonava de defen-
Brasil que a política da Conciliação ajudou a despertar, Paulino José Soares sor da Constituição de 1824. A oposição não conseguiria vencer o governo
de Sousa, então visconde de Uruguai, publicou seu aclamado Ensaio sobre nas eleições nacionais nem construir robustas minorias no Parlamento.
o direito administrativo. Entre as várias questões que abordou ali, Paulino A roda do poder travava. Nesse quadro, o Poder Moderador acabaria por
defendeu as implicações eleitorais da reforma judiciária que os saquaremas adquirir um sentido novo. Segundo a Constituição de 1824, ele possuía uma
tinham composto em 1841: série de competências, entre as quais a de ser acionado para resolver fric-
ções insuperáveis entre o Legislativo e o Executivo: velaria “sobre a manu-
A lei de Interpretação do Ato Adicional e a de 3 de dezembro de 1841 modifi- tenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos
caram profundamente esse estado de coisas. Pode por meio delas ser montado
um partido, mas pode também ser desmontado quando abuse. Se é o governo
[Executivo, Legislativo, Judiciário]” (art. 98). Quando houvesse um impasse
que monta, terá contra si, em todo império, todo o lado contrário. Abrir-se-á entre o gabinete e o Parlamento, restava ao Imperador demitir e renomear
então uma luta vasta e larga, porque terá de se basear em princípios, e não “livremente os ministros de Estado”. Ele também podia dissolver “a Câmara
a luta mesquinha, odienta, mais perseguidora, das localidades. E, se a opi- dos Deputados”, mas só “nos casos em que o exigir a salvação do Estado”
nião contrária subir ao poder, encontrará na legislação meios de governar. Se, (art. 101, incisos VI e IV). Os termos são claros: a troca ministerial era livre;
quando o Partido Liberal dominou o poder no Ministério de 2 de fevereiro de
a dissolução da Câmara, excepcional.
1844, não tivesse achado a lei de 3 de dezembro de 1841 [...] ou teria caído logo
ou teria saltado por cima das leis.33 O modelo institucional que os saquaremas desenharam alterou o sen-
tido dos artigos 98 e 101 da Constituição imperial. Se o Moderador nomeava
No passo, Paulino repertoriou os argumentos favoráveis ao uso político o ministério e os ministros encaminhavam as eleições parlamentares, ele
das nomeações que o governo central fazia para os postos judiciários, poli- não atendia à sua finalidade de velar “sobre a manutenção da independên-
ciais e conexos previstos na reforma do Código de Processo: a) arrancava cia” entre os três poderes. Além disso, o fim do rodízio partidário na Câmara
as disputas políticas à lógica local (o antigo “estado de coisas”), vista como dos Deputados mediante eleições exigia que ele trocasse os ministros e dis-
desprovida de espírito de grandeza; b) forjavam meios institucionais para solvesse a Câmara para que o novo Executivo tivesse um Parlamento de
a aliança político-partidária, em nível nacional, dos diversos grupos espa- sua cor política. O Poder Moderador tinha de gozar uma ampla liberdade,
lhados nas províncias; c) dava à relação entre o Executivo e o Parlamento não prevista na Constituição, para que as dissoluções fossem instrumento
maior governabilidade; d) prevenia o uso de meios coativos para a obtenção rotineiro de alternância partidária no poder, e não recurso de “salvação do
de resultados eleitorais favoráveis ao governo. O controle eleitoral resul- Estado”. De súbito, D. Pedro II se viu sujeito a uma restrição e a uma ampli-
tante do quadro judiciário do Império não é visto como abuso, distorção do tude inéditas de suas competências políticas. Restrição porque foi prejudi-
cado no respeito à finalidade constitucional do Moderador, a preservação
32 ROCHA, Justiniano J. da. A eleição e a câmara. O Velho Brazil, Rio de Janeiro: Typographia
Americana de Justiniano José da Rocha, v. XIII, n. 1.688, p. 2-3, 2 jul. 1853. Para uma síntese das
da independência dos três poderes. Amplitude porque usaria um recurso
reformas conservadoras, suas relações com Justiniano e seu efeito sobre o debate político brasileiro constitucional (a dissolução da Câmara) de modo inconstitucional (rotinei-
nas décadas de 1850 e 1860, PARRON, Tâmis. O Império num panfleto? Justiniano e a formação do ramente, a fim de atender à alternância partidária no governo). A regra pode
Estado no Brasil do século XIX. In: ROCHA, Justiniano José da. Ação; reação; transação e seus textos.
São Paulo: Edusp. No prelo. conter exceções, mas será esta: sempre que um saquarema pede autonomia
33 URUGUAI, Visconde de. Ensaio sobre o direito administrativo. In: CARVALHO, José Murilo de
(Org.). Visconde do Uruguai. São Paulo: Ed. 34, 1999. Cap. XXX, § 8, p. 465-466. 34 URUGUAI, 1999. p. 410-411.

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absoluta para o Poder Moderador, sub-repticiamente está pedindo auto- concorrência eleitoral, e não como algo que a substitui; e a construção do sis-
nomia absoluta para suas nomeações partidárias e para a fabricação das tema, mais que uma inevitabilidade imposta pela herança colonial, teria sido
eleições nacionais. Numa conhecida passagem de seu livro, Ilmar Mattos condicionada pela distribuição assimétrica de recursos materiais que vigo-
afirmou que os saquaremas “forjaram a Coroa em Partido”.35 Talvez fosse rava no país. Em 1841, a malha centralizada do Estado se expandiu amparada
possível dizer que eles, na verdade, forjaram uma Coroa para os partidos, na adesão dos espaços econômicos mais expressivos e dependentes do trá-
como requeria a Lei de 3 de dezembro de 1841. fico negreiro transatlântico – a Zona da Mata pernambucana, o Recôncavo
O argumento exposto nas páginas precedentes possui implicações his- baiano, mas sobretudo a Bacia do Vale do Paraíba – ao projeto parlamentar
toriográficas. A imagem de que o Estado imperial possuía um sistema elei- vitorioso de Vasconcelos, Carneiro Leão, Rodrigues Torres, Paulino, Eusébio
toral pouco aberto a pleitos competitivos por causa da oferta de cargos pode de Queirós e Araújo Lima. Parte desse conjunto conservador, por sua vez,
remeter à interpretação que Richard Graham elaborou em Patronage and guardou uma coerente defesa do contrabando negreiro e da Lei de 3 de
politics in nineteenth-century Brazil (1990). Baseado numa cuidadosa investi- dezembro de 1841 como princípios que o diferenciavam, em graus variáveis
gação documental, o historiador atribuiu o emperramento da máquina elei- no tempo e no espaço, de outros grupos políticos do Império do Brasil.
toral do Império ao clientelismo, fenômeno que ele define em níveis coinci- A união entre a Bacia do Vale do Paraíba e o Regresso conservador
dentes com os do sistema eleitoral brasileiro da época: no chão da vida local, foi o principal veio investigativo de O tempo saquarema. Posteriormente,
designa a proteção social a votantes em troca do sufrágio para eleitores; no Jeffrey Needell desenvolveu o assunto em seu minucioso The Party of Order,
alto da política nacional, descreve a oferta de cargos públicos a eleitores em uma boa síntese da história do Partido Conservador entre as décadas de
retorno de apoio a candidatos do governo. Graham é primoroso na des- 1830 e 1870. Uma das ideias centrais do livro é que o “regime represen-
crição das práticas do patronato, todavia uma questão de método conduz tativo e constitucional” do Império do Brasil foi “reconstruído pelo par-
sua leitura a uma extrapolação temerária. Evitando empregar “categorias” tido reacionário entre 1837 e 1842” nos termos do que fora “esboçado na
que “os atores históricos [...] não necessariamente reconheciam”, a fim de Constituição brasileira de 1824”. A reorganização regressista da monarquia
“focalizar os significados que eles próprios deram às suas ações”, concluiu incluiria a noção conceitual do equilíbrio entre os poderes, a Interpretação
que o clientelismo, ubíquo no país desde o período colonial, se impôs aos do Ato Adicional e a reforma do Código de Processo Criminal. Como
atores do tempo como a principal finalidade da vida política, desbancando identifica as múltiplas dimensões do processo histórico com perspectiva
até os temas da construção do poder central ou da defesa de interesses eco- dos indivíduos que estuda – nesse particular, seu método não é diferente
nômicos particulares. No símile que emprega para esclarecer o fenômeno do de Graham –, Needell considerou plenamente constitucional o que os
– “semelhante àquelas árvores altas da floresta amazônica que extraem ali- saquaremas fizeram e enunciaram: D. Pedro II, investido do Moderador,
mento das próprias folhas que caem” – evidencia-se a dimensão tautológica podia mesmo dissolver livremente a Câmara e aqueles que discordavam
de sua definição de clientelismo, a qual desconsidera diferenças de programa disso desferiam um “ataque ao papel constitucional do imperador”. Baseado
partidário entre as lideranças parlamentares, o vínculo intrínseco do tripé na opinião dos interesses escravistas dos saquaremas, concluiu que a Lei
cargos, eleições & construção do Estado ao longo do século XIX e as relações do Ventre Livre, porque patrocinada pela Coroa, contraditou “o princípio
que proprietários das diversas regiões econômicas do país travaram com o do equilíbrio constitucional de poderes”, derramando uma herança maldita
Estado imperial em conjunturas políticas específicas. Não importa a feição sobre o país. “Foi esse legado autoritário, estatista, mal coberto por uma
das árvores. Juntas, elas compõem a floresta indeterminada do clientelismo.36 fina camada de legitimação institucional, que sobreviveu à monarquia, uma
Segundo o argumento aqui apresentado, a oferta de cargos deve ser presença sombria na cultura política do Brasil desde então”. Em algumas
entendida como componente integrante da montagem de um Estado sem passagens sua narrativa oferece antes uma paráfrase da visão saquarema da
história política imperial que um exame dessa política.37
35 MATTOS, 2004, p. 192.
36 GRAHAM, 1997, p. 22, 299. 37 NEEDELL, 2006, p. 2, 278, 320-321.

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Cabe, por fim, perguntar se os deputados que o sistema de 3 de dezem- profissional, mas sim uma criatura mista, meio local e meio geral, meio
bro de 1841 produzia eram dotados de uma autonomia decisória que os particular e meio pública, meio espontânea e meio oficial. Dessa forma,
alçava à condição de “elite política imperial”, mais devotada às questões as decisões eventualmente impopulares do Parlamento podiam gerar nos
de Estado que ao meio socioeconômico que os elegeu. Em A construção círculos dos proprietários duras críticas dirigidas não apenas aos deputados
da ordem, José Murilo de Carvalho, embora mencione variações regio- ou aos eleitores que os escolheram, mas também ao próprio Executivo que
nais e note a importância da economia para a política, procedeu a diver- os recomendara. E, como o Poder Moderador, enredado no sistema criado
sos cálculos para indicar que somente de 5% a 8% dos deputados imperiais em 1841, era o primum mobile das eleições, parte dos erros podia correr
provinham da esfera econômica (isto é, viviam como proprietários rurais também por sua conta. Todos eram corresponsáveis.
ou negociantes), enquanto os que atuavam para o governo (na função de A falta de uma clara cisão entre polícia, burocracia, gabinete, eleições
magistrados ou militares) compunham de 24% a 38% do total. Tais núme- e Poder Moderador, além de coligar as esferas privada e pública nas corri-
ros corroboram sua leitura antimarxista segundo a qual o Estado imperial das eleitorais, criou interpenetrações nas instâncias decisórias do governo
brasileiro era pouco penetrável às demandas do mundo econômico. Seria (Parlamento, Executivo, Conselho de Estado, Poder Moderador) que, con-
possível advertir que dois fatores concorrem para essa suposta inexpressivi- forme a conjuntura, podiam produzir efeitos diversos, ora fragilizando o sis-
dade numérica dos agentes econômicos. Segundo os critérios de Carvalho, tema como um todo, ora reforçando-o. Dois exemplos distantes no tempo
os atores que eram ao mesmo tempo magistrados/militares e proprietários ajudam a ilustrar o argumento. Na década de 1880, durante a crise aguda da
rurais foram considerados apenas como atuantes na esfera do governo. escravidão no Império do Brasil, o Parlamento votou contra a legalidade do
Ademais, o corpus documental utilizado, em geral esboços biográficos status jurídico do homem escravizado, emancipando os cativos sem inde-
encomiásticos como a Galeria dos brasileiros ilustres (1861), não dá ênfase às nizar os senhores. Os proprietários atingidos pela medida não inculparam
fontes de renda privada do biografado. O uso de inventários post-mortem apenas os eleitores ou os parlamentares eleitos; sua insatisfação atingiu as
dos deputados (tarefa que ainda espera por ser feita) e a revisão dos crité- raias do Executivo e do Poder Moderador, direta ou indiretamente ligados
rios de classificação da ocupação profissional poderiam gerar uma imagem à montagem das eleições e, portanto, da composição da Câmara. A conjun-
bem distinta da chamada “elite política imperial”.38 tura de 1880 aporta um caso em que grande parte dos proprietários se con-
Outra objeção ao modelo pode ser feita em termos qualitativos. Se a venceu de que havia uma corresponsabilidade geral negativa no sistema. Na
mercê de cargos públicos e as eleições parlamentares andavam unidas no ótica deles, todo o conjunto, inclusive o trono imperial, podia vir abaixo. Na
mesmo processo de construção do Estado nacional, então o ato de escolha década de 1840, se deu o oposto. Enquanto o Parlamento defendeu o con-
dos representantes políticos nascia de um amplo consórcio entre sociedade trabando negreiro, as interpenetrações mencionadas acima (entre público e
e Estado no qual se entrelaçavam a vida local (grandes proprietários) e as privado, mas também entre as instâncias decisórias do governo) fortalece-
instituições nacionais (recursos públicos). O sistema podia até dar autono- ram tanto o Estado quanto os interesses escravistas, como se houvesse uma
mia ao Executivo, uma vez que a influência eleitoral redundava em banca- percepção de corresponsabilidade geral positiva no sistema.
das mais governáveis no Parlamento. A regra, porém, valia apenas para a
solução de questões pontuais dentro do prazo de uma legislatura. A renova- considerações finais
ção do Parlamento a cada quatro anos solicitava novas negociações com as
localidades, novas ofertas de cargos, nova proposição de nomes aceitáveis Dialética da ambiguidade. A expressão foi criada por José Murilo de
pelos proprietários rurais. Como a Câmara era, em parte, moldada pelo Carvalho para descrever a relação entre a “elite política imperial”, defi-
próprio Executivo, o deputado, fosse magistrado ou fazendeiro, não era na nida como antiescravista, e o instituto do cativeiro, do qual dependiam as
verdade nem o “homem do eleitor” nem um perfil abstrato de ocupação finanças do Estado que ela geria. A expressão é discutível. A relação que
Carvalho descreve entre políticos nacionais e Estado não é “ambígua”, uma
38 CARVALHO, 2003, p. 95-117. vez que a elite sempre possui, em seu modelo, orientação antiescravista.

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Nem “dialética”, dado que o cativeiro e o conjunto de valores das altas esfe-
ras do Estado, incompatíveis do início ao fim do Império, aparecem como
fenômenos imutáveis no tempo.
A ordem jurídico-político-partidária do Império do Brasil só foi mon-
tada e, mais que montada, sustentada graças a um amplo acordo firmado
entre proprietários e parlamentares que redefiniu a relação da sociedade e
do Estado com um tipo de peculiar propriedade privada, o africano juridi-
camente livre. Mas qual era a natureza desse acordo, de onde provinha a sua
força, qual o seu gradiente desproporcional de beneficiários e prejudicados? PARTE II
A reabertura do tráfico negreiro transatlântico sob a forma de contrabando
em escala sistêmica distribuiu vantagens aos atores sociais de forma horro- População e Sociedade
rosamente desigual. Beneficiou antes os homens e mulheres livres de fato
que aqueles livres apenas por direito; no universo dos primeiros, antes os
que habitavam as zonas de exportação agrícola e suas áreas estreitamente
conexas que todas as outras somadas; entre as zonas de plantations, antes os
enclaves do Vale do Paraíba expandido que os das demais regiões geoeco-
lógicas do país; no Vale, antes os grandes proprietários que os pequenos, os
médios e os não-proprietários. Como um edifício tão assimétrico se man-
teve por tantos anos de pé sobre o terreno irregular da mais pura ilegalidade?
O segredo da mágica está na lógica de sucessão dos poderes, não
necessariamente criada para proteger a escravidão ilegal, mas que não teve
outro efeito prático. Com a reforma do Código de Processo Criminal em
1841, o sistema de sucessão eleitoral nacional tendeu a criar legislaturas
monopartidárias. Ao reforçar a governabilidade política, ele perderia legiti-
midade caso uma das legislaturas denunciasse o contrabando negreiro ou,
depois de 1850, a propriedade escrava ilegal. A mecânica da sucessão quase
monopartidária nos três Poderes só era admissível, portanto, se o inad-
missível (a escravização ilegal de pessoas livres em massa) se convertesse
num assunto abscôndito, invisível, apolítico, apartidário. Numa fórmula de
círculo vicioso: o sistema político-partidário-eleitoral de 1841 funcionava
apenas com o consenso social do escravismo ilegal, e o consenso social
do escravismo ilegal se reforçava com o funcionamento daquele sistema
político-partidário-eleitoral. Dessa maneira irônica e trágica que misturava
ordem e desordem, mas não era ambígua, a desigualdade social foi prote-
gida da forma mais eficaz possível, pois o que não se podia pronunciar tam-
pouco se podia reduzir a lei. Na prática, a morfologia do Estado brasileiro
baniu a palavra para melhor manter a coisa. Fez do indizível o inominável.

156
O paradigma da extinção:
desaparecimento dos índios puris
em Campo Alegre, sul do Vale do Paraíba
Enio Sebastião Cardoso de Oliveira

Os puris ocupavam, no período dos setecentos, uma extensa área da região


do Vale do Paraíba. Esses índios eram de uma etnia bem diferente dos
outros ameríndios que habitavam o litoral da província, não só no aspecto
físico, mas também cultural, pois falavam um dialeto do tronco linguístico
de origem macro-gê. Pontuados pela historiografia como primeiros habi-
tantes de Campo Alegre da Paraíba Nova, a atual cidade de Resende, Médio
Vale do Paraíba, os puris conheceram a ação colonizadora por volta do
século XVIII. Com a expansão das fronteiras agrícolas do império luso-bra-
sileiro, ocorreram diversos conflitos entre índios e colonos na região. Uma
das consequências principais deste processo foi a fundação do aldeamento
de São Luis Beltrão com o objetivo de reduzir os índios puris. Em meados
do século XIX, essa etnia já era considerada extinta pelas autoridades da
Coroa, desaparecendo dos documentos oficiais.
O presente artigo pretende analisar, a partir das observações de fontes
disponíveis, se os índios puris na região de Campo Alegre da Paraíba Nova
realmente foram extintos ou se tratou de um “desaparecimento proposi-
tal”, promovido pelas autoridades em seus documentos oficiais. Para tanto,
iremos utilizar como fontes os diversos relatos dos viajantes e memoria-
listas que estiveram na região no final do século XVIII e XIX e aplicaram
a seguinte metodologia de comparação com as fontes oficiais, que são:
cartas, relatórios de presidentes de províncias, de funcionários e militares,
tanto do período colonial e do Império brasileiro, requerimentos de pedi-
dos de sesmarias e outros.

159
os sertões dos “índios brabos” ser caracterizada como uma fronteira aberta, ainda considerada “alto sertão”
de campo alegre da paraíba nova pelas autoridades portuguesas, ou como pontuamos aqui: “sertão dos índios
bravos”. Como tal, esta região apresentava tensão entre os colonos em pro-
Campo Alegre, no século no final do século XVIII, era uma área que se
cesso de expansão em direção aos sertões e os índios de várias etnias com
estendia da fronteira da antiga capitania de São Paulo até a confluência do
variadas situação geopolíticas – “deslocados”, “destribalizados”,5 “estanciados”.6
rio Preto com o Paraibuna, e deste último com o rio Paraíba do Sul,1 onde
A região dos chamados sertões era uma extensa área que, ainda no
atualmente estão os municípios de Comendador Levy Gasparian e Três
final do século XVIII, representava uma parte expressiva do território da
Rios. Do litoral em direção aos sertões, seus limites eram dados pela Serra
antiga capitania do Rio de Janeiro, sendo caracterizada como um espaço de
do Mar e o Rio Preto, fronteira natural com a antiga Província das Minas
solidão, deserto ou sertão.7
Gerais, cobrindo o sul do Vale do Paraíba Fluminense.2 Esta região era con-
siderada, naquele período, como uma área de “sertões dos índios brabos”3
ou simplesmente “sertões”.
A região dos sertões dos “índios brabos” seria uma área imprecisa na
metade do século XVIII. Segundo a fonte abaixo, a região de Campo Alegre
fazia parte da área de sertões:
Dis Ignacio de Sousa Werneck Capitão do Distrito da Freguesia da N. da
Conceição do Alferez, que no ano de 1788 foi ale encarregado VS. Majestade
Ex.ma D. Luis de Vasconcelos, eram então Vice- Rei deste Estado de combater
os índios Bravos, que habitavam no “Certão” entre os Rios Paraíba, Preto os
quais donde frentes sortidas vindas para atacar os povos da Freguesia da Sacra
Família das outras vizinhas fazendo lhes muitas mortes [...]4

Podemos notar na fonte acima que as palavras “certão” e “índios bravos”


eram utilizados como referência à região de Campo Alegre da Paraíba Nova,
uma área ocupada pelos índios soltos e “considerados hostis”, sem o controle Mapa da região de Campo Alegre da Paraíba Nova e seus limites e fronteiras in: FREYCINET, Louis.
De Carte de la province de Rio de Janeiro Material cartográfico / par M. Louis de Freycinet,
do Estado português. Ou seja, uma terra ainda “inóspita, não civilizada” Escala [ca. 1:840000], 1824. – Disponível em: http://purl.pt/3426. Acesso em: 05/01/2011.
no modelo e princípios do final do século XVIII. Portanto, nesse período, a (Acervo: Biblioteca Nacional de Portugal).
área ainda não estava totalmente ocupada pelas frentes coloniais podendo 5 Bessa Freire e Marcia Fernanda Malheiros classificam como “índios urbanos”, “índios destribaliza-
dos” os que viviam como prestadores de serviços públicos e privados, inclusive na cidade do Rio
1 FREYCINET, Louis M. Carte de la province de Rio de Janeiro [Material cartográfico]. [S.l. : s.n.], de Janeiro. FREIRE , José Ribamar Bessa; MALHEIROS, Márcia Fernanda. Aldeamentos indígenas do
1824. 1 mapa: p&b, com traçados color. Escala ca. 1:840000. 25 Lieues moy de France (25 ao grau) Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010. p. 13. Disponível em: <http://www.taquiprati.com.br/
= (13,20 cm). 29,90 x 53,70 cm em folha de 50,20 x 67,90 cm. Disponível em: <http://purl.pt/3426>. arquivos/pdf /Aldeamentos2aedicao.pdf>. Acesso em: 4 jan. 2011.
Acesso em: 11 fev. 2011.
6 Segundo o Dicionário do padre D. Raphael, Bluteau, reformado e acrescentado por Antonio de
2 Idem. Moraes Silva do século XIX, a palavra “estanciar” significa “fazer estância, parar para descansar em
3 A detecção de “índios brabos” e soltos pelo sertão instigava um discurso sobre a necessária intervenção algum sítio. [...] Se estava longe de algum lugar onde determinava estanciar, alojar-se”. BLUTEAU,
da mão “civilizadora” da “sociedade civil” sobre eles, instituindo-se, a partir de então, religiosos, milita- Raphael. Diccionario da lingua portugueza. Reformulado e acrescentado por Antonio de Moraes
res e particulares na tarefa de contratá-los e “civilizá-los”. [...] Quando em 1767 o militar Manoel Vieyra Silva. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. p. 560. O memorialista João Maia faz a referência dessa
Leão classifica os índios “soltos” do Rio de Janeiro como “brabos” e seu promissor território como palavra em seu livro quando tenta mostra localização dos índios puris na região: “assim como
“sertão”. MALHEIROS, Márcia Fernanda. “Homens da Fronteira”: índios e capuchinhos na ocupação toda a zona de ‘serra acima’ nesta província até os seus limites com São Paulo e Minas Gerais, [...]
dos sertões do leste do Paraíba ou Goytacazes, século XVIII e XIX. Niterói: Eduff, 2008. p. 39. e nessa região inculta, e ocupada em grande parte por índios estanciados em diversos pontos. João
4 ARQUIVO NACIONAL. Oficio de Ignacio de Sousa Werneck ao vice-rei Luis de Vasconcelos, sobre a Maia tentar demonstrar que os índios puris de Campo Alegre se localizam em diversos pontos
suposta violência dos índios na região do Rio Paraíba e Preto. Rio de Janeiro, [17--?]. Fundo vice-rei- da região onde permaneciam estacionados”. MAIA, João Azevedo Carneiro. Do descobrimento de
nado. Conjunto documental: correspondência de capitães-mores e comandantes de regimentos de Campo Alegre até a criação da Vila de Resende, 2. ed. Resende: CCMM, 1998. p. 14.
vilas do Rio de Janeiro. Caixa 484, pacote 2, 4º seção, 13º classe, série I, 4. Coleção 328 a 376. 7 MALHEIROS, 2008, p. 31.

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O fato de Campo Alegre ainda conservar aspectos de sertão em fins expõe os benefícios que essa produção pode trazer à população da capita-
dos setecentos, nos leva a constatação de que a chegada do conquistador e nia e os cuidados que se deve ter em relação ao extravio do ouro. De certa
a fundação da freguesia teria iniciado uma relação conflituosa entre colo- maneira, sempre ocorreu uma grande preocupação com a questão do con-
nizadores e indígenas, diga-se de passagem não muito diferente de outras trabando de ouro no Brasil, a criação das casas de fundição e dos registros
regiões da colônia. No entanto, mesmo antes dessa data, Campo Alegre já de ouro são fatos que comprovam esse cuidado.10 Contudo, a grande dife-
era visitada por bandeirantes que a utilizavam como rota para as áreas pro- rença da carta citada é o destaque dado ao autor à região de Campo Alegre
dutoras de ouro nas Minas Gerais.8 Ao analisarmos uma parte do relatório como sendo uma localidade que deveria ter um tratamento especial pela
do capitão Henrique José de Carvalho Queiros ao conde de Resende, perce- possível existência de ouro.
bemos que o dito capitão relata uma suposta descoberta de ouro na região Neste momento, cabe questionar no que o processo de descoberta de
de Campo Alegre, destacando sua importância: ouro na região de Campo Alegre contribuiu para a hostilidade dos coloniza-
No Vice Reinado do Exmº Sr Luiz de Vasconcelos viram a esta cidade era já dores para com os índios da região e a fundação do aldeamento de São Luis
vez na sua chegada a dar-lhe as boas vindas, e não faltei neste ponto; porém Beltrão? O próprio relatório do capitão Henrique José de Carvalho Queiros
vejo depois o guarda Mor Miguel Nunes Bernardes para tratar de matéria, e ao vice-rei nos dá alguns importantes indícios quando afirma a possibili-
de fato foi bem atendido, e esperançado dos mesmos sem suposto não deu dade da existência de ouro ainda no reinado do vice-rei conde do Cunha
a última decisão, porque já nesse tempo corria a noticia da vinda de V. Ex. e
parece que a gloria desta descoberta tão importante estava reservada para feliz (1763 a 1767)11 e de lavras antes da formação de povoados na região. O ouro
governo de V. Exª, e fazer felizes os Povos do Estado principalmente os desta seria, portanto, um dos fatores que poderiam explicar as primeiras levas de
Capital, por quanto não pode deixar de resultar um grande argumento ao Real povoadores e o aumento populacional na região, justificando, assim, sua
Erário, a ao Comercio; porque as Minas Gerais cada vez vão em maior deca- elevação à freguesia de N. S. da Conceição do Campo Alegre, pelo alvará
dência, e este descoberto há de vir substituir-lhe a sua falta, e como há contigo
as mesmas Minas, as providencias para evitar os extravios são as mesmas que de 2 de janeiro de 1757.12 Uma concentração populacional poderia ter ocor-
se observam nas Minas, só com a diferença que lá vão as partes meter o ouro rido diante de uma ocupação de colonos atraídos pelo ouro e pelo comér-
nas casas de fundição, e cá é necessário constituir um fiscal, que receba o ouro cio para abastecer os tropeiros e exploradores que passavam por Campo
das mesmas partes, e o faça remeter a casa da Moeda desta Capital debaixo de Alegre, além da necessidade de produção agrícola para atender a demanda
guias, lacrados e haver grande vigilância nas guardas de pago [...].9
de consumo das regiões produtoras de ouro das Minas Gerais diante da
Como podemos notar, o capitão relacionava a relevância da desco- proximidade com o Caminho Real, Caminho do Ouro ou Caminho Velho
berta de “ouro” aos benefícios que a mesma traria ao erário real. Além
disso, narrava a decadência da produção de ouro em Minas Gerais e como
essa descoberta poderia favorecer a capitania o Rio de Janeiro e a região de
Campo Alegre que intensificariam as atividades comerciais. Esse relatório 10 Sobre a questão do contrabando de ouro na região do Vale do Paraíba, Maria de Lurdes Zuquim, em
seu trabalho, pontua: “[...] se abria em vários caminhos que atravessavam a serra da Mantiqueira,
rumo a Minas Gerais [...]. A Coroa portuguesa tentou por vários meios controlar e fiscalizar a cir-
culação desses produtos. Para evitar o contrabando, que logo surgiu e cresceu rapidamente, foram
8 “[...] vem ainda hoje vestígios de lavrados em alguns ribeirinhos muito antes de se fundar a Povoação,
construídas Casas de Registro em pontos cuidadosamente escolhidos. [...] em 1695, foi criação da
porém como naqueles tempos havia muito ouro divertiam-se os mineiros para entrar diversas partes
primeira casa de fundição, em Taubaté, para controlar a arrecadação do crescente fluxo de ouro das
entrando e saindo com expedições, a que vulgarmente chamavam Bandeiras”. QUEIROS, Henrique
José de Carvalho - capitão. [Fragmento da Carta ao Vice Rei, Rio de Janeiro 8 de Fevereiro de 1791]. Minas para o Porto de Paraty pelo Caminho do Ouro [...]. ZUQUIM. Maria de Lurdes. Os caminhos
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1791. Fundo SDH: diversos códices. Conjunto documental: coleção do rural: uma questão agrária e ambiental. São Paulo: Ed. Senac, 2007. p. 27-28.
de memórias e outros documentos sobre vários objetos. Códice 807, v. 5, p. 106. 11 ZUQUIM, loc. cit.
9 ARQUIVO NACIONAL. Relatório do capitão Henrique José de Carvalho Queiros ao vice-rei. In: 12 A localidade, atual município de Resende, foi batizada em honra a Nossa Senhora da Conceição de
___. Coleção memória: vice-reinado – cópia e mais papéis de Campo Alegre, sobre terras mineiras Campo Alegre, recebendo predicamento de freguesia dez anos após a sua construção, pelo Alvará
(Rio de Janeiro, 8 de fevereiro de 1791). Rio de Janeiro, 1791. Fundo SDH: diversos códices. Conjunto de 2 de janeiro de 1757. Ver: ANUÁRIO Geográfico do Estado do Rio de Janeiro. 11. ed. Rio de Janeiro:
Documental: Coleção de memórias e outros documentos sobre vários objetos. Códice 807, v. 5, p. 106. Departamento de Geografia, 1958. p. 228.

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do ouro.13 Veja no mapa abaixo o Caminho do Ouro, também conhecido pagamento de impostos sobre o que fosse encontrado. Tal medida, de certa
como Caminho Real.14 maneira, facilitou o aumento da população nas áreas produtoras, a possibili-
Esse processo de ocupação se manteve até a metade dos oitocentos, dade de contrabando,17 e os atritos com os índios puris. O aumento popula-
levando o aumento dos atritos entre os colonizadores e os índios, principal- cional nessa área e regiões mineiras gerou também conflitos entre diferentes
mente da etnia puri. Uma das hipóteses deste artigo é que, a intensificação etnias indígenas. O fato foi assinalado por Joaquim Norberto em seu livro
de tais conflitos ocasionou a fundação do aldeamento de São Luis Beltrão Memória histórica das aldeias do Rio de Janeiro quando citou que os puris se
na localidade de Campo Alegre, capitania do Rio de Janeiro. A intenção era deslocaram para a região de Campo Alegre fugindo dos índios botocudos de
reduzir os índios e controlar as etnias que habitavam as proximidades da Minas Gerais. Portanto, o aumento de indígenas e colonos na região foi, sem
freguesia, principalmente os puris, além dos coroados, estes bem menos dúvida, um catalizador de conflito em Campo Alegre.
numerosos naquela extensa região. Como afirma Joaquim Norberto Silva e Sousa, o deslocamento dos boto-
Podemos notar no mapa acima a proximidade dos caminhos oficiais cudos desencadeou conflitos com os próprios puris da Serra da Mantiqueira
em relação a Campo Alegre, de onde surgiram várias trilhas e picadas que que, por sua vez, se deslocaram para as regiões mais baixas de Campo Alegre:
iam pelo Vale do Paraíba e pela Serra da Mantiqueira em direção às regiões
Os Puris obrigados a deixarem a serra da Mantiqueira pelos Butucudos, asso-
mineiras.15 lavam as povoações vizinhas dos Campos Alegres apresentando uma atti-
Sobre a procura de ouro na região, o capitão Henrique José de Carvalho tude tão hostil e ameaçadora pela sua erupção, que o pavor tornou-se geral.
Queiros faz os seguintes apontamentos: Assustando os fazendeiros com suas depredações, pelos assassinatos que viam
commeter diariamente em pessoas de sua família ou conhecimento, aban-
[...] às despesas se podem evitar em muitas partes observando-se o regimento donaram as suas fazendas situadas a margem septentrional do Parahyba os
das terras Mineiras que se pratica em Minas; e este é o verdadeiro sistema indios, acoroçoados com este triumpho, redobraram de animo e vieram per-
deixar o Povo na liberdade de procurar ouro, porque que lhe fará as despesas segui-los na margem opposta do rio, mais audazes ff atrevidos do que nunca.
á sua custa.16 Convinha represar a torrente de tantas hostilidades apresentando-lhes oppo-
sição forte e apoiada nas armas, mas então a intervenção da religião não devia
O capitão aconselha o vice-rei conde do Cunha a fazer uso do regimento ser esquecida como foi, para opprchrio da civilisação [...].18 [grifos nossos].
das terras mineiras que previa a liberdade da população da exploração do
ouro. Essa medida se pautava na economia que proporcionaria ao erário O registro do autor é datado no século XIX, portanto, ressalta a visão
real, pois as despesas ficariam a cargo dos próprios exploradores mediante à dos índios em posição de agressores e dos donos de terras como vítimas
dessa agressão. Norberto, assim como outro memorialista João Maia
13 A Coroa procurou transformar o Caminho do Ouro, ou Caminho Real, como a única estrada ofi-
Azevedo Carneiro,19 mantém o relato de que os puris foram obrigados a
cial – a única via por onde a Coroa portuguesa autorizava que fosse transportado o ouro extraído
das Gerais. Porém existiam outros caminhos – Parati era a principal estrada terrestre para a serra deixar os sertões da Mantiqueira, indicando que a expansão colonial colo-
da Mantiqueira, rumo às Minas, pelo “Caminho Velho”, “Trilha dos Mineiros”, “Trilha do Ouro”, cava em cheque os territórios indígenas. Os puris, então, se deslocaram
ou ainda pelo “Caminho ou Trilha do Facão”. A trilha do Facão partia de Parati, atravessava a Serra
do Mar pela serra da Quebra Cangalha, até os Campos de Cunha e alcançava o Vale do Paraíba em até se estabelecerem na margem setentrional do Paraíba, a cinco léguas do
Guaratinguetá, em uma picada de 95 km, depois abria-se em várias caminhos que atravessava a Campo Alegre, em um sítio chamado Minhocal nas margens do Ribeirão
Serra da Mantiqueira, rumo a Minas Gerais”. ZUQUIM, op. cit., p. 27, 29.
14 LURDES. Maria de. Caminho real do ouro, Caminho Velho, ou caminho do ouro. 1 mapa. Escala 17 Sobre rotas clandestinas de ouro, Pizarro afirma que: “[...] Patenteada, porém à poucos annos uma
indeterminável. Disponível em: <http://diretoriomonarquicodobrasil.blogspot.com/2010/12/ picada, que das terras mineraes, e serra da Mantiqueira vinha occultamente à esse termo, e passava
paraty-estrada-real-reviva-os-bons.html>. Acesso em: 08 abr. 2011. por junto da Aldeã às margens daquelle Rio”. PIZARRO, José de Souza Azevedo. Memórias históricas
15 Ibid. do Rio de Janeiro e das províncias annexas a’jurisdição do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa
Régia, 1820. t. V, v. V.
16 QUEIRÓS, Henrique José de Carvalho – capitão. [Fragmento da carta ao vice-rei. Rio de Janeiro,
8 de fevereiro de 1791]. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1791. Manuscrito. Fundo vice-reinado. 18 SILVA, Joaquim Norberto Souza. Memória histórica e documentada das aldeias de índios da pro-
Conjunto Documental: Correspondência de capitães-mores e comandantes de regimentos de vilas víncia do Rio de Janeiro... RIHGB, Rio de Janeiro: IHGB, v. 17, 3. série, n. 14, p. 243, 1854.
do Rio de Janeiro. Caixa 484, pct. 1, folha 106. 19 MAIA. João Azevedo Carneiro. Do Descobrimento de Campo Alegre até a Criação da Vila de Resende.

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São Luis,20 afluente do Rio Preto. Segundo o autor, por volta de 1780, estes De porte acaçapado [...] – Von Spix e Von Martins
índios começaram a realizar ataques às fazendas21 até que foram reduzidos Geralmente muito Baixos [...] – Eschwege Wilhem Ludwig Von
oficialmente ao aldeamento de São Luis Beltrão, na fronteira com a provín- Pequenos como nas outra partes [...] – Manoel Aires Casal
cia das Minas Gerais. De Corpo apoquentado [...] – Manoel Aires Casal
Pequena Estatura [...] – Joaquim Norberto25
a presença dos índios puris
em campo alegre da paraíba nova Entretanto, o príncipe Maximiliano, em sua observação sobre a ques-
tão da pequena estatura dos puris, afirmou: “devo confessar que nenhuma
Sobre a origem do nome “puri”,22 segundo Freire e Malheiros, afirmam diferença nesse particular observei entre os Puris e as outras tribos”.26
ser esta uma designação pejorativa dada pelos índios coroados. Teodoro Observação essa que difere dos registros de outros pesquisadores da época.
Sampaio, segundo o verbete de Métraux, analisa etimologicamente a pala- O que podemos presumir dessas impressões é que havia uma grande hete-
vra puri que designa: “povo miúdo, gentinha, fraco, de pequena estatura”.23 rogeneidade nas populações indígenas em vários aspectos, não se limitando
A descrição etimológica de Sampaio confirma, portanto, o que dizem Bessa apenas ao físico. Algumas dessas diferenças poderiam ser frutos da contra-
Freire e Márcia Malheiros ao pontuarem: dição analítica entre as diversas narrativas de cronistas e viajantes, inclusive
O nome Puri é uma designação pejorativa dada a eles pelos Coroado. Os confundindo-as no momento de classificá-las, a exemplo do que ocorrera
Puris, Telikong ou Paqui, estavam divididos em pelo menos três sub-grupos: com os coroados. Segundo Norberto, o termo “coroado” passou a desig-
Sabonan, Uambori e Xamixuna, que ocupavam um território na área do rio nar toda a tribo que utilizasse um corte de cabelo característico que lem-
Paraíba e Serra da Mantiqueira. No séc. XVIII, antes de serem vendidos como brasse uma coroa: “No Rio de Janeiro o nome de Coroado foi generalizado
escravos foram estimados em mais de 5.000 índios. No séc. XIX, foram aldea- a todos os selvagens que se distinguiam pela maneira de cortar o cabello”.27
dos em São Fidelis e na Missão de São João de Queluz, registrando-se 655
Ainda segundo Saint-Hilaire, o nome coroado foi dado pelos portugueses
índios Puri em Resende, em 1841. Em 1885, Ehrenreich localiza remanescentes
Puri no baixo Paraíba.24 aos índios que tinham o hábito de “cortar os cabelos no meio da cabeça, à
maneira dos nossos sacerdotes, ou seja, antes, de não conservar mais do que
Conforme a narrativa acima, temos a impressão de que o povo puri uma calota de cabelos, como fazem ainda hoje os botocudos”.28
era uma etnia possuidora dos mesmos atributos físicos que as demais Devemos ressaltar que apesar da grande diversidade, fruto de uma classi-
etnias que viviam na capitania do Rio de Janeiro no século XVIII e XIX. ficação confusa dos viajantes e cronistas do século XIX, os coroados aos quais
Existem diversas outras descrições físicas dos índios puris, mas a descrita nos referimos são aqueles que eram linguisticamente vinculados ao tronco
por Métraux acabou se generalizando. Segundo Paulo Pereira dos Reis, a macro-gê, que Marcelo Sant’Ana Lemos adota como da família Puri-Coroado,
pequena estatura dos Puris em relação a outros etnônimos fazia com que proposto por André Metraux.29 Bessa e Malheiros também classificam de
vários autores os descrevessem como frágeis e pequenos:

20 Ibid., p. 14. 25 REIS, 1979, p. 69.


21 REIS, Paulo Pereira dos. O indígena do Vale do Paraíba: apontamentos históricos para os estudos 26 WIED-NEUWIED, Maximiliano Alexandre Philipp. Viagem ao Brasil. Tradução de Edgar Süssekind
indígenas do Vale do Paraíba Paulista e regiões circunvizinhas. São Paulo: Governo do Estado de de Mendonça e Flávio Poppe de Figueiredo. São Paulo: Nacional, 1940. p. 108. (Coleção Brasiliana).
São Paulo, 1979. p. 102. 27 BLUTEAU, 1813, p. 88.
22 FREIRE; MALHEIROS, 2010, p. 17. 28 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do Rio São Francisco. Belo Horizonte: Itatiaia; São
23 “O Puri era um nome pejorativo concedido a eles pelos Coroados”. MÉTRAUX, Verbete purys, p. 534 Paulo: Edusp, 1975. p. 38.
apud SAMPAIO, Teodoro Fernandes. O tupi na geografia nacional. 3. ed. Salvador: Seção Gráfica da 29 LEMOS, Marcelo Sant’Ana. O índio virou pó de café? A resistência dos índios coroados de Valença
Escola de Aprendizes Artífices, 1928. frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba (1788-1836). 2004. Dissertação (Mestrado em História)
24 FREIRE; MALHEIROS, 2010, p. 13, 17. Disponível em: <http://www.taquiprati.com.br/arquivos/pdf/ – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de
Aldeamentos2aedicao.pdf>. Acesso em: 4 de jan. 2011. Janeiro, 2004. p. 50.

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coroados aqueles índios pertencentes à família Puri, que habitavam as ramifi- Os índios, em geral, são de estatura pequena; a cor é um amarello pardo -
cações da Serra do Mar e os vales dos rios Paraíba, Pomba e Preto.30 não cor de cobre como se costuma contar; o cabello é liso e preto; o olho é
um pouco obliquo, de uma cor negro-bruma e, os ossos sygomatico salientes
Nesse aspecto, remeteremos às impressões do naturalista Von Martins
constituem caráter essencial. O seu corpo não é avantajado porque parte infe-
que verificou em seu trabalho que os índios brasileiros apresentavam uma rior do tronco e de ordinário grosso, as pernas finas e a cabeça grande. São
grande diversidade de caracteres físicos: “[...] alguns altos e baixos, esbeltos tidos como imberbes porque extirpam cuidadosamente todos os pellos que
e corpulentos, vermelhos acobreados amarellados e até brancos, com pouca apparecem e [...] tem sempre menos barbas e pellos do que os portugueses.35
barba ou se constantemente não a depilam, apresentam-na regulamente
O viajante Freireyss narrou seu encontro de três tribos: a primeira de
basta”.31 Von Martius, assim como Von Spix – que também teve contato com
“Coroados com cerca de 2.000 mil pessoas morando em residências fixas,
os puris, coropós e coroados –, afirmava a existência da diversidade física
uma de Puris com aproximadamente 500 membros e outra de Coropós
dos índios ao mesmo tempo em que generalizava suas descrições antropo-
com 200 índios, localizados as margens do rio Pomba, um afluente do rio
lógicas.32 Assim, os ditos naturalistas em suas viagens pelo Brasil fizeram
Paraybuna”.36 O naturalista fez questão de pontuar em seu relato o ódio em
uma descrição abrangente, mas detalhada sobre essas etnias, às quais pode-
que viviam essas comunidades em relação ao homem branco, fazendo seve-
mos recorrer como fonte histórica:
ras críticas de como o homem branco tratava os índios. Outra ponderação
Os índios são baixos ou de estatura mediana; os homens tem quatro a cinco pés que Freireyss fez em relação aos puris e coroados foi que os primeiros eram
de altura, as mulheres em geral, pouco mais de quatro pés; todos têm corpos sempre mais fortes do que os coroados.37
robustos, largos e acaçapados. Só raramente, se acha entre êles alguns de esta-
Analisando esses autores e cronistas, percebe-se que existem divergên-
tura alta, esbelta. Têm espáduas largas, pescoço curto e grosso. [...] as extremi-
dades são pequenas, as inferiores não são polpudas; são sobretudo, franzinas as cias em suas falas, fato muito natural se tratando do estudo de uma nação
barrigas e pernas e as nádegas; as superiores são arredondadas e musculosas. O indígena já extinta e da qual há grande carência de registros. O mesmo
pé é estreito no calcanhar, muito largo na frente, o dedo grande aparta-se dos ocorre quando analisamos os apontamentos de Manuel Martins do Couto
outros; [...] o colorido da tez é vermelho cúprico, mais ou menos carregado, Reys, engenheiro militar que percorreu várias regiões dos sertões da capi-
diferençado-se segundo a idade, a ocupação e estado de saúde do indivíduo [...]
tania do Rio de Janeiro nos séculos XVIII e começo do XIX. Reys descreveu
Em geral são de cor tanto mais escura, quanto mais robusto e ativos.33
os puris da seguinte forma: “são estes índios assas corpolentos, audazes,
Outro naturalista, o alemão Georg W. Freireyss, viajante entre os anos destemidos, vigilantes, e de máximas muito atraiçoadas, inclinados a toda
de 1814 e 1815, conheceu a região das Minas Gerais e deixou um manuscrito a deshumanidade, dando morte a qualquer vivente que encontram, seja ou
de 91 páginas no qual fazia relatos sobre os índios puris e coropós localiza- não irracional, ainda que os não ofendam”.38 Como se vê, Couto Reys con-
dos próximos ao presídio de São Batista em Minas Gerais. Suas observações tradiz a maioria das descrições de outros observadores ao relatar a condição
possuem grande riqueza de detalhes no que compete a essas etnias.34 física corpulenta dos puris, além disso, Couto Reys também atentava para
as características dos índios puris como violentos e de atitudes desumanas
30 A família Puri era subdividida em vários grupos, entre os quais, Maritong, Cobanipaque, Tamprun
e Sasaricon. FREIRE; MALHEIROS, 2010, p. 8.
31 REIS, 1979, p. 61.
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, São Paulo: Tipografia do Diário Oficial, v. VI (1900-
32 Esses naturalistas generalizaram essas etnias “pelo menos em seus traços predominantes aos indi-
1991), p. 236, 1902.
víduos dos subgrupos acima apontados. Von Spix e Von Martius escreveram: “Todos os índios que
chegaram a conhecer aqui (M. G.), das tribus dos Puris, Coropós e Coroados pouco se diferençavam 35 Ibid., p. 237 e 239. Segundo Freireyss , “havia muito tempo que pretendia observar esses selvagens em
entre si na conformação do corpo e nas feições”.REIS, loc. cit. suas condições naturaes e com esse objetivo, deixei a Vila Rica, em 14 de dezembro de 1814”.
33 SPIX, J. B. V.; MARTIUS, K. F. P. V. Viagem pelo Brasil. Tradução: Lúcia Furquim Lahmeyer. Rio de 36 Ibid., p. 239
Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. v. 37 Ibid., p. 350
34 FREIREYSS, Georg Wilhelm. Viagem a várias tribos de selvagens na Capitania de Minas Gerais; 38 MANUSCRITOS de Manuel Martins do Couto Reys, 1785. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Rio de
permanência entre elas, discrição se seus usos e costumes. Tradução de Alberto Lotgren. Revista do Janeiro, 1997. p. 72.

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em seu relato – violência que justificou o conflito que gerou o aldeamento desaparecimento dos índios na região de campo alegre
de São Luis Beltrão em 1788.
Paulo Pereira dos Reis,39 ao comparar vários pesquisadores como Os conflitos entre índios e colonizadores se acentuaram no século XVIII.
Freireyss, Toledo Piza, Alfred Métraux e Paulo Ehrenreich, conclui que a Como afirma Lemos,41 “serra acima”, nas regiões litorâneas já ocupadas
pelos luso-brasileiros, já havia neste período uma grande parte dos índios
origem dos índios puris, coroados e coropós seria ligada aos grupos nati-
mergulhados em um processo de destribalização e caboclismo,42 portanto,
vos que nos primeiros séculos de colonização foram chamados generica-
misturados na sociedade tida como “civilizada” do colonizador português.
mente de “tapuias”, índios do sertão, ou tupis no litoral. Isto ocorreu por-
Desta forma, “o aumento de conflitos ‘serra acima’, revela um choque de
que a diversidade dos índios da colônia portuguesa era reduzida a apenas
fronteira, onde o sertão não é mais um espaço vazio e desconhecido a
dois grupos. Os tapuias eram aqueles desconhecidos para os europeus, com
ser conquistado”.43 Um choque de fronteiras entre diferentes sociedades,
cultura e língua diferentes daquelas etnias que viviam no litoral (os tupis).
uma ligada ao mundo “civilizado” e luso-brasileiro e outra ao sertão dos
Desta forma, tanto os puris, coropós e coroados eram conhecidos no uni-
“índios bravos”. Na história colonial da américa portuguesa, as fronteiras
verso étnico dos primeiros anos de colonização como tapuias. Nesse con-
foram disputadas entre as sociedades indígenas e a sociedade luso-brasi-
texto, Luciana Maghelli, em seu trabalho, conclui:
leira. Tratou-se, portanto, não só de uma fronteira agrícola econômica ou
[...] os Puri, Coroado e Coropó, pertenciam ao tronco lingüístico Macro-Gê comercial, mas também uma fronteira social, estabelecida a partir da dis-
e não ao Tupi. Também conhecidos como ‘Tapuia’, os índios pertencentes ao puta entre culturas com modos diferentes de vida.44
tronco Macro-Gê, sempre foram vistos por colonos e colonizadores como
inimigos, selvagens, destituídos de qualquer traço de humanidade. Ao con-
Os conflitos não cessaram em Campo Alegre no século XVIII. A pre-
trário daqueles pertencentes ao tronco Tupi que, exatamente em razão de sença constante de sociedades indígenas e suas relações com o mundo
terem se aliado mais facilmente aos portugueses, foram muito mais fácil e colonizador podem ser sentidas de diversas formas: “correrias” (conflitos
rapidamente dizimados. Somente o selvagem Tapuia ousara sobreviver em diretos); aldeamento imposto; recuo dos índios para florestas ainda não
pleno século XIX.40
exploradas; invasão e expulsão dos colonos de suas fazendas; etc.45 Além
Observando tanto os autores citados quanto os relatos de viajantes do disso, os inúmeros pedidos de concessão de sesmarias para a região,46 no
século XVIII e XIX, concluímos que os ameríndios que viviam na região do começo do século XVIII, apontam o crescimento dos interesses portugueses
Médio Vale do Paraíba eram nitidamente vistos como diferentes daque- e assinalam a expansão luso-brasileira em direção aos “sertões dos índios
les que viviam no litoral e de origem genérica distinta dos tapuias, sur-
gindo, então, o reconhecimento de diferenças étnicas e contrastes desses 41 LEMOS, 2004, p. 25.
índios de tronco linguístico macro-gê, que passaram a serem reconhecidos 42 Destribalização foi conceituado por Bessa Freire e Márcia Malheiros como “índios urbanos” que
viviam como prestadores de serviços públicos e privados, inclusive na cidade do Rio de Janeiro.
como etnias com identidade cultural própria por parte dos colonizadores FREIRE; MALHEIROS, 2010, p. 13. Sobre o conceito de caboclo, utilizaremos a definição dada por João
luso-brasileiros. Desta forma, mesmo pertencendo ao tronco linguístico Pacheco de Oliveira. Para o antropólogo, o termo “pardo” incluía os mestiços em geral, os índios
foram localizados na categoria de“caboclos” – OLIVEIRA, João Pacheco de. Ensaios em antropologia
macro-gê e habitando a região de Campo Alegre – mesma localidade dos histórica. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1999. p. 138.Vânia Maria Losada Moreira utiliza essa definição
coroados e coropós – os puris possuíam uma identidade cultural e um uni- em seu trabalho intitulado Guerra e paz no Espírito Santo: caboclismo, vadiagem e recrutamento
militar das populações indígenas provinciais (1822-1875). In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA:
verso social diferenciado, fruto das interações com outros grupos étnicos. GUERRAS E ALIANÇAS NA HISTÓRIA DOS ÍNDIOS – PERSPECTIVAS INTERDISCIPLINARES, 23.,
2005, Londrina. Anais... Londrina: Anpuh, 2005. p. 4.
43 LEMOS, 2004, p. 25.
39 REIS, 1979. 44 LEMOS, loc. cit.
40 MAGHELLI, Luciana. Aldeia da pedra: estudo de um aldeamento indígena no Norte Fluminense. 45 Ibid., p. 33.
Dissertação (Mestrado em História Social) – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível 46 ARQUIVO NACIONAL, Fundo Sesmarias, Processos de diversas naturezas referentes a concessão de
Superior, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. p 121-122. terras. Código do Fundo BI, período 1714 a 1888, microfilme nº NA 031-2005.

170 171
brabos” e ao patrimônio dos índios nas terras de São Luis Beltrão. É nesse de redução dos índios levada a cabo pelo projeto do Estado português nos
panorama que se dá a fundação do aldeamento de São Luis Beltrão que, ao tempos do Diretório Pombalino e no período da Viradeira.
mesmo tempo, pretendia “amansar os índios”, tomar posse da terra e efeti- O cerco aos índios puris na freguesia de Campo Alegre também foi
var a presença portuguesa na região. resultado de uma política de estímulos à formação de aldeamentos, ocorrida
Na busca pela posse da terra e a expansão das fronteiras agrícolas, a partir do meado do século XVIII, com o objetivo de diminuir e controlar
Campo Alegre fica praticamente loteada por sesmarias que, com a desculpa os conflitos, reduzir a mobilidade dos índios para favorecer a posse da terra
de serem terras devolutas, foram solicitadas por inúmeras pessoas como pelos colonizadores e garantir a expansão das fronteiras em direção à região
Francisco Manuel da Silva Melo que pleiteou uma sesmaria em 1798, em dos sertões. Assim, em 1835, o aldeamento foi elevado à categoria de freguesia
Rio Negro, na freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Campo Alegre: com o nome de São Vicente Ferrer. Como afirma Manuela Carneiro Cunha,
a política indigenista do século XIX estava muito mais ligada à expropriação
Ilmo Exº. SM.
das terras indígenas do que a sua redução em mão de obra. Desta forma, a
Informe a Sr. Chanceler ouvido por escripto ao Sr Procurador da Câmara. perda progressiva de terras e a diminuição da participação como força de
Diz Francisco Manoel da Silva de Melo, Cap.ª do Regimento de Estrª. desta trabalho na região podem ser dois dos fatores pelos quais ocorreu o desapa-
Praça, q lhe tem possibilidade e força para poder estabelecer uma fazenda de
creações e cultura, e por que tem a certeza q no Distrito de Campo Alegre se
recimento do índio nos documentos oficiais. Essa progressiva invisibilidade
achão terras devolutas no novo caminho que se abril para Minas, nas margens dos índios nesses documentos, não representava que eles tenham desapare-
do rio Negro entre as terras dos índios da Aldeia de São Luis, correndo sua cidos da região, pois continuavam a ser detectados pela população local. Era
medição, pelo Rº acima e pelo Rio abaixo, Rogo a Vs Exª lhe faça a mercé de muito mais uma forma encontrada pelo Estado imperial brasileiro de não
conceder a Sesmarias duas legos de terras completas com os seus respectivos reconhecer as terras dos índios, no caso o antigo aldeamento de São Luis
Sertons. Para Vs Exª seja conceder lhe a dita Sesmaria. E R M.47
Beltrão, a partir do momento em que os puris se tornassem oficialmente
O documento acima, um pedido de sesmaria à sua majestade, foi feito extintos, do que o seu desaparecimento de fato. No entanto, o não registro
por um militar, o que era uma prática comum na época após a realização de dos índios na região nesses documentos demonstrava a diminuição de sua
algum feito em benefício da Coroa. Merece destaque, ainda, o fato de que importância para o projeto de dominação do Império brasileiro em Nossa
as terras solicitadas estavam nas proximidades do aldeamento de São Luis Senhora da Conceição de Campo Alegre da Paraíba Nova, que naquele
Beltrão, o que mostra o avanço das fronteiras agrícolas em direção às áreas momento já tinha sido elevado à categoria de vila com o nome de Vila de
de sertões em Campo Alegre, fato que ocorreu em todas as áreas de “sertões Resende em 1801. Ou seja, se não são mais importantes, não precisam ser
dos índios brabos” da capitania do Rio de Janeiro. mais registrados, o que não significa que tenham desaparecido de todo.
Podemos observar em várias fontes primárias que São Luis Beltrão Ao analisarmos a documentação como cartas entre autoridades, decre-
possuía uma população bastante volátil. A quantidade de nativos neste tos, relatórios de militares e funcionários, requerimentos de sesmarias, a
aldeamento se modificava a cada ano, tanto pelas condições de sobrevivên- partir da década de 30 do século XIX, podemos perceber que os índios puris
cia interna quanto por fatores externo, como o aumento das áreas de ses- passaram a ser citados cada vez menos nos documentos oficiais. À primeira
marias que peticionavam o patrimônio dos índios de São Luis Beltrão. São vista, tal fato significaria um processo de extinção da etnia na região. Um
Luis Beltrão foi a única área destinada aos índios reconhecida da região até documento datado de 1855 classificava que o número de pessoas considera-
a fundação dos aldeamentos de Valença e de Conservatória do Rio Bonito, das indígenas na freguesia era de apenas 43,48 demonstrando sua diminui-
ambos ligados à etnia coroada e também fundados a partir de uma política ção drástica e indicando o desaparecimento das etnias na região. Contudo,
o mesmo documento apresenta esses indígenas misturados à população
47 MELO, Francisco Manoel da Silva. Pedido de sesmarias. Rio de Janeiro: Informativo da Câmara do
Rio, 3 jul. 1798. Notação: BI 15. 144. Códice BI, Microfilme NA 031-2005. 48 [Sem título]. Rio de Janeiro: APERJ, 1855. Fundo PP, notação 0126, maço 7, caixa 0044.

172 173
geral,49 sendo reconhecidos como caboclos, ou pardos já miscigenados. Os Hoje, no distrito de Fumaça, em Resende, onde estão localizados
livros de batismos da matriz de São Vicente Ferrer também reconhecem a antiga Igreja de São Vicente Ferrer e o antigo aldeamento de São Luis
várias pessoas como pardas,50 que, segundo João Maia, seria “pardos pegos Beltrão, alguns habitantes ainda se colocam como descendentes dos antigos
no mato”.51 Foi, portanto, através destes artifícios que criou-se o “paradigma índios puris e chamam de “Aldeias” aquela localidade, o que mostra como
da extinção”, tornando os índios desta região invisíveis nos documentos ainda permanecem vivos na memória popular os significados do aldea-
oficiais52 referentes ao antigo aldeamento de São Luis Beltrão e à região de mento da antiga Nossa Senhora de Campo Alegre da Paraíba Nova.
Campo Alegre da Paraíba Nova.

considerações finais
Baseado em fontes da época, João Maia afirmou que o último puri (ou pelo
menos reconhecido como tal) se chamava Victoriano Bori Santará, por
nome de batismo, e possuía cerca de oitenta anos quando faleceu em 1864. O
conjunto de fontes analisado para esta pesquisa aponta a presença de índios
em Campo Alegre, alguns inclusive na Vila de Resende. Os livros de batis-
mos, por exemplo, demonstram que os índios ainda viviam na região, pois a
palavra “pardo” aparece com frequência, designando um abrupto processo
de miscigenação do índio puri com o homem branco, mas não sua inexis-
tência. Ao contrário, muitas fontes oficiais produzidas pós-1830 induzem a
crer que os índios desapareceram de Campo Alegre, que realmente entram
em processo de extinção, sendo assimilados à sociedade branca, agora
Imperial, perdendo seus traços culturais ou acaboclando-se. Contudo, num
movimento oposto que valoriza a memória e não o esquecimento, devemos
citar as narrativas históricas acerca do aldeamento de São Luis Beltrão, dos
índios puris, feitas por parte da população do sul do Vale do Paraíba, prin-
cipalmente das atuais cidades de Resende, Itatiaia e Porto Real. Muito desta
herança, passada de geração em geração, chega aos nossos dias através dos
nomes puris dado às ruas, praças, clubes e até jornais, onde antigas lendas
puris ainda são contadas no universo folclórico da região.

49 MAIA, 1998, p. 21.


50 LIVRO de batismo da paróquia de Nossa Senhora de Fátima – antiga São Vicente Ferrer. [S.l.: s.n.]:
1884. Livro I, p. 2.
51 Segundo João Maia: “Nos assentamentos de batismos do Vigário Henrique José de Carvalho encon-
tram-se algumas notas de batizados de menores com essa declaração singular: “apanhado no mato”
– o que faz presumir que era de costume irem moradores ao sertão à caça de crianças para sujeitá
-las ao serviço, fazendo muito favor de mandá-los batizar”. MAIA, op. cit., p. 21.
52 MALHEIROS, 2008, p. 3.

174 175
Da colonização do Vale à formação de uma família: lavrador e comerciante, na localidade que surgia de Nossa Senhora do Pilar
do Iguaçu. As suas atividades iniciais no Rio de Janeiro eram de comer-
uma introdução à história dos Werneck ciante, porém há poucas informações sobre a vida deste imigrante, tor-
e suas estratégias matrimoniais nando-se nebuloso tanto conhecer suas origens quanto saber no que traba-
lhava antes de mudar-se para o interior. Após migrar para Pilar do Iguaçu,
Lucas Gesta Palmares Munhoz de Paiva como já possuía escravos, provavelmente se dedicou à produzir alimentos
para as grandes fazendas e o núcleo urbano da cidade do Rio de Janeiro.
As atividades comerciais no Rio de Janeiro e aquelas praticadas em Pilar
do Iguaçu lhes permitiram o contato com a família do sesmeiro português
Manuel de Azevedo Matos, um comerciante e minerador,1 estabelecido na
freguesia de Nossa Senhora da Piedade da Borda do Campo. Manuel Matos
transitava constantemente pelo Caminho Novo e todos os anos descia ao
Este trabalho pretende mostrar a relação entre a colonização do Vale do Rio de Janeiro para “dispor de produtos da mineração e adquirir outros
Paraíba fluminense e o surgimento de um poderoso ramo familiar na para trançá-los por aqueles”.2 Nesse ínterim, conheceu e se casou, em 16 de
região, os Werneck. Através da figura de Ignácio de Souza Werneck, consi- dezembro de 1733, na freguesia da Candelária, com Antônia Ribeira,3 filha
derado o patriarca da família, observamos as relações da Coroa portuguesa de João Berneque, já na condição de fazendeiro. O consórcio veio unir a
com ramos familiares recém chegados à região no início de sua coloniza- riqueza e status oriundos da mineração e do comércio, com a riqueza e
ção. Foram os serviços prestados por alguns de seus indivíduos ao Estado status de uma família produtora agrícola, possuidora de terras e escravos.
português que lhes facilitaram a aquisição de sesmarias, prestígio político, Em meados do século XVIII, Manuel de Azevedo Matos irá se fixar na
social e econômico, ao mesmo tempo em que contribuíam para a funda- região do Vale do Paraíba como fazendeiro e agricultor.4 Segundo perce-
ção do município de Valença e a colonização de diversas regiões vizinhas. bemos na documentação, Manuel Matos ainda estava envolvido nas ati-
Portanto, é possível afirmar que a expansão das fronteiras trouxe o forta-
vidades de mineração, de acordo com um documento em que seu filho,
lecimento social, político e econômico de Ignácio Werneck e sua família.
É objetivo deste artigo demonstrar, através da trajetória do ramo fami-
1 Natural da freguesia de Nossa Senhora da Piedade da Ilha do Pico, veio para o Brasil na primeira
liar Werneck, que Vale, cidade e família cresceram juntos em princípios metade do século XVIII, instalando-se em Nossa Senhora da Piedade da Borda do Campo, para
do século XVIII, através da interdependência com a Coroa. Numa zona de dedicar-se à mineração.
João Fragoso também comenta a figura de Manoel de Azevedo Matos, como comerciante que con-
fronteira agrícola aberta, o caráter prematuro de chegada à região foi deci- verteu sua acumulação mercantil em fazendas escravistas. Ver: FRAGOSO, João. Homens de grossa
sivo para a consecução de grande poder familiar. Desta forma, analisare- ventura: acumulação mercantil e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
mos, ainda, como a teia social formada através de casamentos endogâmicos Arquivo Nacional, 1992. p. 365.
2 WERNECK, André Peixoto de Lacerda. [Sem Título]. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 21 nov.
e exogâmicos com as famílias ricas da região propiciaram riqueza, prestígio 1909. Biblioteca Nacional — Sessão de periódicos.
social e domínio político para os Werneck até o fim do século XIX, período 3 Filha de Izabel de Souza (esposa de João Berneque) e neta de Francisco Gomes Ribeiro. Daí a
de desestruturação socioeconômica da região. origem do ramo Souza Werneck e a ligação inicial dos Werneck com os Ribeiro de Avellar, onde as
duas famílias são reconhecidas por participar da fundação dos municípios de Valença e Vassouras.
Francisco Gomes Ribeiro foi um próspero comerciante, provedor da Santa Casa de Misericórdia
os primeiros tempos no Rio de Janeiro e manteve sólidas ligações com o governador da capitania do Rio, Salvador de Sá.
Patriarca da família Ribeiro de Avellar, ganhou a sesmaria que deu origem à fazenda Manga Larga,
O iniciador da família Werneck no Brasil foi o imigrante Johann Werneck, ao lado da sesmaria do Pau Grande, que também passou a ser propriedade de seus descendentes.
4 Ele se fixa inicialmente na freguesia de Nossa Senhora da Conceição, São Pedro e São Paulo da Paraíba,
que teve seu nome naturalizado para João Berneque. Após assentar Praça um antigo pouso de tropas no Caminho Novo. Fonte: SILVA, Eduardo. Barões e escravidão: três gera-
no Rio de Janeiro, migrou para o interior em 1711, se estabelecendo como ções de fazendeiros e a crise da estrutura escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 50.

176 177
Ignácio Werneck, recebe uma sesmaria na região de Ouro Preto em 1759;5 ou agrícola que poderia ser vendida aos tropeiros.10 Manuel de Azevedo Matos
seja, exercia as atividades de produtor rural, minerador e comerciante con- abrira a Estrada do Azevedo, de seu próprio nome, que saía da sede de sua
comitantemente. Poucos anos depois, ele construiu sua principal moradia e fazenda ligando-se ao Caminho Novo e, mais tarde, foi responsável por sua
deu continuidade à empresa agrícola na freguesia de Paty do Alferes,6 dedi- manutenção, como era comum aos proprietários mais abastados. A acu-
cando-se à produção de mercadorias demandadas no mercado próximo à mulação de terras em suas mãos, durante a fase inicial de colonização do
cidade do Rio de Janeiro. Para tanto, funda a fazenda de Nossa Senhora Vale, se deu também pela falta de limites e fronteiras que designassem o real
da Piedade,7 à margem esquerda do rio Sant’Anna, adquirindo as sesma- tamanho das terras.
rias e terras denominadas “sesmaria do padre Werneck”, sesmaria do Saco Outro fato importante a se destacar é que, em 1769, Manuel Matos pos-
e as terras de Monsores.8 Essa concessão de muitas sesmarias nas mãos de suía cerca de 50 escravos.11 Esta era uma grande quantidade de cativos para
poucos proprietários era uma estratégia do governo colonial, que concen- a época, considerando-se também que ele estava em um período de forma-
trando terras nas mãos de homens ligados diretamente à política colonial ção da sua empresa agrícola na região.
buscava expandir o ideal de civilização e o controle do estado. A partir de Assim, as famílias Werneck e Azevedo Matos possuíam situação econô-
cada fazenda, um novo núcleo de expansão colonial e povoamento surgia: mica privilegiada. Tanto João Berneque quanto Manuel de Azevedo Matos
eram prósperos comerciantes (sendo este último também minerador) e
Cercadas pela floresta que avançava por todos os lados, em contato com o
mundo apenas quando viajantes paravam para pernoitar, as primeiras fazen- detinham o status social de donos de terras e escravos. Vemos, então, a for-
das não eram apenas estações secundárias cercadas por minúsculas roças típi- mação de um poderio econômico, político e social através da junção fami-
cas dos anos anteriores a 1800. Eram núcleos de povoamento [grifo nosso].9 liar entre estes dois imigrantes, no Brasil do século XVIII. Porém, somente
com o segundo filho do matrimônio entre Manuel de Azevedo Matos e
Além disso, a concessão de sesmarias foi importante para a abertura da
Antônia Ribeira, filha de João Berneque – Ignácio de Souza Werneck –,
fronteira agrícola da região. Entre as solicitações de sesmarias havia aque-
o sobrenome Werneck ascenderá em todo o Vale do Paraíba, sendo reco-
les que as recebiam por terem ajudado a abrir uma estrada, estação ou a
nhecido como uma linhagem rica e poderosa, formada por cafeicultores e
manutenção das mesmas, ou aqueles que recebiam a concessão de maneira
escravistas, estreitamente ligados ao Estado.
que a Coroa os obrigava a um serviço que a beneficiasse, como a produção

ignácio de sousa werneck


5 RAMOS, Belisario Vieira. O Livro da família Werneck: 1742-1879. Rio de Janeiro: Companhia. e a consolidação do poderio familiar
Carioca das Artes Gráficas, 1941. p. 1.
6 Localizava-se no Vale do Sant’Anna, num antigo pouso de tropas ao longo do Caminho Novo, o qual O capitão Ignácio de Souza Werneck nasceu em 25 de julho de 1742, na
deveria chamar-lhe atenção em suas anuais viagens pelo tal caminho. Com sua esposa Francisca e freguesia de Nossa Senhora da Piedade da Borda do Campo (Barbacena,
seus filhos Ana e Ignácio, levanta sua primeira moradia na margem direita do rio Sant’Anna pro-
vavelmente em 1771. Fonte: PONDÉ, F. P. A. A fazenda do barão de Pati do Alferes. In: INSTITUTO Minas Gerais), segundo filho do açoriano Manuel de Azevedo Mattos e
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO. Anais do Congresso de História do Segundo Reinado. Rio Antônia Ribeira; recebeu os sobrenomes dos avós maternos (pois não era
de Janeiro, 1975. p. 85.
o primogênito) como costume da época. Aos 11 anos, Ignácio Werneck foi
7 Por volta de 1780, Manuel mudara-se para outro ponto da margem do rio Sant’Anna, fundando ali
seu estabelecimento de aguardente, denominado de Piedade. Fonte: PONDÉ, op. cit., p. 89. levado ao Rio de Janeiro, hospedando-se na casa do seu tio padre Campelle.
8 SILVA, 1984. p. 50. Foi iniciado nos estudos no internato do Seminário São José e, nas suas
Ao falecer em 1788, um pouco antes de completar 90 anos, deixou em partilha a sesmaria que saídas semanais, hospedava-se na casa e aos cuidados do correspondente
englobava a Piedade e terras em volta, chamada de “sesmaria do padre Werneck”, para seu filho
Ignácio; a Manuel de Azevedo Ramos deixou a sesmaria do Saco; e a Ana de Jesus a sesmaria dos de seu pai, o ajudante de milícias Francisco das Chagas Monteiro. Francisco
Monçores. Fonte: PONDÉ, op. cit., p. 90.
9 STEIN, J. Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova 10 Ibid., p. 35.
Fronteira, 1990. p. 47. 11 WERNECK, A.,1909.

178 179
era comissário e investidor de Manuel de Azevedo Matos e um homem prejuízos e causando depredações e o vice-rei ordenou que Ignácio tomasse
considerado na praça comercial do Rio de Janeiro. Ignácio Werneck passou conhecimento daquela região e dos lugares onde poderia se edificar algum
grande parte da sua infância e adolescência na casa deste homem e se casou posto de guarda que: “embaraçasse aqueles selvagens” e “procurasse pacifi-
com sua filha, Francisca Laureana das Chagas Monteiro, em 26 de setembro car os espíritos dos moradores”.15
de 1769, o que o levou a abandonar o seminário. Os três primeiros filhos Por proposta do senado da Câmara, em 11 de outubro de 1788, Ignácio
do casal foram batizados na freguesia da Sé do Rio de Janeiro, sendo que entrava na lista tríplice, junto de seu irmão Manuel de Azevedo Ramos,
os outros nove, na freguesia do Alferes, o que indica que o casal Ignácio então sargento, e José Rodrigues da Cruz (já considerado “homem rico da
Werneck e Francisca Laureana permaneceu algum tempo no Rio de Janeiro cidade”),16 para capitão das ordenanças de Nossa Senhora da Conceição do
até Ignácio se estabelecer como proprietário de terras e escravos, provavel- Alferes, tendo a escolha do vice-rei recaído em seu nome, patente que foi
mente entre janeiro de 1773 (batizado da terceira filha) e setembro de 1774 confirmada em 16 de junho de 1789.17 Vemos aí, tanto Ignácio como seu
(batizando o quarto filho já em Paty do Alferes).12 irmão envolvidos com altos postos militares da colônia. A ascensão militar
Quando seu pai, Manuel de Azevedo Matos, falece em 1788, Ignácio de Ignácio através da prestação de serviços à Coroa foi rápida e, em pouco
recebe por herança a sesmaria conhecida anos depois por “sesmaria do tempo, foi escolhido, diante de três nomes importantes, a assumir o posto
padre Werneck”,13 que englobava terras nos dois lados do Rio Sant’Anna, de capitão das ordenanças daquela vila.
junto da fazenda da Piedade, a principal da família. Casado com a filha de A partir de 1789, D. Luís de Vasconcelos e Souza, vice-rei do Brasil,
um grande e rico comerciante na praça do Rio de Janeiro (que também ordenou que fosse iniciada a catequese de vários indígenas ali aldeados, den-
tornava-se seu investidor na produção da fazenda), estabelecido no Vale tre os quais se destacavam os índios coroados que, a essa época, habitavam o
como fazendeiro possuidor de grandes quantidades de terras, escravista, e território de Valença, numa área compreendida entre os rios Paraíba e Preto.
vizinho de fazendas de homens que geraram famílias importantíssimas na Foram encarregados do serviço de aldeamento Ignácio Werneck, na época
colonização do Vale,14 seu poder começou a consolidar-se. capitão de ordenanças, junto de José Rodrigues da Cruz, na época dono da
Foi na carreira militar que Ignácio Werneck ascendeu em importância fazenda de Ubá e o padre Manoel Gomes Leal. Como cita portaria da época:
perante a Coroa, como um dos homens mais importantes para a coloni-
Tôda a pessoa a quem fôr apresentada prestará o auxilio que lhe requerer o
zação da região do Vale do Paraíba fluminense. Ele irá mapear, explorar e Cap. das Ordenanças lgnácio de Souza Werneck para a Aldeiação dos Índios
encontrar postos estratégicos para o estabelecimento de milícias reais na Coroados, que por Ordem Régia se mandou estabelecer nas margens superio-
região, bem como será um dos nomes cruciais para a fundação do muni- res do rio Paraíba. Rio, 2 de Abril de 1802. Com a rubrica de S. Ex.18
cípio de Valença. À época de seu casamento, já era furriel da Fortaleza
do Leme, tendo ingressado na carreira militar devido a perturbações de A partir de então, os colonizadores começaram a obra de catequese
ordem política que levaram o vice-rei do Brasil a organizar forças milita- através da figura do padre Manoel Gomes Leal. Uma das primeiras provi-
res auxiliares, entre as quais um batalhão de estudantes no qual se alistou. dências foi a construção de uma capela no principal aldeamento dos coroa-
Poucos anos depois de se estabelecer no Vale, já era alferes das ordenanças dos, onde se originou a povoação. A capela foi dedicada a Nossa Senhora da
da freguesia de N. S. da Conceição de Alferes. Em 3 de outubro de 1768, foi Glória de Valença, em homenagem ao vice-rei conde de Resende, que era
encarregado de diligências no distrito da Sacra Família e em outros circun- 15 ARQUIVO NACIONAL. Rio de Janeiro, [18--]. Fundo da Família Werneck. Microfilme 003_91.
vizinhos. Segundo a documentação, os índios da região estavam trazendo Notação 2.1.
16 Citação de André Peixoto de Lacerda Werneck retirado, segundo ele, do Arquivo Público, caixa 573.
12 SILVA, 1984. p 52. Fonte: ARQUIVO NACIONAL, loc. cit.
13 A seu irmão Manoel de Azevedo Ramos coube a sesmaria do Saco, e à sua irmã, Ana de Jesus, a dos 17 Citação de André Peixoto de Lacerda Werneck retirado, segundo ele, do Arquivo Público,
Monçores. Fonte: PONDÉ, 1975, p. 90. Ordenanças do Reinado, v. 80, p. 115. Fonte: ARQUIVO NACIONAL, loc. cit.
14 A fazenda da Piedade fazia divisa com a de Manuel Peixoto, com a fazenda Pau Grande, de 18 ARQUIVO PÚBLICO: Portarias do vice-reinado, v. 27. apud IÓRIO, Leoni. Valença de ontem e de
Francisco e Manuel Ribeiro, bem como as de seu irmão e irmã. hoje. Valença: [s.n.], 1953. p. 21.

180 181
descendente da tradicional família portuguesa dos marqueses de Valença. Estes eram trabalhos preparatórios para a abertura posterior da Estrada do
O interessante é que os três pertencem a um mesmo tronco familiar: Comércio, importantíssima para o escoamento do café, ligando o rio Preto,
Manoel Gomes Leal, parente por parte de seu irmão Manoel de Azevedo na fronteira com Minas, ao porto de Iguaçu. Numa época de escassez de
Ramos, e José Rodrigues da Cruz, do ramo Ribeiro de Avellar.19 Ordenou D. recursos técnicos, de mão de obra especializada, de conhecimento de campo
Fernando José, de Portugal, então vice-rei, em carta de 20 de novembro de e região, a experiência com a exploração e abertura de caminhos torna aquele
1801, que Ignácio Werneck “prestasse todo auxílio a esse serviço, desse prin- que o possui valioso aos olhos da administração colonial.
cípio e abertura de caminhos e facilitasse o suprimento de gêneros [...]”.20 Outro fato significativo para a conquista de postos por Ignácio Werneck
Tais documentações mostram uma eficiência e presteza em Ignácio que é que o mesmo sabia ler e escrever, diferente da maioria dos fazendeiros de
lhe favorecia a ser escolhido para os serviços da Coroa, como, por exem- sua época,24 o que lhe agregava mais valor no momento em que precisava-se
plo, a ordem verbal do vice-rei marquês de Lavradio que o encarregou de criar mapas e relatórios sobre a situação da região. Outros postos importan-
informar sesmarias, declarando este ter “despachado muitas com clareza e tes serão recebidos por Ignácio Werneck ao longo de sua vida: supervisor
precisão”.21 Assim, se envolverá diretamente na exploração do território, ao das contas que José Rodrigues da Cruz tinha de apresentar à Real Junta da
mapeá-lo e conhecê-lo, bem como abrindo os caminhos necessários a sua Fazenda de três em três meses e responsável pela fixação de editais que obri-
colonização. A 9 de março de 1808, apresentou um relatório acompanhado gassem os sesmeiros a cultivar as suas terras dentro, também, do prazo três
de mapa feito à pena, do sertão entre os rios Preto e Paraíba, detalhando meses, sob pena de comisso.25 Mais tarde, o vice-rei, em carta ao capitão-
todo o território, descrevendo os seus caminhos e opinando sobre locais mor e outra de igual teor ao sargento-mor de Macaé, tratava da cobrança
para estabelecimento de guardas. do Imposto Real para o Hospital dos Lázaros e, em virtude de reclamação
Como se vê, este homem participou intensamente na colonização e na do intendente geral do Ouro acerca do relaxamento que os comandantes
produção de dados para a exploração deste território em seu serviço para dos Distritos davam às suas obrigações – não prestando contas –, mandava
a Coroa. A experiência com abertura de caminhos e exploração de novos elogiar a Werneck e a Antônio Luiz dos Santos (comandante do Distrito de
territórios poderia ter sido recebida de seu pai, o qual abriu o Caminho do Sacra Família), seu genro, pela maneira com que, nesse assunto, se tinham
Azevedo, como citado antes aqui. Era pelo “Caminho da Aldêa”, aberto por distinguido dos demais.26 Com o falecimento de José Rodrigues da Cruz,
Ignácio Werneck, que se fazia ligação do sertão de Valença com a aldeia dos ficou Ignácio Werneck encarregado do serviço que este prestava à Coroa, o
Araris, em Rio Bonito (atual Conservatória), através do rio das Flores, e, que fez com “combatente gênio, prudência e filantropia”.27 Tal confiança da
por outro lado, punha-se em contato com a Estrada Geral para Minas, e os Coroa depositada nos serviços e no nome de Ignácio Werneck será retra-
caminhos auxiliares do Pilar, do Azevedo e do Tinguá (freguesia de Sacra tada no fato de que, na ocasião da chegada do príncipe regente D. João,
Família do Tinguá).22 Mais tarde esse “Caminho da Aldêa” será denominado estava Werneck encarregado dos seguintes serviços: prender os desertores
de “Estrada Real do Werneck”, ou “Estrada do Verneck”, sendo conservada e ladrões; civilização dos índios e povoadores do sertão entre os rios Preto
como umas das principais da província, a primeira estrada de chão batido e Paraíba; da construção de uma ponte no Rio Utum; do conserto e con-
que ligara Iguaçu ao sertão, onde mais tarde iria nascer a cidade de Valença.23 servação dos caminhos do Couto e do Azevedo (aberto por seu pai como
vimos); do aterro e ponte do Rio Marambaia (encarregado disto em 11 de
19 Como vimos, José Rodrigues da Cruz é irmão de Antônio Ribeiro de Avellar e recebeu as sesmarias
de Ubá por serviços prestados à Coroa. À época já era dono da fazenda denominada Pau Grande.
20 ARQUIVO NACIONAL. Fundo da Família Werneck. Microfilme 003_91. Notação 2.1. 24 STEIN, 1990, p. 49.
21 Citação de André Peixoto de Lacerda Werneck retirado, segundo ele, do Arquivo do Distrito 25 ARQUIVO NACIONAL, loc. cit.
Federal – Sesmarias fora da cidade. Fonte: ARQUIVO NACIONAL, loc. cit. 26 Citação de André Peixoto de Lacerda Werneck retirado, segundo ele, do Arquivo Público nas
22 IÓRIO, 1953, p. 18. Portarias do vice-reinado, v. 28. Fonte: ARQUIVO NACIONAL, loc. cit.
23 Citação de André Peixoto de Lacerda Werneck retirado, segundo ele, dos Relatórios dos Presidentes do Rio 27 Citação de André Peixoto de Lacerda Werneck retirado, segundo ele, do Arquivo Público, reparti-
(1840-1850). Fonte: ARQUIVO NACIONAL. Fundo da Família Werneck. Microfilme 003_91. Notação 9.12. ção do juiz das sesmarias Herculano, caixa 26. ARQUIVO NACIONAL, loc. cit.

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agosto de 1802). Ignácio Werneck, já com certa idade, irá pedir demissão poderosos e ricos fazendeiros que o cercavam, nenhum possuía qualidade
desses encargos a El-Rei, e mesmo assim não será atendido.28 A esta época, e vínculos com a Coroa suficientes a ponto de substituí-lo em suas fun-
Ignácio, através da sua relação com a Coroa, domínio e conhecimento do ções. Logo vemos que após sua morte, o poder local continuará no seio de
território, já havia alcançado uma posição de comando regional de extrema sua família, pois seu filho Francisco das Chagas Werneck o substituirá no
importância para a administração e colonização da região, daí a recusa da comando dos distritos de Nossa Senhora da Conceição do Alferes, ficando
Coroa em que deixasse seus serviços; não havia ali um substituto, dado o encarregado dos mesmos serviços de seu pai, como a conservação das
poder e conhecimento enraizados em sua pessoa durante tantos anos de estradas do Werneck e do Azevedo, e da “civilização” dos índios do sertão
serviço e estabelecimento de seu domínio. entre os rios Preto e Paraíba.32
Outro fato que mostra o status do capitão Werneck na região foi o epi- Dois anos após sua reforma, em 11 de outubro de 1811, Ignácio Werneck
sódio no qual defendeu o aldeamento de índios, para que não houvesse ficou viúvo com doze filhos vivos e resolveu dedicar-se à vida eclesiástica
o apresamento destes por parte da Coroa. Tendo o governo do príncipe ordenando-se padre. Aproveitando seus antigos estudos eclesiásticos e,
regente mandado prender índios em Valença para a Armada Nacional, obtida a licença e a demissão do posto de sargento-mor reformado das orde-
Werneck opôs-se veementemente nanças da Corte em 13 de dezembro de 1813, recebeu a prima tonsura e as
ordens menores a 18; subdiaconato a 19 do mesmo mês e ano; diaconato a 23; e
[...] em documento de uma energia e elevação, que assombram, e protestando
pela volta dos recrutas dizia que se não voltassem desaparecerá todo o serviço, o presbiterato a 30 de janeiro de 1814.33 Rezou sua primeira missa neste mês e
que conseguira com grande trabalho fazer em benefício do aldeamento.29 ano, diante da imagem de Nossa Senhora da Piedade, mandada vir da Europa
por seu pai.34 Faleceu a 2 de julho de 1822, aos 80 anos, em sua propriedade,
Tal recrutamento forçado de índios poderia causar uma revolta, tra- deixando todos os seus doze filhos maiores de idade, dando partilha a todos.35
zendo grandes danos e até mesmo o desaparecimento do aldeamento que Pensando este episódio de outra forma, vemos que, além do poder
dera início na região, dificultando a ocupação das terras, inclusive de suas social, econômico e político, agora Ignácio estabelecia também um poder
próprias fazendas e sesmarias. Mesmo com seus protestos e pedidos, a religioso; além de major responsável pela administração dos caminhos,
Coroa não atendeu a Ignácio. Por causa disso, requereu reforma, ascen- fiscalização e cobrança dos impostos, pacificação local, latifundiário rico
dendo ao alto posto de sargento-mor, a 20 de outubro de 1809.30 Vemos na e escravista, agora este se torna um padre, fazendo com que seus filhos,
documentação que “apesar de ter obtido exoneração do cargo que exercia, parentes e agregados exerçam as atividades religiosas dentro de sua própria
não lhe dera governo substituto, ficado exercendo interinamente essas fun- fazenda e diante de sua própria pessoa. Um fato a se destacar aqui é que,
ções, mas já sem aquela dedicação de outrora”.31 depois de 1780, ao iniciar suas lavouras, mandou vir para sua companhia
Isso nos leva a indagar sobre a importância deste homem para a Coroa diversas famílias mineiras que o auxiliaram no cultivo e formação de enge-
naquele território e naquele momento, e o quanto isto permitirá que seus nhos de aguardente, dando terras a todas.36 Estas serão suas dependentes
descendentes prosperem no futuro. Também podemos pensar quais as diretas. Além dos índios que aldeou e acabaram por se tornarem seus ser-
liberdades de atuação naquele lugar, e de expansão de seu poder social, viçais (dos quais apadrinhou muitos),37 e dos cativos que possuía herdados
desfrutadas por alguém que está, de certa forma, acima da lei e das regras
dada sua crucial função para a administração colonial. Diante de todos os 32 Nomeado pelo príncipe regente a 29 de março de 1814. Fonte: SILVA, 1984. p. 54.
28 ARQUIVO NACIONAL. Fundo da Família Werneck. Microfilme 003_91. Notação 9.12. 33 Ibid., p. 53.
29 ARQUIVO NACIONAL, loc. cit. 34 PONDÉ, 1975, p. 93.
30 Citação de André Peixoto de Lacerda Werneck retirado, segundo ele, do Arquivo Público – 35 RAMOS, 1941, p. 1.
Regimento Geral das mercês, liv. 8, p. 44-v; e do Arquivo do Ministério da Guerra, Patentes do 36 PONDÉ, 1975, p. 91.
Exército do Brasil, v. 19, p. 174. Fonte: ARQUIVO NACIONAL, loc. cit. 37 “Há no arquivo da Catedral de Valença, o primeiro livro de registro de batizados, datado de 1809,
31 ARQUIVO NACIONAL, loc. cit. no qual se constata que, nesse mesmo ano, foram batizadas 59 pessoas, dentre as quais 42 índios,

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de seu pai e adquiridos posteriormente, diversos dependentes brancos de Os casos aqui citados não esgotam os exemplos das famílias que foram pio-
famílias livres com algum cabedal econômico somaram-se às centenas de neiras na ocupação das terras do Vale do Paraíba fluminense e que conquista-
ram destaque político, econômico e social nas localidades onde constituíram
agregados ao seu poder familiar. Que tamanha herança material e imaterial
fazendas. Além da primazia na ocupação de terras numa área de fronteira
este homem legara à sua família! agrícola aberta, essas famílias tinham em comum um passado de migração
Seus filhos não receberam somente as terras das diversas fazendas e portuguesa relativamente recente, além de serviços prestados à Coroa, o que
sesmarias que Ignácio herdou ou foi agraciado em serviços à Corte; eles facilitou a aquisição de prestígio e a ocupação de cargos políticos e adminis-
herdaram também o sobrenome, o cabedal político, social e econômico, trativos nas localidades onde se fixaram. Chama a atenção também o fato de
que muitas das fortunas constituídas no rastro do café possuíam um capital
o status elevado que seu pai atingiu; herdaram as redes de dependência
previamente acumulado em outros setores bastante rentáveis como a mine-
e compadrio, as redes de sociabilidade com a Coroa e com outras gran- ração, o comércio de grosso trato e o tráfico de escravos, conforme vimos
des famílias. Essa é uma herança imaterial que permite a perpetuação do nos exemplos familiares explicitados. Em alguns casos, essas atividades foram
poder social, político e econômico pela sua família. A historiadora Mariana exercidas concomitantemente com o cultivo da lavoura para exportação [...]
Muaze, em tese de doutorado, analisando a família Ribeiro de Avellar e sua Fosse pelo recebimento de sesmarias, fosse pela posse de terras, a aquisição de
vastas propriedades era facilitada àqueles (indivíduos ou famílias) que pos-
junção com os Velho da Silva, diz que o “[...] prestígio e poder vigoravam
suíam uma posição econômica e/ou social de destaque, reiterando assim a
como uma herança imaterial que era repassada aos herdeiros, mantê-la para lógica social hierárquica vigente.40
as próximas gerações, assim como a fortuna eram os grandes desafios”.38
Mostramos a relação entre Ignácio Werneck e a colonização de Valença, O poder regional do padre Werneck estava consolidado. A construção
pois as famílias pioneiras na colonização do Vale foram também aquelas que desse poder, como vimos, relaciona-se com a formação do município de
conseguiram prematuramente um número grande de sesmarias e, assim, Valença e, como veremos adiante, com o crescimento e consolidação polí-
foram acumulando terras, numa zona de fronteira agrícola aberta, obtendo tica de diversos outros municípios no Vale do Paraíba, através da ascensão
grande poder regional. O caráter pré-maturo de chegada à região foi deci- social de seus filhos, netos e bisnetos. Sua família agora colonizará todo o
sivo para a consecução de grande influência política, econômica e social: Vale, participando da fundação de municípios e fazendo destes lócus de
atuação e conformação do seu poder. Mas, para que esse domínio conti-
O resultado de tal dinâmica histórica foi uma enorme concentração de terras, nue, é necessário desenvolver estratégias para que seu patrimônio não se
escravos, poder político-militar e prestígio social nas mãos das poucas famílias
disperse, bem como seu status político e social não se acabe. Para tanto,
que conseguiram receber seu quinhão até as primeiras décadas do século XIX.39
as estratégias matrimoniais serão fundamentais para perpetuar o poder da
Quando a colonização se der efetivamente na segunda metade do família Werneck na região, bem como expandi-lo e dinamizá-lo.
século XIX e o Vale se transformar numa área de fronteira agrícola fechada, Ao falecer, o padre Werneck incluiu seus doze filhos vivos na partilha
essas famílias já serão grandes latifundiárias, o que potencializa seu poder dos seus bens. Sua fortuna foi suficiente para legar uma considerável quanti-
e domínio. A historiadora Mariana Muaze confirma nossa pesquisa em dade de bens para cada um e seu tempo de vida o possibilitou planejar cui-
artigo sobre o Vale do Paraíba e sua formação histórica: dadosamente o casamento de todos os filhos. Porém, traçar a trajetória desta
herança de uma forma que não se dispersasse mas que pudesse ser ampliada,
servindo de padrinhos, a muitos deles, o finado capitão Ignácio de Souza Werneck e Ana Joaquina,
demandava certo cuidado com os casamentos de seus filhos. Como habitava
irmã do padre Gomes Leal”. Fonte: IÓRIO, 1953, p. 55. uma região de exploração recente, casar seus herdeiros com famílias que
38 MUAZE, M. A. F. O Império do retrato: família, riqueza e representação social no Brasil oitocen- tivessem posses inferiores às suas ou oriundas de um status social inferior
tista (1840-1889). 2006. 402 f. Tese (Doutorado em História Moderna e Contemporânea) – Centro
de Estudos Gerais, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense,
seria algo a ser evitado; todavia, encontrar boas famílias para realizar esses
Niterói, 2006. p. 367-368. casamentos também era algo difícil, pois ainda eram raras as famílias ricas e
39 Id. O Vale do Paraíba fluminense e a dinâmica imperial: inventário das fazendas do Vale do Paraíba
fluminense – fase III. Rio de Janeiro: Instituto Estadual do Patrimônio Cultural, 2010. p. 303. 40 Ibid., p. 314.

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com filhos dispostos no “mercado matrimonial” naquela região de explora- Com os Werneck não será diferente: Ignácio formara uma grande rede
ção recente. Outro agravante no seu caso era o grande número de filhos, que de poder constituída por parentes, agregados livres e escravos, e entre os
o levava a repartir suas posses e terras em inúmeras partes. fazendeiros da região. Logo, a família cria todo um poder e espaço social na
As alianças familiares que Ignácio Werneck iria formar seriam cru- região que possibilite sua permanência na mesma e expansão de seu pode-
ciais para a continuação do poder e patrimônio de sua família. Logo, as rio; a partir da família e para a família, serão estabelecidos os primeiros
estratégias matrimoniais eram uma das principais formas de sobrevivên- espaços de poder e sociabilidade da região.
cia desenvolvida por este clã. Quando discorremos sobre a manutenção do
patrimônio e as estratégias referentes à ampliação, expansão e permanên- estratégias matrimoniais e
cia do poder político-econômico, os planejamentos matrimoniais talvez ampliação das redes de poder e influência
se conservem como as mais bem-sucedidas ações nesse intuito, de todas
É possível traçar características em comum nas uniões matrimoniais de seus
as gerações da família no século XIX: não haverá “erros” nas estratégias de
filhos e filhas. As cinco filhas que se casaram, uniram-se em matrimônio com
casamento dos Werneck. Como cita Luciano Figueiredo:
homens filhos de capitães portugueses, e dos cinco cônjuges, quatro exerce-
Nas regiões de fronteira, a família de elite não era apenas uma unidade de ram altos postos militares (sobretudo após a criação da Guarda Nacional).44
grupo, mas sim um verdadeiro núcleo de afirmação social e, sobretudo, de Dos quatro filhos casados, três de suas mulheres eram filhas de capitães
manutenção de posições e privilégios. As grandes famílias traçavam cuida-
dosamente os planos do casamento dos filhos, a distribuição da herança e a portugueses e uma neta de capitão português.45 Esse aspecto de “militari-
migração dos membros. [...] Modelo altamente concentrador da riqueza, as zação” ou preferência por pretendentes envolvidos com cargos militares
famílias evitavam por todos os meios dispersar o patrimônio, concentrando a pode ser explicado pela própria condição de Ignácio Werneck, o qual passou
herança no descendente que cuidaria, como representante de sua geração, dos por diversos postos militares, reformando-se como major das ordenanças
negócios e interesses familiares.41 naquela região. Estava casando seus filhos com pessoas da mesma condição
Mônica Ribeiro discorre, em seu estudo, sobre a expansão, caracteriza- social, demonstrando certo corporativismo na escolha matrimonial. Além
ção e montagem do sistema agrário da Zona da Mata mineira e afirma que, disso, todos pretendentes, tanto homens quanto mulheres, ou eram fazen-
com a chegada de colonizadores em regiões de fronteira agrícola aberta, deiros possuidores de grandes quantidades de terras ou filhas de sesmeiros
forma-se um tecido social composto por famílias que buscavam através de na região. Isso era primordial para manter e expandir o patrimônio da famí-
redes de matrimônio e compadrio, estratégias para a manutenção do poder lia Werneck, juntando grandes porções de terras, potencializando o poder
e ascensão social, almejando o status de grandes proprietárias de terras e na região com latifúndios diversos pertencentes à mesma família; também
escravos. Constitui-se uma grande rede de alianças, através de retribuição mostra ser um aspecto de manutenção do status, pois todos são grandes pos-
de privilégios recebidos, estratégias socioeconômicas que visam à preser- suidores de terras e escravos, um casamento entre iguais.
vação do patrimônio fundiário e sua ampliação, práticas endogâmicas de
matrimônio e “um mercado de terras influenciado pelo jogo das relações 44 A 1° filha de Ignácio Werneck, Maria do Carmo Werneck, casou-se com o tenente-coronel José
interpessoais”.42 Daí sua análise ser centrada “não nos grupos e sim, nas Pinheiro de Souza. A 3° filha, Luiza Maria Angélica, casou-se com o capitão Antônio Luiz dos
Santos. A 4° filha, Anna Mathilde Werneck, casou-se com o sargento-mor Francisco Peixoto de
relações interfamiliares, a partir das escolhas e atitudes de alguns indiví- Lacerda. A 7° filha, Isabel Maria da Visitação, casou-se com o capitão João Pinheiro de Souza. A 11°
duos mais proeminentes percebidas em diferentes escalas [...]”.43 filha, Joaquina Theodora de Jesus, casou-se com João José Alves, nascido no Paty do Alferes, filho
do capitão Francisco José Alves.
45 Manoel de Azevedo Matos casou-se com Rosa Maria dos Santos, filha do capitão José Luís dos
41 FIGUEIREDO, Luciano. Mulher e família na América portuguesa. São Paulo: Atual, 2004. p. 61.
Santos. Francisco das Chagas Werneck casou-se com Anna Joaquina de São José, filha do capitão
42 OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Negócios de família: mercado, terra e poder na formação da cafeicul- Francisco José Alves. Ignácio das Chagas Werneck casou-se com a filha do tenente-coronel José
tura mineira – 1780-1870. Bauru: Edusc; Juiz de Fora: Funalfa, 2005. p. 20-23. Pinheiro de Souza, e neta do capitão português de mesmo nome. Esta última, após viúva, contraiu
43 Ibid., p. 22. segundas núpcias com José de Souza Werneck, último filho de Ignácio de Souza Werneck.

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Daqueles doze filhos, apenas três filhas morreram solteiras, pois como socioeconômicas de manutenção do status familiar. Dos nove casamentos,
vimos, além de ser difícil encontrar tantos pretendentes numa região de três se deram com dois filhos e uma neta do capitão português José Pinheiro
exploração recente, casar suas filhas com pessoas de um status social infe- de Souza, vindo do Porto, que se casou com D. Paula Pereira Monteiro, nas-
rior ou que não oferecessem uma segurança para o futuro patrimonial e cida em Pilar do Iguaçu. Já o segundo e o terceiro casamento dos filhos de
social da família não era aceitável. Era preferível mantê-las solteiras, não Ignácio Werneck dá-se com os filhos do Capitão português José Luis dos
repartindo mais as terras e o patrimônio familiar, ainda que as tais tivessem Santos, vindo do Porto, casado com D. Inácia Maria do Rosário, nascida em
parte na divisão dos bens.46 Piedade da Borda do Campo, Minas Gerais. Os demais casamentos são com
A rede de sociabilidade matrimonial foi construída, sobretudo entre filhos do capitão Francisco José Alves, nascido em Braga, e casado com D.
portugueses, pois dos nove casamentos, um pretendente era português Ana Maria de Jesus, nascida em Paty do Alferes; e com Francisco Peixoto de
e todos os outros eram filhos ou filhas de pais portugueses, casados com Lacerda, erradicado também em Paty. Ou seja, o pai de Ignácio Werneck,
mulheres brasileiras (oriundas de Pilar do Iguaçu, Paty do Alferes e Piedade Manuel de Azevedo Matos, era comerciante e minerador em Piedade da
da Borda do Campo). Tais portugueses eram, em sua maioria, originários Borda do Campo e, nas suas viagens ao Rio de Janeiro, passava exatamente por
do Porto e dos Açores.47 Isto nos leva à hipótese de uma rede de sociabili- Pilar do Iguaçu, para também comercializar produtos, sendo intermediário
dade entre essas famílias, que já se estendia desde Portugal, pois o pai de comercial de muitas famílias de proprietários rurais tanto em Minas quanto
Ignácio Werneck, Manuel de Azevedo Matos, era açoriano também. nas propriedades ao longo do Caminho Novo. Assim, Ignácio Werneck
Ao analisar cada casamento, podemos também traçar a trajetória herdara a sociabilidade construída pelo seu pai com a família Santos, em
do pai de Ignácio Werneck na colônia, e desvendar algumas estratégias Piedade da Borda do Campo, e também a sociabilidade com a rica família
Pinheiro de Souza em Pilar do Iguaçu, local este onde Manuel Matos tam-
46 Uma de suas filhas solteiras, Francisca Laureana das Chagas, engravidou de seu cunhado Francisco bém conheceu seu sogro, João Berneque, e casou-se. Os demais casamentos
Peixoto de Lacerda, enquanto o mesmo ainda era casado. O filho ilegítimo nunca foi reconhecido acontecem exatamente em Paty do Alferes, freguesia onde Ignácio Werneck
pelo pai, mas foi acolhido pela família, chegando a se tornar uma figura pública em Vassouras
exercendo os cargos de juiz de paz e vereador. A historiadora Mariana Muaze trabalhou com este
finalmente se estabeleceu como rico proprietário rural e escravista.
caso em sua tese de doutorado. Cf. MUAZE, 2006, p. 149-151. Opinião diversa sobre o caso tem a São décadas de redes de sociabilidades construídas por Manuel de
historiadora Sandra Lauderdale. Cf: GRAHAM, Sandra L. Caetana Says No: women’s stories from a Azevedo Matos, que serão transmitidas à Ignácio Werneck, seu filho, coin-
Brazilian slave society. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
47 Maria do Carmo Werneck, a 1° filha de Ignácio Werneck, casou-se com o tenente-coronel José
cidindo no casamento de seus netos – uma herança imaterial riquíssima
Pinheiro de Souza, filho do capitão português José Pinheiro de Souza, nascido em Unhão, passada através das gerações; todos estes casamentos se dão entre famílias
Felgueiras, Porto e de D. Paula Pereira Monteiro, nascida em Pilar do Iguaçú. Luiza Maria Angélica, de portugueses vindos recentemente para o Brasil, estabelecidos como pro-
terceira filha de Ignácio Werneck, casa-se com o capitão Antônio Luiz dos Santos, filho do capitão
português José Luis dos Santos, nascido em Guifões (concelho de Bolsas, Porto), capitão e sesmeiro prietários rurais, lavradores e comerciantes, que se casam com mulheres
e de D. Inácia Maria do Rosário, nascida em Piedade da Borda do Campo, Mariana, MG. Manoel brasileiras.48 É um padrão muito semelhante, ou sintoma, das estratégias
de Azevedo Mattos, quarto filho, casa-se com Rosa Maria dos Santos, filha de José Luis dos Santos,
nascido em Guifões (concelho de Bolsas, Porto), capitão e sesmeiro e de D. Inácia Maria do Rosário,
matrimoniais para o último século do período colonial entre as famílias que
nascida em Piedade da Borda do Campo, Mariana, MG. Anna Mathilde Werneck, quinta filha casa- formarão as cidades do Vale do Paraíba.
se com o sargento-mor Francisco Peixoto de Lacerda, nascido em 1770, na freguesia de São Salvador Essa herança imaterial recebida – as redes de sociabilidade e matrimo-
da Vila de Horta, na Ilha do Faial, Açores. Francisco das Chagas Werneck, sexto filho casa-se com
Anna Joaquina de São José, filha do capitão Francisco José Alves, nascido em Braga, e de D. Ana niais estabelecidas – pode explicar também o fato de todos os casamentos
Maria de Jesus, nascida em Paty do Alferes. Isabel Maria da Visitação, nona filha, casa-se o capitão entre os filhos de Ignácio Werneck serem exogâmicos. Chama-nos aten-
João Pinheiro de Souza, filho do capitão português José Pinheiro de Souza. Ignácio das Chagas
Werneck, décimo filho, casa-se com Francisca Joaquina de Jesus Pinheiro, filha de José Pinheiro de ção o fato de Ignácio não preferir casar seus filhos e filhas com seus sobri-
Souza e de Tereza Maria de Jesus. Joaquina Theodora de Jesus, décima primeira filha, casa-se com nhos, filhos de seu irmão, Manuel de Azevedo Ramos. Manuel tinha terras
João José Alves, nascido no Paty do Alferes, filho do capitão Francisco José Alves e de D. Ana Maria
de Jesus. José de Souza Werneck casa-se também com Francisca Joaquina de Jesus Pinheiro, após 48 E destaco ainda que, dos nove casamentos, oito são com apenas três famílias portuguesas: Pinheiro
viuvez. Fontes: FORJAZ, Jorge; MENDES, Antônio Ornelas. Genealogia das quatro ilhas: Faial, Pico, de Souza, Santos e Alves – cada uma destas casando dois ou mais filhos e filhas com a família de
Flores, Corvo. Lisboa: Dislivro Histórica, 2011. v. 1, p. 261-267. RAMOS, 1941. p. 16-18. Ignácio Werneck.

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vizinhas às suas (dividiram as sesmarias do pai) e o casamento entre primos A família Pinheiro de Souza chegou ao Brasil ainda no século XVIII,
era recorrente nesta época, dado a escassez de famílias na região. Não tra- onde o patriarca, José Pinheiro de Souza, estabeleceu-se como comerciante
balhamos com a hipótese de ter ocorrido alguma briga ou rompimento de na praça comercial do Rio de Janeiro. Seus filhos e irmãos provavelmente
laços entre os irmãos, pois Manuel Ramos também irá unir em matrimônio tornaram-se comerciantes também, até que parte da família migrou para as
sua família com os Pinheiro de Souza, além de, curiosamente, nomear um terras do Vale, ao receberem diversas sesmarias no início do século XIX.52
de seus filhos como Ignácio de Souza Werneck, talvez em homenagem ao Uma descoberta genealógica importante foi que o patriarca dessa família
irmão.49 Além disso, era uma época de expansão dos laços de sociabilidade no Brasil, casou-se em segundas núpcias com Paula Pereira Monteiro, irmã
e o estreitamento do relacionamento com outras famílias seria mais impor- de Francisco das Chagas Monteiro, que era o sogro de Ignácio de Souza
tantes politicamente neste momento. Werneck.53 Ou seja, os Pinheiro de Souza já haviam ligado-se com a famí-
As uniões exogâmicas neste período potencializaram o domínio polí- lia de Francisco das Chagas Monteiro, rico e importante comerciante na
tico, social e econômico no seio dessas famílias, além de permitir a concen- praça comercial do Rio de Janeiro, e de certa forma com a família de Ignácio
tração de grandes extensões de terras para as mesmas. Junto aos Werneck, Werneck. Este fato confirma mais uma vez que as redes de sociabilidade
os Pinheiro de Souza, Santos, Alves e Peixoto de Lacerda estavam em prol entre os Werneck e os Pinheiro de Souza vinham de Manuel de Azevedo
de um mesmo objetivo, que era formar laços matrimoniais e um poder Matos, pai de Ignácio Werneck, pois Francisco das Chagas Monteiro era aju-
social e material na região mantendo seu patrimônio, fortalecendo-o e dante de campo e investidor deste; e dentro desse poderoso jogo de uniões
expandindo-o. Há a hipótese de tais famílias já possuírem alguma sociabili- matrimoniais entre ricos comerciantes, entrou Ignácio Werneck e sua famí-
dade ainda nas ilhas portuguesas. Todavia, ao resolver firmar uniões matri- lia. Um grande aporte de capital para formação dos complexos agrícolas e
moniais com, sobretudo, duas ou três famílias, Ignácio Werneck está con- status político foi adicionado à sua rede familar e de sociabilidade.
centrando, conservando e aumentando suas terras e escravos, dinamizando Logo, o casamento entre João Pinheiro de Souza e Isabel Maria da
Visitação representa a concretização da manutenção e expansão do poder
o poder social e político da sua família em toda a região do Médio Paraíba.
político, econômico e social através das estratégias matrimoniais dos
Dentre os casamentos orquestrados por Ignácio de Sousa Werneck, tive
Werneck. A herança material e imaterial herdada por estes vai possibili-
a oportunidade de analisar mais detidamente em minha dissertação de mes-
tar grande distinção dessa nova família – Pinheiro de Souza Werneck – na
trado o caso da união de sua filha Isabel Maria da Visitação com o major
região do Vale e mais especificamente em Valença.
João Pinheiro de Souza, pais de Maria Izabel de Jesus Vieira, uma importante
João Pinheiro de Souza casa-se com Isabel Maria da Visitação em 30 de
fazendeira que, depois de ficar viúva, administrou sua fazenda e negócios de
outubro de 1809, na Freguesia de Paty do Alferes. Segundo vemos na docu-
forma próspera e eficaz por mais de quarenta anos.50 Foi justamente com a
mentação, João Pinheiro requereu, em 1807, uma sesmaria ao longo do Rio
família Pinheiro de Souza que Ignácio Werneck uniu mais filhos, ao todo
Paraíba, pois “tinha possibilidades para as cultivar; e desejara fazer ali o seu
quatro casamentos.51 Com eles, iniciou as estratégias matrimoniais (pois
estabelecimento”.54 O processo para o recebimento das terras foi concluído
casou sua primeira filha) e com eles terminou-as (casando seu último filho).
em 1816, quando o governo de D. João VI concedeu-lhe a sesmaria São João.
49 Essa hipótese da homenagem dá-se pelo fato de não haver ninguém em sua família com esse Esta sesmaria se localizava à margem esquerda do rio, confrontando-se com
mesmo nome, a não ser o irmão. Fonte: WERNECK, Francisco Klors. Origem da família Pinheiro de
Souza (ramo fluminense). [S.l.: s.n, s.a]. Arquivo pessoal. p. 6-7.
Francisca Joaquina de Jesus Pinheiro, casará com o 10° filho do padre Werneck, Ignácio das Chagas
50 PAIVA, L. G. P. M. de. Lembranças da saudade: estratégias para a manutenção do poder de uma famí-
Werneck. Após a morte de Ignácio das Chagas, a viúva se casará com o último filho de Ignácio
lia cafeicultora no século XIX. 2013. 148 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de
Werneck, José de Souza Werneck.
Pós Graduação em História, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
Link de acesso:http: <//historiaunirio.com.br/ppg/c.php?c=download_dissert&arq=NTE%3D>. 52 Essas informações foram cedidas pelo pesquisador Adriano Novaes (INEPAC; CDH-VALENÇA).
51 A 1° filha de Ignácio Werneck, Maria do Carmo Werneck, casa-se com o tenente-coronel José 53 WERNECK, F., Origem da família Pinheiro de Souza (ramo fluminense). [s.l.: s.n, s.a]. Arquivo
Pinheiro de Souza. O irmão deste tenente-coronel, João Pinheiro de Souza, se casará com a 9° pessoal. p. 2.
filha de Ignácio Werneck, Izabel Maria da Visitação; uma filha também de José Pinheiro de Souza, 54 ARQUIVO NACIONAL. Fundo da Família Werneck. Microfilme 006_91. Notação 675.

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as terras do Conde de Baependy, indo da ponte do Desengano, hoje Juparanã, ordem social de Valença e sua região: “No virtuoso e venerado ancião que
até a Estação do Commercio.55 Em 1822, o casal migrou da freguesia de Paty ahi baixou ao túmulo, perdeu o município de Valença um dos seus vultos
do Alferes para a fazenda de São João, em Nossa Senhora da Glória,56 e ali mais importantes, um de seus mais desvelados amigos”.64
começou seu empreendimento agrícola, criando todos os seus nove filhos.57 Sem dúvida foi um importante nome para a política do Partido
Assim, João Pinheiro se estabeleceu na região onde mais tarde seria Conservador na região do Médio Paraíba e para o Império por suas ativida-
Valença. Durante os 40 anos que lá viveu, exerceu os mais elevados cargos des de cafeicultor escravista e latifundiário. Além do poder vindo das alian-
municipais, tanto de eleição popular como da nomeação do governo.58 Em ças familiares, sua rede de sociabilidade contará com a presença de amigos
remuneração aos serviços prestados, foi agraciado por D. Pedro II primei- ricos e poderosos da região, como revelam os jornais: “Como homem, deixou
ramente com o hábito da Ordem da Rosa, em 18 de julho de 1841, e depois numerosos amigos, e nem sequer se apontam desafeiçoados”.65 Destacam-se
com o oficialato da imperial Ordem da Rosa, em 1° de maio de 1849.59 Como entre estes o visconde do Rio Preto e o futuro conde de Baependy, os quais
agricultor, produziu café em sua fazenda de São João, “com a qual ganhou presentes em seu enterro carregaram o féretro até o túmulo.
uma modica e mui honesta fortuna”.60 Além do status conseguido através Tamanho poder e influência se refletirá na sua grande e poderosa prole.
da sua riqueza, dos serviços prestados à Coroa, do acúmulo de grandes Dos seus nove filhos, sete deixaram descendência; os três homens torna-
quantidades de terras e escravos e dos diversos cargos políticos que exerceu ram-se grandes fazendeiros e políticos na região do Vale e as quatro mulhe-
em Valença, também se mostrava dignificado pelos favores que tributou res vão se casar com seus primos e ricos fazendeiros do Médio Paraíba. Os
à Igreja. Foi um dos principais contribuintes para a construção da igreja jornais destacam a importância dos filhos de João Pinheiro: “Deixa-se per-
Matriz de Valença, deu um sino para a capela de Nossa Senhora do Rosário petuando em uma numerosa família que fazia o seu orgulho, e assim devia
e nos últimos momentos antes de sua morte deixou legados à irmandade de acontecer, porque o ramo daquela estirpe não podia deixar de ser bom até
Nossa Senhora da Glória e à Santa Casa de Misericórdia de Valença. ao âmago”.66 Aquele “chefe de uma importante família”67 tinha seus filhos
João Pinheiro de Souza veio a falecer em 19 de fevereiro de 1860 por reconhecidos por todos serem “fazendeiros abastados e bem conhecidos
enfermidade. Na ocasião, todos os jornais o descreveram como rico e reno-
por suas posições e virtudes cívicas e domésticas”.68 Logo, dentre estes se des-
mado fazendeiro do município de Valença: “No dia 19 do corrente mês de
tacam o visconde de Ipiabas, um dos mais importantes nomes do Partido
Fevereiro de 1860, pelas 4 horas da manhã, pagou o tributo á terra o Ilmo.
Conservador em Valença e o barão de Potengy. O renome e poder, ampliado
Sr. capitão João Pinheiro de Souza, oficial da ordem da Rosa, e honrado
e repassado por João Pinheiro de Souza aos seus filhos, lhes dará condições
fazendeiro do município de Valença”;61 “O município de Valença acaba de
de se destacarem na sociedade com uma herança imaterial riquíssima.
sofrer uma perda bem sensível”;62 “Um nome precioso passou para o catá-
Assim, vemos que as estratégias matrimoniais, além de concentrarem
logo dos finados!”.63 Em diversas vezes é reconhecido como “ilustre finado”,
e ampliarem o patrimônio composto por terras, escravos e demais rique-
“nobre cidadão”, “honrado fazendeiro” e figura importante para a política e
zas, também aumentavam o status, o poder político, o renome da família,
55 ARQUIVO NACIONAL. Fundo da Família Werneck. Microfilme 003_91. Notação 1.1. o domínio social. Ao casar com uma grande família, as possibilidades de
56 ARQUIVO NACIONAL. Fundo da Família Werneck. Microfilme 003_91. Notação 27. ascensão social eram claras.
57 ARQUIVO NACIONAL. Fundo da Família Werneck. Microfilme 004_91. Notação 92.1. Ver também Conforme descrevemos, os Werneck, ao chegarem ao Vale recém-ex-
TELLES, Luís Gomes de Souza. [Sem título]. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 25 fev. 1860.
plorado, procuraram casar seus filhos com sesmeiros portugueses ou de
58 ARQUIVO NACIONAL. Fundo da Família Werneck. Microfilme 004_91. Notação 113.
59 ARQUIVO NACIONAL. Fundo da Família Werneck. Microfilme 006_91. Notação 667-668. 64 ARQUIVO NACIONAL. Fundo da Família Werneck. Microfilme 004_91. Notação 113.
60 TELLES, op. cit. 65 TELLES, op. cit.
61 BARROS, Nogueira de. [Sem Título]. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 24 fev. 1860. 66 BARROS, 1860.
62 [ARTIGO do Redator do Jornal]. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 25 fev. 1860. 67 [ARTIGO do Redator do Jornal], 1860.
63 TELLES, 1860. 68 TELLES, 1860.

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famílias portuguesas, também recém-chegados e de mesma situação e A morte do barão de Guaribu.
renome que estes tinham. Eram casamentos exogâmicos, porém entre
iguais; em sua maioria, se davam sempre com as mesmas famílias. São
Ou o fio da meada1
casamentos entre grupos que vieram de Portugal durante os séculos XVII
e XVIII, geralmente pertencentes à pequena fidalguia ou da elite de alguma
Ricardo Salles
capitania portuguesa, que por alguma dificuldade financeira decidiram Magno Fonseca Borges
transferir-se para a colônia no intuito de manter-se econômica e social-
mente. João Fragoso os define como as melhores famílias da terra.69 Assim,
construíram em torno de si próprias uma imagem e um espaço social no
âmbito familiar como as melhores famílias do Vale.
Um grande tecido social foi composto na região e mais especificamente
na cidade de Valença, que teve seus espaços políticos e sociais (a Câmara
Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar, barão de Guaribu, é o personagem cen-
dos Vereadores, a Santa Casa de Misericórdia, as irmandades religiosas, a
tral deste ensaio. Nascido no Rio de Janeiro, por volta de 1795, e falecido em
delegacia de polícia, etc.) construídos e dominados por estas famílias. É
Paty do Alferes, município de Vassouras, em 1863, Cláudio foi um grande
em torno destas famílias e para estas famílias que estes espaços e a pró-
proprietário de terras e escravos nessa região. Com o exame de testamentos,
pria cidade é construída, auxiliadas pela estreita ligação com a Coroa, que
inventários, avaliações e outros documentos, referentes a seus pais, irmãos,
depende profundamente das mesmas para realizar seus ideais políticos e
ao próprio Cláudio e a membros da classe senhorial de Vassouras, pode-
civilizatórios no interior. Através dos cargos exercidos e das honrarias rece-
remos seguir o fio da meada da acumulação de capital escravista através
bidas, percebemos o status e a posição da família Werneck perante a Coroa,
da montagem, expansão e declínio da grande propriedade rural escravista
e podemos conceber o tamanho de tão grande herança imaterial que está
cafeicultora na região no período entre aproximadamente 1820 e 1890.
sendo perpassada entre as gerações dos Werneck e daqueles que a eles se
Seguiremos, ainda, como tudo isso envolveu a formação e a reprodução de
unem. O grupo familiar se manifesta como patrimônio imaterial.
um ethos e um habitus senhoriais específicos. As relações entre senhores e
A família era o valor primeiro a ser mantido e expandido no seio da
escravos, como parte integral e inseparável desse processo, serão analisadas
classe senhorial e na sociedade patriarcal. É a família, através do sobrenome
no âmbito do que estaremos denominando de comunidade de plantation.
familiar, como os Werneck, que absorve as consequências das atitudes de
A análise gira ao redor da principal propriedade da família Gomes Ribeiro
seus patriarcas, quando se expandem economicamente e dominam politica-
de Avelar, a fazenda do Guaribu.
mente. O fim de todos os esforços políticos e econômicos, das construções
Numa sexta-feira, dia 3 de setembro de 1863, em sua fazenda do
das redes de sociabilidades e das estratégias matrimoniais é sempre tornar
Guaribu, em Paty do Alferes, na comarca de Vassouras, morria Cláudio
a sua família, o seu sobrenome, cada vez mais renomado, poderoso, rico
Gomes Ribeiro de Avelar. Desde 1860, possuía e exibia o título de barão de
perante aquela sociedade, através dos seus descendentes. E para perpetuar
Guaribu, do qual tinha evidente orgulho. Tanto que, em seu testamento,
a família, os Werneck se valem, com sucesso, das políticas de casamento, as
ditado uma semana antes de seu falecimento, ele declarava: “... meu nome
quais irão continuar nas gerações seguintes. Logo, a família senhorial oito-
era Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar, antes de Sua Majestade o Imperador
centista tinha grande peso e valor como cabedal político e simbólico para a
agraciar-me com o título de Barão de Guaribu”.2 Estava na casa dos 60 anos
manutenção e transmissão de poder na sociedade imperial.

69 FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senho- 1 Originalmente publicado em HEERA. Juiz de Fora: Ed. UFJF, v. 7, n. 13, p. 57-94, jul.-dez. 2012.
rial (séculos XVI e XVII). In: FRAGOSO, João Luís; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de 2 INVENTÁRIO e Testamento de Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar, barão de Guaribu. Vassouras:
Fátima (Org.). O Antigo Regime nos Trópicos. RJ: Civilização Brasileira, 2001. Centro de Documentação Histórica da Universidade Severino Sombra, 1863.

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e nascera na cidade do Rio de Janeiro. A morte do barão e suas circunstân- dos feitores, cumprindo jornadas de 14 ou mais horas de trabalho no cultivo
cias permitem analisar uma intrincada rede de relações sociais, envolvendo e no tratamento do café, vivendo em grandes senzalas.
ricos fazendeiros, libertos e escravos, ao longo de quase todo o século XIX, No lugar desse quadro, muitas vezes reconstruído pela historiogra-
em uma das regiões mais importantes e destacadas do Império do Brasil, o fia dos anos 1980 em diante com cores ainda mais carregadas para fins de
município de Vassouras, no Vale do Paraíba fluminense. Uma rede marcada ser criticada e contrastada, surgiu outro, de um campo escravista marcado
pelos laços de família, por favores, trocas, concessões e compadrios, mas pela média e pela pequena posse de escravos. A pesquisa nos inventários de
principalmente pela força e pela assimetria das relações de poder, domina- Vassouras – e tudo indica que o mesmo se aplica a outras regiões grandes
ção e exploração. produtoras de café do Vale, talvez até de forma mais intensa – mostra que
Antes de nos debruçarmos sobre a história de Cláudio Gomes Ribeiro de era e não era bem assim. O exame dos inventários de Vassouras entre 1821,
Avelar, no entanto, é importante traçar um quadro do mundo em que ele vivia. data do primeiro inventário abrindo uma série, e 1880, marco do início do
período de decadência da lavoura cafeeira no município, mostrou a neces-
proprietários, escravos e alforriados em vassouras sidade de ir além da tradicional divisão entre pequenos, médios e grandes
proprietários de escravos. A existência de números significativos de donos de
Esse mundo era a região conhecida como Serra Acima, que se notabilizou um a 20 escravos ao lado de proprietários de 30, 40, 50 ou mais cativos, bem
pela produção de café no século XIX. O barão era um grande proprietá- como outros, plantéis com 100, 200 ou mais escravos, levou à necessidade da
rio de terras e escravos em Vassouras. A designação “grande”, entretanto, seguinte classificação dos proprietários de escravos em cinco faixas: minipro-
não dá conta da dimensão de sua propriedade escravista, assim como de prietários de escravos, donos de 1 a 4 cativos; pequenos proprietários, possui-
alguns outros poucos donos de escravos da região. A análise da distribui- dores de 5 a 19 escravos; médios proprietários, entre 20 e 49 escravos; grandes
ção da propriedade de escravos, de acordo com os inventários post-mortem proprietários, donos de 50 a 99 cativos; e megaproprietários, com 100 ou mais
em Vassouras, no período entre 1821 e 1880, evidenciou a existência de escravos. Concretamente, no período entre 1821 e 1880, foram localizados:
megaproprietários de escravos. Isto é, proprietários de 100 ou mais cativos.
Ao todo, foram detectados 65 megaproprietários em um conjunto de 729 • 2% de inventários sem escravos;
inventários encontrados neste período.3 Esses números parecem confirmar • 16% de miniproprietários;
• 39% de pequenos proprietários;
a ideia, algo disseminada na historiografia atual, de que, a despeito da exis-
• 22% de médios proprietários;
tência de grandes potentados com mais de 1.000 cativos e diversas proprie-
• 12% de grandes proprietários;
dades, como os irmãos Breves, em Piraí e adjacências, e o barão de Nova
• 9% de megaproprietários.4
Friburgo, em Cantagalo e cercanias, por exemplo, o cultivo de café no Vale
do Paraíba do século XIX era feito basicamente em propriedades com cerca O que se vê, portanto, é uma propriedade escravista disseminada, com
de 20 cativos. Propriedades em que o convívio entre o senhor, sua família mini e pequenos proprietários de escravos representando 55% de todos
e seus escravos era muito próximo, marcado por pressões por parte dos proprietários. Os inventários desta faixa de proprietários, normalmente,
escravos, concessões e negociações cotidianas. Essa imagem difere bastante não listavam senzalas, equipamentos de beneficiamento de café, grandes
daquela da plantation escravista estabelecida pela historiografia anterior, terreiros e poucos apontavam a propriedade de terras. Houve um número
principalmente dos anos de 1960 e 1970. Uma imagem dos grandes plantéis expressivo de alforrias nesta faixa de proprietários, sempre que foi possível
de cativos, em sua imensa maioria homens, submetidos à rígida disciplina verificar esse fenômeno nas listagens de cativos dos inventários. O mesmo
aconteceu quando se pôde identificar em que categoria de proprietário de
escravos se encaixavam os autores de testamentos que alforriaram escravos.
3 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo: Vassouras, século XIX – senhores e escravos no coração do
Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 4 Ibid.

198 199
Algumas vezes, ex-cativos alforriados, por vontade testamental de seus Neste quadro, as alforrias que aparecem em alguns testamentos e
donos, recebiam como escravos companheiros e companheiras com quem mesmo em alguns inventários beneficiam uma proporção muito menor
conviviam, até bem pouco, no cativeiro. De uma hora para outra, por força das escravarias, se comparadas com o universo dos pequenos proprie-
da execução de um testamento, um cativo podia se transformar em uma tários. Negociações, pressões, concessões e a moeda de troca da alforria
pessoa livre, na condição de liberta. Podia mesmo se transformar, e mui- também faziam parte do universo das relações entre os grandes senhores
tos se transformaram, em um pequeno proprietário de escravos. Pode-se e seus escravos. Como fica evidente pela descrição dos elementos compo-
supor que essas mudanças não eram completas surpresas. Elas parecem ter nentes de um grande inventário, entretanto, o ambiente em que essas rela-
expressado longos processos de negociações, formais ou informais, ditos ou ções se davam era muito distinto daquele encontrado entre os pequenos e
não ditos, entre as partes envolvidas. A retórica benevolente dos testamen- mesmo os médios proprietários.5 A diferença vinha, em primeiro lugar, pelo
tos em que se davam as alforrias, quase sempre com expressões de gratidão número de cativos, o perfil do plantel, o tipo de unidade produtora, o tipo
ou recompensa em relação aos serviços prestados pelos alforriados, eviden- de propriedade. Tratava-se de centenas de escravos ou de um punhado cati-
cia essa dimensão das relações entre os senhores e seus escravos. Tudo isso vos? O trabalho era feito em turmas supervisionadas, implicando em disci-
mostra que, de fato, se tratava d um universo social complexo, marcado por plina rigorosa e com metas a serem cumpridas, com castigos quando não o
negociações e concessões em que a alforria era a moeda de troca corrente fossem e recompensas, em dinheiro ou “fichas” da fazenda, quando fossem
nas relações entre estes senhores e seus escravos. excedidas? Ou era um trabalho feito em pequenas lavouras, muitas vezes
Também entre os testamentos e inventários de grandes e megaproprie- até mesmo ombro a ombro com o senhor ou sua família? Havia espaços
tários aparecem as alforrias e as doações a ex-escravos alforriados, inclusive para roças individuais ou familiares cultivadas pelos cativos em seus dias
de cativos. Isso acontecia, entretanto, em menor escala e em um ambiente livres? Havia maior ou menor equilíbrio entre os sexos, com a existência,
distinto. Neste caso, estão presentes as senzalas, os grandes terreiros, os equi- em número significativo, de famílias? As relações entre senhores e escra-
pamentos de beneficiamento de café. Uma paisagem que está ausente entre vos eram diretas ou se davam através de intermediários? As rotinas de vida
mini e pequenos proprietários. O contrário acontece com os grandes e mega- eram experimentadas em grandes senzalas, em torno dos terreiros, ou em
proprietários. Nos inventários de grande e megaproprietários, podemos pequenas posses, com a choupana dos escravos ao lado das pequenas casas
encontrar lances e lances de senzalas, cobertas com telhas ou com cobertura ou casebres de seus senhores? A presença do senhor se dava em grandes
de capim, com varandas ou sem varandas, algumas com piso. Algumas em casas de vivenda, inacessíveis, ao menos para os escravos do eito? Ou essa
linha, outras possivelmente em quadras. Encontram-se também as tulhas presença mostrava uma relativa fragilidade social dos pequenos proprietá-
para armazenar o café durante a sua secagem, os engenhos de cana, de café rios, se comparada com os grandes potentados? Havia ali uma capela onde,
ou de uso não discriminado, os grandes terreiros, sendo que alguns cal- de quando em quando, aparecia um padre para rezar missas, batizar e casar?
çados. Aparecem ainda máquinas despolpadoras para ventilar e separar o Em segundo lugar, as diferenças diziam respeito ao tipo de impacto que
café. São avaliados cafezais novos, cafezais antigos e, em alguns casos, matas. o jogo de pressões e negociações e principalmente as alforrias traziam para
Podem-se ver alguns hospitais ou enfermarias para os cativos. Aparecem as escravos e senhores. Em uma pequena posse ou propriedade com poucos
casa de vivendas, as pratarias, os móveis, os jogos de louça, talheres, dívidas escravos, as alforrias podiam mudar radicalmente a vida de todos os envol-
a receber e a pagar, obrigações com irmãos, pais, filhos, sobrinhos, com- vidos. Os herdeiros de um pequeno proprietário podiam, por efeito das dis-
padres, afilhados. Arrolam-se, em algumas ocasiões, centenas de escravos posições de um testamento, simplesmente deixar a condição de proprietá-
distribuídos por duas ou mais propriedades. As famílias de cativos aparecem rios de escravos. Ou podiam passar da condição de pequenos proprietários,
com maior frequência. Entre estas centenas de escravos, muitos deles descri-
5 CABRAL, Domênico Renan da Silva. Concessões ou conquistas: a política de benefícios testamentá-
tos com seus ofícios, podemos ver alguns feitores e capatazes. rios na crise do escravismo em Vassouras – 1851- 1870. 2006. Monografia de conclusão de curso,
Departamento de História, Universidade Severino Sombra, Vassouras, 2006.

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conforme a categorização que está sendo adotada, para a de miniproprie- o significado social da alforria. Numa inversão conceitual que remonta ao
tários. Ex-escravos alforriados podiam, não fosse o fato de serem libertos, arcabouço teórico marxista e althusseriano, pode-se dizer que este signifi-
passar para a mesma condição social de seus antigos senhores. cado social acabava por sobredeterminar as práticas e os significados dos
Em uma grande propriedade, apesar do impacto das alforrias ser enor- ambientes locais. Ainda que cada situação particular, com seu desenvol-
memente significativo na vida de quem era alforriado, os efeitos desses vimento e desfecho único, impactasse, compusesse e, no limite, pudesse
atos eram muito mais reiterativos da situação em que se davam as relações transformar o quadro e os processos gerais, cada uma delas estava neles
locais entre senhores e escravos. Se o ex-escravo fosse continuar vivendo contidos. A compreensão desse fato é essencial para se aquilatar as condi-
na fazenda, o que normalmente acontecia, tudo a seu redor permaneceria ções e os alcances potenciais das agências dos grandes senhores, dos peque-
mais ou menos como antes. Para seus antigos companheiros, o testemunho nos senhores, de seus escravos e dos libertos no mundo escravista do século
de sua alforria, sem dúvida significativo, era balanceado pela experiência XIX. Numa formulação simples, quanto mais inseridos ativamente no qua-
predominante de dezenas e dezenas de outros escravos que viveriam e mor- dro e processos gerais, maior era o peso da agência dos atores sociais no
reriam nesta condição. sentido de conferir significados, definindo um vocabulário social, à multi-
Apesar dessas distinções em relação ao impacto que as negociações plicidade de situações cotidianas em que senhores e escravos se enfrenta-
entre senhores e escravos e as alforrias podiam ter, e normalmente tinham, vam, negociavam, faziam concessões e obtinham conquistas. No caso con-
dependendo do ambiente local em que ocorriam, encontramos sempre a creto do período que está sendo analisado, entre 1820 e 1880, o quadro e os
mesma retórica, o mesmo vocabulário social empregada, seja na grande, processos gerais pendiam decididamente para os grandes senhores.
seja na pequena propriedade. Encontramos, em ambos os casos, a mesma Isso não aconteceu apenas por obra de tendências e dinâmicas sociais
condição subalterna do liberto quando analisamos os documentos ou mais amplas e ocultas. Estas existiam e nem sempre ou quase nunca foram
quando lemos testemunhos diversos que relatam, direta ou indiretamente, claramente percebidas em sua totalidade de significados pelos contemporâ-
estas situações. Essa coincidência de retórica e vocabulário social e o uso da neos. Mas também havia razões bem concretas para que a balança pendesse
mesma moeda de troca em ambientes tão diferentes não se dava ao acaso e para os grandes senhores. Razões que dizem respeito ao poder e ao papel
tampouco era desprovida de um significado muito preciso. Até o início da que estes tinham na vida local, no poder provincial e geral, e na ordem
década de 1870, com o final da Guerra do Paraguai e a onda de alforrias para institucional do Império. Adicione-se a essas razões, de ordem mais geral,
o recrutamento que ela propiciou, e com a Lei de 28 de setembro de 1871, o fato bem mais concreto de que a grande maioria dos escravos vivia, sofria
que previa o fim gradativo da escravidão, institucionalizou pecúlio escravo suas agruras e morria em grandes propriedades rurais, onde suas possibili-
e criou um sistema legal nacional de emancipações, a alforria foi sempre dades de negociação e pressão eram menores.
descrita, entendida e vivenciada como um ato privado de benevolência Uma olhada mais de perto na distribuição da propriedade escra-
senhorial. Um ato que recompensava o bom escravo, até mesmo quando vista em Vassouras, de acordo com os dados obtidos na série de inventá-
era uma transação comercialmente vantajosa ou ao menos que não trazia rios post-mortem para o período entre 1821 e 1880, corrige uma primeira
prejuízo financeiro ao senhor, quando comprada pelo ex-escravo. Um ato impressão, que por ventura se tivesse, de que a propriedade de escravos era
que requeria, e normalmente obtinha, ainda que formalmente, através dos principalmente distribuída entre pequenas e médias posses, em que pese
códigos de conduta social praticados, a gratidão do liberto. a existência de um punhado de grandes proprietários. Vimos que mini e
Essa retórica e vocabulário comuns implicavam que predominava, na pequenos proprietários de escravos, representando 55% dos inventários
valoração, no entendimento das partes e, principalmente, no sentido geral encontrados, predominavam amplamente sobre grandes e megaproprie-
de instituto reiterativo da ordem escravista, o significado que era confe- tários, que somaram 21% dos mesmos inventários. Se considerarmos, no
rido às alforrias e às negociações entre senhores e escravos pelas práticas entanto, a proporção de escravos que cada uma dessas categorias possuía,
vigentes nas grandes propriedades. Eram essas práticas que determinavam a coisa muda radicalmente de figura. Grandes e megaproprietários foram

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donos de 70% dos 28.245 dos escravos arrolados nos inventários no período. negociações de reconhecimento da independência, minaram as relações
Mini e pequenos proprietários ficaram com 12% dos cativos, enquanto entre as facções políticas liberais e o monarca. Este foi se vendo isolado,
18% pertenceram a médios proprietários. Esses dados mostram qual era o contando apenas com o apoio mais restrito de grupos de comerciantes,
ambiente predominante nas relações entre senhores e escravos. Assim, o principalmente portugueses, de uma pequena elite cortesã, assim como
ambiente das grandes propriedades e das plantations não prevalecia apenas de alguns grandes proprietários que mantinham estreitas ligações com o
pelo poder efetivo e simbólico dos grandes senhores na sociedade, por sua núcleo de poder. Diante da pressão das ruas, ganhou importância uma
riqueza e força material, na sociedade em geral. Prevalecia também porque nova oposição liberal, que acabou por forçar a abdicação de Dom Pedro I.
era sob seu domínio que viviam e morriam a grande maioria dos escravos.6 Essa nova oposição, através de sua facção moderada, vinha se aproximando
cada vez mais seus laços políticos, clientelares e pessoais com a camada de
o barão de guaribu e a terra dos barões grandes proprietários de terras e escravos da região da Bacia do Paraíba do
Sul. Essa aproximação ocorreu inclusive com alguns que, até a abdicação,
Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar, barão de Guaribu, era um desses gran- haviam sustentado o imperador. Esse foi o caso de Manuel Jacinto Nogueira
des senhores, um megaproprietário de escravos na terminologia adotada, da Gama, marquês de Baependi.
quando morreu em 1863. Nesse momento, Vassouras vivia seu apogeu. O Ato Adicional de 1834, ao conferir maior poder ao parlamento e
Desde a década anterior, quando a produção de café talvez tenha alcan- estruturar as relações entre o plano local e o central, através da criação das
çado seu momento máximo, a região e a cidade davam mostras de pujança. assembleias provinciais e outras medidas, completou o solapamento das
Claúdio fazia parte de uma geração, nascida entre o final do século XVIII e bases tradicionais de poder, herdadas do Antigo Regime colonial e de sua
o início do século XIX, que, juntamente com seus pais, formara o território lógica territorialista, como colocou Ilmar Rohloff de Mattos.7 Em Vassouras,
e construíra a cidade, como expressão simbólica e material de seu poder na o vereador Joaquim Ribeiro de Avelar, de quem já voltaremos a falar, na
região. Entre estas famílias, destacavam-se aquelas que Mariana Muaze vem Câmara Municipal, apoiou o Ato Adicional. De uma de suas janelas, fez um
chamando de os quatro grandes: os Ribeiro de Avelar, os Lacerda Werneck, discurso para as pessoas que se concentravam diante do edifício, saudando
os Correia e Castro e os Teixeira Leite. Essas famílias, vindas de Minas Gerais a reforma. A centralização do regime se mostrara demasiada. Era neces-
ou do Rio de Janeiro, haviam se estabelecido na margem oriental do rio sário dar margem ao desenvolvimento a um sistema que garantisse maior
Paraíba, desde finais do século XVIII, ao redor e ao longo do Caminho Novo autonomia para as províncias. Um sistema que ensaiasse uma monarquia
para as Minas Gerais, aberto no começo do século. Algumas já estavam federativa, fundada sobre os princípios americanos.8
na área desde então. Essas famílias receberam sesmarias e deram origem a Os fatos demonstraram, entretanto, que não se poderia ou não se deve-
grandes propriedades rurais, como as fazendas Pau Grande, Ubá e Piedade, ria ir tão longe.
produzindo açúcar, aguardente e derivados, carne suína e mantimentos. A experiência de sucessivas revoltas, inclusive com a Revolta dos Malês
Suas histórias ganharam relevância com a expansão do café e a conso- em Salvador, fez com que muitos priorizassem a busca da ordem, mesmo
lidação do Império do Brasil. Vendo crescer sua importância econômica e que ao preço de recuar de algumas das reformas há pouco aprovadas. A par-
estreitando seus laços com as facções políticas da Corte, eles participaram tir desse momento, a política dos moderados, respaldada na região escra-
do impulso liberal que forçou a separação de Portugal, apoiando a ascensão vista em expansão, que se desenvolvia juntamente com o mercado mun-
de Dom Pedro I ao trono do Império do Brasil. A constituição outorgada de dial capitalista, se deu no sentido de deter o “carro da revolução”. Assim, as
1824 e os desdobramentos da política implementada pelo primeiro impe- mudanças institucionais promovidas no conturbado período entre finais
rador, com seu forte viés absolutista e, principalmente, com a perspectiva
de eminente proibição do tráfico internacional, forçada pela Inglaterra nas 7 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O gigante e o espelho. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.).
O Brasil imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. v. 2.
6 SALLES, 2008. 8 RAPOSO, Inácio. História de Vassouras. Niterói: SEEC, 1978.

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da década de 1820 e meados da década de 1830 corresponderam a um claro gem ao chamado Tempo Saquarema, que se estendeu até pelo menos a volta
deslocamento da base social do Estado imperial em direção ao poder eco- dos liberais ao governo, em 1862, após 14 anos de jejum de poder. Estava
nômico, territorial, material e político dos grandes proprietários de terras formada uma nova base social e econômica de poder, igualmente territo-
e escravos da região da Bacia do Paraíba. Tais mudanças foram conduzidas rialista e centralista, mas agora constitucional. Estavam dadas as condições
sob a liderança dos liberais moderados e, a partir de 1835, dos regressistas para a expansão de um Império de novo tipo, que atingiria seu auge com o
que formaram as bases do futuro Partido Conservador da década de 1840.9 Segundo Reinado, nas décadas de 1840 a 1860.
Na região sudeste, duas revoltas tiveram grande repercussão neste Do ponto de vista institucional, a década de 1850 se abriu com a proi-
mesmo período e contribuíram para que os fatos se encaminhassem nesta bição efetiva do tráfico internacional, a Lei de Terras e o código comercial,
direção: a Revolta de Carrancas, em Minas Gerais, em 1833, e a de Manoel ambas de 1850, e com a aprovação do código comercial pouco depois. Foi
Congo, em Vassouras, em 1838. As condições socioeconômicas que se con- exatamente neste momento que a relação entre o Estado imperial e os gran-
figuram na esteira da expansão, com a grande afluência de africanos para des fazendeiros, que só viria a ser rompida com a Abolição, em 1888, se con-
a região, trazidos pelo tráfico internacional para abastecer as fazendas que solidou. Em parte, esta consolidação dependeu destas medidas. A principal
se desenvolviam, fizeram o resto. Um clima de temor se instalou entre a delas, a extinção do tráfico, só ocorreu devido à insuportável pressão inglesa
população livre.10 Nessa conjuntura, um poder central com pulso firme era e, aparentemente, comprometia os interesses, se não imediatos, a médio e
bem-vindo. Estavam dadas as condições favoráveis à ligação orgânica dos longo prazo dos grandes fazendeiros escravistas. Contudo, em discursos pro-
regressistas, e, com sua vitória e transmudação em conservadores, do pró- nunciados no parlamento, nos anos imediatamente posteriores à aprovação
prio Império, com a grande propriedade escravista. O ponto de encontro da Lei, Eusébio de Queirós e Honório Hermeto Carneiro Leão, dois próceres
entre esses dois movimentos, o político por um lado e o econômico e social conservadores, apressaram-se em assegurar que não. Diante de propostas de
por outro, foi propiciado pela reabertura e expansão do tráfico atlântico de aprofundar uma legislação que regulasse as relações entre senhores e escravos
escravos africanos. e que limitassem a escravidão, apontando para seu fim em futuro não ime-
Proibido em 1831, por força dos acordos de reconhecimento da inde- diato, mas previsível, Carneiro Leão defendeu que as leis e os costumes que
pendência com a Inglaterra, e sem ter nunca cessado totalmente, o tráfico garantiam a escravidão ainda deviam perdurar por séculos no país. Eusébio,
foi retomado e ampliado, sob a forma de contrabando aberto aproximada- por seu turno, já justificara antes a proibição do tráfico como medida que,
mente a partir de 1835. Essa retomada foi capitaneada pelos regressistas, que além de ser salutar diante da enorme presença africana que se avolumava e
respondiam a uma pressão política e social vinda do Vale.11 Até 1850, negrei- comprometia a ordem pública, extirpava a ameaça de que a grande proprie-
ros brasileiros, portugueses, norte-americanos e de outras nacionalidades dade passasse para as mãos dos traficantes, com quem os senhores se endivi-
despejaram escravos africanos, em escala nunca antes experimentada, pelos davam. Carneiro Leão era direto na defesa dos interesses escravistas, Eusébio
portos brasileiros, principalmente do Sudeste e do Rio de Janeiro. Todo esse tergiversava: nem a ameaça africana era tão grande, nem os senhores encon-
movimento histórico, cujo marco decisivo foi a vitória do Regresso, deu ori- travam-se tão endividados.12 Os dois temas, no entanto, lhes eram caros.
Não por coincidência, Honório era ele mesmo dono de uma grande
9 BASILE, Marcello. O laboratório da Nação: a era regencial (1831-1840). In: GRINBERG, Keila; propriedade escravista em Sapucaia, divisa do Rio de Janeiro com Minas
SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil imperial. Gerais. Igualmente Eusébio era casado com a filha de uma grande proprie-
10 GRINBERG, Keila; BORGES, Magno Fonseca; SALLES, Ricardo. Rebeliões escravas antes da extin-
tária de Vassouras, esposa em segundas núpcias de José Clemente Pereira.
ção do tráfico. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil imperial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2009. v. 1; RIBEIRO, João Luiz. No meio das galinhas as baratas não têm razão. Mas, a atuação de Queirós e Carneiro Leão nesse momento expressava
Rio de Janeiro: Renovar, 2006; GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e muito mais que sua ligação direta e pessoal com a grande propriedade
comunidades de senzala no Rio de Janeiro – século XIX, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
11 PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização 12 DISCURSO. Anais da Câmara dos Deputados, [S.l.], 16 jul. 1852; DISCURSO. Anais da Câmara dos
Brasileira, 2011. Deputados, 26 maio 1855.

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escravista, ainda que este fato não deixe de ser importante. Ela assinalava e causou viva impressão em Charles Ribeyrolles, quando de sua visita à
sua atuação como dirigentes, intelectuais nas palavras de Antonio Gramsci, região em 1858. Nesse meio tempo, a vila também passava por melhora-
de todo um grupo social: a classe senhorial. Intelectuais porque, voltados mentos incentivados pela Câmara Municipal. Em 1848, o imperador visitou
para a política, moldavam os interesses gerais, de longo prazo, não apenas a região e a vila, onde foi recebido na casa de Pedro Correia e Castro, irmão
imediatos, corporativos, específicos e individuais dessa classe. Interesses de Laureano e que, em dezembro do mesmo ano, receberia seu título de
gerais e de longo prazo que, por sua vez, só existiam como tais a partir de barão de Tinguá. A partir daí, passou a ter lugar o grosso das concessões de
sua ação e de sua conformação por estes intelectuais no plano do Estado e títulos a potentados locais. Em 1853, a igreja matriz da vila ficou pronta. Em
da política. Interesses que, neste momento, tornavam-se interesses domi- 1849, iniciou-se a construção da nova sede da Câmara Municipal, só con-
nantes e, ainda pela ação de intelectuais como Eusébio e Carneiro Leão e cluída em 1872. Ergueram-se ou reformaram-se algumas residências urba-
outros, se expressavam como visão de mundo, como hegemonia. nas que ostentavam grande luxo, como, por exemplo, o palacete do barão de
Concretamente, a direção saquarema do Partido Conservador, naquele Ribeirão. Em 1857, Vassouras foi elevada à condição de cidade.13
momento crítico de 1850, conduziu um recuo inevitável diante da pressão Tudo isso foi obra da geração de grandes senhores, alguns descendentes
britânica, sem comprometer a ordem escravista. A mensagem de 1850 e do de grandes proprietários já residentes anteriormente na região. No começo
que se seguiu foi clara: ninguém mais mexeria na escravidão. Com a Lei de da década de 1860, no entanto, essa geração estava em vias de desaparecer.
Terras, a grande propriedade da terra estava assegurada e, se necessário, Entre 1860 e 1865, além do próprio barão de Guaribu, faleceram ao menos
podiam ser exploradas alternativas imigrantistas, caso houvesse carência de 14 grandes senhores de escravos, para contar só os megaproprietários, consi-
mão de obra. A preeminência social dos fazendeiros estava estabelecida; a derando-se os inventários encontrados e outros dados genealógicos. Destes,
relação de dependência entre o Estado imperial e a classe, soldada. quatro eram barões: Laureano Correia Castro, barão de Campo Belo em
A história de Vassouras e de suas principais famílias, entre elas os 1854, proprietário da fazenda do Secretário, fundador da vila de Vassouras,
Gomes Ribeiro de Avelar, esteve indissoluvelmente ligada a esse processo falecido em janeiro de 1861; Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, barão
histórico geral brevemente descrito. Em 1833, em meio a disputas pelo de Paty do Alferes em 1852, cunhado de Guaribu, proprietário, entre outras,
poder local, as quatro grandes famílias acima mencionadas promoveram da fazenda da Piedade, fundador da vila de Vassouras, falecido em novem-
a criação da vila de Vassouras e a transferência da sede do município para bro do mesmo ano; Joaquim Ribeiro de Avelar, barão de Capivari, em 1846,
lá, em detrimento da vila mais antiga Paty do Alferes. O movimento foi tio de Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar, membro da primeira Câmara
liderado pelos Teixeira Leite e pelos Correia e Castro, que tinham terras e Municipal, dono da fazenda Pau Grande, falecido em 1863.
interesses em Vassouras, mas foi apoiado pelos Lacerda Werneck e pelos Foram distintas as inserções sociais e políticas desses barões, ainda
Ribeiro de Avelar, que eram proprietários na região de Paty. que com um traço em comum: todos permaneceram residindo em suas
A parir desse momento, essas quatro famílias, bem como aquelas de fazendas, não possuindo, ao que se saiba, residências urbanas. Werneck foi
seus compadres e aliados, como os Furquim de Almeida e os Avelar de o que mais laços estabeleceu com a política provincial e imperial, tendo
Almeida, dominaram a política local até pelo menos a década de 1870. Além sido comandante da Guarda Nacional na região. Tinha articulações com os
disso, tiveram grande influência na política provincial e junto ao governo saquaremas, especialmente com Eusébio de Queirós. Participou ativamente
geral. No plano municipal, em 1832, criaram a Sociedade Promotora da da contenção da Revolta Liberal de 1842 no Vale.14 O barão de Guaribu, por
Civilização e Indústria da Vila de Vassouras. Na década de 1840, come-
çaram a se reformar as antigas casas de morada ou mesmo a se construir 13 BORGES, Magno Fonseca. Protagonismo e sociabilidade escrava na implantação e ampliação da
novas casas de vivenda nas fazendas. Laureano Correia Castro, barão de cultura cafeeira – Vassouras – 1821-1850. 2005. Dissertação (Mestrado em História Social) –
Vassouras, Universidade Severino Sombra, 2005.
Campo Belo, por exemplo, teria chamado o engenheiro alemão Koeler para 14 NEEDELL, Jeffrey. The Party of Order: the conservatives, the State, slavery in the Brazilian monar-
reformar a sede de sua fazenda do Secretário. A casa ficou pronta em 1844 chy, 1831-1871. Stanford: Stanford University Press, 2006; MAUAD, Ana Maria; MUAZE, Mariana.

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seu turno, sempre restringiu sua atuação a suas propriedades e, eventual- Quanto a este último aspecto, um inventário de 1812 nos ajudará a fazer
mente, ao plano local. A própria sede de seus domínios, a casa de vivenda isso. Trata-se do inventário de Francisca Laureana das Chagas Monteiro,
da fazenda Guaribu, não tinha grandes requintes arquitetônicos e ainda esposa de Ignácio de Souza Werneck. Francisca e Ignácio foram os pais de
lembrava as antigas sedes coloniais de fazendas. Ana Matilde Amélia Werneck, casada com Francisco Peixoto de Lacerda,
e avós de Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, barão de Paty do Alferes,
os bens do barão: origens a quem acima nos referimos. Francisca faleceu em 1812. Neste momento,
Ignácio procedeu ao inventário dos bens do casal. A data é importante por-
Cláudio não era casado e não tinha filhos, ao menos reconhecidos. Seus que, neste momento, estavam sendo distribuídas sesmarias pela região em
herdeiros, portanto, seriam seus irmãos. Entretanto, como ele não tinha larga escala. Por tudo isso, por sua riqueza descritiva em alguns detalhes e
cônjuge, podia legalmente dispor de todos os seus bens. Assim, distribuiu, por um processo de verossimilhança, o inventário de Francisca Laureana
através do seu testamento, diversas quantias de pequena monta entre sobri- pode nos ajudar a melhor entender como se deu a formação da grande
nhos e afilhados. Outras, deixou a irmandades e confrarias a que pertencia. cafeicultura escravista do Médio Vale do Paraíba.
Reservou valores para que se rezassem capelas por sua alma, assim como De seus bens, constavam extensas braças de terra, um conjunto de edi-
pelas almas de seus irmãos e de seus escravos já falecidos. Também mandou ficações, que, em sua grande maioria, eram modestas, com cobertura de
rezar capelas pelas almas do purgatório. O barão declarava ainda que... capim. Havia um engenho para moer mandioca, cana e utensílios para o
[...] os bens que possuo são as Fazendas de Guaribu, Antas, Boa União, fabrico de aguardente. Ainda estavam listados e avaliados alguns animais,
Encantos e Guaribu Velho, com todas as terras e benfeitorias nelas existentes, entre porcos e galinhas. Embora se tenha autodenominado sitiante na fre-
escravatura, tropa, gado, diversos trastes e obras de prata [...]. Declaro que guesia de Nossa Senhora da Conceição de Serra Acima, Ignácio detinha
tenho transação de negócio com diversas pessoas, tanto de débito como de uma grande porção de terras, que ultrapassavam nove mil braças quadra-
haver, as quais se por ventura eu não liquidar, serão afinal liquidadas por meu das. Da estrutura produtiva descrita no inventário, pode-se ver que estas
testamenteiro com as formalidades legais.15
terras eram utilizadas para a produção de alguns gêneros, como a farinha
A quantia que esses bens representavam em 1863 era impressionante: de mandioca, e o principal deles, açúcar e aguardente.17
1.127:858$700, tirando as dívidas que eram, segundo ele, negócios de pouca A aquisição de tantas terras havia acontecido em parte por concessão em
monta.16 Pelas quatro propriedades – estamos considerando a Guaribu sesmaria, em parte por compra em resta pública. Ignácio Werneck iniciara o
e a Guaribu Velho como uma só – estavam listados 835 escravos: 444 na processo de ocupação destas terras a partir de uma missão específica deter-
Guaribu, 305 na Antas, 80 na Encantos e 6 na Boa União. Esses escravos, minada pelo vice-rei D. Luís de Vasconcelos e Souza em 1789. Essa missão
em conjunto, representavam 62,1% de sua fortuna. As terras representavam era “abrandar e aldear” os grupos indígenas que ocupavam a região. Ignácio
13,5%, os cafezais, 11,9% e cafés em coco, 5,7%. Os pouco menos 7% restantes não estava sozinho nesta tarefa. Em 1800, José Rodrigues da Cruz, um dos
estavam distribuídos em construções diversas, pratas, animais, instrumen- sócios da Casa do Pau Grande, com negócios na praça do Rio de Janeiro,
tos de trabalho, máquinas e ferramentas. Para entender como essa fortuna também estava envolvido na incumbência de domesticar estes indígenas.
fora amealhada, é necessário retroceder no tempo e avaliar sua formação, Aos poucos, ia mudando o perfil da ocupação econômica e demográfica
do território, ou, ao menos, a sua intenção. Quando da abertura do Caminho
juntamente com a casa de Guaribu e com a cultura do café na região.
Novo para as Minas, a partir do início da segunda década do XVIII, emer-
giram um conjunto de pequenos sitiantes e posseiros a margearem o cami-
A escrita da intimidade: diário da viscondessa de Arcozelo. In: GOMES, Angela de Castro (Org.). nho e suas variantes com pequenos pousos e tabernas e a servirem aos que
Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
15 TESTAMENTO de Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar, barão de Guaribu. 17 INVENTÁRIO de Ana Matilde Werneck. Vassouras: Centro de Documentação Histórica da
16 INVENTÁRIO de Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar, barão de Guaribu. Universidade Severino Sombra, 1812.

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se deslocavam no eixo do Rio de Janeiro a diversos povoados e vilas na escala modesta, os primeiros anos do século XIX. Ainda na segunda década,
região das Minas Gerais. A partir da segunda metade do século, já se podem o açúcar era amplamente predominante. Inventários de grandes fazendas
encontrar algumas grandes unidades de produção de açúcar e aguardente, mais antigas, que remontavam sua origem ao século XVIII, como a Guaribu,
assim como de carnes e outros mantimentos, voltadas tanto para o mercado inventariada em 1839, e a Freguesia, inventariada em 1840, corroboram esta
externo, quanto para o abastecimento interno, principalmente do Rio de conclusão. Nestes inventários, de unidades produtoras então já principal-
Janeiro. mente dedicadas à produção de café em larga escala, ainda se encontram
Na última década do século XVIII, a saída de Santo Domingos do mer- as antigas moendas, engenhos e até formas de açúcar, além de maquinário
cado mundial de açúcar e café, ocasionada pela revolução dos escravos no para o fabrico da aguardente.22
contexto da Revolução Francesa e dos conflitos internacionais dela decor- Neste ponto, podemos retomar a história da fazenda do Guaribu, que se
rentes, impulsionou ainda mais a ocupação das terras de Serra Acima. Em insere exatamente nesse processo de passagem da cultura e produção da cana
trabalho monográfico, Luís César de Oliveira Santos, usando como informa- para a produção de café. Suas origens estão ligadas à fazenda Pau Grande,
ção as descrições da região de Monsenhor Pizarro, de 1795, e de D. Caetano, que pertencia à Companhia Avelar e Santos, pertencente a Antônio Ribeiro
de 1813, identificou que, embora a região fosse parcamente ocupada nos dois de Avelar, seu irmão José Rodrigues Cruz e ao cunhado Antônio dos Santos.
momentos, houve um crescimento populacional médio de 3,41% ao ano. Antônio Ribeiro de Avelar chegou a ser arrolado no auto de devassa da
Ou seja, no intervalo de 18 anos, a população foi ampliada em 61,45%.18 A Conjuração Mineira, o que o teria levado a se retirar para as terras da fazenda.
implantação de unidades produtoras de açúcar era a grande responsável Dois anos depois, ele veio a falecer. Neste mesmo ano, sua viúva, Antônia
por isso. Em 1816, o viajante Saint-Hilaire, de passagem para Minas, ficou Maria da Conceição, deixou a cidade do Rio de Janeiro e se mudou defini-
impressionado com as dimensões do complexo produtivo, basicamente vol- tivamente, com os filhos, para a Pau Grande. Sua filha Joaquina Matildes de
tado para o açúcar, das fazendas Pau Grande e Ubá, pioneiras na região.19 Assunção casou-se com seu primo paterno, Luís Gomes Ribeiro.23
Do conjunto de bens listados por ocasião do inventário da esposa de O casal passou a residir na Pau Grande junto com a sogra e seus demais
Ignácio de Souza Werneck, como verificado acima, a grande maioria estava filhos. Luís tornou-se o administrador da fazenda. Em pouco tempo, com-
voltada para produção do açúcar. Eram, entre outros, “um engenho de prou as partes pertencentes a Antônio dos Santos e João Rodrigues da Cruz.
moer cana que trabalha com água com três lances em um dos quais se acha Em 1811, fez construir ou reformar a casa de morada, dando origem a um
um sobrado”, escumadeiras, tachos de cobre – alguns já bem arruinados grande sobrado, em estilo casarão, que marcou inúmeras fazendas de café,
e outros em bom uso, denotando tanto a larga utilização como o investi- mas já com traços neoclássicos, que tanto impressionou Saint-Hilaire em
mento na renovação dos utensílios –, destilador, esfriadeiras.20 1816. Tratava-se de uma ampla construção dividida em duas alas separadas
O inventário já apresentava uma modesta roça de café, recém-plan- por uma capela no centro de proporções razoáveis. Luís e sua família habita-
tado, avaliada pela pequena quantia de três mil réis. Um nada se comparado vam em uma das alas e a sogra e seus filhos na outra. Entretanto, desde 1811,
às trinta e nove arrobas de açúcar, avaliadas cada uma a mil e duzentos réis, haviam começado os desentendimentos entre a sogra e seu filho Joaquim
perfazendo o total de quarenta e seis mil e oitocentos réis.21 A partir deste Ribeiro de Avelar por um lado, e Luís pelo outro. Joaquim, nesta altura, estava
dado, pode se ter como marco do início da cultura do café na região, em com 20 anos e queria ter mais voz, se não o mando, nos negócios da família.24

18 OLIVEIRA, Luís César de. Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Serra Acima, 1800-1810.
2008. Monografia de conclusão de curso, Departamento de História, Universidade Severino 22 INVENTÁRIO de Luís Gomes Ribeiro. Vassouras: Centro de Documentação Histórica da
Sombra, Vassouras, 2008. Universidade Severino Sombra, 1839; INVENTÁRIO de Manoel Francisco Xavier. Vassouras: Centro
19 SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda viagem do Rio de Janeiro a São Paulo e a Minas Gerais. Belo de Documentação Histórica da Universidade Severino Sombra, 1840.
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975. 23 MUAZE, Mariana. As memórias da viscondessa: família e poder no Brasil imperial. Rio de Janeiro. J.
20 INVENTÁRIO de Francisca das Chagas. Zahar, 2008.
21 Ibid. 24 Ibid.

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O fato de que, neste momento, se intensificava a ocupação da região, exerciam forte poder político, econômico e/ou militar. O mais notável des-
com novas doações de sesmarias e ampliação das existentes, ainda na esteira ses casamentos foi o de Maria Isabel com Francisco Peixoto de Lacerda
da expansão da produção de açúcar para mercado mundial e com a vinda Werneck, filho de Ana Matilde Amélia Werneck e Francisco Peixoto
da Corte para o Rio de Janeiro, talvez tenha contribuído para acirramento Lacerda, como vimos há pouco. O futuro barão de Paty do Alferes logo se
das disputas entre Joaquim e o cunhado. Em 1817, deu-se o rompimento da tornou um dos principais proprietários e chefe político da região. Maria
Sociedade do Pau Grande. Luís Gomes Ribeiro, com a esposa e filhos, deixou Isabel casou-se cedo, em 1823, como era comum, e no ano seguinte, com
a propriedade e passou a residir na fazenda do Guaribu, um desdobramento 16 anos, teve seu primeiro filho. Nesta altura, Lacerda Werneck já ocupava
da própria Pau Grande. Apesar do rompimento da sociedade, estes conflitos uma posição proeminente, tendo apoiado ativamente o “Partido Brasileiro”
não significaram a ruptura dos laços familiares entre o ramo da família que na época da independência.
permaneceu na Pau Grande e aquele que se deslocou para a Guaribu. Cláudio, nosso personagem principal, devia ser o filho mais velho de
Essa apartação reproduzia um processo comum de ocupação das ter- Luís e Matildes, ou o segundo a ter nascido. Em seu testamento, redigido em
ras na região. Por um lado, esse processo podia ocorrer por incorporação 1829, Luís nomeou como seus testamenteiros a esposa, em segundo lugar,
de novas terras, muitas delas virgens, ao domínio de um mesmo senhor ou seu filho Francisco e, na ausência de ambos, Cláudio. De acordo com a idade
clã familiar. Esse foi o caso da formação da casa de Pau Grande. Esse tipo de que declarou em seu testamento, Cláudio teria nascido em 1800. Contudo,
expansão, normalmente ainda que não de forma exclusiva, foi mais comum como nasceu no Rio de Janeiro e em 1800 seu pai já vivia na fazenda Pau
no momento de ocupação do território. Por outro lado, a ocupação de terras Grande, é muito provável que tenha nascido antes. De qualquer forma, na
ocorreu também, como foi o caso da Guaribu, por divisão no interior de um altura em que Luís redigiu seu testamento, já era homem feito e de certa
mesmo clã e a formação de novos ramos familiares e novas casas. De um modo importância. Em 1833, quando da formação da primeira Câmara Municipal
ou de outro, esse processo trouxe um dado importante no que toca a formação de Vassouras, foi eleito vereador. Já seria então ele mesmo um proprietá-
das grandes propriedades rurais. Um grande senhor de terras e escravos mui- rio de terras e escravos? Provavelmente. Como adquirira essa propriedade?
tas vezes não era o detentor de apenas uma unidade agrária. À medida que Fora-lhe passada às mãos por doação paterna ou fora por ele comprada?
uma propriedade crescia em número de pés de café plantados, a expansão se Não há como saber ao certo. O fato é que, como seus irmãos, entre os anos
dava pela aquisição ou uso de outro conjunto de terras, geralmente próximas à de 1830 e, no máximo, na primeira metade dos anos de 1840, ele se tornou
sede anterior, mas entremeada por outras propriedades. Assim, se consolidou um grande proprietário.25
um padrão de ocupação da terra semelhante a uma grande colcha de retalhos, Francisco era comerciante e na ocasião do testamento já devia estar
onde grandes unidades eram vinculadas entre si pela propriedade e adminis- estabelecido na cidade do Rio de Janeiro, ainda que também possuísse
tração centralizada, mas, algumas vezes, espacialmente separadas por outras terras. Nesta praça, cuidava de negociar as mercadorias produzidas pela
unidades, normalmente menores. Tudo isso promovia constantes desloca- Guaribu e outras fazendas. Outro irmão, Antônio Gomes Ribeiro, à mesma
mentos por terras, busca de alianças, pressões por compra, inimizades, etc. época, já era senhor da fazenda do Mato Grosso, onde se deu parte do
Foi neste quadro que os negócios da Guaribu e da família de Luís inquérito do caso Manoel Congo, em 1839. Paulo Gomes Ribeiro ainda
Gomes Ribeiro, entre sua saída da Pau Grande, em 1817, e sua morte, em não deixara a casa paterna. Era o administrador da Guaribu e também do
sítio dos Encantos. Viria a se tornar proprietário da fazenda São Luís, que
1839, migraram para o café. E, com essa migração, se expandiram consi-
provavelmente passou a suas mãos quando se casou com sua ex-cunhada,
deravelmente, seja em termos de aquisição de novas terras, seja por sua
Feliciana José de Carvalho Avelar, viúva de seu irmão Francisco.
subdivisão em um conjunto maior de propriedades. Vejamos.
A Guaribu era a origem e o centro de todo esse complexo de proprie-
Do consórcio entre Luís Gomes Ribeiro e Matildes de Assunção, nas-
dades familiares. No final da década de 1830, era uma fazenda de grande
ceram 13 filhos, seis meninas e sete meninos. Todas as filhas se casaram
com parentes e aparentados ou com membros de respeitadas famílias, que 25 GRINBERG; BORGES; SALLES, 2009.

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estrutura. De acordo com o inventário de Luís, aberto em 1841, dois anos anteriores para a produção de café, caso da própria Guaribu e de proprie-
após sua morte, tinha 244 escravos e uma grande quantidade de instrumen- dades mais antigas, como a Pau Grande, a Ubá e a Freguesia. Pelo número
tos agrícolas: 127 enxadas, 9 foices, 21 foicinhas, 20 machados. Tinha toda de pés de café aproximado com o da fazenda Guaribu, no entanto, pode-se
a tralha necessária para equipar tropas de muares e grande quantidade de dizer que o cultivo da rubiácea começou mais ou menos na mesma época
ferramentas de pedreiro, ferreiro e carpinteiro. Eram duas casas de vivenda, nas duas unidades.29 Esse processo de implantação foi longo, complexo,
sendo uma provida de quarto de hóspedes. Uma casa de recolher café, uma custoso e envolveu riscos financeiros de porte.
casa de engenho com pilões de oito mãos, um paiol de sete lances, dois moi- Vale a pena se deter sobre esse ponto com um pouco mais de vagar,
nhos e um engenho de serrar. Era dotada ainda, e diga-se que isto não era uma vez que ele traz importantes consequências de ordem historiográfica.
comum na época, de uma olaria com forno de cozer telhas e um engenho A terra era preparada para o cultivo através do desmatamento e desto-
para fabrico de açúcar e aguardente. A fazenda, que fazia rumo com as do camento. A primeira operação era realizada a machado e fogo. As melhores
Pau Grande e Ubá, tinha 119 mil pés de café.26 e maiores árvores eram derrubadas e a madeira, que não fosse imediata-
Se a estrutura da Guaribu, em 1839, já era de admirar, vale lembrar que mente utilizada nas demais construções da fazenda, era armazenada para
se tratava de uma unidade de moradia e produção com início ou ampliação uso futuro. Depois disso, restava ainda realizar a retirada dos grandes tocos
de suas atividades a partir de 1817. O sítio dos Encantos era uma propriedade com raízes e da vegetação rasteira. Tratava-se do roteamento, ou, como
mais recente. Em seu testamento, de 1829, Luís declarava ter “dado à minha escreveu Luís em seu testamento, da “roteação” da terra. Essa tarefa era
mulher voluntariamente trinta escravos para roteação e cultivo de um sítio penosa e demorada. Por isso, ele designara 30 escravos para sua realiza-
denominado Encantos”.27 Rotear a terra significava limpar o terreno de sua ção no sítio dos Encantos. O terreno estava, então, pronto para o plantio
vegetação rasteira, que não era destruída com a derruba e queimada da das mudas. A formação ou ampliação dos cafezais, em escala comercial, se
mata. Na década seguinte, sob a administração de Paulo, ainda um rapaz dava através do reconhecimento dos melhores pés de café e da retirada de
de seus 20 anos, a propriedade se transformou em uma grande unidade suas mudas para replantio, e não através de sementes. Sabemos desse fato
de produção. Pelo inventário de Luís Gomes Ribeiro, sabemos que tinha por um processo criminal de 1840, envolvendo escravos da Guaribu, onde
então uma casa de vivenda, paiol, moinho tocado por água, com engenho foi mencionado que alguns cativos estavam saindo da senzala, na parte da
de pilões e ventilador para secar café. Havia ainda um engenho de farinha manhã, para a função de retirada das mudas de café.30
de mandioca movido por roda d’água, uma casa de máquinas e nela um O cultivo por mudas e não por sementes produzia melhores resultados,
moinho tocado por tração animal (usava-se bestas para este fim). Para o mas era muito mais trabalhoso e dispendioso, por ser um processo mais deli-
trabalho no eito, contava com 103 escravos. Cento e nove mil pés de café cado, que requeria mão de obra dedicada a esse fim. Além de cultivá-las,
estavam plantados, quase o mesmo número da Guaribu.28 havia que transportá-las de forma cuidadosa para lhes garantir sobrevida
A Encantos pode ser tomada quase como uma propriedade “modelo” até o lugar do plantio. Esse era feito em linhas traçadas e esquadrinhadas
do ponto de vista da implantação da cultura do café na região do médio perpendicularmente aos morros ou, mais raramente, em curvas de nível. Lá,
Vale, especialmente em Vassouras, Valência e adjacências. Diferentemente elas eram colocadas cuidadosamente em covas previamente preparadas, com
da Guaribu, não sofrera qualquer transformação ou adaptação de atividades largura e profundidades suficientes para garantir o crescimento da planta.
Após o plantio da muda no solo, era necessário uma série de outros cuidados,
26 TESTAMENTO de Luís Gomes Ribeiro. Vassouras: Centro de Documentação Histórica da
Universidade Severino Sombra, 1829.
27 TESTAMENTO de Luís Gomes Ribeiro.
28 TESTAMENTO de Luís Gomes Ribeiro; SALLES, Ricardo; BORGES, Magno Fonseca. Vassouras – 29 TESTAMENTO de Luís Gomes Ribeiro.
1830-1850: poder local e rebeldia escrava. In: CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lúcia Maria B. 30 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Processo Criminal. Homicídio. Réu:
P. das Neves (Org.). Repensando o Brasil do oitocentos: cidadania, política e liberdade, Rio de José Crioulo. Vítima: Esperança. Vassouras: Centro de Documentação Histórica da Universidade
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. Severino Sombra, 1840.

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que iam da rega à proteção contra as formigas cortadeiras, que proliferavam Os investimentos realizados por Luís Gomes, possivelmente na transforma-
e atacavam, de forma voraz, quando a mata era levada ao chão ou queimada. ção do sítio dos Encantos em fazenda de alta produtividade, dotada de inú-
Até a época da primeira colheita do café em escala comercial, ainda que meras benfeitorias e equipamentos, demandara investimento de capital. É
com pequeno retorno, transcorreriam cinco anos. Se tudo desse certo, valia a possível que Luís tenha obtido o dinheiro junto a seu filho. De qualquer
pena. O pé de café era um bem de capital, que renderia frutos todos os anos forma, o fato é que em seu inventário, todos os seus herdeiros reconheceram
numa curva de aproximadamente vinte anos, quando começava seu envelhe- que o casal tinha uma dívida de 46:223$934 para com Cláudio.32
cimento e sua queda acentuada de produtividade. Na mesma época em que Era um montante significativo, ainda que perfeitamente pagável, como
no Médio Vale se implantava a cultura do café, tratados agrícolas que circu- se verá. Representava cerca de ¼ do monte total do inventário de Luís. Se
lavam no reino das Duas Sicílias recomendavam a substituição da cultura de agregarmos ao valor do monte – o conjunto de bens pertencentes ao casal
grãos pelo cultivo de árvores perenes, mais lucrativas no mercado mundial que Luís havia disposto e distribuído ainda em vida – sua terça, podemos
e que tinham valor intrínseco. Essas culturas perenes passavam a constituir estimar que ele fora capaz de acumular uma fortuna aproximada de uns
um importante ativo, além de render periodicamente com a colheita de seus 350 contos de réis. Portanto, no que diz respeito à sua dívida com Cláudio,
frutos. Ainda de acordo com esses tratados, essa era uma forma de adaptar ainda estamos falando de um valor superior a 10% de todos os bens do
a atividade agrícola às novas condições de expansão do mercado mundial, casal Gomes Ribeiro. Para poder dispor deste valor para emprestar ao pai, é
promover a civilização nas áreas rurais e modernizar a propriedade agrícola porque Cláudio já havia amealhado bens e fortuna consideráveis, talvez até
de grande porte, capaz de produzir em escala comercial.31 superiores à fortuna acumulada pelos pais. Mas, o mais interessante dessa
Com ou sem conhecimento direto dessa recomendação e prática que dívida entre pai e filho, do ponto de vista da historiografia, está em como ela
embasavam a expansão do cultivo de oliveiras e a produção de azeites pelo foi incorporada, tratada e paga na partilha. A começar com uma afirmação
sul da península italiana, era isso que se estava fazendo com o café no Vale no auto de partilha de que também não entravam...
do Paraíba.
E com enorme sucesso. [...] em monte os trinta e seis contos, trezentos vinte seis mil, seiscentos e
trinta reis (36:326$630), que declara o inventariante a folhas vinte e sete verso,
de ter havido de rendimento líquido nas Fazendas, como das contas folhas
acumulação de capital escravista quarenta, e folhas quarenta e duas, por terem sido dados por conta de qua-
renta e seis contos, duzentos e vinte e três mil, novecentos trinta e quatro reis
Tudo isso é fundamental para entender a trajetória de Cláudio Gomes (46:223$934), que o casal comum devia ao herdeiro Claudio Gomes Ribeiro
Ribeiro de Avelar, absolutamente interligada com a implantação, expansão e de Avelar, como da declaração folhas trinta e nove, comprovada com o reque-
apogeu da cultura escravista do café na região. Mas é mais importante ainda rimento mandado, e quitação folhas; e por isso só a quantia restante de nove
para entender o caráter absolutamente moderno e voltado para lucro de sua contos, oitocentos, novecentos. Digo de nove contos, oitocentos e noventa e
sete mil, trezentos e quatro reis (9:897$304). E que se atende na presente
trajetória, assim como a dos outros potentados do café no mesmo período. partilha ao dito herdeiro.33
Entre 1817, quando abandonara a fazenda Pau Grande junto com o pai,
e 1833, quando foi um dos vereadores da Câmara de Vassouras, é quase certo Ao apresentar a cobrança no inventário, todos os herdeiros foram unâ-
que Cláudio já tivesse constituído sua própria plantation, provavelmente a nimes em concordar com a veracidade da dívida. José Gomes Ribeiro de
fazenda das Antas. O fato é que, em 1839, já havia conseguido promover acu- Avelar, no entanto, mesmo reconhecendo a dívida, fez a exigência que a
mulação suficiente para figurar no inventário do pai, como seu único credor. mesma não fosse paga com bens do casal. Leia-se: escravos e terras. Dizia

31 PETRUSEWICZ, Marta. Latifundium: moral economy and material life in a European periphery.
Michigan: The University of Michigan Press, 1999; DAL LAGO, Enrico. Agrarian elites: American slave- 32 INVENTÁRIO de Luís Gomes Ribeiro.
holders and southern Italian landowners, 1815-1861. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 2005. 33 Ibid.

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ele: “Pague-se sim. Mas não com os bens do casal; porquanto o casal não e mesmo o ampliaram. Entre 1823 e 1870, as exportações brasileiras salta-
está em circunstâncias de lançar mão de bens para pagar dívidas...”.34 ram de 13.560 para 208.250 toneladas métricas. Isso apesar, ou por conta, da
Algumas conclusões podem ser tiradas de tudo isso. Em primeiro constante queda de preços do produto, em parte compensada pela valoriza-
lugar, é provável que Cláudio quisesse que sua dívida fosse paga exatamente ção cambial, que se prolongou até 1848.
com terras e, principalmente, escravos. Essa conclusão é reforçada pelo fato A perenidade da cultura do café e a estabilidade e equilíbrio demográ-
de que ele, diante da impossibilidade disso acontecer dada a interdição de ficos dos grandes plantéis, já formados ou em vias de se formar a partir da
José, pôs-se a comprar, total ou parcialmente, a parte em escravos que cabia década de 1850, explicam também porque, mesmo depois de efetivamente
a cada um dos demais herdeiros, seus irmãos. extinto o tráfico, a produção escravista de café no Vale permaneceu sendo um
A segunda conclusão que se impõe com a história da dívida entre Luís e negócio extremamente lucrativo, até, pelo menos, o início da década de 1880.
Cláudio é sobre a lucratividade excepcional de uma fazenda de café no final Voltemos à partilha dos bens e, particularmente, dos escravos de Luís
da década de 1830. Somente a safra de 1839 rendera líquido, isto é, desconta- Gomes Ribeiro. A viúva Matildes ficou com 252 dos 411 escravos que per-
dos os gastos com transporte e comissões para fazer chegar e vender o café tenciam ao casal. Destes, 90 pertenciam à Guaribu, que tinha 244 escra-
no Rio de Janeiro, mais de 36 contos de réis! O que correspondia a cerca de vos no total. Cláudio ficou com 55 cativos. Apenas três não pertenciam à
10% do total dos bens de Luís Gomes Ribeiro e sua esposa. Que outro inves- Guaribu. Paulo, que era o administrador da Guaribu e dos Encantos, ficou
timento poderia dar tamanha rentabilidade no Brasil imperial de então? com 11 escravos. Os demais herdeiros ficaram com grupos que variaram de
Não admira que Cláudio preferisse escravos e terras na hora de receber 4 a 18 cativos.36
sua dívida. Cai por terra, aqui, a tese do arcaísmo como motor principal do Em algum momento entre a morte do pai e a da mãe, em 1847, oito
investimento em escravos e terras. Plantar, colher, beneficiar e vender café anos depois, se não imediatamente após o falecimento do pai, Cláudio
Serra Acima dava um retorno superior, ou ao menos comparável, a qualquer assumiu os negócios da família. Em 1847, ele foi o inventariante dos bens
outra atividade disponível no mercado brasileiro, e talvez até atlântico. da mãe. Possivelmente, neste mesmo período, adquiriu novos escravos.
O cálculo e a decisão de Cláudio de investir em escravos, terras e café Quando Matildes morreu, ela possuía 200 escravos. A comparação com os
deu certo. Em um espaço de 24 anos entre a morte de seu pai e a sua, ele 252 que lhe couberam do inventário de Luís, em 1841, representa uma perda
acumulou uma fortuna cinco vezes maior, ao menos em termos nominais, de 1/5 do plantel. Uma perda muito significativa para que tenha sido cau-
do que o monte do inventário de seu pai. A principal razão para isso estava sada por mortes, ainda que isso não fosse impossível. Talvez tenha doado
na evolução dos preços dos escravos neste período. Em média, ele evoluiu ou vendido alguns desses escravos, eventualmente a Cláudio. Em seu tes-
de cerca de 250 mil réis em 1839 para quase um conto de réis em 1863.35 tamento, ditado no Rio de Janeiro, em 1841, ela já o fizera legatário da terça
Ou seja, eles quase quadruplicaram no período. Essa alta de preços, parte de seus bens de que podia dispor livremente. Por esse testamento,
se teve um grande fator impulsionador com o fim do tráfico em 1850, já ditado pouco depois da morte do marido, sabemos também que seu filho
vinha de antes, iniciando-se exatamente no começo da década de 1840. Ela Francisco havia falecido, uma vez que não constava entre seus herdeiros e
refletia, em um momento de recrudescimento do tráfico, a valorização dos que Joaquina e Luís haviam se mudado para o Rio de Janeiro, onde mora-
negócios do café como um todo. A evolução das exportações de café bra- vam em uma casa perto do Largo de São Francisco.37 Paulo ficara sendo o
sileiro no mercado internacional explicam por que os senhores do Vale, e administrador das fazendas, possivelmente sob a supervisão de Cláudio,
com eles, o governo imperial, apesar da proibição legal de 1831, da pressão que, nesta altura, já tinha sua própria fazenda.
inglesa e do aumento dos preços dos escravos, mantiveram o tráfico aberto
36 AUTO de partilha de Luís Gomes Ribeiro.
34 INVENTÁRIO de Luís Gomes Ribeiro. 37 TESTAMENTO de Joaquina Matildes de Assunção. Vassouras: Centro de Documentação Histórica
35 Fonte: dados colhidos nos inventários de Vassouras, 1821-1880. da Universidade Severino Sombra, 1841.

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O fato é que Cláudio recebeu com a morte de sua mãe cerca de 70 Sumariando, a Guaribu era a principal propriedade de Cláudio.
escravos, mais os que lhe cabiam como herdeiro. O fato é que ele seguiu Concentrava a maioria de seus escravos, seus cafezais eram os mais valio-
acumulando cativos. Quando morreu, em 1863, possuía 823 escravos, prati- sos, ainda que suas terras não tivessem, proporcionalmente, tanto valor
camente o dobro da quantidade pertencente a seu pai em 1839. Também as quanto as das demais propriedades. Tomando-se como marcos a ida de Luís
fazendas do Guaribu e o sítio, agora fazenda, dos Encantos haviam passado Gomes Ribeiro para a Guaribu, em 1817, e a morte de Cláudio, em 1863, a
às suas mãos. A menção em seu testamento à Guaribu Velho faz supor que evolução dos negócios desse ramo da família Avelar confundiu-se com a
essa propriedade fora por ele expandida ou passara por reformas. Esse pro- expansão do café. Esta expansão, por sua vez, baseou-se na expansão das
cesso pode, inclusive, ter se iniciado ainda durante a vida do pai e adminis- terras para cultivo e no incremento dos números da escravaria. Em 1863,
tração de Paulo, se lembrarmos que o inventário de Luís menciona a exis- como mostra a análise do valor das terras de suas fazendas comparadas
tência de duas casas de vivenda. Além da Guaribu e da Encantos, Cláudio com o valor dos cafezais e o número de escravos por unidade de produção,
possuía mais duas fazendas que não estavam listadas entre os bens de seu ainda havia terras disponíveis para o plantio na região de Vassouras.
pai, a das Antas e Boa União.
A Guaribu era a sede principal dos negócios do barão de Guaribu.
o plantel e a comunidade de plantation
Nela, estavam erguidas as edificações mais valiosas, com casa de vivenda
e grandes senzalas. Na sua parte do inventário, também foram arrolados A parte mais valiosa da fortuna de Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar, seu
utensílios de prata. Logo após a listagem de seus bens, o inventário elen- plantel de escravos, era bem mais que um conjunto de bens. Ainda que não
cava móveis com valor pouco superior a cinco contos de réis, possivelmente se deva perder de vista este fato por um só instante, como não perdiam os
pertencentes também à Guaribu. Finalmente, o desejo manifestado por contemporâneos. Em última análise, esta era a condição que mais pesava
Cláudio de que fosse enterrado na capela da Guaribu, se já estivesse con- em sua sorte, que limitava suas escolhas e demarcava seu alcance, ainda que
cluída, corrobora esta conclusão. A propriedade era produtiva. Concentrava nunca isoladamente. A condição para que o plantel “funcionasse” era que ele
444, ou 59,63%, dos escravos do barão, e suas terras estavam avaliadas em se constituísse, muito rapidamente, em um corpo coletivo de trabalho. Um
41:150$000, equivalentes a 27,05% do conjunto de terras. O valor de seus corpo que deveria “funcionar” de forma perene, ao longo de um período de
cafezais era de 71:060$000, 52,84% do total dos cafezais.38 tempo prolongado, por anos e mesmo décadas. A constituição desse corpo
A fazenda dos Encantos, com seus 80 cativos, possuía cafezais, avalia- coletivo e perene de trabalho requeria e implicava em sua transformação em
dos em 13:820$000, 9,54% do total desse ativo. Possivelmente, ainda tinha uma comunidade de plantation. Os grandes e médios plantéis de cativos,
terras por cultivar, já que suas terras estavam avaliadas em 36 contos de por mais recente e marcada pelo tráfico que fosse sua formação, nunca eram
réis, valor pouco inferior ao das terras da Guaribu. As outras unidades pro- apenas um agrupamento de homens reunidos para o trabalho. Uma parte
dutoras eram as fazendas das Antas e Boa União, em quase tudo avaliadas considerável do tempo dos escravos era dedicada a atividades “sociais” que
em conjunto, o que faz supor que suas terras fossem contíguas. As duas resultavam em outras clivagens organizativas e sociabilidades que não aque-
juntas concentravam 311 escravos (33,14% do total). Suas terras equivaliam las ditadas pela produção. Demograficamente, suas idades, procedências,
a 49,30% do valor de todas as terras das fazendas, praticamente o dobro aptidões, condições físicas e mentais, crenças e valores eram diferenciados.
do valor das terras da Guaribu. A Boa União não possuía cafezais ou estes Mesmo que houvesse uma predominância de adultos jovens do sexo mascu-
foram avaliados juntamente com aqueles das Antas. Estes tinham seu valor lino, em seu meio, havia também a presença de mulheres, crianças e idosos.
estimado em 60 contos, 44,62% do valor de todos os cafezais.
Laços familiares, mais ou menos estáveis e em maior ou menor número,
eram estabelecidos. Esses cativos interagiam entre si, com seus senhores,
seus prepostos e com pessoas da comunidade mais abrangente.
38 INVENTÁRIO de Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar.

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Nestas circunstâncias, dizer que os cativos, através de suas vontades, faces de uma mesma moeda de reiteração das relações sociais escravistas. O
ações, práticas, costumes, crenças e valores, conformavam seu mundo, e cessamento do tráfico, em 1850, afetou essa dinâmica, ainda que em ritmo
mesmo o de seus senhores, não é um exagero. Derivar disso – que eles, por lento e não mecanicamente. Ela continuou sendo modulada e vivida no
estes meios, muitas vezes superassem suas condições sociais –, pode levar interior das relações de forças entre senhores e escravos.39
a profundos equívocos. Seu mundo era, antes de tudo, o de seus senhores, Essas relações de forças e dinâmica socioeconômica eram marcadas,
ainda que eles também o moldassem, e nele influenciassem, etc. A von- por sua vez, pela cultura e pela ideologia patriarcal-paternalista escravista
tade e os interesses que predominavam nesse mundo era a dos senhores. que caracterizava o ethos e o habitus senhoriais e condicionava o mundo
Entender que os escravos forçavam a vida comunitária em contraposição prático e cultural em que se moviam tanto senhores como escravos.
aos senhores, que só queriam deles extrair sobretrabalho, é uma simplifica- Senhores e escravos, contudo, moviam-se neste mundo de formas e com
ção ingênua das relações sociais e de poder. O trabalho escravo para existir consequências diferenciadas e desiguais. A constante resistência escrava à
e produzir requeria e implicava na comunidade de plantation, tanto quanto, escravidão – ideia cara à nova historiografia da escravidão e ao chamado
durante a vigência do tráfico internacional, requeria e implicava na comu- paradigma da agência40 – ocorria no espaço subalterno delimitado por esta
nidade africana de origem que seriam escravizados. O africano, que morria cultura e ideologia. Cultura porque, fruto da interação e dos confrontos
socialmente com sua escravização, renascia cativo na comunidade de plan- entre senhores e escravos, era diversa, plural, complexa, em suas origens e
tation. E, quando não estava em uma situação imediata de plantation, sua práticas. Ideologia, e ideologia de classe e senhorial, na medida em que essa
situação era condicionada pela economia de plantation e pela sociedade cultura não era neutra e não afetava ou era vivida da mesma maneira e em
escravista que em torno dela se organizava. iguais condições por todos os agentes. Em seus testamentos, para ficarmos
O recrudescimento da escravidão e do tráfico atlânticos, em íntima no corpo discursivo em que estamos baseando boa parte de nossa análise,
conexão estrutural com o desenvolvimento do mercado internacional capi- senhores encomendavam missas pela sua própria alma e a de seus parentes
talista, a partir da última década do século XVIII, além de seu óbvio impacto mortos, além das almas do purgatório. Também o faziam pelas almas de
econômico, teve implicações de ordem cultural e política. No caso especí- seus cativos falecidos. Gratidão e mesmo afeto apareciam nas alforrias e
fico que aqui nos interessa, o do que estamos denominando de comuni- benevolências que concediam a alguns e às vezes até muitos de seus cati-
dades de plantation, no Brasil e, mais especificamente, na região da Bacia vos. Com isso, salvavam suas almas e aliviavam suas consciências, porque
do Paraíba, esse impacto se deu sobre um chão socioeconômico e cultural havia uma tensão inerente e constituinte entre sua consciência cristã e a
preexistentes. Mesmo nas áreas do Vale que foram desbravadas para dar nova concepção liberal e racional de ser humano e a escravidão, mesmo
lugar à implantação da cultura cafeeira, onde, portanto, os aspectos de uma quando esta fosse, e normalmente era, justificada por outros motivos. Com
dinâmica mercantil e produtiva capitalista foram os determinantes, isso foi isso, também reafirmavam e reiteravam seu papel, posição, autoridade e
feito a partir de práticas e costumes já estabelecidos. Práticas e costumes o mundo escravista, reafirmando seu lugar de patriarcas de uma família
estes que remetiam a uma inserção secular na produção para o mercado social estendida, que incluía seus escravos.41
internacional e, em menor escala e de forma subordinada, interno. Práticas Reconhecer as limitações da agência escrava não quer dizer que estes
e costumes que, igual e não menos significativamente, eram fruto das lutas fossem seres inermes e amorfos, submetidos ao bel-prazer de seus senhores.
também seculares entre senhores e escravos, entre traficantes e cativos.
Todo esse complexo socioeconômico e cultural adaptou-se às novas con- 39 MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e
alforrias, séculos XVII a XIX. Novos Estudos, São Paulo: Cebrap, n. 74, mar. 2006.
dições de desenvolvimento do mercado histórico internacional capitalista, 40 CHALHOUB, Sidney; SILVA, Fernando Teixeira da. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e tra-
assim como foi também um dos vetores de sua formação. Em conjunto, esse balhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, São Paulo, v. 14, n. 26, 2009.
processo histórico resultou no que Rafael Marquese chamou de dinâmica 41 Sobre a questão do paternalismo nas relações entre senhores e escravos no Novo Mundo, especial-
mente no sul dos Estados Unidos, ver os trabalhos de Eugene Genovese, entre eles, O mundo dos senho-
da escravidão no Brasil. Dinâmica em que alforrias e tráfico eram as duas res de escravos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, e Roll Jordan roll. Nova York: Random House, 1976.

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Tampouco se pode especular sobre se assim fossem, como seria o compor- De qualquer forma, o que se pode perceber é que, entre 1830 e 1850,
tamento dos senhores. Esse seria um jogo contrafactual e anacrônico. Suas Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar se valeu fortemente do tráfico interna-
vontades, desejos, costumes, ações, práticas contavam e os senhores sabiam cional para compor seu plantel de escravos. Em 1863, seus escravos africa-
disso, contavam e viviam – bem – com isso, ainda que não sem temores e nos eram numerosos e tinham diversas procedências. Foram listados como
sobressaltos. Debitar toda e qualquer ação e prática dos escravos na conta angolas, benguelas, cabindas, calabares, cassanges, congos, inhambanes,
de sua resistência é transformar essa noção numa tautologia inócua que minas, moçambiques, mucenas, monjolos, quilimanes, rebolos, sofalas.
nada explica ou especifica. Ações de resistência eram contrárias às normas Dois foram nomeados como mouros.
e aos costumes, ainda que esperadas. Por isso eram punidas, com castigos Na listagem, constava o ofício de 36 cativos. Como nenhum destes era
também previstos e esperados. Mas eram a exceção e não a regra do mundo da roça e todos tivessem ofício especializado, pode se supor que os demais
escravista. Quando isso se invertia, e isso não deixou de acontecer, era a adultos, tanto homens como mulheres, fossem dedicados ao trabalho no
crise das relações escravistas. Crise que, em alguns casos, foi fatal para o campo, na criação de animais e em outras tarefas da produção. Todos os
poder senhorial. escravos com ofícios eram homens. Nada menos que 19, ou 52,8% deles,
Tudo isso também não quer dizer que, individual e, mais excepcio- eram casados. Dezesseis eram africanos, 13 de procedência ignorada e sete
nalmente, coletivamente, alguns escravos não obtivessem por suas forças, eram crioulos. Cinco eram capatazes, todos casados, três africanos e dois de
pelas circunstâncias em que viviam, assim como por outros fatores, con- procedência ignorada. Nove eram tropeiros, quatro africanos e os demais
quistas efetivas em relação à condição em que se encontravam na sociedade de procedência ignorada. Seis eram pedreiros, dois crioulos, um africano
escravista. Isso acontecia e esses ganhos podiam ser significativos. Podiam e os demais sem procedência. Seis eram carpinteiros, quatro africanos e
significar a liberdade e mesmo sua passagem para a condição de um pro- dois crioulos. Dois eram ferreiros, ambos africanos. Constavam ainda um
prietário de escravos. Essas possibilidades, no entanto – e como veremos caseiro, um copeiro, um cozinheiro, um do moinho, um enfermeiro, um
adiante –, tinham limites dificilmente transponíveis e eram, via de regra, hortelão, um marceneiro e um mucamo. A não ser provavelmente quando
reforçadoras da ordem escravista, tanto do ponto de vista local quanto geral velhos, estes cativos estavam entre os escravos mais valiosos de Cláudio. De
e institucional. seus cinco capatazes, quatro foram avaliados em 1:800$000 e um, Dionísio,
A formação do plantel de cativos de Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar de procedência ignorada, em dois contos de réis. Quatro dos carpinteiros,
e sua transformação em uma comunidade de plantation, em que ele atuava Germano, inhambane, Faustino, de procedência ignorada, José e Laurindo,
como senhor e patriarca, foi parte integrante do processo que generi- crioulos, valiam 1:600$000. Marcos, marceneiro, de procedência moçam-
camente descrevemos acima. É possível ter uma ideia de como Cláudio bique, estava avaliado em 1:200$000. Belisário, sem procedência, era os
formou seu plantel e como tudo isso aconteceu. Seus primeiros escravos, escravo sem ofício mais valioso: 1:800$000. Outros tantos, com proce-
ainda antes da morte de seus pais, devem ter sido adquiridos principal- dências diversas e sem ofício declarado, foram avaliados entre um conto e
mente pela compra de africanos novos trazidos pelo tráfico internacional. 1:700$000 réis.
Alguns ainda antes da primeira proibição deste comércio do tráfico, em O conjunto desses dados – origem africana, condição de casado ou
1831. Lembremos que, por esta altura, ele já era homem feito e vereador da envolvido em uma relação estável, ofício e valor elevado – indica que esses
primeira Câmara Municipal de Vassouras. A compra de africanos pode ter escravos não valiam apenas pelo ofício que exerciam. Com a exceção óbvia
diminuído no interregno do tráfico residual até, mais ou menos, 1835. A dos capatazes, os demais escravos com ofícios tinham valores compatíveis
partir daí, as novas aquisições de cativos africanos devem ter sido retoma- com outros cujo ofício não foi listado. Assim, pode-se considerar que a pró-
das em escala ainda maior. Infelizmente, na listagem de 1863 de seus escra- pria condição de escravo com um ofício refletia um papel e posição de des-
vos em seu inventário, não constam suas idades, o que poderia confirmar, taque na comunidade de plantation. O fato de que 52,8% dos escravos com
com mais certeza, esse movimento de formação do plantel. ofício fossem casados, contra 24,1% de todo o plantel, reforça essa hipótese.

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Estamos diante de algo semelhante ao que Manolo Florentino e Roberto já adultos e separados de seus pais, também entrassem neste rol, não sendo,
Pinto de Góes chamaram de capital político dos senhores.42 entretanto, listados como tais. A idade mais nova encontrada em 1874 é de
Só que aqui já não se trata de uma coletividade impactada e mexida 10 anos. Pode ser que os menores não fossem avaliados, ou o fossem com
pela incidência do tráfico atlântico. Lembremo-nos que estamos em 1863. A seus pais ou com suas mães. Em 1885, os escravos remanescentes só foram
comunidade de plantation que se formara a partir da acumulação escravista listados a partir dos 21 anos de idade. Isso, por um lado, reforça a suposição
de capital – e de escravos –, realizada por Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar, acima, uma vez que estes escravos teriam nascido depois de 1863. Por outro,
era uma comunidade estável, com uma majoritária presença de crioulos em mostra que, nesta ocasião, algum outro critério foi utilizado como idade
seu interior. Aprofundemos este ponto. mínima, agora fixada em 21 anos, para a avaliação e listagem.
Quando o tráfico internacional cessou ou diminuiu substancialmente, Apesar de termos as listagens dos escravos do barão de Guaribu nas
Cláudio lançou mão do tráfico interno para abastecer suas fazendas de mão avaliações de 1874 e 1885, dada a incidência de nomes repetidos e a não
de obra. Na primeira avaliação, em 1863, havia diversas marcações de escra- existência de sobrenomes entre os cativos, fica muito difícil afirmar que
vos provenientes de outras localidades ou províncias no Brasil: 34 baianos, determinado escravo que encontramos na avaliação de 1863 seria o mesmo
11 cariocas, um escravo de Iguaçu e três mineiros. Em 1863, a proporção que encontramos em 1874 ou 1885. O fato de que muitos cativos tivessem
entre cativos africanos e crioulos na formação do plantel estava equilibrada. idade avançada, acima de 60 anos, sendo 55 deles com mais de 80, em 1885,
Para 618 dos 823 escravos listados em seu inventário, constava a informação é um claro indício da estabilidade da comunidade de plantation formada
de naturalidade, portanto 75% do total. Destes, 322, representando 52,2%, pelo barão de Guaribu. Entre esses escravos idosos em 1885, encontramos
eram crioulos. Entre os 47,8% de africanos, apenas 43, perfazendo 15%, eram Joaquim, inhambane, pedreiro, com 83 anos de idade. É muito provável que
mulheres. Das quais, 14, ou 32,5%, eram casadas ou tinham relações está- fosse o mesmo Joaquim, inhambane e pedreiro, da avaliação de 1863, e o
veis. Esta proporção era praticamente a mesma, 31,2%, dos escravos afri- Joaquim, só que então dado como cabinda, com 73 anos, avaliado em 1874.
canos casados ou vivendo em uniões estáveis, que eram 79. Apenas cinco Mas não há como ter certeza. Poucos são os casos como o de Ventura, cuja
mulheres e cinco homens crioulos eram casados. Neste ponto, percebe-se trajetória, não sem dificuldades, pudemos traçar em todos os três inven-
uma notação interessante no documento. Por alguma razão, que não pode- tários. Fazendo o itinerário que percorremos do fim, isto é, de 1885, para
mos precisar ao certo, diversos casais foram anotados sem que a procedên- o começo, 1863, o encontramos na avaliação de 1885. Um velho capataz da
cia de um ou dos dois cônjuges fosse especificada. Na maioria das vezes, fazenda das Antas, de nação mucena. Constava como tendo 83 anos de
isso aconteceu com as mulheres. Enquanto 17 homens casados foram lista- idade e sendo casado com Francisca. Seu valor era de 50$000. Francisca,
dos sem procedência, o mesmo se deu com 79 das mulheres. De qualquer a quem era atribuída a idade de 80 anos, estava doente e não tinha valor
modo, no total, os escravos casados ou vivendo em uniões estáveis eram estabelecido. Em 1874, Ventura tinha 72 anos. Já era capataz das fazendas
199, representando 24,1% de todo o plantel, como dito acima. das Antas e Boa União e estava avaliado em 100$000. Sua companheira
Isso mostra que havia claramente estabelecida uma comunidade de plan- Francisca, que então constava como tendo 63 anos de idade, e não 69, como
tation estável, principalmente, ainda que não exclusivamente, na fazenda do faria supor sua idade declarada em 1885, valia bem mais, 600$000. Em 1863,
Guaribu. Mostra ainda que esta comunidade estava em vias de entrar, se já Ventura era tropeiro. Devia estar, então, com seus 61 anos, mas, como todos
não entrara, em uma fase de crescimento vegetativo positivo. Quatrocentos e os outros cativos, não possuía idade declarada na listagem. Foi avaliado em
sessenta cativos do total, ou 55,6%, estavam inseridos em relações familiares. 300$000, o mesmo valor atribuído à sua companheira Francisca, que podia
Eram casais, pais únicos ou viúvos, filhos, órfãos e netos. Somente estas três estar com 52 anos, se levarmos em consideração a informação de 1874, ou
últimas categorias somavam 261 indivíduos. É bastante provável que outros, 59, se a base for o dado de 1885. Tinham ao menos uma filha, Ana, avaliada
42 FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto Pinto de. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico
com um alto valor, 1:200$000. Tinham ainda duas netas, Maria Francisca e
atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. Minervina, avaliadas, respectivamente, por 50$000 e 250$000.

228 229
Quando Cláudio adquirira Ventura? Com quase toda certeza, ele não Deliberava ainda que 120 escravos da Guaribu deveriam ser deixados
o herdara do espólio da mãe. No inventário de Joaquina Matildes, de 1847, aos legatários, conforme os escolhesse Manoel.
encontramos um Ventura. Mas ele era de nação cabinda e constava como À Virgínia, irmã dos legatários, deixava a quantia de trinta contos de
tendo 21 anos. É improvável que se tratasse do mesmo Ventura, mucena, réis em dinheiro. Determinava que os bens deixados aos legatários não
que parece ter vivido toda sua vida de cativo na fazenda das Antas, ainda poderiam ser vendidos ou alienados durante toda a vida. Por morte de
que não saibamos desde quando. um deles, deveriam passar aos irmãos, inclusive Virgínia, a não ser que o
Seja como for, o pouco que sabemos da longa vida de Ventura e falecido possuísse “descendentes legítimos, ou naturais, legalmente habili-
Francisca é que tiveram filhas e netas. Pela Lei dos Sexagenários, aprovada tados”, que, neste caso, deveriam gozar da herança livremente. O legado de
em 28 de setembro do mesmo ano da última avaliação do inventário do Virgínia deveria lhe ser entregue quando casasse ou se emancipasse.
barão de Guaribu, 1885, já seriam legalmente livres. É possível que tenham Cláudio não esqueceu Maria das Antas.
descido a seus túmulos nesta condição. O fato é que se mostraram capazes Deixo a Maria das Antas a quantia anual de quatrocentos mil réis, que cessa-
de ascender dentro dos limites do mundo das comunidades de plantation. rão logo que seus filhos a sustentarem e vestirem, e além deste legado quero
Outros foram além. É hora de voltarmos ao testamento do barão de que ela seja sustentada pela Fazenda das Antas, e que não lhe falte o necessário
Guaribu. à vida enquanto aí viver, e até que seus filhos tomem conta de seus legados.45

Há poucas, se é que alguma, dúvidas que os legatários eram filhos do


os dois legados do barão barão de Guaribu e logo voltaremos a esta questão. Por hora, voltemos ao
Cláudio não deixou herdeiros, ascendentes ou descendentes. Podia assim legado.
dispor livremente de todos os seus bens. Como vimos, deixou pequenas Ter passado bens somente para os filhos homens mostra como o código
quantias para diferentes pessoas e mandou realizar diversos serviços reli- de comportamento patriarcalista e paternalista funcionava na zona penum-
giosos, bem como fez doações a entidades às quais pertencia. Mas ainda brosa que marcava as relações íntimas e afetivas entre os senhores e suas
sobrava muito, quase tudo. Se não deixou filhos, legítimos ou naturais, escravas. O sustento da filha Virgínia estava assegurado, tendo ela recebido
como fez questão de frisar, ele instituiu quatro legatários em seu testamento. trinta contos de réis que passariam às suas mãos quando se casasse ou se
emancipasse. Virgínia só teria acesso aos bens ou parte deles por herança,
Deixo a Manoel Gomes Ribeiro de Avelar, estudante, filho de Maria das Antas em caso de morte de algum dos irmãos.
e a seus dois irmãos Luís e João, nascidos todos de ventre livre, as minhas
Fazendas Boa União, Antas e Encantos, com todas as suas benfeitorias, terras Maria das Antas ficava em situação semelhante, recebendo apenas um
e escravos que nelas existem...43 pequeno estipêndio e a recomendação que fosse sustentada pela fazenda
das Antas. Nada, tampouco, impedia Cláudio de deixar o legado que desti-
Prosseguia: nou a seus filhos não reconhecidos diretamente a Maria das Antas. Ao não
[...] existindo atualmente na fazenda do Guaribu os escravos Marçal car- fazê-lo, mostrou como o patriarcalismo, que delegava a todas as mulheres
pinteiro, mulher, filhos e irmãos, Faustino Inhambane, pedreiro, Joaquim um papel subalterno na sociedade imperial, podia ser mais intenso no caso
pedreiro, Inhambane e família, Albério Inhambane, Thomas Caseiro, Modesto das mulheres escravas, sendo um fator de reiteração da ordem escravista.
Caseiro, Luiz Inhambane, tropeiro e família, Matheus tropeiro, Messias tro- A existência dos filhos, nascidos de ventre livre, portanto cidadãos plenos
peiro, Antonio Moçambique, tropeiro, Simão Crioulo, Germano Inhambane,
cozinheiro, Sabino tropeiro, que são pertencentes a Fazenda das Antas, e que,
do Império, deixava Maria das Antas, uma liberta, como seu nome e a con-
portanto, fazem parte deste lugar.44 dição dos filhos deixam entrever, em uma situação social subalterna. Ela

43 INVENTÁRIO de Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar.


44 Ibid. 45 Ibid.

230 231
permanecia na mesma condição de dependência, sendo protegida por seus Relações sexuais e afetivas entre senhores e mulheres escravas foram
filhos, a quem ficava devendo certa obediência. corriqueiras ao longo da história da escravidão brasileira. Faziam parte da
Os filhos de Maria das Antas eram menores, mas não era ela quem sua dinâmica. Elas não escapavam da violência social das relações escravis-
deveria administrar seus legados. Cláudio nomeou como tutor seu primo tas. Na sociedade patriarcal e paternalista do século XIX, as relações entre
Joaquim Mascarenhas Salter. Em sua falta, a seu irmão Quintiliano e, ainda homens e mulheres, pais e filhos, senhor e dependentes eram marcadas pela
na falta deste, a seu outro irmão João, barão de Paraíba. Ao tutor caberia desigualdade entre os papéis masculino e feminino. Mas, não se tratava de
cuidar da criação dos tutelados, de sua educação e da administração de seus patriarcalismo e paternalismo em geral. A escravidão dava o tom dessas
bens e dinheiro. A escolha dos tutores e sua ordem denotam algo interes- práticas. A vontade do senhor prevalecia na escala social. Essa vontade era
sante. Cláudio havia nomeado seus dois irmãos como seus testamenteiros, forte – literalmente – e arbitrária quando se tratava das relações com os
só que na ordem inversa: primeiro o barão de Paraíba, depois Quintiliano.46 escravos. E, entre as vontades senhoriais, estava a vontade sexual.
Nesse caso, parece ter seguido uma ordem de praxe, nomeando os paren- Mesmo assim, havia limites, não escritos, mas estabelecidos, à vontade
tes mais próximos e o mais velho em primeiro lugar. No caso da tutoria senhorial. Limites que derivavam dos costumes e da moral e também da
dos legatários, a escolha obedeceu a critérios diferentes, possivelmente pressão, efetiva ou potencial, exercida pelos escravos sobre seus senhores. O
guiados por afinidade e confiança. A primeira escolha recaiu sobre um quanto esses limites eram mais estreitos ou mais amplos dependia, em geral,
do quadro histórico, institucional e cultural assegurado pela força e pela vio-
primo e Quintiliano foi o escolhido como seu primeiro substituto. João e
lência, que instituíra e constantemente reinstituía a escravidão moderna. Em
Quintiliano também foram declarados os herdeiros dos bens que restas-
particular, dependia das condições em que se davam as relações cotidianas
sem, uma vez cumprido o testamento.
entre determinado senhor e seus escravos no plano local, num momento
Pode-se especular sobre essas escolhas, que certamente não eram
específico. Relações sexuais entre senhores e escravas podiam ser estáveis
casuais. A linha de interpretação que seguiremos é que Cláudio, cons-
ou ocasionais. Normalmente eram relacionamentos extraconjugais, mais ou
ciente ou inconscientemente, deixou essa vida com dois legados familiares
menos assumidos e abertos à curiosidade e ao comentário públicos.
distintos, íntima e inextricavelmente interligados. Um de ordem privada,
seu legado propriamente dito, relativo a seus filhos, que ele quis proteger, Alguns desses relacionamentos deixaram vestígios na documentação.
mesmo que não os tivesse reconhecido como tais. Outro, sua herança, de Como aconteceu com América, escrava do barão de Capivari. O barão era
ordem social, relativo a sua posição na sociedade, determinada pelo ethos e ninguém menos que Joaquim Ribeiro de Avelar, irmão de Joaquina Matildes
pelo habitus do grupo social a que pertencia, a classe senhorial. de Assunção, tio de Cláudio e pivô da crise que acarretara a ruptura da
A ambiguidade e o conflito eram as marcas da relação entre esses dois sociedade entre Luís Gomes Ribeiro e sua sogra, resultando na fundação
legados. Não apenas, nem principalmente, porque sempre há defasagem e da casa do Guaribu. Capivari passara a ser dono da fazenda Pau Grande,
mesmo conflito entre a pessoa e sua persona. No que diz respeito a Cláudio, entre outras. Morto em 1865, ele deixou a fazenda Cachoeira e 44 escravos a
essa ambiguidade e conflito diziam respeito às contradições – entre senhores América, com quem possivelmente tinha uma relação afetiva. No entanto,
e escravos – que cindiam a própria sociedade imperial em geral e as comuni- diferentemente de Cláudio, o barão tinha um filho natural homônimo, filho
dades de plantation, como a da casa do Guaribu, em particular. Contradições de mulher livre, mais tarde 2º barão e visconde de Ubá, seu herdeiro uni-
que, para além das violências e dos conflitos cotidianos, eram marcadas tam- versal. A herança de América foi contestada. Dos 44 escravos que lhe foram
bém por negociações, acomodações e vivências em comum. Entre Cláudio legados, acabou recebendo nove. Seus descendentes ainda disputavam a
e Maria das Antas, como em tantos outros casos, tal vivência em comum posse das terras em 1917.47
chegou ao ponto das relações sexuais e afetivas, ainda que sempre desiguais. Mas a história que mais nos interessa aqui, por sua semelhança e con-
traste com o caso de Cláudio, envolveu o barão de Tinguá, Pedro Correia e
46 TESTAMENTO de Luís Gomes Ribeiro de Avelar. Vassouras: Centro de Documentação Histórica da
Universidade Severino Sombra, 1829. 47 SALLES, 2008.

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Castro, o mesmo que, recordemos, recebera Dom Pedro II em sua visita a Revelava, então, a razão dessa generosidade:
Vassouras, em 1848. Assim como Cláudio, Pedro nunca se casou. Manteve
[...] deixo a Laura, mãe de minhas fâmulas e fâmulo, Catharina, Antônia,
também, ao longo de toda sua vida, um relacionamento estável com uma Mariana, Leocádia, Maria, e Martinho, quatro contos de réis, deixo mais qua-
ex-escrava, Laura. Pedro ditou seu testamento em 24 de abril de 1865, qua- tro escravos, sendo três machos e uma fêmea, não entrando em conta dos
tro anos antes de sua morte, em 2 de abril de 1869. Como de praxe, deixava quatro que acima dou, a escrava de Nação Benguela, digo a escrava que lhe dei
instruções que rezassem missas e capelas por sua alma, assim como pela de em minha vida de nome Joana de Nação Benguela [...]51
seus irmãos e seus escravos falecidos. Libertava 25 escravos, muitos deles
Ao assumir seus seis filhos naturais com Laura, Tinguá sabia o que
aparentados entre si.
estava fazendo. Pelo Decreto no 463 de 2 de setembro de 1847, os filhos natu-
Sobre Laura, de nação conga, ele fazia questão de explicitar que passara
rais dos nobres passavam a ter os mesmos direitos hereditários que compe-
“carta de liberdade no dia dezoito de Novembro de mil e oito centos e qua-
tiam aos filhos dos plebeus.52 Mesmo assim, ele não deixava dúvidas de sua
renta e nove”, e que esta alforria estava “lançada no livro de notas”. Prosseguia:
vontade e prosseguia:
Esta preta tem seis filhos sendo cinco fêmeas e um macho, a saber, Catharina,
casada com Antônio Agrícola de Fontes, Antônia, casada com Albino Nunes Declaro, [...] depois de cumpridas todas as minhas disposições, por meus legí-
de Assis, Mariana, casada com Anacleto Dias de Paiva, a estas três favorecias timos herdeiros as minhas fâmulas e fâmulo...
muito bem, Leocádia casada com José Borges Monteiro, a esta só lhe dei dois
escravos, digo duas escravas e um escravo [...]48 E, ainda mais:
Para desencargo de minha consciência e salvação de minha alma, declaro
Neste ponto, percebemos a primeira e impactante diferença entre as
que as minhas fâmulas e fâmulo, neste meu testamento nomeado, são meus
disposições do barão de Tinguá e aquelas do barão de Guaribu. No início filhos, e por meus filhos sempre os tenho. E por esta forma hei por findo este
de seu testamento, Pedro nomeara como seus testamenteiros “[...] em pri- meu testamento, e peço e rogo a justiça de sua Majestade Imperial, que Deus
meiro lugar, Antônio Agrícola de Fontes, em segundo lugar, José Borges guarde o faça cumprir e o guarde e lhe dê todo o vigor e inteiro cumprimento,
Monteiro, em terceiro lugar Albino Nunes de Assis”. Portanto, os maridos e pelo qual revogo outro qualquer anterior a este por ser esta minha ultima e
de três das filhas de Laura, Catharina, Leocádia e Antônia. Mais surpresas derradeira vontade [...]53
ainda viriam. Ele prosseguia, listando os dois outros filhos de Laura: Os casos dos barões de Guaribu, Capivari e Tinguá certamente não
[...] tenho em meu poder, debaixo de minha proteção, Maria, de idade de foram os únicos em que grandes senhores se envolveram sexual e emocio-
dezesseis anos, mais ou menos, Martinho, de idade de quatorze para quinze nalmente com suas cativas. Relacionamentos com escravas, eventuais ou
anos. Como acima digo, debaixo de minha proteção que os tenho criado com duradouros, mais assumidos ou menos assumidos, com todas as tensões
todo o amor e doutrina a estes dois fâmula e fâmulo, ainda não lhes fiz bem e conflitos que implicavam, compunham o universo do ethos e do habitus
nenhum [...]49
senhoriais. Não apenas porque eram permitidos e praticados, mas porque o
Em caso de sua morte, nomeava seu primeiro inventariante e segundo eram dentro de limites razoavelmente estabelecidos. Limites que assegura-
testamenteiro, José Borges Monteiro, tutor desses menores que tinha sobre vam uma separação entre essa intimidade transgressora, da ordem do pri-
sua proteção e que criara “com todo amor e doutrina”. Dava aos filhos de vado e do pessoal, e o mundo de práticas e representações da classe senho-
Laura e a seus fâmulos diversos pequenos legados em termos de quantias rial, inclusive daquelas igualmente de ordem privada. O caso de Cláudio é
em dinheiro e cativos.50 exemplar nesse sentido.

48 TESTAMENTO de Pedro Correia e Castro. Vassouras: Centro de Documentação Histórica da


Universidade Severino Sombra, 1865. 51 Ibid.
49 Ibid. 52 COLEÇÃO das Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1847. t. IX, parte I.
50 Ibid. 53 TESTAMENTO de Pedro Correia e Castro.

234 235
Logo nas primeiras linhas de seu testamento, fica patente a ambigui- no Cemitério da Fazenda das Antas”.57 Imerso na tensão de seus dois legados,
dade e o conflito que marcavam as relações entre seu legado privado, no o pessoal e transgressor, e o de sua família e classe social, Cláudio deixava o
âmbito da transgressão, e o público. símbolo do poder senhorial para seus irmãos. Aqui, se marcava o limite que
Maria das Antas e seus filhos com ela não poderiam ultrapassar.
Jesus Maria e José. Eu Barão de Guaribu estando doente de cama, porém em
meu perfeito juízo e claro entendimento, que Deus Nosso Senhor foi servido Seu tio e desafeto, o barão de Capivari, talvez porque tivesse um filho
dar-me, deliberei fazer o meu testamento pela maneira seguinte: Declaro que natural com uma mulher livre, fora mais além e nada reconhecera ou deixara
o meu nome era Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar, antes de Sua Majestade o pistas de seu relacionamento com América. No extremo oposto, o barão de
Imperador agraciar-me com o título de Barão de Guaribu. Declaro que sou Tinguá não só reconhecera seus filhos e seu relacionamento com Laura,
católico Romano, natural do Rio de Janeiro, nascido e batizado na Freguesia de como fizera questão de enfatizar esse fato em seu testamento. Em nenhum
Santa Rita, filho legitimo de Luís Gomes Ribeiro e Dona Joaquina Matildes de
desses casos, entretanto, a sorte dos parentes consanguíneos dos barões foi
Assunção, ambos já falecidos, sendo igualmente falecidos os meus avós. Declaro
que sou mais de sessenta anos, e que sempre vivi no estado de solteiro, e por isso fácil. Ainda que todas essas famílias descendentes de barões tenham dei-
não tenho filhos legítimos assim como também não os tenho naturais.54 xado marcas, escritas ou na tradição oral local, nenhuma conheceu a proe-
minência dos herdeiros legítimos da nobreza imperial vassourense, uma
O peso das representações de sua classe era grande. Isso fica expresso das mais numerosas do Império.
em sua explicitação de sua dupla condição, pessoal e pública: “[...] meu Mesmo a sorte de Laura, a mais bem sucedida dessas ex-escravas aman-
nome era Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar, antes de Sua Majestade o cebadas, não esteve à altura do destino normal dos herdeiros do baronato
Imperador agraciar-me com o título de Barão de Guaribu”.55 A partir dessa imperial. Pouco sabemos do que lhe aconteceu. Numa espécie de arremate
declaração inicial, o que se segue no testamento é marcado pela duplicidade de sua história, em fins da década de 1880, o barão do Amparo adquiriu e
e tensão entre os legados privado e social do barão. A começar pelo não demoliu a casa na cidade que ela, suas filhas e seu filho haviam herdado do
reconhecimento dos filhos. Mesmo na hora de sua morte – o testamento barão de Tinguá. Em seu lugar, Amparo fez erguer um portentoso palacete,
foi ditado uma semana antes de seu passamento, quando já estava enfermo espécie de canto do cisne da arquitetura imperial da cidade, que hoje não
–, ele não reconheceu nem seu relacionamento com Maria das Antas, nem passa de uma de suas mais imponentes ruínas.
seus filhos com ela. No entanto, garantiu aos filhos homens parte substan- Mas nem só de símbolos viviam os barões e senhores. Voltemos à his-
cial de seus bens. Exatamente a parte mais produtiva: as fazendas das Antas, tória dos legados do barão de Garibu.
da Boa União e dos Encantos, com todos seus escravos e ainda outros 120
O visconde da Paraíba, inventariante dos bens deixados por herança
que pertenciam à Guaribu.56
por seu irmão, morreu em 1879. Quintiliano, então, assumiu o inventário,
Aos seus dois irmãos, João e Quintiliano, ele deixou a fazenda do Guaribu,
até sua própria morte, em 1889. Desse ponto em diante, ao que parece, Luís
incluída aí a do Guaribu Velho. A Guaribu não era sua fazenda mais lucrativa,
Leovigildo Ribeiro de Avelar, um dos filhos e legatários do barão de Guaribu,
mas, simbolicamente, era a parte mais significativa de seus bens. Nela estava
assumiu a função de inventariante. Duas questões surgem imediatamente:
a origem da família em termos de seu poderio social. Dela advinha o nome
por que o inventário do barão de Guaribu ainda estava aberto, vinte e seis
de seu título, quando, segundo sua própria afirmação, deixara de ser apenas
anos após sua morte? Por que, nesta quadra, a tarefa de sua administração
Cláudio. Na Guaribu, estavam ainda a casa de vivenda, as pratas e, provavel-
passara a um de seus legatários, e não a algum descendente de seus herdeiros?
mente, os móveis que constam no inventário. Na capela da Guaribu, queria
Comecemos pela segunda resposta. Em 1889, o que restara de valor dos
ser sepultado, se esta estivesse pronta. Caso contrário queria “ser sepultado
bens de Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar, com o envelhecimento completo
dos cafezais da Guaribu, o esgotamento de suas terras e, principalmente,
54 TESTAMENTO de Cláudio Gomes Ribeiro Avelar.
com a abolição da escravidão no ano anterior, estava bastante reduzido em
55 Ibid.
56 Ibid. 57 Ibid.

236 237
termos de valor. Talvez já não fosse algo de que não se pudesse abrir mão. Estranho e suspeito, não? Antes mesmo da morte de Paraíba, alguém,
Além disso, Quintiliano, como que seguindo uma tradição familiar, morrera que escreveu uma matéria anônima no Jornal do Commercio de 2 de julho
sem descendentes legítimos. É bastante possível que, então, a administração de 1876, também achou. A matéria intitulava-se “A testamentária do finado
dos bens deixados em inventário e também do legado, como já se verá, do barão de Guaribu”. Depois de dizer que o assunto de que trataria causaria
barão de Tinguá deixasse de oferecer vantagens. Ao menos aos descenden- estranheza, o artigo explicava o caso. O barão falecera em 1863, deixando
tes da segunda geração de senhores de Vassouras que, ainda que às voltas “[...] de mil e muitos contos de réis, representada por três fazendas de cul-
com as consequências da abolição, ainda gozavam de poder e prestígio. tura de café e com mais de oitocentos escravos”.59
Para Luís Leovigildo, seu irmão João e sua irmã Virgínia, juntamente
Por seu testamento legou duas dessas fazendas, as melhores com 500 e tantos
com seu marido, no entanto, o legado do barão de Guaribu ainda valia uma escravos, a três protegidos seus de menores idades, fez diversos legados em
briga na justiça. Tanto que os dois últimos, em janeiro de 1897, entraram com dinheiro, e dos remanescentes instituiu herdeiros dois de seus irmãos, e mar-
uma ação de prestação de contas contra Luís, que assumira – e ainda não cou o prazo de três anos para cumprimento do testamento.60
resolvera! – a administração do inventário. É exatamente por conta dessa
Treze anos depois, nada se resolvera e o espólio ainda estava em aberto.
ação, e de uma matéria publicada no Jornal do Commercio em 1876, que
Qual seria a razão de um fato tão extraordinário, perguntava o anônimo
conseguimos reconstituir a sorte dos dois legados do barão de Guaribu e,
articulista? O rendimento das fazendas dava e sobrava para arcar com todos
assim, temos a resposta para nossa primeira pergunta: por que o inventário
os encargos que o barão deixara, da ordem de 600 ou 700 mil réis.
de Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar permaneceu aberto por tanto tempo?
A resposta se inicia pelo esclarecimento a uma outra pergunta: quem [...] para fazer face aos seus encargos deixou essas fazendas com uma produ-
mantivera o inventário aberto? Já vimos que primeiro o barão – depois vis- ção anual de 30 a 40.000 arrobas de café, que aos preços altos que desse tempo
para cá tem tido esse gênero, devia por força dar ao espólio uma renda anual
conde – de Paraíba, até sua morte, e, depois, Quintiliano Gomes Ribeiro
de 200 a 300.000$, não se falando na dívida ativa que também deixou.
de Avelar, dono das prósperas fazendas de São Luís e da Boa Sorte.
Propriedades que, em 1889, ano de sua morte, ainda dispunham de áreas Três anos eram tempo suficiente para pagar os encargos e resolver o
cobertas por matas e ricos cafezais.58 Quintiliano era também o tutor dos espólio. Se não, em seis ou sete anos tudo teria que estar resolvido. Mas
legatários, e esse fato já parte de nossa resposta. Em algum momento, que não estava. E aqui a outra parte da artimanha. Havia pendências sobre o
não conseguimos especificar, mas foi logo, Joaquim Mascarenhas Salter testamento que diziam respeito a questões entre os coerdeiros e o finado
renunciou à tutoria de Manoel, seus irmãos e de seus bens. A tarefa foi, barão referentes ao espólio de seus pais. Por isso o processo era demorado.
então, assumida por Quintiliano. Nesse meio tempo, Paraíba, sem oposi- O testamenteiro, entretanto, tinha os meios para agilizar o processo. Ainda
ção de Quintiliano, alegou que não podia fechar o inventário de seu irmão mais porque – e aqui certamente o articulista estava sendo irônico – ele
porque este determinara que suas dívidas fossem saldadas com o rendi- era um dos coerdeiros e tinha interesse nisso. No entanto, enquanto este
mento de suas fazendas. No entanto, como essas dívidas, que envolviam o imbróglio não fosse resolvido, a quem deveriam pertencer por direito os
espólio de seus pais, Luís Gomes Ribeiro e Joaquina Matildes de Assunção, rendimentos das fazendas deixadas aos menores, “desde o tempo em que
eram objeto de disputas, não eram facilmente resolvíveis. Enquanto isso se devia achar-se paga a dívida, e eles empossados de seus legados?” Não era
acertasse, herança, legado e os rendimentos dos bens do barão de Guaribu “negócio pequeno; são os rendimentos de duas fazendas com 500 escravos
seriam administrados pelo inventariante. Em 1879, com a morte de Paraíba, por espaço de 5 ou 6 anos!”. Concluía perguntando se não “teria direito a eles
inventariante e tutor passaram a ser uma só pessoa: Quintiliano. o legatário que suicidou-se há 3 ou 4 anos, desgostoso por se ver cheio de

58 INVENTÁRIO de Quintiliano Gomes Ribeiro de Avelar. Vassouras: Centro de Documentação 59 A TESTAMENTÁRIA do finado barão de Guaribu. Jornal do Commercio, 2 jul. 1876.
Histórica da Universidade Severino Sombra, 1889. 60 Ibid.

238 239
dívidas, que não podia pagar por não ter recebido o seu legado?”.61 Tratava-se Vassouras não gerou sua Chica da Silva, ainda que não faltassem can-
de Manoel, o irmão mais velho e que, a esta altura, teoricamente, já poderia didatas a ela: Laura, a companheira por toda a vida do barão de Tinguá,
estar à frente da administração do legado, tivesse o espólio sido concluído. de quem praticamente nada se sabe sobre seu destino; América, possível
O artigo prosseguia em suas observações finais... manceba do barão de Capivari, que viu seu legado contestado; e Maria das
Antas, mãe dos filhos do barão de Guaribu, legatários de três de suas fazen-
[...] consta ultimamente (é tão sério o que se diz, que não queremos ainda acre-
ditar) que esses legatários não receberam as suas fazendas em consequência das e de muitos de seus bens, inclusive escravos. Do ponto de vista mate-
de um contrato de arrendamento que assinaram, ficando eles a receber unica- rial, essas candidatas tiveram que lutar para garantir a posse de seus bens,
mente por ano 20:000$, continuando tudo no mesmo estado que até aqui [...]62 a maioria sem sucesso ou com sucesso parcial. Simbolicamente, houve a
tentativa de apagá-las da memória e da história, ainda que sua lembrança
Diante de tudo isso, o articulista perguntava, retoricamente, a razão
sempre volte, de quando em quando, lá como cá.
pela qual “... o honrado tutor desses legatários, nomeado no testamento,
pediu há alguns anos demissão do cargo? Não, está claro?”.63
Em 1885, o inventário do barão de Guaribu continuava em aberto e uma
nova avaliação foi feita. Vinte e dois anos depois de sua morte, o valor de
seus bens estava reduzido a menos de 1/3 de seu valor inicial. Escravos, ter-
ras e benfeitorias do conjunto de fazendas eram avaliados em 316.675$300.
O cafezal da fazenda das Antas, avaliado em 60 mil contos em 1863, valia
agora 7.400$000. O da Guaribu caíra de 71 mil contos para 17.800$000. Os
escravos ainda eram o patrimônio de maior valor, representando 48,4% dos
bens.64 Em 1863, eles eram 62% do total.

epílogo
Nesse ponto, fica claro que não foi apenas o tormento de Cláudio, tensio-
nado entre sua classe e sua prole, que deixou brechas para que seus irmãos,
de sangue e de classe, embarreirassem o cumprimento de seu legado pri-
vado. O caso de Tinguá e o Decreto de 1847 mostram que ele poderia ter
reconhecido seus filhos como seus legítimos herdeiros. Não o fez e agiu
deliberadamente ao não reconhecer a paternidade de seus filhos naturais.
Não queria lhes passar sua herança. Mas quis garantir seu sustento e bem
-estar futuros. É impossível que não soubesse os riscos que corria e os que
podiam advir para Maria das Antas e seus filhos por conta de sua decisão.
Resolveu arriscar. Deu no que deu.

61 Ibid.
62 Ibid.
63 Ibid.
64 INVENTÁRIO de Cláudio Gomes Ribeiro de Avelar.

240 241
Suspeitos, transeuntes, impermanentes: Já em meados do século XIX, o Império fazia brotar imponentes pal-
meiras enfileiradas nas entradas de propriedades que iniciavam fortuna na
personagens liminares e a dinâmica social região da antiga Comarca de Vassouras, o que incluía as freguesias de Paty
em um microcosmo do Império.1 do Alferes, Sacra Família do Tinguá, São Sebastião dos Ferreiros, Santa Cruz
dos Mendes e Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. Era a força impe-
Camilla Agostini rial enraizando seus símbolos e materializando sua expressão de poderio.
Com uma densidade demográfica de escravos relativamente baixa até
cerca de 1830, a região recebeu, logo em seguida, um grande número de cati-
vos recém-chegados do continente africano para o trabalho nas fazendas
que investiam fortemente no cultivo e produção do café. Em sua maioria
procedente de uma grande região da África Central, esses africanos, cujas
diferenças etno-linguísticas poderiam expressar dificuldades de convívio,
introdução começaram a encontrar mais semelhanças entre si do que supunham em
suas terras de origem. Iniciava-se um processo de reconhecimento e for-
De finais do século XVIII até cerca de 1830, a região de Vassouras se carac-
mação de uma identidade mais ampla, baseada na experiência do cativeiro.5
terizou mais como um lugar de passagem do que um importante foco de
A formação dessas comunidades de senzala foi pensada de formas
desenvolvimento agrícola, tal como veio a ser nas décadas que se seguiram.
diferentes pela historiografia ao longo das décadas. Desde a impossibili-
Contatos com grupos indígenas foram estabelecidos, terras e fronteiras foram
dade de constituição de laços familiares, como defendido pela chamada
“negociadas”,2 a violência e o apresamento de nativos levados a cabo.3 Roças
Escola Paulista – ou que a agência e as redes de sociabilidade escravas não
de mantimento, vendas e ranchos de tropeiros eram até então os principais
teriam tido força política contra a ordem vigente;6 tendo sido, por vezes,
estabelecimentos coloniais que povoavam essas redondezas, auxiliando o
suas articulações revertidas em benefício do interesse dos próprios senho-
comércio de gêneros que seguiam no lombo de mulas em direção às Minas.4
res –,7 passando pelo estudo da formação de uma identidade baseada em
paradigmas e referenciais culturais comuns, reconhecidos na diáspora, com
1 Gostaria de agradecer aos organizadores Mariana Muaze e Ricardo Salles pelo convite para parti- grande relevância na constituição de laços familiares e comunitários, que
cipar deste volume e sua leitura atenta do manuscrito, assim como a Marcos André T. de Souza e fortaleceria social e culturalmente os grupos escravos;8 até um interesse
Suzana Corrêa por comentários que ajudaram esta versão final. Agradeço à Unicamp e à Fapesp
que foram as instituições que deram suporte para a pesquisa que proporcionou o material traba-
lhado neste texto, no tempo do meu mestrado quando residi em Vassouras; e, em especial, à Robert
Slenes por todo apoio e inspiração no desenvolvimento desta pesquisa à época. Agradeço a Rafael
Marquese pelo interesse em compartilhar inquietações que estimulam o debate e sua sugestão de
como a noção de vizinhança apresentada por Anthony E. Kaye poderia somar com a perspectiva
de redes sociais que trabalhei anteriormente. Por fim, agradeço a Ricardo Salles pelo interesse no 5 SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!”: África encoberta e descoberta no Brasil. Cadernos da
material produzido na referida pesquisa como transcrições, banco de dados, mapas, índice temá- escravatura, Luanda, 1995; Id. Na senzala uma flor: as esperanças e recordações na formação da
tico, quadros estatísticos, entre outros, e em torná-lo público, disponibilizando-o a pesquisadores família escrava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
interessados através do CEO/Unirio. 6 MARQUESE, Rafael. Diáspora africana, escravidão e a paisagem da cafeicultura no Vale do Paraíba
2 Machado, Marina M. Entre fronteiras: posses de terras indígenas nos sertões. Rio de Janeiro, 1790- oitocentista. Almanack Braziliense, São Paulo, n. 7, maio 2008; SALLES, Ricardo. E o Vale era o
1824. Niterói: EdUFF, 2012. escravo: Vassouras, século XIX – senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro:
3 Muniz, Célia M. Loureiro. Os donos da terra: um estudo sobre a estrutura fundiária do Vale do Civilização Brasileira, 2008.
Paraíba fluminense – século XIX. 1979. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal 7 FLORENTINO, Manolo; GÓES, José R. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico Atlântico, Rio
Fluminense, Niterói, 1979; Stein, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. de Janeiro, c. 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. 8 SLENES, 1995; Id., 1999; GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comuni-
4 STEIN, op. cit., 1990; MUNIZ, op. cit., 1979. dades de senzalas no Rio de Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993.

242 243
de afastamento desses referenciais comuns, repletos de “africanidades”, em nas mãos dos grandes proprietários de escravos, com o domínio da produção
prol de conquistas pela liberdade no âmbito do sistema escravista.9 cafeeira que era, a esta altura, a força econômica do Império. Estes, que com-
No presente estudo, o intuito é o de refletir sobre como personagens punham a comunidade política, tal como entendida por Mattos, eram ou se
liminares, na sociedade escravista vale-paraibana do século XIX – que não fizeram “barões”; e também não foi incomum que estivessem ligados direta-
estavam necessariamente compondo comunidades escravas –, podem con- mente ao comércio negreiro.14 Vezes ainda, mesmo associados a práticas ilíci-
tar sobre a dinâmica social que permeava as diferentes “comunidades” de tas, no período de clandestinidade do tráfico de escravos, tinham a confiança
uma maneira geral; e não apenas aquelas definidas por grupos escravos. A e solidariedade dos jornais, entre outras forças políticas que repercutiam dire-
mobilidade dessas figuras permite ainda vislumbrar a força de fronteiras tamente na vida cotidiana no Vale do Paraíba oitocentista.15
socioculturais e os novos lugares (físicos e sociais) que surgiam e eram con- As grandes fazendas contavam com áreas produtivas, senzalas, cafezais.
quistados com o passar do tempo. Possuíam, também em suas terras ou proximidades, pequenas casas de agre-
Nesse contexto rural, como mencionado, a partir do segundo quartel gados, jornaleiros, que prestavam serviços aos fazendeiros e/ou possuíam
do século XIX, a demografia escrava na região iniciou uma curva ascen- pequenas roças voltadas para a produção de mantimentos. A historiografia
dente. O “potencial explosivo” desta demografia foi comentado mais recen- convencionou chamar-lhes “livres e pobres”, que seriam as comunidades de
temente por Salles, que enfatizou o baixo índice de alforrias na região até lavradores de roça referidas por Mattos. Para além desses espaços e perso-
1880 (apesar de momentos de flutuação das taxas durante este período de nagens diretamente ligados à produção agrícola, havia ainda as vendas, os
1830 a 1880).10 Até 1850, africanos formaram, assim, um fluxo contínuo de ranchos para tropas, pequenas povoações que se formavam nos arredores da
recém-chegados que encontravam uma sociedade rural em formação.11 Vila, onde estavam a casa de câmara, cadeia, igreja matriz, etc.
A chegada de novos africanos – mais particularmente centro-africanos A mobilidade de cada personagem nesse fragmento de sociedade
– até fins da década de 1850 foi substituída, em seguida, pelas levas de novos rural oitocentista não se dava da mesma forma ou sob as mesmas condi-
escravos trazidos para o trabalho com o café, vindos de outras regiões do ções. Mobilidade aqui é uma referência à circulação no espaço (geográfico/
Brasil.12 Hebe Mattos, inspirando-se nos trabalhos de John Blassingame, traduz físico), nas vizinhanças constituídas por redes de sociabilidade; mas tam-
esta sociedade rural que se estruturava em todo Vale do Paraíba sul-fluminense bém ao trânsito por lugares sociais então estabelecidos, como o de senho-
através da constituição de comunidades escravas, comunidades de lavradores de res, escravos, agregados, feitores, clérigos.
roça e comunidades políticas.13 A seguir, direcionarei uma lente de aumento para alguns recortes dessa
Assim, em meados do século XIX, as chamadas comunidades escravas, sociedade rural: algumas vizinhanças, vizinhos e redes de intriga e fofoca
compostas por centro-africanos e seus descendentes crioulos, foram a princi- do dia a dia. Em outro momento, apresentei a estratégia de adaptação de
pal força de trabalho em todo o entorno da Vila de Vassouras, que despontava ferramentas da teoria das redes sociais da sociologia e da antropologia para
com a cultura do café. O poder político sobre esta economia e sociedade estava se pensar esta realidade pretérita, usando para isso o potencial dos proces-
sos criminais na abordagem da experiência cotidiana.16
9 MATTOS, Hebe. Das Cores do Silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil, Se no referido trabalho me detive na análise densa dos processos, a par-
século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
tir desta metodologia, neste momento o objetivo é revisitar alguns dos casos
10 SALLES, 2008, p. 184-187.
de forma breve com dois propósitos: 1) incorporar aos princípios da aborda-
11 STEIN, 1990; KARASH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000; FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de gem das redes sociais as noções de vizinhança apresentadas por Anthony E.
escravos entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
1995; SLENES, 1999; SALLES, op. cit, 2008. 14 FLORENTINO, 1995.
12 SLENES, Robert. The Brazilian Internal Slave Trade, 1850-1888: regional economies, slave experience 15 ABREU Martha. O caso Bracuhy. In: MATTOS, Hebe; SCHNOOR, Eduardo (Org.). Resgate: uma
and the politics of a peculiar market. In: JOHNSON, Walter. (Org.). The chattel principle: internal janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Toopbooks, 1995. p. 172.
slave trades in the Americas. New Haven: Yale University Press, 2005; SALLES, op. cit., 2008. 16 AGOSTINI, Camilla. Dinâmicas de fronteiras entre comunidades escravas e de lavradores livres.
13 MATTOS, 1995, p. 77. Habitus, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1-2, 2010.

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Kaye,17 assim como o conceito de liminaridade de Victor Turner18 aplicado os escravos construíram e pensaram os espaços sociais, nas relações com
ao cotidiano;19 2), aprofundando, com isso, uma reflexão sobre personagens diferentes atores sociais (especialmente senhores e outros escravos).24 Esta
liminares naquela sociedade, suas práticas e relações sociais.20 análise é desenvolvida pelo autor com o uso de inúmeras fontes, entre elas
Desta maneira, serão revisitados casos que nos aproximam das práticas jornais, diários de viajantes, interrogatórios com escravos, entre outros.25
de “trabalhadores móveis”, da experiência de grupos e indivíduos errantes ou Caberá incorporar algumas contribuições do autor, enriquecendo o olhar
nômades, da circulação de pessoas em vendas e tabernas, da relação entre sobre microcosmos do Império na região do Vale do Paraíba, isto é, frag-
trabalhadores livres e escravos, e da relevância de lugares ilícitos, alternativos mentos de sociedade da região cafeicultora de Vassouras. A proposta é
ou escusos por onde esses personagens transitavam. Em suma, espaços, situa- ampliar a ideia das comunidades escravas com a noção de vizinhança de
ções e personagens liminares sempre suspeitos aos olhos das autoridades.21 Kaye, aliada às ferramentas dos estudos de redes sociais.
Kaye no livro Joining Places relembra a historiografia sobre a formação
de comunidades escravas que para ele já pareciam estar a alguns anos, de fragmentos de sociedade:
certa forma, esquecidas ou menos valorizadas pelos historiadores, com as vizinhanças, redes e seus personagens
atenções voltadas mais para questões sobre as margens de autonomia dos
escravos na sociedade escravista.22 No entanto, o autor propõe retomar a “Fragmentos de sociedade” nada mais são do que um conjunto de espaços
abordagem sobre essas comunidades escravas a partir de um novo ponto sociais ou vizinhanças e as múltiplas e complexas relações neles vivencia-
de vista, que inclui a relação entre espaços sociais e atores sociais, além das cotidianamente, isto é, microcosmos que compõem um universo social
da noção de agência da teoria da estruturação de Anthony Giddens.23 Seu em determinada região. O fato de serem espaços sociais implica na ideia
interesse se volta, assim, para “vizinhanças escravas”, considerando como de que eles são constituídos por espaços geográficos e pessoas; são como
contextos que podem ser abordados em diferentes instâncias – seja como
17 KAYE, Anthony E. Joining Places: slaves neighborhoods in the old south. Wilmington: The uma vizinhança (implicando sua situação geográfica/física, constituída de
University of North Carolina Press, 2007. redes de sociabilidade), seja como lugares socialmente definidos como os
18 TURNER, Victor. Schism and continuity in an African society. Manchester: Manchester University
de “escravo”, “agregado”, “senhor”, “clérigo”, que têm sua prática cotidiana
Press, 1957; Id. The ritual process: structure and anti-structure. Chicago: Aldine Publishing Co.,1969;
Id. Drama, fields, and metaphors: symbolic action in human society. Ithaca: Cornell University geralmente associada a determinados espaços de ação.
Press, 1974. No entanto, esses espaços sociais (em todas as suas instâncias) não são
19 AGOSTINI, Camilla. Estrutura e liminaridade na paisagem cafeeira do século XIX. In: ___. (Org.). estáticos. Segundo Kaye,
Objetos da escravidão: abordagens sobre a cultura material da escravidão e seu legado. Rio de
Janeiro: 7Letras, 2013.
The neighborhood was a place; the arena for activities of every type; a set of
20 As ideias de estrutura e liminaridade às quais me reporto são inspiradas nas formas como Victor people, bonds, and solidarities; a collective identity. Just as neighborhood, like
Turner (1957, 1969, 1974) concebe estabilidade e mudança, fazendo uma transposição ou adaptação
desses conceitos para o estudo do cotidiano (ver AGOSTINI, op. cit., 2002; 2013). J. Van Velsen
propõe interessante abordagem dessas situações pontuais a partir dos processos-crimes em VAN
VELSEN, J. A análise situacional e o método de estudo de caso detalhado. In: FELDMAN-BIANCO,
24 Essas paisagens, como ressalta Kaye, são constituídas de espaços sociais diversos, com usos e sig-
Bela. Antropologia das sociedades contemporâneas: métodos. São Paulo: Global Universitária, 1987.
nificados variados, de acordo com as circunstâncias, conjuntura ou pessoas envolvidas. Esses espa-
21 Para reflexões sobre esses “trabalhadores móveis”, ver MATTOS, 1995; e WISSENBACH, Maria ços geográficos (físicos), como lembra o autor, podem ser também considerados “estados mentais”
Cristina. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros no município de São Paulo (1850- (Ibid., 2007, p. 5). Recentemente foi defendida a tese de doutorado Geografia da escravidão na crise
1880). São Paulo: Hicitec. 1999. Sobre os significados sociais de grupos e indivíduos nômades e do Império: Bananal, 1850-1888 por Marco Aurélio dos Santos, na USP, São Paulo, 2014, que se
desenraizados, uma bela leitura pode ser encontrada em DUARTE, Regina H. Noites circenses: espe- baseia nesta abordagem de vizinhanças. É notável como o interesse de Kaye soma com perspectivas
táculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX. Campinas: Ed. Unicamp, 1995. Sobre as arqueológicas sobre a formação, uso e os sentidos conferidos às paisagens, tal como as de Julian
implicações sociais e econômicas das vendas e tabernas na integração (ilícita) de quilombolas na Thomas em Archaeologies of place and landscape. In: THOMAS, Julian (Ed.). A companion to social
sociedade, ver SANTOS, Flávio dos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas arcaheology. Oxford, UK: Blackwell Publishing, 2007; DAVID, Bruno; THOMAS, Julian. Landscape
no Rio de Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993. archaeology: introduction. In: DAVID, Bruno; THOMAS, Julian (Ed.). Handbook of landscape archae-
22 KAYE, op. cit., 2007, p. 7, 9-10. ology. California: Left Coast Press, 2008; HOLDER, Ian apud DAVID; THOMAS, 2008, entre outros.
23 Ibid., p. 12-13. 25 KAYE, op. cit., 2007, p. 12.

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all collective identities, implied a certain solidarity, so a particular antagonism diferentes lugares sociais e suas margens de flexibilidade. Claro, isto não se
defined the terrain.26 dá de forma ilimitada e nem equivalente para todos.
O aspecto dinâmico das vizinhanças, produtor e movido por forma- Nesse sentido, um senhor e um escravo “em seus devidos lugares”, ironi-
ção de identidades e antagonismos, fluxos de pessoas, ideias e coisas, em camente, compartilham das mesmas limitações. Por outro lado, figuras limi-
muito se assemelha com características das chamadas redes sociais.27 De nares na sociedade seriam, talvez, a maior expressão de impermanência e da
uma maneira geral, vale lembrar que a abordagem de redes oferece ferra- possibilidade de mudança. Nesse sentido, cabe perguntar o significado desses
mentas metodológicas para observar mobilidade, relações “não institucio- personagens e espaços liminares no processo de transformação social. Outra
nalizadas”, tensões, conflitos e a construção de identidades e lugares sociais questão que torna a primeira mais complexa é pensar em como as bagagens
a partir da experiência cotidiana. Um elemento básico desta metodologia é ou conteúdos culturais participam deste processo.
redirecionar o foco dos indivíduos, grupos ou instituições para as relações
entre indivíduos, grupos ou instituições.28 Tendo a atenção voltada para o personagens liminares e redes de fofoca
entre, o pesquisador é levado para o âmbito de múltiplas fronteiras sociais, Voltando às fazendas na região de Vassouras que começavam a se estabele-
cuja natureza é relacional, e que se articulam concomitantemente, de forma cer desde as décadas de 1830, com auge de suas fortunas entre 1850 e 1870,
flexível e complexa.29 Da mesma forma, as divisões e alianças instituíam e podemos mapear alguns espaços fundamentais ou estruturais de sua pai-
destituíam fronteiras políticas que seriam expressões das próprias “políticas sagem em formação. Após atravessar a fileira de palmeiras imperiais que
de vizinhança”, como sugerido por Kaye.30 algumas delas exibiam logo na entrada, de imediato, seria possível iden-
Esses espaços socialmente constituídos podiam se configurar, assim, tificar o chamado quadrilátero funcional. Nele, os espaços fundamentais
como estruturais e/ou liminares no âmbito da escravidão, dependendo das como casa senhorial, paióis, cozinhas, e outros espaços de trabalho, além
circunstâncias e dos atores envolvidos. Assim, o eito poderia ser ao mesmo das habitações escravas (incluindo as senzalas de tipo pavilhão ou barracão,
tempo local de trabalho forçado e contenda; as senzalas como sinônimo de cômodos dentro da própria casa senhorial, ou mesmo lugares mais inusi-
descanso, trabalho ou mesmo conflito; e as matas como locais para o aqui- tados como o paiol), estavam distribuídos, formando, assim, um quadrado
lombamento ou culto.31 Para observar essa dinâmica, uma boa estratégia é com o terreiro para secagem do café ao centro. Este era o padrão da arquite-
focar nas fronteiras sociais que se estabelecem nas relações entre os espaços tura das fazendas nesta região nos oitocentos.32 No entanto, outros espaços
e os personagens. Isto é, observar a dinâmica dessas fronteiras implica dire- fora deste quadrado também eram fundamentais, como o próprio eito com
cionar o olhar para espaços e atores liminares e seus significados na socie- as inumeráveis fileiras de pés de café, e sua lida de todo dia.
dade como um todo. Essa abordagem ressalta a impermanência do status O cotidiano dessas fazendas, do qual os processos-crimes nos permi-
quo das pessoas e dos lugares, considerando a possibilidade de trânsito por tem aproximar, contava também com referências de lugares que podiam ter
sentidos diversos, como era o caso dos terreiros, por exemplo. Eles apare-
cem citados como áreas externas de habitações independentes, como um
26 Ibid., p. 5. tipo de quintal; como terreiros de roça, que eram espaços de organização
27 Apontadas detidamente em AGOSTINI, 2010.
28 WETHERELL, Charles. Historical social network analysis. Intenational Review of Social History,
Cambridge: Cambridge University Press, n. 43, 1998. 32 Para significados e implicações desta arquitetura do café no Vale do Paraíba oitocentista, conferir as
visões e argumentos de MARQUESE, Rafael. Moradia escrava na era do tráfico ilegal: senzalas rurais no
29 BARTH, Fredrik. Ethnic groups and boundaries: the social organization of culture difference. Oslo:
Brasil e em Cuba, c. 1830-1860. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, São Paulo, v.13, n.
Universitets Forlaget, 1970; JONES, Siân. The archaeology of ethnicity: constructing identities in the
2, 2005; Id. Diáspora africana, escravidão e a paisagem da cafeicultura no Vale do Paraíba oitocentista.
past and present. Oxford: Routledge, 1997.
Almanack Brazilienze, n. 7, 2008; STEIN, 1990; GOMES, Flávio. Outras cartografias da plantation: espa-
30 KAYE, op. cit., 2007, p. 5-6. ços, paisagens e cultura material no sudeste escravista. In: AGOSTINI, Camilla. Objetos da escravidão:
31 Ibid., p. 5. abordagens sobre a cultura material da escravidão e seu legado. AGOSTINI, op. cit., 2013, entre outros.

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do trabalho coletivo no eito, que podiam incluir uma cozinha de roça tem- No entanto, muitos mexericos surgiram por conta do assassinato de
porária; além do próprio terreiro central do quadrilátero.33 Maria, uma menina com 13 anos de idade, filha de um vizinho chamado
Todos esses espaços vividos no cotidiano da fazenda, no entanto, eram Chico Paulista, que tinha em sua casa uma venda que atendia os arredores,
constantemente negociados. Algumas situações de liminaridade, de tensão além de bananeiras, chiqueiro e paiol. O assassinato de Maria foi trágico,
social, como um conflito ou crime, poderiam trazer à tona questionamentos sendo ela encontrada estuprada e com seus miolos espalhados pelas tou-
sobre os usos e sentidos dos mesmos. Aqui cabe lembrar que espaços estru- ceiras das bananeiras no quintal.37 Toda a gente comentava a brutalidade
turais são liminares em potencial, quando se tornam espaços de contesta- e o grande mistério de quem teria sido o criminoso, tendo o processo se
ção, permitindo, assim, a possibilidade da mudança. Quando estes espaços arrastado por quase uma década sem conseguir elucidar o autor daquela
estruturais são mapeados é como se desenhássemos o cenário do contexto atrocidade. A dinâmica dos mexericos, a certa altura, levou aos ouvidos das
em estudo. No entanto, como estes são espaços onde as pessoas atuam e se autoridades uma fofoca, três anos depois de o crime ter acontecido. Maria
constituem ao mesmo tempo, não podem ser considerados apenas cenários Ferro teria lavado uma camisa ensanguentada de Chico Mandú no dia da
estáticos. Mas sim como parte da realidade cotidiana; como agentes poten- tragédia. No entanto, nem Chico Mandú, nem Maria Ferro parecem ter
ciais para transformações junto às pessoas e às coisas que nele habitam.34 entendido essa história, uma vez que, segundo eles, não tinham nenhuma
Existem, por outro lado, alguns espaços que são “de liminaridade por intimidade ou mesmo proximidade um com o outro.
excelência”, como quilombos e ocupações em áreas de mata fechada.35 Neste No caso dos dois envolvidos, no entanto, são sugeridas no processo
caso, liminaridade se remete à sua condição no sistema dominante daquela algumas motivações peculiares para as acusações. Chico Mandú, conside-
sociedade, por desafiar ele próprio e suas regras ou normas oficialmente rado agressivo e metido a valentão por seus vizinhos do Pocinho, se defen-
definidas. Fundamental neste ponto é começar a observar o trânsito dos dia dizendo que aquela gente não gostava dele, sempre o ofendendo, inclu-
diferentes atores nesses espaços, o que implica em sua mobilidade física sive chamando-lhe de “negro”. Já Maria Ferro responde como se estivesse
e social. Isto é, os lugares sociais e as identidades que se formam, que são meio tonta com tudo aquilo, sem entender por que seu nome estava metido
atribuídas, incorporadas ou rejeitadas, mas de alguma forma reconhecidas. naquela história toda. As autoridades policiais acabaram elas próprias
Chico Mandú e Maria Ferro são personagens ilustres para o pesqui- defendendo os acusados perante os mexericos, descartando como prova
sador que se debruça sobre o caso do Crime do Pocinho, cujo processo o então suposto pedido de Mandú para que Ferro eliminasse a prova do
transcorreu ao longo da década de 1870. Ambos poderiam ser considera- crime, com o argumento de que ela não seria de confiança, já que era “uma
dos “livres e pobres” e não pareciam muito prestigiados pela vizinhança do estranha, baiana e mulher”. Um detalhe importante é que Maria Ferro, em
Pocinho, onde moravam.36 Ele, um lavrador com casa e família no lugar, seus interrogatórios, se dizia fluminense e não nascida na Bahia.38
nascido ali mesmo na região. Ela trabalhava como caseira na residência de Os significados da associação desses dois ilustres desprestigiados e
um casal cujo filho era pedreiro e a filha era casada com o dono de uma sua relação com o crime serão retomados mais à frente. Neste momento,
venda, ali mesmo no Pocinho. O que eles tinham em comum? Segundo cabe ressaltar quem criou essa relação, que, segundo a própria investiga-
eles, nada. Repetidamente nada. ção policial, bastante interessada em decifrar o mistério e não apenas em
culpar alguém, pareceu não ter existido de fato. Observando quem disse o
quê sobre quem, e às vezes através de quem, nota-se um movimento bas-
33 Ibid. tante generalizado que construía esse sentimento compartilhado de sus-
34 THOMAS, op. cit., 2007; HODDER, Ian apud DAVID; THOMAS, 2008.
peição entre vizinhos. Eram escravos, trabalhadores livres pardos, brancos,
35 AGOSTINI, Camilla. Entre senzalas e quilombos: “comunidades do mato” em Vassouras do oitocen-
tos. ZARANKIN, A.; SENATORE, M. X. (Org.). Arqueologia da sociedade moderna na América do Sul:
homens e mulheres, da família da assassinada Maria e fora dela. Esse fluxo
cultura material, discursos e práticas. Buenos Aires: Ediciones del Tridente, 2002.
36 CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA DA UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA. 2º Ofício, 37 Ver AGOSTINI, op. cit., 2010.
caixa 470. PC s/n. Pocinho, 1874. Vassouras, 1874. 38 CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA DA UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA, p. 7.

250 251
parece sugerir que se Chico Mandú e Maria Ferro não eram pessoas muito não só esta figura intermediária entre os escravos e o poder da fazenda (no
bem-vindas naquele povoado, no mínimo causavam desconforto. caso representado pelo administrador), mas quem ajuda “a colocar ordem
O caso é que de fato não podemos dizer que não eram bem-vindos, na casa”. No entanto, quem fez esse papel parece ter sido esse pedreiro, che-
já que Mandú chegou a trabalhar na pequena roça nos fundos da casa gado ali há tão poucos meses. Suspeito! (pensa o pesquisador).
da família da pequena Maria, onde ela teria sido assassinada. Durante o A suspeita sobre a sua centralidade naquelas relações é melhor enten-
tempo em que esteve empregado para esse trabalho, Mandú dormia por dida quando, de certa forma, se confirma a liminaridade social deste
ali mesmo, em um quarto que lhe foi cedido. Tempos antes, Maria Ferro personagem naquele pedaço de sociedade. Três anos depois, nosso caro
também foi “bem-vinda” na casa da família da vítima. Foi quando alguém português Bernardo é mencionado no inventário do proprietário daquela
da casa esteve doente e Ferro fora chamada para ajudar na cura. fazenda e não só continuava por lá, como já tinha um filho com uma escra-
Fronteiras que se fecham, fronteiras que se abrem. Personagens um va.40 Neste documento, ele aparece recebendo de seu patrão o direito de
tanto ambíguos que ora aceitos, ora rejeitados, pareciam transitar por luga- cuidar e educar seu filho, e o menino livre do cativeiro com a alforria conce-
res de liberdade, mas que carregavam consigo aspectos que possivelmente os dida. O trânsito de Bernardo, nesse caso, trouxe uma transformação e tanto
mantinham simbolicamente ligados se não a um lugar de cativeiro, de rejei- para a perspectiva de vida do pequeno que chegou ao mundo através de um
ção. Esta ambiguidade de pertencer sem ser aceito, ou vice-versa, talvez fosse ventre escravo. Se a permeabilidade das fronteiras podia gerar tensão, podia
o motivo final para que fossem suspeitos e, ainda, supostamente cúmplices. também criar possibilidades e alianças, solidariedades e conquistas.
Outro caso que apresenta um personagem “de fronteira” pode ser lem- Ganhos permitidos por trânsitos dessa natureza, contudo, não impli-
brado no processo do ano de 1876, na fazenda Cachoeira, depois de um cavam em uma espécie de “solução” ou novo lugar conquistado, como se as
crime movido por ciúmes, onde um escravo crioulo matou sua ex-amásia dinâmicas sociais não continuassem a colocar e recolocar (lê-se significar)
(uma preta da fazenda) e o amante dela (um enfermeiro com nome-sobre- as pessoas aqui ou ali. Como ocorreu com os próprios Chico Mandú e Maria
nome e liberdade). Neste caso, a lupa para aproximação não recai sobre as Ferro. Casos que também mostram isso com clareza são os do preto Narciso
vítimas, acusado, nem tampouco o crime em si. Parece curioso observar e do ex-escravo Benedito, que havia comprado sua liberdade depois de ter
aqui os movimentos das pessoas e seus ditos: a correria e o deus-nos-acuda ganhado uma bela monta na loteria. Suas histórias têm o jogo em comum,
na hora do conflito. Analisando os testemunhos e toda essa dinâmica con- mas, sob certo ponto de vista, com implicações opostas em suas vidas.
tida no processo, observa-se que a figura central (certamente para o pes- Narciso era escravo, mas dissimulava sua condição com capricho na
quisador e não para a polícia) foi um pedreiro lusitano chamado Bernardo vestimenta, encontrando, assim, assento nas mesas de jogatina em uma
Ferreira Coimbra, instalado há quatro meses no pavimento térreo da casa venda não distante de onde morava. Sua dissimulação lhe abria espaços,
da fazenda da Cachoeira como agregado.39 não só para apostar e ocasionalmente ganhar algum montante, mas para ali,
Quando falo em figura central digo literalmente, tendo em mente a naquela mesa, fazer relações fora do seu circuito, prescrito dentro do cati-
noção de rede e o fluxo da correria no disse me disse. Foi até ele que a escrava veiro. Estar bem trajado fazia com que aqueles jogadores livres e brancos,
parda Emília correu para avisar o que tinha acontecido, quando chegou do muitas vezes até mesmo endinheirados, olhassem-no olho no olho.
eito e viu sua parceira ferida. Por outro lado, foi através dele que o preto Por outro lado, Benedito, ele sim agraciado com a sorte na loteria,
Ricardo ficou sabendo da confusão. Por fim, foi ele próprio quem o admi- comprou sua liberdade e a de sua amásia, com quem pôde se casar, cons-
nistrador da fazenda chamou para estar consigo quando foi tomar conhe- truir uma casa, com pequena plantação de milho, chegando ainda a com-
cimento da situação. A fazenda possuía um feitor, uma pessoa nascida ali prar alguns escravos. Que sorte! Mas a sorte não lhe garantia uma “inclu-
mesmo na região, chamado Aureliano Alves Santiago. O feitor geralmente é são estável”. Suas conquistas pareciam estar sempre sendo boicotadas, por

39 CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA DA UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA. 2º Ofício, 40 INVENTÁRIO de Pedro José Vieira de Andrade. Vassouras: Centro de Documentação Histórica da
caixa 470. PC 078, 1876. Vassouras, 1876. Universidade Severino Sombra, 1876. Caixa 148, p. 82.

252 253
exemplo, por seu vizinho, que soltava um cavalo escuro em seu quintal para perambulavam por aqueles interiores, possivelmente com a ajuda da dinâ-
destruir seus montes de milho, como reclamou Benedito nos autos. Mundo mica dos trabalhos temporários que deviam estabelecer certos costumes e
contraditório esse; reinava a ambiguidade e a inconstância. práticas a eles associados, como, por exemplo, a de hospedar pessoas des-
conhecidas por curto espaço de tempo. Assim, esses pardos desconhecidos
desvios e possibilidades que perambulavam, podiam fazer um trabalho aqui, outro mais adiante,
às vezes receber a solidariedade de estranhos, como um prato de comida e
Entre as contradições reinantes podemos redirecionar a lente agora para pouso de curta duração.44
alguns dos mais extremos exemplos de impermanência nesse mundo rural No entanto, essas figuras transeuntes, impermanentes, que, assim
vassourense que aparecem nos processos, particularmente registrados nos como apareciam, desapareciam, é claro, seriam ótimos suspeitos se estives-
momentos finais da amostra analisada, na década de 1870, sendo um dos sem nos arredores de um local onde acontecera um crime, passíveis, inclu-
casos do ano de 1880.41 sive, de rápida e genérica associação a algum “quilombola”. Para o pesqui-
A mobilidade do trabalhador rural desta época foi analisada por sador, que tem como parâmetro o quadrilátero funcional como central na
Mattos, Wissenbach, entre outros autores, em diferentes contextos rurais paisagem rural fluminense do oitocentos, por exemplo, a suspeita é outra.
neste período.42 Esta mobilidade característica também pode ser observada A suspeita é sobre a exceção.
nas muitas histórias contidas na amostra em que este trabalho se baseia.43 Essas figuras nos fazem pensar que, talvez mesmo fora das estatísticas,
No entanto, gostaria de salientar uma das mais instigantes dessas formas de pois são como fantasmas para os ofícios da burocracia, não seriam uma
cinesia. Lembro aqui de personagens identificados nos processos como par- espécie de anomalia social sem importância. Elas aparecem para o pesqui-
dos desconhecidos, desamparados, impermanentes e suspeitos. Suspeitos sador que constrói as inúmeras categorias de tipos sociais (representações
pela sociedade por onde transitavam, assim como pelo pesquisador, cada de lugares sociais estabelecidos e sem as quais não se pode fazer uma análise
qual com sua motivação. de caráter acadêmico) como aquele tipo que não se encaixa em nenhum
Eram figuras mencionadas no disse me disse como “mulatos”, “pardos”, lugar. Em sistemas de classificação, provavelmente entrariam em alguma
“pardos escuros”, não raro mudando até de cor entre uma fofoca e outra. categoria de “diversos”, “variedades” ou “dúvidas”. São as melhores! E as
No geral, de idade avançada, carregando uma trouxa, às vezes alguma fer- mais difíceis também...
ramenta ou mesmo arma. Uma japona parecia ser vestimenta incorporada Neste caso, acredito que essas exceções devem ser vistas como consti-
com frequência por eles. Eram desenraizados, sem residência certa, que tuintes daquela realidade social e não como desvios sem relevância ou algum
tipo de “subproduto do sistema”. A realidade que os produzia também os
41 O critério de seleção dos processos do acervo do CDH foi o de considerar para fichamento, trans- permitia. Como lembra Barbosa, “não existe um mundo da ordem e um
crição e análise todos aqueles datados entre os anos de 1820 e 1880 e que apresentassem escravos e
ex-escravos ou africanos e afrodescendentes como réus, vítimas ou testemunhas. A categoria gené-
da desordem, um da moralidade e outro da imoralidade, um do trabalho e
rica de “africanos e afrodescendentes” foi uma escolha prévia (um parâmetro subjetivo de seleção um da vadiagem [...]: existe apenas um mundo, uma engrenagem, e dentro
dos processos), que englobava tanto escravos e libertos como descendentes de escravos ou ex-es-
dele(a), há, sim, uma série de condições sociais postas e criadas a partir
cravos, entre outras categorias que essas pessoas poderiam ter recebido (tanto no contexto dos
documentos quanto da historiografia). Ainda que um tanto genéricas, são categorias amplas que de certos interesses”.45 A própria dinâmica móvel do trabalhador rural livre
proporcionam lentes de aproximação a outras designações presentes no documento referentes a
personagens diversos naquela sociedade. O CDH encontrava-se em expansão na época da con- 44 Estes personagens são referidos aqui a partir de três casos que constam no Crime do Pocinho:
sulta a esta documentação, incorporando documentos provenientes de outros distritos e cidades CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA DA UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA. 2º Ofício,
da região. Todas as transcrições e ferramentas analíticas como os mapas das redes, banco de dados, caixa 470. PC s/n. Pocinho, 1874, p. 34, 81, 165-166. Vassouras, 1874. Para descrição dos casos ver
quadros estatísticos, etc. foram doados ao CEO/Unirio e são de acesso público. Uma cópia desse Agostini (2010).
material foi encaminhada também ao CDH/Vassouras.
45 BARBOSA, Suzana Corrêa. “Peças fora da engrenagem”: capoeiras, lei e repressão na cidade do Rio de
42 MATTOS, 1995; WISSENBACH, 1999. Janeiro (1920-1940). 2014. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense,
43 AGOSTINI, 2010. Niterói, 2014.

254 255
nesta região do Vale do Paraíba, como mencionado, talvez permitisse espa- Chalhoub após a Lei de 1850.50 O que fazia com que esses suspeitos (de serem
ços possíveis para esses pardos desconhecidos poderem circular e ir, passo a escravos) tivessem que “[...] levar a vida a temê-la, e a articular estratégias
passo, conquistando um lugar social. Ambíguo, novo, em construção. para lidar com o perigo”.51 A força desse paradigma fortemente fundamen-
Como visto nos outros casos, essa mobilidade e impermanência gera- tado no olhar racista que criava raízes nesta época, somado ao preconceito
vam suspeição e, por conseguinte, medo.46 Um medo que na ordem prática contra o vestir, o falar, o pensar e outras formas estéticas materializadas
da vida poderia associar, em situações-limite, por exemplo, esses transeun- no corpo ou em objetos de uso pessoal, agia para além da condição jurí-
tes desconhecidos a quilombolas. Ou, seguindo a bela visão que Duarte dica dessas pessoas, mas também sobre sua condição humana e social no
oferece, sobre a insegurança que nômades podiam causar para a sociedade47 cotidiano. Uma pessoa não-branca, ainda que sabidamente livre por seus
como expressão de resistência ao processo de racionalização e controle da vizinhos, teria que lidar ao longo de sua vida com o desconforto daquela
paisagem e dos usos dos espaços sociais. sociedade ao vê-lo inserido no âmbito da liberdade.
Para finalizar, retomo as questões lançadas a certa altura nesse texto Assim como Chalhoub encontrou nos documentos sobre africanos
sobre os significados desses personagens e espaços em processos de ques- livres pessoas suspeitas de serem escravas por apresentarem “indícios” desta
tionamento e de potencial mudança social, assim como sobre os conteúdos condição, esses indícios mantinham a sociedade de uma maneira abrangente,
culturais que eles carregam e transformam na prática cotidiana. Para isso, e particularmente os não-negros, sempre com um temor de que algo estaria
ressalto três aspectos. O primeiro é a certa coincidência no tipo de tensão fora do seu lugar. O que levaria pessoas como Mandú e Ferro em situações-li-
vivida por Chico Mandú e Maria Ferro sugerida no documento anterior- mite, como a de um crime, por exemplo, a serem sempre suspeitas.
mente mencionado: ele ofendido com a expressão “negro” e ela por não ser O segundo aspecto que gostaria de salientar me leva a retornar para o
de confiança por ser, além de estranha e mulher, uma “baiana”.48 Ambos início: as paisagens das fazendas, palmeiras imperiais e todo o resto. Neste
deveriam carregar expressões físicas, estéticas e/ou comportamentais par- caso, proponho instigar o leitor a buscar aquelas pequenas categorias, com
ticulares, provavelmente enquadradas em um estigma de escravidão e os tipos indefinidos de “diversos”, “variedades”, “dúvidas”. Para isso, lembro
africanidade, tão caro aos ex-escravos e seus descendentes. Como ressalta o caso de comunidades (não quilombolas) que se estabeleciam em áreas
Chalhoub, “talvez fosse o modo de vestir, o jeito de falar, as marcas incisas de vegetação densa, onde também práticas religiosas encontravam abrigo e
no corpo [...]; pressupostos compartilhados [...] que, aos contemporâneos, eram vivenciadas.52 Onde perspectivas culturais muito particulares encon-
não careciam de explicação”.49 Esta “coincidência”, por fim, talvez explique travam espaços e vias que não eram “fechados e estriados, formados por
porque um foi associado ao outro, fazendo-os cúmplices de um crime, caminhos sedentários, garantido a comunicação entre pontos bem delimi-
ainda que mal se conhecessem. tados”,53 sob controle, racionalizados e secularizados. Espaços – importante
O estigma que Mandú e Ferro provavelmente tinham como desafio em lembrar – que não estavam isolados, mas, pelo contrário, por vezes ser-
suas vidas tinha por base, assim, certos “pressupostos compartilhados” que vindo de celeiro para as populações pobres da região, fornecendo produtos
orientavam uma suspeição naturalizada também sobre a condição jurídica para subsistência para o corpo e – por que não? – para o espírito.54
do negro (em serem livres ou escravos), como nos casos observados por Este exemplo pode ser associado ao caso trabalhado por Slenes sobre a
notícia da organização de um levante em Vassouras, em 1848, confabulado
46 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites –
século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 50 Ibid.
47 DUARTE, 1995, p. 40-45. 51 Ibid., p. 251-252.
48 Ver Agostini (2010) para sugestões pormenorizadas dos significados das expressões “negro” e 52 AGOSTINI, 2002.
“baiana” neste contexto. 53 DUARTE, 1995, p. 40.
49 CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: 54 Slenes (1999) sugere como isso poderia acontecer inclusive no âmbito do cotidiano entorno das
Companhia das Letras, 2012. p. 235. fazendas.

256 257
em meio às matas com forte conotação religiosa. Algo que fez tremer “Tirando Leite De Pedra”: o tráfico africano
de medo aquela gente toda.55 O que me leva ao terceiro e último aspecto
sobre tais conteúdos culturais que atuavam na perpetuação de práticas e
estimado a partir de dados etários
ao mesmo tempo como forças de transformação, em vias de conclusão: o
medo. Se aqueles transeuntes miseráveis, desconhecidos, desclassificados
Heitor P. de Moura Filho
– que em minha opinião podem representar aspectos da figura do próprio
liberto em construção (naquela região ainda com grande número de pes-
soas em condição escrava, até pelo menos o início da década de 1880) – não
tinham força para questionar o sistema, podemos refletir se o medo que
elas geravam não contribuía para isso.56 Não me remeto aqui ao medo da
violência física necessariamente, mas daquilo que não está estabelecido, do É da natureza dos modelos estarem sujeitos a constante ajuste, corre-
desconhecido, do impermanente. Ou, talvez, daquilo que foi destituído pela ção, modificação ou simples substituição [...] Não cabe o medo corri-
racionalidade de uma força hegemônica secularizada, mas que nunca desa- queiro do a-priorismo: qualquer hipótese pode ser modificada, ajus-
pareceu do mundo. Aquelas coisas que a prática desencantada não encontra tada ou descartada quando necessário. Sem uma hipótese, contudo,
categorias, tipologias, lugares, mas que estão aí, se fazendo a todo instante. não pode haver explicação; só reportagem e taxonomia crua [...]
moses finley (1986). Ancient History. Evidence and Models.

introdução
Atualmente, encontram-se com facilidade informações sobre os volumes do
tráfico transatlântico por região e portos de desembarque na costa brasileira.
Ainda há poucas fontes, contudo, que vinculem os fluxos do tráfico aos plan-
teis de cada fazenda, proprietário ou região.1 Neste artigo, apresentamos um
método para estimar o fluxo do tráfico africano a partir de fontes alternativas
àquelas vinculadas diretamente à importação, utilizando para isso registros
de época, datados, em que constem a procedência e a idade dos escravos.

1 CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In: FLORENTINO, Manolo
(Ed.). Tráfico, cativeiro e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 15-77. O autor lista
um rol de dificuldades para a pesquisa sobre o comércio de escravos africanos no Rio de Janeiro
setecentista: “Para tratar do comércio de escravos novos no Rio de Janeiro no século XVIII são
necessárias algumas considerações preliminares: a) a escassez de trabalhos publicados sobre o
assunto, o que dificulta a sua abordagem; b) a imensa dificuldade de pesquisa sobre esse comércio,
no período considerado, nos arquivos das cidades do Rio de Janeiro e de Lisboa, por eles não pos-
suírem instrumentos de pesquisa com entradas diretas à documentação específica, levando o pes-
quisador ao exercício de cata à “agulha no palheiro”; c) a ausência de dados estatísticos referentes
ao período setecentista e, principalmente sobre o Rio de Janeiro, que registrem de forma confiável
55 SLENES, Robert. A árvore de Nsanda transplantada: cultos kongo de aflição e identidade escrava no a entrada de escravos novos nessa capitania, como os disponíveis sobre o século XIX; d) a grande
sudeste brasileiro (século XIX). In: LIBBY, Douglas Cole; FURTADO, Júnia. (Org.). Trabalho livre, lacuna quantitativa e nominativa sobre os traficantes, negociantes e outras pessoas envolvidas com
trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Anna Blume, 2006. o comércio negreiro.” Mais adiante, sentencia: “Quantificar o montante exato de escravos africanos
56 Ver AZEVEDO, 1987. que ingressaram no Rio de Janeiro no século XVIII tem sido tarefa quase impossível.”

258 259
A aplicação da metodologia proposta à grande quantidade de registros O método foi aplicado a um contingente de 8.220 escravos africanos
disponíveis, que cobre todo o espectro temporal e geográfico da escravidão relacionados com indicação de idade em inventários post mortem de pro-
no Brasil, produzirá um novo universo de informações sobre o tráfico afri- prietários na região de Vassouras (RJ), ao longo do século XIX (de 1811 a
cano, complementar às fontes já conhecidas. Além disso, permitirá cotejar 1888). Tais documentos foram compilados em um banco de dados, orga-
os dados agregados referentes à entrada no Brasil por certos portos, aos nizado por Ricardo Salles, Keila Grinberg e Magno Borges, sobre o qual
dados desagregados pelas regiões de destino a que se referem os registros a baseamos nossos cálculos.3
serem trabalhados.
Em grandes linhas, propomos aproveitar a “informação demográfica idade no ano de inventário e idade ao chegar no brasil
embutida” num registro de idade datado para calcular o ano em que um
escravo africano teria chegado ao Brasil. Este cálculo se sustenta noutra esti- Um exemplo ajudará na exposição do raciocínio em que se baseia o método
mativa, genérica para toda a população de escravos africanos, que é a pro- proposto. Um escravo que tenha sido inventariado em 1860 como tendo
vável distribuição etária dos desembarcados no Brasil. Assim, conhecendo 50 anos de idade terá possivelmente nascido em 1810. Se sabemos que os
a idade de um escravo em certa data e supondo que tenha chegado aqui escravos masculinos chegavam ao Brasil, em média, aos 22 anos, adquiri-
numa idade que se conforma a esta distribuição etária geral de desembar- mos uma alta expectativa de que este escravo tenha sido desembarcado no
cados, podemos estimar o ano provável de sua chegada. Adicionalmente, país por volta de 1832 (=1810+22). Na realidade, como partimos de uma dis-
como entre o ano da provável chegada e o ano do inventário terão morrido tribuição de possíveis idades para sua chegada,4 teremos igualmente uma
parte dos escravos desembarcados, devemos estimar quantos mais precisa- distribuição de prováveis anos de chegada, conforme ilustrado no Quadro 1.
riam ter chegado para que a quantidade inventariada de africanos tivesse
quadro 1 – exemplo de distribuição de idades e de anos de chegada
sobrevivido até o ano do registro.
Tratando-se de técnica com base em distribuições com validade esta- idade
probabilidade de ter
ano da chegada
chegado com esta idade
tística, isto é, que aproximam a realidade quando considerado um “grande
número” de indivíduos, este resultado torna-se válido para um conjunto de 14 5% 1824
escravos (quanto mais numeroso, melhor) e não para escravos individuais.2 18 15% 1828
Assim, partindo de dados que registram a idade aproximada de escravos 22 30% 1832
africanos no Brasil, em um momento definido, é possível estimar com boa 28 20% 1838
confiabilidade o provável fluxo de desembarques (quantidades e épocas) da 36 15% 1846
população cujos sobreviventes aparecem registrados. 40 10% 1850
Discutiremos os diversos aspectos do método proposto, a saber: a)
44 5% 1854
idade no ano de inventário versus idade no ano de chegada no Brasil; b)
idade com que os escravos chegaram ao Brasil; c) mortalidade de escravos; provável ano médio de sua chegada = 1837 e 2,5 meses
e d) como a mortalidade será considerada em nossos cálculos. Após descri-
ção das etapas do método e apresentação das principais características dos Este exemplo já nos indica uma importante restrição ao cálculo retroa-
dados, exporemos resultados obtidos, apontando algumas questões histo- tivo: o marco histórico do fim do tráfico transatlântico. Consideramos como
riográficas decorrentes dessas estimativas. último ano de tráfico relevante o ano de 1852. No exemplo acima, portanto,
deveremos limitar os possíveis anos de chegada a 1850, recalculando o
2 Uma vez estimada a distribuição de anos de desembarque para um conjunto, entretanto, podere-
mos particularizar as conclusões, dizendo que um escravo específico, por ter tido idade x no ano y, 3 SALLES, Ricardo; GRINBERG, Keila; BORGES, Magno (Org.). Vassouras, século XIX: escravidão e
provavelmente terá chegado ao Brasil em algum de vários anos, associados a certa distribuição de direitos em Vassouras. Rio de Janeiro: [s.n.], 2008.
probabilidades. 4 A origem destas probabilidades de chegada será explicada adiante.

260 261
provável ano médio de chegada como sendo 1836 e 4 meses.5 Dependendo da quadro 3 – exemplo de distribuição de idades e anos de chegada,
região em estudo, poderá ser eventualmente escolhido algum ano mais apro- combinada com o número de escravos chegados nestes anos, de uma
coorte de 100 indivíduos com 50 anos em 1860.
priado para marcar o fim do tráfico. Para o Rio de Janeiro, optamos pelo ano
de 1852, com base nas estatísticas do Trans-atlantic Slave Trade Database, que
probabilidade de ter ano número provável de escravos
lista os seguintes totais de desembarques no sudeste do Brasil (ver Quadro 2): idade
chegado com esta idade da chegada chegados neste ano
quadro 2 – volume do tráfico africano para o sudeste do brasil, 14 5% / 95% = 5,3% 1824 5,3
nos seus últimos anos
18 15%/ 95% = 15,8% 1828 15,8
ano do desembarque 1850 1851 1852 1853 1854 1855 1856 22 30% / 95% = 31,5% 1832 31,5
número de escravos 19.155 4.265 984(a) 0 0 0 320(b) 28 20% / 95% = 21,1% 1838 21,1
Notas: a) Em fins de 1852, em Bracuí, na baia da Ilha Grande, desembarcaram do brigue Camargo 540 afri- 36 15% / 95% = 15,8% 1846 15,8
canos procedentes de Quelimane, Moçambique, e destinados às plantações de café do alto da Serra, no Vale
40 10% / 95% = 10,5% 1850 10,5
do Paraíba paulista e fluminense (Fonte: Thiago C.P. Lourenço, O Império dos Souza Breves nos Oitocentos:
política e escravidão nas trajetórias dos comendadores José e Joaquim de Souza Breves. Diss. Mestrado- 44 0% / 95% = 0% 1854 –.
PPGHistória, UFF, Niteroi-RJ, 2010, p.133). Desses desembarcados, 84 teriam sido apreendidos pelas autori-
soma 100% 100,0
dades (Fonte: Relatorio da Repartição dos Negócios Estrangeiros apresentado à Assembléa Geral Legislativa
na Primeira Sessão da Nona Legislatura, pelo respectivo Ministro e Secretario de Estado Paulino José Soares nota: As probabilidades são as mesmas do Quadro 1, agora normalizadas para continuar somando
de Souza. Rio de Janeiro, 1853). b) Os escravos desembarcados em 1856, em São Mateus no Espírito Santo, 100% após termos excluído a opção de chegada aos 44 anos em 1854 (depois do término do tráfico), que
foram capturados e encaminhados à Bahia (Fonte: Caio Prado Jr, História Econômica do Brasil). aparecia neste Quadro 1 com uma probabilidade de 5%.
Fonte: TRANS-ATLANTIC SLAVE TRADE DATABASE. Atlanta, 2009.
Disponível em: <www.slavevoyages.org>. Acesso em: 2 set. 2013

Para dados com ano de inventário posterior a 1852, consequentemente,


será necessário condicionar os anos de chegadas possíveis para que não
ultrapassem este limite histórico. Assim, um escravo com 40 anos em 1877
só poderá ter chegado ao sudeste do Brasil entre 1837 (quando teria menos
de um ano) e 1852 (aos 25 anos). Pela mesma razão, escravos eventualmente
inventariados como africanos, mas nascidos após este ano, serão conside-
rados como brasileiros.6
O método torna-se tanto mais válido quanto maior o número de escra-
vos que utilizarmos nos cálculos. Assim, se em vez de um único escravo, con-
sideramos um grupo de 100 escravos todos estimados como tendo 50 anos figura 1 – Ilustração da compatibilidade entre coortes por ano de chegada e coortes por ano de inventário
em 1860, podemos repetir o cálculo acima, agora incluindo o número de Continuando com nosso exemplo, ao examinarmos os dados, vemos
escravos que temos a expectativa de ter chegado em cada ano (representamos que, de fato, dispomos de um número de escravos tidos como nascidos em
este número com uma casa decimal para enfatizar seu caráter de estimativa): 1810 significativamente maior do que o considerado até agora. Isto ocorre
porque, além da coorte (um grupo de indivíduos com alguma característica
5 O ano médio de chegada é calculado como a média dos anos acima, ponderados por suas respecti-
vas probabilidades. demográfica referenciada a um mesmo ano) com 50 anos em 1860, também
6 Isto é, neste raciocínio específico, daremos maior credibilidade à informação de idade do que à infor- nasceram em 1810 os escravos inventariados com 49 anos em 1859, aque-
mação de nacionalidade. Como sabemos que a informação etária é muito aproximada, este critério les com 48 anos em 1858, seguindo até aqueles inventariados com 0 anos
pode parecer contraditório, mas adotar o critério inverso aqui (manter a nacionalidade africana e
ajustar a idade) seria por demais indefinido, pois não teríamos base alguma para estimar esta idade. (um ano incompleto) em 1810. A Figura 1 ilustra esta compatibilidade entre

262 263
coortes referenciadas a anos de inventários (e, portanto, a idades nestes 2), nas quais o percentual de crianças nos desembarques sobe para uma média
anos de inventário) e coortes referenciadas a anos de chegada (e, portanto, de 52,8%! Como esta forte alteração do padrão etário também pode ser veri-
a idades nestes anos de chegada). ficada para o tráfico transatlântico como um todo, podemos supor que tenha
efetivamente refletido uma modificação geral na forma de seleção dos indiví-
idade dos escravos ao desembarcar duos escravizados, a partir do momento em que o tráfico passou a ser perce-
bido como uma atividade com os dias contados. A Figura 3 mostra, para todas
A historiografia sobre a distribuição por idade do tráfico transatlântico as 3,870 viagens do Trans-atlantic Slave Trade Database com esta distinção, o
e, em especial, dos escravos africanos desembarcados no Brasil dispõe de claro aumento no percentual de crianças desembarcadas, entre o século XVIII
volume relativamente muito menor de dados quantitativos do que outros (18,6% em média), as primeiras três décadas do dezenove (23,6%) e o período
aspectos do tráfico. No site Trans-atlantic Slave Trade Database, que reúne final do tráfico, de 1830 a 1863 (42,3%).
diferentes dados documentais sobre viagens, só há um tipo de informação
sobre idade dos escravos: o percentual de “crianças” a bordo. O Quadro 4
resume a frequência desta informação em geral e para o Brasil.
quadro 4 – dados sobre distribuição por idade
no trans-atlantic slave trade database

total brasila bra-


tipo de informação disponível sil/
Viagens % Viagens % figura 2 – Percentual de crianças em figura 3 – Tráfico transatlântico total com
total
viagens com desembarques nas principais indicação do percentual de crianças (à direita, o
Todas as viagens registradas 34.946 9.143 regiões do Brasil, por ano da viagem. número total de escravos por período).
fonte: Trans-atlantic Slave Trade Database.
Viagens com quantidade
30.268 100,0% 9.128 100,0% 30,5%
de escravos desembarcados Devemos lembrar que não temos qualquer segurança sobre qual seria
Viagens com informação sobre idade 3.870 12,8% 559 6,1% 14,4% a definição histórica de “crianças” nestes registros, nem quanto à eventual
Viagens sem informação sobre idade 31.055 87,2% 8.659 93,9% 27,9% variação nesta definição ao longo dos dois séculos e meio contemplados.
E há poucas fontes de dados etários referentes a escravos recém-chegados.
nota: (a) Exclui desembarques na Amazônia.
Fonte: TRANS-ATLANTIC SLAVE TRADE DATABASE. Atlanta, 2009.
Maurício Goulart descreve o termo “peça da Índia” (expressão que data, pelo
Disponível em: <www.slavevoyages.org>. Acesso em: 2 set. 2013. menos, do final do século XVII) como “o negro sadio, aparentado de 30 a
35 anos...”.7 Apesar da menção à idade do escravizado, cremos, entretanto,
Os dados com indicação de percentual de crianças, desproporcionalmente que esta expressão deva ser entendida mais como uma unidade de medida e
menos frequentes para o Brasil, se concentram em desembarques em meados como a definição da mercadoria desejada do que como a mediana do tráfico.
do século XVIII (com ano médio 1767). As principais regiões de desembarque As diversas relações com número de escravos entrados em portos do
de escravos (Pernambuco, Bahia e o sudeste) teriam aparentemente recebido, Brasil na época colonial omitem idade, mas classificam separadamente as
segundo esta amostra (não controlada, nem proporcional ao volume total do “crias”, sejam “crias” simples, sejam as “de peito”, “de colo”, de “meia” ou
tráfico), percentuais relativamente pequenos de crianças, cerca de 7,7% em “de todo direito”. Nireu Cavalcanti apresenta estatísticas com pequenas
média. Ao abrirmos estes dados por ano da viagem, contudo, podemos perce- proporções de “crianças”, o que, segundo este autor, se deveu ao fato de os
ber que houve uma marcada alteração do padrão a partir de meados do século
XIX. Havendo um grupo formado por 19 viagens (com 6.713 escravos) realiza- 7 GOULART, Maurício. Escravidão africana no Brasil: das origens à extinção do tráfico. 3 ed. São
das com média no ano de 1839 (assinaladas pela elipse pontilhada na Figura Paulo: Alfa Ômega, 1975. p. 102.

264 265
proprietários desejarem escravos prontos para o trabalho.8 Sobre 721 escra- possivelmente a partir dos oito ou nove anos de idade. Assim, preferimos
vos africanos inventariados entre 1687 e 1809, ou seja, escravos africanos interpretar estes dados de forma diferente do que parecem indicar à primeira
já estabelecidos no Rio de Janeiro, somente 9 (1,2%) são indicados como vista. Ao contrário, pensamos que a participação de crianças (a partir dos
“crianças”. Em comparação, as mesmas fontes relacionam 458 escravos 8 anos, por exemplo) e de adolescentes não se reflete nesses dados sobre as
brasileiros, dos quais 197 (43,0%) são semelhantemente rotulados como poucas “crias” nos desembarques do século XVIII. A efetiva participação de
“crianças”. A partir de outra fonte, esta vinculada à importação, o mesmo adolescentes e de crianças, consideradas estas dos oito aos onze anos, teria
autor relaciona 5.170 escravos da Costa da Mina que entraram no porto sido, assim, maior, já que provavelmente incluídas como “escravos pagantes”.
do Rio de Janeiro no período 1759-1771, dos quais só 26 (0,5%) são listados Considerando que a atitude dos traficantes para o Brasil com relação
como “crias”. Com referência ao período entre 1799 e 1802, também lista à inutilidade de “crias” e à “adequação ao trabalho” de crianças um pouco
35.710 “escravos que têm vindo da Costa da África para esta cidade, desde mais velhas, pouco tenha diferido das atitudes dos traficantes de outros
o ano de 1799 até 13 do corrente [set/1802] e pagaram à Guarda Costa nesta destinos (inclusive pela predominância das “best practices escravistas” por-
Alfândega”, dos quais somente 8 seriam “crias” pagantes. tuguesas nos tráficos dos demais países europeus), podemos, sem dúvida,
J. Ribeiro Júnior, ao tratar do comércio colonial de Pernambuco no aplicar este raciocínio às estatísticas sobre “crianças” do Trans-atlantic
século XVIII, também cita estatísticas semelhantes, em que o número de Slave Trade Database. Desta forma, devemos alterar o entendimento de que
“crias” é pequeno frente aos totais de escravos importados.9 Os 92.195 escra- “havia poucas crianças no tráfico de escravos” ao incluir também aquelas
vos levados entre 1742 e 1779 para Pernambuco (e alguns diretamente para entre os 8 e os 11 anos. As figuras adiante ilustram estas comparações. Com
o Rio de Janeiro) destinavam-se primordialmente a Minas Gerais. Entre base em nossas distribuições etárias padronizadas (descritas mais adiante),
estes, computaram-se 981 crias, ou seja, somente 1,1% do total. dadas as proporções de “crianças” ou de “crias” mencionadas nessas fon-
Embora estes números aparentemente reforcem os indícios de que, tes, consideramos qual seria possivelmente a idade “de corte” entre “cria”
durante o século XVIII, o percentual de crianças desembarcadas no Rio de e “pagante” associada a cada estatística. Supondo válida nossa distribuição
Janeiro e em Pernambuco teria sido efetivamente muito pequeno, devemos etária padronizada, a proporção de “crias” das estatísticas referente ao Rio
lembrar que só pagavam Direitos da Guarda Costa escravos com mais do que de Janeiro feitas por Nireu Cavalcanti, indicaria que estas “crias” teriam, no
88cm (4 palmos) de altura, o que só deixaria de fora dos registros de entrada máximo, 2 anos de idade. No caso de Pernambuco, os dados apresentados
de “escravos” as “crias de peito”, as “crias de colo” e talvez algumas crianças por J. Ribeiro Jr. indicariam a inclusão de crianças até os 4 anos. Os dados
um pouco mais velhas.10 Sem dúvida, no entanto, não estariam ausentes des- do TSTDB para o período até o ano de 1808 consideram como crianças
sas estatísticas crianças consideradas como aptas ao trabalho, o que ocorreria aquelas até 7 ou 8 anos de idade. Já aqueles referentes ao período de 1825 a
1842 teriam, por esta distribuição, incluído jovens até os 22 anos de idade.
8 CAVALCANTI, 2005, p. 15-77.
9 RIBEIRO JÚNIOR, José. Colonização e monopólio no nordeste brasileiro: a Companhia Geral de
Pernambuco e Paraíba (1759-1780). 2. ed., São Paulo: Hucitec, 2004. p. 130.
10 Outra fonte com informação por idade sobre indivíduos desembarcados de 1756 a 1788, referente ao
Maranhão, cita 19,6% de adolescentes e crias de peito sobre um total de 28.657 escravos: CARREIRA,
Antonio. As companhias pombalinas de navegação, comércio e tráfico de escravos entre a costa afri-
cana e o nordeste brasileiro, apud KLEIN, Herbert. A demografia do tráfico atlântico de escravos
para o Brasil. Estudo Econômicos, São Paulo, v. 17, n. 2, p.129-149, 1987. Lucinda Coelho, em “Mão-
de-obra escrava na mineração e tráfico negreiro no Rio de Janeiro” (In: SIMPÓSIO NACIONAL DOS
PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS DE HISTÓRIA, 6., 1971, Goiânia. Anais... Goiânia, 5-12 set. 1971,
p. 449-489), cita o manuscrito “Mapa do rendimento do Contracto Real da Sahida dos Escravos
deste Reino, das Cabeças que se embarcaram para os Portos do Brasil, tanto deste Porto como do de figura 4 – Percentual acumulado, por idade, em figura 5 – O mesmo percentual acumulado,
Benguella e o Direito do Marfim que se embarcou nos anos seguintes: 1766-1768 e 1769”, em que há nossa distribuição de chegados, comparada com comparado com as médias de “crianças” nas
a distinção entre “crias de todo direito”, “crias de meio direito” e “crias de peito” (que nada pagavam), as médias de “crias” citadas por duas fontes. viagens para o sudeste do Brasil no TSTDB
o que leva a supor que, aqui, o termo “cria” também indicaria crianças acima dos 4 palmos de altura.

266 267
Tais comparações não parecem descabidas ao falarmos sobre as infor- quadro 5 – rio de janeiro. despachos e passaportes de escravos (1809-1833).
mações apresentadas por N. Cavalcanti e J. Ribeiro Jr., ou aquelas do TSTD escravos com anotação de idade.
referentes ao sudeste do Brasil até 1808. As médias de quase 60% para o homens mulheres
sudeste de 1825 a 1842, no entanto, deixam dúvida sobre qual o limite de Número Idade média Número Idade média
idade ali empregado para classificar “crianças”. Estas estatísticas teriam Destino: rj oeste 301 21,1 65 19,3
possivelmente incluído boa parte dos adolescentes. É certo, também, que, Todos os destinos 2.399 21,0 523 19,4
mesmo com uma definição mais alargada do que seriam “crianças”, a dis- Todos, incluindo aqueles
tribuição etária dos desembarcados neste período do final do tráfico deve 2.467 20,7 549 19,0
com indicação de “menor”(a)
ter efetivamente apresentado mais jovens do que a dos períodos anteriores. nota: (a) A idade média dos menores é considerada como 11 anos.
Sobre o tráfico do início do século seguinte, Cláudio Honorato chega a Acima, portanto, de sua provável média real.
conclusões que reforçam a maior participação de crianças, ao estudar o mer- fonte: Arquivo Nacional, códices 390, 421, 424 e 425 com despachos de escravos e passaportes da Intendência
cado do Valongo, sobre o qual transcreve significantes relatos de estrangeiros de Polícia da Corte, 1809–1833 em: FRAGOSO, J.; FERREIRA, R. G. Tráfico interno de escravos e relações comer-
ciais no centro-sul, séculos XVIII e XIX. Brasília: IPEA: Rio de Janeiro: UFRJ-IFCS-LIPHIS, 2000. 1 CD-ROM.
referentes à idade dos escravos que encontraram, na segunda e terceira déca-
das do século XIX. O inglês Charles Brand (em 1822) visitou loja onde teria No CD-ROM produzido pelo IPEA, com o banco de dados decorrente
encontrado 300 crianças, entre seis e treze anos – forte indício de que, mesmo do levantamento de códices do Arquivo Nacional com despachos de escra-
que não fossem prioritárias para os compradores, existiam muitas crianças vos e passaportes da Intendência de Polícia da Corte (1809-1833), coorde-
entre os escravos novos. Mary Graham (em 1821-1823) também enfatiza a nado por J. Fragoso e R. Guedes Ferreira,13 temos a informação de que, dos
pouca idade dos escravos que apercebe nas lojas: “[...] bancos colocados rente 2.922 registros com idade anotada, 366 escravos se dirigiram para o oeste do
às paredes, nos quais filas de jovens criaturas estavam sentadas [...]”. Noutra Rio de Janeiro (Resende, Parati, Ilha Grande, Mangaratiba, São João Marcos
casa, vê “um grupo de rapazes e moças que não pareciam ter mais de quinze e Itaguai) o que nos leva a considerar que tivessem alguma afinidade com
anos e, alguns, muito menos [...]”. Os viajantes Spix e Martius (em 1817) men- os escravos inventariados em Vassouras. Entre estes, há 65 mulheres com
cionam “[...] crianças, desde os seis anos de idade, e adultos de ambos os sexos idade média de 19,3 anos e 301 homens com idade média de 21,1 anos. Se,
[...]”. Mais taxativo, Georg Wilhelm Freireyss (em 1814-1815) afirma serem indo além, considerarmos todos os escravos africanos com indicação de
crianças três quartos dos escravos importados: “[...] entre os 40.000 admi- idade, despachados para todos os destinos, essas médias se mantêm ou são
tidos como importação anual, há apenas 10.000 homens e mulheres adul- mesmo reduzidas. Empregaremos estas duas fontes como testes indepen-
tos; todos os mais são crianças em diversas idades, muitas vezes até nascidas dentes para nossas próprias estimativas de distribuição etária de chegados.
durante a viagem; geralmente porém de 8-10 anos.” C. Honorato baseia-se nos
Tanto estas poucas estatísticas disponíveis quanto os numero-
registros da Alfândega e nestes viajantes para concluir que os escravos desem-
sos testemunhos qualitativos dos contemporâneos concordam em duas
barcados “geralmente eram do sexo masculino e de idade entre 10 e 24 anos”.11
Em pesquisa sobre escravos recém-chegados, saídos do mercado autor, em “Aspectos sociodemográficos da presença dos escravos moçambicanos no Rio de Janeiro
(c.1790-c.1850)” (In: FRAGOSO, João et al (Ed.). Nas rotas do Império: eixos mercantis, tráfico e
do Valongo no Rio de Janeiro, no período de 1822 a 1833, M. Florentino relações sociais no mundo português. Vitória: Edufes, 2006. p.225), apresenta distribuições etárias
encontra 393 indivíduos (299 homens e 94 mulheres) cuja média de idade é obtidas em inventários post mortem no Rio de Janeiro, entre 1789 e 1832, para mostrar que a forte
concentração por sexo e etária (na faixa de 15 a 40 anos) encontrada no tráfico africano (isto é, na
de 22,3 anos para os homens e de 21,1 anos para as mulheres.12 estatística sobre o Valongo) não se reproduzia com a mesma intensidade na população estabelecida
no Rio de Janeiro de origem na África Ocidental e na África Central Atlântica, mas era até mais
11 HONORATO, Cláudio de Paula. O mercado do Valongo e comércio de escravos africanos – RJ concentrada naquela com origem na África Oriental. Este autor atribui esta concentração ao maior
(1758-1831). In: SOARES, Mariza de Carvalho; BEZERRA, Nielson Rosa (Ed.). Escravidão africana no risco envolvido nesse trajeto, mais demorado e, portanto, mais arriscado, com maior mortalidade
Recôncavo da Guanabara (séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro: Eduff, 2011. p. 163-169. na “passagem do meio”, que se procuraria contrabalançar pela concentração em homens adultos,
12 FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o mais resistentes e mais desejados como mercadoria no desembarque.
Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX), São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 221. Este mesmo 13 A referência está indicada no Quadro 1.

268 269
características primordiais das levas de escravos trazidas para o Brasil: o Procuramos traduzir estes pressupostos nas distribuições apresentadas
predomínio de homens em quantidades entre 100% e 300% maiores que a seguir, que foram modeladas conforme as características desejadas: são
os contingentes femininos e, com relação a aspectos etários, a preferência sempre positivas, seguem de forma contínua e crescem até um pico modal,
por jovens adultos, seguidos por adultos maduros e adolescentes, crianças decrescendo em seguida. No caso, foram normalizadas para que os 61 valores
e, por último, velhos. Estas duas últimas faixas etárias, junto com escravos discretos entre 0 e 60 anos somassem 100%. A partir de 61 anos, todos os
doentes e aleijados, formariam o “refugo”, arriscado negócio em escravos valores são nulos.16 Para cada uma das idades médias, 18, 20, 22 e 24 anos,
novos a que se dedicavam atravessadores de menor poder econômico na foram desenhadas duas curvas, uma mais concentrada em torno da média e
expectativa de obter retorno com investimento reduzido.14 outra mais dispersa. Como opção para estes primeiros cálculos, escolhemos a
Condizente com esta classificação, a descrição que Maurício Goulart faz curva mais dispersa com idade média de 22 anos para representar a distribui-
dos valores relativos de escravos, conforme sua idade, “no ramerrão do trá- ção etária dos homens (22a) e a mais concentrada com média de 20 anos para
fico”, aponta as seguintes proporções: adultos de 35 a 40 anos valem 50% de representar a das mulheres (20b). A Figura 9 ilustra as distribuições escolhi-
uma peça; crianças de 4 a 8 anos, idem; “molecões” de 6 a 18 anos valiam 66% das. Desejando-se alterar a idade média ou o formato da curva para adequá
de uma peça. “Crias de peito” não valiam nada.15 Inspirados nessas caracte- -la melhor a outras condições, novas distribuições poderão ser construídas.
rísticas qualitativas, procuramos construir distribuições etárias padroniza-
das para escravos desembarcados com base nos seguintes pressupostos:
1o Pressuposto: os grupos desembarcados no Brasil não apresentavam perfil de
populações naturais, posto que selecionados por sexo, idade e constituição
física. Concentravam-se em adolescentes e jovens adultos, com parcela menos
importante de adultos maduros e um número de crianças ainda menor.
2o Pressuposto: seu perfil seria mono-modal, concentrando-se em torno de
uma idade preferencial, que aqui supomos ter sido entre 18 e 24 anos.
Adicionalmente, supomos ter sido a idade média dos homens maior do figura 6 – Distribuições etárias com diversas figura 7 – Distribuições etárias com diversas
que a das mulheres. médias, mais dispersas em torno da média. médias, mais concentradas em torno da média.
3o Pressuposto: a dispersão etária de idade das mulheres seria menor que a dos
homens, isto é, elas estariam mais concentradas em torno da média devido
a uma provável antisseleção de mulheres maduras e velhas. Não tendo
provavelmente havido semelhante aversão a adultos maduros quanto aos
homens, a distribuição etária destes certamente teria sido mais dispersa.
4o Pressuposto: apesar de não preferenciais, teria havido um razoável número
de crianças e adultos maduros. Indivíduos mais velhos só excepcional-
mente teriam sido incluídos.
5o Pressuposto: “crianças” (de 0 a 11 anos) teriam composto cerca de 15% do
total de desembarques, das décadas finais do século XVIII até cerca de 1820, figura 8 – Comparação de duas distribuições figura 9 – As curvas utilizadas para as
com a mesma média, porém mais e menos distribuições etárias dos homens (22a) e das
quando este percentual teria aumentado, possivelmente chegando a 40%
concentradas. mulheres (20b).
nas décadas de 1840-1850.

16 Para os mais afeitos à matemática, lembramos que estas funções foram modeladas a partir de fun-
ções beta e gama, contínuas, mas aqui aplicadas como funções discretas sobre os números inteiros
14 HONORATO, 2011, p. 152. positivos (no caso até 60 anos). Assim, somam 100% seus valores pontuais em cada uma dessas 61
15 GOULART, 1975, p. 103. idades e não sua integral entre 0 e 60.

270 271
Como um teste independente para as médias de idade e para os for- fazermos o caminho inverso, do futuro para o passado, deveremos estimar
matos das distribuições escolhidas, comparamos os percentuais por faixas estes óbitos para chegarmos ao total de indivíduos do grupo original, cujos
etárias destas distribuições padronizadas com os únicos dados disponíveis sobreviventes são aqueles indivíduos inventariados e que constam de nosso
por faixa etária de escravos notoriamente recém-chegados, apurados para banco de dados. Os fluxos do tráfico que buscamos, portanto, são quantida-
os escravos saídos do Valongo (Florentino) e nos despachos e passaportes des maiores do que estas calculadas até agora, pois sabemos que os escravos
da Corte, somente destino RJ oeste (Fragoso & Ferreira). A Figura 10 e a inventariados são sobreviventes de grupos mais numerosos. Necessitamos
Figura 11 ilustram estas comparações. estimar, assim, as coortes – que podemos nomear virtuais – dos escravos
As curvas para homens estão de fato extremamente próximas. Para que teriam desembarcado nos diversos anos anteriores aos anos dos inven-
mulheres, os dados do Valongo mostram-se ligeiramente mais dispersos e tários e sobrevivido até serem registrados num inventário.
mais velhos, enquanto os dados dos despachos e passaportes estão um pouco Esta estimativa dos óbitos ou, o que lhe é equivalente, do total de nasci-
mais concentrados e mais jovens do que nossa estimativa. No geral, estas duas dos em certo ano requer o auxílio de uma tábua de mortalidade que repre-
importantes fontes quantitativas sobre as idades de escravos recém-desem- sente as condições de mortalidade (e simultaneamente de sobrevivência)
barcados confirmam – além de nossas expectativas, devemos reconhecer – da população analisada.17 Entre outros formatos, uma tábua de mortalidade
tanto o formato das distribuições como a média de idade por que optamos. pode ser apresentada como a relação dos sobreviventes de uma coorte con-
vencionada (100.000 indivíduos, em nossos exemplos) com cada idade de 0
(isto é, antes de completar um ano) à idade mais velha possível. A Figura 12
ilustra tal tábua sob o formato de duas áreas divididas pela curva que indica
o número de sobreviventes a cada idade. O complemento deste número de
sobreviventes, com relação ao total inicial (100.000 indivíduos), são os óbi-
tos ocorridos até cada idade (representados pela área superior do gráfico).

figura 10 – Comparação da distribuição esti- figura 11 – Comparação da distribuição esti-


mada para homens (22a) com as do Valongo mada para mulheres (20a) com as do Valongo e
e dos passaportes. dos passaportes.
N = 299 (Valongo) e 301 (passaportes) N = 94 (Valongo) e 65 (passaportes)

nota: Nossas distribuições propostas, que seguem um curso suave, mostram-se aqui descontínuas, pois
seus valores foram somados nos mesmos intervalos quinquenais, de modo a facilitar a comparação.

a questão da mortalidade figura 12 – Curva de sobrevivência a cada idade, figura 13 – Curvas representando tábuas com
delimitando o total de vivos (em baixo) e o total diversas taxas de sobrevivência, indicadas pela
Voltando ao exemplo do Quadro 3, em que havíamos estimado os prováveis de mortos (em cima) esperança total de vida aos 20 anos (e20)
fluxos de chegada de escravos, ao longo de uma série de anos, devemos
agora considerar a inelutável regra demográfica de que indivíduos mor-
rem continuamente ou, em nossa modelagem por períodos, a cada ano. 17 Uma tábua de mortalidade agrupa um conjunto de indicadores que quantificam, sob vários aspectos,
a evolução da mortalidade de um grupo à medida que seus componentes envelhecem: probabilidade
Isto significa que os totais de escravos desembarcados que acabamos de de morrer no ano seguinte ao completar certa idade, número de sobreviventes que completam cada
calcular terão inevitavelmente minguado entre o ano de sua chegada e o idade, número de óbitos em cada idade, total de anos vividos após certa idade, entre outras medidas.
ano em que tiverem sido inventariados. Como, entre um ano qualquer e Para um comentário sobre as diversas metodologias para cálculo de tábuas de mortalidade, com
especial referência à demografia histórica cf. MOURA FILHO, Heitor P. de. Uma tipologia de tábuas
outro no futuro, terão ocorrido óbitos de vários indivíduos de um grupo, ao de mortalidade. Revista Brasileira de Estatística, Rio de Janeiro, v. 73, n. 236, p. 21-46, jan.-jun. 2012.

272 273
O formato destas curvas de mortalidade/sobrevivência depende da mortalidade infantil
intensidade da mortalidade em cada idade, que varia marcadamente ao
longo da vida de um indivíduo: sendo alta nos primeiros anos (a mortalidade A rápida queda nas curvas de sobreviventes nos primeiros anos de vida,
infantil), baixa até o final da adolescência e crescente a partir daí, por toda ilustradas pelos gráficos acima, representam os altos índices de mortali-
a fase adulta. Mulheres apresentavam mortalidade diferencial nos seus anos dade infantil. Esta mortalidade foi primeiro precisada para o século XIX
férteis, devido à alta incidência de óbitos durante o parto ou em decorrência (para o conjunto da população brasileira nata) por G. Mortara, ao calcular
dele. Além das difíceis condições comuns de morbidade da época, os escra- tábuas de mortalidade com base nas informações censitárias de 1872, 1890
vos sofriam com dois fortíssimos fatores agravantes da mortalidade: a adap- e 1920. No período da escravidão, a fortíssima mortalidade infantil chocava
tação a novas condições nosológicas no país e as péssimas condições de vida os comentaristas estrangeiros.20 O historiador Stanley Stein cita certo mr.
a que eram submetidos quanto a esforço físico, alimentação, sono e higiene. Phipps que, em 1872, teria dito que 50% dos nascidos morreriam antes dos
Não é possível, portanto, descrever o formato da curva de mortalidade oito anos de idade. Stein complementa estas opiniões com estatísticas da
por um único indicador. O mais comum deles é a expectativa de vida ao nas- Matrícula de Vassouras, que, entre 1871 e 1888, registraram 9.310 nascimen-
cer (e0) que, no nosso caso, contudo, fica demasiadamente distorcido pela tos de escravos e óbito de 3.074 destes nascidos, o que, comparando com a
alta mortalidade infantil da época, tornando-se, assim, pouco discriminante afirmação anterior, significa cerca de um terço de óbitos até os oito anos e
das diferenças em idade adulta. Preferimos, por conseguinte, trabalhar com meio de idade. Já a tábua de Mortara para o conjunto da população brasi-
a expectativa de vida aos 20 anos (e20), que deve ser entendida como a idade leira nata, nas décadas de 1870-90, aponta 35,8% de mortalidade até os oito
média com que certo grupo morreu (ou morrerá), sabendo que todos seus anos (numa tábua com esperança de vida total aos vinte anos igual a 51,8
indivíduos atingiram os 20 anos. Este indicador tem a vantagem intuitiva adi- anos). Para a população de escravos, acreditamos que 40% de óbitos até os
cional de corresponder aproximadamente à expectativa de vida dos escravos oito anos seja uma estimativa plausível (como ocorre em nossa tábua com
desembarcados no Brasil, próximos, como vimos, dos 20 anos. Representamos esperança total de vida aos vinte anos igual a 47 anos).
na Figura 13 curvas de sobrevivência construídas a partir de diversas intensi- quadro 6 – comparação entre diversas estimativas
dades de mortalidade, indicadas por suas expectativas de vida aos 20 anos. para a mortalidade infantil dos escravos
A curva mais alta e de menor mortalidade (e20 = 51,8 anos) corresponde à mortalidade
mortalidade calculada por G. Mortara para o período 1870-1890, com base autor origem população período (% a.a.) obs.
nos dados censitários.18 Tratando-se de valor médio para toda a população 1° ano 0 a 8 (a)
brasileira nata ao final do período escravista, podemos considerá-la como um “couty” opinião
escravos 1881 58,2 % 23,5 % (b)
apud vários atribuída a
claro limite inferior para a mortalidade dos escravos.
8.007
(c)
Tendo como objetivo identificar um padrão de mortalidade para escravos l. c. soares Santa Casa rj expostos 1840 a 54 71,3 % 16,4 %
expostos
a ser aplicado em nossos cálculos das coortes virtuais de escravos desembar- Matrícula 9.310
cados, examinaremos brevemente os seguintes aspectos do tema: mortalidade s. stein escravos 1871 a 88 43,4 % 13,6 %
Vassouras nascidos
infantil, mortalidade de recém-chegados, estimativas existentes para a expec-
tativa de vida de escravos e as tábuas de mortalidade usadas neste estudo.19 20 S. Stein, em Vassouras: a Brazilian coffee county, 1850-1900 – the role of planter and slave in a planta-
tion society (Princeton: Princeton University Press, 1985. p. 186), lembra a informação (de 1881) repe-
tidamente atribuída a Louis Couty de que só 12% [sic] sobreviveriam aos primeiros anos. R. Slenes,
18 MORTARA, Giorgio. Estudos sobre a utilização do censo demográfico para a reconstrução das esta-
(The demography and economics of Brazilian slavery: 1850-1888. Stanford: Stanford University Press,
tísticas do movimento da população do Brasil. Revista Brasileira de Estatística, Rio de Janeiro, v. 2, 1976. p. 286-287), em longa nota, comenta a sucessão de referências truncadas e mal interpretadas
n. 7, p. 493-538, 1941. que supostamente se sustentariam nos comentários de Couty, para concluir que este autor simples-
19 É bem provável que o padrão médio de mortalidade dos escravos tenha sofrido alterações ao longo mente fez a afirmação bem diferente de que, em 1883, havia 120 ingênuos numa população de 1.000
dos três séculos de escravidão no Brasil. Além disto, certamente houve diversidade entre regiões. pessoas (incluindo escravos e ingênuos). Tanto E. Viotti da Costa (Da senzala à colônia, de 1966)
Neste texto, no entanto, não levaremos em conta tais variações. como C. Degler (Neither black nor white, de 1971) teriam repetido a errônea referência de S. Stein.

274 275
mortalidade uma estimativa indireta dos totais entrados no país, quando combinada com a
autor origem população período (% a.a.) obs. informação, mais disseminada, sobre o total da população em certo momento.
1° ano 0 a 8 (a) J. Calógeras, R. Simonsen e M. Goulart dedicam algum esforço a este exercí-
p. mello tábua e20 = 46,8 pretos e pardos 1872 41,2 % 10,3 % (d)
cio. A opinião de Calógeras sobre a taxa de decréscimo das populações de
7.002
(c) escravos (isto é, mortalidade menos fecundidade), parcialmente com base em
l. c. soares Santa Casa rj expostos 1855 a 70 45,9 % 9,5 %
expostos Eschwege, é bastante difundida: 4,5% ao ano. Sobre o tema, M. Goulart dedica
phipps opinião escravos 1872 31,5 % 8,3 % várias páginas discutindo estatísticas parciais de populações, óbitos e nasci-
h. moura tábua e20= 47 teórica 25,2 % 6,1 % mentos, concluindo cuidadosamente que, se não dispusermos de dados segu-
g.
censos
brasileiros
1870-1890 22,5 % 5,4 % ros, o melhor seria ater-nos aos – amplíssimos – limites mínimo e máximo de
mortara natos
1% a 5% ao ano para o excesso de mortalidade sobre fecundidade.22
notas: Os percentuais que definiram a estimativa aparecem em destaque. (a) Taxa anual composta. (b) As grandes causas da mortalidade de escravos – adaptação ao novo
Interpretamos “primeiros anos” como sendo até 5 anos. A interpolação para o primeiro ano e a extra-
polação até os 8 anos, a partir dos 5 anos, foi baseada (conservadoramente) na tábua de Mortara (1870- ambiente higiênico-sanitário, brutal tratamento no cotidiano e alimentação
1890), o que contribui para a discrepância no ordenamento das estimativas segundo cada indicador. (c) inadequada – sempre foram reconhecidas pelos estudiosos. Historiadores,
Primeiro ano segundo os dados. 0 a 8 anos prosseguindo daí com tábua de Mortara. A mortalidade do
primeiro ano é maior do que a de L. Couty porque esta última é estimada com base na tábua de Mortara.
entretanto, dependem de fontes em que se basear para produzirem seus
(d) Esta é a tábua com maior mortalidade das 4 propostas por P. Mello, referente ao limite inferior para estudos. Foi exatamente a falta de fontes onde buscar dados demográficos
homens. Foi construída com base no Censo de 1872. para o cálculo da mortalidade dos escravos que manteve o assunto envolto
fontes: County, Stein, Phipps, Moura e Mortara (já citados); SOARES, Luiz Carlos. O “Povo de Cam” na
capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: Faperj: 7Letras,
em opiniões e em estatísticas imprestáveis de tão imprecisas. E, além do
2007. p. 454-455; MELLO, Pedro Carvalho de. Estimativa da longevidade de escravos no Brasil na mais, os dados necessários para uma adequada aferição da mortalidade são
segunda metade do século XIX. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 151-179, 1983. exigentes, pois precisam combinar o registro da população existente com o
Para o período 1840-1870, Luiz Carlos Soares traz relevantes estatísticas registro dos óbitos, tudo com coerência geográfica e temporal.
de onde se pode inferir taxa de mortalidade para o grande contingente de 15 Embora adequadas para o cômputo do total da população, as fontes
mil crianças expostas na Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, que, coletivas na era escravista como os levantamentos provinciais de popula-
dadas as péssimas condições sanitárias e de cuidados então vigentes naquela ção e os registros paroquiais mostraram-se bastante deficientes na aferição
instituição, podemos considerar como um limite superior para taxas de dos óbitos e dos nascimentos. Os numerosos sepultamentos não registrados
mortalidade no primeiro ano de vida: uma média de óbitos de 71% (1840 a nas paróquias e, depois de 1850, também não registrados nos cemitérios
1854) e de 46% (1855 a 1870) dos entrados, bem acima das taxas equivalentes públicos, foram a maior razão para essas omissões. Após 1876, os registros
nas tábuas retratadas na Figura 13, que vão de 22,5% a 26,2% para a idade de da matrícula de escravos e ingênuos, supostamente universal e completa,
0 anos.21 Em vista da diversidade de formas como estas múltiplas estimativas mostraram-se igualmente pouco confiáveis quanto ao acompanhamento de
para mortalidade infantil de escravos foram expressas, padronizamos suas óbitos, como comprovou exaustivamente R. Slenes.23
condições para facilitar comparações, como taxas anuais para o primeiro A partir da segunda metade do século passado, arquivos cartoriais dis-
ano e para os oito primeiros anos, conforme apresentado no Quadro 6. persos, em combinação com os respectivos registros paroquiais, vêm sendo
examinados monograficamente, o que tem produzido fontes precisas,
mortalidade e expectativa de vida dos escravos embora pontuais, sobre o tema. Desde S. Stein sobre Vassouras, em 1957,
e R. Slenes, em 1976, sobre Campinas, um grande número de estudiosos
A mortalidade do conjunto da população de escravos foi informação muito
discutida por certa historiografia do século XX com o intuito de construir 22 CALÓGERAS, João Pandiá. Formação histórica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1945; SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil (1500/1820). São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1937; e GOULART, 1975, p. 154-160.
21 SOARES, Op. cit., 2007. 23 SLENES, 1976.

276 277
ampliou significativamente o leque geográfico e temporal destas pesquisas. (para mulheres), isto é, expectativas de vida em média 4,2 anos (homens) e
O banco de dados utilizado neste artigo resultou justamente da combinação 2,2 anos (mulheres) menores que a estimativa geral de Mortara.26
de diversas pesquisas em fontes cartoriais de uma mesma região. Embora
quadro 7 – padronização de estimativas para expectativa de vida
estas fontes constituam uma grande e inovadora gama de informações sobre dos escravos a partir dos 20 anos
as populações cativas, nem sempre podem ser empregadas para a estimação
mortalidade
da mortalidade, exatamente pela falta de dados sobre óbitos coerentemente autor origem população período
vida
de 20 a 30 observação
adicional(a)
associados às respectivas populações. (‰ a.a.) (b)
Os cálculos baseados em dados do recenseamento nacional de 1872, g. mortara
censos brasileiros
1870-1890 31,8 anos 16 ‰
1872-1920 natos
feitos por G. Mortara (1941), E. Arriaga (1970 e 1976) e P. Mello (1983),
talvez tenham sido as pesquisas que alcançaram as melhores relações d. luís sousa opinião escravos 30 anos apud Goulart

“abrangência/precisão”, já que se sustentam em regras demográficas para escravos


p. mello censo 1872 1872 29,7 anos
retificar eventuais falhas dos censos e, pela comparação intercensitária ou – mulheres

pela aplicação de modelos padronizados de população, conseguem estimar escravos


p. mello censo 1872 1872 27,7 anos
– homens
a mortalidade sem recurso a dados de óbitos.24
h. moura tábua e20=47 teórica 27,0 anos 22 ‰
A mortalidade de escravos novos teria sido bastante alta, fato tido como
certo pelos contemporâneos.25 Procuramos aproximar esta realidade pela j. calógeras opinião 45 ‰ apud Goulart
inclusão, em nossas tábuas, de mortalidade mais forte para jovens adultos – escravos
s. f. soares opinião 1860 22,9 anos 50 ‰
idade que corresponderia ao período imediato pós-desembarque – do que novos

sucede com a tábua calculada por Mortara sobre o censo. tollenare opinião escravos 20 anos apud Goulart
O nível de mortalidade correspondente a uma expectativa de vida total m. goulart 13 anos
aos vinte anos (e20) de 51,8 anos, obtido por Mortara como uma média de escravos
s. f. soares opinião 9,2 anos 139 ‰
toda a população brasileira, para 1870-1890, é certamente um limite inferior novos
para a realidade dos escravos no século XIX. Pedro Carvalho de Mello chega r. simonsen suposição 7 anos
a uma mortalidade um pouco mais forte para o conjunto da população de
notas: (a) Consideramos que as diversas estimativas se referem a um escravo-médio, recém-chegado ou
cor em 1872, calculando os seguintes intervalos para expectativas de vida não, mas sempre com 20 anos de idade. Os percentuais que definiram a estimativa aparecem em desta-
aos 20 anos para cada sexo: 46,8 a 48,5 anos (para homens) e 48,5 a 50,8 anos que. “Vida adicional” significa e20 menos 20 anos. Esta definição pressupõe uma tábua de mortalidade,
dada pelo próprio autor ou criada por nós, com e20 apropriado. (b) Percentual ao ano dos 20 até 30 anos,
calculado sobre a população média neste período.
24 MORTARA, 1941; MELLO, 1983; ARRIAGA, Eduardo. Mortality decline and its demographic effects
in Latin America. Berkeley: University of California, 1970, e Id. New life tables for Latin American Diante desta vasta gama de expectativas de vida aos vinte anos, usare-
populations in the nineteenth and twentieth centuries, Westport, Conn: Greenwood Press-University
of California, 1976. mos como referências em nossa modelagem os parâmetros de 51,8 anos, 49,
25 Sebastião Ferreira Soares, em Notas estatísticas sobre a producção agrícola e carestia dos generos 47 e 45 anos (em alguns quadros, incluiremos também 42,5 e 40 anos). Isto
alimenticios (Rio de Janeiro: J. Villeneuve & Cia., 1860), considerou que somente dois terços dos não exclui, é claro, que a mortalidade efetiva de certo plantel ou mesmo a
escravos destinados à lavoura sobreviveriam aos primeiros três anos no Brasil: “[...] teremos para a
lavoura 22.160 escravos. É preciso, porém, observar que pelo menos uma terça parte destes era cei- média de uma região em dado período tenha sido mais forte do que isto. Só
fada por moléstias e pelas fugas, pelo que, no fim de três anos (tempo necessário para industriá-los),
sendo muito felizes os lavradores, podiam contar com 14.774 escravos para a lavoura. Não exagero 26 Talvez por tratar da população cativa como um todo em 1872, majoritariamente crioula, portanto,
este cálculo, porque sou informado que o fazendeiro que comprava 100 cativos, calculava tirar no fim as tábuas de P. Mello (Op. cit.) apresentam mortalidade infantil bem mais alta que a da tábua de
de três anos 25 escravos para o seu serviço.” Stanley Stein (1957, p. 70), deu crédito a esta estimativa, Mortara para o conjunto da população brasileira nata, e, em compensação, menor mortalidade
afirmando que “As condições nas fazendas [plantations] eram tais que era comum um fazendeiro após os vinte anos. Por esta razão, atingem e20 próximos aos mesmos 47 anos de uma de nossas
[planter] ter vinte e cinco escravos aclimatados e treinados três anos após comprar um lote de cem.” tábuas, porém com mortalidade maior até os 20 anos e menor após esta idade.

278 279
como comparação, os famosos sete anos que Roberto Simonsen27 usa como Para melhor apreciarmos a importância desses níveis de mortalidade,
sendo a expectativa de vida de um escravo no período colonial, provavel- vejamos seu efeito sobre os fluxos “virtuais” de escravos desembarcados de
mente nas minas, nos levaria, mantendo uma média de desembarque entre modo que tenham sobrevivido certo número de indivíduos, anos depois.
20 e 25 anos, a uma expectativa de vida total (e20) entre 27 e 32 anos!
quadro 9 – efeito do nível de mortalidade sobre a sobrevivência dos
Para uma ideia talvez mais intuitiva do que estes números significam, 20 aos 50 anos (a). número de sobreviventes aos 20 e 50 anos, numa
resumimos, no Quadro 7, as várias estimativas mencionadas, calculando população de referência de 100.000 indivíduos, l (x)
dois indicadores padronizados para cada uma: 1) taxa anual média de mor-
talidade entre 20 e 30 anos e 2) expectativa de vida adicional aos vinte anos nível de mortalidade (expectativa de vida aos 20 anos, e20)
idade x
(isto é, a expectativa de vida total aos 20 anos menos os 20 já atingidos). 51,8 49 47 45 42,5 40
Partimos de um ou outro desses indicadores, conforme expresso em cada 0 100.000 100.000 100.000 100.000 100.000 100.000
fonte, para calcular seu equivalente no outro. 20 59.119 56.167 54.216 52.396 46.173 38.735
50 31.891 26.102 22.278 18.708 13.698 9.104

as tábuas de mortalidade empregadas A partir de uma população de referência de 100.000 indivíduos nasci-
dos, dada uma mortalidade com expectativa de vida aos 20 anos igual a 47
A escolha das tábuas de mortalidade é etapa fundamental da modelagem
anos (isto é, 27 anos adicionais em média), o número de sobreviventes aos
proposta aqui, pois estes níveis de mortalidade terão repercussão direta
20 anos é de 54.216 e aos 50 anos de 22.278. Isso significa que para cada 100
sobre os volumes dos fluxos de tráfico africano calculados. Selecionamos,
escravos com 50 anos inventariados, por exemplo, em 1860, teriam existido,
como leque de hipóteses iniciais, níveis de mortalidade condizentes com
em 1830, com 20 anos, 243 cativos (=100 x 54.216 / 22.278). Ou seja, teriam
uma expectativa de vida total aos vinte anos de 51,8 anos, conforme esti-
provavelmente desembarcado, 30 anos antes, com 20 anos de idade, mais
mada por G. Mortara para a população brasileira nata, e uma expectativa
do que o dobro de indivíduos para que 100 tenham sobrevivido para serem
de 40,0 anos, que corresponderia aos níveis de mortalidade mais estressan-
inventariados aos 50 anos de idade. Este efeito de acréscimo dos números se
tes frequentemente comentados pela historiografia. Como forma de termos
torna mais forte à medida que aumenta a intensidade da mortalidade, como
uma compreensão mais familiar do que representam estes níveis, anotamos,
vemos no Quadro 10, onde estão indicados quantos indivíduos precisariam
no Quadro 8, as taxas anuais médias (em óbitos por mil indivíduos) nos
existir aos vinte anos para que sobrevivessem 100 aos 50 anos.
períodos antes e depois dos vinte anos, conforme estas tábuas hipotéticas.
quadro 10 – efeito do nível de mortalidade sobre a sobrevivência
quadro 8 – taxas anuais médias de mortalidade
dos 20 aos 50 anos (b). número de indivíduos vivos aos 20 anos
(óbitos por mil habitantes)
para que tenham sobrevivido 100 aos 50 anos, 100 l (20) / l (50)

Expectativa de vida aos 20 anos (e20) nível de mortalidade (expectativa de vida aos 20 anos, e20)
idade x
51,8 49,0 47,0 45,0 42,5 40,0 51,8 49 47 45 42,5 40
Dos 0 aos 20 anos (período de 20 anos) 31,6 35,2 37,7 40,1 49,8 64,9 20 185 215 243 280 337 425
Dos 20 aos 50 anos (período de 30 anos) 20,5 25,1 28,7 32,7 38,0 43,8 50 100 100 100 100 100 100

Continuando com nosso exemplo do Quadro 3, vejamos qual o efeito da


27 R. Simonsen (1937, p. 202): “[Admitindo...] desgaste tal que limite a sete anos a vida efetiva de um
escravo [...]”. Em nota a esta frase, o próprio Simonsen complementa: “Vários documentos, refe-
intensidade de mortalidade sobre os totais de escravos desembarcados que
rentes à exploração de engenhos e mineração, atribuem vida média de dez ou mais anos.” Maurício estimamos. No Quadro 11, repetimos estes cálculos para as intensidades de
Goulart (1975, p. 199-200) repete esta estimativa, mas, noutra página, adverte: “Sabemos [...] que foi mortalidade de referência. Fica claro, assim, que é alta a sensibilidade dos
Simonsen quem propôs, para a escravaria no Brasil, uma vida efetiva de trabalho de sete anos [...]
Não diz porque, não dá exemplos em seu abono [...]”. resultados (o total de escravos desembarcados) à intensidade de mortalidade.

280 281
Em consequência, é essencial, ao aplicar o modelo de estimação dos fluxos do inventariados. Do grupo analisado, 2.401 são mulheres e 5.819 são homens,
tráfico, encontrarmos a intensidade de mortalidade mais próxima à realidade numa razão de sexo de 242 homens por 100 mulheres, compatível com uma
dos escravos no correr do século XIX e, no caso estudado, em Vassouras. região de uso intensivo de mão de obra cativa na grande lavoura.
quadro 11 – exemplo do efeito da intensidade de mortalidade
no cálculo das coortes virtuais no ano de sua chegada, distribuição dos dados por idade e por ano de inventário
de 100 indivíduos inventariados com 50 anos em 1860.
Os dados se distribuem segundo o ano de inventário por todo o período
número provável de escravos chegados em cada ano de 1821 a 1886, com alguns picos decorrentes da abertura de inventários de
idade sem considerando o efeito da mortalidade com
ao
ano da mega proprietários,28 como transparece das figuras abaixo (mostradas na
chegada considerar
chegar efeito da e20 = 51,8 e20 = 49,0 e20 = 47,0 e20 = 45,0
mesma escala, para facilitar a comparação entre as quantidades de homens
mortalidade e mulheres).
14 1824 5,3 10,3 12,1 13,8 16,0
18 1828 15,8 30,0 34,9 39,6 45,8
22 1832 31,6 56,7 65,4 73,7 84,4
28 1838 21,1 34,6 39,0 43,3 48,7
36 1846 15,8 22,5 24,5 26,4 28,8
40 1850 10,5 13,8 14,7 15,5 16,6
total
100,0 168,0 167,9 190,7 212,2
de escravos chegados
sobreviventes em 1860 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 figura 14 – Vassouras. Distribuição por ano de figura 15 – Vassouras. Distribuição por ano
inventário dos registros de homens africanos de inventário dos registros de mulheres africanas
Como discutiremos mais adiante, o nível de mortalidade escolhido
para nossos cálculos implicará em certos fluxos específicos de tráfico, que As figuras a seguir mostram o panorama dos registros da amostra dis-
poderão ou não se coadunar com as informações estabelecidas na historio- tribuídos por ano do inventário e idade neste ano. As linhas pontilhadas
grafia. Desta forma, ou a mortalidade é bastante alta, como querem muitos delimitam as combinações de idade de africanos e ano de inventário com-
autores e, na lógica de nosso modelo, os fluxos do tráfico mostram-se con- patíveis com o efetivo final do tráfico de contrabando, em 1852. Alguns pou-
sequentemente bem mais importantes do que aqueles registrados até hoje, cos registros (8) encontrados abaixo desta linha, isto é, com ano de nasci-
ou a mortalidade é mais baixa do que a considerada pela historiografia e mento maior que 1852, foram considerados como de brasileiros. Até o limite
esses fluxos do tráfico se conformam a níveis esperados. do tráfico efetivo, dois anos após a Lei de 1850 que proibiu definitivamente
o tráfico de escravos para o Brasil, os dados dos inventários demonstraram
a base de dados de vassouras razoável distribuição por todas as idades. Após este ano, percebe-se claro
envelhecimento da população de africanos, que não se renovaria mais. Este
Aplicamos o método proposto para estimar os fluxos do tráfico atlântico
efeito torna-se ainda mais claro nas Figuras 18 e 19, onde representamos as
atribuível ao contingente de 8.220 escravos africanos relacionados com indi-
cação de idade, em inventários post mortem de proprietários na região de idades médias por ano de inventário e em médias móveis.
Vassouras (RJ), ao longo do século XIX (1811-1888). Tais inventários encon-
tram-se compilados no banco de dados mencionado, organizado por Ricardo
Salles, Keila Grinberg e Magno Borges. Este grupo de registros com idades 28 Terminologia proposta por Ricardo Salles em E o Vale era o escravo: Vassouras, século XIX – senho-
res e escravos no coração do Império (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 169), corres-
assinaladas corresponde a cerca de 70% do total dos escravos africanos ali pondente a proprietários de 100 ou mais escravos.

282 283
problema geral que é a preferência desproporcional por certos dígitos. Este
tipo de irregularidade evidencia informação aproximada, seja devido à
ignorância da verdadeira idade, seja pela preferência por idades “favorá-
veis”. Este problema é generalizado em termos mundiais e ocorre em qual-
quer levantamento onde a idade é obtida verbalmente, sem comprovação
documental. Ainda pode ser observado nos censos brasileiros em épocas
bem recentes.29
figura 16 – Vassouras. Distribuição por idade e figura 17 – Vassouras. Distribuição por idade e
A preferência demonstrada por idades que terminam em “0” e “5” é
ano de inventário dos registros de homens ano de inventário dos registros de mulheres. claramente universal nas sociedades que adotam o sistema decimal. Da
mesma forma, a complementar aversão às idades terminadas em “1”, “3”,
“7” e “9” sugere o grau de incerteza com que as idades foram fornecidas nos
inventários. Devido à existência destas irregularidades, podemos ter abso-
luta certeza de que a maior parte dos registros indicam idades aproximadas
e que, portanto, devem ser ajustadas para aproximar-se mais da realidade.

figura 18 – Vassouras. Idade média dos figura 19 – Vassouras. Idade média dos
inventariados, por ano do inventário – homens inventariados, por ano do inventário –mulheres

nota: “3mm7” refere-se à terceira aplicação sucessiva de uma média móvel centrada de 7 elementos .

De 1821 até 1850, a idade média no ano do inventário, tanto de homens


quanto de mulheres, se mantém e até declina ligeiramente. A partir daí, o figura 20 – Vassouras. Homens africanos. figura 21 – Vassouras. Homens africanos.
Distribuição etária nos inventários entre 1821 e Distribuição etária nos inventários entre 1853 e
índice aumenta com regularidade, como se espera de uma população não 1852. Dados originais e dados ajustados. 1886. Dados originais e dados ajustados.
renovada. Note-se que estes dados se referem a escravarias de distintos
inventários, cuja “razão demográfica interna” comum se explica unicamente Este ajuste foi feito pela aplicação sucessiva de médias móveis, de modo
pelo fato de todos serem escravos africanos no Brasil, no período pós-tráfico. independente para os dados de cada ano de inventário, o que dilui as irre-
gularidades, como podemos verificar nas figuras acima.30 Enfatizamos que,
distribuições por idade na época dos inventários sendo estes gráficos decorrentes de reunião de dados dispersos por várias
décadas, representando populações sem vínculo demográfico a não ser a
Qualquer informação sobre idade de escravos africanos é necessariamente origem comum, estas distribuições não podem ser comparadas com distri-
aproximada, tendo sido presumida pelo proprietário ou por algum fun- buições etárias de populações registradas num único momento. São apre-
cionário, na sua chegada ao Brasil, durante o período do cativeiro ou no sentadas aqui unicamente para comprovar as irregularidades no registro de
momento da avaliação do inventário. Ambos os gráficos abaixo evidenciam idades e o efeito do ajuste aplicado.
as enormes irregularidades causadas pelo registro preferencial por certas
29 No recenseamento geral de 2000, 2,7% da população ainda foi registrada com idade presumida.
idades, representadas pelos picos de frequência.
30 Para a idade 0, média dos anos 0 e 1; para idades de 1 a 7, médias móveis centradas (mmc) de 3 anos;
Mesmo considerando que a atribuição de idade tenha sido feita com para idades de 8 a 47, mmc de 5 anos; para idades de 48 a 87, mmc de 9 anos; e para idades de 88 a
um mínimo de critério, registros por idade presumida apresentam um 100, mmc de 5 anos, considerando as idades 101 e 102 com valor nulo.

284 285
método de estimação dos fluxos do tráfico Para cada ano de inventário, o número de nascidos em cada ano entre
1745 e 1792 foi, então, distribuído pelos 60 anos seguintes (ou até o ano do
Uniformização dos dados
inventário, o que viesse antes), proporcionalmente às distribuições padroni-
A primeira etapa do processo é sempre a preparação e uniformização dos zadas de idades de chegada apresentadas acima: “22a” para homens e “20b”
dados. Neste caso, selecionamos, na base de dados, os registros de escravos para mulheres. A partir de 1792, quando um indivíduo nascido então teria
africanos com indicação de idade. Numa segunda triagem, foram reclassi- potencialmente 60 anos em 1852, último ano de fluxo significativo de con-
ficados como “brasileiros” os registros com menções que sugerisse forte- trabando após a Lei Eusébio de Queirós, este alongamento foi limitado ao
mente tratar-se de crioulos, isto é, que incluíam: menor entre 1852 ou o ano do inventário. Os pesos das distribuições de idade
a) referência à cor ou a nascimento no Brasil: “crioulo”, “mulato”, “pardo”, aplicadas a estas coortes foram recalculados para sempre somarem 100%, ou
“cabra”, “fulo”, “ingênuo”; seja, todos os escravos inventariados tiveram seus possíveis anos de chegada
b) referência a ter nascido recentemente: “cria de peito”, “de peito”, “recém- estimados, proporcionalmente às mencionadas curvas padronizadas, entre o
nascido”, “não era nascido na 1ª. avaliação”;
ano de seu nascimento e o menor entre o ano do inventário ou 1852.
c) referência à existência de família: “avaliado junto com a mãe”, “avaliado
junto com a avó”; “são irmãos”, “filho/filha de”;
d) a combinação de ter menos de 10 anos e ter nome;
e) ter idade que o faria nascido depois de 1852.

Foram reclassificados como “africanos” alguns registros sem indicação


de nacionalidade nos quais havia menção à “procedência” de algum lugar
na África ou com a menção “novo”.31

Cálculo do número de chegados


figura 24 – Homens africanos inventariados, figura 25 – Mulheres africanas inventariadas,
por ano de nascimento e por ano de chegada por ano de nascimento e por ano de chegada
Partindo dos dados etários ajustados para cada ano de inventário, conforme estimada para estes sobreviventes estimada para estas sobreviventes
explicitado acima, foi calculado para cada registro o “ano de nascimento”
como a diferença entre o “ano do inventário” e a “idade no inventário ajus- As curvas resultantes (figuras acima) mostram-se suavizadas, apesar
tada”. As figuras abaixo mostram as distribuições de registros por ano de das irregularidades das séries por ano de nascimento, pois os totais de cada
nascimento destes dados, após ajuste etário. ano de nascimento foram distribuídos pelos aproximadamente 60 anos
seguintes (com as condições limites mencionadas acima) proporcional-
mente a nossas distribuições etárias de chegada, contínuas.
Lembramos que estes registros, distribuídos por ano de chegada,
somam o mesmo total dos inventariados. Não houve ainda qualquer esti-
mação dos óbitos certamente ocorridos entre o ano de chegada e o ano de
inventário, o que aumentará os contingentes efetivamente desembarcados
em comparação com os totais inventariados.
figura 22 – Vassouras. Distribuição por figura 23 – Vassouras. Distribuição por
ano de nascimento dos homens africanos ano de nascimento das mulheres africanas
Inclusão da mortalidade na estimação
inventariados ao longo de século XIX inventariadas ao longo de século XIX
A estimação do número de óbitos foi realizada pela aplicação dos parâ-
31 Dois escravos, um com procedência “de Lisboa” e outro “da China” não foram considerados. metros de mortalidade entre o ano da chegada e o ano do inventário, para

286 287
cada grupo com estes mesmos dois anos de referência. O raciocínio é o branda que a real (equivalente a e20=51,8) e de coortes virtuais com a morta-
mesmo desenvolvido no Quadro 11: se sabemos que 100 indivíduos foram lidade que propomos, mais realista (equivalente a e20=47 anos para homens
inventariados em certo ano x, com idade i, tendo chegado num ano anterior e a 49 anos para as mulheres).
x–y, com idade i–y, a tábua de mortalidade nos permite calcular quantos
indivíduos provavelmente chegaram neste ano x–y, para que os 100 tenham
sobrevivido pelos y anos seguintes até serem inventariados.
As figuras abaixo comparam a evolução, para homens e mulheres, das
coortes virtuais de chegada com base na mesma esperança de vida de 51,8
anos, equivalente a nosso limite inferior para a mortalidade (igual a dos
brasileiros natos em 1872-1890). Como uma hipótese mais realista, optamos
por fixar, como nosso cenário padrão, a mortalidade dos homens africa-
nos equivalente à de uma tábua com e20=47 anos. Fixamos, também, uma figura 28 – Número de chegados figura 29 – Número de chegados
sobreviventes e virtuais. Homens. sobreviventes e virtuais. Mulheres.
expectativa de vida diferencial entre homens e mulheres de 2 anos, ou seja,
a tábua de mortalidade para as mulheres será aquela equivalente à com Vemos aqui, com clareza, o efeito da escolha de um nível de mortali-
e20=49 anos. Como comparação com nossa escolha, P. Mello trabalhou com dade sobre nossas estimativas dos fluxos de desembarque de escravos. Os
expectativa de vidas diferenciais para escravos homens e mulheres entre 1,7 dois importantes picos de chegadas de homens, no período de 1790 a 1805 e
e 2,3 anos (média = 2 anos). depois de 1831 a 1842, aumentam significantemente de tamanho, ao aumen-
tarmos a mortalidade do nível semelhante ao dos brasileiros natos no final
do século XIX para níveis mais prováveis para escravos desde meados do
século XVIII até o final da escravidão. Quanto às mulheres, houve um acrés-
cimo regular a partir de 1800 até o pico em 1840.
O modelo também permite fazer a hipótese de que os primeiros africa-
nos (ainda sobreviventes em Vassouras a partir de 1821, quando se iniciam
os inventários compulsados) teriam chegado ao Brasil na década de 1760.

figura 26 – Homens inventariados e coorte figura 27 – Mulheres inventariadas e coorte População de africanos em Vassouras
virtual de chegada, por ano de chegada. virtual de chegada, por ano de chegada.
Mortalidade equivalente a e20=51,8 anos Mortalidade equivalente a e20=51,8 anos

resultados
Fluxos anuais de desembarque
O resultado principal de todo o exercício realizado neste artigo é a esti-
mação dos fluxos anuais de desembarque de africanos no Brasil, isto é,
das coortes virtuais no ano de seu desembarque, associadas ao conjunto
figura 30 – População de homens africanos, figura 31 – Vassouras. População de homens
de escravos inventariados e a certo nível de mortalidade. As figuras abaixo chegadas virtuais e óbitos desde o ano da cativos. População modelada e segundo os
mostram o efeito da mortalidade sobre estes fluxos, comparando as séries chegada até o ano do inventário. Mortalidade levantamentos populacionais
de sobreviventes, de coortes virtuais com mortalidade certamente mais equivalente a e20=47 anos.

288 289
Acumulando as coortes virtuais de chegados e deduzindo os óbitos ocorri-
dos entre cada ano de chegada e o respectivo ano de inventário, podemos
estimar a evolução da população de africanos na região do grupo inventa-
riado. As Figuras 30 e 31 mostram esta evolução (somente para homens). Os
óbitos se igualam ao número de chegados nos anos finais do tráfico, 1850-
1852. A partir daí, a população decresce no ritmo da curva de mortalidade
e do seu envelhecimento.
Feitos estes cálculos, surge imediatamente a questão de sabermos em figura 32 – Mortalidade geral e idade média de figura 33 – Mortalidade geral e idade média das
homens. Mortalidade equivalente a e20=47 anos. mulheres. Mortalidade equivalente a e20=49 anos.
que medida esta estimativa se aproxima dos levantamentos populacio-
nais realizados em Vassouras ao longo do século XIX. A Figura 31 ilustra Recomposição da população pelo tráfico
esta comparação com dados dos levantamentos provinciais para todos os
escravos masculinos (brasileiros e africanos) e para somente os africanos O modelo também pode ajudar a esclarecer certos aspectos da recorrente
no recenseamento de 1872. Caso utilizemos o nível de mortalidade e20=51,8 discussão quanto ao efeito do tráfico como principal fator de crescimento
anos, a população modelada de africanos é 42% maior do que o total recen- (ou manutenção) da população cativa em geral e de africanos em particular.
seado. Aumentando a mortalidade para e20=47,0 anos, esta discrepância se
reduz para 28%. Tal resultado pode ser interpretado de duas maneiras extre-
mas: ou os níveis de mortalidade efetivos teriam sido ainda maiores do que
consideramos (e20=47,0 anos) ou o recenseamento de 1872 não registrou
toda a população de escravos africanos em Vassouras. Ou ainda, é claro,
teríamos uma combinação dessas duas razões.32
Esse tipo de raciocínio “analítico-empírico” é uma das vantagens do
método, que, ao direcionar as pesquisas para temas específicos (como o figura 34 – Relação entre número de chegados figura 35 – Relação entre número de chegados
trade-off entre nível de mortalidade e margem de erro no censo), ajuda a e de óbitos na população de homens. e de óbitos na população de homens. 1800 a 1852.
Mortalidade equivalente a e20=47 anos. Mortalidade equivalente a e20=47 anos.
vencer o imobilismo diante do que é usualmente visto como esgotamento
das fontes. As figuras acima mostram a evolução da relação entre número de che-
gados e número de óbitos (somente para homens africanos) no período
Taxa geral de mortalidade modelado. Nas primeiras décadas, sem surpresa, esta relação é alta, dada
Como a curva de mortalidade empregada não varia ao longo do tempo, mas a importância do tráfico frente ao tamanho da população. Ao calcularmos
somente com a idade dos indivíduos, a mortalidade média desta população a relação entre número de chegados e o tamanho de população, percebe-
acompanha sua idade média, conforme fica patente nas figuras a seguir. mos comportamento do indicador semelhante ao anterior, que começa alto,
decrescendo para certa estabilidade a partir de 1800, quando o número de
chegados anualmente se mantém flutuando entre 3% e 5% da população de
africanos, percentual suficiente para garantir seu crescimento.
32 Há toda uma questão paralela (que não será tratada aqui), de sabermos se e quando os desembar-
cados nas coortes virtuais que não sobreviveram para serem inventariados chegaram à região onde Razão de sexos
os nossos sobreviventes foram inventariados, no caso, Vassouras. Isto poderia afetar nosso côm-
puto da população total ali até cada inventário, pois não temos informação sobre a trajetória destes O exame da razão de sexos em nossos dados chama atenção para os fortes
desembarcados, que, por definição, consideramos terem morrido antes de seus colegas sobreviven- efeitos da mortalidade diferencial entre homens e mulheres e do tamanho
tes serem inventariados.

290 291
das coortes virtuais relativamente aos inventariados sobreviventes. Nos acontecem alguns anos antes na curva “18a”. A passagem da distribuição
inventários, as razões de sexo por ano de inventário se concentram (mais “18a” para outra de mesma média, porém mais concentrada (“18b”), tem o
de dois terços dos homens) entre 180 e 300 homens por 100 mulheres, com efeito de manter a época dos picos na curva de chegados, tornando-os, no
alguns anos de abertura de inventários de mega-proprietário, levando este entanto, mais acentuados. De uma maneira bastante informal, poderíamos
indicador a 600, 800 e mesmo 1.400. Para o conjunto da população cal- dizer que “tornar a idade de chegada mais jovem tem o efeito de antecipar
culada, este indicador se reduz gradativamente de 1810 (406) até 1852, ano as chegadas virtuais, mantendo aproximadamente o formato desta curva,
final do tráfico (226), continuando em queda ainda mais lenta até 1890, enquanto manter a idade média de chegada, mas tornar a distribuição
quando chega a 193. Como comparação, os dados do Valongo (1822 a 1833) mais concentrada em torno desta média resulta em coortes virtuais com
apontam uma razão média de 318 homens por 100 mulheres. Os dos despa- curva mais acentuada”. Deixamos a análise mais quantitativa destes efeitos
chos e passaportes de escravos dirigidos ao oeste do Rio de Janeiro (1809 a para outra ocasião.
1833) atingem 463 homens por 100 mulheres e os de todos os despachos e
passaportes com idade chegam a 449 homens por 100 mulheres. Comparação com o tráfico para o sudeste do Brasil
Empregando a segunda edição do Transatlantic Slave Trade Database–
Sensibilidade dos resultados a variações na distribuição etária de chegada TSTD2 e estimativas complementares a esta base de dados, D. Eltis e D.
Já vimos o importante efeito no total das coortes virtuais em decorrência da Richardson estimaram o tráfico de escravos africanos para o sudeste do
redução no nível de mortalidade aplicado. Como um exemplo do efeito de Brasil, desde 1741, em cerca de 2.095.000 escravos.33 Nesse mesmo período,
variações na distribuição etária de chegada, apresentamos as figuras abaixo, nossa amostra de escravos inventariados em Vassouras gerou a importa-
onde duas curvas com idade média semelhante (18 anos), porém diferentes ção de 22.145 escravos. Se transformarmos o tráfico decenal de uma e de
concentrações, são comparadas à curva de 22 anos empregada no modelo outra série em percentuais destes respectivos totais, podemos comparar a
para os homens. Todas foram calculadas com nível de mortalidade equiva- forma da evolução do tráfico para o sudeste e para Vassouras ao longo do
lente a e20=47. tempo, o que é ilustrado na Figura 38. Percebemos, aí, que o tráfico para
Vassouras evoluiu, no geral, de modo bastante semelhante ao do sudeste
como um todo, mostrando-se relativamente mais importante, contudo,
nas três décadas de 1781 a 1810. A pouca importância relativa no início do
período (até 1770) mistura dois componentes que os dados da amostra não
têm capacidade de separar: a possível importância efetivamente menor do
tráfico para Vassouras nessa época e o fato de que os fluxos de impor-
tação calculados para a amostra dependem da existência de indivíduos
vivos no período dos inventários (de 1821 a 1886). Como estes indivíduos
figura 36 – Homens. Distribuições etárias de figura 37 – Homens. Coortes virtuais
escasseiam bastante antes de 1780, os fluxos de coortes virtuais escasseiam
idade ao chegar com diversas idades médias e correspondentes a estas diversas
concentração em torno da média distribuições de idade ao chegar proporcionalmente. A Figura 39 explicita a importância relativa das duas
séries, em que as décadas de maior importância relativa de Vassouras no
A Figura 36 mostra as distribuições etárias, sendo “18a” mais dispersa tráfico aparecem mais claras.
do que “18b”. Na Figura 37, vemos suas correspondentes coortes virtuais.
A passagem da distribuição “22a” para uma “mais jovem”, porém de for-
mato análogo (“18a”), mantém o formato geral da curva de chegados, tor- 33 ELTIS, D.; RICHARDSON, D. A new assessment of the transatlantic slave trade. In: ELTIS, D.;
RICHARDSON, D. (Ed.). Extending the frontiers: essays on the new transatlantic slave trade database.
nando-a, contudo, um pouco “mais velha”, isto é, os picos da curva “22a” New Haven: Yale University Press, 2008. p. 1-60.

292 293
lógicos que se impõem ao conjunto das três informações disponíveis: os
volumes dos fluxos do tráfico, os dados pontuais de população e o nível de
mortalidade. Ao aceitarmos algum nível para duas destas informações, a
terceira estará logicamente determinada. Este processo de modelagem nos
autoriza, portanto, a desenvolver novos raciocínios, conjugados, sobre os
volumes do tráfico de africanos, sobre os níveis de mortalidade a que esta-
vam sujeitos os escravos da região analisada e também a respeito da preci-
figura 38 – Comparação da distribuição são dos levantamentos populacionais do passado.
figura 39 – Indicador da importância relativa
temporal de coortes virtuais de chegada e da série
do tráfico para Vassouras, na amostra,
No caso de Vassouras, a aceitação dos níveis de mortalidade considera-
de estimativas do tráfico para o sudeste do Brasil
de Eltis e Richardson
em comparação ao Sudeste do Brasil (E&R) dos prováveis pela historiografia (equivalentes a e20=47 anos para homens e a
e20=49 anos para mulheres) nos conduz a estimar o fluxo de tráfico dirigido
Nesta comparação, destacam-se os últimos anos do tráfico (não mostra- a este município em cerca de 2,7 vezes o total da população inventariada
dos no gráfico): 1851 e 1852, para a amostra de Vassouras, e 1851 a 1856, para o ao longo do século XIX (sendo 2,9 para os homens e 2,2 para as mulheres).
total do sudeste, quando o indicador acima atinge 587, isto é, mais de 10 vezes Estes mesmos níveis de mortalidade nos permitem calcular uma população
a média dos indicadores no período “forte” de 1781 a 1810. A explicação para cativa de homens africanos total, em 1872, 28% maior do que os escravos
este pico é dupla e também não pode ser desmembrada. Por um lado, muito então recenseados naquele município. Impõe-se a compensação: ou a mor-
do contrabando procedente do Rio de Janeiro, nestes estertores do tráfico, talidade terá sido ainda maior (para reduzir esta diferença), ou o recensea-
deve efetivamente ter sido dirigido para Vassouras, mas, por outro, o fato de mento ficou muito mais aquém dos totais corretos do que se considera.
nosso método gerar distribuições contínuas de número de desembarcados, Outro tema de interesse diz respeito à conformação ou não de
cortadas no ano de 1852, pode ter “inflado” estes últimos anos do tráfico. Vassouras à dinâmica geral do tráfico para o sudeste do Brasil, pois os
valores de importação modelados revelam que, nas três décadas de 1781 a
conclusão 1810, Vassouras teria recebido proporcionalmente mais africanos do que o
sudeste como um todo. Acreditamos, portanto, que as amplas perspectivas
O modelo proposto permite recriar os fluxos do tráfico de importação vin- analíticas e historiográficas abertas por este método devam ajudar a impul-
culados a certa população de escravos africanos inventariada anos depois sionar importantes pesquisas futuras.
de sua chegada ao Brasil. Esta informação associa aos dados já conheci-
dos sobre o grupo, estabelecido em alguma região do interior, novos dados
sobre sua chegada ao país, complementando o conhecimento sobre estas
comunidades particulares. No caso de Vassouras, identificamos dois claros
períodos de intensificação do tráfico de chegada ao Brasil, de 1780 a 1800 e
de 1830 a 1845.
Com o acúmulo de tais dados, por outro lado, também será possível
comparação com os volumes atualmente conhecidos para o tráfico transa-
tlântico. O modelo permite, além disto, que façamos hipóteses condiciona-
das sobre a evolução demográfica das populações estudadas, principalmente
sobre seu nível de mortalidade. Ao combinarmos os dados modelados com
informações existentes em levantamentos populacionais, surgem limites

294 295
anexo 1 – Distribuições etárias padronizadas idade 18a 20a 22a 24a 18b 20b 22b 24b
para escravos desembarcados 30 0,01256 0,01785 0,02263 0,02636 0,00641 0,01301 0,02155 0,03019
31 0,01079 0,01581 0,02057 0,02450 0,00495 0,01041 0,01808 0,02645
32 0,00922 0,01393 0,01860 0,02266 0,00383 0,00827 0,01500 0,02291
33 0,00784 0,01220 0,01673 0,02084 0,00299 0,00653 0,01233 0,01963
idade 18a 20a 22a 24a 18b 20b 22b 24b 34 0,00664 0,01063 0,01497 0,01908 0,00237 0,00514 0,01004 0,01665
0 0,00015 0,00013 0,00011 0,00011 0,00000 0,00000 0,00000 0,00000 35 0,00560 0,00922 0,01332 0,01737 0,00191 0,00404 0,00811 0,01399
1 0,00098 0,00069 0,00053 0,00043 0,00002 0,00002 0,00002 0,00002 36 0,00471 0,00796 0,01180 0,01575 0,00158 0,00319 0,00651 0,01164
2 0,00313 0,00213 0,00152 0,00115 0,00010 0,00007 0,00006 0,00006 37 0,00395 0,00684 0,01040 0,01420 0,00133 0,00254 0,00521 0,00960
3 0,00673 0,00457 0,00323 0,00238 0,00043 0,00024 0,00016 0,00013 38 0,00330 0,00585 0,00912 0,01275 0,00116 0,00204 0,00415 0,00787
4 0,01156 0,00796 0,00565 0,00415 0,00142 0,00073 0,00043 0,00029 39 0,00276 0,00498 0,00797 0,01139 0,00103 0,00166 0,00331 0,00640
5 0,01725 0,01209 0,00869 0,00640 0,00363 0,00185 0,00103 0,00063 40 0,00231 0,00423 0,00693 0,01013 0,00093 0,00138 0,00265 0,00518
6 0,02335 0,01673 0,01220 0,00907 0,00758 0,00396 0,00219 0,00130 41 0,00193 0,00358 0,00599 0,00897 0,00085 0,00117 0,00213 0,00417
7 0,02944 0,02159 0,01602 0,01206 0,01354 0,00737 0,00415 0,00245 42 0,00161 0,00302 0,00517 0,00791 0,00079 0,00101 0,00173 0,00336
8 0,03517 0,02642 0,01997 0,01524 0,02140 0,01221 0,00708 0,00423 43 0,00135 0,00255 0,00444 0,00694 0,00075 0,00089 0,00142 0,00270
9 0,04025 0,03102 0,02390 0,01852 0,03067 0,01841 0,01107 0,00676 44 0,00114 0,00214 0,00379 0,00606 0,00070 0,00080 0,00118 0,00218
10 0,04449 0,03518 0,02767 0,02177 0,04057 0,02568 0,01606 0,01009 45 0,00097 0,00180 0,00323 0,00528 0,00067 0,00073 0,00100 0,00176
11 0,04778 0,03878 0,03114 0,02491 0,05019 0,03354 0,02189 0,01418 46 0,00083 0,00151 0,00275 0,00457 0,00063 0,00068 0,00087 0,00144
12 0,05006 0,04174 0,03423 0,02786 0,05865 0,04144 0,02824 0,01893 47 0,00071 0,00127 0,00233 0,00394 0,00060 0,00063 0,00076 0,00119
13 0,05134 0,04399 0,03687 0,03053 0,06526 0,04880 0,03478 0,02415 48 0,00061 0,00107 0,00197 0,00339 0,00057 0,00059 0,00068 0,00099
14 0,05169 0,04553 0,03901 0,03288 0,06956 0,05510 0,04111 0,02960 49 0,00054 0,00091 0,00166 0,00290 0,00054 0,00055 0,00061 0,00084
15 0,05120 0,04637 0,04063 0,03488 0,07137 0,05994 0,04685 0,03503 50 0,00047 0,00077 0,00140 0,00248 0,00052 0,00052 0,00056 0,00072
16 0,04996 0,04655 0,04172 0,03648 0,07079 0,06307 0,05168 0,04015 51 0,00042 0,00065 0,00118 0,00211 0,00049 0,00049 0,00052 0,00063
17 0,04811 0,04613 0,04231 0,03770 0,06809 0,06441 0,05537 0,04473 52 0,00038 0,00056 0,00099 0,00178 0,00046 0,00047 0,00048 0,00056
18 0,04577 0,04518 0,04241 0,03852 0,06370 0,06400 0,05776 0,04855 53 0,00034 0,00049 0,00084 0,00151 0,00044 0,00044 0,00045 0,00051
19 0,04306 0,04376 0,04207 0,03895 0,05809 0,06204 0,05881 0,05145 54 0,00031 0,00042 0,00071 0,00127 0,00042 0,00042 0,00042 0,00046
20 0,04010 0,04197 0,04132 0,03902 0,05174 0,05877 0,05855 0,05336 55 0,00029 0,00037 0,00060 0,00107 0,00039 0,00040 0,00040 0,00042
21 0,03698 0,03988 0,04022 0,03874 0,04510 0,05450 0,05710 0,05422 56 0,00026 0,00033 0,00051 0,00090 0,00037 0,00037 0,00038 0,00039
22 0,03379 0,03756 0,03882 0,03815 0,03853 0,04955 0,05461 0,05407 57 0,00024 0,00029 0,00044 0,00076 0,00035 0,00035 0,00035 0,00036
23 0,03063 0,03509 0,03717 0,03728 0,03231 0,04422 0,05129 0,05298 58 0,00023 0,00026 0,00037 0,00064 0,00033 0,00033 0,00033 0,00034
24 0,02753 0,03252 0,03532 0,03617 0,02664 0,03879 0,04736 0,05106 59 0,00021 0,00024 0,00032 0,00054 0,00031 0,00031 0,00032 0,00032
25 0,02457 0,02992 0,03333 0,03485 0,02162 0,03347 0,04304 0,04844 60 0,00020 0,00022 0,00028 0,00045 0,00030 0,00030 0,00030 0,00030
26 0,02176 0,02734 0,03123 0,03336 0,01730 0,02845 0,03852 0,04527
fonte: Cálculos do autor.
27 0,01915 0,02481 0,02908 0,03173 0,01367 0,02384 0,03398 0,04172
notas: Os títulos das colunas se referem à idade média da distribuição e se estão mais (“b”) ou menos (“a”)
28 0,01674 0,02237 0,02691 0,03000 0,01070 0,01971 0,02957 0,03793 concentradas em torno desta média. Em cada distribuição, a soma dos valores de todas as idades é igual a 1.
29 0,01454 0,02004 0,02475 0,02820 0,00830 0,01610 0,02540 0,03405

296 297
anexo 2a – Tábuas de mortalidade empregadas idade e20 = 51,8 e20 = 49 e20 = 47 e20 = 45 e20 = 42,5 e20 = 40
(0-49 anos): número de sobreviventes l(x) 27 53.130 49.278 46.732 44.357 37.943 31.095

a cada idade completa x, de uma coorte 28 52.289 48.306 45.675 43.218 36.798 30.042
29 51.452 47.339 44.621 42.085 35.663 29.002
nascida com 100.000 indivíduos
30 50.615 46.371 43.567 40.950 34.533 27.970
31 49.776 45.402 42.512 39.815 33.407 26.945
32 48.935 44.430 41.454 38.676 32.283 25.925
idade e20 = 51,8 e20 = 49 e20 = 47 e20 = 45 e20 = 42,5 e20 = 40 33 48.087 43.453 40.390 37.532 31.160 24.910
0 100.000 100.000 100.000 100.000 100.000 100.000 34 47.235 42.470 39.322 36.384 30.039 23.900
1 77.469 75.865 74.804 73.814 69.206 62.803 35 46.373 41.478 38.245 35.226 28.915 22.820
2 71.114 69.166 67.878 66.676 61.335 54.176 36 45.501 40.484 37.170 34.076 27.805 21.762
3 68.289 66.191 64.804 63.510 57.910 50.522 37 44.619 39.489 36.099 32.936 26.710 20.727
4 66.881 64.704 63.266 61.923 56.208 48.729 38 43.726 38.490 35.030 31.801 25.628 19.713
5 65.953 63.720 62.244 60.867 55.081 47.548 39 42.818 37.485 33.961 30.671 24.558 18.718
6 65.301 63.025 61.521 60.118 54.284 46.717 40 41.898 36.476 32.892 29.548 23.500 17.744
7 64.734 62.418 60.887 59.459 53.584 45.989 41 40.963 35.460 31.823 28.429 22.453 16.790
8 64.242 61.889 60.333 58.882 52.972 45.355 42 40.013 34.437 30.753 27.315 21.418 15.855
9 63.814 61.425 59.846 58.373 52.434 44.798 43 39.047 33.409 29.683 26.206 20.396 14.941
10 63.436 61.014 59.413 57.920 51.955 44.305 44 38.066 32.375 28.614 25.104 19.387 14.048
11 63.097 60.643 59.021 57.508 51.521 43.857 45 37.070 31.336 27.547 24.011 18.394 13.179
12 62.780 60.295 58.653 57.120 51.113 43.437 46 36.060 30.293 26.483 22.926 17.417 12.333
13 62.475 59.958 58.294 56.742 50.714 43.029 47 35.036 29.247 25.422 21.852 16.457 11.512
14 62.163 59.612 57.926 56.352 50.304 42.608 48 34.000 28.199 24.367 20.789 15.516 10.718
15 61.827 59.236 57.525 55.927 49.858 42.190 49 32.951 27.151 23.319 19.742 14.597 9.950
16 61.450 58.813 57.071 55.445 49.353 41.716
17 61.010 58.317 56.538 54.877 48.759 41.159
18 60.488 57.726 55.901 54.198 48.049 40.493
19 59.863 57.016 55.134 53.378 47.194 39.692
20 59.119 56.167 54.216 52.396 46.173 38.735
21 58.296 55.225 53.195 51.301 45.038 37.675
22 57.430 54.232 52.118 50.146 43.846 36.562
23 56.556 53.227 51.027 48.974 42.641 35.441
24 55.690 52.231 49.945 47.811 41.450 34.335
25 54.830 51.240 48.867 46.653 40.269 33.241
26 53.977 50.256 47.797 45.502 39.101 32.161

298 299
anexo 2b – Tábuas de mortalidade empregadas idade e20 = 51,8 e20 = 49 e20 = 47 e20 = 45 e20 = 42,5 e20 = 40
(50-100 anos): número de sobreviventes l(x) 77 4.843 3.736 3.005 2.322 1.156 263

a cada idade completa x, de uma coorte 78 4.235 3.276 2.642 2.050 997 214
79 3.672 2.848 2.305 1.797 852 172
nascida com 100.000 indivíduos
80 3.153 2.454 1.992 1.561 721 136
81 2.679 2.092 1.705 1.343 602 105
82 2.250 1.764 1.442 1.143 497 80
idade e20 = 51,8 e20 = 49 e20 = 47 e20 = 45 e20 = 42,5 e20 = 40 83 1.864 1.468 1.205 961 404 60
50 31.891 26.102 22.278 18.708 13.698 9.104 84 1.520 1.202 992 796 322 43
51 30.818 25.060 21.256 17.705 12.834 8.310 85 1.217 968 803 648 252 31
52 29.735 24.026 20.254 16.734 12.006 7.566 86 955 763 637 518 193 21
53 28.642 23.000 19.273 15.794 11.213 6.870 87 732 589 494 406 143 14
54 27.540 21.984 18.313 14.886 10.455 6.222 88 546 442 374 310 104 8
55 26.430 20.976 17.373 14.009 9.731 5.619 89 395 323 275 230 72 5
56 25.312 19.977 16.453 13.163 9.040 5.058 90 277 228 196 166 49 3
57 24.189 18.990 15.555 12.348 8.382 4.539 91 186 155 135 115 31 1
58 23.062 18.014 14.679 11.565 7.757 4.061 92 120 101 89 77 19 1
59 21.935 17.052 13.826 10.815 7.165 3.621 93 73 63 56 49 11 0
60 20.811 16.107 12.998 10.097 6.606 3.218 94 42 37 33 30 6 0
61 19.694 15.180 12.197 9.413 6.079 2.851 95 23 20 18 17 3 0
62 18.587 14.274 11.423 8.763 5.586 2.519 96 11 10 9 9 1 0
63 17.491 13.387 10.676 8.145 5.123 2.218 97 5 4 4 4 0 0
64 16.411 12.525 9.957 7.561 4.690 1.946 98 2 2 2 2 0 0
65 15.346 11.685 9.265 7.007 4.286 1.702 99 0 1 1 1 0 0
66 14.301 10.868 8.601 6.484 3.910 1.483 100 0 0 0 0 0 0
67 13.275 10.076 7.963 5.990 3.560 1.288 fontes: Tábua e20 = 51,8 anos, G. Mortara (1941.). Demais tábuas: cálculos do autor.
68 12.275 9.311 7.353 5.525 3.235 1.114
69 11.303 8.575 6.772 5.090 2.935 960
70 10.361 7.873 6.229 4.695 2.668 841
71 9.452 7.195 5.704 4.312 2.412 731
72 8.578 6.542 5.197 3.941 2.168 631
73 7.742 5.917 4.710 3.584 1.937 540
74 6.948 5.321 4.246 3.242 1.719 457
75 6.200 4.759 3.806 2.918 1.517 384
76 5.498 4.230 3.393 2.611 1.329 320

300 301
A força da escravidão ao sul do Rio de Janeiro: cadeia de propriedades, que juntas formavam um complexo de fazendas
orientadas em torno da produção cafeeira. O comendador José figurava
os complexos de fazendas e a demografia escrava entre os poucos que controlavam o crédito em Piraí, estabelecendo-se como
no Vale cafeeiro na segunda metade do oitocentos o principal capitalista em seu município de origem. Concomitantemente,
ocupava os principais espaços políticos locais, assim como os lugares de
Thiago Campos poder no âmbito da política provincial fluminense.2
No seio desse segmento, a força da escravidão parecia inabalada após
o fim do tráfico. A acumulação da riqueza no ativo escravo, assim como a
reprodução de uma estrutura demográfica incomum no Império do Brasil,
faziam desses senhores – e de suas fortunas – a personificação do impulso
que tomou essa instituição no processo de estruturação do complexo cafeeiro
a partir da década de 1820. Procuraremos acompanhar esse processo atra-
Em 15 de outubro de 1868, iniciava-se o inventário da esposa do comen- vés dos autos de avaliação da fortuna do casal, realizados em 1868 e 1880. A
dador José de Souza Breves, Rita Clara de Moraes Breves, filha do barão partir deles, adotando como método a alternância de escalas,3 procuraremos
de Piraí e da irmã mais velha de José, Cecília de Almeida Frazão de Souza dialogar com interpretações consagradas sobre o desenvolvimento da escra-
Breves. Ao que parece, a morte para Rita chegou repentinamente, nem vidão no Vale do Paraíba fluminense, em especial, em sua porção ocidental,
mesmo houve tempo para a confecção do testamento e disposição das suas buscando problematizar, em uma perspectiva demográfica, a longevidade da
últimas vontades. No entanto, é bem verdade que aquela senhora não pos- escravidão, onde ela mais se corporificou no Império e na América escravista.
suía filhos, tampouco outros herdeiros, de modo que o comendador tor- Comecemos pelo complexo do comendador José Breves. Sua dimensão
nava-se o único legatário e inventariante dos bens do casal, que, a partir era digna de nota: formado por nove fazendas, localizadas nos municípios
daquele momento, passava a ser avaliado para regularização do legado de Angra dos Reis, Barra Mansa e Piraí, tinha sua centralidade nessa última
junto à fazenda provincial. Onze anos depois, faleceria José. Já aguardando municipalidade que concentrava seis das suas nove propriedades. A organi-
o juízo final, deixara um longo e intrigante testamento, o qual escrevera dois zação das fazendas entre o Médio Vale do Paraíba e o litoral sul fluminense
anos antes de falecer. Embora não tivesse filhos, sobravam afilhados, sobri- informava a dinâmica de montagem do complexo, assim como evidenciava
nhos, agregados e amigos, todos contemplados. Seu principal herdeiro, e a o histórico de ocupação e da expansão do café, pioneiramente introduzido
partir de então, administrador do espólio, era o irmão mais novo, o pode- na região ocidental do Paraíba, descendo de Resende em direção à Piraí e
roso Joaquim Breves, tido à época por Rei do café. Barra Mansa.4 Assim, enquanto foi possível, as propriedades em tela confi-
A fortuna do casal, como veremos, estava assentada essencialmente na guravam boa parte de sua reprodução, através do comércio de cabotagem,
posse de milhares de escravos e na propriedade de um conjunto de fazendas do tráfico ilegal de africanos na zona litorânea, além da produção de gêneros
edificadas do litoral ao Médio Vale do Paraíba, ao sul da antiga provín- que garantiam o abastecimento das unidades, e por vezes, do mercado local.
cia do Rio de Janeiro. Integravam a elite agrária, estabelecendo-se entre os Como evidenciam importantes pesquisas para a região, longe de crise,
megaproprietários do Vale.1 O perfil de sua riqueza colocava o casal Breves no final dos anos de 1860, mesmo nas áreas ocupadas no início do século,
entre as famílias que detinham milhares de cativos espalhados por uma
1 Sobre o conceito de elite agrária, ver: FRAGOSO, João. Comerciantes, fazendeiros e formas de acu-
2 PESSOA, Thiago. O Império dos Souza Breves no oitocentos: política e escravidão nas trajetórias dos
mulação em uma economia escravista-colonial: Rio de Janeiro, 1870-1888. 1990. Tese (Doutorado em
comendadores José e Joaquim Breves. 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Niterói, 1990. p. 390-493. Em relação à categoria
Federal Fluminense, Niterói, 2010. p. 78-121.
megaproprietários, ou seja, aqueles indivíduos detentores de cem ou mais escravos, seguimos a divi-
são de faixa de escravarias proposta por: SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo: Vassouras, século 3 REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2000.
XIX – senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 155. 4 OLIVEIRA, José C. Teixeira. História do café no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Kosmos, 1984. p. 264.

302 303
o que se via era a grandeza,5 tanto nas fortunas estabelecidas ao longo dos Os dados acima embora chamem atenção por si só, não serão encara-
últimos 40 anos quanto na estabilidade de um regime de mão de obra que se dos aqui de forma absoluta. Certamente o tamanho da escravaria era maior
mantinha ascendente, a despeito do fim do tráfico de africanos.6 A reprodu- do que o apontado no inventário aberto em 1868, uma vez que o próprio
ção da escravidão preocupava, mas ainda não ameaçava as colheitas e a pro- estado do documento compromete a exatidão da análise.8 Entretanto, com
dução de café na grande lavoura fluminense. Exatamente nesse momento o que temos, cabe uma indagação: qual a real importância da demografia
de opulência foram avaliados os bens legados ao comendador com a morte dessas fazendas nos quadros populacionais do município sede do domínio
de sua esposa. Os números da escravaria ilustram de forma surpreendente do comendador?
a fortuna do casal e a força da escravidão no Vale do café: Segundo o censo de 1872, havia 13.475 cativos no município de
quadro 1: escravos avaliados nos inventários de rita e josé breves (1868 e 1880) Pirahy, distribuídos entre as paróquias de Santana do Pirahy (5.878); S.
João Baptista do Arrozal (3.681), N. Senhora das Dôres de Pirahy (3.020)
nº de cativos no de cativos % de redução da
fazendas freguesia / município
em 1868 em 1880 escravaria em 12 anos
e S. José do Turvo (896).9 Considerando apenas os escravos arrolados no
Pinheiro* Arrozal / Piraí 482 385 20,12%
inventário das fazendas situadas naquele município nos anos de 1868-1869,
Bom Sucesso Arrozal / Piraí 314 95 69,74% excluindo, assim, os cativos do Bracuhy e os demais não incluídos na ava-
Cachoeirinha Arrozal / Piraí 237 92 61,18% liação, 8,5% de toda a escravaria do antigo Pirahy pertencia ao comenda-
Paysandu * Arrozal / Piraí 75 61 18,66% dor e sua esposa. Sabendo que cinco das suas nove fazendas ficavam na fre-
Sobrado Arrozal / Piraí 46 27 41,30% guesia de Arrozal, o domínio nesse território era bastante impressionante:
S. Marcos *1 Arrozal / Piraí *** 31 *** José detinha cerca de 30% dos cativos da freguesia, percentual certamente
Turvo *2 E. Sto. / B. Mansa 97 *** *** subestimado pela não inclusão nos autos do espólio dos dados referentes
Brandão*3 E. Sto. / B. Mansa *** *** *** à fazenda S. Marcos.
Bracuhy Ribeira / Angra dos Reis 63 *** *** Caso façamos a comparação entre o quantitativo de cativos sob o
*** Corte 5 *** *** domínio do Comendador quando de seu falecimento, em 1879, com o
Total *** 1319 691 47,61% número de escravos registrados naquele município pelo Relatório da presi-
Fonte: AUTOS de avaliação do inventário de Rita Clara de Moraes Breves. Piraí: Arquivo Municipal de dência da província para o ano de 1877, observamos que o acervo humano
Piraí (AMP), 1868; e AUTOS de avaliação do inventário de José de Souza Breves. Rio de Janeiro:
de José Breves ainda era bastante significativo, representava mais de
Museu da Justiça do Estado do Rio de Janeiro (MJERJ), 1880.7
4,8% de toda a escravaria do município.10 A redução desse percentual era
5 Robert Slenes foi pioneiro nesse debate ao dialogar com as interpretações clássicas de Stein, Dean
e Viotti da Costa, que enfatizaram a decadência da economia cafeeira, no Médio Vale fluminense,
anunciada no final da década de 1860. Mais recentemente, Salles destacou que a década aberta com
encontramos também 8 ingênuos não valorados, e, por isso, excluídos do quantitativo da escravaria
a Lei do Ventre Livre ainda era um momento de grandeza, e não de crise, para o antigo Vale do café.
da fazenda. *1 Os cativos da referida fazenda não foram avaliados em 1868; *2 Idem em relação a
SLENES, Robert. Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a economia cafeeira da provín-
1880; *3 Idem em relação a 1868 e 1880.
cia do Rio de Janeiro, 1850-1888. In: COSTA, Iraci (Org.). Brasil: História econômica e demográfica.
São Paulo: IPE: USP, 1986; e SALLES, 2008, p. 288. 8 Na avaliação do Pinheiro, por exemplo, duas páginas se perderam no tempo, e sabendo que em
média 8 cativos era avaliados por lauda, o número de escravos na casa do comendador saltava para
6 Slenes também enfatizou o crescimento da escravidão nas áreas tradicionais do Vale, mesmo após o
cerca de 500 indivíduos. No Turvo, algumas folhas também seguiram danificadas; e a fazenda de
fim do tráfico. Segundo o autor: “o fim do tráfico não significaria o início do declínio da economia
S. Marcos, que ao que tudo indica se tratava de uma grande propriedade, não aparecera com seus
escravista do Rio de Janeiro, mesmo na parte ocidental do Vale, mas o começo de uma fase de cres-
cimento mais lento, que duraria até poucos anos antes da abolição”. SLENES, 1986. p. 116. Marquese, escravos arrolados na avaliação do final da década de 1860.
em estudo mais recente, reafirmou a perspectiva de que boa parte da elite política e da classe senho- 9 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Diretoria Geral de Estatística.
rial do Império não encarou o fim do tráfico como condenação irreversível da escravidão no Brasil. Recenseamento Geral do Império de 1872. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger: Tip. Commercial, 1876. 12 v.
MARQUESE, Rafael. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos 10 MAPA dos escravos matriculados e falecidos entre 1871 até 1877. In: PRADO, Visconde de. Relatório
escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 284-85 apresentado à Assembleia Legislativa Provincial... Rio de Janeiro: Typ. da Reforma, 1878. Center for
7 No auto de avaliação do Pinheiro, foram incluídos 42 ingênuos; no Payssandu, 7, todos listados e Research Libraries. Brazilian Government Document Digitalization project: Provincial Presidential
valorados como cativos, por isso, incluídos nesses cálculos. Em S. Marcos, além dos 31 escravos, Reports (1830-1930). Vale lembrar, que embora verossímil, esse índice também seguia subestimado,

304 305
compatível com o declínio do número de escravos do complexo ao longo quadro 2: valor da escravaria do comendador (em contos de réis)
da década de 1870.
Nos autos de avaliação de 1880, não foram listados os antigos cati- fazenda valor 1868 valor 1880
% de redução do
vos do Bracuí tampouco os da fazenda Brandão. Como vimos, em 1868, o investimento em escravos

Bracuí contava com 63 escravos e a fazenda do Brandão, em 1880, com 12 Pinheiro 340.750,000 160.400,000 52,92%

lances de senzalas cobertas de sapê. Dito de outra forma, estamos diante de Payssandu 45.850,000 22.030,000 51,95%

grandes fazendas escravistas que não tiveram seus escravos incluídos nos S. Marcos *** 12.500,000 ***

respectivos autos de avaliação. Apesar do sub-registro, nos doze anos que Bom Sucesso 182.500,000 33.925,000 81,41%

separam as duas avaliações, percebemos uma queda acentuada na escrava- Cachoeirinha 136.650,000 32.470,000 76,23%

ria do complexo. A média de redução nas realidades passíveis de compara- Sobrado 33.800,000 11.860,000 64,91%

ção ficou em torno de 47,61%, enquanto a mediana de queda era de 41,30%, Turvo 73.900,000 *** ***

o que indica que mesmo com a impossibilidade de analisarmos em termos Bracuhy 27.790,000 *** ***

comparativos todas as fazendas em tela, a redução da comunidade escrava Fonte: Idem ao Quadro 1.

esteve na casa dos 40% entre 1868 e 1880. Entretanto, esse índice se altera de
Em tempos de grandeza e da afirmação do capitalismo no plano macro
maneira singular em cada unidade produtiva.
econômico, os números em tela denotam a dimensão da acumulação de
Voltando ao Quadro 1, a fazenda sede do complexo foi uma das que
capital em escravos no processo caracterizado por Tomich como Segunda
menos perdeu força produtiva entre os anos elencados, sua escravaria foi
Escravidão.12 De outra forma, evidencia-se o quanto o comendador estaria
reduzida em 20,12%, percentual semelhante à queda verificada na proprie-
atado a um padrão de acumulação que, embora economicamente viável e
dade de Payssandu que girou em torno de 18,66%. No meio do caminho,
lucrativo, no final dos anos de 1870, mostrara seus primeiros sinais de declí-
o Sobrado teve um déficit de 41,30%, superado apenas pelo encolhimento
nio. A fortuna de um pouco mais de 840 contos de réis investida em cativos,
das gigantes propriedades da Cachoerinha e do Bonsucesso que perderam,
em 1868, justificava-se diante da estabilidade política e econômica da escra-
respectivamente, 61,18% e 69,74% dos seus escravos. Nos três primeiros
vidão, só abalada, institucionalmente, com o fim da Guerra de Secessão.
casos, acreditamos que a redução, embora significativa, não tenha alterado
Entretanto, o investimento em cativos, até aqueles anos, ainda era prática
o perfil de faixa de plantéis. Entretanto, em Bonsucesso e na Cachoeirinha o racional, lucrativa, e, por isso, coerente com a economia de mercado em
tamanho das escravarias havia sido alterado tão profundamente que ambas construção.13 Além do que, no universo do Vale do Paraíba, o mercado de
deixavam de ser mega fazendas, e passavam a grandes propriedades com escravos continuava aquecido e o escravismo, enquanto instituição, parecia
menos de 100 cativos.11 em ascensão em algumas áreas da principal zona cafeeira do Império, pelo
Se compararmos no tempo o montante investido em escravos, pode- menos até os últimos anos da década de 1870.14
mos perceber o quanto a fortuna do comendador era substancialmente Naquele momento, nas áreas tradicionais de expansão do Vale flumi-
embasada na escravidão ao final dos anos de 1860; e como continuou nense, esse aquecimento significou para muitos senhores a disposição de
sendo nos anos seguintes, apesar da redução numérica de todas as suas partes de seus cativos no mercado. Esse processo parece ser exemplificado
escravarias: pela trajetória das fazendas de José Breves. Isso porque, ao final dos anos

uma vez que as escravarias do Bracuí, do Brandão e do Turvo não foram incluídas na avaliação 12 TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011.
realizada no início da década de 1880. 13 BAPTIST, Edward E. A Segunda Escravidão e a Primeira República americana. Almanack, Guarulhos,
11 Utilizamos a proposta de Ricardo Salles, segundo a qual as unidades com mais de 100 cativos eram n. 5, p. 5-41, 1. sem. de 2013.
caracterizadas como megapropriedades. SALLES, 2008, p. 155. 14 SLENES, 1986.

306 307
de 1870, em um período de estabilidade no preço do escravo na economia A execução da hipoteca evidencia por si só que interessava ao comen-
cafeeira,15 a escravaria do comendador era 47,61% menor do que o quantita- dador, em momentos chaves, incorporar novos cativos as suas fazendas.18 Na
tivo de 1868. Entretanto, a despeito do envelhecimento da escravaria e de um verdade, nem tão novos assim. Os nove escravos elencados na guia tinham
processo irreversível de desvalorização da mão de obra cativa, maximizado entre 40 e 75 anos, e labutavam nos serviços de roça. Diferiam, nesse sen-
na década da abolição, continuava sendo bastante representativo o valor tido, das aquisições de sujeitos em idade produtiva (14-50 anos), geralmente
absoluto da fortuna revertido em escravos, 273 contos no ano de 1880.16 objetos por excelência das transações negreiras. Além disso, eram também
Sendo assim, haveria por parte de Breves um paulatino abandono da todos africanos, provavelmente da última geração desembarcada durante a
escravidão ao longo da década de 1870? Suas ações evidenciariam um per- clandestinidade. Na dinâmica do complexo, provavelmente a aquisição de
fil comum aos senhores que optavam por esvaziar demograficamente suas africanos entre a meia idade e a velhice atendia a objetivos específicos, muito
fazendas, ao passo que ampliavam a exploração do trabalho cativo? Assim provavelmente relacionados ao governo dos escravos, que cada vez exigia
como parte de seus pares, passaria a reverter o capital acumulado e inves- mais habilidade de proprietários que mantinham em suas casas uma aglome-
tido em cativos em ações, bens urbanos ou no setor financeiro? ração de centenas de sujeitos escravizados, a maior parte deles ilegalmente,
Não necessariamente: a equação era mais complexa do que parece. A em plena Era do Abolicionismo. A rigor, dispender quase 10 contos de réis
redução da escravaria não significava, a priori, que o comendador estivesse para comprar cativos considerados velhos na lógica do comércio local, pode-
gradativamente abandonando o escravismo como lógica de produção e ria representar que a reiteração da escravidão via mercado, às vezes, se fazia
existência no início da década de 1870. A redução do montante investido desvinculada de motivos essencialmente econômicos, ou claramente racio-
em cativos não era sinônimo de que o eminente fazendeiro só se vincularia nais, mas que traziam sua lógica no funcionamento do complexo e nas rela-
ao mercado a fim de vendê-los. Embora não tenhamos um acompanha- ções estabelecidas na dinâmica interna das próprias fazendas, atendendo sua
mento longitudinal das suas contas, os pagamentos esporádicos e incom- administração e a produção social da paz nas senzalas.19
É verdade, no entanto, que muitos senhores da geração de Breves passa-
pletos de meia sisa ilustram a contradição da economia da escravidão nas
ram a reverter seus capitais, antes concentrados em escravos, em outros bens
áreas onde ela ainda era estruturante:
ao longo da década de 1870. Manuel de Aguiar Valim, por exemplo, retirava
O Comendador José de Souza Breves, morador do município do Pirahy, vem 60% do seu rendimento anual dos seus 650 cativos que labutavam os 1.213.700
pagar [...] a quantia de nove contos e oitocentos mil réis (9:800$000) preço por pés de café em 710 alqueires. Entretanto, apenas 30% de sua fortuna estavam
que comprou em audiência especial de hoje os escravos seguintes, matricula-
aplicados em cativos e bens agrários em 1878. Valim, a partir de meados da
dos neste município em data de 16 de Setembro de 1872, a saber: Paulo de 65
anos de idade, matriculado sob o número 1605 [...], todos de nação e serviço década de 1860, revertera seus capitais em atividades usurárias e apólices da
de roça, matriculados sob o número 176 da relação apresentada; os quais foram dívida pública.20 O barão de Nova Friburgo, falecido em 1872, adotou estra-
hipotecados ao dito Comendador. [...] Rio Claro, 9 de Junho de 1873.17 tégia semelhante, expandindo seus investimentos em imóveis urbanos e nas
atividades comerciais.21 Somavam-se a eles, o barão de Itapetininga que ao
15 “É evidente, então, que o escravo em Vassouras encarece muito, em relação ao preço do café, nos
falecer, em 1877, possuía três fazendas de café, com cerca de 2.000 alqueires
anos imediatamente posteriores ao fim do tráfico de africano. No entanto, no início dos anos 1860
há uma baixa sensível no preço relativo ao do café. De 1862 a 1880 o preço relativo do escravo man- 18 Também em 1873, no mês de novembro, Joaquim Breves gastou 35 contos de réis para a aquisição
tém-se mais ou menos estável, a exceção dos anos de 1872 a 1874 quando exibe uma baixa abrupta de trinta e três escravos penhorados a Manoel José Nogueira e seus filhos. Ibid.
(caindo em 1873 a um nível abaixo do de 1850)”. SLENES, op. cit., p. 127. 19 FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto A paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico,
16 O envelhecimento do senhor também era um importante fator a ser considerado na redução e des- c.1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
valorização de sua escravaria. Ver: COSTA, Iraci del N. Nota sobre ciclo de vida e posse de escravos. 20 FRAGOSO, João; RIOS, Ana. Um empresário brasileiro no oitocentos. In: MATTOS, Hebe; SCHNOOR,
Revista História: Questões e Debates,. Curitiba, p. 121-127, jun. 1983. Eduardo (Org.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Top Books, 1995. p. 200.
17 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (APERJ). Documentos das coletorias de Rio 21 Ao que consta, o monte mor do barão girava em torno de 8 mil contos de réis. FERREIRA, Marieta
Claro e Santana de Macacu endereçados a Diretoria da Fazenda Provincial, 1864-1888. Rio de Janeiro, de Moraes. O empreendimento cafeeiro e o fazendeiro-capitalista. In: ___. História de famílias:
1864-1888. Fundo: Presidência de Província. Notação: 0384. casamentos, alianças e fortunas. Rio de Janeiro: Ed. Léo Christiano, 2008.

308 309
de terras, e apenas 4,7% dos seus bens investidos em cativos.22 O grosso da baseada] na riqueza nova, imóveis e ações” [em um] “movimento de diver-
sua fortuna estava atrelado à atividade usurária, aos imóveis urbanos e às sificação de riqueza e investimentos”.26 O mesmo se sucedeu na província do
apólices da dívida pública. Em síntese, Valim, Nova Friburgo e Itapetininga Rio de Janeiro, com ritmo e temporalidades distintas.
abandonavam paulatinamente a escravidão ao longo da década de 1870.23 Escolhas, no entanto, não eram tão fáceis de serem colocadas em prática.
Nesse sentido, para Fragoso e Rios, ao deixarem de investir na reprodução Muitos senhores que investiram maciçamente em densas escravarias até as
do sistema agrário escravista, aqueles senhores executavam o lado mais bem vésperas da Lei de 28 de setembro de 1871 não conseguiriam reverter seus anti-
sucedido e racional de escolhas que se polarizavam entre abandonar o escra- gos cativos em títulos públicos, capital financeiro ou bens urbanos em poucos
vismo ou continuar investindo em sua reprodução. Nessa linha de análise, anos. Talvez nem tivessem dispostos a fazê-lo, ou apenas o realizariam par-
aqueles que optassem pelo escravismo colocariam em curso a reiteração de cialmente, conservando, assim, o status de grandes senhores. Por isso, muitos
um padrão arcaico de investimentos, marcado pela imobilização do capital e ficaram no meio do caminho, reduziram suas escravarias, ao longo dos anos
pela permanência de longa duração de estratégias de hierarquização e dife- de 1870, investindo no capital financeiro e em bens urbanos, mas se man-
renciação social tributárias à sociedade colonial.24 tiveram atados ao universo da grande propriedade escravista, produtora da
Escolhas como a de Valim e Nova Friburgo, estavam de acordo com reconfiguração e atualização do ser senhor de escravos, no processo de cons-
o perfil de investimento encontrado por Marcondes para Lorena. Na com- trução de um habitus senhorial ainda atual nos últimos anos do século XIX.27
posição da riqueza daquela vila cafeeira, 67,6% do patrimônio inventariado Devemos considerar também que investir na economia do café, e con-
era formado pelas dívidas ativas. A aplicação em imóveis e o capital inves- sequentemente na escravidão no Vale, estava longe de ser uma atitude irra-
tido em escravos representavam, respectivamente, 14,7% e 13,8% da fortuna cional, arcaica, ou um mau negócio pelo menos até o final da década de
registrada entre 1830-1879.25 A divisão da riqueza colocava no topo da acu- 1870. Não só o café atraía as principais fortunas das províncias do Rio de
mulação os indivíduos atrelados essencialmente à usura, seguidos dos que Janeiro e de São Pulo, como também a economia da escravidão continuava
aquecida em diversos municípios da zona de grande lavoura.28 Segundo
se dedicavam apenas ao café, e aqueles que conciliavam os cafezais com os
Robert Slenes e Pedro Carvalho de Mello:
derivados de cana. Devemos considerar, entretanto, que muitos desses sujei-
tos exerciam todos esses papéis simultaneamente, ou os haviam praticado ao A taxa média de retorno do investimento em escravos do sexo masculino com
longo de suas trajetórias, e que a predominância dos haveres sobre os inves- idade entre 20 e 29 anos foi de 13% no triênio 1870-1872; 12% no 1873-75; 15% no
timentos em escravos e imóveis só se estabeleceu após 1850. Nas décadas 1876-78 e 11,5% no 1878-81. Estas taxas foram comparadas ao valor de 10% para a
taxa alternativa de retorno – estimada com base em relatórios governamentais,
seguintes, o gradual abandono da escravidão refletia-se na queda do percen- hipotecas e jornais – que um fazendeiro de café poderia obter caso aplicasse seu
tual investido em cativos, que passou a 9,2% da riqueza inventariada no ter- capital em outras modalidades de investimento que não escravos no período
ceiro quartel do oitocentos. Verifica-se para São Paulo, um processo de “pro- 1871-88 [...] Os resultados mostram que o capital investido em escravos era pelo
gressiva eliminação dos escravos como forma de riqueza [e uma nova forma menos tão remunerativo para os fazendeiros de café quanto os usos alternativos
que esse capital pudesse ser empregado. Esses resultados são bastante significa-
22 FRAGOSO; RIOS, op. cit., p. 201. tivos, pois os preços reais de escravos entre 1871 e 1881 continuavam crescendo,
23 Segundo FRAGOSO; RIOS, op. cit., p. 202: “estamos diante de empresários que, pelo valor dos inves- o que indica que os fazendeiros de café estavam obtendo uma taxa positiva de
timentos, chegavam a deter boa parte da liquidez do sistema. Considerando apenas a soma dos seus ganhos de capital no investimento em mão de obra escrava.29
ativos financeiros teremos uma quantia equivalente a 1,5% dos meios de pagamento existentes no
país, no primeiro trimestre de 1878[...]”. 26 MELLO, Zélia Cardoso, 1985, p. 137 apud MARCONDES, op. cit., p. 171.
24 FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto em uma economia colonial tar- 27 Sobre o conceito de habitus, ver: BOURDIEU, Pierre. Gostos de classes e estilos de vida. In: ORTIZ,
dia: mercado atlântico, sociedade agrária, e elite mercantil no Rio de Janeiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Renato (Org.). Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 82-121.
Civilização Brasileira, 2001. 28 SLENES, 1986.
25 O restante era composto pelas dívidas passivas (5,2%), animais (1,3%), móveis (1,9%) e dinheiro 29 O cálculo segue os dados do município de Vassouras e baseia-se “no método de Fogel e Engerman
(0,6% do total). MARCONDES, Renato L. A arte de acumular na economia cafeeira: Vale do Paraíba para medir a taxa interna de retorno obtida com o capital investido em escravos na lavoura de café, o
– Século XIX. São Paulo: Stiliano, 1998. p. 170-171. que requereu a obtenção de dados sobre a distribuição dos preços de escravos segundo idade e sexo, a

310 311
Assim, proprietários como José, ainda que reduzissem a demografia Portanto, se não reverteram os investimentos realizados em cativos
de suas fazendas, agiam de acordo com a dimensão econômica e social do para ativos urbanos, podemos supor que redução da demografia escrava
Médio Vale fluminense, sugestionados pelos lucros cada vez mais altos do corresponderia à crise da economia cafeeira que começava a se anunciar
mercado mundial de café no século XIX.30 Estavam condicionados pelo para áreas tradicionais da grande lavoura, como São João do Príncipe e
contexto produtivo e econômico local e global, em uma lógica constituinte Piraí, já no início da década de 1870?
da segunda escravidão na América escravista. A realidade das fazendas do comendador não era exceção à regra em
Não por acaso, o esvaziamento demográfico das fazendas não cor- determinados espaços do universo escravista do Médio Vale cafeeiro flumi-
respondera à reversão de capitais em títulos da dívida, ações ou imóveis nense, sobretudo, em relação à região de Piraí e S. João do Príncipe no final
urbanos. Quando da morte da esposa de Breves, em 1868, o casal detinha da década de 1870. O crescimento incontestável da demografia da escravidão
83 apólices da dívida pública, 173 ações do Banco do Brasil, e 9 ações da ocorrera em plenitude nessas áreas entre a implementação da cultura cafeeira,
Companhia União e Indústria, tudo avaliado em 100 contos e 247 mil réis, no final da década de 1820, e os últimos anos da década de 1860. Segundo
valor equivalente a 11,91% da sua escravaria no mesmo ano. Em imóveis na Salles, em sua estimativa para a província do Rio de Janeiro, o número de cati-
Corte, mantinham, na mesma época, chácara à rua S. Clemente (25 contos), vos teria aumentado 30,06%, entre 1840 e 1856, proporção quase equivalente à
casas, de sobrado e térrea, à rua Marquês de Olinda (10 contos), além de elevação da população livre para o mesmo período, estimada em 32%.31
outro prédio que servia de armazém, tudo avaliado em 47 contos, ou seja, Não restam dúvidas que o crescimento da população cativa na provín-
menos de 6 % do montante aplicado em cativos no mesmo período. cia era alavancado pelo Vale. Fossem nas áreas tradicionais, irradiadoras
Passado 12 anos, a fortuna investida em ações e apólices era prati- da cafeicultura a partir do final da década de 1820, ou nas zonas à leste de
camente a mesma, 105 contos de réis, referentes a 112 apólices da dívida Paraíba do Sul, a escravidão ganhava força a despeito do fim do tráfico. Nos
pública. Provavelmente, durante os anos de 1870, o comendador tenha municípios sedes das fazendas do complexo, Piraí e São João do Príncipe,
executado as ações do Banco do Brasil, assim como àquelas aplicadas na “cativos e livres haviam crescido à mesma taxa, mantendo, assim, a mesma
Companhia União e Indústria, menos próspera a partir da expansão da proporção no conjunto da população”. Em Cantagalo, núcleo mais repre-
malha ferroviária. Na Corte, mantivera os mesmos bens, valorados em sentativo na expansão no Vale oriental, o crescimento do quantitativo de
4 contos. O mesmo ocorrera em relação aos imóveis urbanos nas sedes escravos superava o da população livre em quatro pontos percentuais, e a
dos municípios de Piraí e Barra Mansa. Aplicados nesse ativo detinham a proporção de cativos no conjunto da população era de 59% em 1856.32 Daí
quantia de 62 contos em 1868 e 71 contos doze anos depois; montantes que em diante, o desenvolvimento ascendente da escravidão seria mais lento,
representavam 7,41 e 26,26% da escravaria nos respectivos anos. Embora mas continuaria, por vezes, em ritmo menor do que aquele verificado no
os percentuais apontem uma valorização relativa dos imóveis urbanos na universo dos livres.33 Sua representatividade nos quadros populacionais dos
conformação da fortuna do casal, não indicam uma reversão de capitais municípios da grande lavoura fluminense diminuía progressivamente no
para o mundo das cidades, uma vez que no período não foram adquiridos final da década de 1860, muito embora em regiões como Valença, Piraí e
novas casas, sobrados, armazéns ou chácaras nem no município sede de seu Vassouras os escravos ainda conformassem a maioria da população cativa
domínio, tampouco na Corte. segundo o recenseamento de 1872.34
estimativa da expectativa de vida e da receita liquida anual obtida com o uso de um escravo” SLENES,
31 SALLES, 2008, p. 186-87.
Robert; MELLO, Pedro Carvalho de. Análise econômica da escravidão no Brasil. In: NEUHAUS, Paulo
(Org.). Economia brasileira: uma visão histórica. Rio de Janeiro: Campus, 1980. p. 101-102. Para uma 32 SALLES, op. cit., p. 187.
síntese das críticas ao método de Fogel e Engerman, ver: MOURA, Heitor. Uma parábola acadêmica: 33 Segundo Salles, entre 1840-1872, a população livre de Vassouras triplicou, passando de 6.285 para
a jangada de Robert W. Fogel. Revista História da Historiografia, Ouro Preto, n. 14, p. 62-79, abr. 2014. 18.608, enquanto o universo dos escravos aumentou 1,41 vezes, saltando de 14.344 para 20,168 cati-
30 SLENES, op. cit. MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação de vos. SALLES, op. cit., p. 160.
café no século XIX. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil imperial: 1831-1870. Rio 34 Quadro semelhante analisou Viotti da Costa em relação aos municípios do oeste paulista. Segundo
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. v. II, p. 341-383. a autora: “Esses dados permitem-nos observar que até os anos 70 [1870] o número de escravos não

312 313
quadro 3: evolução da população escrava com uma população de aproximadamente 73.720 indivíduos, dos quais
no vale ocidental fluminense (1840-1872) 49,49% eram escravos; Piraí possuía menos da metade, em torno de 32.505
1840 1850 1856 1872 habitantes, e ainda assim 73,41% deles eram cativos. Atrás desse pequeno
município, estavam Valença e S. João do Príncipe, áreas da região ociden-
no absoluto

no absoluto

no absoluto

no absoluto
tal do Vale, também com percentuais elevados de cativos no conjunto da

% na pop.

% na pop.

% na pop.

% na pop.
município
população, respectivamente 65,38% e 61,88%. Mesmo diante da ausência de
dados para Vassouras na amostra de 1856, e tomando como referência os
Barra Mansa 6.820 56,36 10.994 42,47 índices de 1850, observamos que, na relação entre o número de cativos e
Paraíba do Sul 8.506 54,18 8.513 50,81 17.107 45,67 conjunto da população, seu quantitativo era proporcionalmente menor do
Piraí 11.186 64,91 19.090 73,41 23.862 73,41 13.475 53,03
que o encontrado em Piraí, uma vez que 69,61% dos seus habitantes eram
formados por escravos em 1850. Em Valença, no mesmo ano, esse percen-
Resende 8.663 42,89 9.120 45,60 10.210 42,47 9.437 32,58
tual era de 70,10%; enquanto no município sede das fazendas de José Breves
S.J. do Príncipe 6.679 55,80 9.483 61,88 11.853 61,88 7.653 43,91
o índice já alcançava os 73,41%.
Valença 12.835 70,93 20.119 70,10 23.468 65,38 23.496 55,77 Dito de outra forma: em toda a província do Rio de Janeiro, Piraí era,
Vassouras 14.333 69,91 19.210 67,09 20.168 51,38 proporcionalmente, o município que mais concentrava cativos em sua
Total 69.022 85.535 69.393 102.330 população durante a década de 1850; e o segundo ou terceiro que mais os
Fonte: Dados retirados do quadro sistematizado por Ricardo Salles.
detinha em números absolutos.35 Tendo em vista a estrutura de posse no
Para uma visão de toda a província do Rio de Janeiro, ver: SALLES, op. cit., p. 258-259. Brasil oitocentista, inclusive nas regiões de grande lavoura, provavelmente
o pequeno Piraí, entre o final da década de 1840 e o início dos anos de 1860,
Concentremos a análise no espaço em que estava inserida a maior fosse o município que mais concentrasse escravos em todo o Império, não
parte das fazendas do comendador. O quadro acima nos ajuda a acompa- em números absolutos – já que seria superado por Campos, e provavel-
nhar o desenvolvimento da demografia da escravidão nos municípios da mente por Vassouras –, mas em termos relativos, na medida em que mais
banda ocidental do Vale cafeeiro fluminense da expansão à crise da abolição. de 73% da sua população ainda era cativa em 1856, essencialmente formada
Centralizando a análise em Piraí, observamos claramente o desenvolvimento pelos últimos africanos desembarcados clandestinamente no território
do escravismo tardio naquela região. Entre 1840 e 1856, o número de escravos brasileiro.
no município mais que dobrou, passando de 11.186 para 23.863 cativos. Nos A presença maciça dos africanos na população de Piraí encontrava
dados da amostra de 1856, Piraí concentrava a maior escravaria do Vale do correspondente em uma estrutura de posse que, aparentemente, não estava
Paraíba, superando o quantitativo de Valença e provavelmente equiparando- diluída em uma ampla camada de senhores. Poucas famílias, interligadas
se a Vassouras. Naquele ano, sua importância aumenta se cotejarmos a popu- por laços consanguíneos e matrimoniais, concentravam enormes escra-
lação escrava ao quadro da província fluminense. Nesse caso, Piraí só ficaria varias. Os Breves casados com os Moraes, que desposavam os Monteiros
atrás de Campos, que mantinha um universo de 36.484 cativos. de Barros, que por sua vez eram parentes dos Vargens Alegre, personifica-
Havia também uma desproporção enorme entre a distribuição de livres vam esse padrão de acumulação,36 em um município que se constituía no
e escravos naqueles dois territórios. Em 1856, enquanto Campos contava
35 Viotti da Costa, ao estudar a realidade escravista em Piraí, afirmou que: “poucos municípios de
diferentes áreas cafeeiras chegaram a apresentar concentrações de escravos tão altas quanto os da
deixou de aumentar, de maneira geral, em todos os distritos cafeeiros paulistas. Em relação à popu- região fluminense”. COSTA, 1966, p. 105.
lação total, entretanto, seu índice começava a diminuir, o que sugere uma participação progressiva 36 Sobre as estratégias familiares dos Breves, ver: PESSOA, 2010. Para a ampliação dessa temática e suas
do trabalho livre, uma vez que essas regiões atravessam uma época de notável desenvolvimento estratégias de enlaces parentais entre a elite agrária oitocentista, ver: MUAZE, Mariana. As memórias
econômico”. COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5. ed. São Paulo: Ed. Unesp, 2010. p. 189. da viscondessa: família e poder no Brasil imperial. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008.

314 315
final de 1830, e se expandia nos anos seguintes em torno da ampliação e do tava um pouco mais da metade da média de crescimento para os anos de
monopólio da escravidão. 1840-1850, que girava em torno de 2,9% ao ano. Assim, Slenes redescobre
Seguindo os índices fornecidos pelo Censo de 1872 sobre as municipali- o panorama demográfico da escravidão no Vale fluminense, configurado
dades da área ocidental do Vale, Piraí ocupava a quarta posição em relação ao pela expansão tardia do escravismo na região.
tamanho da escravaria (13.475), sendo o número de cativos maior em Valença Em outras palavras, o que está por traz dos dados de Slenes era o fato
(23.496); Vassouras (20.198) e Paraíba do Sul (17.107). No âmbito provincial de que a lei que regulava o ventre livre não alterou o quadro de crescimento
deixava de ser a segunda maior área escravista do Rio de Janeiro, passando à da escravidão no Vale até o final da década de 1870. Ficara evidente que a
sétima posição.37 Assim, o município que concentrava as fazendas do comen- expansão do complexo cafeeiro e sua consolidação conferiam estabilização
dador perdera 43,53% dos seus escravos entre 1856 e 1872, a maior queda das e ampliação à escravidão, a despeito do fim do tráfico atlântico de escravos.
áreas de grande lavoura.38 Apesar disso, era a segunda maior municipalidade Nesse sentido, era emblemático o crescimento da população escrava que
em relação à concentração de escravos no Vale Ocidental e a quarta em toda mais que triplicou de tamanho na província do Rio de Janeiro, passando
a província, uma vez que 53,03% da sua população era formada por escravos. de 119 mil em 1844, para cerca 370 mil no final de 1870.41 A partir de então,
Em 1872, embora atrás de Cantagalo (57,51%), Santa Maria Madalena (57,41%) a escravidão começava a se esvaziar nas regiões que impulsionaram sua
e Valença (55,77%), Piraí seguia como uma das áreas onde a escravidão era expansão a partir da década de 1820, seguindo a tendência do que já ocor-
mais representativa nos quadros populacionais da província. ria em relação à população da Corte e de outras regiões do Império.42
Os anos de 1870 marcaram a redefinição das grandes escravarias flumi- Nessas áreas, já havia retração da demografia cativa anteriormente
nenses. Robert Slenes em interpretação seminal, no final de 1980, afirmara: àquele marco. Em meados do século, enquanto doze dos vinte e três municí-
“entre meados do século e o início da década de 1880, tanto as informações pios da província fluminense tinham em sua população mais de 50% de indi-
sobre a população quanto os dados sobre mercado de escravos apontavam víduos reduzidos à escravidão, em 1872, havia apenas cinco municipalidades
para um quadro de crescimento econômico nas principais áreas de grande nessa situação. Dito de outra forma, na província que abrigava a Corte, 52,8%
lavoura”.39 Nesse sentido, a demanda por escravos atingia seu ponto culmi- de sua população era conformada por escravos em 1850; percentual redu-
nante durante década de 1870, uma vez que o tráfico interno em direção ao zido para 49,9% em 1856 e 37,4% em 1872.43 De forma geral, o declínio da
Vale havia sido maior no período de 1873 a 1880, do que no recorte anterior, demografia da escravidão era a regra para diversas regiões do Rio de Janeiro
após 1850.40 Isso, por sua vez, explicava a elevação da população escrava dos nesse período, com exceção do Vale.44 A redução não era impulsionada pelos
municípios da grande lavoura a um ritmo de 1,6% ao ano, o que represen- municípios vinculados à economia cafeeira, salvo exceções das áreas pionei-
ras, como Piraí e S. João do Príncipe, mas, sobretudo, por regiões desvincu-
ladas da grande lavoura, abertas à incorporação de mão de obra livre, como
37 Em primeiro lugar estava Campos com 32.620 cativos, seguido de Valença (23.496); Vassouras
(20.168); Paraíba do Sul (17.107); Cantagalo (16.305) e S. Fidelis (14.815). SALLES, 2008, p. 258-259. ocorria, por exemplo, nos litorais sul e norte fluminense.45
Destaca-se, nesse quadro, o crescimento da demografia da escravidão nas áreas de ocupação mais
tardia do Vale oriental durante a década de 1860.
38 O índice que mais se aproximava de Piraí era de S. João do Príncipe, com 35,43% de queda na popu-
41 COSTA, 1966, p. 191.
lação escrava no mesmo período. Vale notar que Piraí fazia parte daquele município até 1837, área
pioneira na ocupação e expansão do café e da escravidão. Não por acaso, configuraram-se como 42 MARCONDES, Renato L. Diverso e desigual: o Brasil escravista na década de 1870. São Paulo:
localidades que primeiro sofreram o processo de esgotamento do solo e redução da demografia Funpec, 2010.
escrava já no final da década de 1860. 43 Apud SALLES, 2008, p. 257-260.
39 SLENES, 1986, p. 105. 44 Slenes calculou um percentual de fluxo positivo para as áreas de plantation em torno de 26,9%.
40 Ibid. O limite do recorte de Slenes era 1880 porque, a partir do ano seguinte, uma lei provincial Ver: SLENES, R. Demograghy and Economics of Brazilian Slave Trade, 1850-1888. Stanford: Stanford
sobretaxara os cativos recém-importados, desestimulando a entrada de escravos na província do University Press, 1975 apud SALLES, op. cit., p. 271, nota 46.
Rio de Janeiro. O mesmo processo foi analisado por José Flávio Motta para a realidade paulista. Ver: 45 Nesse sentido, por exemplo, Angra passava de 10.884 escravos em 1856, para 4.544 em 1872. O mesmo
MOTTA, José Flávio. Escravos daqui, dali e de mais além. São Paulo: Alameda editorial: FAPESP, 2012. ocorrera em Saquarema que despencava de 11.136 no primeiro período para 4.237 no ano do censo.

316 317
Retornando aos dados de Slenes, verificamos que eles apontam o cres- quadro 4: evolução da população escrava
cimento da população escrava ao considerar a demografia do Vale como no vale ocidental fluminense (1856-1885)
um todo. Caso recuperemos a divisão entre áreas tradicionais, de ocupação município 1856 1872 1877 1882 1884 1885
mais tardia, e àquelas impulsionadas na segunda metade do século, per-
Barra Mansa - 10.994 15.086 11.216 11.036 7.926
ceberemos as singularidades. Como foi evidenciado pelo próprio autor, as
Paraíba do Sul - 17.107 21.288 15.369 14.386 10.095
regiões da zona ocidental que cresceram a 4,1% ao ano, entre 1840-1850,
tenderam a estagnação no período seguinte, recortado até 1872. No entanto, Piraí 23.862 13.475 14.359 11.360 11.054 6.638
o contrário ocorria no setor oriental do Vale, a leste de Paraíba do Sul, que Resende 10.210 9.437 11.075 8.240 8.209 4.900
continuava a crescer a 2,9% ao ano no segundo período, em ritmo um S. João do Príncipe 11.853 7.653 8.182 5.675 5.926 3.064
pouco menor do que ocorrera no primeiro recorte quando a ascendente foi Valença 23.468 23.496 31.307 25.354 24.272 17.607
de 3,9% ao ano.46 Sendo assim, o quadro de amplo crescimento da demo- Vassouras - 20.168 22.781 18.630 18.891 10.491
grafia escrava parece mais evidente nas regiões de ocupação tardia, ou seja,
Total - 102.330 124.078 95.844 93.774 60.721
àquelas que a leste de Paraíba do Sul se transformariam nos polos que mais
atraíam escravos até o final da década de 1870. Apesar disso, na parte oci- Fonte: SALLES, 2008; e PRADO, 1878; QUADRO demonstrativo do movimento da população escrava da
Província do Rio de Janeiro, de 30 de Setembro de 1873 a 31 de Agosto de 1882. In: PEIXOTO, Bernardo
dental do Vale, a população cativa crescia a 0,6% em média ao ano, ao passo Avelino Gavião. Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial... Rio de Janeiro: Typ.
que na área oriental esse índice era cinco vezes maior. Isso também porque Montenegro, 1883; QUADRO estatístico dos escravos existentes na província do Rio de Janeiro, matri-
era positivo o saldo entre entradas e saída de cativos. Tomando a dimensão culados até 30 de março do corrente ano, em virtude da Lei 3.270 de 28 de setembro de 1885. In: LEÃO,
Antonio da Rocha Fernandes. Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial... Rio de Janeiro:
da província como um todo, esse índice ficava em torno de 9,3% da popu- Typ. Montenegro, 1887. Center for Research Libraries. Brazilian Government Document Digitalization
lação escrava registrada em 1872; percentual que continuava positivo para project: Provincial Presidential Reports (1830-1930).

o Vale ocidental (8,5%) e muito superior para a região oriental (29,9%). Os


Comparando as duas primeiras colunas, ratificamos o que já foi dito
dados arrolados por Slenes sobre o mercado de escravos no Rio de Janeiro, em relação à demografia escrava em Piraí e São João do Príncipe entre mea-
a partir dos Relatórios da presidência de província, reforçam seus argumen- dos da década de 1850 e o início dos anos 1870. Nessa perspectiva parece
tos construídos através dos dados censitários. acertada a afirmação de Viotti da Costa segundo a qual a população escrava
Portanto, mesmo não havendo retração da população escrava do Vale de Piraí seria superada pelo quantitativo de Valença entre o final dos anos
após o fim do tráfico, os municípios de Piraí e São João do Príncipe parecem de 1850 e o início da década seguinte, e, a partir de então, entraria em declí-
ter atingido o ápice de concentração da população cativa entre meados de nio.47 O cruzamento das colunas seguintes, que abarcam os períodos entre
1850 e a primeira metade da década de 1860. No período seguinte, ao con- 1872-1877, ratifica em grande medida o argumento de Slenes, à medida que
trário do que se dera em relação a outras zonas da grande lavoura, naque- em primeiro plano todas as escravarias haviam aumentado no período, até
las duas realidades prevaleceu à estagnação, o declínio, e um significativo mesmo o quantitativo dos municípios de Piraí e São João do Príncipe, muito
crescimento nos anos de 1870, em ritmos e dimensões particulares. Para as embora fossem os dois únicos espaços onde os números absolutos de cati-
demais municipalidades, observemos o quadro a seguir: vos eram menores do que aqueles apresentados em 1856. A despeito disso,
caso acompanhemos o desenvolvimento daquelas escravarias em termos
absolutos, podemos perceber o real crescimento provocado pelo comércio
46 O geógrafo Alberto Lamego, durante a década de 1960, já apontara o crescimento econômico
interno de escravos entre 1872 e 1877:
daquelas áreas a leste de Paraíba do Sul atrelado ao desenvolvimento de novos complexos cafeei-
ros evidentes ao longo da segunda metade do oitocentos. Estudos posteriores, como os de Robert
Slenes, João Fragoso e Ricardo Salles, ratificaram os argumentos de Lamego. 47 COSTA, 1966, p. 189.

318 319
quadro 5: relação entre população cativa quadro 6: relação entre cativos matriculados e falecidos entre 1873-77
e movimento do tráfico interno (1872-1877)
município matriculados falecidos diferença % ...*
total total
mat. mat. mat. mat. mat. % de S. João do Príncipe 551 647 -96 -1,25%
município em em
1873 1874 1875 1876 1877 crescimento
1872 1877
Piraí 1.193 1.284 -91 -0,69%
S. J. do Príncipe 7.631 231 55 76 64 125 8.182 6,51% Resende 2.242 884 1.358 15,34%
Resende 8.833 578 446 376 389 453 11.075 25,38% Barra Mansa 4.105 1.128 2.997 27,29%

Piraí 13.166 266 216 223 279 209 14.359 9,06% Paraíba do Sul 3.171 1.798 1.373 7,57%
Vassouras 2.417 1.760 657 6,74%
Barra Mansa 10.981 1.022 932 916 555 680 15.086 37,38%
Valença 5.405 2.603 2.802 10,81%
Paraíba do Sul 18.117 862 853 424 616 416 21.288 17,50%
Fonte: PRADO, 1878.
Vassouras 20.364 913 578 369 344 213 22.781 11,86% *O símbolo % se refere ao percentual de desenvolvimento da demografia escrava no período, tendo
como referencial a quantidade de cativos matriculados no ano de 1872.
Valença 25.902 1.409 1.480 941 886 689 31.307 20,86%

Fonte: PRADO, 1878.


Tendo por base o cruzamento entre o quantitativo de cativos que
entraram via tráfico interno e aqueles que faleceram nos municípios da
Como vemos, não por acaso, S. João do Príncipe e Piraí eram os porção ocidental do Vale fluminense, a média de crescimento era reduzida
municípios do Vale Ocidental, onde a população cativa menos crescera no à metade, figurando em torno de 9,40% no período. De maneira geral, o
período. Por outro lado, áreas também pioneiras no cultivo e expansão da número de falecimentos não chegava a comprometer o crescimento da
cultura cafeeira no Império, como Resende e Barra Mansa,48 apresentaram escravidão naquela região, com exceção, apenas, de São João do Príncipe e
os maiores índices de crescimento da região, em torno de 25,38% e 37,38%, Piraí. Naqueles municípios, a partir de 1874, o número de óbitos superava o
respectivamente. De maneira geral, a média de elevação da escravaria quantitativo de cativos matriculados, o que produzia uma taxa negativa de
alcançou 18,36% nos seis anos que seguiram a aprovação do Ventre Livre. desenvolvimento da população escrava de -1,25% e -0,69%, entre os anos de
Devemos notar, no entanto, que o quadro anterior foi construído a 1873 e 1877, respectivamente. A despeito da redução verificada, com exceção
partir da primeira parte do Mapa dos escravos matriculados e falecidos desde das realidades em que se inseriam as fazendas da família Breves, o cresci-
1871 até 1877, produzido pela presidência da província do Rio de Janeiro em mento da escravidão no Vale só seria interrompido após os últimos dois
agosto de 1878, considerando apenas os escravos matriculados em cada ano anos da década de 1870.
Aqui nos valemos novamente da análise de Slenes, para quem:
da amostragem. Entretanto, se cruzarmos as informações da matrícula ao
quantitativo dos escravos falecidos nos respectivos anos, a perspectiva de [...] cabe ressaltar a importância de estudar mais intensamente o período 1878-
sustentabilidade da escravidão pelo tráfico interno parecia indicar decrés- 82. Foi nesse curto prazo de tempo que as expectativas em relação ao futuro
político da escravidão mudaram de forma radical, não só no Rio, mas ao que
cimo da demografia cativa para determinadas realidades do Vale:
parece em todo o Brasil.49

Não por acaso, exatamente naquele período, a demografia escrava da


48 Sobre o pioneirismo do café na Província do Rio de Janeiro, Taunay afirmou que “[...] passou a
área mais antiga do Vale começava a decair em ritmo acelerado e irreversí-
cultura da rubiácea para Mendanha, Rezende, S. J. do Príncipe, para penetrar em São Paulo [...]
ao mesmo tempo se alastrava noutro rumo [...] para Piraí, Barra Mansa, Vassouras, Valença e vel, como vemos a seguir:
Paraíba do Sul, penetrando em Minas”. TAUNAY, A. A história do café no Brasil. Rio de Janeiro: Ed.
Departamento Nacional do Café, 1939. t. VI, v. 8, p. 206. 49 SLENES, 1986, p. 142.

320 321
quadro 7: % de queda da população escrava do vale ocidental (1877-1882) gráfico 1: movimento da população escrava
no vale ocidental entre 1873 e 1882
município % de queda

S. João do Príncipe 30,62%


Paraíba do Sul 27,80%
Barra Mansa 25,65%
Resende 25,59%
Piraí 20,88%
Valença 19,01%
Vassouras 18,22%
Fonte: PRADO, 1878.
Fonte: PRADO, 1878; PEIXOTO, 1883.

Na comparação entre os anos, a média de redução da demografia


Dessa forma, parece claro que não era o abandono do escravismo que
escrava ficou em 23,97%. São João do Príncipe foi o município que mais
motivava a queda. No entanto, há de se notar que a composição do recorte,
perdeu cativos: sua escravaria foi reduzida em 30,62%, enquanto Vassouras
entre 1873 e 1882, desconsiderando o desmembramento dos últimos quatro
mantivera o menor índice (18,22%). De forma geral, todos aqueles municí-
anos-chave desse período, generaliza os dados, inviabilizando a possibili-
pios chegaram em 1882 com menos escravos do que concentravam dez anos
dade de captarmos o impacto de entradas e saídas justamente entre os anos
antes, com exceção de Valença, onde se verificou um crescimento de 0,98%,
de 1878-1882. Mesmo diante dessa fragilidade, parece evidente que a saída
elevação certamente provocada pela entrada de cativos até 1877.50
de cativos não era suficiente para explicar o declínio, que só apareceria de
Entretanto, o que teria exatamente provocado a redução daquela
maneira nítida caso conciliássemos esses dados ao número de cativos fale-
população? Poderíamos endossar a assertiva de Slenes ao afirmar que entre
cidos naquelas respectivas realidades. Vejamos:
1878-1882 “as expectativas em relação ao futuro político da escravidão muda-
ram de forma radical”? Muito provavelmente sim; mas, por outro lado, isso gráfico 2: movimento da população escrava no vale ocidental
não significava que todos aqueles senhores abandonariam o escravismo entre 1873 e 1882
e deixariam de adquirir cativos no mercado local e intraprovincial. Até o
final de agosto de 1882, o quantitativo de cativos que saíam daqueles muni-
cípios era quase sempre inferior aos números daqueles que entravam no
mesmo período. Apenas em São João do Príncipe saíram quase duas vezes
mais escravos que entraram. Para os demais locais, prevaleceu o reverso,
em graus e dimensões também diferenciadas, ao ponto de em áreas como
Valença terem sido matriculados quase três vezes mais escravos do que o
quantitativo daqueles que deixaram o município no mesmo período.

50 Em Barra Mansa, embora não tenha havido crescimento da população escrava entre 1872 e 1882, a Fonte: PEIXOTO, 1883.
redução no período foi muito restrita, cerca de 1,06%, indicando que o desenvolvimento verificado * Para o cálculo, desconsideramos os escravos libertados no período, analisado em outro momento da
durante a década de 1870 garantiu a estabilidade da demografia escrava no período de dez anos pesquisa. A inclusão desses números elevaria ainda mais a diferença entre os índices.
após a matrícula de 1872.

322 323
Ampliando o escopo da análise, vemos que nos dados do início da Ocidental decaía 4,79% entre os anos de 1877 e 1882, o mesmo percentual
década de 1880, Resende, São João do Príncipe e Piraí, áreas pioneiras chegava a 36,22% entre os anos de 1884 e 1885. As quedas limítrofes se deram
na ocupação e expansão do café, chegaram em 1884 com menos escravos em Paraíba do Sul e Vassouras, que tiveram suas escravarias reduzidas, res-
do que mantinham em 1840. Outros municípios mantiveram crescente a pectivamente, em 29,82% e 44,46%. Assim, se ainda havia alguma perspec-
riqueza concentrada em escravos até o final dos anos de 1870. Nesse sen- tiva em relação à sobrevida longínqua da escravidão entre alguns senhores
tido, Barra Mansa, Paraíba do Sul, Valença e Vassouras, em 1884, detinham do Vale no final da década de 1870, ela certamente foi revista e reduzida
muito mais cativos do que já possuíam no momento de montagem do com- significativamente a partir de 1883.
plexo cafeeiro em 1840.51 Diante desse quadro, como poderíamos resumir o histórico da
A passagem entre os anos de 1884 e 1885 parece ainda mais esclarece- demografia escrava nos municípios que abrigavam as fazendas da família
dora sobre o esvaziamento da demografia escrava, e, consequentemente, a Breves? Vejamos no tempo o acompanhamento dessas realidades a partir
projeção de sobrevida da escravidão. A redução verificada nos meses que do gráfico a seguir:
separam os anos de 1884 e 1885 configurou o mais claro indicativo de esgo-
gráfico 3: acompanhamento longitudinal
tamento do escravismo naquela região, sobretudo, para os últimos grandes
da população escrava de piraí e s. j. do príncipe (1840-1887)
senhores do Império.
quadro 8: índice de redução da população escrava do vale ocidental
(1877-1882 e 1884-1885)

município índice de queda 1877-1882 índice de queda 1884-1885


S. João do Príncipe 30,62% 37,66%
Paraíba do Sul 27,80% 29,82%
Barra Mansa 25,65% 33,88%
Resende 25,59% 40,30%
Piraí 20,88% 39,94%
Fontes: Relatórios de presidente de província e censos populacionais. Dados retirados dos trabalhos de
Valença 19,01% 27,45%
SALLES, 2008, p. 258-259; COSTA, 1966, p. 191. Para o ano de 1885, utilizamos LEÃO, 1887.
Vassouras 18,22% 44,46%
Fonte: PRADO, 1878; LEÃO, 1887. Como vemos, o esvaziamento demográfico da escravidão em Piraí e
S. João do Príncipe parece evidente desde o final dos anos de 1850, quando
Se já era possível afirmarmos que no final da década de 1870 a maior
somente a partir dos últimos dois anos da década de 1870 esse processo se
parte dos grandes senhores mudaram suas expectativas em relação ao fim
generalizou para outras regiões do Vale. O crescimento verificado, entre
da escravidão, sobretudo, por conta do fechamento do mercado de escravos
1872 e 1877, não foi suficiente para recuperar a grande concentração de cati-
em escala interprovincial, o que poderíamos dizer dos meses que segui-
vos estampada naquelas áreas entre meados dos anos de 1850 e a década de
ram ao ano de 1884? Como se pode notar, os percentuais de queda na ter-
1860. Não à toa, em 1884, Piraí já se encontrava na oitava posição em relação
ceira coluna referem-se apenas aos registros compreendidos entre os meses
à concentração de cativos na província do Rio de Janeiro, perdendo a dian-
de 1884-1885, e ainda são muito superiores à redução verificada nos cinco
teira que assumira nos anos que precederam o fim do comércio atlântico
anos anteriores. Enquanto, em média, a população da macro região do Vale
de escravos.52 Em 1885, sua população praticamente se igualara ao registrado
51 Trabalhando apenas com os marcos de 1840 e 1884, vemos que no último recorte a quantidade de
escravos era maior do que os anos de 1840 em Vassouras (31,80%); Barra Mansa (61,81%) e Paraíba 52 Em 1884, os oito municípios que mais concentravam escravos em números absolutos na província
do Sul (69,12%). do Rio de Janeiro, eram: Campos (27.877); Valença (24.272); Cantagalo (19.140); Vassouras (18.891);

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em S. João do Príncipe, que, embora apresentasse sempre menos escravos Nesse contexto, a reposta senhorial buscou conjugar a ampliação das mar-
do que Piraí, seguira o mesmo perfil de redução da população cativa no gens de autonomia, alargadas desde a Lei no 2.040 de 28 de setembro de
tempo. Nos quatro anos que antecederam a abolição, a queda foi ainda mais 1871, à ampliação da exploração da força de trabalho escrava, sobretudo no
significativa, e a população escrava de Piraí sofreu uma retração em torno universo produtivo de cafezais velhos, que, como sabemos, era a realidade
de 45,37% em relação ao quantitativo registrado em 1884. nas fazendas de José Breves. O viajante C. F. Laerne, em texto do início da
Em síntese, os estudos clássicos realizados por Stein, Dean e Viotti década de 1880, afirmou que os escravos do Vale, na década anterior, ao
da Costa, entre as décadas de 1940 e 1960, enfatizaram que a redução da invés de lavrarem 4.000 pés de café – como era de costume até então – ou
demografia escrava, a partir do final da década de 1860, estava diretamente no máximo 5.000 mil pés – o que já extrapolava o racional – chegavam a
relacionada à decadência produtiva do Vale cafeeiro fluminense, sobre- cultivar 7.000 mil árvores!54 A maximização do trabalho cativo, nesse sen-
tudo, o seu núcleo ocidental. No final da década de 1980, Slenes, crítico tido, aparecia como consequência direta da redução do número de trabalha-
às pesquisas anteriores, procurou demonstrar exatamente o contrário, dores nos cafezais.55 Na prática, outros instrumentos foram utilizados para
que não havia decadência no Vale; no reverso, se via grandeza. A assertiva garantir ou ampliar o ritmo da produção, como, por exemplo, o sistema de
seguia alicerçada nos dados sobre o mercado de escravos, que como vimos tarefas.56 Nas áreas também pioneiras na decadência da economia cafeeira,
continuaram aquecidos para a região até os últimos dois anos da década de como era o caso de São João do Príncipe e Piraí, a média de pés de café cul-
1870. No entanto, a rigor, a interpretação da historiografia tradicional tal- tivado por cativo era ampliada em uma razão inversamente proporcional à
vez não esteja completamente equivocada, e o erro maior resida no vínculo redução da escravaria.57 Esses dados evidenciam que o esvaziamento popu-
mecanicamente tecido entre o gradativo esgotamento produtivo, visível lacional das fazendas foi acompanhado do aumento da exploração dos últi-
nas áreas pioneiras da expansão da economia cafeeira no final da década mos escravos, o que potencialmente pode ter provocado uma precarização
de 1860, e uma falsa retração do mercado de escravos, que levaria ao enco- das condições de trabalho nas áreas tradicionais de grande lavoura flumi-
lhimento da demografia cativa do Vale ocidental durante os anos de 1870. É nense na década da abolição. A análise dessa hipótese, no entanto, precisa
verdade, porém, que as realidades de Piraí e São João do Príncipe mostram ser cotejada a diversos outros fatores que extrapolam os limites desse artigo,
um declínio da demografia escrava em meio ao crescimento da população e que, por isso, deixamos para outra ocasião.
cativa do Vale nos anos de 1860. Possivelmente, muitos dos seus escravos
seguiram para áreas economicamente mais ativas naqueles anos, sobre- (Pesquisa financiada pelo CNPq através de bolsa de doutoramento.)
tudo, em direção às regiões em desenvolvimento a leste de Paraíba do Sul.53
Entretanto, na amplitude dos municípios que conformavam o Vale, a rela-
54 LAERNE, C. F. Van Delden. Brazil and Java: Report on coffee-culture in America, Asia and Africa.
ção entre cafezais velhos, esgotamento da fronteira agrícola e redução drástica London: W. H. Allen, 1885. p. 291-292.
das matas virgens não se converteria mecanicamente em abandono da escravi- 55 Slenes utiliza as ideias de Laerne para comprovar que “a agricultura de rapina teria se afirmado nas
dão, ou esvaziamento da concentração de capitais em cativos. Portanto, gran- décadas de 1860 e 1870 – não como mera continuação da rotina do passado, mas como uma adap-
tação racional da cafeicultura às novas condições do período” SLENES, 1986, p. 140.
deza e decadência eram variáveis fluídas, complexas, que necessariamente se
56 O sistema de tarefas era estimulado por alguns senhores como mecanismo de extração mais efi-
alterariam no tempo e no espaço de acordo com o histórico de ocupação e ciente de exploração da mão de obra cativa. Para tanto, ver a análise de Rafael Marquese sobre os
desenvolvimento do município ou macro região a qual nos referimos. manuais agrícolas de época. MARQUESE, 2004, p. 259-298. Segundo Marquese & Tomich: “A cafei-
cultura brasileira combinou assim duas modalidade básicas de organização do trabalho escravo nas
Assim, somente no final a década de 1870, a redução do quantitativo demais regiões de plantation do Novo Mundo as turmas sob comando unificado (gang system) e o
de escravos passou a ser regra para todos os municípios do Vale do café. sistema de tarefas individualizado (task system).Tal arranjo, ademais, permitiu aos senhores a impo-
sição de assombrosa taxa de trabalho a seus cativos. MARQUESE; TOMICH, 2009, p. 371.
Paraíba do Sul (14.386); Santo Antônio de Sá (12.999); São Fidelis (11.837) e Piraí (11.054). 57 Para Viotti da Costa, “no Vale do Paraíba, onde a produção estava em decadência, a média era de
53 Infelizmente ainda não há estudos demográficos e socioeconômicos para Piraí e S. J. do Príncipe, três a quatro mil arbusto, por escravo. À medida que decaía a produtividade, ele era obrigado a
como temos para Vassouras; Paraíba do Sul e Bananal no período de montagem e expansão do manter um número cada vez maior de pés, chegando a ocupar-se, nas zonas mais antigas, de quatro,
complexo cafeeiro. cinco e até seis mil pés”. COSTA, 1966, p. 238.

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A formação da cafeicultura em Bananal, 1790-18301 da estrada do Caminho Novo da Piedade, nos anos 1720, marca o início do
povoamento da freguesia da Piedade, que atualmente abrange os municí-
Breno Aparecido Servidone Moreno pios situados na porção leste do Vale do Paraíba paulista, dentre os quais,
Lorena, Areias, Bananal e Arapeí.6
Até os anos 1780 e 1790, quando se concluiu o Caminho Novo da
Piedade, predominavam na região de Bananal as pequenas propriedades
policultoras, dedicadas à produção de milho, arroz, feijão e farinha de man-
dioca. Além disso, era muito comum a criação de gado suíno e bovino. A
produção de mantimentos era destinada, especialmente, à subsistência dos
Em 26 de abril de 1822, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, em agricultores, porém já havia um comércio precário de excedentes, voltado,
retorno ao Rio de Janeiro pelo Caminho Novo da Piedade,2 anotou em seu sobretudo, à venda de milho. O excedente dessa produção era reservado,
diário: em grande medida, às tropas de mulas que começaram a circular por aquela
estrada.7 Construído com a finalidade de facilitar os contatos entre a sede do
A três quartos de légua do rancho onde passamos a última noite alcançamos a
Aldeia do Bananal, sede de paróquia. Esta vila fica situada num vale bem largo vice-reino e as minas de Goiás e de Mato Grosso, o novo caminho provocou
entre morros cobertos de mata e compõe-se de uma única rua. Pareceu-me o aumento no trânsito das tropas de mulas no entorno do povoado, fundado
de fundação recente, mas é provável que adquira logo importância, pois se com o nome de Senhor Bom Jesus do Livramento do Bananal, em 1783.
acha no meio de uma região onde se cultiva muito café e cujos habitantes, por A agricultura comercial de gêneros alimentícios, incipiente no início
conseguinte, possuem rendas consideráveis.3 do século XIX, adquiriu papel fundamental no decurso das décadas seguin-
Com efeito, a freguesia de Bananal, São Paulo, localizada no Médio tes, durante a montagem da cafeicultura escravista no município. Ela per-
Vale do Paraíba, e que a essa altura pertencia à Vila de Areias, já era então mitiu que os agricultores se deslocassem paulatinamente para a atividade
uma das maiores produtoras de café da região.4 Nesse período, a cultura cafeeira, com um nível de risco relativamente baixo. Desde fins do século
cafeeira encontrava-se em pleno processo de expansão econômica, moti- XVIII, houve uma simbiose entre as culturas do milho e do café no Vale
vada, principalmente, pelo aumento acentuado dos preços do artigo no do Paraíba. Os pés de milho eram cultivados entre as fileiras dos cafezais
mercado mundial nos anos 1810.5 A montagem da cafeicultura na locali- recém-plantados, cujo objetivo era o de sombrear os pés de café em cres-
dade, entretanto, remonta ao final do setecentos. O início da construção cimento e manter a escravaria trabalhando no amanho dos mantimentos.8
Essa simbiose permitiu que muitos agricultores investissem na cafeicultura
1 Este artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla, que investigou a demografia e o trabalho escravo, e se enriquecessem por meio dela.
a estrutura fundiária e a capacidade produtiva das propriedades rurais cafeeiras de Bananal.
MORENO, Breno S. Demografia e trabalho escravo nas propriedades rurais cafeeiras de Bananal,
O ponto de partida para empreender a análise da montagem da cafei-
1830-1860. Dissertação (Mestrado em História Social) – FFLCH-USP, São Paulo, 2013. Disponível cultura escravista em Bananal sobreveio a partir da leitura de O arcaísmo
em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-13112013-105241/pt-br.php>. como projeto de João Luis Ribeiro Fragoso e Manolo Florentino.9 Na obra,
2 O Caminho Novo da Piedade abrange os municípios paulistas de Lorena, Queluz, Cachoeira Paulista,
Cruzeiro, Silveiras, Areias, São José do Barreiro, Arapeí, Bananal e, no Rio de Janeiro, São João Marcos. 6 RODRIGUES, Píndaro de Carvalho. O Caminho Novo: povoadores do Bananal. São Paulo: Governo
3 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo (1822). do Estado, 1980. p. 23-27. (Coleção Paulística, v. XVIII); MOTTA, 1999, p. 34-35; TOLEDO, Francisco
São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Itatiaia, 1974. p. 104. Sodero. Estrada real: Caminho Novo da Piedade. Campinas: Alínea, 2009. p. 23-24.
4 LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert S. Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo, de 7 HERRMANN, Lucila. Evolução da estrutura social de Guaratinguetá num período de trezentos anos.
1750 a 1850. São Paulo: Edusp, 2005. p. 81-85; MOTTA, José F. Corpos escravos, vontades livres: posse São Paulo: IPE-USP, 1986. p. 13-52; MOTTA, op. cit., p. 35.
de cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: Annablume: Fapesp, 1999. 8 LUNA; KLEIN, 2005, p. 81-106; MARQUESE; TOMICH, 2009, p. 356.
5 MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial 9 FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade
do café no século XIX. In: SALLES, R.; GRINBERG, K. (Org.). O Brasil imperial: 1831-1871. Rio de agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1840. Ed. rev.
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. v. II, p. 355. e ampl. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 1. ed.1993.

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os autores analisaram as formas de acumulação endógena da economia e exclusivamente em razão das ações locais dos agentes coevos e não como
escravista colonial na passagem do século XVIII para o XIX, com enfoque resposta ao aumento da demanda pelo artigo no mercado internacional.
na praça mercantil do Rio de Janeiro. O corte cronológico em questão situa- O fato é que a formação da cafeicultura escravista brasileira deve necessa-
se em um ciclo de Kondratieff, cuja fase de crescimento (A) compreende o riamente ser compreendida à luz de um quadro mundial, tendo em vista
período de 1792 a 1815, e a fase de depressão (B), de 1815 a 1850. Segundo os sua relação com os espaços locais. Só assim é possível entender a lógica
historiadores, a montagem do complexo cafeeiro no Vale do Paraíba flumi- adjacente às estratégias empresariais dos homens livres que optaram pelo
nense, nas décadas de 1820 e 1830, teria ocorrido justamente na fase B, ou investimento na atividade cafeeira no século XIX.
seja, num período de baixa cotação dos preços do café (redução de 7,5% ao Nesse sentido, o presente artigo pretende investigar as estratégias que
ano entre 1821 e 1833) no mercado mundial.10 teriam guiado os agricultores bananalenses durante a formação dos primei-
Para justificar os motivos pelos quais se optou pela montagem da cafei- ros cafezais; averiguar o impacto do tráfico atlântico de africanos na com-
cultura no Vale do Paraíba, a despeito da conjuntura desfavorável, os auto- posição demográfica de suas escravarias e dimensionar o capital amealhado
res afirmam que a reprodução da economia colonial se alicerçava no tripé da pelos agricultores a partir da atividade cafeeira. Por fim, argumenta-se que
oferta elástica de mão de obra, alimentos e terras, configurando um “mosaico os indivíduos que investiram na cafeicultura nas décadas iniciais do século
de formas não capitalistas de produção”. Os escravos seriam mercadorias XIX conduziram suas estratégias com base no sistema de preços e na cres-
“socialmente baratas”, na medida em que, entre 1790-1830, “nunca menos de cente demanda pelo produto no mercado internacional.
2/3 dos mais pobres inventariados do agro e da urbe carioca detinham escra- Para perquirir tais objetivos, selecionamos alguns casos particulares
vos”. Por sua vez, a produção de alimentos, que combinava o trabalho escravo que elucidam de forma clara o modo pelo qual os agricultores de Bananal
com diversos regimes de produção, permitia uma resposta imediata e a baixos investiram na atividade cafeeira. Em primeiro lugar, identificamos os
custos às variações na demanda por mantimentos. Por último, a oferta elástica maiores cafeicultores escravistas inventariados nos anos 1830, no período
de terras dava-se em virtude da própria extensão territorial da colônia, além em que a cafeicultura se encontrava em plena fase de expansão: Joaquim
do fato de que seu usufruto era mais permissivo que a própria posse.11 Manoel de Freitas, o sargento-mor José Ramos Nogueira, o tenente-coronel
A existência desse tripé teria permitido um acúmulo sem precedentes de Luiz Gomes Nogueira, José de Aguiar de Toledo e o capitão Joaquim José
capitais pelos comerciantes de grosso trato estabelecidos na praça do Rio de Pereira.13 Juntos, esses senhores dominavam a demografia escrava e a pai-
Janeiro, que monopolizavam tanto o tráfico transatlântico de cativos quanto sagem agrária de Bananal, pois eram proprietários de 732 cativos (60,3% do
as rotas de abastecimento do mercado interno. Em virtude da natureza total), 622.500 pés de café (63,7% do total) e 1.228 alqueires de terras (48,1%
“arcaica” da formação colonial brasileira, esses grandes negociantes, depois do total). Os quatro primeiros indivíduos darão origem, a partir dessa
de acumularem capitais, abandonavam as atividades mercantis e convertiam- época, aos ramos familiares de maior prestígio econômico, político e social
se em rentistas urbanos e senhores de terras e escravos, a despeito da taxa de da localidade (os Freitas, os Almeida Nogueira e os Almeida Vallim), donos
lucro inferior à antiga ocupação. A reprodução dessa estrutura econômica da maior parte dos cativos, terras e cafezais de Bananal.
girava em torno da manutenção de uma sociedade altamente hierarquizada, O passo seguinte consistiu em acompanhar as trajetórias desses sujei-
cuja base era composta pelos agentes ligados à terra (lavradores) e o topo era tos mediante as informações disponíveis nas listas nominativas de 1817, 1822
composto pelos indivíduos voltados às atividades mercantis.12 e 1829,14 justamente no período de formação de suas fortunas, culminando
O que se depreende mediante a leitura da obra de Fragoso e Florentino 13 Vale notar que nossa amostra inicial havia sido composta por quinze cafeicultores escravistas per-
é que a cafeicultura escravista no Vale do Paraíba teria sido montada única tencentes a distintas faixas de tamanho de posse. No entanto, só foi possível acompanhar a traje-
tória, por meio das informações disponíveis nas listas nominativas de 1817, 1822 e 1829, de apenas
quatro escravistas. Os demais proprietários de escravos não foram encontrados em nenhuma das
10 Ibid., p. 92-93. listas ou, em alguns casos, figuraram em somente uma ou duas das três listas.
11 Ibid., p. 117-165. 14 As informações contidas nas listas nem sempre podem ser aceitas sem um mínimo de precaução,
12 Ibid., p. 189-237. devido a possíveis problemas de qualidade das fontes. Sobre o assunto, ver: FERNANDEZ, Ramon

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na análise de seus respectivos inventários ou de suas esposas, abertos nos com Felícia Maria de Santana, neta materna de Domingos Rodrigues da
anos 1830.15 Um dos escravistas selecionados, o capitão Joaquim José Pereira, Silva, primeiro proprietário das terras da Perapetinga.19 Felícia tinha, à
teve de ser excluído da amostra, pois o mesmo migrara para Bananal época, cerca de 30 anos de idade e também era oriunda de São João Marcos.
somente nessa década.16 Das listas nominativas, levantamos informações O casal residia na Perapetinga desde, pelo menos, o final da década de 1800,
acerca da naturalidade, estado conjugal, idade, produção agrícola, dimen- já que seus filhos – Luiz, Maria e Joaquim, com respectivamente sete, cinco
são das escravarias e sua composição demográfica (sexo, idade e origem). e dois anos –, eram naturais de Bananal.
Dos inventários, analisamos igualmente o perfil demográfico dos cativos e José Ramos Nogueira, por seu turno, nasceu na freguesia de Nossa
a composição da riqueza acumulada pelos cafeicultores em suas vidas. A Senhora da Conceição do Campo Alegre da Paraíba Nova (atual Resende),
investigação da trajetória desses quatro escravistas pode ajudar a entender Rio de Janeiro, por volta de 1787. Era filho de Roque Bicudo Leme e
a dinâmica da montagem da cafeicultura escravista em Bananal e, de modo Florência Nogueira Leme. Seus pais foram um dos primeiros povoadores
geral, no Vale do Paraíba, nas primeiras décadas do XIX. dessa região.20 Em 1817, José Ramos, então casado com Domiciana Maria da
Conceição, de 19 anos e natural de Bananal, era pai de três crianças: Brás
I (3 anos), Maria (2 anos) e José (seis meses), todos nascidos em Bananal.
Domiciana era filha de Luiz José de Almeida e Ana Maria Nogueira, e neta
Joaquim Manoel de Freitas nasceu em São João Marcos, Rio de Janeiro, por paterna do alferes Pedro Rodrigues de Almeida Leal, primeiro proprietário
volta de 1785.17 Era filho de Francisco Manoel de Freitas e Izabel Maria de da sesmaria da Água Comprida.21
Jesus. Seu pai foi um dos primeiros membros da família Freitas a estabele- Luiz Gomes Nogueira nasceu em Baependi, Minas Gerais, por volta
cer moradia na sesmaria da Perapetinga.18 Em 1817, Joaquim estava casado de 1790. Com seus pais, o capitão Hilário Gomes Nogueira e Maria Josefa
da Conceição, mudou-se para Bananal na mesma década.22 Pouco antes de
V. Garcia. A consistência das Listas Nominativas da capitania de São Paulo: um estudo de caso.
Estudos Econômicos, São Paulo: IPE-USP, v. 19, n. 3, p. 477-496, 1989; NOZOE, Nelson H.; COSTA, migrar para essa localidade, Hilário lavrou escritura de compra de sesmaria
Iraci del Nero da. Achegas para a qualificação das Listas Nominativas. Estudos Econômicos, São em Bananal, na cidade de Vila Rica, Minas Gerais, em 1785, quando ainda
Paulo: IPE-USP, v. 21, n. 2, p. 271-284, maio-ago. 1991; NOZOE, Nelson H.; COSTA, Iraci del Nero da.
Sobre a questão das idades em alguns documentos dos séculos XVIII e XIX. Revista do Instituto de era capitão de ordenanças em Baependi. Era uma gigantesca propriedade
Estudos Brasileiros, São Paulo: IEB-USP, n. 34, p. 175-182, 1992; BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. rural com cerca de 6 mil alqueires mineiros de área.23 Em 1817, seu filho,
Arrolando os habitantes no passado: as listas nominativas sob um olhar crítico. Locus: Revista de
História, Juiz de Fora, v. 14, p. 114-120, 2008.
plantado o cafezal, pode-se afirmar que Izabel e Francisco estabeleceram-se na Perapetinga no início
15 Analisaram-se os inventários de Luiz Gomes Nogueira e de José de Aguiar de Toledo, e os processos
do século XIX. No processo há a transcrição do testamento de Izabel, em que foi possível encontrar
das esposas de Joaquim Manoel de Freitas e José Ramos Nogueira, pois eles faleceram somente nos
informações a respeito de sua naturalidade (Ilha das Flores, Bispado de Angra dos Reis de Portugal).
anos 1850.
O inventário de sua irmã, Mariana de Jesus, também apresenta a transcrição de testamento. Neste, há a
16 Ao analisar o inventário do capitão Joaquim José Pereira, proprietário da fazenda do Capitão-Mor, indicação de que seus pais, Domingos Valadão de Freitas e Maria de Freitas, faleceram na Vila de São
constatou-se que seus 72 mil cafezais tinham sido plantados por volta de 1836, três anos antes da João Marcos, indicando que o casal teria imigrado de Portugal para essa região. Cf. INVENTÁRIO de
abertura do processo. Esse fato, aliado à ausência de seu nome nas listas nominativas de 1817, 1822 e Mariana de Jesus. Cruzeiro: MMN, 12 maio 1834. Cartório do 1º Ofício, caixa 16, n. 255.
1829, apontou que o escravista se estabeleceu em Bananal apenas nos anos 1830. Cf. INVENTÁRIO do
19 RODRIGUES, 1980, p. 47. AZEVEDO, Juan. Café e escravidão no Caminho Novo da Piedade: estrutura
capitão Joaquim José Pereira. Cruzeiro: MMN, 29 jan. 1839. Cartório do 1º Ofício, caixa 28, n. 478. A
fundiária em Bananal, 1840-1850. 2007. Relatório Final de Iniciação Científica, Departamento de
lista de 1836 indica que Pereira, natural de São João Marcos, de 59 anos de idade, tinha “fazenda de
História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
culturas” e produziu “mil alqueires de mantimentos”. Não há menção ao cultivo de café. Cf. ARQUIVO
2007. p. 22-23.
DO ESTADO DE SÃO PAULO (AESP). Bananal, 1836.
20 BOPP, Itamar. Primeiros povoadores de Resende: Roque Bicudo Leme. Revista Genealógica Latina,
17 Cf. AESP. 4a Companhia de Ordenanças. Areias, 1817. Doravante, sempre que não houver a indica-
São Paulo: Instituto Genealógico Brasileiro, n. 8, p. 33-50, 1956.
ção de fonte, as informações estarão assentadas nas listas nominativas.
21 RODRIGUES, op. cit., p. 40-41.
18 Cf. INVENTÁRIO de Izabel Maria de Jesus. Cruzeiro: MMN, 8 maio 1832. Cartório do 1º Ofício, caixa
12, n. 198. Izabel era viúva de seu marido quando falecera (24/02/1831). Seu patrimônio atingiu a soma 22 Ibid., p. 32-33.
de 5:024$460, cujos bens eram compostos basicamente por escravos (oito no total), cafezais (3.200 23 Cf. SCHNOOR, Eduardo Cavalcanti. Na penumbra: o entrelace de família e negócios (Vale do
pés) e terras (20 alqueires), equivalente a 73,8% dos bens. Dentre os cafezais, 1.500 pés foram descritos Paraíba, 1770-1840). 2005. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
como “velhos”, que deveriam ter entre 20 e 25 anos de idade; assim, supondo que o próprio casal tenha Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. p. 19.

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Luiz Gomes Nogueira, casado com Justina Fortunata, de 16 anos e natural Gomes, dono de uma mão de obra numerosa, composta por 53 escravos,27
de Ilha Grande, Rio de Janeiro, ainda não tinha herdeiros. colheu 300 alqueires de milho, 100 de feijão e 150 de arroz.28 Segundo a
Por fim, José de Aguiar de Toledo nasceu em Angra do Heroísmo, na lista nominativa, todos os mantimentos foram consumidos. No entanto, em
Ilha Terceira dos Açores,24 por volta de 1770. Segundo Píndaro Rodrigues, virtude do volume de sua safra agrícola, sobretudo a de milho (cerca de 9
Toledo chegou a Bananal no final do século XVIII, após ter minerado ouro toneladas), pode-se supor que, pelo menos, parte dela fora comercializada
em São João del Rey e Baependi, Minas Gerais.25 Em 1817, José de Aguiar, no mercado interno. Além desses artigos, produziu 24 arrobas de toucinho
casado com Maria Ribeiro, 37 anos, e natural de Minas, tinha seis filhos resi- e exportou açúcar, aguardente e café para o mercado mundial. Ele produ-
dindo em seu domicílio: Maria, Antônio, João, Manoel, Águeda e José com ziu 800 arrobas de açúcar (20% da produção da freguesia) e 240 barris de
idades de 20, 17, 12, 11, 10 e 3 anos. Todos eles nasceram na freguesia, indi- aguardente (20% do total). E colheu uma das maiores safras de café da capi-
cando que o casal, de fato, se estabeleceu em Bananal no final do setecentos. tania de São Paulo, 300 arrobas ao todo (7,4% do montante colhido).29
Os quatro escravistas aqui descritos eram todos agricultores no ano de Joaquim Manoel de Freitas e José Ramos Nogueira não eram cafeicul-
1817. Na ocasião, combinavam o cultivo de café com a produção de gêneros tores, segundo a lista de 1817. Ambos dedicavam-se apenas ao cultivo de
alimentícios (milho, arroz e feijão) e, além disso, eram criadores de gado mantimentos e à criação de porcos. O primeiro escravista, contando com
suíno e, muito provavelmente, bovino. Esses lavradores podem ser enqua- quatro escravos, colheu 400 alqueires de milho e 30 de feijão, que foram
drados em dois grandes grupos, que ilustram, grosso modo, as distinções gastos “em casa”, e produziu 30 arrobas de toucinho, das quais 27 foram ven-
existentes entre os indivíduos que investiram na cafeicultura no Vale do didas no Rio de Janeiro. É plausível supor que Freitas teria comercializado,
Paraíba, no começo do século XIX. O primeiro grupo, composto apenas por pelo menos, parte de sua produção agrícola, principalmente a de milho, no
Luiz Gomes Nogueira, representa os indivíduos que acumularam previa- mercado interno, devido ao montante colhido. Pode-se conjecturar, ade-
mente capital em outras atividades econômicas e, devido às condições favo- mais, que os primeiros cafezais teriam sido plantados em sua propriedade
ráveis do mercado mundial, investiram seus capitais na produção de café. O
por volta desse ano, pois os agricultores do Vale do Paraíba adotaram a prá-
segundo, composto por Joaquim Manoel de Freitas, José Ramos Nogueira
tica de cultivar milho entre os cafeeiros recém-plantados. Por isso, o agri-
e José de Aguiar de Toledo, corresponde aos agricultores que, desprovidos
cultor teria obtido uma safra tão abundante de milho, cerca de 30% maior
de capital, deslocaram-se paulatinamente da produção de mantimentos,
que a de Luiz Gomes Nogueira, que possuía muito mais escravos e, possi-
voltada para o mercado interno, para a atividade cafeeira, sem deixar de
velmente, mais animais em seu domicílio.
cultivar alimentos para o auto consumo.
José Ramos Nogueira era, aparentemente, um homem mais abastado
Luiz Gomes Nogueira era um homem abastado e, por esse motivo, dis-
que Joaquim Manoel de Freitas. Dono de 17 cativos,30 colheu 190 alqueires
tinguia-se da maioria dos agricultores de Bananal. Seu pai, o capitão Hilário
Gomes Nogueira, fez fortuna nos dois primeiros decênios do oitocentos
XIX. Cf. MARCONDES, Renato. Formação da rede regional de abastecimento do Rio de Janeiro: a
através da atividade açucareira, da venda de gêneros e gado no mercado presença de negociantes de gado (1801-1811). Topoi, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 57-59, jan.-jun. 2001.
interno.26 Os cabedais acumulados permitiram que seu filho se tornasse 27 A escravaria de Luiz Gomes Nogueira era bem mais elevada que a dos demais senhores de engenho,
um destacado senhor de engenho e cafeicultor na localidade. Em 1817, Luiz pois a posse média desse grupo igualou-se a 32 cativos. Cf. MOTTA, op. cit., p. 150.
28 Um alqueire de milho/feijão corresponde a 30,225 kg; um alqueire de arroz é igual a 24,180 kg; e
24 RODRIGUES, 1980, p. 48. uma arroba equivale a 14,689 kg. Cf. LUNA, Francisco; KLEIN, Herbert. Nota a respeito de medi-
25 Ibid., p. 173. Nota-se que o autor não fornece as fontes em que se fundamentam suas afirmações. das de grãos utilizadas no período colonial e as dificuldades para a conversão ao sistema métrico.
Boletim de História Demográfica, São Paulo: FEA-USP, ano VIII, n. 21, p. 1-5, mar. 2001.
26 Em 1801, o capitão Hilário Gomes Nogueira já era um reputado senhor de engenho em Bananal:
produziu 600 arrobas de açúcar branco, 100 de açúcar redondo, 50 de açúcar mascavo e 600 canadas 29 Em 1817, nenhuma fazenda de café produziu mais que 307 arrobas. Cf. LUNA, Francisco; KLEIN,
de aguardente. Além disso, produziu grande quantidade de gêneros alimentícios: 150 arrobas de tou- Herbert. Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo:
cinho, mil alqueires de milho, 400 de feijão, 50 de arroz e 200 de farinha. E era dono de 84 escravos Edusp, 2005. p. 101.
(cerca de 20% da mão de obra cativa de Bananal). Cf. MOTTA, 1999, p. 253. O capitão também foi um 30 O número de escravos de José Ramos Nogueira era superior à posse média dos cafeicultores de
dos principais negociantes de cabeças de gado no Caminho Novo da Piedade, no início do século Bananal, que igualou-se a 10,4 escravos. Cf. MOTTA, 1999, p. 150.

334 335
de milho, 50 de feijão e 40 de arroz; e produziu também 10 arrobas de tou- pés de café em seus domicílios apenas nos anos 1810, período em que
cinho.31 Segundo a lista nominativa de 1817, todos os produtos foram consu- aumentaram as cotações nos preços do artigo no mercado mundial. Assim,
midos. Porém, deve-se desconfiar da informação presente na documentação eles se aproveitaram da conjuntura favorável à produção de café para inves-
haja vista a grande quantidade de gêneros colhidos, sobretudo a de milho. tir seus (poucos) capitais nessa atividade. A comercialização da produção
Nesse sentido, pode-se supor igualmente que o lavrador teria comerciali- agrícola no mercado interno permitiu que os lavradores se deslocassem de
zado, pelo menos, uma fração de sua colheita no mercado interno. forma relativamente segura para a atividade cafeeira, enquanto os cafeeiros
O inventário de Domiciana Maria da Conceição, esposa de José Ramos não entravam em plena produtividade. Os lucros granjeados com a venda
Nogueira, autuado em 1825, traz duas informações esclarecedoras. A primeira de café eram reinvestidos no plantio de mais cafezais e na compra de mais
é a de que na fazenda da Boa Vista havia “quatro lanços de rancho”, sendo um escravos. Daí em diante, os agricultores renunciaram à produção de manti-
deles utilizado como “venda” e os demais, certamente, para a acolhida de tro- mentos para o mercado interno e passaram a se dedicar à cafeicultura sem
peiros. Já a segunda diz respeito à existência de “dois mil pés de café velhos” abdicar do cultivo de alimentos para o auto consumo.
plantados na mesma propriedade.32 Como tais cafezais teriam cerca de 20 a
25 anos de idade, e supondo que o agricultor os tenha plantado, os primei- II
ros grãos foram colhidos entre 1805 e 1810. Desse modo, o que os informes
sugerem, primeiramente, é que José Ramos comercializava em sua “venda” A montagem e o deslanche da cafeicultura no Vale do Paraíba remonta a
a produção de alimentos excedente; em segundo lugar, que ele era, de fato, um processo mais amplo de fortalecimento da instituição escravista nas
produtor de café, em 1817. É provável que a ausência à menção da colheita de Américas. As mudanças advindas com o surgimento da economia-mundo
café na lista de 1817 diga respeito ao ciclo bienal de produção do cafeeiro.33 industrial do século XIX coagiram os escravistas a aumentar, cada vez mais,
No caso de José de Aguiar de Toledo, a lista nominativa de 1817 indica a produtividade de sua mão de obra para evitar sua exclusão do mercado
explicitamente a produção de café em sua propriedade rural. Valendo-se da mundial. Nesse novo contexto, as antigas regiões produtoras do Caribe
mão de obra de 17 escravos tal qual a de José Ramos Nogueira, o cafeicultor inglês e francês entraram em colapso, devido ao crescente movimento aboli-
produziu 99 arrobas de café (2,4% da safra total de Bananal), em 1817. Além cionista metropolitano, às ações de resistência dos cativos e ao esgotamento
dessa commodity, colheu 60 alqueires de milho e 19 de feijão, e produziu de suas capacidades produtivas. Ao mesmo tempo, surgiram novas oportu-
20 arrobas de toucinho, todos consumidos “em casa”. O volume colhido nidades para as regiões que até o momento se encontravam na periferia das
de mantimentos indica, provavelmente, que os excedentes também foram áreas de exploração escravista: Estados Unidos, Cuba e Brasil. Nesses locais
vendidos no mercado interno, assim como nos demais casos investigados. emergiram propriedades rurais escravistas com plantas produtivas inéditas,
Em suma, foi possível observar que Joaquim Manoel de Freitas, José que romperam com os padrões vigentes no mundo atlântico.34
Ramos Nogueira e José de Aguiar de Toledo teriam plantado os primeiros As primeiras mudas de pés de café foram introduzidas em Bananal,
muito provavelmente, na década de 1780, logo nos primeiros anos de fun-
31 Sheila Faria, com base na mesma documentação, afirmou que, em 1817, José Ramos Nogueira era dação do povoado. Contudo, o registro de sua produção apareceu pela
“senhor de engenho”. Não encontrei nenhum indício de produção de açúcar e/ou aguardente nas
três listas nominativas consultadas. Cf. FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Fortuna e família em primeira vez, na lista nominativa, apenas em 1799: três agricultores foram
Bananal no século XIX. In: CASTRO, Hebe Maria Mattos de; SCHNOOR, Eduardo (Org.). Resgate: responsáveis pela exportação de nove arrobas.35 Em 1802, só em um desses
uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. p. 86.
fogos se registrou a colheita de café, 40 arrobas ao todo.36
32 O primeiro inventário de Domiciana, aberto em 04/06/1825, não foi concluído e prolongou-se tão
somente à relação de bens. Dez anos mais tarde, o processo foi reaberto, sendo concluído dessa vez.
INVENTÁRIO de Domiciana Maria da Conceição. Cruzeiro: MMN, 4 abr. 1835. Cartório do 1º Ofício,
caixa 19, n. 305. O processo de 1825 encontra-se anexado ao de 1835. 34 TOMICH, Dale. A “Segunda Escravidão”. In:___. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e eco-
nomia mundial. São Paulo: Edusp, 2011. p. 81-97.
33 A cultura do café tem um ciclo bienal de produção bem definido, ou seja, safras altas alternadas
com baixas safras. Cf. AGUIAR, João Joaquim Ferreira de – padre. Pequena memória sobre a planta- 35 Os três agricultores também colheram milho, arroz e feijão. Cf. MOTTA, 1999, p. 49-50.
ção, cultura e colheita do café. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I.P. da Costa, 1836. p. 11. 36 Cf. MOTTA, op. cit., p. 49-50.

336 337
A rápida disseminação da cafeicultura provocou alterações no per- tabela 1 – evolução da produção de café (em arrobas).
fil econômico dos domicílios bananalenses no início do oitocentos. Em bananal, 1817-1829 (casos selecionados)
1801, 35 escravistas (79,5%) cultivavam mantimentos em seus fogos e ano
cinco (11,4%) produziam açúcar e/ou aguardente. O primeiro grupo deti- cafeicultores 1817 1822 1829
nha 54,9% da mão de obra (220 cativos) e os senhores de engenho eram @ @ @
donos de 43,9% da escravaria. No mesmo ano, não se registrou a colheita
Joaquim Manoel de Freitas 0 100 800
de café em nenhum dos fogos.37 Entretanto, em 1817, caiu a participação,
em número e proporção, de ambos os grupos de escravistas, enquanto os José Ramos Nogueira 0 1.000 2.600

cafeicultores se difundiram na região. Os produtores de gêneros alimentí- Luiz Gomes Nogueira 300 300 4.000
cios correspondiam tão-somente a 28 escravistas (23,1%); os senhores de José de Aguiar de Toledo 99 1.000 2.500
engenho compunham apenas 4,1% do grupo de proprietários de escravos; Total 399 2.400 9.900
e, por fim, 62 escravistas (51,2%) cultivavam pés de café em seus domicílios.
Fonte: AESP, 1817; Id., 1822; Id. 5a e 6a Companhia de Ordenanças. Areias, 1829.
Os cafeicultores concentravam 63,9% da população escrava (645 ao todo),
ao passo que os senhores de engenho e os produtores de mantimentos pos- Em 1822, os cafeicultores aumentaram sua participação nas exportações
suíam, respectivamente, 15,8% e 16% dela. As mudanças na composição dos de café. A colheita de grãos cresceu cerca de 500% e atingiu o total de 2.400
domicílios bananalenses repercutiram positivamente nas exportações de arrobas (10,7% da safra da região). No mesmo ano, Bananal produziu 22.472
café: a colheita aumentou cerca de 20 vezes, entre 1802 e 1814, pulando de arrobas de café, cujo volume foi 450% maior que o de 1817.39 A colheita no
40 para 806 arrobas; três anos depois, as exportações do artigo cresceram domicílio de Toledo apresentou o maior crescimento relativo, em compara-
cerca de 400%, igualando-se a 4.049 arrobas.38 ção aos demais cafeicultores, saltando de 99 arrobas em 1817 para 1.000 arro-
Os dados demonstram claramente a importância que a cafeicul- bas em 1822. A produção de Luiz Gomes permaneceu estável, em torno de
tura escravista adquiriu em Bananal na primeira quinzena do século XIX. 300 arrobas.40 Freitas, por seu turno, colheu 100 arrobas de café, indicando
Evidenciam outrossim que os agricultores deslocaram-se paulatinamente que as primeiras plantações teriam sido efetuadas por volta de 1817. Por fim, a
da produção de mantimentos para a atividade cafeeira. A simbiose entre as produção de José Ramos igualou-se a 1.000 arrobas, o que denota, mais uma
culturas do milho e do café permitiu que os agricultores que não dispunham vez, a existência de cafezais formados e dando frutos em 1817 (Tabela 1).
de capital excedente financiassem a montagem da cafeicultura em suas pro- Ao longo dos anos 1820, o café tornou-se o produto agrícola domi-
priedades. Provavelmente, esse modelo pode ter sido adotado por outros nante em Bananal. A produção total da freguesia igualou-se a 45.572 arro-
municípios do Vale do Paraíba que se tornaram grandes produtores de café. bas em 1829, equivalente ao dobro do obtido em 1822. Os cafeicultores, que
Os quatro agricultores presentes em nossa amostragem tiveram papel correspondiam a 147 escravistas (75,4% do total), concentravam quase toda
importante nas exportações de café da freguesia de Bananal no decorrer a mão de obra, 2.030 cativos (88,9%). Todavia, tanto os produtores de gêne-
do período analisado. Em 1817, Luiz Gomes Nogueira e José de Aguiar ros quanto os senhores de engenho perderam novamente sua importância
de Toledo produziram 399 arrobas, pouco menos de um décimo (9,8%) relativa: o primeiro grupo, constituído por 26 escravistas (13,3%), detinha
de todo o café remetido aos mercados consumidores do Atlântico Norte. somente 71 cativos (3,1%); ao passo que o segundo era composto por apenas
Provavelmente, o volume exportado seria ainda maior se a safra de José um escravista (0,5%), dono de 105 cativos (4,6%).41
Ramos Nogueira tivesse sido registrada na lista nominativa (Tabela 1).
39 Cf. AESP, 1822.
37 Ibid., p. 114, 128. Embora já houvesse plantações de café na região, a ausência à sua produção ocor- 40 Supõem-se que o não aumento da produção de café de Luiz Gomes Nogueira esteja diretamente
reu, provavelmente, por conta do ciclo bienal de produção do cafeeiro. Cf. AGUIAR, 1836, p. 11. relacionado ao ciclo bienal de produção do cafeeiro. Cf. AGUIAR, 1836, p. 11.
38 Cf. MOTTA, op. cit., p. 50, 114, 128, 141. 41 Cf. MOTTA, 1999, p. 52, 114, 128.

338 339
No mesmo ano de 1829, a produção de café dos escravistas analisa- III
dos também cresceu de modo expressivo. Eles colheram 9.900 arrobas
do artigo, cerca de 21,7% de todo o café exportado pelos agricultores de A implantação e o deslanche da cafeicultura promoveu consideráveis altera-
Bananal. A safra de Luiz Gomes Nogueira atingiu o maior crescimento ções no perfil demográfico da escravaria nas primeiras décadas do oitocen-
relativo, pois sua produção aumentou 1.230%, saltando de 300 para 4.000 tos em Bananal. O Decreto de Livre Comércio com as nações amigas, pro-
arrobas (Tabela 1). mulgado em 1808, permitiu a conexão direta dos senhores de escravos com
A evolução no tamanho das posses de escravos ocorreu de forma o mercado mundial. Nesse sentido, houve aumento imediato no volume de
simultânea ao deslanche da cafeicultura em Bananal. Os dados da Tabela 2 desembarques de africanos nos portos do centro-sul, e grande parte desses
mostram que, em 1817, os cafeicultores possuíam 91 cativos em seus domi- cativos foi adquirida pelos cafeicultores da Bacia do Paraíba fluminense e
cílios. Com o tempo, os produtores de café ampliaram a dimensão de suas paulista.43 A contínua aquisição de africanos pelos agricultores resultou no
escravarias. Desse modo, na década de 1830, eles já detinham a posse de acréscimo da participação relativa de escravos adultos do sexo masculino
658 cativos. E, mais do que isso, eles aumentaram a participação relativa nas propriedades rurais bananalenses. Portanto, houve aumento na força de
de sua escravaria em relação ao conjunto de cativos de Bananal: em 1817, os trabalho dos cafeicultores.
cafeicultores eram donos de 9% da população cativa local, ao passo que, em O impacto que o tráfico atlântico causou na escravaria pode ser vislum-
1836/1838, eles detinham a posse de 19% dela.42 brado, primeiramente, levando-se em conta o índice relativo à participação
de africanos no conjunto de escravos de Bananal. Em 1801, a população afri-
tabela 2 – evolução da posse de escravos. cana correspondia a 57,1% (229 ao todo) dos cativos. Com a implantação da
bananal, 1817-1836/1838 (casos selecionados) cafeicultura, o índice elevou-se a 61,7% (623 ao todo) em 1817. E, em virtude
ano
da difusão das plantações de café, a taxa correlata atingiu a marca de 78,2%
(1.785 ao todo) em 1829.44
cafeicultores 1817 1822 1829 1836/1838
De acordo com a Tabela 3, percebe-se que, em 1817, a maior parte
n n n n
das escravarias dos cafeicultores analisados havia nascido no Brasil. Só os
Joaquim Manoel de Freitas 4 6 53 81
cativos de Joaquim Manoel de Freitas eram todos oriundos do continente
José Ramos Nogueira 17 47 87 136 africano. Provavelmente, o lavrador tornou-se escravista por volta desse
Luiz Gomes Nogueira 53 47 86 144 ano, o que justifica o fato de todos os seus cativos serem africanos. O que
José de Aguiar de Toledo 17 20 82 297 os dados parecem indicar é que, pelo menos, até 1817, esses produtores de
Total 91 120 308 658 café não precisaram recorrer de forma sistemática ao tráfico atlântico para
cultivar seus mantimentos, plantar seus cafezais e cuidar de seu gado. O
Fonte: AESP, 1817; Id., 1822; Id., 1829; INVENTÁRIO de Felícia Maria de Santana. Cruzeiro: MMN, 22 fev. mercado interno de escravos atendia, desse modo, as necessidades desses
1836. Caixa 21, n. 328; INVENTÁRIO de Domiciana Maria da Conceição; INVENTÁRIO de Luiz Gomes
proprietários rurais.
Nogueira. Cruzeiro: MMN, 23 jan. 1838. Caixa 26, n. 424; INVENTÁRIO de José de Aguiar de Toledo.
Cruzeiro: MMN, 09 fev. 1838. Caixa 26, n. 427.

43 A respeito do volume de escravos desembarcados no Brasil, ver: VOYAGES DATABASE. The Trans-
42 Em Bananal, havia 1.010 cativos, em 1817, 1.575, em 1822, 2.282, em 1829, e 3.470, em 1836. Cf. Atlantic Slaves Trade Database. Atlanta, 2009. Disponível em: <http://www.slavevoyages.org>. Para o
MOTTA, op. cit., p. 128; AESP, 1822, Areias, 4ª Cia. de Ordenanças; MÜLLER, Daniel Pedro. Ensaio Rio de Janeiro, ver: FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre
d’um quadro estatístico da província de São Paulo: ordenado pelas leis provinciais de 11 de abril de a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 1. ed. 1997.
1836 e 10 de março de 1837. 1. ed., 1838. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, 1978. p. 132. 44 Cf. MOTTA, 1999, p. 133-135.

340 341
tabela 3 – evolução da proporção de escravos africanos. homens aumentaram sua participação relativa nos domicílios de Freitas, de
bananal, 1817-1836/1838 (casos selecionados) José Ramos e de Luiz Gomes; mas, no período seguinte, entre 1822 e 1829,
ano houve uma sensível diminuição na taxa de homens nos mesmos fogos.
cafeicultores 1817 1822 1829 1836/1838 tabela 4 – evolução da proporção de escravos masculinos.
% % % % bananal, 1817-1836/1838 (casos selecionados)
Joaquim Manoel de Freitas 100,0 83,3 90,6 85,2
ano
José Ramos Nogueira 47,1 76,6 77,0 67,6 cafeicultores 1817 1822 1829 1836/1838
Luiz Gomes Nogueira 39,6 93,6 90,7 77,8 % % % %
José de Aguiar de Toledo 11,8 75,0 89,0 - Joaquim Manoel de Freitas 75,0 100,0 79,2 70,4
Fonte: Idem à Tabela 2. José Ramos Nogueira 47,1 72,3 63,2 73,5
Obs.: a origem dos escravos de José de Aguiar de Toledo não foi declarada no inventário.
Luiz Gomes Nogueira 64,2 85,1 73,3 70,1
Entretanto, de 1822 em diante, parcela considerável da escravaria dos José de Aguiar de Toledo 70,6 65,0 80,5 78,5
cafeicultores era composta pelos africanos. Sete de cada dez cativos havia
Fonte: Idem à Tabela 2.
nascido na África. Nos anos 1830, os índices de africanidade não seguiram
a tendência de crescimento dos anos precedentes, pois a participação do No mesmo período (1822-1829), mostramos que houve aumento na
grupo de africanos reduziu-se em todos os casos (Tabela 3). Certamente, proporção de escravos africanos nos domicílios (ver Tabela 3). Desse modo,
o término temporário do tráfico atlântico (1831-1835), reaberto ilegalmente o resultado esperado seria o acréscimo na taxa de homens, já que a maior
em 1836, justifica a queda na proporção de africanos.45 parte dos africanos desembarcados no centro-sul era do sexo masculino.47
O aumento nos desembarques de navios negreiros também impactou Porém, aqueles mesmos escravistas compraram proporcionalmente mais
o perfil demográfico da escravaria quanto ao gênero. Os escravos do sexo mulheres que homens, entre 1822 e 1829.48 É provável que esses cafeicultores
masculino aumentaram sua participação em detrimento das mulheres nos estivessem, por um lado, se precavendo contra o eventual término do trá-
primeiros decênios do oitocentos: em 1801, eles correspondiam a 58,1% (233 fico atlântico, previsto para se encerrar em 1830 e, por outro, procurando
ao todo) dos cativos de Bananal; elevaram-se a 64,3% (649 ao todo) em 1817; apaziguar as tensões nas senzalas, devido à escassez de mulheres.49 Assim,
e atingiram a marca de 68,6% (1.566 ao todo) em 1829.46 os escravos teriam maiores possibilidades de encontrar cônjuges no cati-
Observando os informes dispostos na Tabela 4, nota-se que, em todos veiro e, consequentemente, as chances de reprodução natural da escravaria
os anos, os homens predominaram ante as mulheres. A única exceção deu- aumentariam.50 Com a abolição temporária do tráfico atlântico, a população
se no domicílio de José Ramos Nogueira: em 1817, a maioria de seus escra- 47 Cf. FLORENTINO, 2010, p. 221.
vos era composta por mulheres. O crescimento da população masculina 48 A proporção de mulheres entre os escravos adultos (entre 15 e 49 anos) no domicílio de Joaquim
não ocorreu de modo sucessivo ao longo do tempo. Entre 1817 e 1822, os Manoel de Freitas subiu de 0%, em 1822, para 30,6%, em 1829; no de José Ramos Nogueira, a taxa
correlata pulou de 17,9% para 30,3%; no de Luiz Gomes Nogueira, o índice passou de 8,3% para
22,8%. Cf. AESP, 1822; Id., 1829.
45 Sobre a Lei de 1831, que proibiu o tráfico atlântico, ver: RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: 49 Sobre o papel da família escrava na contenção dos focos de tensão nas senzalas, ver: FLORENTINO,
propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Ed. Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro,
Unicamp: Cecult, 2000; GRINBERG, Keila; MAMIGONIAN, Beatriz (Org.). Dossiê: “Para inglês c. 1790-c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997; SLENES, Robert. Na senzala, uma flor:
ver”? Revisitando a Lei de 1831. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, ano 29, v. 1/2/3, p. 91-340, esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil sudeste, século XIX. Campinas:
jan.-dez. 2007; PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Ed. Unicamp, 2011. 1. ed. 1999.
Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 68-74. 50 Entre 1822 e 1829, a taxa de escravos adultos casados cresceu nos três domicílios: no de Joaquim
46 Cf. MOTTA, 1999, p. 128. Manoel de Freitas, passou de 0% em 1822 para 33,3% em 1829; no de José Ramos Nogueira, pulou de

342 343
masculina sofreu um declínio nos anos 1830. Em três domicílios reduziu- mais, escravos adultos do sexo masculino. A ampliação das áreas cultivadas
se a participação relativa de homens; só no fogo de José Ramos Nogueira com pés de café bem como o acréscimo da força de trabalho permitiu que
houve aumento na percentagem de escravos do sexo masculino (Tabela 4). as colheitas de grãos atingissem safras cada vez maiores ao longo do tempo.
A estrutura etária da população cativa de Bananal sofreu igualmente A despeito da queda acentuada nos preços do café no mercado externo,
alterações, no começo do século XIX, devido à implantação e à consequente os cafeicultores ampliaram expressivamente suas lavouras nos anos 1820. A
disseminação da cafeicultura. Assim, ao mesmo tempo em que se reduziu redução nos preços do artigo foi determinada pelo próprio ritmo da pro-
a participação absoluta e relativa de crianças e idosos, entre 1801 e 1829, dução brasileira. As colheitas de grãos aumentaram a oferta mundial de
aumentou-se a de escravos adultos: os últimos perfaziam 69,6% da escrava- café, que, por sua vez, induziu à queda de seus preços no mercado. O cres-
ria em 1801; 72,7% em 1817; e 76,3% em 1829.51 cimento exponencial da oferta combinado com a diminuição do preço, que
A proporção de escravos adultos passou por constantes oscilações no resultou na acumulação de capital, é característico do mercado mundial
decurso do tempo nas propriedades analisadas. De acordo com a Tabela 5, capitalista que está se formando exatamente nesse período. A opção dos
pode-se observar que, em 1817, os adultos já representavam a maior parte da cafeicultores, portanto, foi a de produzir muito café, a um preço mais baixo,
escravaria. No entanto, com o deslanche da cafeicultura, motivada pela majo- a ter de produzir menos, a um preço mais caro.
ração dos preços do café no mercado mundial, o grupo de adultos aumentou
ainda mais sua participação relativa. O que vale destacar, portanto, é que, IV
entre 1817 e 1829, houve tendência à expansão do grupo de adultos.
Os produtores de café analisados acumularam um grande patrimônio no
tabela 5 – evolução da proporção de escravos adultos (15 a 49 anos).
decorrer de suas vidas. Essa riqueza foi angariada a partir da combinação de
bananal, 1817-1836/1838 (casos selecionados)
inúmeras atividades, tais como: a comercialização de mantimentos no mer-
ano cado interno; a concessão de créditos a terceiros; a exportação de açúcar/
cafeicultores 1817 1822 1829 1836/1838 aguardente; e, principalmente, a exportação de café no mercado mundial. A
% % % % conjunção de duas ou mais atividades econômicas permitiu que os cafeicul-
Joaquim Manoel de Freitas 100,0 100,0 67,9 77,8 tores legassem a seus herdeiros as maiores fortunas inventariadas nos anos
José Ramos Nogueira 58,8 83,0 75,9 59,5 1830 em Bananal.
Luiz Gomes Nogueira 62,3 76,6 91,9 - Os escravos, as terras e as situações (lavouras e benfeitorias) consti-
José de Aguiar de Toledo 76,5 65,0 82,9 - tuíam os principais grupos de ativos dos cafeicultores. Eles eram respon-
Fonte: Idem à Tabela 2. sáveis pela maior parte de sua riqueza, pois que mais de 70% de todo o
Obs.: a idade dos escravos de José de Aguiar de Toledo e de Luiz Gomes Nogueira não foi declarada nos patrimônio estava empregado nesses ativos.52 O grupo de ativos escravos
respectivos inventários.
correspondia ao principal investimento dos produtores de café. Em três
Em linhas gerais, procurou-se mostrar que a implantação e a dissemi- casos, a participação relativa desse ativo suplantava os capitais investidos
nação da cafeicultura escravista em Bananal provocou alterações substan- em terras e situações. Só no fogo de Toledo é que as situações superavam os
ciais na composição demográfica da escravaria. O aumento na demanda de investimentos em escravos (Tabela 6). Conforme já se mostrou, a escravaria
café obrigou os senhores de escravos a ampliar suas posses cativas e, mais dos cafeicultores ampliou-se expressivamente entre os anos 1810 e 1830. Na
do que isso, a aumentar constantemente a sua produtividade. Para tanto, os
agricultores recorreram ao tráfico atlântico e passaram a adquirir, cada vez
52 O processo de Toledo, por se tratar de um “inventário amigável”, não apresenta a relação de alguns
bens, como as dívidas ativas, as mobílias, dentre outros objetos. Por esse motivo, é provável que
15,4% para 51,5%; no de Luiz Gomes Nogueira, subiu de 0% para 31,7%. Cf. MORENO, 2013, p. 46-74. os três principais grupos de ativos estejam parcialmente superestimados em seu inventário. Cf.
51 Cf. MOTTA, 1999, p. 130. INVENTÁRIO de José de Aguiar de Toledo.

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última década, eles possuíam 658 cativos, ou seja, 54,2% da mão de obra mil pés de café;56 e a fazenda dos Pinheiros. É mais do que provável que
inventariada no período.53 os quatro escravistas também fossem grandes produtores de café, devido,
tabela 6 – distribuição (%) do patrimônio dos cafeicultores escravistas. principalmente, à extensão de seus cafezais.57
bananal, 1836/1838 (casos selecionados) Todas as propriedades rurais, exceto o sítio da Serra, eram unidades
produtivas completas,58 na medida em que apresentavam todos os maqui-
joaquim manoel josé ramos luiz gomes josé de aguiar
patrimônio
de freitas nogueira nogueira de toledo nários e as instalações indispensáveis para a produção de café em larga
Escravos 49,8 42,1 36,2 32,9 escala. Elas possuíam a “casa de vivenda” monumental, a senzala em qua-
Situações
dra, o terreiro de café, a tulha, o paiol, o monjolo hidráulico e o “engenho
30,6 22,7 30,6 52,0
(Lavouras e Benfeitorias) de socar café” ou engenho de pilões. Além disso, as propriedades contavam
Terras 7,3 6,9 13,7 13,6 ainda com o maquinário envolvido na produção de gêneros alimentícios:
Animais 6,7 5,2 3,4 1,4 possuíam o moinho, usado na fabricação de fubá e angu; e o “forno de
Dívidas Ativas 2,5 - 8,8 - cobre”, a “roda de mandioca” e a “prensa de fuso”, empregados na produção
Outros 3,1 23,1 7,3 0,1 de farinha de mandioca.59 A existência desses maquinários atesta que as
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 propriedades rurais cafeeiras analisadas não deixaram de produzir manti-
Fonte: INVENTÁRIO de Felícia Maria de Santana; INVENTÁRIO de Domiciana Maria da Conceição;
mentos para o próprio consumo.
INVENTÁRIO de Luiz Gomes Nogueira; INVENTÁRIO de José de Aguiar de Toledo. O grupo de ativos “animais” tinha uma participação relativa que osci-
Nota: Os valores monetários da fortuna dos cafeicultores igualou-se, respectivamente, a: 50:955$680; lou de 1,4% a 6,7% da fortuna dos cafeicultores. Os gados suíno, bovino,
58:589$457; 125:436$618; 141:315$920. O monte-mor de Toledo, na verdade, era igual a 282:631$840. equino e muar cumpriam papel fundamental nas propriedades rurais. Eles
Como os bens existentes na Fazenda dos Pinheiros e na Vila não foram avaliados individualmente, foi
possível analisar apenas o patrimônio existente na fazenda do Resgate. serviam tanto para a alimentação das famílias dos fazendeiros, agregados
e escravos quanto para a locomoção e fiscalização do trabalho cotidiano.
Os quatro cafeicultores tornaram-se grandes proprietários de terras.54 E, é claro, também eram empregados no transporte do café para os cen-
Joaquim Manoel de Freitas possuía duas propriedades rurais: o sítio da tros comerciais. Devido à importância desses rebanhos para os agricultores,
Perapetinga, que tinha 115 alqueires de área e 52.500 pés de café; e o sítio havia a preocupação em resguardá-los das intempéries, já que os galinhei-
da Serra, que ocupava 25 alqueires e tinha 18 mil pés de café. A fazenda da ros, chiqueiros e casas de tropa eram geralmente cobertos de telha.
Boa Vista, pertencente a José Ramos Nogueira, media 170 alqueires e tinha
56 mil pés de café. Por seu turno, a propriedade de Luiz Gomes Nogueira, a
56 Com base na mesma fonte, Schnoor equivocou-se ao afirmar que José de Aguiar de Toledo possuía
fazenda Glória dos Campos, ocupava cerca de 207 alqueires e contava com apenas 148 escravos e 285 mil pés de café na fazenda do Resgate. Cf. SCHNOOR, Eduardo. Das casas
100 mil pés de café. Por fim, José de Aguiar de Toledo era dono de duas de morada à casa de vivenda. In: CASTRO; SCHNOOR, op. cit., p. 31-62.
57 Toledo, por exemplo, colheu um grande volume de café em 1836: 12 mil arrobas, cerca de 18,5% do
propriedades rurais: a fazenda do Resgate,55 que possuía 300 alqueires e 324 montante produzido em Bananal. A produção de café dos demais cafeicultores não foi arrolada na
lista nominativa. Cf. AESP, 1836.
58 Sobre a acepção do terno “unidade produtiva completa”, ver: FRAGOSO, João Luis Ribeiro. Sistemas
53 Nos anos 1830, foram abertos 51 inventários de cafeicultores escravistas. Assim, os quatro cafeicul- agrários em Paraíba do Sul (1850-1920): um estudo de relações não capitalistas de produção. 1983.
tores analisados correspondiam a 7,8% dos inventariados. Cf. MORENO, 2013, p. 89-90. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade
54 Em Bananal, as pequenas propriedades tinham em média 10 alqueires mineiros; as médias proprie- Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1983.
dades eram compostas pelos imóveis de dimensão média equivalente a 25 alqueires; as grandes 59 Na lista de 1836, Freitas colheu grande volume de gêneros, dentre os quais: 600 cargueiros de milho,
propriedades ocupavam uma superfície média de 100 alqueires. Cf. MORENO, 2013, p. 190. 200 alqueires de feijão e 1.000 alqueires de arroz. Não foi arrolada, contudo, a produção de café. Não
55 Sobre a fazenda do Resgate, ver: CASTRO, Hebe Maria Mattos de; SCHNOOR, Eduardo (Org.). há informações na lista a respeito da produção de alimentos nos domicílios dos outros três cafei-
Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995; MARQUESE, Rafael. O Vale cultores. Cf. AESP, 1836. Um (1) cargueiro de milho equivale, aproximadamente, a 60 ou 62 kg. Cf.
do Paraíba cafeeiro e o regime visual da Segunda Escravidão: o caso da fazenda Resgate. Anais do CÂNDIDO, Antônio. Técnicas de medir milho. Jangada do Brasil, ano III, n. 34, jun. 2001. Disponível
Museu Paulista, São Paulo, v. 18, p. 83-128, 2010. em: < http://www.jangadabrasil.com.br/junho34/of34060a.htm>. Acesso em: 12 dez. 2013.

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As propriedades rurais tinham infraestrutura plenamente adequada e além disso, o agricultor ainda investia na produção de açúcar/aguardente,
eficiente para a produção de café. Os cafeicultores tomavam o cuidado de pois na fazenda havia “um engenho de cilindros de ferro por armar, com
proteger sua produção agrícola das condições climáticas adversas. As tulhas sua armação pronta e mais utensílios”. Vê-se, portanto, que Luiz Gomes
e os paióis arrolados nos processos, por exemplo, eram todos recobertos combinava a produção de café com a fabricação de açúcar/aguardente em
de telha e assoalhados, o que evitava o contato dos grãos de café com as sua propriedade, o que lhe permitiu aumentar significativamente seu patri-
águas da chuva e com o solo, impedindo o atraso na secagem dos grãos ou mônio no decurso de sua vida.
a depreciação de sua qualidade. Além do mais, Luiz Gomes Nogueira também se enriqueceu por
O capital acumulado pelos escravistas ao longo de suas vidas foi essen- meio da concessão de créditos a terceiros. Pouco menos de um décimo
cialmente adquirido por meio da cafeicultura. Porém, a análise atenta dos de sua fortuna era composta pelas “dívidas ativas” (Tabela 6). Dentre os
inventários sugere que os cafeicultores dedicavam-se, ao mesmo tempo, a vários indivíduos presentes na extensa lista de devedores, deve-se destacar
outras atividades econômicas, o que provavelmente deve ter contribuído o boticário Tauren Domingos Mosnier, um dos maiores comerciantes de
para o seu enriquecimento. Bananal.60 Outro sujeito presente na listagem era Manoel de Aguiar Vallim,
Na fazenda da Boa Vista, de José Ramos Nogueira, foram encontrados um dos herdeiros de José de Aguiar de Toledo, que na segunda metade do
“nove lanços de casas à beira da estrada geral [Caminho Novo da Piedade], século XIX, se tornaria um dos maiores cafeicultores escravistas do Vale do
cobertos de telha, que servem de rancho de passageiros, com dois lanços Paraíba. O que se conclui, portanto, é que os empréstimos concedidos por
fechados, que servem de casa de negócio”. Certamente, esta “casa de negócio” Luiz Gomes também contribuíram para o seu enriquecimento.
diz respeito à mesma “venda” descrita no primeiro inventário de sua esposa. Joaquim Manoel de Freitas também ofertou créditos a terceiros. Porém,
A informação indica, portanto, que o cafeicultor continuou vendendo produ- ao contrário de Nogueira, tudo leva a crer que Freitas não tenha realizado
tos, em sua grande maioria, mantimentos, no mercado interno para os tropei- os empréstimos com o objetivo de auferir lucros, pois dois de seus devedo-
ros que pernoitavam no “rancho” de sua propriedade. Nesse sentido, é plau-
res eram seus filhos, Luiz Manoel de Freitas e Joaquim Valadão de Freitas,
sível supor que essa atividade também contribuiu para o seu enriquecimento.
e o outro era seu genro, Bento Vidal das Chagas. É mais provável que os
No sítio da Perapetinga, de Joaquim Manoel de Freitas, havia um “enge-
créditos correspondessem a adiantamento de herança, para ajudá-los a se
nho de moer cana” e um “alambique de cobre”. Todas as listas nominativas
instalar de forma autônoma. Os empréstimos eram registrados para jus-
consultadas não indicaram a produção de açúcar ou aguardente. Dificilmente
tamente abater, quando do inventário, da legítima devida a tais herdeiros.
haveria a produção de açúcar, posto que, ao menos na passagem da década
de 1810 para 1820, Freitas não tinha mão de obra suficiente para produzir o
artigo. É mais provável que o engenho e o alambique fossem utilizados na
considerações finais
fabricação de aguardente e/ou rapadura, cuja produção, além de servir para A análise dos quatro casos acima apresentados demonstra de forma clara
o consumo dos habitantes de suas propriedades, poderia ser comercializada que a atividade cafeeira permitiu que alguns indivíduos se tornassem
no mercado local. agricultores abastados no decurso de suas vidas. A montagem e a disse-
A fazenda Glória dos Campos, de Luiz Gomes Nogueira, continuou minação da cafeicultura escravista, nas primeiras décadas do oitocentos,
produzindo açúcar e aguardente, a despeito da omissão dessa informação provocou intensas mudanças na composição econômica dos domicílios de
nas listas de 1822 e 1829. Os canaviais ocupavam uma área relativamente Bananal. Os fogos que, em sua grande maioria, dedicavam-se a produção
ampla da fazenda, pois havia “um partido de canas novo em terreiro de de gêneros alimentícios, no começo do século XIX, logo se converteram em
30 alqueires de feijão”, avaliado em Rs. 4:000$000, e “um partido de canas
novo plantado de novo”, estimado em Rs. 200$000. A propriedade possuía 60 Em boa parte dos inventários consultados das décadas de 1830, 1840 e 1850, na parte correspon-
todos os imóveis e maquinários necessários para a fabricação dos artigos. E, dente às dívidas passivas, há inúmeras referências a esse comerciante, o que denota sua importância
no comércio local. Cf. INVENTÁRIOS post mortem. Cruzeiro: MMN, 1830-1859.

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propriedades rurais voltadas à exportação de café para o mercado mundial. Laços cativos: uma análise demográfica da família
Os agricultores que não dispunham de capital para ingressar na atividade
cafeeira, adotaram a estratégia de cultivar pés de milho entre as fileiras
escrava no plantel de Luciano José de Almeida,
dos arbustos de café recém-cultivados. Com isso, os lavradores foram se Bananal 1854-1882
deslocando paulatinamente da produção de mantimentos para a atividade
cafeeira, sem abdicar do cultivo de víveres para o auto consumo. Camila dos Santos
De modo geral, a produção de café em Bananal – e no Vale do Paraíba –
cresceu lentamente até meados dos anos 1810. Com a volta da paz na Europa,
a partir de 1815, e com a reorganização dos mercados consumidores, os pre-
ços do café disparam no mercado mundial, o que incentivou os agricultores
a cultivarem seus primeiros cafezais ou a ampliarem as plantações já existen-
tes. Nesse contexto, os cafeicultores aumentaram suas posses cativas e, para
tanto, recorreram de forma sistemática ao tráfico transatlântico de africanos. O presente texto se insere no campo da demografia histórica e tem por
Isso causou um profundo impacto no perfil demográfico da escravaria, que objetivo demonstrar a configuração da família escrava na grande escravaria
se tornou, cada vez mais, constituída por homens jovens e adultos. tendo como universo de análise o plantel de um dos maiores e mais impor-
Nos anos 1820, os cafeicultores expandiram significativamente suas tantes fazendeiros escravistas da região de Bananal, o comendador Luciano
plantações de café, mesmo com a redução nos preços do artigo no mercado José de Almeida. Desta forma, pretende também evidenciar a ampliação
mundial. Essa redução foi motivada pelo próprio ritmo de produção das e a estabilização dos laços parentais entre os cativos deste megaplantel1
propriedades rurais cafeeiras do Brasil. A despeito disso, os cafeicultores tendo por base documental os inventários post mortem de Luciano José de
escravistas continuaram lucrando, devido, principalmente, à elevada pro- Almeida e sua esposa Maria Joaquina de Almeida, assim como a lista de
dutividade de seus pés de café e aos reduzidos custos comparativos de pro- matrícula dos escravos de 1872 e os registros de casamentos de escravos.
dução.61 Os indivíduos que inverteram seus capitais na compra de terras, Até a década de 1970, grande parte da historiografia interpretava a
escravos e cafezais, sejam eles negociantes de grosso trato, senhores de enge- família escrava como rara ou mesmo negava sua existência. “Perdidos uns
nho ou produtores de gêneros alimentícios, não guiaram suas estratégias para os outros”, “sem laços sociais para recriar sua cultura e identidade”,
em busca de ganhos sociais, conforme afirmaram Fragoso e Florentino.62 assim eram descritos os escravos a partir de uma visão em muito inspi-
Eles converteram-se em fazendeiros de café pelo simples fato de que essa rada em relatos de viajantes e nas ideias presentes no século XIX que impe-
atividade era altamente lucrativa. Não foi à toa que os produtores de café diam os estudiosos de reconhecerem a existência de relações familiares em
analisados conseguiram acumular um vasto patrimônio no decorrer de comunidades escravas.2 As últimas décadas do século XX presenciaram uma
suas vidas, essencialmente adquirido a partir da atividade cafeeira.
1 O historiador Ricardo Salles investigou a estrutura da posse de escravos em Vassouras, no Rio
61 GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. 1. ed., 1990. São Paulo: Ática, 1991. p. 82. 1. ed. 1990. de Janeiro, um dos maiores municípios produtores de café do globo no século XIX. Para tanto,
MARQUESE, Rafael. As desventuras de um conceito: capitalismo histórico e a historiografia sobre a valendo-se de uma função linear que representa a dificuldade que os senhores de escravos
escravidão brasileira. Revista de História, São Paulo: Edusp, v. 169, p. 223-253, 2013. enfrentariam ao migrar de uma faixa de tamanho de posse para outra, Salles reuniu os escravistas
62 FRAGOSO; FLORENTINO, 2001. Para uma crítica ao modelo interpretativo de Fragoso e Florentino, em cinco grupos: 1) mini proprietário, que detinha a posse de quatro ou menos escravos; 2) pequeno
ver: MARIUTTI, Eduardo; NOGUERÓL, Luiz Paulo; DANIELI NETO, Mário. Mercado interno colo- proprietário, que detinha entre cinco e 19 cativos; 3) médio proprietário, que tinha entre 20 e 49
nial e grau de autonomia: crítica às propostas de João Luís Fragoso e Manolo Florentino. Estudos escravos; 4) grande proprietário, que possuía entre 50 e 99 cativos; e, por fim, 5) mega proprietário,
Econômicos, São Paulo: IPE-USP, v. 31, n. 2, p. 369-393, abr./jun. 2001; MARQUESE, Rafael; TOMICH, que era senhor de uma centena ou mais escravos. SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo: Vassouras,
Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX. In: século XIX – senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2008.
SALLES, R.; GRINBERG, K. (Org.). O Brasil imperial: 1831-1871. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2 SLENES, Robert. Na senzala uma flor: as esperanças e as recordações na formação da família escrava.
2009. v. II, p. 339-383; MARQUESE, 2013, p. 238-246. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

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mudança significativa desta visão. Estudos recentes baseados em diversos Contrapondo-se a Hebe, Manolo e Góes, o historiador americano
documentos históricos evidenciaram a existência da família escrava no Robert Slenes5 priorizou em sua interpretação os significados que os laços
interior da sociedade escravista. Robert Slenes, Hebe Maria Mattos, Manolo familiares possuíam para os próprios escravos. O autor parte do pressu-
Florentino, José Roberto Góes, José Flávio Motta, entre outros aprofunda- posto de que, no sudeste, não só os cativos teriam constituído identidades
ram as pesquisas sobre a família escrava. Além do reconhecimento da exis- comuns, como também formaram uma “proto-nação banto” a partir do
tência da família escrava e de sua importância, buscou-se analisar a figura predomínio de escravos do mesmo grupo linguístico, precedentes do cen-
do próprio escravo, enfatizando que ele não se deixava dominar simples e tro-oeste africano. Para Slenes, a família escrava não se reduzia à estratégia
passivamente pelos senhores. Mas, ao contrário, tão reais quanto a domina- e projetos centrados em laços de parentesco, mas expressava um mundo
ção por parte do senhor, eram suas formas de resistência e luta cotidianas. amplo, criado a partir de suas “esperanças e recordações”. Assim, puderam
Para autores como Manolo Florentino e José Roberto Góes,3 o caráter criar identidades e afinidades que lhes permitiram formar uma “comuni-
estrutural do tráfico negreiro não se limitava a saciar a fome de mão de obra dade” que, em última instância, colocava em risco o sistema escravista.
nas fazendas, mas buscava tornar frágeis as estratégias escravas destinadas à O ensaio “Parentesco e Família entre os escravos de Manuel de Aguiar
regrar a vida em comunidade. Nesta visão, acredita-se que a família escrava Vallim” de Manolo Florentino e José Roberto Góes,6 publicado no livro
estava sujeita à fragmentação durante a fase de expansão da economia e Resgate: uma janela para o oitocentos, destaca especificamente o município
que o cativeiro era marcado muito mais pelo conflito, em função das riva- de Bananal no que concerne à família escrava. Neste trabalho, os historiado-
lidades entre crioulos e africanos de diferentes origens étnicas, do que pela res utilizaram os inventários post mortem a lista de matrícula dos escravos
construção de uma identidade comum entre aqueles que viviam na condi- de 1872 e os registros de batismo para desenvolverem uma análise sobre a
ção de cativos. Para esses autores, a família escrava era o fator estrutural na constituição de redes parentais entre os escravos do fazendeiro Manuel de
manutenção e reprodução do escravismo no Brasil, pois gerava um ganho Aguiar Vallim. O objetivo era buscar os padrões de organização familiar dos
político para a classe senhorial ao garantir a “paz das senzalas”. escravos e o nível de estabilidade das famílias entre os escravos de Vallim.
Em suas análises sobre a formação familiar dos cativos, Hebe Mattos4 A obra Corpos Escravos,vontades livres: posse de cativos e família escrava
assevera que a possibilidade dos escravos formarem uma identidade comum em Bananal (1801-1829)7 de José Flávio Motta também se dedicou à com-
de matrizes africanas era posta em risco devido às diferenças étnicas e às preender a família escrava em Bananal. Utilizando-se das listas normativas
rivalidades surgidas nas disputas por recursos. Além disso, se os cativos de habitantes de Bananal referentes aos anos de 1801, 1817, 1829, o autor ana-
conseguissem acumular bens e pudessem viver materialmente próximos lisou a evolução da demografia bananalense articulando-a com o desen-
do mundo dos homens livres pobres, automaticamente se distanciavam de volvimento da produção cafeeira na cidade. Atentando para a forte ligação
seus parceiros. Deste modo, houve mais dissensão do que coesão entre os entre a estrutura de posse cativa e a organização familiar escrava, Motta
escravos. No entanto, a autora afirma que família e comunidade escrava identificou os plantéis com 10 ou mais cativos como mais propícios para
não se afirmavam como matrizes de uma identidade negra alternativa ao o desenvolvimento da família escrava. Assim, nos três anos selecionados,
cativeiro, mas paralela à liberdade. Portanto, a família escrava incentivava a mais de três quartos das famílias cativas pertenciam aos plantéis formados
competição por recursos e estratégias de aproximação ao mundo dos livres, por dez ou mais escravos: 86,1% em 1801, 86% em 1817 e 76,8% em 1829 (a
enfraquecendo os laços de comunidade dentro das senzalas e a resistência
coordenada ao sistema. 5 SLENES, 2000.
6 FLORENTINO, Garcia Manolo; GÓES, José Roberto. Parentesco e família entre os escravos de
3 FLORENTINO, Garcia Manolo; GÓES, José Roberto. A paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico Vallim. In: Castro, Hebe Maria Mattos; SCHOONN, Eduardo (Org.). Resgate: uma janela para o
atlântico, Rio de Janeiro, 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.
4 MATTOS, Hebe Maria, A cor inexistente: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de 7 MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal
Janeiro: Nova Fronteira, 1998. (1801-1829). São Paulo: Anablume: Fapesp, 1999.

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concentração da propriedade escrava observada em 1817 e 1829, bem como no momento da partilha dos bens, quando transparecia a lógica violenta e
o desenvolvimento da cafeicultura em direção a uma agricultura de planta- desumana do sistema escravista. Sendo assim, qual teria sido o destino das
tion, apontam para uma fase de relativa estabilidade e desenvolvimento das famílias escravas durante o processo de partilha dos bens do comendador?
famílias escravas). José Flávio Motta se dedicou a analisar os três primeiros Dialogando com os resultados encontrados nesta pesquisa, destaca-se
decênios do século XIX, não abordando o auge da produção cafeeira em o estudo realizado por Manolo Florentino e João Fragoso que, a partir de
Bananal, a década de 1850, quando o município se tornou o maior produtor documentação relativa a grandes plantéis de fazendas do Vale do Paraíba
de café da província de São Paulo. fluminense, contestou as antigas teses que negavam a possibilidade de exis-
tência da vida familiar entre os cativos no Brasil, especialmente para aqueles
as famílias escravas do plantel do comendador estabelecidos nas fazendas agroexportadoras, devido à escassez de mulheres
luciano josé de almeida em números e à preferência senhorial pela reposição da mão de obra por meio do tráfico
O comendador Luciano José de Almeida foi considerado o patriarca de atlântico. Em suas análises através dos inventários de grandes escravistas,
Bananal, homem de grande importância para o desenvolvimento da cidade, esses pesquisadores encontraram um índice relativamente alto de escravos
possuidor de muitas terras, ouro e escravos, sua vida está ligada à história com laços parentais (em torno de 36,5%), mesmo antes do fim do tráfico.8
da cidade, à política e ao Segundo Império. Foi proprietário das mais belas Podemos constatar que a escravaria do comendador Luciano encaixa-
fazendas da região, muitas das quais formadas na antiga sesmaria de seu pai se nos resultados encontrados por João Fragoso e Manolo Florentino.
Luiz José de Almeida. A fazenda Boa Vista se destaca como a mais impor- Destacando exatamente um alto índice de escravos aparentados neste plantel,
tante, chegando a possuir 700 mil cafeeiros e muitos escravos em 1854. O contestando, assim, os antigos estudos sobre a família escrava. No caso ana-
comendador Luciano possuía uma das maiores escravarias da região de lisado neste artigo, dos 816 escravos que compõem a escravaria do comen-
Bananal chegando a 816 escravos em 1854, data de seu inventário. Através dador, 358 (44%) estavam inseridos em redes parentais em 1854, sendo que,
deste documento, pode-se aferir significativas informações sobre a escravi- deste total, 161(45%) eram homens e 197 (55%) eram mulheres. Constatamos
dão e a dinâmica escravista em Bananal e na fazenda Boa Vista. que destes 358, 167 (46,6%) eram crianças que se encontravam na presença
Ao quantificar os dados do inventário do comendador Luciano José de seus pais. Destas crianças, 87 eram meninos e 80 eram meninas. O que
de Almeida é possível perceber a família escrava como uma complexa rede nos chamou a atenção é que de todas as crianças existentes no plantel (184),
de sociabilidade tecida entre escravos e pelos escravos. Neste documento, apenas 17 não estavam inseridas em redes parentais visíveis no inventário.
os vínculos familiares entre os cativos podem ser interpretados como de Como era de se esperar, as crianças representavam a maior porcentagem
fundamental importância na constituição de laços no interior do cativeiro de inserção em famílias se comparadas aos homens e mulheres adultos.
e, portanto, na tessitura da própria sobrevivência destas populações. Os Em estudo sobre a região de Campinas na segunda metade do século XIX,
dados demográficos sobre a comunidade escrava em questão indicam que Robert Slenes encontrou índice semelhante e revelou que 80% dos menores
as uniões estáveis faziam parte da realidade dos cativos, embora nem todos de dez anos que habitavam os plantéis com dez ou mais escravos estavam
tivessem acesso a ela. acompanhados de ambos os pais, por uma mãe viúva ou pai viúvo.9
Foram contabilizados um total de 816 escravos nas propriedades de Percebemos claramente que as mulheres adultas estavam duas vezes
Luciano José de Almeida. Para cada um deles, o inventário indicava nome, mais presentes em redes parentais que os homens adultos. Os homens,
origem, idade, estado conjugal e preço, permitindo identificar casais e estando em maior número por consequência do tráfico atlântico de africanos,
filhos naquela comunidade de cativos: “haverá a escrava Joana, esposa do
mesmo” e “ haverá o escravo Antonio, filho dos ditos”. O primeiro ponto a 8 FRAGOSO, João Luis; FLORENTINO, Manolo. Marcelino, filho de Inocência Crioula, neto de Joana
Cabinda: um estudo sobre famíliasescravas em Paraíba do Sul. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 17,
se observar é o quanto as famílias cativas da fazenda Boa Vista foram está-
n. 2, p. 151-173, 1987.
veis e duradouras. Essa característica pode ser comprovada principalmente 9 SLENES, 2000.

354 355
tinham menos chances de constituir famílias. Constatamos que 136 (16,6%) formação de famílias. O que parece é que também não “desrespeitavam” os
escravos do comendador eram ou haviam sido casados, isto é, viviam ou laços estabelecidos, procurando manter os casais e pais e mães junto a seus
haviam vivido com seus companheiros. Destes 136 cativos, 65 eram homens filhos. Tão importante quanto encontrar a família escrava no plantel do
e 71 mulheres. Os demais escravos solteiros com idade superior a 15 anos, em comendador Luciano José de Almeida foi poder estimar o tempo mínimo
número de 451, correspondiam a pouco mais da metade do plantel (55%). de união destas famílias. Isto foi possível através da análise da forma como
Encontramos 41 (5,0%) mães solteiras e uma descrita como mãe viúva. os escravos eram descritos no inventário. Primeiro era descrito o pai, em
Era o caso de Tereza, solteira, africana de 49 anos, e seus 4 filhos: Braz de 16 seguida a mãe e os filhos, do maior para o menor. Assim, com a idade do
anos, Cecília de 14 anos, Valentim de 10 anos e Inocêncio de 8 anos. Nossa filho mais velho, podemos chegar a este tempo mínimo de permanência.
amostragem revelou ainda que 64,5% das mulheres adultas constituíram Utilizamos a lógica que estes casais se formavam e tinham filhos.11 Podemos
família através da maternidade ou do casamento, contra 35,5% dos homens aqui destacar que estes dados são aproximados, pois não foi possível acom-
adultos, descritos como maridos ou pais. panhar os índices de mortalidade infantil do plantel.
Ao verificarmos as redes parentais existentes no plantel em questão, Desta maneira, conseguimos perceber que estes núcleos familiares
encontramos 112 núcleos familiares. Este alto número de famílias formadas estavam juntos há alguns anos. Em 1854, praticamente 36% das famílias
neste grande plantel vem corroborar com os resultados de vários outros haviam sido formadas há quase uma década. Por volta de 1844, 40 famílias
estudiosos da família escrava que, analisando diversas regiões onde a escra- já existiam no plantel do comendador e apenas 10 famílias (8,9%) estavam
vidão se fez presente, constataram que os maiores plantéis conformavam juntas há mais de 15 anos. Este é o caso da família de Antonio Bento, afri-
um ambiente com maiores possibilidades de estabelecimento de laços fami- cano de 60 anos e sua esposa Narcisa, também africana de 30 anos. O casal
liares entre os cativos.10 se uniu em 1836 numa cerimônia realizada na Igreja Matriz de Bananal,
Ao evidenciarmos que a família escrava era perfeitamente viável num onde mais 5 casais de escravos do comendador se casaram. Passados 18
grande plantel, procuramos identificar o perfil da família escrava consti- anos, encontramos o casal arrolado no inventário do fazendeiro com duas
tuída nestes 112 núcleos encontrados. Vamos a ele: filhas: Benta, nascida em 1837, um ano após o casamento do casal, e Narcisa,
Nota-se que pouco mais de um terço (42) dos núcleos familiares eram que nasceu em 1852. Com o registro do casamento e a idade da filha mais
famílias matrifocais nas quais encontramos mães solteiras e seus filhos. Os velha, podemos concluir que esta família estava unida há 18 anos.
núcleos patrifocais, constituídos pelos pais e seus rebentos, perfaziam ape- Outro caso a citar é o da família de João, africano de 70 anos, Felícia,
nas 1% do total. Mesmo sendo minoria tal família torna-se significativa, africana de 50 anos, e suas filhas Flora e Esperança. O casal convivia há apro-
pois indica que mesmo na ausência da mãe os laços consanguíneos entre ximadamente 26 anos quando o inventário foi arrolado, ou seja, desde 1828.
pais e filhos eram reconhecidos pelos senhores. Os casais sem filhos perfa- Conseguimos obter o tempo de permanência do casal por meio da idade de
ziam 14% (16) do total de núcleos familiares. Por fim, praticamente metade Flora que, em 1854, tinha 26 anos de idade. Também encontramos a família
das famílias (53) existentes era constituída por casais escravos e seus filhos, formada por Antonio João, 55 anos, Catharina, 50 anos, e seus quatro filhos:
a família nuclear. Florêncio, Mafalda, Estevão e Daniel, com 21, 12, 8 e 5 anos respectivamente.
Em termos de temporalidade, a pesquisa demonstrou que as famílias Esta família se iniciou em 1833 e ficou unida aproximadamente por 21 anos.
se constituíam, na sua maioria, nos momentos de formação dos plantéis, e Estes exemplos citados indicam o quanto a família escrava já era uma rea-
o caso da propriedade do comendador não fugiu a regra. Talvez, o que isso lidade presente neste plantel e o quanto seus laços foram estáveis ao longo
indique, assim como a forte incidência de mães solteiras, é que não havia do tempo. Ficando comprovado que os escravos se casavam, tinham filhos
uma política deliberada dos senhores em termos de formar ou impedir a e conseguiam viver juntos durante parte de sua vida.

10 SCHWARTZ, Stuart; COSTA, Iraci del Nero da; SLENES, Robert. A família escrava em Lorena (1801).
Estudos Econômicos, v. 17, n. 2, p. 245-295, maio-ago. 1987. 11 SLENES, 2000.

356 357
ruptura ou estabilidade? Os dados encontrados mostram que, do total de 112 famílias, apenas
o destino das famílias escravas 9 tiveram seus membros totalmente separados e 20 permaneceram par-
do comendador luciano josé de almeida cialmente unidas. Destas 20, a maioria (17) teve 1 ou mais infantes lega-
dos à herdeiros distintos, sendo que o restante da família permaneceu
Uma das formas de testarmos a hipótese da estabilidade da família escrava
unida. Em 2 núcleos familiares, 1 dos cônjuges foi separado da família e,
levantada anteriormente neste artigo é analisarmos o ato de partilha dos
em 1 unidade familiar matrifocal, a mãe foi separada de seus filhos. Quase
bens, pois a morte de um senhor de escravos era um momento de possível
três quartos (74%) das famílias passaram ilesas pelo processo de partilha,
desagregação dos casais cativos e seus filhos que poderiam ser repartidos
permanecendo integralmente unidas após a morte do seu senhor, como a
entre os herdeiros ou vendidos. Nesta ocasião, afloravam-se as tensões e
família de Alexandre, crioulo, 31 anos, e sua esposa, Maria Rita, africana, 25
expectativas na vida dos cativos. Segundo Chalhoub:
anos, e suas filhas Silvéria e Gervazia de 3 anos e Germana de 7 meses que
[...] o falecimento do senhor era para os escravos o início de um período de sobreviveram à partilha. A mesma sorte não teve a família de Fabiano, 40
incerteza, talvez semelhante em alguns aspectos à experiência de ser comprado anos, e Rita, 30 anos, que permaneceu apenas com Henriqueta de 4 anos e
ou vendido. Eles percebiam a ameaça de se verem separados de familiares e de
companheiros de cativeiro, havendo ainda a ansiedade da adaptação ao jugo de
Francelina de 2 anos. A filha mais velha, Joana, de 10 anos, foi separada da
um novo senhor, com todo um cortejo desconhecido de caprichos e vontades.12 família. Qual teria sido o destino da menina Joana?
Cristiany Rocha menciona um fortalecimento nas relações entre
Em 1854, faleceu o comendador Luciano José de Almeida. Logo em senhor e escravo, advindo da dependência da boa vontade do senhor para
seguida de sua morte foi aberto o seu inventário e iniciada a partilha dos manter as famílias unidas nos momentos de partilha e/ou venda. A histo-
bens entre seus herdeiros. Como vimos, o comendador tinha 11 herdeiros riadora reconhece a possibilidade da separação de famílias com a morte
diretos, sua esposa Maria Joaquina de Almeida e seus 9 filhos, entre eles 6 do senhor, mas sugere estudar até que ponto isto ocorria.14 Ela questiona a
eram menores de idade e um filho fora do casamento.13 Esta situação poderia partilha de famílias como regra geral. No caso estudado pela autora, houve
interferir de forma significativa no destino dos escravos e de suas famílias, a separação virtual de dois dos cinco filhos de um casal, porém os herdeiros
pois juridicamente a partilha aconteceria e cada herdeiro ficaria com que lhe que os receberam moraram juntos por toda a vida, o que fez que a família
cabia. Assim, o número dos herdeiros era uma variável muito importante na escrava não fosse separada fisicamente.15
manutenção das relações familiares entre os cativos: quanto maior o número Em nosso estudo, os seis filhos menores do comendador coabitam a
de herdeiros, maior a possibilidade de destruição desses laços. mesma casa dos pais, fazendo com que, na prática, os escravos herdados
Nesta pesquisa, procuramos seguir o fio nominal de cada família por estes seis filhos,tenham permanecido juntos na fazenda Boa Vista,
escrava no plantel do comendador Luciano José de Almeida no momento moradia da família de Luciano, até, pelo menos, a maioridade dos mesmos.
da partilha dos seus bens, verificando conjuntamente a partilha dos escra- Desta forma, podemos sugerir que a separação de Joana de seus familiares
vos realizada e a transferência de cativos para Maria Joaquina de Almeida, pode ter ocorrido somente judicialmente e não fisicamente. Portanto, a tese
sua esposa. Nosso intuito era observar qual foi o destino das famílias escra- defendida por Rocha tem grandes chances de também ter ocorrido com as
vas e perceber se a partilha de bens significou ruptura ou estabilidade dos famílias cativas do comendador.
laços familiares escravos já estabelecidos. Também não podemos perder de vista que as esperanças dos escravos
pesaram no momento da morte do senhor e da consequente partilha de
bens. Sem dúvida, as relações tecidas entre cativos e senhores devem ser
12 CHALHOUB, Sydney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 14 ROCHA, Cristiany M. Histórias de famílias escravas: Campinas, século XIX. Campinas: Ed. Unicamp,
13 O Comendador teve nove filhos com Maria Joaquina de Almeida e um filho fora do casamento que 2004.
constou no inventário como um dos 11 herdeiros. 15 Ibid.

358 359
levadas em consideração no momento da divisão daqueles mancípios. Os separada, refletia atitudes e práticas que já estavam sendo executadas no
laços engendrados possivelmente foram respeitados pelos senhores, seja cotidiano de alguns plantéis, principalmente nos mega plantéis. Mesmo
pelas relações estabelecidas cotidianamente, seja pelo medo de alguma ati- antes da referida legislação, a morte do comendador Luciano José de
tude de revolta diante das expectativas de quebra em suas relações afetivas. Almeida não esfacelou os laços familiares cativos. A sua morte não repre-
Para Slenes: sentou a morte da família escrava fortemente presente em sua propriedade.
[...] a família era, de fato, importante para a experiência dos escravos nas
fazendas do Sudeste – a tal ponto que a maioria de mulheres e crianças cativas laços familiares sedimentados
nessas propriedades viviam numa família conjugal “estável” (dentro dos limi-
tes definidos por uma alta taxa de mortalidade).16 Conhecida como a “matriarca de Bananal”, Maria Joaquina Sampaio de
Almeida, herdou metade de toda a fortuna do comendador e sobreviveu a
Podemos ressaltar que, muitas das famílias senhoriais procuraram morte do marido por quase 30 anos. Relembremos um pouco alguns dados
manter e/ou aumentar suas posses por meio do casamento entre escravos. que lhe propiciaram essa alcunha.
Desta forma, mesmo com a partilha efetuada perante a lei, muitos senhores e Do total de 816 escravos de seu marido, 415 foram legados a ela. Após 18
herdeiros mantinham as famílias unidas na tentativa de não desarticular sua anos da morte do marido, em 1872, possuía praticamente o mesmo número
produção, não fragmentar suas propriedades ou criar conflitos internos difí- de escravos em seu plantel, 394, no total. Passamos a partir de agora a apre-
ceis de solucionar. Desta forma, além de ser uma instituição estável, a família sentar o perfil do plantel por ela herdado e procuraremos compreender
escrava conseguiu de maneira bem razoável ultrapassar as barreiras da alta como Maria Joaquina manteve sua escravaria ao longo de quase três déca-
mortalidade de seus membros, em especial as crianças, nas diferentes con- das. Como prosseguiu a família escrava neste novo momento após a morte
junturas do mercado de mão de obra africana. Portanto, as famílias escravas do patriarca? Buscamos focalizar os núcleos familiares que foram mantidos
se constituíam como o pilar da comunidade escrava nos mega plantéis. e ampliados, bem como os que se constituíram durante este período. Para
É preciso atentar para o fato de que o tamanho das propriedades e o responder as questões levantadas, comparamos as características demográ-
número de cativos foram fatores importantes para a estabilidade da família ficas do plantel em 1854, 1872 e em 1882.
escrava. No ato da divisão dos bens de um indivíduo, esses aspectos faziam Do total de 112 grupos familiares que pertenciam ao comenda-
toda a diferença para as relações familiares dos cativos. Não nos esqueçamos dor Luciano José de Almeida, 54 foram herdados por Maria Joaquina.
que o escravo era um bem, uma mercadoria, e, portanto, poderia ser alvo Percebemos que nenhum deles foi totalmente separado e, como o res-
de venda, troca, pagamento de dívidas. Logo, estar inserido em uma pro- tante das famílias do plantel inicial, a maioria permaneceu integralmente
priedade pequena, média ou grande influía na estabilidade das famílias, nas unida. Além disso, das 184 crianças existentes no plantel em 1854, Maria
possibilidades de convívio de seus membros, e na consecução de relações Joaquina herdou 102 (55,4%), entre elas 55 (53,9%) meninos e 47 (46,1%)
de parentesco, fossem elas consanguíneas ou fictícias, pois era “[...] nessas meninas. Entre as 102 crianças, 59 (57,9%) permaneceram ao lado de suas
unidades médias e grandes que os escravos normalmente conseguiam casar- mães, apenas uma criança estava ao lado de seu pai e 32 (31,3%) estavam na
se com mais frequência e formar famílias conjugais relativamente estáveis”.17 companhia de ambos os pais. Encontramos no plantel duas (2,0%) crianças
A partir do que foi dito, podemos inferir que a Lei de proteção da famí- que não tinham a presença de seus pais, apenas dois irmãos e oito crianças
lia escrava de 1869 ao determinar que nenhuma família escrava deveria ser (7,9%) que não possuíam vínculos familiares.
Observando os dados de parentesco entre os escravos de Maria
16 SLENES, Robert. A árvore de Nsanda transplantada: cultos kongo de aflição e identidade escrava no Joaquina de Almeida percebemos que, dos 415 escravos herdados, 196
sudeste brasileiro (século XIX). In: LIBBY, Douglas Cole; FURTADO, Júnia Ferreira (Orgs.). Trabalho
livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006.
(47,2%) escravos estavam inseridos em redes de parentesco. Destes 196
17 SCHWARTZ; COSTA; SLENES, 1987. cativos, 91 (46,4%) eram homens e 105 (53,6%) eram mulheres. Entre os

360 361
adultos, 35 eram homens e 53 eram mulheres. Podemos observar que, plantel.19 Destes 123 que foram adquiridos, foi possível identificar a pro-
dos 292 homens herdados, apenas 91 (31,1%) estavam inseridos nas redes cedência de 59 escravos vindos de várias localidades como “Angra dos
parentais, enquanto das 123 mulheres herdadas a maioria, 105 (85,3%), pos- Reis, Mambucaba, Arrozal, Rio de Janeiro, Silveiras, Macahé, Bahia,
suía vínculos familiares. Somente 18 (14,7%) mulheres do plantel se encon- Resende, Maceió, Barra Mansa, Jurumirim, Rio Claro, Pernambuco,
travam fora do parentesco. Quelus, Estrela, Serro-Fro, Nicteroy, Ceará”.20 Entre estes escravos adqui-
Analisando o estado conjugal dos escravos de Maria Joaquina de ridos, encontramos a família de Galiana e suas filhas Geralda de 16 anos
Almeida encontramos: 83 casados, 214 solteiros e 11 mães solteiras. Entre e Thomazia de 10 anos.
os solteiros, os homens africanos eram a grande maioria 196 (91,6%), con- Tais índices evidenciam que além dos cativos incorporados no plantel
tra apenas 18 mulheres. Nossa amostragem, portanto, corrobora os inúme- por meio de compra ou herança, a reprodução natural serviu para a manu-
ros estudos sobre família escrava ao destacar que as mulheres tinham duas tenção do número de cativos da escravaria analisada. Assim, constatamos
vezes mais chances que os homens de se casarem e estarem inseridas em que do total de 93 crianças arroladas na lista da matrícula, a maioria absoluta
redes parentais, principalmente em grandes plantéis.18 possuía vínculos familiares (92,9%). Sendo que, 71,7 % das crianças estavam
Observamos que o plantel herdado por Maria Joaquina de Almeida inseridas em famílias nas quais ambos os pais estavam presentes.21 Desta
ainda guardava os efeitos do tráfico atlântico. Nele, os homens represen- forma, nossa amostragem corrobora a pesquisa de Manolo Florentino e
tam 70,4% e os escravos adultos um pouco mais de dois terços da escra- José Roberto Góes22 sobre os escravos de Manoel de Aguiar Vallim. Este
varia. Diante deste perfil demográfico, como caminhou, por exemplo, a estudo é extremamente significativo para nosso trabalho na medida em
família cativa que se iniciou em 1839 através do casamento de Floriano, 40 que analisamos os escravos da mesma cidade, no mesmo período, e atra-
anos, e Josefa, africana de 30 anos, gerando as filhas Hilária de oito anos vés de documentos similares, a matrícula de escravos de 1872 e inventários.
e Eva de um ano? Em 1854, esta família já estava unida há 15 anos e sobre- Ressaltamos também que Manoel de Aguiar Vallim, por ser genro de Maria
viveu à partilha. Novos laços se constituíram? Esta família se estendeu Joaquina de Almeida, certamente possuía escravos que foram de seu finado
nestes 28 anos que se passaram? Quantas outras famílias se formaram? A sogro Luciano José de Almeida.
família escrava encontrou a estabilidade sob a administração da matriarca Procurando os índices de escravos aparentados no plantel da fazenda
de Bananal? Resgate de Manoel de Aguiar Vallim, Manolo Florentino encontrou que
Para acompanharmos estas mudanças, valemo-nos da “Lista de 94% dos cativos estavam inseridos em redes parentais. Segundo o histo-
Matrícula” dos escravos de 1872 que se encontra anexa ao inventário de riador, “quase nove entre dez escravos, matriculados em 1872, o foram na
Maria Joaquina de Almeida de 1882. No ano de 1872, a matriarca matricu- situação de mães, pais, esposos, esposas, filhos e viúvos”.23 Para o plantel
lou seus 394 escravos. Dentre eles, 229 (58%) homens e 165 (42%) mulheres. de Maria Joaquina de Almeida em 1872, encontramos 283 (71,5%) escravos
Em primeiro lugar, pode-se verificar uma crioulização do plantel, pois os inseridos em redes parentais. Entre as crianças, a maioria absoluta possuía
247 crioulos representavam 62,8% do plantel, enquanto os 146 africanos vínculo familiar.
perfaziam 37,2%.
19 Chegamos a este índice, pois ao menos um dos pais era remanescente do plantel inicial, portanto,
Além disso, ao confrontarmos os dados do inventário do comenda- seus filhos eram “crias da casa”. Ressaltamos uma limitação em tal metodologia: a impossibilidade
dor com a matrícula geral dos escravos de 1872, constatamos que, dos 394 de identificar rebentos nascidos no plantel cujos pais foram comprados ou herdados após 1854.
Deste modo, a taxa de reprodução natural pode ter ultrapassado 20%.
escravos presentes em 1872, 191 (48,4%) eram remanescentes do plantel de
20 Estas localidades mencionadas no texto estão descritas no inventário desta maneira.
1854. Dos 203 cativos que não estavam arrolados no primeiro documento, 21 Analisando a lista de matricula de 1872, não foi possível verificarmos com exatidão o parentesco
123 (31,2%) foram adquiridos entre 1854-1872 e 80 (20,4%) nasceram no entre os 394 escravos.
22 MANOLO; GÓES, 1995.
18 SCHWARTZ; COSTA; SLENES, 1987. 23 Ibid.

362 363
A porcentagem de escravos inseridos em família para o plantel de organograma 1
Maria Joaquina de Almeida na década de 1870 foi semelhante a de outras
Casaram em 1839
localidades nesta mesma década. Estudando Paraíba do Sul, Fragoso e
Florentino encontraram 56,3% dos escravos inseridos em laços familiares José Joana Floriano Josefa 185

estáveis.24 Para Cruzeiro e Lorena, tendo como fonte a Lista de Classificação Casaram em 1869
dos Escravos para Emancipação, Marcondes e Motta encontraram 55,2% dos Manoel Eva Hilária Américo 187

cativos vivendo em famílias.25 O mesmo não aconteceu quando a compara-


ção foi feita com Bananal, pois Renato Marcondes,26 analisando o mesmo
Domingas
documento acima citado, encontrou 52,8%, enquanto nossa amostragem Procópio 4
revela um índice relativamente maior de 71,5%, mais próximo do índice
encontrado para a fazenda Resgate. Thaumaturgo 2

Na base deste movimento e em virtude da alta taxa de escravos aparen- 1882


Josefa
tados, estariam o maior equilíbrio entre os sexos e uma perspectiva econô-
mica que buscava aumentar os lucros em um momento de escassez da mão Hilária
de obra cativa, alargar a vida útil do escravo, aumentar os índices de sobre-
vivência dos recém-nascidos e, ainda, incentivar a dilatação da reprodução José Maria Cabinda é arrolado no inventário de Luciano José de
natural do plantel. Almeida como sendo solteiro. Joana e seu filho Manoel não constam entre
Ao verificarmos a diminuição da taxa de masculinidade, percebemos os escravos arrolados no inventário. Portanto, mãe e filho foram incor-
o aumento do casamento entre os escravos. Na tabela abaixo, verificamos porados ao plantel após a partilha de bens do comendador. A análise dos
que, em 1854, um pouco mais de dois quartos (55%) dos escravos adultos registros de casamentos revelou que José e Joana se casaram no oratório da
e idosos eram solteiros. Passadas quase duas décadas, o número de soltei- fazenda Boa Vista em 14 de outubro de 1855 e, após 17 anos, em 1872, ainda
ros havia decrescido significativamente para 34,7%. Contudo, os escravos permaneciam unidos.
casados que, em 1854, representavam 23,1%, em 1872 totalizavam 40,3%, um Outro casal Floriano e Josefa, por sua vez, receberam as bênçãos matri-
aumento bastante significativo da ordem de 17,2%. moniais em 1839. Hilária, a primogênita do casal, nasceu cinco anos após
Em 1872, 18 anos depois, encontramos 86 núcleos familiares entre os o casamento dos pais. Em 1852, nasceu Eva, a segunda filha de Floriano
escravos de Maria Joaquina de Almeida. Destas famílias, apenas 15 eram e Josefa. No inventário do comendador, o casal, que então completava
remanescentes de 1854. Entre elas, a família do casal Floriano e Josefa, já quinze anos de união, foi arrolado ao lado de ambas as meninas. Na lista da
citada. Confira no organograma abaixo como a família se ampliou. matrícula geral, Floriano foi declarado como viúvo e suas filhas já haviam
constituído suas próprias famílias. Hilária vivia em união consensual com
Américo e possuía três filhos. Eva era casada com Manoel e possuía uma
filha, Domingas, que não apenas usufruía da presença paterna e materna,
como também possuía tios, primos e três avós ainda vivos e morando na
24 FRAGOSO; FLORENTINO, 1987.
mesma fazenda.
25 MOTTA, José Flávio; MARCONDES, Renato L. A família escrava em Lorena e Cruzeiro (1874). In:
ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 12., 1874, Caxambu. Anais... Caxambu: Fazendo a análise desta comunidade cativa em 1872, constatamos
Abep, 1874. que do total de 86 famílias, 38 (44,1%) eram formadas por casais e seus
26 MARCONDES, Renato L. A propriedade escrava no Vale do Paraíba paulista durante a década de 1870. filhos, 30 (34,7%) por casais que não possuíam filhos, 9 ( 10,6%) somente
2000. Auxílio à Pesquisa, Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2000. por pai e filhos (núcleos patrifocais) e 9 (10,6) eram núcleos matrifocais.

364 365
Dos citados, 16 núcleos eram remanescentes de 1854, o que demonstra a organograma 2
permanência destas famílias ao longo do tempo e traduz a força e a esta-
bilidade dos laços parentais entre os escravos analisados. Em termos de 1854 até 1872 – 21 anos juntos

duração, vemos que, em 1872, pouco mais de um quarto das famílias tinha Isidoro Feitor Felicidade
sido formada há pelo menos 5 anos, 9 famílias tinham sido constituídas
há, no mínimo, uma década, e praticamente 22% já duravam duas décadas
ou mais – índices que apontam a sedimentação dos laços familiares ao João Perpétua Faustino 1872

longo dos anos.


Entre 1854 e 1872 (18 anos), houve a permanência e a continuidade
de 16 núcleos familiares com a ampliação dos laços já formados, mas Guintiliano
encontramos um número expressivo de 70 novas famílias escravas, dentre
Arminda 1882
elas uma família matrifocal que foi adquirida conjuntamente via tráfico
interprovincial.
Em 1882, foi aberto o inventário de Maria Joaquina de Almeida. A O diagrama acima representa a família do feitor Isidoro e sua esposa
análise deste documento proporciona acompanharmos por mais 10 anos Felicidade Cassange de 28 anos, ambos remanescentes do plantel do
os núcleos familiares escravos constituídos em seu plantel. Dos 418 escra- comendador Luciano. Em 1854, o casal possuía dois filhos: João Creoulo
vos de Maria Joaquina, 227 (54%) eram homens e 191 (46%) eram mulheres, e Perpétua, com 7 e 3 anos respectivamente. Em 1872, encontramos três
sendo deste total, 303 (76,1%) crioulos e 95 africanos (23,9%), o que aponta outros filhos do casal nascidos no plantel de D. Maria Joaquina: Justina,
para a crioulização do plantel. Entretanto, a informação mais importante Maria e Romualdo. João Creoulo, com 25 anos, foi declarado como viúvo
do documento diz respeito à consolidação da família e do crescimento e não tinha filhos. Perpétua, com 21 anos de idade, casou-se com Faustino
vegetativo natural como bases para a reprodução natural da comunidade e era mãe de Guintiliano e Arminda. Considerando João Creoulo como
escrava e de seu plantel. Ainda que, com a Lei de 28 de setembro de 1871, sendo o primogênito de Isidoro e Felicidade, concluímos que, em 1872, o
tal plantel, a longo prazo, estivesse fadado ao desaparecimento. casal estava junto há 25 anos. Em 1882, encontramos Perpétua viúva.
Pode-se inferir ainda, a partir do inventário de Maria Joaquina, que organograma 3
mais da metade dos escravos do plantel, 256 (61,3%), estavam inseridos em
redes parentais. Entre eles, 113 (44,1%) homens – dos quais, 26 são ingênuos
José Martins Constança Thimóteo Joaquina Antonio Felícia 1854
– e 143 (55,8) são mulheres – das quais, 54 são ingênuas. Em relação à situa-
ção conjugal, encontramos 137 (32,7%) casados, 71 homens e 67 mulheres, Casaram em 1872
138 (33%) solteiros, entre eles 96 homens e 42 mulheres. Os viúvos eram de Leonardo Clementina Delminda Adão 1872
número 24 e representavam 5,7% do plantel, e as mães solteiras 10 (2,3%).
Ao procurar os núcleos familiares cativos do plantel de Maria Joaquina
para o ano de 1882, achamos 80 famílias cativas. Destas, 16 são remanes- Joaquim Vaz Lúcia
centes de 1854 e 32 já existiam em 1872. Portanto, nestes 10 anos que se pas-
1872 Gregório
saram, formaram-se mais 32 novas famílias. Ao focalizá-las, constatamos
que as mesmas foram ampliadas, havendo casos que se estenderam até a Martinho
terceira geração. Atentamos para alguns exemplos: 1882
Leonel

366 367
Outra família que se estendeu ao longo dos anos foi a de Thimóteo tivemos a possibilidade de compreender como se deu a dinâmica escravista
e sua esposa Joaquina, cuja união foi formalizada em 12 de setembro de empreendida por ele para sua escravaria.
1839, na capela da fazenda Boa Vista. Passados 15 anos, o casal é arrolado Através da documentação analisada, percorremos 28 anos desta escra-
no inventário do comendador Luciano juntamente com suas duas filhas: varia, percebendo as mudanças demográficas condicionadas pelas trans-
Clementina e Delminda. Para 1872, Delminda aparece já casada com Adão. formações econômicas, políticas e sociais advindas da década de 1850,
O interessante é que os pais do cônjuge, Antonio e Felicia, também per- assim como as relações sociais que se deram entre senhor e escravo. Neste
tencem ao plantel. A outra filha, Clementina, contraiu matrimônio com universo de senhores e escravos, encontramos homens e mulheres prota-
Leonardo neste mesmo ano. Os pais de Leonardo, o casal José Martins e gonizando suas histórias, mergulhadas nas mais complexas redes de rela-
Constança, tiveram também Lúcia que aparece casada com Joaquim Vaz ções sociais, dentre elas: a família. Considerando a amostragem total de
e possuindo o filho Gregório. Finalmente, em 1882, o casal José Martins e famílias escravas no plantel do comendador Luciano de Almeida, conse-
Constança, unidos a quase três décadas, tornam-se avós pela segunda vez guimos reconstituir os laços familiares de uma porcentagem significativa
quando Lúcia dá à luz a dois filhos: Martinho e Leonel. No mesmo ano, dos escravos analisados. As crianças, em geral, tinham maior porcentagem
encontramos também juntos os casais Leonardo e Clementina, Joaquim e de inserção em famílias do que homens e mulheres adultas. Entre estes, as
Lúcia. Adão aparece viúvo. mulheres tiveram maiores descrições de laços familiares que os homens.
A família descrita acima é um exemplo significativo da existência de Foi mais fácil reconhecer algum parentesco por parte das mulheres, pois
redes familiares nos plantéis e de sua estabilidade. A família que se iniciou elas apareciam na condição de mães muito mais vezes que os homens na
em 1839 interligou três núcleos do plantel em 1854 com a união de seus filhos, condição de pais. Além disso, verificamos uma significativa presença de
traduzindo-se, assim, numa família extensa com quinze integrantes que se mães solteiras no plantel do comendador.
prolongou por três gerações. Mas outros casos existiram. No total foram 23 Como procuramos demonstrar, havia uma relação entre o tamanho
famílias, que se iniciaram em 1854 ou antes através de casamentos legítimos, do plantel e o estabelecimento de laços familiares cativos. Percebemos
e se ampliaram ao longo dos 28 anos que separam os inventários pesqui- neste mega plantel a maximização destes laços, que por vezes se estendeu
sados. Dentre as famílias que se mantiveram por tempo significativo, vale até a terceira geração como a família iniciada por Thimóteo e sua esposa
citar ainda César e Isidora. Casados em 1855 na capela da fazenda Boa Vista, Joaquina. Nesse sentido, pode-se confirmar que nem a morte do comen-
possuíam uma filha chamada Mariana, em 1872, e, em 1882, ainda estavam dador Luciano José de Almeida e nem a divisão de seus bens entre os seus
unidos. Entre eles, o que chama a atenção é o fato de que Rosalia, mãe de herdeiros significou necessariamente o rompimento destes laços familiares.
César, estava livre em 1872 e os pais de César e Isidora pertenciam a outros Verificamos que mais da metade das famílias escravas passaram intactas
senhores que não o comendador Luciano e sua esposa. Demonstrando que, pelo momento da partilha, e as famílias que não permaneceram totalmente
a extensão da família também podia ocorrer para fora do plantel. unidas após este momento, na maioria das vezes, tiveram apenas um fami-
liar separado. De muitas formas, a família escrava pode sobreviver à divi-
conclusão são de bens e encontrou estabilidade, o que ficou patente ao analisarmos
o tempo de permanência juntos. Encontramos famílias que se formaram
O presente artigo estudou as relações familiares dos escravos em Bananal, antes de 1854 e permaneceram nesta condição por mais de vinte anos ainda
Vale do Paraíba paulista, entre 1854 e 1882, procurando compreender a sob a administração da esposa do comendador, Maria Joaquina de Almeida.
dinâmica da agência escrava através da constituição de redes de sociabili- Outra conclusão importante é que família escrava já começava a se for-
dade e de práticas visando a melhoria de suas condições sociais. Para tanto, mar no mesmo momento em que o plantel estava se constituindo por volta
analisamos um dos maiores plantéis de escravos da região, o do comen- da década de 1830, fato percebido nos registros de casamentos escravos
dador Luciano José de Almeida, composto por 816 escravos. Desta forma,

368 369
onde, numa cerimônia coletiva, seis casais contraíram matrimônio em 1836. O espaço disciplinar escravista das fazendas
Ao longo destes 28 anos, a possibilidade de se constituir famílias tornou-
se mais segura para os cativos, principalmente após a promulgação da Lei
cafeeiras e a resistência escrava:
de 1869, que proibia a separação das mesmas. Esta lei assegurou à família Vale do Paraíba, século XIX
escrava o convívio permanente com seus familiares, garantindo-lhes um
futuro sem ameaças de novas divisões familiares. Marco Aurélio dos Santos

As formas de controle e as ações de resistência dos escravos são dois temas


correlatos e cruciais para a historiografia sobre a escravidão. Com base em
inúmeras fontes documentais, especialmente os processos criminais, os
periódicos, os Relatórios da presidência de província, entre outras, histo-
riadores perscrutam, sob diferentes perspectivas, a importância daqueles
dois assuntos. No Brasil, esses temas verificaram um grande salto quali-
tativo a partir da década de 1980 quando diversos pesquisadores apresen-
taram novas interpretações para o estudo da escravidão no Brasil. Nesse
quadro, vários temas correlacionados surgiram, como, por exemplo, o da
roça escrava, o da família, o das irmandades, o do compadrio, desvendando
cada vez mais o cotidiano das relações escravistas.1
Para o caso específico dos momentos finais do Império do Brasil, os
pesquisadores que trabalharam com o abolicionismo e a crise da escravi-
dão foram de fundamental importância para se entender a derrocada do

1 A bibliografia a esse respeito é ampla e bastante diversificada. Dentre os autores que se poderia citar,
estão REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês (1835). São Paulo:
Brasiliense, 1986; REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia.
São Paulo: Brasiliense, 1989; GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e
comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006;
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro,
1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e
escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas: – 1830-1888. São Paulo: Brasiliense,
1987; MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista
– Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; SLENES, Robert W. Na senzala uma
flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil sudeste, século XIX. Rio de
janeiro: Nova Fronteira, 1999; WISSENBACH, Maria Cristina C. Sonhos africanos, vivências ladinas:
escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998.

370 371
Estado imperial e o papel da agência escrava no período entre 1871 a 1888. senhorial e também para as estratégias de resistência escrava. A leitura dos
No que tange aos estudos que focam o movimento abolicionista, podem-se processos criminais ajuda a entender o modo como senhores, prepostos e
destacar os trabalhos de Elciene Azevedo, Maria Helena Machado, Robert escravos usavam, de diferentes maneiras e com diferentes propósitos, os
Brent Toplin, Robert Conrad, Joseli Maria Nunes Mendonça e Jonas Marçal espaços das fazendas para realizar suas ações.
de Queiroz.2 A crise do Estado imperial e a crise da escravidão são dois Os usos dos espaços de plantação como uma ferramenta essencial das
processos concomitantes e muitos desses autores estudaram as implicações relações sociais escravistas vêm sendo objeto de estudo de diversos pesqui-
políticas do abolicionismo e dos movimentos sociais nas décadas finais do sadores.4 A análise dessa questão abre, assim, mais um campo para novas
Império do Brasil. Os estudos sobre o abolicionismo se preocuparam com leituras das fontes documentais comumente utilizadas pelos historiadores.
a agência escrava e abordaram aqueles dois processos a partir de diversas Desse modo, analiso o caso de uma importante fazenda cafeeira de Bananal,
perspectivas. Distingue-se, nesse grupo, o mestrado de Jonas Marçal de a fazenda do Resgate, e procuro entender como o uso do espaço material
Queiroz, que estudou a questão das disputas políticas na crise do Estado foi um fator crucial para o exercício do poder senhorial. Em contraposição,
imperial, nas décadas de 1870 e 1880. Essa distinção é necessária porque as estratégias de resistência dos escravos com base nos usos dos espaços de
poucos trabalhos procuraram analisar a crise do Estado imperial da pers- plantação são vistas em basicamente duas ocasiões: em um processo crimi-
pectiva das lutas políticas e do esfacelamento do que se convencionou nal de outra fazenda cafeeira de destaque, a fazenda dos Coqueiros, e nos
denominar de “classe senhorial”. Nesse período, a politização da rebeldia casos de furtos de café.
escrava ganhou uma dimensão até então pouco conhecida na história do A agricultura cafeeiro-escravista prosperou com força em Bananal
Império do Brasil.3 desde os princípios do século XIX. Esse desenvolvimento foi parte de um
Considerando os avanços das últimas três décadas nos estudos sobre processo mais amplo de revigoramento da escravidão nas Américas, espe-
a escravidão brasileira, quando muitos pesquisadores utilizaram-se da cialmente nos Estados Unidos e em Cuba além, é claro, do Brasil.5
categoria “comunidades de senzalas” e de outras que estão a ela atreladas –
como as categorias de “autonomia”, “solidariedade”, “redes de solidariedade” 4 Ver a esse respeito os estudos de Theresa A. Singleton e de William C. Van Norman Jr. para os
cafezais cubanos e de James A. Delle para os da Jamaica. NORMAN JR., William C. Van. Shade-
– gostaria de propor, neste artigo, uma discussão a respeito de novas pos- grown Slavery: the lives of slaves on coffee plantations in Cuba. Nashville: Vanderbilt University
sibilidades de abordagens para as fontes que, comumente, os historiadores Press, 2013. Ver especialmente o capítulo 3, “Space is the place: intentions and subversion of
design”; SINGLETON, Theresa A. Slavery and Spatial Dialectics on Cuban Coffee Plantations.
usam para entender a escravidão no Brasil. Tomando como base os proces- World Archaeology, York, v. 33, n. 1, p. 98-114, 2001; DELLE, James A. An Archaeology of Social Space:
sos criminais de Bananal para o período de 1850 a 1888 e partindo do par de analyzing coffee plantations in Jamaica’s Blue Mountains. New York: Plenum Press, 1998. Para a
conceitos “controle/resistência”, pretendo discutir os usos do espaço agrá- escravidão nos Estados Unidos, destacam-se os trabalhos de Stephanie Camp e Anthony Kaye.
CAMP, Stephanie M. H. “I could not stay there”: enslaved women, truancy and the geography of
rio como um dos elementos centrais para os mecanismos de dominação everyday forms of resistance in the antebellum plantation south. Slavery & Abolition, London, v. 23,
n. 3, p. 1-20, 2002; Id. Closer to freedom: enslaved women and everyday resistance in the plantation
2 AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo. South. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2004; KAYE, Anhony E. Joining places:
Campinas: Ed. Unicamp, 2010; CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850- slave neighborhoods in the Old South. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2007.
1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978; MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico: Em seu estudo, Stephanie Camp escreve a respeito dos usos alternativos que os escravos faziam do
os movimentos sociais na década da Abolição. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994; MENDONÇA, Joseli espaço de plantação (“alternative mapping of plantation space” e “alternative ways of knowing and
Maria Nunes. Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. using plantation space” são as expresses usadas pela autora). James A. Delle definiu nesses termos
Campinas: Ed. Unicamp, 2008; QUEIROZ, Jonas Marçal de. Da senzala à República: tensões sociais o “espaço alternativo”: “alternative space will be defined, proactively and in direct resistance to the
e disputas partidárias em São Paulo (1869-1889). 1995. 524 f. Dissertação (Mestrado em História) – spatial definitions imposed by elites”. DELLE, op. cit., p. 3
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1995. 2v; 5 TOMICH, Dale. The “Second Slavery”: bonded labor and the transformations of the Nineteenth-
TOPLIN, Robert Brent. The abolition of slavery in Brazil. New York: Atheneum, 1975. Century world economy. In: ___. Through the Prism of Slavery: labor, capital, and world economy.
3 Além do trabalho citado de Jonas Marçal de Queiroz, ver VITORINO, Artur José Renda; SOUSA, Boulder: Rowman & Littlefield, 2004. p. 56-71. Ver também as considerações metodológicas sobre
Eliana Cristina Batista de. “O pássaro e a sombra”: instrumentalização das revoltas escravas pelos história comparada em ZEUSKE, Michael. Comparing or interlinking? Economic comparisons of
partidos políticos na província de São Paulo nas últimas décadas da escravidão. Estudos Históricos, early nineteenth slave systems in the Americas in historical perspective. In: DAL LAGO, Enrico;
Rio de Janeiro, v. 21, n. 42, p. 303-322, jul.-dez. de 2008. KATSARU, Constantina. Slave Systems: ancient and modern. Cambridge: Cambridge University

372 373
Em seu apogeu, a partir de 1850, uma das características marcantes de autor, apropriação social refere-se à intervenção do homem no meio físico,
Bananal foi a significativa concentração da propriedade escrava, da pro- modelando-o e dando forma a este meio, “segundo propósitos e normas
priedade da terra e dos cafezais nas mãos de escravistas com 100 ou mais culturais”. O conceito de cultura material abrange, assim, “artefatos, estru-
cativos. De acordo com a pesquisa de Breno Aparecido Servidone Moreno, turas, modificações da paisagem” e também “coisas animadas (uma sebe,
os números da década de 1850, período em que Bananal se tornou o maior um animal doméstico), e, também, o próprio corpo, na medida em que ele
produtor de café da província de São Paulo, mostram que os proprietários é passível desse tipo de manipulação (deformações, mutilações, sinalações)
com 100 ou mais escravos concentravam 83,7% da área ocupada do muni- ou, ainda, os seus arranjos espaciais (um desfile militar, uma cerimônia
cípio. Além disso, esses mesmos escravistas tinham 75,8% dos pés de café litúrgica)”. A cultura material, continua Ulpiano, deve ser situada “como
plantados e 70,2% dos escravos. Apesar da pesquisa de Breno Moreno ter suporte material, físico, imediatamente concreto, da produção e reprodu-
abrangido os inventários post mortem do período entre 1830 e 1859, não há ção da vida social”.9 Marcelo Rede também formulou uma definição muito
razão para desconfiar que essa tendência para a concentração da riqueza próxima da de Ulpiano Meneses. Para ele, os “segmentos do universo físico
tenha se revertido significativamente nas duas décadas seguintes.6 A docu- culturalmente apropriado” pelos homens estariam relacionados à categoria
mentação que dá suporte a esse artigo trata, portanto, de um município de cultura material.10 Para Rede, “o universo material não se situa fora do
exemplar para o entendimento da produção de café com base no trabalho fenômeno social, emoldurando-o, sustentando-o. Ao contrário, faz parte
escravo. Contudo, as considerações feitas a seguir podem ser generalizadas dele, como uma de suas dimensões e compartilhando de sua natureza, tal
para outros importantes municípios cafeeiros do Vale do Paraíba. como as ideias, as relações sociais, as instituições”.11
Para além das discussões historiográficas a respeito da definição de “cul-
o “espaço disciplinar”7 escravista e a resistência escrava tura material”, Ulpiano Meneses e Marcelo Rede apresentam definições que
servem de ponto de partida para se trabalhar com a noção de espaço material
A importância de se considerar o espaço como um componente presente – especialmente o das fazendas cafeeiras do Vale do Paraíba, objeto de análise
nas relações sociais escravistas encontra-se no fato de que é possível, desse do presente artigo – como um componente da cultura material. Porque, para
modo, “ver” os sujeitos e suas movimentações e estratégias de poder e de ambos, não há cultura, relações sociais e de poder sem materialidade.
sobrevivência. Como informa Jean-Marie Pesez, a história da cultura mate- Considerar o espaço como um componente que os escravos levavam
rial (e o espaço está inserido na cultura material) “apresenta o interesse de em conta significa entender como eles questionavam e resistiam à opressão
reintroduzir o homem na história, por intermédio da vivência material”.8 vivida cotidianamente. No âmbito de diversas grandes fazendas cafeeiras do
Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses definiu a cultura material como o “seg- Vale do Paraíba, o desejo de organizar o trabalho dos escravos engendrou
mento do meio físico que é socialmente apropriado pelo homem”. Para esse um espaço disciplinar que foi caracterizado, dentre outras medidas, pela
Press, 2008. p. 148-183. Sobre o desenvolvimento da agricultura do café em Bananal no início do solução em quadra dos edifícios construídos. A disposição em quadra foi
século XIX, ver MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família um dos investimentos senhoriais que, segundo Marcos José Carrilho, aten-
escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: Fapesp: Annablume, 1999.
deu à “necessidade de controle sobre as atividades no interior do quadro”,
6 MORENO, Breno A. S. Demografia e trabalho escravo nas propriedades rurais cafeeiras de Bananal,
1830-1860. 2013. 270 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e especialmente no terreiro de secar café. Portanto, era uma disposição que
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. p. 149-153. Para dados semelhantes
sobre o município cafeeiro de Vassouras, ver SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo: Vassouras,
século XI – senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
7 O conceito de “espaço disciplinar” foi desenvolvido por Michel Foucault. Ver FOUCAULT, Michel. 9 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A cultura material no estudo das sociedades antigas. Revista de
Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 123. História, São Paulo: Edusp, n. 115, p. 103-117, jul.-dez. 1983.
8 PESEZ, Jean-Marie. História da cultura material. In: LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo: 10 REDE, Marcelo. História a partir das coisas: tendências recentes nos estudos de cultura material.
Martins Fontes, 1995. p. 210. Ver as considerações a respeito da cultura material e suas implicações Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 265-282, jan.-dez., 1996.
espaciais em DELLE, 1998, p. 23-43. 11 Ibid., p. 274.

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procurava responder às exigências da produção do café.12 Conforme obser- uma engenharia bastante complexa para viabilizar o processo de humaniza-
vou Eloy de Andrade, para a escolha do local de construção dos edifícios da ção da paisagem e de modificação do meio ambiente.
fazenda, várias exigências deveriam ser atendidas. Além da “proximidade de Em seu trabalho sobre o café no Vale do Paraíba, Stanley Stein já havia
um córrego de bom volume” para movimentar o monjolo, o moinho de fubá sublinhado o caráter funcional desse arranjo arquitetônico. Segundo Stein,
e os pilões para o descascamento do café, o local deveria permitir a constru- “as primitivas fazendas, assim como as mais recentes, eram projetadas em
ção de caminhos para o acesso à estrada mais próxima e também o terreno quadriláteros funcionais”. E ainda: “ao redor do quadrilátero se alinhavam
escolhido deveria apresentar “o aspecto de um largo tabuleiro” de modo que as senzalas, as tulhas e os armazéns; os paióis, os ranchos de tropas; as estre-
existisse “espaço suficiente para, com largueza, conter, além da principal, barias e os chiqueiros”.16 Esse arranjo espacial, sem dúvida, generalizou-se
todas as edificações subsidiárias: paiol, tulhas, engenho, senzalas, currais, em diversas fazendas cafeeiras do sudeste.
chiqueiros de porcos e, principalmente, os terreiros para a seca do café”.13 No caso dessas propriedades com seus “quadriláteros funcionais”, a cir-
Tal disposição do espaço material próxima à casa-grande e com o terreiro culação, aliada ao uso do espaço material das fazendas cafeeiras, poderia
como lócus centralizador foi também resultado da necessidade de se realizar provocar conflitos, como demonstra um incidente ocorrido na fazenda do
a vigilância e a fiscalização sobre os trabalhos dos escravos. As construções Resgate no ano de 1883, quando foi assassinado o administrador Antonio
eram feitas em torno do terreiro, que organizava os edifícios construídos. Rodrigues de Castro.17 O caso em questão mostra como foi funcional a dis-
Como salientou Marquese, a quadra tinha como característica o iso- posição dos edifícios em quadra dessa grande propriedade rural e demons-
lamento “garantido por meio de sua disposição retangular, pelos compar- tra que o uso do portão foi um instrumento de controle e referencial impor-
timentos de habitação dos cativos que se comunicavam apenas com o ter- tante nas fazendas cafeeiras de grande porte. Tal episódio evidencia como
reiro, pela inexistência de janelas, pelos muros altos ou cercas em balaústres a organização dos espaços de plantação, especialmente dos edifícios ao
e pela entrada única fechada com portão”.14 Para Marcos José Carrilho, redor do terreiro, foi uma ferramenta de poder que facilitava a disciplina,
houve dois tipos básicos de arranjos em quadro. O primeiro deles pode ser o controle e a dominação sobre o conjunto dos trabalhadores escravizados.
chamado de simétrico. Nesse tipo, foi adotado “um esquema muito regular Contudo, tal organização não foi isenta de conflitos, demonstrando que o
que, situado, em geral, em terrenos mais propícios ao exercício formal, é ideal da “perfeita ordem”, do “trabalho intenso” e da “produção e riqueza
constituído de um quadro muito bem alinhado em que a distribuição das senhoriais” produziram em muitos momentos tensões e mortes.18
partes está perfeitamente ordenada”. Nas fazendas assim construídas, a casa
de vivenda senhorial ocupou lugar de destaque “no centro de uma compo-
16 STEIN, Stanley J. Grandeza e decadência do café no Vale do Paraíba – com referência especial ao
sição cujas massas se distribuem de maneira rigorosamente simétrica”. O município de Vassouras. São Paulo: Brasiliense, 1961. p. 26.
outro arranjo, denominado de assimétrico, “talvez como resultado de terre- 17 Sobre a fazenda Resgate ver CASTRO, Hebe Maria Mattos de; SCHNOOR, Eduardo. Resgate: uma
nos mais adversos e da exigência incontornável de viabilizar o vasto terra- janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995; MARQUESE, Rafael de Bivar. O Vale do
Paraíba cafeeiro e o regime visual da Segunda Escravidão: o caso da fazenda Resgate. Anais do
pleno do terreiro, a residência, embora se conserve em posição de destaque, Museu Paulista, v. 18, n. 1, p. 83-128, jan.-jun 2010.
na maioria das vezes comparece deslocada em relação ao eixo da composi- 18 Conforme se expressou Eloy de Andrade, em seu livro de memórias sobre o Vale do Paraíba
ção”.15 Não se pode desconsiderar que tais investimentos foram resultado de fluminense. Esse memorialista descreveu em que medida o controle e a fiscalização aconteciam
e indicou que faziam parte das preocupações senhoriais a organização planejada dos espaços das
12 CARRILHO. Marcos José. As fazendas de café do Caminho Novo da Piedade. 1994. 166 f. Dissertação fazendas e a atenção com a circulação dos escravos. Escreveu ainda que o duro trabalho dos escravos
(Mestrado em Arquitetura) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, na lavoura caracterizava-se pela “perfeita ordem”, pelo “trabalho intenso” e pela “produção e riqueza
São Paulo, 1994. p. 125. senhoriais”. Essa descrição revela o controle que se exerceu sobre os cativos. Para Andrade, “tudo
estava antecipadamente previsto e calculado”, e pode-se compreender facilmente “como deveria
13 ANDRADE, Eloy de. O Vale do Paraíba. Rio de Janeiro: Real Gráfica, 1989. p. 47.
ser produtivo esse trabalho contínuo, metódico, bem feito... um milhão de braços a produzir sob o
14 MARQUESE, Rafael de Bivar. Moradia escrava na era do tráfico ilegal: senzalas rurais no Brasil e em regime de uma disciplina mais severa do que a militar”. Eloy de Andrade enfatizou ainda o trabalho
Cuba, c. 1830-1860. Anais do Museu Paulista, v. 13, n. 2, p. 165-188, jul.-dez. 2005. dos escravos e a intervenção na paisagem daí decorrente, com as modificações que deveriam se
15 CARRILHO, op. cit., p. 124. ajustar aos trabalhos agrícolas. As relações que se estabeleciam entre os homens e a paisagem

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Os diversos testemunhos colhidos durante o processo criminal em o momento de se levantar. Nota-se também uma hierarquia na fazenda de
questão comprovam uma série de medidas de contenção e controle da café, com os feitores submetidos às ordens do administrador. Observa-se,
escravaria e direcionam o entendimento para a importância da dimensão ainda, que a senzala era o espaço em que os escravos guardavam perten-
espacial nas relações sociais escravistas. Segundo o depoimento do escravo ces que muitas vezes eram ilícitos, como facas e pistolas. Por fim, nota-se
ferreiro Sebastião, acusado de assassinar o administrador, os cativos pre- que os escravos tinham espaços reservados dentro das senzalas.20 Por fim,
cisavam de autorização para se locomover para fora da fazenda. Sebastião o depoimento revela também a importância da disposição em quadra dos
afirmou que no domingo, dia 25 de fevereiro, “seriam cinco horas da tarde edifícios de uma fazenda para que se pudesse efetivar o controle da escra-
mais ou menos, quando ele respondente pediu licença a Castro para ir a varia. Quando perguntado se, além de não ter comparecido “a hora própria
uma venda no Campo da Fazenda a fim de comprar toucinho e açúcar, para no dia antecedente ao do conflito”, o escravo Sebastião não cometera outra
[a] família dele acusado, que nesse dia tinha ainda jantado, ao que Castro falta, o feitor Antonio disse que Sebastião “nem uma outra falta cometera,
acedeu, mas logo que ele respondente seguiu para a venda, Castro fechou a não ser a do dia antecedente chegar tarde à Fazenda, depois de estar o
o portão da Fazenda”. Nesse depoimento, além da necessidade de solicitar portão fechado e os escravos recolhidos”.
a autorização para sair, nota-se algo recorrente na sociedade escravista que Como se viu, o depoimento acima refere-se ao assassinato do admi-
estamos estudando: a locomoção dos escravos para realizar negócios. A nistrador da fazenda do Resgate, Antonio Rodrigues de Castro, ocorrido
“venda no Campo da Fazenda” também indica a função dos homens livres na manhã de segunda feira do dia 26 de fevereiro de 1883. O depoimento
e de seus negócios dentro das terras senhoriais: se os escravos precisassem de Antonio mostra como a questão do espaço (“viu o administrador abrir
comprar mantimentos, não precisariam ir para lugares mais afastados ou o portão da fazenda”) e do tempo (“não comparecendo a hora própria” ou
para o centro da cidade. No caso em foco, é preciso atentar para a importân- “chegar tarde à Fazenda”) foram dois elementos fundamentais para o con-
cia do portão como um elemento que sinaliza o fim de um dia de trabalho. trole dos escravos. O espaço e o tempo constituem-se como dois elementos
O fechamento do portão foi o estopim para a ocorrência de um conflito. da “mecânica do poder”21 senhorial e expressam de modo inequívoco como
Também deve-se notar, no depoimento do acusado, o fato de ele ter pedido tal poder funcionou. O portão foi mencionado nos depoimentos de diversas
autorização para sair em um domingo, dia de maior mobilidade para os testemunhas como uma referência espacial significativa. O administrador
escravos. O horário mencionado por Sebastião – cinco horas da tarde – fechou o portão e depois teve de abri-lo para que Sebastião entrasse na sua
devia ser um momento próximo para recolher os escravos às senzalas.19 senzala. Tal fato provocou o incidente que levaria ao assassinato de Castro
Em depoimento prestado no dia 12 de março de 1883, o escravo Antonio, no dia seguinte, uma segunda feira, após o administrador ordenar a outros
feitor da fazenda do Resgate, apresentou uma boa síntese da experiência escravos que prendessem Sebastião para que ele pudesse ser punido pela
cotidiana dos escravos. Esse escravo disse que “[...] na noite do dia anterior sua “falta” cometida no dia anterior. Fechar o portão significava encerrar as
[25 de fevereiro] ao dia do conflito ele testemunha viu o administrador abrir atividades de trabalho da fazenda. A suposta afronta de Sebastião foi chegar
o portão da fazenda e entrar batendo boca com o acusado Sebastião [...]”. após o fechamento do portão – desrespeito à “temporalidade senhorial” – e
Esse depoimento informa que, em uma fazenda de café, o dia de trabalho ter obrigado o administrador a abri-lo. O portão seria a porta de entrada e
começava cedo, por volta das quatro horas da manhã, e o sino anunciava saída dos trabalhadores do quadro da fazenda e, como consequência, o meio
utilizado para controlar a escravaria e inibir possíveis desvios dos cativos.
tinham um objetivo final: a riqueza. Para conseguir alcançar tal intento, seriam necessários ordem,
O fechamento do quadro no final de um dia de trabalho seria o momento
trabalho e produção. ANDRADE, 1989, p. 96-98.
19 O presente processo criminal e os demais usados neste artigo encontram-se arquivados no Museu
para dispor os escravos em seus locais, evitar o trânsito não autorizado
Histórico e Pedagógico Major Dias Novais (doravante MMN), localizado em Cruzeiro, Estado de
São Paulo. Ver MMN/ Caixa 47/ nº de ordem 987. Pode-se levantar a hipótese de que esse controle do 20 Em alguns depoimentos do referido processo, lê-se que os escravos se referem ao seu próprio
horário, em um domingo, estivesse relacionado com o momento histórico de radicalização e de crise quarto, ou seu próprio aposento.
da escravidão. 21 Sobre a expressão “mecânica do poder”, ver FOUCAULT, 1987, p. 119.

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dos trabalhadores, estabelecer, enfim, o controle do movimento e verifi- importante e facilitador para o disciplinamento desejado pelos senhores.
car as presenças e as ausências. Seria a prática visível no espaço material da No mesmo processo que envolve o escravo Sebastião, Clemente, prestando
fazenda do funcionamento do poder senhorial sobre o conjunto da escrava- depoimento como informante, declarou que no dia do assassinato o feitor
ria. Contudo, como se pode observar pelo depoimento do escravo Antonio, da fazenda, chamado Antonio Ignácio, “tendo gritado à gente que estava
o funcionamento desse disciplinamento nunca esteve isento de conflitos. embolado dentro do quadrado para se formar na frente do sobrado, como
Segundo depoimento de várias testemunhas do processo em questão, o é de costume, neste ato chegou o administrador Antônio Rodrigues Castro
quadro da fazenda e o portão eram referências importantes, demonstrando [...]”. Esse trecho é mais um bom exemplo da funcionalidade da disposição
que esse arranjo do espaço material da fazenda do Resgate foi um fator de em quadra dos edifícios da fazenda. Tal organização fazia do terreiro um
referência para as atividades cotidianas de escravos e prepostos. Por exemplo, espaço importante não somente para o processo de secagem dos grãos do
em 27 de fevereiro, Antonio Ignácio, com cerca de 40 anos de idade, feitor café. Essa disposição, além de atender às exigências de vigilância e controle,
escravo da fazenda, disse que no dia do incidente o administrador tocou o facilitava a organização da mão de obra no início de um dia de trabalho.
sino e abriu “o portão do quadro”. Antonio Ignácio foi, então, “receber as Na passagem acima, tal disposição permitiu que, após o grito do feitor, os
ordens do mesmo [administrador], [e] lhe foi ordenado pelo dito adminis- escravos, que saíam embolados no quadro logo após acordarem, pudessem
trador que segurasse o mulato Sebastião ferreiro, ele informante o procu- “se formar na frente do sobrado, como é de costume”. Devemos sublinhar,
rando no quadro, entre os outros escravos que ali ainda se achavam, não portanto, o caráter funcional do quadrilátero, tal qual salientou Stanley J.
o viu, porque o mesmo se achava junto a um portão, e chamando-o pelo Stein. Evidentemente, as exigências de disciplinamento eram mais facil-
nome, o mesmo apresentou-se e disse que ninguém lhe chegasse, porque mente atingidas com tal disposição do espaço material.
já estava desconfiado de ser preso”. Em outro depoimento, de 12 de março, O espaço disciplinar de uma fazenda cafeeira demonstra claramente que
José Joaquim da Cunha, de 35 anos, carpinteiro, informou que estava “ainda a disposição em quadra dos edifícios foi um elemento fundamental para a
deitado, em seu quarto fora do quadro”, quando “ouviu gritos de Antonio organização da escravaria no início das atividades diárias de trabalho. Seria
Rodrigues de Castro, administrador da Fazenda do Resgate gritando por ele muito natural supor que após o toque do sino os escravos, acabando de acor-
testemunha – que o acudisse que estava morto, e levantando-se ele testemu- dar e procurando cumprir exigências de tempo, saíssem das senzalas “embo-
nha incontinenti e indo ao encontro de Castro chegou ao portão da senzala lados”, conforme se expressou o escravo Clemente. A funcionalidade do qua-
e aí soube que Castro já se achava em seu quarto, para onde fora conduzido dro permitiria facilmente que, com um grito, os escravos entrassem em forma
por dois pretos da fazenda”. Note-se que, segundo o feitor Antonio, “o acu- “na frente do sobrado”. Aliado a essa funcionalidade, verifica-se que a rotini-
sado nem uma outra falta cometera, a não ser a do dia antecedente”, que zação das atividades diárias, expressa pela utilização da expressão “como é de
foi “chegar tarde à Fazenda, depois de estar o portão fechado e os escravos costume”, implica também em uma forma de controle e, portanto, de disci-
recolhidos”. Chama a atenção nos depoimentos acima a associação próxima plinamento da escravaria. A rotina acaba se tornando um recurso do poder
entre o portão e o quadro. Falar do quadro significava, automaticamente, disciplinar porque permitia ao poder senhorial a formulação de um princípio
mencionar o portão. Essas duas referências revestiram-se de uma forte carga de saber sobre a escravaria. “Como é de costume” o sino tocava, “como é de
simbólica. Sem dúvida esses dois componentes das grandes fazendas cafeei- costume” os escravos deviam estar em forma na frente do sobrado, “como é
ras do Vale do Paraíba, exemplificado aqui com o caso da fazenda Resgate, de costume” os escravos deviam receber as instruções diárias e partir para
manifestaram-se de modo inequívoco os desígnios de controle dos senhores os trabalhos, “como é de costume” eles deviam voltar antes do fechamento
sobre a escravaria. Esse arranjo espacial que vincula o quadro ao portão pode do quadro etc. O costume pressupunha rotina que, por sua vez, acabava se
ser visualizado em inúmeras outras fazendas do sudeste cafeeiro. tornando um instrumento de saber – o senhor, o administrador ou os feitores
Como se vê, no cotidiano das relações entre homens livres e escra- deveriam saber onde o escravo tinha de estar, o que ele deveria estar fazendo
vos, o espaço material das fazendas cafeeiras poderia cumprir um papel

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etc. Não se pode desconsiderar o caráter disciplinar da rotinização das ativi- um desrespeito a uma norma senhorial e o administrador da fazenda do
dades realizadas cotidianamente pelos escravos. Resgate foi vítima das tensões que poderiam ocorrer com o cumprimento
Deve-se sublinhar, ainda, que essa foi uma prática social referendada rigoroso das normas senhoriais de contenção.
pela legislação. O artigo 68 do Regulamento de n° 120 de 31 de janeiro de O caso acima citado é um exemplo de como os controles realizados por
1842 – aquele que regulava a execução da parte policial e da parte criminal feitores, administradores e senhores sobre a mobilidade e o corpo dos cati-
da Lei n° 261 de 3 de dezembro de 1841 – previa que não era necessário apre- vos foram elementos importantes para as relações de poder em sociedades
sentar passaporte em três situações: se a autoridade de um lugar conhecer o escravistas. Por isso, é possível pensar que o caso de Sebastião remete dire-
viajante, seja ele livre ou escravo; se o viajante for conhecido de duas pessoas tamente para a configuração de um espaço disciplinar escravista típico de
“de conceito” do lugar e for abonado por eles, e, por fim, quando o trân- muitas grandes fazendas cafeeiras do Vale do Paraíba do século XIX. Sendo
sito for “habitual e frequente de umas fazendas para outras, e destas para assim, pode-se entender que os escravos agiam em relação a uma geografia
as povoações, e de umas povoações para outra, que mantenham relações construída pelos senhores que estava inscrita na arquitetura das grandes
frequentes”. Como se vê, a legislação sancionava o costume de se movimen- fazendas e na paisagem rural com a disposição dos edifícios em quadra;
tar de um lugar para outro, não prevendo a suspeição e nem admitindo a com a centralidade dos terreiros; com a paisagem agrária dos morros de
interferência de autoridades, caso esse trânsito fosse “habitual e frequente”.22 pés de café plantados em linha, formando corredores que facilitavam a fis-
Vislumbra-se aqui como a disposição dos edifícios das fazendas de café calização do trabalho; com a aplicação cotidiana da ideia do cativeiro que
foi pensada para efetivar as exigências de controle e contenção da escravaria implicava promover o controle do espaço, do tempo e do movimento dos
e como ela colocou em prática as prerrogativas de um espaço disciplinar. A cativos; com a legislação que visava à repressão e ao controle da mobili-
concentração dos escravos em senzalas coletivas que davam para um “qua- dade (para citar um exemplo, as definições dos Códigos de Posturas dos
dro interior” facilitava, sem dúvida, a organização dos trabalhadores para Municípios); com os investimentos senhoriais sobre o corpo dos escravos
um novo dia de trabalho. (ferro ao pescoço, tronco etc.); com as reservas de mata virgem para garan-
A solução em quadra aproximou casa-grande e senzala. O caso de tir as futuras plantações; com o plano dos estabelecimentos construídos que
Sebastião demonstrou um dos aspectos da funcionalidade dessa disposi- procurava unir, sempre que possível, a adequação estética (espaço cogni-
ção arquitetônica, qual seja, a de promover o controle dos escravos de uma tivo) e as funções econômicas; com a disciplina de trabalho que fazia do eito
fazenda. Funcionalidade não isenta de tensões, como se pode observar do uma obra pensada e severamente organizada; por fim, com o governo dos
caso em foco. A perfeita ordem, o trabalho intenso e a produção e riqueza trabalhadores (livres ou não) no plano local – e mesmo nos planos regional
tinham como pressuposto o controle da mobilidade dos escravos. E tal con- e nacional – com vistas à manutenção da ordem.
trole necessitou de um espaço material determinado. Antonio Rodrigues Por outro lado, a leitura dos processos criminais permite entrever como
de Castro, o administrador da fazenda do Resgate, cumpriu, talvez com os escravos, em suas ações de resistência, usavam os espaços de plantação.
muito rigor e intolerância, uma prerrogativa senhorial inerente a uma O processo criminal envolvendo três escravos do major Candido Ribeiro
sociedade escravista: a de que os escravos deveriam ter sua mobilidade e Barbosa, rico proprietário da fazenda dos Coqueiros, em Bananal, demons-
seu tempo restringidos e controlados. Se não tivesse autorização, nenhum tra essa importância. No dia 4 de janeiro de 1863, um domingo, os escra-
escravo poderia voltar após o fechamento do portão. Ter voltado quando o vos Antonio José e Antonio Ferreira, em associação com o escravo Pedro,
quadrilátero estava fechado e os demais escravos já estavam recolhidos foi assassinaram Benedito Monjolo. Pedro e Benedito eram responsáveis por
vigiar os outros dois escravos, considerados fujões, que se encontravam
22 COLLEÇÃO das Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1842. t. 5, parte 2, trabalhando na roça de Benedito, localizada na Vargem Grande. Após o
seção 8, p. 54. Ver o artigo de Rafael Marquese sobre a fazenda do Resgate. Nesse artigo, o conceito
de “protocolos espaciais” remete diretamente à questão da rotina e da funcionalidade do quadro
assassinato, os três fugiram e pernoitaram no mato, no lugar denominado
como elementos facilitadores do controle e do comando da escravaria. MARQUESE, 2010, p. 97-99. Cedro. A partir daí, os escravos iniciaram uma ampla movimentação que

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desencadeou mais dois assassinatos: o de José Maria, no dia 7 de fevereiro, Quando chegaram às terras da fazenda dos Coqueiros, passaram a noite
e o de um “velho” chamado Antonio Rita, no dia 8. Também no processo e o dia seguinte em um rancho de seu senhor, no mato. José Maria teria
revelam-se duas outras ocorrências associadas à ação dos escravos Antonio sido assassinado em um sábado, quando os dois fugitivos o esperavam “na
José e Antonio Ferreira: a de Marcolino de Tal, que foi ferido com um tiro na beira do caminho junto a um cafezal”. No dia seguinte, bem cedo, os dois
mão, e o desejo desses dois escravos de retornarem à fazenda dos Coqueiros escravos planejaram “tomar algum destino, não desejando dar nas vistas, e
e assassinarem seu senhor.23 tendo andado um pouco encontraram-se com um velho”. Foi então que, por
Após o primeiro assassinato, os três escravos fugiram “atravessando receio de serem denunciados, Antonio Rita também foi assassinado.
uns cafezais” e Antonio José e Antonio Ferreira tiraram os ferros em um Após esses acontecimentos, mais uma movimentação impressionante
mato virgem. No dia 5 de janeiro, esses dois escravos retornaram à fazenda caracterizou a empreitada dos escravos Antonio José e Antonio Ferreira.
de seu senhor para tentar furtar “alguma roupa fina”. Como não conse- Eles se esconderam na mata perto da fazenda do major Henrique. À noite –
guiram alcançar o seu intento, partiram em direção a Barra Mansa e, no provavelmente no dia 9 de fevereiro –, ambos dirigiram-se à fazenda Bella
caminho para esse município, “[...] chegaram [à noite] à fazenda de Manuel Vista e procuraram pelo escravo Antonio Marange. Como esse demorou
Brandão além do Paraíba e a duas léguas pouco mais ou menos distante de para abrir e desconfiando da situação, ambos “saíram e passando pelo Rio
Barra Mansa”. Nesse local, combinaram de retornar para roubar uma besta Manso, chegaram à casa de Bentim [?] de madrugada”. Nesse local, Antonio
de seu senhor para venderem e conseguirem algum dinheiro. Antonio José Ferreira disse que Antonio José vendeu a faca que pertencia a José Maria. Os
e Antonio Ferreira retornaram de novo a Bananal, ficando à espera deles o dois então seguiram para Resende e pararam para comer e comprar “chumbo
cativo Pedro. Toda essa movimentação, conforme depoimento de Antonio grosso” em um local chamado Campinho. No dia seguinte, dirigiram-se ao
Ferreira, teria acontecido “no espaço de quatro dias”. Após roubarem a Campo Belo e “seguiram para a Província de Minas pela Estrada do Picú”.
besta, os dois escravos voltaram à fazenda de Brandão, que se localizava no Diversos elementos desse longo processo permitem relacionar resis-
município do Piraí, e aí abrigaram o animal. Nessa localidade, Antonio José tência e usos do espaço de plantação. Em primeiro lugar, nota-se a impres-
e Antonio Ferreira tentaram vender a besta para algumas pessoas, inclusive sionante movimentação desses fugitivos. Também chama a atenção a deno-
para o próprio Brandão. Depois de algumas tentativas fracassadas, os dois minação dos lugares, expressa no depoimento de Antonio Ferreira. De fato,
escravos retornaram uma vez mais à fazenda de Brandão para “levarem Antonio José e Antonio Ferreira conheciam muitos caminhos para além da
a besta” e, ao aproximarem-se, suspeitaram que havia alguma escolta no propriedade de seu senhor. A chegada dos dois escravos do major Candido
lugar. Antonio José recomendou então que Antonio Ferreira fosse “pegar a em Baependi, província de Minas Gerais, fez Hebe Mattos denominar esse
besta no campo” enquanto ele “ficaria no portão para impedir que saíssem tipo de evasão de “fugas ‘para dentro’” porque elas aconteciam não em dire-
para os prender”. Como a besta não “deixava pegar”, Antonio José foi aju- ção ao espaço urbano, mas no “sentido rural-rural”. Os fugitivos poderiam
dar seu parceiro e então “muitas pessoas” saíram atrás dos dois escravos do passar-se por homens livres e ter maiores possibilidades de conseguir um
major Candido. Após trocarem tiros (Antonio José encontrava-se armado) emprego temporário em propriedades rurais de outros municípios. Tal
os dois escravos fugiram e constataram que Pedro havia sido preso. forma de “assalariamento temporário” aconteceu em um momento em que
Foi então que, após esse incidente, os dois decidiram retornar mais crescia o número de não-brancos livres e a cor de pele estava deixando de
uma vez a Bananal, onde planejaram assassinar José Maria, camarada do ser elemento de suspeição e indicativo da condição escrava.24
major Candido e provavelmente o líder da emboscada acima descrita.
24 MATTOS, 1998, p. 43-44. Ver outros casos de escravos que procuravam trabalhar enquanto se
encontravam fugidos em GOMES, Flávio dos Santos. Jogando a rede, revendo as malhas: fugas e
23 Conforme depoimento do escravo Antônio Ferreira realizado no dia 9 de março de 1863. MMN, fugitivos no Brasil escravista. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, p. 67-93, abr. 1996. Nesse artigo, o autor
caixa 23, no de ordem 523. No processo criminal, não foi possível precisar a data em que Marcolino trabalha uma infinidade de estratégias usadas pelos escravos fugitivos. Para os propósitos deste
de Tal foi ferido. Esse incidente teria acontecido por volta do dia 20 de fevereiro, portanto após os artigo, é importante ressaltar a significativa movimentação desses dois escravos. Em seu depoimento,
assassinatos de José Maria e Antonio Rita. Antonio Ferreira informa, a certa altura, que ele e Antonio José pretendiam “tomar algum destino”.

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Também nota-se que a apreensão espacial feita pelos escravos em sua ações alternativas. Tais usos eram favorecidos, em muitos casos, pela fun-
vivência permitiu a eles utilizarem seus conhecimentos com o intuito de ção dos escravos no processo produtivo.
explorar os recursos disponíveis e os espaços e os tempos permitidos e proi- Em outros casos, as estratégias de resistência escrava também se pauta-
bidos. Um trecho do depoimento de Antonio Ferreira corrobora, de modo ram pelo cálculo e pelo conhecimento dos espaços e dos tempos permitidos
exemplar, esse entendimento. Esse escravo disse que Pedro havia manifes- e proibidos para a realização de determinada empresa. Casos de furtos de
tado a intenção de fugir e, aproximando-se de Antonio José, disse que café, problema enfrentado por diversos proprietários de escravos, podem
ser um bom exemplo.
se ambos estavam naquela prisão era porque queriam, e que se eles quisessem
ele lhes tiraria os ferros com um machadinho do feitor, a quem ele pediria a No final de junho de 1853, o major Candido Ribeiro Barbosa, o mesmo
pretexto de cortar com o mesmo com uns cabos de enxada, depois do que rico proprietário mencionado anteriormente, escreveu ao subdelegado do
fugiriam todos três, pois que querendo fugir e não sabendo destes caminhos 1° distrito reclamando contra o negociante Manoel Ferreira Gonçalves. Esse
por terra, queria aproveitar-se da companhia de Antonio José que os conhecia negociante teria comprado
perfeitamente.
uma porção de café a escravos do Suplicante tendo para este fim uma venda
É lícito considerar que Antonio Ferreira estivesse mentindo para ame- aberta no lugar denominado Cachoeirinha, contígua à Coqueiros, e para
nizar sua culpa no episódio. No entanto, a narrativa se dá em termos de o qual não impetrou licença da Câmara [dos Vereadores], e nem pagou os
verossimilhança e não pode ser desprezada. De acordo com esse depoi- Impostos nacionais, e provinciais, e Municipais.
mento, Pedro queria fugir e encontrou a alternativa de se associar aos escra- O major Candido escreveu ainda que não era possível calcular o pre-
vos presos porque um deles, Antonio José, conhecia “perfeitamente” os juízo do roubo cometido por seus escravos porque tais compras eram feitas
“caminhos por terra”. O emprego do advérbio no depoimento é fator crucial “a escravos à noite e a desoras, e o furto por eles praticado para ir vender
para entender as possibilidades de fuga de um escravo. Tal uso reforça, desse a tais compradores [era feito] em terreiros, e tulhas onde a porção de cafés
modo, uma situação real, qual seja, a necessidade que os escravos tinham contida não pode ser precisamente avaliada”.25 Para evitar este tipo de ação,
de conhecer caminhos para além da propriedade senhorial para que eles o comendador Antônio Barbosa da Silva, em 1851, ano de sua reclamação
pudessem aumentar as possibilidades de êxito em seus planos. No caso em a respeito dos furtos de café em sua propriedade e então rico proprietário
questão, a fuga de Pedro estaria facilitada pelos conhecimentos de Antonio da fazenda do Bom Retiro, mandava seus empregados fazerem rondas à
José dos caminhos por terra. Vale salientar outro componente facilitador da noite. Nesse caso, as rondas produziram o resultado esperado. Os escravos
fuga: Pedro era um escravo de roça e Antonio Ferreira um tropeiro, o que Manoel Bahia e João Mina, ambos pertencentes ao Comendador, foram
pode ser um elemento a mais para indicar que o primeiro conhecia menos flagrados pelos rondantes furtando café no “terreiro de secar que fica na
caminhos para além da propriedade de seu senhor do que o segundo. Os encruzilhada dos caminhos que seguem para as 3 Barras, Fazenda do Major
escravos, assim, consideravam o conhecimento que tinham dos espaços de Diniz, e para a Gloria, terreiro esse que se acha aberto , e por fechar [...]”. Os
plantação para suas estratégias de resistência e para a realização de suas dois escravos foram vistos vendendo café para Francisco de Paula Gavião e,
depois de descobertos, estariam a mercê da justiça privada de seu senhor.26
Este tipo de furto cometido “à noite e a desoras” por escravos foi narrado
Isso parece indicar que mesmo conhecendo muitos caminhos para além da propriedade senhorial
e abusando das movimentações alternativas, os dois escravos do major Candido não sabiam muito
por Stanley Stein através da perspectiva de um escravo:
bem para onde se dirigir. Eduardo Silva também trabalhou, com um sentido diferente do de Hebe
Mattos, com a categoria de “fugas para dentro”, além de outras como “fugas para fora”, “fugas-
Um antigo escravo contava de que maneira obtinha o café para vender na
reivindicatórias” e “fugas-rompimento”. Ver SILVA, Eduardo. Fugas, revoltas e quilombos: os limites taberna mais próxima. Depois de fechadas as portas da senzala ele trepava no
da negociação”. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 62-78. Esse conjunto de “fugas” aponta para a 25 MMN, caixa 8, no de ordem 238.
complexidade e para a diversidade de ações feitas pelos escravos em suas estratégias de resistências. 26 MMN, caixa 7, no de ordem 202.

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beiral onde eram colocadas as ferramentas, e retirava diversas telhas. Através truídos para salvaguardar os produtos em condições adequadas de conser-
do buraco assim aberto ele se esgueirava, conseguindo penetrar na tulha. Ali, vação. Espaços geralmente assoalhados, esses edifícios procuravam atender
abria um buraco no assoalho por onde retirava todo o café que podia car-
as exigências de preservação dos produtos aí depositados, com afastamento
regar num saco. Depois pulava o muro externo da sede, evitando a estrada
geralmente fiscalizada pelos rondantes, e alcançava a taberna. Se o fazendeiro do solo, boa ventilação e forramento com tábuas para evitar a umidade.30
suspicaz ou o feitor zeloso se apresentavam à porta da taberna, o taberneiro Como se vê com os processos criminais acima trabalhados, eram também
respondia com inocência “aqui não tem ninguém”. Em troca do saco de café o espaços que necessitavam de vigilância.
escravo recebia uma fração do seu valor em cachaça ou fumo.27 Diversos historiadores já notaram que os escravos furtavam seus senho-
Em setembro de 1864, Domingos José da Silva Monteiro disse que res e mantinham relações com os comerciantes nos municípios cafeeiros.
seus escravos chegaram a conseguir uma “chave falsa” com a qual “rou- Maria Helena P. T. Machado, por exemplo, viu na ação narrada por Stein
bavam cafés e mantimentos”.28 Na denúncia que fez contra José Antonio uma manifestação da “tenacidade dos escravos”, que tentavam “manter as
de Oliveira Guimarães, Monteiro disse que estava sentindo “desfalques pequenas margens de autonomia adquiridas através da apropriação de uma
em seus cafés colhidos e mantimentos”. Disse ainda que em Bananal esse parcela dos bens produzidos”.31
tipo de acontecimento é muito comum e que os escravos das fazendas são A autonomia dos escravos é enfatizada por essa autora como um dos ele-
“seduzidos por negociantes de estradas” que trocam, por sua vez, café rou- mentos da resistência à opressão em um regime de trabalho que se pautava
bado por uma “insignificante quantidade de fumo, aguardente ou açúcar”. pelas relações assimétricas de poder. Mas é possível entender tal ação a partir
Para Maria Joaquina de Almeida, mega proprietária de escravos e terras de de outra perspectiva. Uma perspectiva que não valorizaria exclusivamente a
Bananal, a “vizinhança” da fazenda da Cachoeira abrigava “especuladores autonomia dos escravos, mas o uso alternativo que eles faziam dos espaços
taberneiros” que aliciavam os seus escravos. Esses, por sua vez, furtavam de plantação. “Remontar a dinâmica dos furtos escravos significa resgatar
“às escondidas e alta noite” o café “colhido e depositado em os paióis”. O a história de senhores atribulados pela necessidade de aperfeiçoar constan-
café roubado iria parar nas “tabernas e imundas pocilgas” que circunda- temente as estratégias capazes de vencer a habilidade de improvisação dos
vam a referida fazenda. Tal procedimento era, segundo a reclamante, “um cativos, que, às dificuldades respondiam com criatividade” escreveu Maria
verdadeiro cancro da fortuna dos fazendeiros em geral”.29 O protesto dessa Helena P. T. Machado acerca dos furtos cometidos pelos cativos nas locali-
tradicional escravista, cognominada “a matriarca de Bananal”, revelava um dades de Campinas e Taubaté no século XIX.32 Se se considerar a dimensão
problema muito comum das localidades cafeeiras do sudeste: a vizinhança espacial na experiência dos escravos, o termo “improvisação” deve ser recon-
das grandes propriedades rurais não foi um local de coesão comunitária. siderado. Os furtos e a posterior comercialização em outros locais da cidade
Além disso, os exemplos citados mostram claramente que existiu uma luta ou em vendas próximas à fazenda não aconteciam de modo inteiramente
pelo controle e pela fiscalização dos espaços (no caso, as tulhas, os paióis e improvisado. O que se pode notar é uma ação dos escravos com base no
os terreiros) para que se pudesse conter a ação dos escravos e frear os inte-
30 CARRILHO, 1994, p. 74-75. BENINCASA, Vladimir. Fazendas paulistas: arquitetura rural no ciclo
resses dos “especuladores taberneiros”. As tulhas e os paióis eram espaços cafeeiro. 2007. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Escola de Engenharia de São
de armazenamento de café e gêneros alimentícios. Geralmente, eram cons- Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2007. 2 v, p. 34-36.
31 MACHADO, 1987, p. 106. Machado entende que o estudo da criminalidade permite ao historiador
27 STEIN, 1961, p. 205-206. entrever a luta dos escravos para preservar suas “margens de autonomia”. A “defesa da autonomia
28 MMN, caixa 23, n º de ordem 537. Conforme reclamação feita por Domingos José da Silva Monteiro escrava” se concretizava, para essa autora, “tanto por meios acomodativos – fugas, sabotagem do
contra José Antonio de Oliveira Guimarães. A petição do suplicante não está datada, mas foi escrita trabalho, ‘preguiça’ etc.” quanto poderia se expressar “numa criminalidade violenta que atingia,
em meados de setembro de 1864. preferencialmente, os senhores e seus prepostos”. MACHADO, 1994, p. 22. Para uma reconsideração
29 A reclamação não está datada, mas foi feita no final do mês de outubro de 1862 pelo procurador do conceito de autonomia, ver KAYE, 2007, p. 9-10. Sobre a venda realizada por escravos nas casas
de Dona Maria Joaquina de Almeida, Francisco Xavier Vahia Durão, contra Antônio Gonçalves de negócios dos diversos municípios cafeeiros do Vale do Paraíba, ver também MATTOS, Hebe
Portela. No caso, o escravo José Cabinda foi flagrado furtando o café. É certo, porém, que vários Maria. op. cit. Especialmente o capítulo 7 – “Conflito e coesão na comunidade escrava”.
outros escravos participavam desses furtos. MMN, caixa 20, n º de ordem 477. 32 MACHADO, 1987, p. 109.

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conhecimento dos espaços de plantação, o que garantiria a esses movimen- As tentativas de disciplinamento que daí surgiam baseavam-se na
tos uma relativa margem de segurança para o sucesso de qualquer empresa. visibilidade das técnicas punitivas e de controle e na indeterminação das
Uma escrava doméstica que tivesse seu espaço de trabalho restrito à casa- regras a serem seguidas pelos subalternos, que ficavam sujeitos aos arbí-
grande, estivesse sujeita à proximidade constante do senhor ou de alguém de trios dos senhores e de seus prepostos33 – como se pôde ver claramente
sua família e desconhecesse caminhos para fora da propriedade teria amplas no caso do assassinato do administrador da fazenda Resgate. No interior
dificuldades de “improvisar” um furto e comercializar seu produto nas ven- das propriedades rurais, o espaço material das fazendas cafeeiras e as rela-
das da região. Para os escravos, muitas das ações de resistência e de desafio ções sociais aí construídas mostraram que o poder senhorial e a presença
ao poder senhorial só se efetivaram com o conhecimento que esses sujeitos física do senhor e de sua família, bem como dos administradores, feitores
adquiriram dos espaços interno e externo às propriedades de seus senhores. e de todos os códigos disciplinares, estavam próximas dos escravos e eram
Nos episódios narrados, nota-se que os escravos utilizaram pelo menos visíveis a eles. Casa-grande e senzala estavam espacialmente avizinhados.
três ferramentas para obterem êxito: a primeira delas foi o conhecimento Senhor e escravo moravam próximos uns dos outros. O escravo “via/viven-
que eles possuíam do espaço para além da propriedade de seu senhor; a ciava” todos os dias o poder senhorial, através da casa-grande monumen-
segunda, o conhecimento das possibilidades de uso do espaço material da tal, de uma organização espacial caracterizada pelo controle e pela con-
fazenda (trepar no beiral, retirar telhas, penetrar na tulha, conseguir chave tenção e por meio da presença física aproximada do senhor, dos feitores
falsa etc.) para que eles pudessem ter sucesso em suas empreitadas; e, por e dos administradores. Era confinante o espaço de convivência daqueles
fim, a confiança nas relações sociais que eles desenvolveram para além das que reprimiam e dos subjugados. Assim, a análise dos processos criminais
propriedades de seus senhores. Desse modo, é importante notar que uma nos termos do presente artigo ajuda a entender o funcionamento do poder
situação de coação, como aquela vivenciada pelos cativos, não se constituiu senhorial e permite, outrossim, uma nova apreensão da resistência escrava.
impeditivo para a falta de ação. A resistência adquire, assim, uma nova dimensão que parte não somente
dos pressupostos da autonomia escrava, mas também de elementos mais
conclusão concretos como os usos conscientes dos espaços de plantação, as redes de
relacionamentos desenvolvidas pelos escravos para além da propriedade
Nos casos acima apresentados, pode-se pensar a resistência escrava asso- senhorial e a função dos cativos no processo produtivo.
ciada aos usos dos espaços. Os escravos conseguiram aprender a respeito
dos espaços permitidos e proibidos e agiram dentro de uma realidade que
pretendia limitar sua ação e que se pautava pela violência e pelo controle.
Eles sabiam, outrossim, em qual lugar poderiam conviver e qual represen-
tava obstáculos à sua atuação; quais eram os espaços que eles tinham de
estar e quais eram aqueles que sua movimentação era limitada ou proibida.
A questão dos espaços permitidos e proibidos esteve intimamente relacio-
nada às questões dos tempos igualmente permitidos e proibidos. As téc-
nicas de controle dos proprietários de escravos foram, além das questões
vinculadas ao espaço, questões temporais. Por essa razão, é possível pensar
em um “espaço disciplinar” escravista nas fazendas cafeeiras, especialmente
aquelas de maior porte. Esse arranjo espacial, com seu corolário disciplinar, 33 Ver a discussão feita por KOERNER, Andrei. O impossível “panóptico tropical-escravista”: práticas
deve ser entendido dentro das especificidades de produção da submissão prisionais, política e sociedade no Brasil do século XIX. Revista Brasileira de Ciências Criminais,
São Paulo, n. 35, p. 211-224, jul.-set. 2001. Ver também KOERNER, Andrei. Punição, disciplina e
tão frequentemente utilizadas na sociedade brasileira do Império do Brasil.
pensamento penal no Brasil do século XIX. Lua Nova, São Paulo, n. 68, p. 205-242, 2006.

390 391
Para matar a liberdade seria preciso fazer O próprio nome do jornal – homenagem à abolição antecipada e inde-
pendente da iniciativa do Estado promulgada no dia 25 de março de 1884
desaparecer a humanidade: o jornal abolicionista em toda a província do Ceará – expressa a ideia de abolição que o jornal
25 de Março em Campos dos Goytacazes1 defende: imediata, sem violência, sem indenizações, nem imigração. A par-
tir desta abolição, o movimento abolicionista cresceu em todo país, ser-
Tanize do Couto Costa Monnerat vindo de exemplo para outras libertações provinciais e locais, até a liber-
tação total em 1888.2 A influência destas consequentes alforrias pode ser
claramente percebida na leitura do jornal, pois cada uma delas foi come-
morada, demonstrando como as estratégias destes grupos influenciavam os
abolicionistas em Campos. Embora a luta dos escravos tenha sido perene
em Campos (através das fugas e formação de quilombos) e que, desde
1855, a cidade tenha contado com grupos emancipacionistas3 que busca-
No dia 1º de maio de 1884, Luiz Carlos de Lacerda fundou em Campos dos vam angariar fundos para efetuar alforrias,4 foram os eventos ocorridos no
Goytacazes o Jornal e Órgão Abolicionista Vinte e Cinco de Março, levando Ceará que motivaram a fundação do mais aberto meio de comunicação dos
à cidade uma nova forma de enfrentar à escravidão. Seu modelo diferen- abolicionistas do município: o jornal Vinte e Cinco de Março.5 Como único
ciava-se bastante das sociedades emancipacionistas existentes na cidade jornal da cidade dedicado exclusivamente à propaganda da abolição,6 este
desde 1855, as quais, embora pouco eficazes, já tinham sido muito criticadas. periódico intensificara o significado da ação escrava, tornando-a incontro-
Através deste jornal, Lacerda e seus companheiros tornaram o movimento lável pelos escravistas e conduzindo à libertação do município.
abolicionista, em Campos, vigoroso, ousado, resistente, inteligente e eficaz; A análise historiográfica de jornais como fonte permite a observação
pois lutavam pela libertação total, imediata, sem indenizações e com a par- do desenvolvimento do discurso e das práticas abolicionistas, a interação
ticipação dos escravos. Neste artigo, buscamos discorrer sobre as principais entre abolicionistas, cativos e população, assim como as relações entre os
estratégias argumentativas, métodos de ação e propostas destes abolicionis- movimentos da “vida associativa” da imprensa e a própria dinâmica da vida
tas para um Brasil sem escravos, destacando o sentido amplo que adotavam política.7 Contudo, até a década de 1970, a imprensa foi vista mais como
para abolição, o qual incluía reformas para a inserção econômica e social do objeto do que como fonte da História, sendo ainda percebida como parcial
liberto. Além disso, relacionamos estas ideias e práticas ao contexto em que e subjetiva. Foram os novos problemas, abordagens e objetos propostos pela
estes abolicionistas estavam inseridos, traçando a relação que estabeleceram História Nova e as contribuições da renovação do marxismo (em especial da
com a população citadina, com os escravos e com abolicionistas da Corte. revista New Left Review)8 que, mudando de uma análise macroeconômica
Partindo das especificidades do jornal, destaca-se o fato de ser abolicionista,
2 CONRAD, Robert. Os últimos ano da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização
fundado e mantido na última década da escravidão, por membros das clas- Brasileira, 1978.
ses médias urbanas de uma cidade interiorana, sendo esta marcada por um 3 SILVA, Osório Peixoto. Os momentos decisivos na história de Campos dos Goytacazes. Rio de Janeiro:
denso crescimento urbano e também pelo poder político e econômico dos Serviço de Comunicação Social da Petrobras, 1984.
barões do açúcar. Neste sentido, é importante notar a relação recíproca do 4 RODRIGUES, Hervé Salgado. Na taba dos Goytacazes. Niterói: Imprensa Oficial, 1988.

jornal e a realidade da cidade, em especial a participação popular nos atos 5 SILVA, O., op. cit.
6 FEYDIT, Julio. Subsídios para a história de Campos dos Goytacazes: desde os tempos coloniais até a
abolicionistas e também nos embates com os senhores escravistas. Proclamação da República. São João da Barra: Gráfica Luartson, 2004.
1 O título do artigo foi retirado de um texto publicado no Vinte e Cinco de Março: “A escravidão 7 SANTOS, Cláudia. Imprensa. In: MOTTA, Márcia; GUIMARÃES, Elione (Orgs.). Propriedades e
representa três séculos, porém, a liberdade é mais antiga, gerou-se com o homem e só com ele disputas: fontes para a História do oitocentos. Niterói: Eduff, 2011.
morrerá. Para matar a liberdade, seria preciso fazer desaparecer a humanidade.” VINTE E CINCO 8 AGUIAR, Maria do Carmo Pinto Arana de. Imprensa: fonte de estudo para a construção e reconstrução
DE MARÇO. Campos, 26 jun. 1884. da história. In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA, 10., 2010, Santa Maria... Santa Maria: Anpuh,

392 393
para de sistemas culturais, alterou a própria concepção do documento9 e rística da imprensa brasileira do século XIX foi seu caráter efêmero,16 pois
sua crítica.10 Em resumo, a imprensa passara de uma autêntica narradora de a maior parte dos jornais era fundada para expressar diferentes anseios da
fatos na história “positivista” para “reflexo” superficial de ideias subordina- população, intervindo em um debate político específico17 em momentos de
das à infra-estrutura, nas abordagens socioeconômicas. Mas, com a reno- transição,18 como a Independência e a Constituição. Por isso, a duração de
vação da história política e cultural, houve um redimensionamento de sua cinco anos do Vinte e Cinco de Março não pode ser considerada absoluta-
importância, quando, além de fonte, a imprensa também passou a ser pes- mente pequena, embora seu término dois meses após a assinatura da Lei
quisada como agente histórico que intervém na realidade social.11 Contudo, Áurea reflita esse contexto de efemeridade, uma vez que a sua principal ban-
o uso do jornal impõe limites uma vez que ele pode ser instrumento de deira – o fim da escravidão – já havia sido alcançada. E, mesmo que ques-
manipulação de interesses, meio de intervenção na vida social, subjugado à tões importantes para estes abolicionistas, como o trabalho livre, a educação
interesses econômicos, políticos e pessoais.12 Mas, ainda assim, esta é uma pública e o acesso à terra, ainda pudessem ser exploradas, cremos que a
fonte sempre rica em retratar o cotidiano e a circulação de ideias da socie- procura pelo jornal tendeu a cair com a Lei de 13 de maio de 1888.
dade na qual está inserida.13 Os jornais oitocentistas eram bastante envolvidos com reivindicações
Assumimos, portanto, a opção metodológica de analisar o Vinte e Cinco sociais, o que aumentava a influência da imprensa no Brasil.19 As pró-
de Março como fonte e agente, conscientes de que esta opção implica em prias tipografias eram locais de circulação de ideias, de contato e interação
verificar como o jornal interage no seu contexto. Por isso, destacamos que entre vários grupos sociais, essenciais para o crescimento de uma expres-
o “surgimento da imprensa no Brasil acompanha e vincula-se às transfor- são pública associada ao espaço urbano.20 O jornal era um veículo e um
mações nos espaços públicos, à modernização política e cultural de institui- mecanismo de participação política,21 representava uma opinião com peso
ções, ao processo de independência e de construção do Estado Nacional”,14 político.22 Mesmo os jornais com poucos leitores formavam um campo de
motivo pelo qual podemos afirmar que a imprensa brasileira do século XIX interatividade, à medida que seus conteúdos eram os grandes responsáveis
ajudou a delinear identidades culturais e políticas, funcionando como ponto pela formação da opinião pública no Brasil.23 Logo, mesmo que o universo
de ligação especial entre o debate político e os movimentos sociais – como dos possíveis leitores do Vinte e Cinco de Março pareça pequeno (em média
exemplificam os dois momentos de “explosão” de impressos no século XIX, 20% da população era alfabetizada),24 é preciso considerar a existência da
nos anos 1830 e 1880, períodos de grande agitação política.15 Outra caracte- Associação Abolicionista e as práticas de leitura do século XIX, extrema-

2010. Disponível em: <http://www.eeh2010.anpuh-rs.org.br/site/anaiscomplementares#M>. 16 BAKOS, Margareth Marchiori. RS: Escravismo e abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
Acesso em: 11 dez. 2011. 17 SANTOS, op. cit.
9 LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: ___. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 18 PIRES, Myriam Paula Barbosa. Tipografia na cidade imperial (1821-1831) – o difícil começo: driblando
2003. dificuldade, reinventando soluções. In: SIMPÓSIO DE POLÍTICA E CULTURA: DOCUMENTOS E
10 DE LUCA, Tania Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi; ABORDAGENS, 2., 2006, Vassouras. Anais... Vassouras: USS, 2006. Disponível em <http://www.uss.
BACELLAR, Carlos et. al. Fontes históricas. São Paulo : Contexto, 2010. br/page/publicacoes.asp>. Acesso em: 22 dez. 2011.
11 FERREIRA, Tânia et al. Prefácio. In: FERREIRA, Tânia Maria Bessone da C.; MOREL, Marco; NEVES, 19 BAKOS, op. cit.
Lúcia Maria Bastos P. (Org.). História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio 20 PIRES, op. cit.
de Janeiro: DP&A: Faperj, 2006. Grifos no original do autor. 21 MOREL, Marcos. A imprensa periódica no seculo XIX. Disponível em: <bndigital.bn.br/redememoria/
12 CAPELATO, Maria Helena; PRADO, Maria Lígia Coelho. O bravo matutino: imprensa e ideologia no periodicoxix.html> Acesso em: 20 mar. 2012.
jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo: Alfa Ômega, 1980. 22 PIRES, op. cit.
13 MACHADO, Humberto Fernandes. Palavras e brados: a imprensa abolicionista do Rio de Janeiro – 23 SOUZA, Eliezer Felix. A imprensa como fonte para pesquisa em história e educação. In: SEMINÁRIO
1880-1888. 1991. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS, 8., 2009. Campinas. Anais... Campinas: Unicamp, 2009.
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991. Disponível em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario8/
14 MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa trabalhos.html> Acesso em: 30 nov. 2011.
no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 7. 24 MONNERAT, Tanize do Couto Costa. Como libertar os escravos? Debates políticos sobre a abolição
15 SANTOS, 2011. no Vinte e Cinco de Março: jornal abolicionista em Campos dos Goytacazes, 1884-1888. 2013.

394 395
mente sociais. Consequentemente, pode-se afirmar que o alcance do jor- políticas tradicionais do império, surgem.29 O fim do tráfico internacional
nal era maior, uma vez que estas práticas de leitura e sociabilidade foram de escravos, somado ao processo de urbanização e recente industrialização
capazes de impulsionar a população e os escravos a participarem do movi- (ao menos no centro-sul) reforçou a ideia de progresso, contrastando com a
mento.25 Tal fato pode ser provado através dos relatos publicados sobre as escravidão, vista como uma marca de atraso. Alguns jornais passaram a tra-
constantes visitas de membros da sociedade à redação do Vinte e Cinco de tar da questão servil, questionando o regime escravista e demonstrando-o
Março. Toda a sorte de pessoas compareciam ao escritório do jornal para como prejudicial ao Império.30 Tornam-se, assim, vetor da opinião aboli-
denunciar crimes, alertar sobre possíveis atentados, relatar fuga de escra- cionista e lugar de novas sociabilidades e novas concepções sobre a polí-
vos, ou mesmo buscar refúgio ou apoio jurídico no caso de escravos em tica imperial, e se definem, sobretudo, por “sua função formativa”.31 Neste
fuga. Estes fatos denotam ser esta tipografia um local de debates e de ação sentido, concordamos com a análise da crise do escravismo brasileiro na
política do movimento abolicionista em Campos. qual o movimento abolicionista é entendido como possível após mudanças
Os jornalistas do século XIX buscavam levar as discussões políticas estruturais, situações conjunturais e uma sucessão de episódios que são vis-
para a esfera coletiva, contribuindo para o processo de desenvolvimento tas como condições necessárias para que os sujeitos pudessem exercer sua
da consciência política na esfera pública. Estes homens orientavam-se pela liberdade (e não fatores determinantes nesta). As rebeliões escravas exem-
capacidade de influenciar, o que chamavam de opinião pública, pois acre- plificam esta afirmativa na medida em que elas foram fundamentais para a
ditavam que o jornalismo tinha uma missão; sendo a da imprensa aboli- mudança de atitude dos fazendeiros paulistas. Estas rebeliões só se realiza-
cionista discutir o progresso, o ensino, o federalismo, o Estado laico e o ram de maneira intensa após uma séria de transformações, pois o protesto
fim do escravismo.26 O conceito de opinião pública é aqui essencial, não escravo sempre existira, mas seu significado só mudara neste momento,
obstante sua imprecisão, pois integrava a concepção de ação política des- adquirindo um caráter político.32
tes jornalistas.27 Suas opiniões políticas publicadas destacavam-se daquelas A partir das transformações estruturais ocorridas na segunda metade do
dos governos, instaurando a “opinião pública”. Marco Morel afirma que a
século XIX, a sociedade brasileira mudou e a escravidão começou a ser ques-
expressão tinha um caráter político e dizia respeito, sobretudo, às palavras
tionada por outros grupos, além dos próprios escravos.33 Até então, embora
como poderosos instrumentos de combate.28 Fosse entendido como uma
alguns (para além dos escravos) tivessem criticado escravidão, nenhum
reflexão de sábios ou como opinião da maioria, ela estava relacionada à
movimento organizado, abolicionista, tinha sido criado. É na segunda
uma opinião que se formava fora do governo e, por isso, era capaz de inter-
metade do oitocentos que grupos urbanos aderem ao abolicionismo, par-
vir na sociedade, fundamentando opiniões discordantes das decisões esta-
ticipando das conferências e dos comícios abolicionistas, fortalecendo o
tais e movimentando o sistema político oitocentista.
movimento.34 Neste sentido, entendemos as transformações ocorridas na
A imprensa abolicionista fortalece-se nos centros urbanos na década
cidade de Campos como fundamentais para o sucesso do Vinte e Cinco de
de 1870, quando novos atores políticos, autônomos em relação às estruturas
Março. Esta era uma cidade provinciana que destacava-se pela sua grande

Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de 29 MACHADO, H., 1991.
Janeiro, 2013. 30 MACHADO, Humberto Fernandes. A atuação da imprensa do Rio de Janeiro no Império do Brasil.
25 PÍCOLI, Mariana de Almeida. Ideias de liberdade na cena política capixaba: o movimento RIHGB, Rio de Janeiro: IHGB, ano 171, n. 448, p. 47-49, jul.-set. 2010.
abolicionista em Vitória (1869-1888). 2009. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade 31 SANTOS, 2011, p. 191.
Federal do Espírito Santo, Vitória, 2009. 32 COSTA, Emília Viotti da. A abolição. São Paulo: Ed. Unesp, 2008; MACHADO, H., op. cit.; SALLES,
26 PESSANHA, Andrea Santos da Silva. O Paiz e a Gazeta Nacional: imprensa republicana e abolição. Ricardo. Joaquim Nabuco: um pensador do Império. 2001. Tese (Doutorado em História) –
Rio de Janeiro, 1884-1888. 2006. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminse, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2001.
Niterói, 2006. p. 63. 33 COSTA, op. cit, 2008; GRAHAM, Richard. Escravidão, reforma e imperialismo. São Paulo: Perspectiva,
27 MACHADO, H., 1991. 1979.
28 MOREL; BARROS, 2003. 34 MACHADO, H., op. cit., 1991.

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produção de açúcar,35 atividade que a tornou principal centro econômico da cidade em capital da província,41 motivados pelo fato de possuírem o maior
região norte-fluminense. O auge da sua produção, no entanto, deu-se com a colégio eleitoral do Rio de Janeiro durante quase todo o século XIX. Mas,
introdução de novas técnicas e a maior entrada de capital ao longo do século embora a taxa de inclusão eleitoral em Campos fosse compatível com as
XIX, transformando os primitivos engenhos em engenhos centrais ou usinas, taxas encontradas no mundo ocidental na década de 1870, ela era menor
e fortalecendo os “barões do açúcar”, donos de grande poder político, eco- que as estimativas brasileiras do mesmo período, o que, provavelmente,
nômico e social. Mas, além de dinamizar a produção, os engenhos exigiam deve-se ao maior peso da população escrava na região, visto que enquanto
o uso de trabalhado livre, o que mesmo sendo restrito às atividades fabris a população escrava representava cerca de 15% da população brasileira,
acabou por incentivar o uso deste tipo de trabalhador na região, inclusive em Campos ela representava 39%.42 Por outro lado, na lista de votantes da
com imigrantes.36 É possível observar este crescimento agrícola analisando freguesia de São Salvador (a mais urbanizada), os portadores de capital
os dados da produção, que indicam que nas duas décadas anteriores à aboli- rentista apresentavam uma renda maior do que os que se definiam como
ção ocorreram os maiores recordes na produção açucareira campista.37 fazendeiros,43 o que indica que esta freguesia concentrava uma população
Sendo também um importante centro distribuidor de mercadorias, rica, que não dependia dos senhores.
localizada em uma área de intercâmbio comercial e de fluxo de escoamento Nesta freguesia também concentravam-se os membros das classes
de produtos das Minas Gerais e do Espírito Santo, Campos era servida de 3 médias, de onde vinha o próprio Luiz Carlos de Lacerda (filho e irmão de
estradas de ferro interprovinciais, além de muitas casas de comércio, expor- médicos, advogado e jornalista).44 Nela, encontramos 62% dos profissionais
tadores de gêneros, serviços de qualidade na área de finanças, comunicação, do setor judiciário, 73% dos médicos, 62% dos professores e letrados, 69%
saúde, educação e cultura.38 Na década de 1870, a freguesia-sede de Campos dos empregados públicos, 74% dos artistas (ou artesãos), 100% dos militares,
– freguesia de São Salvador – cresceu e urbanizou-se consideravelmente 61% dos industriais, 62% dos comerciantes e 51% dos operários. Enquanto
graças à implantação de uma estrada de ferro municipal.39 ali habitavam apenas 14% dos lavradores e 13% dos criados e jornaleiros.45
Outro fator que favoreceu o movimento abolicionista na cidade foi o A concentração de profissionais liberais (relativamente independentes dos
fato de que sua importante economia levou a muitos investimentos gover- grandes escravocratas) nas áreas urbanas foi importante pois, além das
namentais –40 o que incentivou políticos da região a tentarem transformar a transformações econômicas e sociais, esta foi uma das principais razões
para a intensificação da campanha abolicionista e consequente insurreição
35 WEHLING, Arno. O açúcar fluminense na recuperação agrícola do Brasil. RIHGB, n. 337, out.-dez.
1982. dos escravos, ou sua ressignificação.46 Os próprios abolicionistas do Vinte e
36 PARANHOS, Paulo. O açúcar no norte fluminense. Revista Histórica, São Paulo, n. 8, mar. Cinco de Março destacavam a relevância destas classes para o crescimento
2006. Disponível em: <www.historica.arquivoestado.sp.gpv.br/materias/anteriores/edicao08/
materia02>. Acesso em: 19 mar. 2012.
41 Id. Campos: a capital sonhada de uma província desejada (1835-1897). História (São Paulo). Dossiê:
37 23 mil toneladas, em 1872; 21 mil toneladas, em 1881; número que se repete em 1883. PEREIRA, Walter
Capitais Sonhadas, Capitais abandonadas, v. 30, n. 1, jan.-jun. 2011. Disponível em: <http://dx.doi.
Luiz Carneiro de Mattos. Francisco Ferreira Saturnino Braga: negócios e fortuna em Campos dos
org/10.1590/S0101-90742011000100004>. Acesso em: 21 mar. 2012.
Goytacazes. História, São Paulo: Ed. Unesp, v. 31, n. 2, p. 212-246, jul.-dez. 2012.
42 NUNES, Neila F. M. A experiência eleitoral em Campos dos Goytacazes (1870-1889): frequência
38 A cidade possuía 66 pontos de comércio, 46 de serviços, 22 de artesãos, 127 casas de secos e
eleitoral e perfil da população votante. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 46, n. 2, p. 311-
molhados; 3 bancos, 2 companhias de seguros; Correios e telégrafos; 4 hospitais, 18 médicos, 6
343, 2003 .
dentistas e 2 parteiras.; 57 escolas, 6 tipografias e 3 bibliotecas. ALMANAK LAEMMERT. Rio de
Janeiro, p. 2.932-2.960, 1885. Disponível em <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/ 43 PEREIRA, 2012.
almanak/almanak_djvu.htm>. Acesso em: 2 maio 2012. 44 LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia negra e abolicionismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.
39 ALVES, Maria da Glória; COSTA, Aline Nogueira. Monitoramento da expansão urbana no Município 45 Quadro Geral da População livre e escrava considerada em relação aos sexos, estados civis, raças,
de Campos dos Goytacazes, RJ – utilizando geoprocessamento. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE religião, nacionalidades e gráo de instrucção, com indicação dos numeros de casas e fógos. In:
SENSORIAMENTO REMOTO, 12., 2005, Goiânia. Anais... Goiânia: [s.n.], 2005. p. 3.731-3.738. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. CENSO. Recenseamento Geral do Brazil
40 CHRYSOSTOMO, Maria Isabel de Jesus. Uma Veneza no sertão fluminense: os rios e os canais em de 1872: provincia do Rio de Janeiro. [S.l.],1872-1912. Disponível em: <www.biblioteca.ibge.gov.br>.
Campos dos Goytacazes. História Revista: Revista da Faculdade de História e do Programa de Pós- Acesso em: 12 mar. 2012.
Graduação em História, Goiânia, v. 14, n. 2, jul.-dez., 2009. 46 COSTA, 2008. MACHADO, H., op. cit., 1991. SALLES, 2001.

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do movimento, ao reconhecerem que a autonomia destas era um fator fun- ecoavam fortemente na sociedade brasileira; sendo o maior deles o golpe
damental para que elas pudessem se colocar contra os escravistas. final da Abolição.52 No contexto internacional, a vitória dos estados do
Observa-se que Campos desfrutava de uma área urbana dinâmica, norte na guerra civil norte-americana, o repúdio à escravidão nas Américas
relativamente independente do mundo rural, mas a cidade ainda era mar- crescentemente expresso por entidades estrangeiras e a questão dos sol-
cada pela concentração de escravos47 e pela influência econômica, política dados-cativos impulsionada no fim da guerra do Paraguai, também forta-
e social dos grandes senhores.48 A historiografia indica que havia nas áreas leciam internamente o movimento abolicionista. Neste ambiente, jornais
mais urbanizadas uma tendência a menor concentração de escravos, ao abolicionistas discutiam ideias novas, buscavam intervir na realidade social
mesmo tempo que estas regiões foram palco dos principais movimentos e política, formando a opinião pública e expressando os anseios nacionais.
abolicionistas.49 Tal constatação é contrária ao cenário aqui estudado. Por Consequentemente, o Vinte e Cinco de Março afirmava que, mesmo per-
isso, ao enfrentarmos esta contradição, consideramos a possibilidade de seguido pela polícia, políticos e senhores, sabia que a causa abolicionista
que foi exatamente a concentração de escravos numa área urbana crescente, prosseguiria, porque esta era “uma aspiração nacional”.53 Seus membros
convivendo com uma área rural economicamente forte, que tornou o aboli- sentiam-se livres para apresentarem argumentos, que em geral contraria-
cionismo em Campos tão violento e eficaz. Tal atitude fez com que a cidade vam a lógica senhorial. Se esta dizia ser a escravidão um mal necessário,
ficasse conhecida como “Quartel General da abolição”, tendo o abolicio- sem o qual o país ruiria, eles afirmavam categoricamente que a abolição
nismo sido marcado pela exacerbada luta entre senhores e abolicionistas50 era o maior símbolo do patriotismo, que só faria bem à nação e à lavoura,
– o que reforça nossa análise do Vinte e Cinco de Março como um agente sendo um sinal de progresso. Como prova, utilizavam-se de índices posi-
histórico protagonista no processo da conquista política e social da abolição. tivos da produção agrícola em províncias já livres no Brasil e no sul liberto
Partindo do entendimento proposto por Le Goff de que todo docu- dos Estados Unidos. Afirmavam que os defensores da escravidão visavam
mento é um monumento, na medida em que é o produto final de uma série seus próprios interesses, eram maus conselheiros, interessados em aprovei-
tarem-se dos senhores. Não atacavam diretamente os senhores, afirmando
de disputas de poderes na sociedade que o produziu e naquela que o man-
que estes estavam apenas habituados à tradição escrava, buscavam, com
teve “vivo”,51 vemos, na análise do jornal e nos embates que seus membros
isso, fazê-los desconfiar de sua dependência com relação à instituição.
enfrentaram para mantê-lo em produção (que descreveremos a seguir),
Havia ainda um argumento bastante sentimental: o caráter cristão da
uma representação de parte da disputa de poder entre escravistas e abo-
abolição, dada a igualdade dos homens diante de Deus e o mandamento
licionistas no Brasil oitocentista, o que torna evidente a importância dos
divino de viver do suor do nosso próprio rosto. Este argumento contra-
jornais abolicionistas para o fim da escravidão no Brasil.
dizia aqueles escravistas que afirmavam serem os negros ociosos, pois, ao
Na ótica dos envolvidos no movimento, favoreciam o abolicionismo
contrário, definia os escravizados como grandes responsáveis pela riqueza
as discussões parlamentares sobre a abolição (recrudescidas na década
nacional. Afirmavam ainda que negros e índios eram membros da nação.
de 1880), as violências senhoriais e os atos de resistência dos escravos que
Questionavam, assim, a representatividade do Parlamento (visto o pequeno
47 RODRIGUES, Hervé Salgado. op. cit. número de eleitores) e do imperador, que não atendiam ao maior anseio
48 ALMANAK LAEMMERT, 1885. nacional. Nesta visão, a abolição significava a continuação de 1822, ao tor-
49 COSTA, op. cit. nar toda a nação independente, integrando negros e índios como livres e
50 Dada a densa concentração de escravos em Campos, os confrontos entre abolicionistas e
escravistas, mesmo que violentos, foram menores do que a tensão existente. Porque “a fisionomia
cidadãos. O relato de um ex-escravo que, por anos, lutou para comprar a
sócio-econômica de Campos era em tudo semelhante à do Sul dos Estados Unidos: toda a estrutura liberdade de toda sua família foi usado como exemplo, ao afirmarem que
econômica local, lastreada na cana-de-açúcar e do Engenho, dependia 100 por cento do braço este comprara cidadãos para a pátria. Ao mesmo tempo, ao destacarem o
escravo, do trabalhador servil, como a do algodão nos Estados Confederados dos EUA.” Logo, a
abolição para os fazendeiros campista era “a ruína, a debacle econômica para toda a estrutura em
que repousava a riqueza campista.” In: RODRIGUES, op. cit., p. 108. 52 MACHADO, H., 1991.
51 LE GOFF, 2003. 53 VINTE E CINCO DE MARÇO, 5 jun. 1884. Noticiário, p. 3.

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caso acima, refutavam o argumento escravista vigente de que os negros além de destacar a crueldade deste modelo para os escravizados. Baseados
eram desregrados e sem apego aos valores morais, uma vez que o liberto na ideia da ilegalidade da escravidão constituída deste 1831, afirmavam que
batalhou pela liberdade e reunião de sua família. a abolição deveria ser sem indenização, proposta compartilhada com a
Discursos como este iam ao encontro da fala de Joaquim Nabuco, para Confederação Abolicionista.57 Pelo contrário, quem merecia indenizações
quem o abolicionismo questionava essencialmente o modelo de construção eram os escravizados que foram privados de sua liberdade, segundo os
da nação brasileira.54 A relação entre Nabuco e o jornal reforça nosso enten- abolicionistas de Campos.
dimento de que o movimento abolicionista foi nacional, posto que aboli- A Lei do Ventre Livre, de 1871, tornou obrigatória a matrícula geral
cionistas de todo o país valiam-se de uma rede de relacionamentos para dos escravos. A partir de então, Lacerda e seus companheiros passaram a
intercambiar ideias e somar forças políticas.55 Outro ponto que fortalece este demandar a libertação imediata de todos aqueles cuja inscrição portasse
entendimento é que o principal argumento do Vinte e Cinco de Março fora “filiação desconhecida”, pois, diante da incerteza da legalidade da condição
herdado da Confederação Abolicionista: a escravidão era ilegal, logo, seu escrava, a lei obrigava o reconhecimento da condição de livre. A luta judicial
fim dependia apenas do cumprimento correto da lei. Reforçavam esta ideia daí decorrente tornou-se uma das principais bandeiras destes abolicionis-
ao escrever “escravizados” e nunca escravos, posto que eram ilegalmente tas: intimidavam escravistas e juízes publicando artigos sobre decisões judi-
reduzidos a tal condição. Assim como o epílogo do jornal, inalterado até ciais favoráveis à liberdade em todo país. Atacavam, por fim, o argumento
a Lei Áurea, ilustra este raciocínio, a frase de Mello de Freire, jurista por- principal dos escravistas, o direito à propriedade escrava, posto que defen-
tuguês do século XVIII, dizia: “Escravos negros são tolerados no Brasil e diam o direito à fuga do escravo, uma vez que a liberdade, direito natural de
outros domínios; mas por que direito e com que título confesso ignorá-lo todos os homens, estava lhe sendo negada. Como estratégia argumentativa,
completamente”. O posicionamento desta frase na primeira coluna da pri- invertiam a lógica senhorial e tornavam o direito à liberdade superior ao
meira página do jornal direcionava a leitura. Exposto desde o princípio, o direito de propriedade; afirmando, inclusive, não existir o direito de pro-
argumento mais forte do jornal era fortalecido pela autoridade de quem o priedade do homem sobre o homem.58
disse (Mello de Freire) e pelo fato da afirmativa ser do século anterior. Os abolicionistas do Vinte e Cinco de Março sabiam que combatiam
A argumentação abolicionista também fazia uso das leis nacionais em práticas senhoriais há muito enraizadas na cidade de Campos e em outras
direção à abolição, sendo a Lei Antitráfico de 1831 a mais abordada.56 Nestas localidades do Brasil. Para eles, esta classe fora criada numa cultura de
bases, defendiam que, na década de 1880, a escravidão não podia ser nada mando e com o governo organizado para defender seus interesses particu-
além de ilegal, fruto da pirataria. Estes argumentos baseados na Lei de 1831 lares. Assim, a escravidão fora mantida, no Brasil, pela força da ilegalidade,
não eram, em nada, conservadores; pelo contrário, condenavam criminal- violência e poder de poucos. Mas os abolicionistas ameaçavam, garantindo
mente toda a classe senhorial e fundamentava a defesa da abolição ime- que tais práticas não seriam suficientes para manter a escravidão caso os
diata. Qualquer solução emancipacionista era rechaçada e ridicularizada, escravos se levantassem.
sendo vistas como simples ato político, sem qualquer intenção de mudar o A menção da (re)ação escrava intimidava fortemente os senhores, na
sistema de trabalho. E, fazendo menção à guerra civil norte-americana, o medida em que a relação entre abolicionistas e escravizados era real e eficaz
Vinte e Cinco de Março alertava para os perigos da opção emancipacionista, na cidade. No discurso do periódico, a violência escrava era justificada pelas
leis nacionais e também pela lei da natureza, segunda a qual o assassinato
54 SALLES, 2001.
55 SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura: uma investigação de história 57 SILVA, E., 2003.
cultural. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; TOPLIN, Robert. The abolition of slavery in Brazil. 58 Se considerarmos apenas as notícias que tratem especificamente da inexistência do direito à
New York: Atheneum, 1975; GRAHAM, 1979. propriedade e do direito à liberdade como um direito natural, a primeira supera o número de
56 As duas leis mais citadas nas argumentações eram a Lei Antitráfico de 1831 e a Lei do Ventre Livre notícias da segunda, cada uma com 22 e 17 notícias, respectivamente, em toda extensão do jornal.
de 1871. A primeira foi citada em 58 notícias, (20 delas somente em 1887) enquanto a segunda foi Porém, é preciso destacar que o direito à liberdade é mencionado em muitas notícias, em especial
mencionada em 47 notícias. naquelas que tratam da ilegalidade da escravidão.

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de um senhor é autorizado, pois qualquer ser humano escravizado é com- foi presenciado por um sem número de pessoas, que indignadas protestaram
pelido a odiar seu algoz, e todos os outros humanos o compreendem nesta contra tanta desumanidade.
Eis aí o que são os escravocratas. A idade, o sexo, os inválidos, nada lhes
violência. Um exemplo da importância deste raciocínio é o fato de que a
merece o menor respeito, desde que pertença a essa maldita instituição, que
única imagem presente no jornal59 ilustra um homem negro, numa paisa- estabelece bárbaras e cruéis distinções, quando Deus, em nome da humani-
gem rural, vestindo uma peça de roupa branca, que lhe cobre apenas as dade, pregou a igualdade de todos os homens. Surrar-se um aleijado, maior
partes íntimas (como muitas das roupas dos escravos), enquanto quebra as de 70 anos, é o cúmulo do barbarismo! (VINTE E CINCO DE MARÇO. Campos,
algemas que prendem suas mãos e tem as correntes dos seus pés já quebra- p. 4, 14 ago. 1884).
das. Tudo nesta imagem evoca a abolição, o escravo no campo, a frase do Tais narrativas começavam pela exposição da violência gratuita do
jurista que a margeia e o fato dele estar sozinho, libertando-se independen- senhor (cujo nome é mencionado), depois destaca-se a ação conjunta de
temente. Esta imagem deve ser entendida como uma estratégia argumen- abolicionistas e da população que demonstraram indignação, apoio, além
tativa, que deixa subentendida a ameaça da violência escrava. Porém, estes do acolhimento do escravizado. Por fim, demanda-se a intervenção da
abolicionistas equilibravam seu discurso afirmando promover a paz entre polícia para coibir arbitrariedades dos senhores e agir corretamente na
os cativos ao dar-lhes esperança de se tornarem livres, sem violência. Desta condução de possíveis investigações. Desconstruíam o discurso senhorial
maneira, ressaltavam sua própria importância ao mesmo tempo em que ao demonstrarem que a escravidão era mantida pela arbitrariedade dos
demonstravam os perigos de adiar a abolição. Em contrapartida, relatavam grandes proprietários, a conivência da população diante da brutalidade da
regularmente atos de violência senhorial, mostrando que as arbitrarieda- escravidão e pelo apoio da estrutura do estado imperial – polícia,60 leis e
des vinham dos senhores e das autoridades, o que incentivava uma reação juízes que ignoravam e descumpriam leis abolicionistas. Como exemplo
abrupta dos escravos e abolicionistas. da conivência social, citavam casos de falsos atestados médicos usados por
Os abolicionistas tinham confiança na realização da abolição, fosse esta senhores para esconderem a violência que provocara a morte de escraviza-
feita pelo governo, pelos senhores ou pelos escravos conjuntamente com os dos. Com isso, buscavam indignar seus leitores e inverter a denúncia recor-
abolicionistas e povo, neste último caso, com violência. Para promovê-la, rente dos escravistas de que os abolicionistas eram desordeiros. Almejando
diferentes métodos foram utilizados sendo a exposição dos atos desumanos o apoio da população, exploravam o sentimentalismo, com descrições deta-
dos senhores um deles. Desta maneira, reforçava-se a condenação social da lhadas das violências, ao mesmo tempo que celebravam todo e qualquer ato
instituição devido a sua crueldade, seu caráter de atraso e sua ilegalidade. da população em prol da abolição. Para tanto, mesmo se opondo à classe
Logo abaixo, transcrevemos um trecho que retrata um claro exemplo da senhorial, relatavam todos os casos de alforrias, destacando que a abolição
lógica narrativa do Vinte e Cinco de Março: ganhava novos adeptos. Mesmo assim, não se abria mão de criticar os casos
Anteontem estacionava na rua Direita, um homem de cor preta, maior de 70 de alforrias concedidas a idosos ou doentes.
anos, aleijado das pernas e que com dificuldade, auxiliado por um pau, fazia Outra estratégia era a ação conjunta com outros abolicionistas, popu-
os movimentos de locomoção. lação e escravos. Através de meetings divulgavam suas ideias à população.
Tratando incontinentemente de indagar quem era, soubemos, que é Antonio
Com os relatos destes encontros nos periódicos, enfatizavam o grande apoio
Congo, escravizado de Amelio Arêas, residentes no Travessão do Nogueira.
Recolhido ao nosso estabelecimento, descobrimos nas costas sinais de sevícias dos presentes e as intervenções belicosas dos escravistas, reforçando a ideia
recentes, e que estava ele ardendo em febre. Depois de medicado, comunica- da arbitrariedade da escravidão, em oposição à ação pacífica, racional dos
mos ao sr. delegado de polícia o ocorrido, pedindo-lhe providências para mais abolicionistas que recebiam apoio generalizado. Como estratégia, nestas
esse infeliz.
É o cúmulo do barbarismo, aliado a mais requintada perversidade, surrar- 60 Foram contabilizadas 117 notícias em que o Vinte e Cinco de Março manifestou diretamente sua
se um pobre velho maior de 70 anos e aleijado. Tão monstruoso atentado discordância com a conduta da polícia, mas deve-se considerar que este número seria ainda
maior se fossem consideradas todas as notícias em que o jornal expressa sua insatisfação com as
59 Entre os dias 29 de agosto de 1885 e 1o de abril de 1886. arbitrariedades e concessões das autoridades quanto à escravidão de maneira geral.

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oportunidades interagiam com a população debatendo os processos eleito- cionista. Assim, com o apoio da população, os abolicionistas podiam tomar
rais, ressaltando a importância de votarem juntos pelo Partido Abolicionista, atitudes audazes de ataque à propriedade senhorial, como: o recolhimento
entendido como apoio incondicional do político à abolição, independente da de escravos e ingênuos na sede do jornal; a exposição de atos criminosos
filiação partidária.61 Tal aspecto reflete a relação que os redatores do Vinte e de poderosos senhores; a realização de investigações paralelas às realiza-
Cinco de Março mantinham com abolicionistas de todo país, pois havia uma das pela polícia; as inúmeras demandas às autoridades quanto aos crimes
circulação de ideias e práticas comuns. Este intercâmbio oferecia a Lacerda e denunciados e não solucionados. Tais práticas interferiam diretamente na
seus companheiros o apoio intelectual e jurídico de influentes abolicionistas ordem senhorial. Os grandes fazendeiros, mesmo com os poderes consti-
fora da esfera de poder dos barões do açúcar, o que tornava a violência destes tuídos ao seu lado, agora tinham que conviver com a vigilância abolicionista
senhores assunto nacional e, de certa forma, a coibia. que os expunha, ao menos, ao julgamento da população.
Mas era a relação próxima e profícua que mantinham com os escra- Todas estas práticas tiveram seu preço. Foram muitos os atentados
vizados que mais assustava a classe senhorial,62 mesmo que esta não fosse sofridos. O primeiro exemplo de embate entre escravistas e os abolicionistas
exposta objetivamente no jornal. Ao longo dos anos em que o Vinte e Cinco do Vinte e Cinco de Março ocorreu apenas 20 dias após a fundação do jornal.
de Março circulou, a violência escrava foi exposta de maneira ambígua. Seus Lacerda quase foi morto e seu escritório foi invadido por capangas dos escra-
redatores afirmavam não incentivá-la, mas também não a condenavam. vistas. O jornalista e um companheiro foram expulsos de Campos, acusados
Em contrapartida, assumiam abertamente o recolhimento de torturados, de agitarem a população contra os senhores de escravos. Como reação, no
expondo as ações voluntárias de fuga de escravos. Afirmavam que, diante dia seguinte, o jornal ironizava tais atos65 e Lacerda refugia-se com o apoio
de um estado ausente e de um senhor que abusava do seu direito sobre seus de seus companheiros abolicionistas da Corte, o que voltaria a acontecer em
cativos, cabia a rebelião através da invasão das fazendas pelos abolicionistas outros episódios como este.66 Esta primeira truculência senhorial foi pouco
e das fugas de escravos para cidade. Nestes casos, os abolicionistas não se exposta no jornal, mas a continuidade da ação dos abolicionistas fez com
privavam de auxiliar plenamente nos processos jurídicos pela liberdade. que a reação dos escravistas se tornasse progressivamente mais violenta e,
Após a derrota do Projeto Dantas, em 1885, houve um ponto de virada consequentemente, a repercussão destes atos no jornais também.
do abolicionismo.63 A fala de incentivo à ação escrava se torna mais aberta Os escravistas justificavam seus atentados acusando os abolicionis-
e direta, fazendo com que os envolvidos convocassem escravizados para tas de roubo, invasão de propriedade e acoitamento de escravos fugidos.
entrarem na justiça através de processos coletivos baseados na Lei do Ventre Enquanto os abolicionistas, nas descrições de tais atentados, apresentavam
Livre ou dos Sexagenários. A defesa do fim do cativeiro como uma luta pela uma interpretação particular das leis emancipacionistas e afirmavam não
restituição de um direito roubado, uma conquista de abolicionistas e dos terem cometido crimes. Além disso, destacavam o apoio jurídico de impor-
escravizados toma corpo. Neste sentido, concordamos com Richard Graham tantes abolicionistas e a circulação ampla que as notícias de violência rece-
quando afirma que, sem a campanha abolicionista, não teria havido o amplo biam nos jornais da Corte. Assim, desmoralizam os senhores e as autorida-
apoio da população, em especial a urbana, à causa abolicionista. Desta des (políticas, policiais ou jurídicas), acusando-os de negligentes, morosos
forma, ao desestruturar o discurso senhorial, os abolicionistas deram à ação e arbitrários, com intuito de forçá-las a dar-lhes uma resposta pública. Em
dos escravos, que sempre lutaram contra a escravidão, um novo significado contrapartida, realizavam investigações privadas, reafirmando sua versão
e uma nova recepção.64 A fala abolicionista fortalecia a ação dos escravos, ao dos fatos em oposição à versão da polícia. Outra forma de pressionar as
mesmo tempo em que o volume da ação dos cativos confirmava a fala aboli- autoridades era fazendo investigações privadas com relação a crimes que
61 SALLES, Ricardo. Nabuco, os ingleses e a abolição. Afro-Ásia, Bahia: Ed. Ufba, v. 42, p. 241-252, 2011.
não envolviam os abolicionistas como forma de se mostrarem imparciais,
Disponível em: <http://www.afroasia.ufba.br/>. Acesso em: 4 fev. 2013. pois investigavam somente pela sede de verdade.
62 LIMA, 1981.
63 CONRAD, 1978; TOPLIN, 1975. 65 VINTE E CINCO DE MARÇO, 22 maio 1884. Seção Vinte e Cinco de Março, p. 2-3.
64 GRAHAM, 1979. 66 SILVA, O., 1984.

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Os atentados contra os abolicionistas tornaram-se gradativamente ram seu modo de ação e continuaram suas investigações particulares com
mais violentos, envolvendo tentativas de assassinato; colocação de um as quais provam erros nos inquéritos oficiais, além da existência de laços
posto da guarda em frente à sede do periódico; cerceamento do acolhi- pessoais dos escravistas com policiais e pagamento de soldos diretamente
mento de escravizados em busca de auxílio; ida de um importante senhor do Clube da Lavoura para policiais. Por fim, conclui que os policiais em
à Câmara Municipal pedir certidão do jornal para forçar a fiscalização de Campos eram escolhidos de acordo com os interesses da classe senhorial.
seu conteúdo e redatores; a colocação de postos policiais nas áreas extremas Neste mesmo período, o jornal expunha cotidianamente a matrícula
do município para impedir o acesso dos escravizados surrados à cidade e irregular de mais de 13 mil escravos da cidade. Infelizmente, estas ousadas
à sede do jornal; a distribuição de patrulhas pela cidade nos dias santos e atitudes custaram um alto preço ao jornal. Em outubro de 1887, a tipografia
domingos, dias em que os escravos tinham mais liberdade para circular e do jornal é invadida e destruída por praças da polícia. O estrago foi sufi-
talvez procurar ajuda dos abolicionistas; a invasão da casa de Lacerda em ciente para que o jornal não fosse publicado em novembro e dezembro,
busca de escravos acoitados; e a divulgação de boatos de “correrias” quando voltando apenas a circular em janeiro de 1888. Não surpreendentemente, o
eram marcadas conferências abolicionistas. inquérito policial acusava os abolicionistas de atacarem os praças, e não o
Em novembro de 1886, ocorreu o primeiro atentado em uma confe- contrário, versão que foi duramente criticada pelo jornal.
rência abolicionista. Um tiro foi detonado na porta da tipografia. Mesmo A partir destes atentados e das decorrentes descrições no Vinte e Cinco
diante de tantas ameaças e ataques diretos, estes abolicionistas não se cala- de Março, formou-se um ciclo vicioso. As ações abolicionistas partiam da
ram. Pelo contrário, exigiam mais das autoridades e da imprensa. Por tudo desqualificação do discurso senhorial e do empoderamento dos escraviza-
o que foi dito, pode-se dizer que imperava em Campos um clima de insegu- dos. Como resposta, os senhores atentavam contra escravizados e abolicio-
rança. Como resposta, os abolicionistas diziam que toda a população estava nistas, contra a organização do movimento e sua relação com os cativos.
desprotegida e sujeita a sofrer iguais atentados, pois a lei não era igual para Diante disso, os abolicionistas desqualificavam reiteradamente a prática e
todos. Em outros eventos, o ciclo se repetia: após os abolicionistas sofrerem a lógica senhorial, ao mesmo tempo em que valorizavam sua própria luta,
um atentado, expunham nos jornais aqueles que pensavam serem os respon- aumentando, consequentemente, a ira dos escravistas, que intentavam
sáveis, iniciam investigações próprias, narravam sua versão dos fatos pelo novos ataques. Esta rotina só foi quebrada com as fugas em massa de escra-
país através de outros periódicos abolicionistas que também os auxiliam em vos em São Paulo.
casos de processos. Dada a ousadia de tais atos, sofriam novos ataques. Ao perceber a ineficácia do discurso da legalidade da abolição em opo-
No ano de 1887, os atentados se tornam ainda mais violentos. Ao tentar sição ao sucesso da ação ousada de abolicionistas e escravos em São Paulo,
impedir uma conferência abolicionista, a polícia gerou uma grande con- os abolicionistas de Campos passam a reforçar o argumento voltado aos
fusão nas ruas da cidade, o que resultou no assassinato de uma mulher e senhores de que a abolição era benéfica pela gratidão que gerava no escra-
no espancamento de populares, com graves ferimentos nos trabalhado- vizado (sempre destacando o direito fundamental à liberdade). Também
res presentes. Outro exemplo foi o tiroteio ocorrido no meeting de 30 de incentivam abertamente a ação coletiva dos escravos, vista como razão da
janeiro de 1887, quando um dos presentes foi assassinado e o outro atingido vitória abolicionista em São Paulo, e reforçam a fala do direito à fuga, desde
ficou cego de um olho. Após apresentar a sua versão dos fatos e fazer exi- que coletiva e pacífica (através do abandono das fazendas). Esta era enten-
gências às autoridades, Lacerda afirmou que o alvo era ele, pois a vítima: dida como possível devido o trabalho de preparação dos abolicionistas. Ou
“tinha muitos traços fisionômicos iguais aos meus, usava a barba do mesmo seja, reconheciam ser a fuga escrava o ponto essencial da vitória abolicio-
modo, mesmo corpo, ocorrendo ainda que ao colo trazia um filhinho mais nista, ressaltando seu papel.
velho, cuja idade é a mesma da do assassinado”.67 Os abolicionistas mantive- Afirmavam ser aquele o momento do escravo agir em causa própria.
Cremos que, com esta fala, os abolicionistas não pretendiam criar uma
67 VINTE E CINCO DE MARÇO, 3 fev. 1887. Seção Vinte e Cinco de Março, p. 1-2. imagem de inércia do escravo, mas sim reforçar a que eles tinham sido até

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então pacíficos, ao contrário do que afirmavam os senhores que acusavam Próximo do fim da escravidão, quando os senhores começaram a fazer
escravos e abolicionistas de promoverem incêndios, formarem quilombos e alforrias voluntárias, foi cada vez mais importante para o Vinte e Cinco de
atacarem fazendas (atos cuja responsabilidade foi posteriormente compro- Março destacar o papel dos abolicionistas, dos escravos e do povo em todo
vada).68 Naquele momento, não precisavam mais esconder tais atos, pois se o processo. Embora a Lei Áurea parecesse sair entre flores, festas e aplausos,
antes “fugiam sorrateiramente, agora deviam sair com toda a publicidade”.69 com a adesão dos últimos resistentes em 1888, isto só ocorria porque estes
Contrariamente à ação (até então) pacífica de escravos e abolicionistas, o foram impelidos pela agitação feita por abolicionistas que promoveram,
jornal ressaltava como os senhores ainda resistiam violentamente à reali- junto ao povo, meetings e quermesses. A “verdadeira solução: a reforma
dade da abolição. Expondo estas agressividades, deixam claro que a aboli- partia de baixo – o escravo libertava-se por si. [...] A vitória do abolicio-
ção não era um processo calmo – o que endossa nosso entendimento de que nismo exprimia, pois, a vontade nacional. O general que dirigiu a batalha e
a abolição brasileira não foi absolutamente pacífica, pois além dos embates conseguiu a vitória foi esse grande anônimo que se chama – povo”.72
hostis, ela se baseou na ideia radical de igualdade dos homens e realizou-se Após analisar o raciocínio e a metodologia do Vinte e Cinco de Março,
graças às fugas dos escravos, que tornaram a escravidão insustentável (o podemos perceber a razão deste jornal ter sido tão combatido pelos senho-
que é ainda mais claro tendo em vista que, no início da década de 1880, a res. Embora a cidade já possuísse sociedades emancipacionistas, a fundação
instituição escrava parecia inabalável).70 deste jornal por Lacerda foi uma das ações abolicionistas mais importantes
Estas fugas diferenciavam-se por três razões: eram coletivas, a recap- – como exemplifica sua primeira conferência. Na ocasião, os mais de mil
turação era cada vez menor e os escravos eram acolhidos. Tudo isso impe- presentes foram apresentados a uma criança escravizada, propriedade de
dia qualquer ação eficaz do governo e dos senhores, consequentemente, os uma importante família da região, que havia sido severamente seviciado e
escravos cientes destas limitações, fugiam aos milhares. Realidade que, em tinha seu corpo coberto de feridas, situação que revoltou todos os presen-
Campos, alcançou seu ápice em março de 1888, quando os senhores deman- tes. Com ações práticas, artigos repletos de denúncias contra escravocra-
daram dos abolicionistas uma ação conjunta pela abolição na cidade. tas, a polícia e o próprio Estado imperial, o jornal se diferenciava por ser o
Para os abolicionistas do Vinte e Cinco de Março, a necessidade de único em Campos que não era submisso à vontade dos senhores. Este cará-
resolver a questão da abolição antecipadamente foi a maior prova da sua ter explícito do Vinte e Cinco de Março denota a sua boa receptividade, pois
vitória, em especial, porque a liberdade da cidade foi marcada para o dia somente um jornal com muitos apoiadores poderia manter este tipo de dis-
25 de março. De perseguidos passaram a conselheiros dos fazendeiros curso em circulação por tanto tempo. Outro sinal da boa receptividade do
e instituíram a data nome do jornal como data da abolição de Campos. jornal foi o crescimento da sua sessão de anúncios. De meia coluna no iní-
Outra prova da sua vitória foi o fato de que as fugas ocorridas na região cio de 1884 passou a uma página inteira e depois mesmo uma página e meia
foram uma exceção no cenário provincial. Como Campos não apresentava no fim da sua produção. Este resultado e o crescimento de cem por cento na
muitas oportunidades de emprego aos fugitivos e nem uma urbanização tiragem do jornal indicam a maior aceitação do mesmo pela população de
exponencial que pudessem facilitar o sustento dos cativos em fuga, foram, Campos e regiões vizinhas. É neste cenário que, como um agente político
certamente, a ação abolicionista e a rebelião aos milhares que quebraram o e fazendo uso do periódico como um de seus instrumentos, Lacerda foi
controle senhorial.71 capaz de influenciar a opinião de seus leitores e mudar o destino da nação,73
podendo, assim, ser entendido como um intelectual orgânico.74 Através de

68 FEYDIT, 2004; LIMA, 1981. 72 VINTE E CINCO DE MARÇO, 27 maio 1888. Seção Vinte e Cinco de Março, p. 2.
69 VINTE E CINCO DE MARÇO, 26 fev. 1888. Seção Vinte e Cinco de Março, p. 1. 73 MACHADO, H., 2010; PESSANHA, 2006.
70 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – 74 Antonio Gramsci afirma que o Estado comporta duas esferas principais: a sociedade política
Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; GRAHAM, 1979; TOPLIN, 1975. (Estado-coerção) e a sociedade civil (conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/
71 TOPLIN, 1975. ou difusão das ideologias). Embora difiram em relação à função na organização da vida social,

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seu jornal, Lacerda organizava, dava homogeneidade e representava o pen- Entendemos que a principal preocupação destes abolicionistas era a
samento contra-hegemônico em Campos, expondo projetos para a melhor colonização nacional,75 a manutenção da produção agrícola, baseada no
inserção do liberto na economia livre. acesso à terra e numa produção diversificada, atendendo necessidades
Os abolicionistas do Vinte e Cinco de Março sempre fizeram questão internas e não apenas o mercado exportador. Não menosprezavam as van-
de opinar sobre como deveria ser feita a transição do trabalho escravo para tagens de mais trabalhadores advindos da imigração (que cresceria automa-
o livre. Consideravam fundamental fazer os senhores entenderem que o ticamente com a abolição), enaltecendo a diversificação de produtos agrí-
liberto era o melhor colono. Por isso, partiam da afirmativa de que os escra- colas produzidos por estes, mas ressaltavam que isso era possível devido às
vos eram os mais aptos para o trabalho no campo. Instruíam os fazendeiros pequenas propriedades rurais e ao trabalho livre e não uma consequência
a ensinarem o escravo a trabalhar livremente, o que, apesar de presumir uma de uma índole diferente do imigrante. Em nenhum momento consideram
incapacidade do escravo para o trabalho livre, não vemos como uma percep- a imigração uma opção superior e, acima de tudo, rechaçavam a ideia de
ção racista por parte dos abolicionistas na medida em que não entendiam os subsidiá-la. Ao reafirmar que o escravo era o melhor colono, os abolicio-
negros como incapazes de trabalhar livremente, mas desabilitados por anos nistas desconstruíam mais uma parte do discurso senhorial. Para eles, a
de escravidão. Na mesma medida, os escravistas também precisavam apren- demanda senhorial por imigrantes era irreal, pois fundava-se unicamente
der a viver não mais como senhores de escravos. Era uma condenação da no medo que estes tinham de depender do trabalho do negro liberto e nos
corruptora instituição da escravidão. Por isso, denunciavam as artimanhas preconceitos que possuíam contra o trabalho do nacional livre. Era o medo
dos senhores para tentar manter a exploração do trabalho, os responsabili- do modo de vida camponês relativamente independente que fazia com que
zando, por fim, pelos resultados insatisfatórios no trabalho livre. latifundiários apoiassem a imigração e as leis antivadiagem.76
Outro ponto essencial para estes abolicionistas era a inserção justa do
liberto no mercado de trabalho livre e sua integração social, econômica
na articulação e reprodução das relações de poder, juntas elas formam o Estado (ditadura +
e política; essencial para a construção da nação. Não ignoravam a possi-
hegemonia), ou seja, ambas servem para conservar ou promover determinada base econômica.
Mas como esses aparelhos privados de hegemonia detêm relativa autonomia do Estado, abre-se a bilidade do liberto ser abandonado à própria sorte, por isso afirmavam a
possibilidade de que a ideologia das classes subalternas obtenha a hegemonia em um dos vários necessidade da educação, que completava a abolição, reparava o mal por
aparelhos hegemônicos privados, mesmo antes que tais classes tenham tomado o poder de Estado,
no sentido estrito. É o que sugerimos ter ocorrido com o movimento abolicionista na segunda ela criado e preparava os libertos. Mas, conscientes da dificuldade desta
metade da década de 1880. Esta é uma crise política-ideológica, uma crise de hegemonia, ou seja, a proposta ser realizada, afirmam que continuariam responsáveis pela ins-
classe dominante perde o consenso, deixa de ser dirigente, permanece apenas dominante, detentora
da força coercitiva. Esse tipo de crise pode resultar numa queda da classe dominante do poder, mas trução do liberto no amor ao trabalho, da mesma forma que antes, por con-
também pode fortalecê-la (através de concessões e manobras reformistas). Logo, a desagregação ferências e meetings. Afirmavam ainda que a transição para o mercado de
do poder constituído depende diretamente da capacidade da classe dominada de fazer política, de
conquistar progressivamente a hegemonia. Neste sentido, o partido político é aquele que possibilita
trabalho livre demandava calma, paciência e dependia de muitos fatores. O
a tomada de poder pela classe dominada e faz isto ao elaborar de modo homogêneo e sistemático momento não era para arbitrariedades, pois os possíveis abalos na lavoura
uma vontade coletiva-popular. Gramsci refuta a possibilidade disto ocorrer através de uma luta seriam passageiros. Os salários encontrariam um equilíbrio e os fazendeiros
espontânea apenas, pois esta é fruto de uma processo político refletido e de uma linha política capaz
de incidir efetivamente sobre a realidade. O que não quer dizer que o partido possa arbitrariamente desfrutariam ainda das vantagens do trabalho livre. Assim como os libertos,
elaborar uma “vontade coletiva” sem considerar os sentimos populares. Neste sentido, o intelectual os ex-senhores precisavam se adaptar aos novos tempos. Completamente
dentro do partido tem um papel destacado, sendo este de dois tipos: o intelectual orgânico, que dá
homogeneidade e consciência a esta classe e os intelectuais tradicionais, que, no passado, tendo sido dependentes da força de trabalho dos cativos, agora os senhores não sabiam
intelectuais orgânicos de uma determinada classe, são, presentemente, relativamente autônomos e como agir, diferentemente dos escravos que bem sabiam viver sem senhor.
independentes. Ambos dão forma homogênea à classe a qual estão organicamente ligados, e, por
isso, preparam a hegemonia desta classe sobre o conjunto dos seus aliados. É como um intelectual
orgânico que Lacerda pode ser entendido: representante de uma vontade coletiva, aquele que 75 SALLES, 2001.
organiza esta vontade e a representa às classes dominantes; COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: 76 MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. O plano e o pânico: Os movimentos sociais na década da
um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1992; GRAMSCI, Antonio. Os abolição. São Paulo: Edusp, 2010; MATTOS, 2005; SANTOS, Cláudia R. Abolicionismo e visões de
intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. liberdade. RIHGB, ano 168, n. 437, p. 319-334, out./dez. 2007.

412 413
Através desta perspectiva, invertiam a fala senhorial que dizia ser o escravo desmantelamento das ações emancipacionistas. O espaço aberto pelo abo-
incapaz de viver livre, precisando ser tutoreado, pois amava e dependia do licionismo trouxe maior participação popular e tornou as estratégias gra-
senhor. Afirmavam que não se podia trocar o trabalho escravo pelo tra- duais inaceitáveis. Como afirma Cláudia Santos, não é preciso apagar a ação
balho coagido, porque além de ser uma hipocrisia, o trabalho continuaria abolicionista para enaltecer a resistência escrava,77 ambas trabalharam para
improdutivo, dado que a natureza humana é regida pela liberdade. a concretização da liberdade.
Indignam-se, por fim, com o fato de que mesmo após a Lei Áurea não Ademais, o fato de que a abolição não representou uma mudança mas-
estava terminada a perseguição aos negros. Demonstram como argumen- siva na condição do negro (fosse ele um ingênuo, liberto ou livre pobre) no
tos que condenam os negros serviam para celebrar a inteligência de outros, Brasil, não significa que os abolicionistas não tenham almejado uma revo-
pois enquanto qualquer indivíduo que negocia melhores salários é apenas lução social junto à abolição, nem que estes se desmobilizaram no pós-abo-
racional, o negro se torna um vagabundo que não quer trabalhar. A falha lição. A não realização destes projetos também não prova a incapacidade
de um único liberto é usada como prova de que todos os negros não mere- do liberto para o trabalho livre, devido a seu suposto apego à ociosidade.
ciam a liberdade. Recusavam as justificativas que os ex-senhores usavam Contrariamente, isto revela o poder dos grandes latifundiários na manuten-
para manter a escravidão (ou para, pelo menos, mostrar insatisfação com o ção do status quo, independente do modelo trabalhista. Incapazes de lidar
trabalhado livre). Argumentavam que as razões para os possíveis insucessos com a liberdade dos seus trabalhadores e irredutíveis na concessão de direi-
na lavoura, agora, seriam fruto da incapacidade dos grandes proprietários tos aos libertos, acreditamos que os senhores lutaram para que as mudanças
de lidar com a nova situação. sociais terminassem com a Lei Áurea. Foram exatamente as revolucionárias
Por isso, afirmam que mesmo após o 13 de maio sua missão não estava propostas dos abolicionistas que motivaram o fim do Império e o estabe-
concluída. Agora cabia proteger os libertos e ingênuos, lutando contra a lecimento de uma República conservadora, que atendeu aos interesses dos
manutenção da cruel prática de torturas, contra ex-senhores que ainda senhores latifundiários; no caso de São Paulo, incentivando a imigração e,
mantinham escravizados e pela restauração dos laços familiares, pelo paga- no restante do país, estabelecendo leis antivadiagem78 – o que é fortalecido
mento de salários justos e pela defesa dos libertos contra senhores que se pelo fato de que os abolicionistas do Vinte e Cinco de Março mantiveram o
apossavam dos seus depósitos na Caixa Econômica. Além destes proble- jornal funcionando e lutando por seus projetos ainda por dois meses após
mas, denunciavam tutorias ilegais de ingênuos e a manutenção na escravi- a abolição. Mesmo com o fim do jornal, fundaram outro periódico no qual
dão dos alforriados condicionalmente, certamente o assunto mais presente permaneceram batalhando pela proteção dos libertos, pela responsabiliza-
pós-abolição. Diante destas denúncias, o jornal mantêm a sua tática argu- ção dos fazendeiros e por melhorias nas condições de inserção do liberto na
mentativa, apresentando a ilegalidade destas ações, denunciando nominal- sociedade e na economia.
mente os envolvidos e demandando atitudes das autoridades responsáveis. Embora não tenha sido o foco do jornal, estes abolicionistas planeja-
Tudo isso até o último número do jornal, o que demonstra claramente a vam reformas abrangentes para depois da abolição. Razão da manutenção
intenção de garantir a aplicação total da Lei Áurea, assim como sabiam que do jornal após a assinatura da Lei Áurea e, depois do seu fechamento, a
só a mesma não garantiria a liberdade dos libertos; seria preciso uma cons- fundação de outro jornal – Cidade de Campos – no qual discutia a reor-
tante vigilância para evitar explorações. Neste sentido, ridicularizaram as ganização do mercado de trabalho.79 Lacerda se manteve ligado às discus-
propostas de indenizações aos ex-senhores e exigiram que a Lei Áurea fosse sões públicas da cidade, prevendo uma luta ainda maior pela implementa-
amplamente divulgada, explicitando que ela eliminava todas as implicações ção destes direitos. Os abolicionistas percebiam que a mudança dos mais
da relação senhor-escravo.
77 SANTOS, Cláudia. Projetos sociais abolicionistas: ruptura ou continuísmo? In: REIS FILHO, Daniel
Por fim, entendemos que destacar os projetos dos abolicionistas não Aarão (Org.). Intelectuais, história e política: séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000.
é assumir que eles foram os únicos responsáveis pela realização da abo- 78 CONRAD, 1978; GRAHAM, 1979.
lição. Foi a ação destes juntamente à ação dos escravos que levaram ao 79 LIMA, 1981.

414 415
resistentes escravistas para o Partido Republicano era uma estratégia para
evitar reformas mais abrangentes, como maior acesso à terra e educação
para libertos, ao contrário de leis antivadiagem e indenizatórias. Declarando
apoio incondicional ao Partido Abolicionista, Lacerda afirma não ter com-
promisso com o Partido Republicano e sim com as ideias republicanas e
rompe com o partido.
Afirmamos, por fim, que a não concretização dos projetos para a
lavoura e o liberto devem-se à reação conservadora, vinda logo após a con-
cretização da abolição. A abolição em Campos deu-se não por falta de mão PARTE III
de obra, nem por empenho da classe senhorial moderna e ansiosa por imi-
grantes. Foi a ação conjunta de abolicionistas, população e escravos que Capital, economia e finanças
tornou o trabalho escravo inaceitável pra a sociedade e improdutiva para
os senhores. Foi uma vitória conjunta, uma etapa no processo de reformas
sonhado por abolicionistas e libertos.

416
Terra, comércio e comerciantes
na vila cafeeira de Piraí
Vladimir Honorato de Paula1

O presente artigo visa apresentar um estudo da dinâmica do comércio pra-


ticado nas freguesias de Arrozal e Piraí durante as décadas de 1830, 1840 e
1850, portanto, no período de estruturação, desenvolvimento e consolidação
da economia cafeeira na região do Médio Vale do Paraíba fluminense, e em
especial nas terras da antiga vila de Piraí. Através desta pesquisa, tornou-se
possível identificar a atuação de comerciantes estabelecidos nas casas de
negócio da vila e um amplo conjunto de práticas de venda, bem como com-
preender a relação desse comércio com o desenvolvimento da agricultura
de exportação praticada nas grandes propriedades rurais de Piraí.2
Boa parte do conhecimento que temos hoje sobre a atuação de comer-
ciantes em terras de Piraí provém do estudo de fontes produzidas ao longo
do século XIX pela antiga Câmara de Vereadores dessa vila.3 Deste con-
junto, os Lançamentos comerciais e os Relatórios dos fiscais de freguesia, sal-
vaguardados no acervo do Arquivo Municipal de Piraí, formam o principal
conjunto documental a fornecer importantes detalhes do universo mercan-
1 Retomo neste artigo uma discussão que iniciei quando da elaboração da dissertação de mestrado
em que analisei a dinâmica mercantil na antiga vila de Piraí no século XIX. O artigo apresentado
faz parte de algumas considerações elaboradas durante o processo de análise da documentação, e
diz respeito sobre a atuação das casas de negócio durante o momento de estruturação da economia
mercantil nas freguesias piraienses.
2 A vila de Piraí foi criada no ano de 1837 por meio do desmembramento de suas terras da antiga Vila
de São João do Príncipe. A freguesia de Piraí surge na separação política, enquanto Arrozal é criada
no ano de 1839.
3 As fontes de pesquisa utilizadas na construção do texto são os Lançamentos Comerciais da Freguesia
de Piraí (cx 01-1839-1884), os Lançamentos Comerciais da Freguesia de Arrozal (cx 01-1839-1884) e
os Relatórios dos Fiscais das Freguesias de Arrozal e Piraí, que integram o Fundo Coleção Câmara
de Vereadores da Vila de Piraí. Além desses, usaremos também Inventários pertencentes ao Fundo
Judiciário (Coleção de Inventários, Testamentos e Execuções por Sentença). A documentação se
encontra sob guarda do Arquivo Municipal de Piraí (doravante AMP), localizado na moderna
Cidade de Piraí.

419
til piraiense. Antes de nos aprofundarmos no universo de informações que documentação dizem respeito ao nome dos comerciantes presentes nas
a análise destas fontes nos trazem, é interessante sabermos um pouco mais freguesias, bem como o local onde situavam suas casas de negócio, o valor
sobre a lógica de produção das mesmas. do imposto correspondente com a atividade desempenhada e a relação das
mercadorias dispostas no estabelecimento. De posse dessas informações
uma incursão no universo mercantil da vila de piraí: arroladas nesta documentação e com base no local ocupado pelos comer-
produção e uso das fontes de pesquisa ciantes, podemos determinar a geografia do comércio local, indicando
quais seriam os pontos ocupados pelos comerciantes, estabelecendo um
Os lançamentos comerciais eram listas nominativas elaboradas pelos fis-
parâmetro entre a ocupação desses locais e o contexto econômico da época.
cais de freguesia, funcionários da câmara de vereadores encarregados de
Ou seja, podemos identificar os principais locais para a venda de mercado-
administrar as freguesias. Sua produção se relaciona com a intenção da
rias, relacionando os motivos que levavam os comerciantes a ocupar estes
câmara de controlar o comércio de mercadorias praticado nos limites das
locais em determinado período.
freguesias, além de regular as rendas provenientes do setor com o objetivo
Apesar de sua enorme importância como fonte de estudo sobre o
de tributar os comerciantes. Nesse sentido, os lançamentos comerciais fun-
comércio e o comerciante na vila de Piraí, e de um modo geral, da ativi-
cionavam como um instrumento de controle fiscal e administrativo usado
dade mercantil na região do Médio Vale do Paraíba fluminense, o uso dos
pelas autoridades locais a fim de disciplinar a atuação dos comerciantes,
lançamentos comerciais apresenta limitações no que concerne a análise da
bem como do comércio de produtos que estes praticavam em seus estabe-
dinâmica da venda de mercadorias ao nível local. Por se tratar de uma fonte
lecimentos. Os lançamentos comerciais eram produzidos de forma anual e
fiscal e tributária, cujo conteúdo se volta principalmente para a identifica-
suas informações esmiuçavam em detalhes parte importante do cotidiano
ção do comerciante, o lugar que ocupava na freguesia e o valor do imposto
dos comerciantes. Ao final do mês de dezembro de cada ano, o fiscal ela-
correspondente, suas informações não contemplam as condições no qual
borava um lançamento comercial referente à freguesia que administrava.
se processavam o comércio. Tampouco fornecem detalhes da importância
Ao terminar a elaboração do lançamento, ele encaminhava o documento
do desenvolvimento econômico regional para a manutenção da atividade
para o procurador da câmara. A partir das informações fornecidas pelos
desenvolvida nas casas de negócio.
fiscais de freguesia, o procurador tomava medidas para cobrar os impostos
A fim de complementar nossa percepção acerca dos elementos relacio-
dos comerciantes inscritos nestas listas nominativas. A fim de informar os
nados com a dinâmica mercantil, bem como dos personagens nela envolvi-
comerciantes sobre o valor do imposto devido, o procurador elaborava um
dos de forma direta, recorremos aos Relatórios dos fiscais de freguesia, outra
edital para cada freguesia, mandando afixar esse edital na porta da Igreja
fonte de pesquisa produzida no período por estes agentes históricos. Com
Matriz correspondente. Era de responsabilidade do comerciante procurar
o objetivo de controlar a freguesia posta sob seu controle, o fiscal deveria
a Igreja Matriz onde mantinha sua casa de negócio e encontrar seu nome
efetuar uma viagem de inspeção pelos principais pontos de sua jurisdição
nestes editais, identificar o valor devido e pagar a quantia no tempo deter-
administrativa. Estas viagens eram denominadas na época de “correição”.
minado sobre a atividade desenvolvida no ano anterior.4 Dessa forma, o
As correições eram empreendidas uma vez a cada três meses, o que levava
fiscal se transformava no representante e principal agente da câmara nas
o fiscal, juntamente com um acompanhante, geralmente outro funcionário
longínquas e imensas freguesias. As principais informações a constar dessa
da câmara, a percorrer a cavalo as terras da freguesia. Desta forma, tam-
bém visitavam os povoados que iam surgindo e entravam em contato com
4 O procurador da câmara, responsável pela produção dos editais, mandava afixar os editais nas
portas das igrejas no início do mês de fevereiro. Competia ao comerciante procurar o fiscal da
os mais diferentes indivíduos que participavam ativamente da venda de
freguesia em que mantinha sua casa de negócio em funcionamento e pagar o valor do imposto. Caso mercadorias. Em sua função, inspecionavam as casas de negócio estabele-
não pagasse o imposto no prazo estipulado pelo edital, o comerciante recebia uma multa do fiscal.
O fiscal remetia os valores recebidos ao procurador da Câmara, que o lançava na contabilidade
cidas, aproveitando a ocasião para obter uma série de informações utilizadas
geral da Câmara de Vereadores e da Vila. posteriormente na produção dos lançamentos comerciais, tais como: se o

420 421
comerciante possuía e se havia renovado sua licença anual de funcionamento entre as áreas rurais e os povoados:
(caso fosse encontrado comerciantes sem licença da câmara, o fiscal expedia o comércio na vila de piraí
imediatamente uma licença e inseria o comerciante na relação de donos de
Nas terras da antiga vila de Piraí, o comércio de mercadorias se concentrava
casas de negócio da freguesia), se havia quitado o imposto do ano anterior,
essencialmente nos estabelecimentos mercantis denominados de casas de
se estava em dia com a aferição dos pesos, medidas e da balança usadas no
negócio. Juntamente com as casas de negócio, persistiam atividades comer-
negócio e se o imóvel usado para a venda de mercadorias se encontrava de
ciais ligadas aos comerciantes itinerantes. Diferente dos comerciantes donos
acordo com as regras estipuladas no Código de Posturas da vila.
de casas de negócio que se mantinham em local fixo, os praticantes do comér-
Ao final de cada correição trimestral, depois de percorridas as princi-
cio itinerante de mercadorias tinham por característica principal a mobili-
pais estradas municipais e provinciais que cortavam as terras sob sua juris-
dade dentro dos limites geográficos das freguesias. Também chamados de
dição, o fiscal retornava ao povoado sede da freguesia, local onde geral-
mascates, os comerciantes itinerantes podiam ofertar seus produtos aos dife-
mente residia e mantinha seu escritório, para elaborar um relatório que era
rentes clientes em potencial encontrados durante suas longas jornadas pelas
enviado aos vereadores.5 Neles, os fiscais avaliavam o potencial de venda,
inúmeras propriedades agrícolas, pelos caminhos que percorriam ou até nos
a qualidade dos produtos e o movimento mercantil dos estabelecimentos
povoados que foram surgindo com o desenvolvimento econômico regional.
visitados, bem como as possíveis interferências de fatores climáticos e eco-
De modo alternativo aos mascates, que empreendiam um comércio
nômicos na venda de mercadorias. Nestas bases, era possível montar os
volante de mercadorias em busca dos clientes, sendo as mercadorias conduzi-
relatórios trimestrais, os lançamentos comerciais anuais e elaborar o valor
das em lombo de burros ou no ombro dos próprios homens, os comerciantes
anual do imposto a ser pago por cada comerciante em atuação.
estabelecidos em casas de negócio dependiam muito do movimento mercantil
O estudo dos relatórios, em combinação com a análise dos dados refe-
dos pontos escolhidos para a abertura de seus empreendimentos. Esta depen-
rentes aos lançamentos comerciais, proporciona ao historiador um amplo
dência levava os donos de casa de negócio a situarem seus estabelecimentos
conhecimento do comércio e das relações comerciais na vila de Piraí no
mercantis em locais que ofereciam condições favoráveis para a venda de pro-
século XIX. Neste ponto, gostaria de destacar algumas conclusões importan-
dutos. Desta forma, pode-se dizer que até o advento da Estrada de Ferro D.
tes. Primeiro, a grande importância das transações entre comerciantes locais
Pedro II e a instalação da estação ferroviária de Barra do Piraí em meados da
estabelecidos e os viajantes de ocasião e tropeiros que trafegavam nas estradas
década de 1860, os principais locais para a venda de produtos nas freguesias
que atravessavam as freguesias. Essa movimentação de pessoas e animais era
de Arrozal e Piraí se localizavam em determinados povoados e algumas áreas
fundamental para a manutenção das casas de negócio. Segundo, a paralisação
situadas nas zonas rurais.6 Analisando as informações extraídas de quatro
do tráfego interfreguesias em decorrência de alguma eventualidade (a exem-
lançamentos comerciais da freguesia de Arrozal para a década de 1840, é pos-
plo das fortes chuvas que afetavam a região) causava grandes prejuízos para
sível identificar a concentração de comerciantes em locais específicos, como
os comerciantes e para o estado que deles cobrava impostos. Havia, portanto,
no povoado da Serrinha e no povoado sede da freguesia de Arrozal.
uma dependência do setor mercantil piraiense em relação à dinâmica econô-
Além desses dois lugares, os comerciantes ocupavam zonas agrícolas,
mica regional do Vale do Paraíba, principalmente a agricultura de exportação
geralmente pontos em torno de paradas de tropas ou ao longo de impor-
baseada na cafeicultura. Assim, as condições de tráfego nestas vias era um
tantes estradas municipais e provinciais que cruzavam estas zonas. Nestes
assunto recorrente nos relatos dos fiscais, uma vez que por ali transitavam
não apenas as tropas com volumosas safras em direção ao porto no Rio de 6 A estação ferroviária de Barra do Piraí foi inaugurada pela Companhia da Estrada de Ferro D. Pedro
II no ano de 1864. As terras em que se erguera a estação eram parte na época da freguesia de Piraí.
Janeiro, mas também aqueles que seriam os principais consumidores das Portanto, quando a ferrovia D. Pedro II atingiu as margens do rio Paraíba do Sul, ao término da
mercadorias disponíveis para comércio nas casas locais de negócio. construção do trajeto ferroviário que ligava a estação ferroviária de Belém ao vale do Rio Paraíba, o fez
em seu trajeto final atravessando as terras da Vila de Piraí. A atual cidade de Barra do Piraí, que surge
5 As correições eram efetuadas nos últimos dias dos meses de março, junho, setembro e dezembro. Ao com o estabelecimento e desenvolvimento progressivo da estação de Barra do Piraí, é criada somente
longo do ano eram então elaborados quatro relatórios enviados ao procurador da câmara de vereadores. no ano de 1890, com o desmembramento de suas terras da cidade de Piraí já no período republicano.

422 423
locais, atuaram ao longo dessa década comerciantes estabelecidos em casas Conforme demonstram os dados relativos aos comerciantes donos de
de negócio com interesse no comércio de mercadorias com clientes em casas de negócio em Arrozal, a atividade mercantil ligada a este grupo era
potencial. Conforme demonstram as informações disponíveis na Tabela 1, desempenhada sobretudo no povoado sede da freguesia que apresentou,
destaca-se a presença constante de comerciantes em diversos locais da fre- ao longo do período analisado, a principal concentração de comercian-
guesia de Arrozal. Por meio dos dados retirados dos lançamentos comerciais tes. Através dos dados fornecidos pela Tabela 1, podemos observar que o
dessa freguesia para os anos de 1842, 1844, 1846 e 1849, observamos a estru- povoado sede da freguesia se converteu no principal núcleo de venda de
turação de núcleos mercantis no povoado sede da freguesia, no povoado da produtos de Arrozal, concentrando expressivo número de comerciantes
Serrinha e nas regiões de Picada dos Índios e do Poço. Nesses locais, foram em sua área de abrangência. Trabalhando com um conjunto de lançamen-
encontrados comerciantes em todos os lançamentos comerciais disponíveis tos comerciais da freguesia de Piraí produzidos na década de 1840, foi
para o período, o que demonstra a existência de condições favoráveis para a possível identificar a atuação de comerciantes nesta freguesia. De acordo
venda de mercadorias e o incentivo ao estabelecimento constante de comer- com lançamentos comerciais dos anos de 1839, 1841 e 1848, os comercian-
ciantes. Uma exceção ocorreu no Caminho Novo e na Manga Larga, onde a tes de Piraí ocupavam determinados povoados e locais nas zonas rurais.
presença de comerciantes foi assinalado somente numa única oportunidade Na zona rural da freguesia de Piraí, as casas de negócio eram estabelecidas
nos quatro anos analisados. A presença inconstante de comerciantes nestes de forma preferencial em locais situados nas margens de estradas provin-
lugares demonstra a não formação de núcleos mercantis estáveis com pos-
ciais e municipais. Às margens dessas estradas, os comerciantes abriam
sibilidades favoráveis para o comércio. Já nos demais locais, observamos a
suas casas de negócio em pontos de paradas de tropas e propriedades
estruturação de núcleos mercantis estáveis devido a presença constante de
agrícolas.
casas de negócio em funcionamento. A presença de comerciantes e de casas
Como se vê, até a chegada da ferrovia, as casas de negócio eram aber-
de negócio nestes pontos nos leva a pensar na sua transformação em núcleos
tas em pontos onde ocorresse a montagem das paradas de tropas, como
mercantis de importância para a economia local e sua interação com as ativi-
na serra do Batista ou do Airoza, ou então em determinados trechos de
dades produtivas desenvolvidas em seu entorno. Vejamos a tabela:
estradas, como na Estrada Geral ou no Caminho dos Thomazes. De um
modo geral, nas zonas rurais de Arrozal e Piraí, os comerciantes abaste-
1842 1844 1846 1849
ciam de produtos os viajantes de passagem pela região, ou então os tro-
* Povoado sede da freguesia 23 14 18 14 peiros e animais em viagem ou que pernoitavam em pontos estratégicos
* Povoado da Serrinha 5 5 7 2 das estradas, como as paradas de tropas. Incluindo os tropeiros e viajan-
** Picada dos Índios 10 5 7 8 tes, as casas de negócio vendiam mercadorias para os produtores rurais
** Poço 7 10 1 1 estabelecidos nas proximidades. Assim como encontramos para Arrozal,
** Caminho Novo 4 podemos perceber em Piraí a formação de núcleos mercantis estáveis,
** Manga Larga 1
principalmente nas áreas do entorno e de regiões centrais dos povoados
de Thomazes e Mendes e do povoado sede da freguesia. Para os três lan-
Total de comerciantes
presentes na freguesia ao ano
45 34 37 26 çamentos disponíveis desta freguesia da década de 1840, assinalamos em
todos os povoados a presença de comerciantes estabelecidos em casas
* povoados onde foram encontradas casas de negócio em funcionamento de negócio, conforme a Tabela 2. A presença constante de comerciantes
** pontos de parada de tropas ou zonas agrícolas com presença de casas de negócio em funcionamento demonstra a transformação desses povoados em núcleos mercantis está-
TABELA 1: Povoados e regiões em meio a zona rural onde foram encontrados comerciantes na freguesia veis, contendo locais dedicados a venda de mercadorias por meio do fun-
de Arrozal de acordo com os Lançamentos Comerciais dos anos de 1842, 1844, 1846 e 1849. Fonte: AMP.
Os espaços em branco na tabela fazem referência à ausência de comerciantes nos locais analisados pelo cionamento de casas de negócio.
fiscal de Arrozal nos anos dispostos na tabela.

424 425
1839 1841 1848 do Paraíba fluminense. A chegada das locomotivas a vapor e a abertura de
* Povoado sede da Freguesia 22 16 13
estações ferroviárias dentro da região proporcionam uma nova reordenação
* Thomazes 14 12 10
espacial do comércio local, com o esvaziamento e perda de importância de
* Mendes 8 9 6
antigos núcleos mercantis nessas duas freguesias. A partir desse momento,
** Ponte do Mesquita 3 1
observa-se, através da consulta de lançamentos comerciais dessas duas fregue-
** Serra do Batista 2 3
sias, um movimento de transformação de regiões próximas às destacadas esta-
ções ferroviárias, como a de Barra do Piraí, em importantes núcleos mercantis.
** Rio Acima 6
Nesse movimento específico, ocorrido dentro de uma conjuntura
** Ponte da Maria 2
regional proporcionada pela modificação no sistema de transporte de
** Estrada Geral 1
mercadorias entre o Vale do Paraíba e a cidade do Rio de Janeiro, anti-
** Sobradinho 1
gos núcleos mercantis ocupados tradicionalmente por comerciantes em
** Pinheirinho 2 1
Arrozal e Piraí iniciam um processo de desestruturação, com a perda gra-
** Caminho dos Thomazes 1
dativa de sua importância na venda de mercadorias. Contudo, antes do
** Caminho da Barca 2 1
advento da ferrovia e das estações ferroviárias, o comércio de um modo
** Erva do Bicho 3
geral na vila de Piraí se manteve vinculado aos povoados e pontos situados
** Picões 1 2 1
nas zonas rurais, conforme podemos observar em lançamentos comerciais
** Estrada do Airoza 1
das freguesias de Arrozal e Piraí para a década de 1850. Tomando como
** Sítio 2 1
destaque os dados disponíveis para a freguesia de Arrozal e retirados dos
** Grama 1
lançamentos comerciais de 1854, 1856 e 1858, podemos indicar a permanên-
** Caminho do Ribeirão das Lages 1 1
cia da dinâmica mercantil como o encontrado para a década de 1840. Nesse
** Rio Abaixo 5 1
contexto, a atividade mercantil continuava sendo desenvolvida de forma
** Serra da Senhorinha 1
favorável no povoado da Serrinha e no povoado sede da freguesia, bem
** Cachaças 1
como nas regiões rurais de Picada dos Índios e Poço.
** Estacas 1
** Capoeiras 1 1854 1856 1858
** Joaquim Francisco 2 * Povoado sede da Freguesia 21 23 24
** Estrada Nova 5 * Povoado da Serrinha 6 6 5
Total de comerciantes presentes na Freguesia ao ano 73 52 42 ** Picada dos Índios 9 9 9
** Poço 6 3
* povoados onde foram encontradas casas de negócio em funcionamento
** pontos de parada de tropas ou zonas agrícolas com presença de casas de negócio em funcionamento ** Manga Larga 1

TABELA 2: Povoados e regiões em meio a zona rural onde foram encontrados comerciantes na freguesia Total de comerciantes presentes na Freguesia ao ano 42 42 38
de Piraí de acordo com os Lançamentos Comerciais dos anos de 1839, 1841 e 1848. Fonte: AMP. Os espa-
* povoados onde foram encontradas casas de negócio em funcionamento
ços em branco na tabela fazem referência à ausência de comerciantes nos locais analisados pelo fiscal de
** pontos de parada de tropas ou zonas agrícolas com presença de casas de negócio em funcionamento
Piraí nos anos dispostos na tabela.
TABELA 3: Povoados e regiões em meio a zona rural onde foram encontrados comerciantes na Freguesia
A principal alteração na dinâmica mercantil dentro dos limites das fre- de Arrozal de acordo com os Lançamentos Comerciais dos anos de 1854, 1856 e 1858. Fonte: AMP. Os
espaços em branco na tabela fazem referência à ausência de comerciantes nos locais analisados pelo
guesias de Arrozal e Piraí ocorre somente no momento em que a Estrada de fiscal de Arrozal nos anos dispostos na tabela.
Ferro D. Pedro II começa a operar de forma efetiva na região do Médio Vale

426 427
Conforme demonstram os dados das tabelas 1, 2 e 3, o comércio na vila ocorrido na Serrinha, onde o comércio, em parte, se debruçava ao longo da
de Piraí estava concentrado entre as áreas rurais e os povoados. Apesar do área fronteira ao principal templo religioso da comunidade. Quando não
comércio praticado em casas de negócio se encontrar distribuído entre os ocupavam estes locais, os comerciantes tendiam a manter as casas de negó-
povoados e as zonas rurais, podemos perceber que grande proporção de cio nas margens das estradas que davam acesso ao povoado. Em alguns
comerciantes das freguesias de Arrozal e Piraí tendia a abrir sua casa de povoados específicos, principalmente aqueles que vão surgindo devido ao
negócio nas áreas centrais e no entorno dos poucos povoados então existen- movimento nas estradas, as casas de negócio se estendiam paralelo ao leito
tes. As informações referentes aos comerciantes na década de 1850 corrobo- da estrada que os cortava. Em Thomazes, vilarejo desenvolvido ainda na
ram nossas expectativas em relação a presença e distribuição do comércio e primeira metade do século XIX e vinculado ao movimento da Estrada Real
dos comerciantes em terras piraienses antes do advento da ferrovia no inte- das Boiadas, por exemplo, e mesmo em Mendes e Serrinha, o comércio
rior da província fluminense. De acordo com os lançamentos comerciais da de mercadorias, bem como a atuação de oficiais mecânicos nestes locais,
freguesia de Piraí para os anos de 1850, 1854 e 1856, os comerciantes manti- ocorreu em consequência do tráfego de pessoas e animais que circulavam
nham uma predisposição para abrir suas casas de negócio em locais situados diariamente nas estradas que atravessavam estas vilas.
dentro ou no entorno dos povoados, deixando em segundo plano as regiões Nesse contexto, devemos indicar que o movimento de pessoas e ani-
rurais. Nos lançamentos comerciais da década de 1850, grande proporção de mais nestas estradas se deveu ao escoamento do café plantado nas regiões
comerciantes com casa de negócio na freguesia de Piraí se encontrava esta- agrícolas de Piraí e de outras vilas cafeeiras do Médio Vale do Paraíba flumi-
belecido em Mendes e Thomazes e no povoado sede da freguesia. nense, como Barra Mansa. A expressiva produção de café desenvolvida nes-
Assim como encontrado para a década de 1840, persistiam comercian- sas vilas, e principalmente, a necessidade de escoamento dessa produção por
tes na década de 1850 ocupando locais em regiões rurais para a venda de um sistema baseado no tropeiro e seus animais, proporcionavam um amplo
mercadorias, como as regiões de Rio Abaixo e Erva do Bicho, entre outras. mercado consumidor para as mercadorias dos comerciantes piraienses. Do
abastecimento deste mercado, faziam parte tanto os comerciantes estabele-
Tal presença indica as imensas possibilidades para a venda de produtos que
cidos nas áreas rurais quanto os comerciantes baseados nesses lugares. Desta
estas áreas ofereciam, transformando-as em regiões que competiam com
forma, nas antigas freguesias de Piraí e Arrozal, boa parte dos povoados
os povoados na preferência dos comerciantes para estabelecimento de suas
que surgem ainda na primeira metade do século XIX se localizavam às mar-
casas de negócio. O estudo dos dados acerca do comércio nas freguesias
gens das importantes estradas, e delas dependiam em grande medida para a
piraienses demonstram a existência, nas décadas de 1840 e 1850, de uma
manutenção de sua importância comercial, administrativa e religiosa.
dinâmica mercantil variada, com a ocupação de diferentes pontos para a
venda de produtos e uma forte dependência desse setor em relação a eco-
nomia agrícola regional e das atividades produtivas complementares que
as múltiplas faces da dinâmica mercantil piraiense:
os comerciantes produtores rurais
surgem a partir dessa economia.
e os comerciantes especializados
Diferente das áreas rurais, onde as casas de negócio eram instaladas
próximas às estradas mais importantes, uma vez que existia o interesse Através do estudo acerca dos comerciantes em Piraí, foi possível perceber
dos comerciantes em vender seus produtos aos viajantes de ocasião, nos que boa parte do comércio era desenvolvida por produtores rurais que con-
povoados, os comerciantes adotavam o entorno das áreas centrais para jugavam a venda de mercadorias com a produção agrícola. Estes homens
abrirem suas casas de negócio. Conforme observado na vasta correspon- investiam de modo simultâneo na atividade mercantil e na produção rural,
dência mantida entre os fiscais de freguesia e o procurador da câmara da se diferenciado daqueles comerciantes dedicados exclusivamente à venda de
vila de Piraí, os comerciantes, sempre que possível, ocupavam as áreas cen- mercadorias. Como exemplo, cito o caso de Albino José de Souza Neira, mora-
trais dos povoados das freguesias, geralmente as proximidades do largo da dor da freguesia de Piraí. O inventário dos bens que possuía por ocasião do
Igreja Matriz ou da capela mais importante do povoado – a exemplo do falecimento de sua esposa, D. Ana Maria de Jesus, demonstrou que o mesmo

428 429
investia na produção agrícola e no comércio de mercadorias. Entre os bens Nestes pontos comerciais instalados dentro das propriedades rurais,
avaliados pela justiça que denunciam sua dupla inserção, consta uma casa era comum a comercialização de artigos da agricultura comercial e de sub-
que servia de estabelecimento comercial, além de mercadorias nela dispo- sistência produzidos nas mesmas propriedades, com destaque para o milho,
nível para negócio. Incluindo a casa de negócio, o monte-mor era composto o fubá, o arroz, a farinha de mandioca, o feijão e a aguardente destilada de
por itens do universo rural de Piraí, como terras de cultivo, benfeitorias e cana-de-açúcar. Em relação aos produtos cultivados localmente e comer-
produtos cultivados, como o café, plantado em várias partes da propriedade.7 cializados nas casas de negócio, o milho e a aguardente de cana-de-açúcar
Outro caso de produtor rural e comerciante é o de Manoel José Vaz, eram os principais gêneros vendidos, com destaque para o milho, empre-
morador da região da Erva do Bicho, freguesia de Piraí. O inventário dos gado no abastecimento dos animais. Num tempo em que o transporte de
bens ocasionados pela morte de sua esposa, Isabel Maria dos Santos Vaz, mercadorias efetuado por tropeiros era considerável, uma vez que fornecia
indica a vinculação de Manoel José Vaz com a produção rural e a venda de o único meio viável para conduzir a volumosa produção cafeeira das fazen-
mercadorias. Assim como Albino José de Souza Neira, Manoel José Vaz man- das da antiga vila de Piraí, o comércio desse artigo era importante, incenti-
tinha uma casa de negócio dedicada à venda de mercadorias, além de pro- vando sua produção nas fazendas e a venda nas casas de negócio. Tão consi-
dutos nela estocadas para negócio. A casa de negócio pertencente a Manoel derável era o consumo do milho nesse período que o comércio desse artigo
José Vaz estava situada dentro de sua propriedade agrícola, onde o principal mereceu uma apreciação de Joaquim Manoel de Sá, procurador da câmara
produto cultivado era o café. Incluindo o cultivo de cafeeiros, a propriedade da vila de Piraí, no ano de 1857, que recomendou aos vereadores a cobrança
dedicava-se ainda ao plantio de bananeiras, hortas e arvoredos frutíferos.8 de impostos sobre o funcionamento de ranchos de tropas localizados nos
Uma das características do comércio praticado na área rural das fre- pousos de tropeiros e casas de negócio. Em sua opinião, a câmara deveria
guesias era a vinculação desse setor com as propriedades agrícolas, uma tributar a abertura e funcionamento desses estabelecimentos, alegando que
vez que boa parte das casas de negócio situadas nesses espaços se estabe- nesses locais ocorria um ativo comércio de milho praticado pelos comer-
lecia dentro de propriedades rurais. Nessas unidades, as casas de negócio ciantes com os tropeiros.
se encontravam situadas próximas das estradas que cortavam as terras do Boa parte dos ranchos em funcionamento nas freguesias de Arrozal e
produtor rural, como o estabelecimento mantido por Albino José de Souza Piraí nas décadas de 1840 e 1850 eram de propriedade de donos de casas de
Neira. Conforme consta do inventário, sua casa de negócio se encontrava negócio, pois interessava aos mesmos atrair clientes, principalmente tro-
construída dentro de suas terras, mais situada defronte da estrada que cor- peiros e viajantes de ocasião.10 É comum encontrar na documentação refe-
tava sua propriedade.9 Quando não se situavam nas margens das estradas, rências sobre a manutenção de pastos e ranchos para acomodar homens,
as casas de negócio eram construídas no interior das terras do produtor animais e mercadorias. Esse é o caso do comerciante Manoel José Pereira
rural. Em muitos casos, adaptava-se parte das casas de morada para fun- de Souza, cujo inventário demonstra que o mesmo mantinha pasto em sua
cionar também como estabelecimento mercantil, sendo necessário instalar fazenda e um rancho, ambos localizados próximo de sua casa de negócios.
balcão e armação para receber as mercadorias, bem como colocar balança Manoel José Pereira de Souza plantava milho e arroz, produtos vendidos a
com os pesos e medidas adequados. Em boa parte das casas de negócio, tropeiros e viajantes que aproveitavam a hospitalidade de seu pasto e ran-
havia a presença de alpendres na entrada do estabelecimento. Os alpendres cho.11 Tal prática não era uma exclusividade dos comerciantes situados nas
funcionavam como proteção para os clientes e as mercadorias das intempé- zonas agrícolas, pois nos povoados alguns comerciantes mantinham estru-
ries do tempo, como a chuva e o sol. turas destinadas a acomodar os viajantes em pequenos lotes de terras situa-
dos próximos às suas casas de negócio.
7 INVENTÁRIO de D. Ana Maria de Jesus. Piraí: Arquivo Municipal de Piraí, 1840-1842. Juízo de
Órfãos – 1841, caixa 4. 10 RELATÓRIO do procurador da Câmara: lançamentos Comerciais da Freguesia de Piraí – 1857. Piraí:
8 INVENTÁRIO de Isabel Maria dos Santos Vaz. Piraí: Arquivo Municipal de Piraí, 1856. Juízo de Arquivo Municpal de Piraí, 1838-1884. Caixa 1.
Órfãos – 1856, caixa 13. 11 INVENTÁRIO de Manoel José Pereira de Souza. Piraí: Arquivo Municipal de Piraí, 1856-1857. Juízo
9 INVENTÁRIO de D. Ana Maria de Jesus. de Órfãos – 1857, caixa 14.

430 431
Aos ausentes da produção rural restava ocupar as áreas centrais e o O movimento nas estradas proporcionou o desenvolvimento de um
entorno dos povoados, como fazia o comerciante Manoel Teixeira Villas expressivo setor de venda de mercadorias estabelecido nas margens das
Boas, que mantinha uma casa de negócio situada dentro dos limites do estradas e caminhos, com força suficiente para influenciar a dinâmica mer-
povoado dos Mendes, freguesia de Piraí. Manoel Teixeira Villas Boas resi- cantil nas freguesias e na localização dos núcleos mercantis. Tão importante
dia com sua família numa casa que funcionava de forma simultânea como era a influência do movimento das estradas para a organização espacial do
moradia e estabelecimento mercantil.12 Nesse ambiente, comercializava comércio, que os próprios povoados que se estruturam nas freguesias da
tecidos, bebidas alcoólicas e artigos denominados de secos e molhados. vila de Piraí são constituídos nas margens dessas vias. Como exemplo dessa
O mesmo ocorria com Francisco Ferreira Lobo no povoado sede da fre- influência na dinâmica mercantil temos, na freguesia de Piraí, os povoados
guesia de Arrozal, onde praticava a venda de tecidos de diferentes qualida- de Thomazes, estruturado ainda na primeira metade do século XIX a partir da
des e artigos de secos e molhados.13 Mesmo desvinculados de forma direta Estrada Real das Boiadas, e o de Mendes, desenvolvido às margens de antigo
da agricultura, os comerciantes estabelecidos nos povoados com casas de caminho que ligava Valença à cidade do Rio de Janeiro, respectivamente.15
negócio mantinham uma ativa comercialização de gêneros da agricultura Um episódio ocorrido na freguesia de Piraí no ano de 1839 comprova
comercial e de subsistência produzidos no agro rural piraiense e, para tanto, esta relação entre caminhos de circulação e comércio. Na ocasião, dois mora-
adquiriam tais bens com produtores rurais.14 dores modificaram o traçado do caminho que ligava a freguesia de Piraí à
Vila de Iguaçú, passando pelo povoado dos Thomazes e descendo a serra do
nas margens dos caminhos: Airoza. Estes produtores construíram um desvio na estrada através da der-
a economia mercantil e sua ligação com as estradas rubada de matas sobre o antigo caminho o que, segundo o fiscal, obrigava os
viajantes a passarem defronte da casa de morada e das plantações dos pro-
Por meio de uma intrincada rede de estradas, caminhos e picadas que
dutores rurais que fizeram a modificação.16 As reclamações encaminhadas
atravessavam os povoados e as amplas zonas agrícolas, movimentavam-se
ao fiscal da freguesia de Piraí por moradores prejudicados pela modifica-
homens e animais que, ao consumirem mercadorias locais durante suas
ção do caminho demonstram que a construção do desvio desarticulou uma
longas jornadas, estimularam a montagem e desenvolvimento do comércio
bem estruturada rede de abastecimento integrada por produtores rurais com
nas freguesias da vila de Piraí. A necessidade constante de deslocamento,
lavouras nas margens do trajeto e com interesse em abastecer os tropeiros
principalmente de tropeiros no momento em que o Médio Vale do Paraíba
que circulavam entre a região de Piraí e Iguaçú. Tal fato favoreceu os mora-
fluminense se converteu no principal centro produtor de café do Império
dores que introduziram o desvio, cujas casas e lavouras ficaram em posição
do Brasil, impulsionou a montagem de uma economia mercantil centrali-
privilegiada para abastecer com mercadorias e ranchos os viajantes.
zada em núcleos distribuídos entre os diversos povoados e as zonas rurais.
A economia mercantil estabelecida nas margens das estradas e centra-
lizada em casas de negócio enfrentava problemas que iam além da modi-
ficação intencional do traçado original. As fortes chuvas que castigavam
12 INVENTÁRIO de Manoel Teixeira Villas Boas. Piraí: Arquivo Municipal de Piraí, 1843-1844. Juízo de
a região de Piraí em determinadas épocas do ano geravam dificuldades
Órfãos – 1844, caixa 5.
13 INVENTÁRIO de Francisco Ferreira Lobo. Piraí: Arquivo Municipal de Piraí, 1851. Juízo de Órfãos 15 De acordo com Adriano Novaes, o referido caminho que ligava Valença ao Rio de Janeiro era
– 1851, caixa 9. chamado originalmente de Estrada da Bocaina dos Mendes. Depois da década de 1850, e após
14 As relações mercantis referidas no texto se davam essencialmente entre os comerciantes e o micro, o Governo da província do Rio de Janeiro executar obras de melhoria nesta estrada, o nome
pequenos e médios produtores rurais. A fim de obter maiores detalhes acerca das relações mercantis foi trocado, passando a se chamar a partir de então Estrada do Presidente Pedreira. O povoado
entre os comerciantes e os produtores rurais acima mencionados, recomendo ler o capítulo “Análise de Mendes surge no início da década de 1830, de forma conjunta com a vila de Piraí. NOVAES,
das estruturas da economia de abastecimento na Vila de Piraí” que integra a dissertação de Mestrado Adriano. Os caminhos antigos no território fluminense. p. 60. Instituto Cidade Viva. Rio de Janeiro.
que apresentei no PPGH da USS, intitulada A Vila de Piraí: comércio e comerciantes numa vila Disponível em: <www.institutocidadeviva.com.br/textosautorais>. Acesso em: 25 mar. 2011.
cafeeira da província do Rio de Janeiro (século XIX). Disponível em: <www.uss.br/posgraduacao/ 16 RELATÓRIO do Fiscal da Freguesia de Piraí. Piraí: Arquivo Municipal de Piraí, abr. 1839. Caixa 1
strictosensu/historiasocial>. (01-199). Os moradores

432 433
para a comercialização de mercadorias. Períodos prolongados de chuvas, os estragos. A normalização do trânsito era essencial não apenas aos comer-
em combinação com o estado precário de conservação das vias, aumen- ciantes, mas à própria economia agrícola exportadora em atividade.
tavam as dificuldades de movimentação pelas estradas, levando prejuí-
zos ao comércio, como podemos observar no relatório de Antonio da considerações finais
Cruz Salgado, fiscal da freguesia de Arrozal em 1871: “não houve multa
alguma em atenção ao mau tempo, encontrando os negociantes com falta A partir de nossa análise sobre a dinâmica do comércio nas freguesias de
de comércio em seus negócios; os quais pediram-me que [...] atende- Arrozal e Piraí, foi possível concluir que as casas de negócio dependiam,
se a falta de comércio em seus negócios”.17 No ano seguinte, o fiscal escreve para o bom funcionamento de suas atividades, de alguns fatores favoráveis,
novamente relatando que as chuvas atrapalharam a venda de mercadorias como a existência de condições para o livre trânsito de homens e animais
nas casas de negócio, em virtude dos transtornos existentes para a circula- pelas estradas municipais e provinciais que cortavam a vila e o funciona-
ção dos clientes: “passei a examinar as casas de negócio [...] acha-se todas mento da economia agrícola exportadora regional. A facilidade de circu-
em mau estado por falta do comércio e o mau tempo que tem havido”.18 lação proporcionava a chegada de possíveis clientes aos núcleos de comer-
Mesmo quando as fortes precipitações pluviométricas não paralisavam cialização de mercadorias estabelecidos nas áreas rurais e nos povoados,
o trânsito de forma momentânea nas estradas, terminavam causando imen- fator que permitia aos comerciantes manter de forma regular o comércio de
sos transtornos para o comércio, como podemos observar no relatório do produtos. Nesse sentido, prevalecia uma economia mercantil local depen-
fiscal de Arrozal em 1840, onde informa ao procurador que: dente do movimento das estradas municipais e provinciais. Essa economia,
fortemente influenciada pela normalização e condições de transito, sofria
A estrada que segue da Povoação desta Freguesia para a Capela de Nossa de modo negativo com a interrupção momentânea ocasionada pelas for-
Senhora do Rosário no lugar denominado Serrinha, acha-se em um estado
tes chuvas que desabavam na região em determinadas épocas do ano. A
quase intransitável, dependendo de consertos bastantes dispendiosos.19
paralisação momentânea ou a interrupção definitiva do tráfego poderia
A precariedade encontrada nos caminhos e estradas de Arrozal e Piraí desencadear dificuldades nas estruturadas redes de abastecimento integra-
por ocasião das grandes chuvas dificultavam o movimento dos tropeiros e de das por casas de negócio e plantações controladas por produtores rurais
suas tropas de mulas que transportavam mercadorias em diversas direções, e comerciantes especializados. A dependência dessa economia mercantil
dos viajantes de passagem pela região e dos próprios moradores das fregue- piraiense em relação ao movimento das estradas se torna perceptível no
sias. Os incômodos causados pelo excesso de água eram muitos, variando momento em que o Governo imperial, por meio da Estrada de Ferro D.
desde a formação de atoleiros, lamaçais e buracos, até a destruição de pontes Pedro II, impõe importante restrição sobre a atuação dos tropeiros e seus
e estivas em decorrência das enchentes. A necessidade de se restabelecer o animais no interior da província do Rio de Janeiro. Utilizando a estrada de
movimento normal das estradas e caminhos levava os fiscais a tomar provi- ferro para o deslocamento de café, o Governo imperial restringe a circula-
dencias visando reparar os danos então provocados, sendo comum obrigar os ção de tropeiros até então encarregados de levar o café a longas distâncias.
moradores, cujas terras fossem atravessadas por estradas públicas a repararem Essa restrição na circulação de tropeiros determina a desestruturação de
antigos núcleos mercantis em decorrência do desaparecimento do princi-
17 RELATÓRIO do Fiscal da Freguesia do Arrozal. Piraí: Arquivo Municipal de Piraí, jan. 1871. Caixa 2
(91-200). pal consumidor das mercadorias das casas de negócio, os tropeiros e seus
18 RELATÓRIO do Fiscal da Freguesia de Arrozal, dez. 1872. animais, que durante suas viagens das fazendas de café aos entrepostos de
19 RELATÓRIO do Fiscal da Freguesia de Arrozal, jan. 1840, caixa 1 (01-199). Além de serem obrigados comercialização do produto, adquiriam mercadorias nas casas de negócio
pelos fiscais a reparar os danos nas estradas públicas, estes moradores deviam ainda arcar com
os custos que tais serviços requeriam. A fim de obter o reparo, os fiscais inspecionavam os locais
situadas nas zonas rurais e nos povoados.
prejudicados e faziam citar os moradores cujos trechos necessitavam de conserto. Os recursos da
câmara somente eram gastos quando se tratava de reparar ou construir pontes e estivas, uma vez
que tais obras demandavam custos elevados.

434 435
“Associação de capitalistas” ou “Associação de Essa análise crítica acerca dos bancos existentes no Brasil, feita por
um membro da cafeicultura escravista do Vale do Paraíba fluminense,
proprietários”: o Banco Commercial e Agrícola no pertencente à classe dominante senhorial do Império brasileiro,4 foi
Império do Brasil, um banco comercial e emissor muito importante. A expansão da produção cafeeira pós-1820, relacio-
no Vale do Paraíba (1858-1862)1 nada com a grande disponibilidade de terra e de escravos na região do
Vale do Paraíba fluminense,5 como também a maior demanda por café
Carlos Gabriel Guimarães pela economia capitalista em expansão,6 permitiu ao café não só supe-
rar o açúcar como principal produto de exportação brasileiro em 1830,7
como também gerou uma crescente necessidade de crédito por parte dos
produtores.
Palavra que significa “transação comercial em que um compra-
dor recebe imediatamente um bem ou serviço adquirido, mas só fará o
pagamento depois de algum tempo determinado”, conforme consta em
introdução qualquer dicionário de comércio e de economia,8 o crédito constituiu-se
numa das principais questões da economia brasileira do século XIX. Em
Em 1857, Luiz Peixoto de Lacerda Werneck, bacharel, fazendeiro de café, virtude do processo de centralização do Estado imperial e o maior desen-
deputado da Assembleia Provincial do Rio de Janeiro, membro da pri- volvimento das atividades econômicas urbanas e rurais no Rio de Janeiro
meira diretoria da Estrada de Ferro D. Pedro II, e filho primogênito de (Município Neutro e província) relacionado com o efeito de encadeamento
Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, o barão do Paty do Alferes e pro-
prietário da fazenda de Piedade,2 escreveu o livro Estudos sobre o Crédito
Rural e Hipothecário seguidos de leis, estatutos e outros, em que criticava os 4 A respeito do conceito de classe dominante senhorial e o Estado imperial brasileiro cf. MATTOS,
bancos rurais, denominados de “associações de capitalistas”, e suas polí- Ilmar H. de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo: Hucitec, 1987; SALLES,
ticas de crédito em detrimento do que ele denominou de “associações Ricardo. Nostalgia imperial: a formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. Rio
de Janeiro: Topbooks, 1996. (ver especialmente o cap. 2).
dos proprietários”, uma espécie de cooperativa dos grandes proprietários. 5 STEIN, Stanley L. Grandeza e decadência do café no Vale do Paraíba. Tradução de Edgar Magalhães.
Segundo Luiz Peixoto, São Paulo: Brasiliense, 1961; SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo: Vassouras, século XIX –
senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
Existem, pois um verdadeiro antagonismo entre as tendências dessas duas 6 A respeito da expansão capitalista do século XIX cf. POLANYI, Karl. A grande transformação:
espécies de instituições de crédito rural, sendo impellida uma a prejudicar as origens da nossa época. Tradução de Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Campus, 1980; LANDES,
tanto quanto for possível a agricultura, e outra a benéficia-la o mais que possa David. Prometeu desacorrentado: transformação tecnológica e desenvolvimento industrial na
fazê-lo.3 Europa Ocidental desde 1750 até a nossa época. Tradução de Vera Ribeiro e revisão de Cesar
Benjamim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994; TOPICK, Steven; SAMPER, Mario. The Latin
American Coffe Commodity Chain: Brazil and Costa Rica. In: FRANK, Zephyr; MARICHAL,
Carlos; TOPIK, Steven. From Silver to Cocaine: Latin American Commodity Chains and the
Building of the World Economy, 1500-2000. Durham: Duke University Press, 2006.
1 Uma versão deste texto, com o título “O Banco Commercial e Agrícola no Império do Brasil: o 7 STEIN, op. cit.; BACHA, Edmar; GREENHILL, Robert. Marcelino Martins & Edward Johnston:
estudo de caso de um banco comercial e emissor, 1858-1861”, está na Saeculum Revista de História, 150 anos de café. 2. ed. Rio de Janeiro: Salamandra Cos. Ed., 1992; DELFIM NETTO, Antônio. O
João Pessoa: Ed. UFPB, n. 29, jul.-dez. 2013. problema do café no Brasil. 3. ed. São Paulo: Ed. Unesp, 2009; MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale.
2 A respeito da família Lacerda Werneck cf. SILVA, Eduardo. Barões e escravidão: três gerações de O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial de café. In: GRINBERG, Keila;
fazendeiros e a crise da estrutura escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília: INL: Fundação SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil imperial: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
Nacional Pró Memória, 1984. v. 2. No plano político, a vitória do Projeto Saquarema escravista. Cf. PARRON, Tâmis. A política
3 WERNECK, Luiz Peixoto de Lacerda. Estudos sobre o Crédito Rural e Hipothecário seguidos de leis, da escravidão no Império do Brasil: 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
estatutos e outros. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1857. p. 126 8 SANDRONI, Paulo. Dicionário de economia. 2. ed. São Paulo: Best Seller, 1989. p. 72.

436 437
da expansão do café,9 o crédito passou a estar associado direta ou indireta- forçaram o governo imperial a autorizar o Banco do Brasil a emitir até o
mente às atividades bancárias.10 triplo dos fundos disponíveis.12 Para se ter uma ideia do valor, o montante
Aproveitando-se da conjuntura política e econômica do Brasil na década das emissões dos bancos (vales e papel-moeda), principalmente do Banco
de 1850, um grupo constituído de políticos, negociantes, capitalistas e fazen- do Brasil, aumentou de 15.531 contos em 1854, para 40.128 contos em 1856.13
deiros, muitos deles ligados às importantes famílias da Província do Rio de A política monetária expansionista e a concentração da oferta de cer-
Janeiro e do Município Neutro da Corte, como foi o caso de José Evangelista tos gêneros ligados ao mercado interno, como era o caso charque nas mãos
Teixeira Leite, organizou em 1857 o Banco Commercial e Agrícola (BCA). de grandes negociantes do comércio de abastecimento da cidade do Rio
Com a matriz na Corte e filiais em Vasouras e Campos dos Goitacazes, dois de Janeiro,14 para autores como Denio Nogueira e Raymon W. Goldsmith
dos maiores municípios escravistas da província do Rio de Janeiro, o banco foram fatores importantes para explicar o aumento dos preços no período
teve um curto período de existência; porém sua atuação como banco comer- com o pico em 1859_ Gráfico 1.15 Segundo Goldsmith, “os preços aumenta-
cial e emissor de notas levantou um debate no interior da classe senhorial ram bastante rapidamente na primeira metade da década de 1850, alcan-
dominante e do próprio Estado Imperial. É o que veremos a seguir. çando uma taxa média anual de 5,6%”.16

a reforma bancária de 1857 de souza franco e a pluralidade


bancária: a criação do banco commercial e agrícola
O crescimento das atividades comerciais no Rio de Janeiro e a drenagem de Nos tumbeiro mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil. Afro-Ásia, Bahia:
metal (ouro) em direção ao nordeste, essa última relacionada com a pres- Ufba, v. 27, p. 121-160, 2002; SLENES, Robert W. The Brazilian Internal Slave Trade, 1850-1888:
Regional Economies, Slave Experience and the Politics of a Peculiar Market. In: JOHNSON, Walter
são do circuito mercantil de Salvador e Recife e com a venda de escravos (Org.). The Chattel Principle: Internal Slave Trades in the Americas. New Haven: Yale University
dos engenhos para as fazendas de café do Vale do Paraíba e Minas Gerais,11 Press, 2004. p. 325-370.
12 Através do Decreto n. 1.721, de 5/02/1856, o governo alterou os artigos 16 e 17 dos Estatutos do Banco
do Brasil, estendendo as filiais do banco à autorização de emitir até o triplo dos seus fundos. Cf.
9 A respeito da utilização da teoria do efeito de encadeamento proposto por Albert Hirschman
COLEÇÃO das Leis do Império do Brazil de 1856. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1857. O Banco do
para economias agrário-exportadoras, cf. SUZIGAN, Wilson. Indústria brasileira: origem e
Brasil tinha caixas filiais na Bahia, Pernambuco, Maranhão, Pará, Rio Grande do Sul, Ouro Preto
desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1986; PIRES, Anderson. Café, finanças e indústria: Juiz de
(MG) e São Paulo. A respeito da política econômica e monetária do governo imperial cf. LEVY, Maria
Fora, 1889-1930. Juiz de Fora: Funalfa, 2009.
Bárbara. História da bolsa de valores do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IBMEC, 1977; PELAEZ, Carlos
10 Dentre os vários trabalhos sobre o crédito bancário no século XIX, cf.: PIÑEIRO, Theo Lobarinhas. Manuel; SUZIGAN, Wilson. História monetária do Brasil. 2. ed. Brasília: UNB, 1981; NOGUEIRA,
Os “simples comissários”: negociantes e política no Brasil Império. 2002. Tese (Doutorado em Dênio. Raízes de uma Nação. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988; GAMBI, Thiago F. R. O
História). – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, banco da Ordem: política e finanças no império brasileiro (1853-1866). 2010. Tese (Doutorado em
2002; HANLEY, Anne G. Native Capital: Financial institutions and economic development in São História Econômica) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, Brazil, 1850-1920. Stanford: Stanford University Press, 2005; OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira Paulo, São Paulo, 2010.
de. Entre a casa e o armazém: relações sociais e experiência da urbanização de São Paulo, 1850-1900.
13 GUIMARÃES, 2012; GAMBI, op. cit.
São Paulo: Alameda, 2005; PIRES, op. cit; ALMICO, Rita de Cássia. Dívida e obrigação: as relações
de crédito em Minas Gerais, séculos XIX e XX. 2009. Tese (Doutorado em História). – Programa 14 GRAÇA FILHO, Afonso Alencastro. Os convênios da carestia: crises, organização e investimentos
de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009; MARCONDES, do comércio de subsistência da Corte. 1997. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de
Renato L. O financiamento hipotecário da cafeicultura no Vale do Paraíba paulista (1865-1887). Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1997. A respeito
São Paulo. SciELO, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbe/v56n1/a06v56n1.pdf>; da importância do charque na política e economia regional cf. VARGAS, Jonas. Pelas margens do
MARCONDES, Renato L.; CORTEZ, Gustavo S.; DIAZ, Maria Dolores M. Beyond Banks and Socks: A Atlântico: um estudo sobre elites locais e regionais no Brasil a partir das famílias proprietárias de
Study of Industrial Mortgages for the City of São Paulo, Brazil (1866-1914). Niterói. Anpec, 2004- charqueadas em Pelotas, Rio Grande do Sul (século XIX). 2013. Tese (Doutorado em História Social)
2013. Disponível em: <http://anpec.org.br/encontro/2011/inscricao/arquivos/000-421a716ace3c9e8 – Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
6411764f3e8e7e33c.pdf>; GUIMARÃES, Carlos Gabriel. A presença inglesa nas finanças e no comércio Janeiro, 2013.
no Brasil imperial: os casos da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & Co. (1854-1866) e da firma 15 A Guerra do Paraguai provocou uma nova aceleração da inflação. NOGUEIRA, op. cit.
inglesa Samuel Phillips & Co. (1808-1840). São Paulo: Alameda, 2012. 16 GOLDSMITH, Raymond W. Brasil 1850-1984: desenvolvimento financeiro sob um século de inflação.
11 MARTINS, Ismenia Lima. Os problemas de mão-de-obra da grande lavoura fluminense: o tráfico Tradução de Neyde Y. G. Scavone. Revisão técnica de Claudio Contador e Pedro Carvalho de Mello.
intra-provincial (1850-1878). Niterói: Ciclo de Estudos Fluminense da UFF, 1973; GRAHAN, Richard. São Paulo: Harper & Row do Brasil Ltda., 1986. p. 29.

438 439
gráfico 1: política monetária e cambial do brasil, 1850-1864 mica praticada pelo governo imperial até então, Souza Franco promoveu
por decreto uma nova reforma bancária e monetária em 1857,20 que vinha
de encontro com seu pensamento: a pluralidade bancária e o fim do mono-
pólio da emissão do Banco do Brasil. Essa reforma tinha como objetivos:
1º) Organizar estabelecimentos de crédito em todas as províncias, sob a forma
de bancos, filiais ou caixa-filiais conforme comportasse a atividade econô-
mica, para que se tornassem acessíveis os meios de promover a indústria
nacional, a agricultura e o comércio;
2º) Substituir as notas do tesouro por notas de emissão bancária, realizáveis
em metais;
3º) Regularizar o suprimento de moeda nos mercados regionais quer atra-
vés de novas, quando escasseassem na circulação, quer através do troco por
metais, na hipótese contrária.21
Fonte: NOGUEIRA, 1988, p. 332, 376.
A nova política promovida por Souza Franco, como destacou Maria
Opositores da Conciliação promovida pelo conservador Honório Barbara Levy, legitimou o que de fato já vinha ocorrendo com relação às
Hermeto Carneiro Leão (marquês do Paraná) no período de 1853 a 1856,17 emissões desde o gabinete da Conciliação do marquês de Paraná. A insti-
uma parcela importante do Partido Conservador reagiu contra as emissões tucionalização do regime de emissão regional, que sucedeu o monopólio
e práticas econômicas ditas pelos mesmos de liberais, argumentando que dado ao Banco do Brasil em 1853, teve como principal diferença o fato de
pudessem gerar uma crise.18 A reação ficou ainda maior com a nomeação do que os novos bancos “colocariam em circulação obrigações de pagamento
liberal Bernardo de Souza Franco para a Secretaria de Estado dos Negócios ao portador, à vista, em espécie e sem juros, sob a gestão do Estado”.22 Isso
da Fazenda, pelo senador do Partido Conservador Pedro de Araújo Lima, o possibilitou uma maior liberação do crédito, com a taxa de desconto (o
marquês de Olinda, novo presidente do Conselho de Ministros do Gabinete empréstimo de liquidez) caindo de 11% para 8%.23
de 4/5/1857.19 Constituindo-se num dos maiores críticos da política econô- Através da reforma bancária, tornaram-se bancos emissores e
comerciais: o Banco Commercial e Agrícola do Rio de Janeiro (Dec. nº
17 Entre os opositores estavam o deputado baiano Angelo Muniz da Silva Ferraz e Justiniano José da
Rocha. Cf. STEFANES, Bruno Fabris. Conciliar o Império: Honório Hermeto Carneiro Leão – os 20 Segundo André Villela, “a autorização para o funcionamento dos novos bancos não foi objeto
partidos e a política de Conciliação no Brasil Monárquico (1842-1856). 2010. Tese (Doutorado em de uma lei – como fora em 1853, no caso do Banco do Brasil – mas sim por decreto do Poder
História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, Executivo, baixado durante o recesso parlamentar. Ao tomar esta iniciativa, o Ministro Souza
São Paulo, 2010. Com relação à Conciliação cf. CARVALHO, José Murilo. A construção da Ordem: Franco adentrava uma ‘área cinzenta’ jurídica”. VILLELA, André. Um difícil equilíbrio: legislação
teatro das sombras. Rio de Janeiro: EDUFRJ: Relume Dumará, 1996; MATTOS, 1987. bancária e instabilidade financeira no II Reinado, 2004. p. 11. Não publicado.
18 GUIMARÃES, 2012. 21 ANDRADE, Ana Maria Ribeiro de. 1864: conflito entre metalistas e pluralistas. 1987. Dissertação
19 Esse gabinete sucedeu o gabinete de 3 de setembro de 1856, presidido por Luis Alves de Lima e (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de
Silva, na época conde de Caxias, que por sua vez tinha sucedido o famoso Gabinete da Conciliação
Janeiro, Rio de Janeiro, 1987. p. 57-58.
de 6/9/1853, presidido pelo ministro da Fazenda Honório Hermeto Carneiro Leão, o marquês
de Paraná. É importante destacar que Honório Hermeto foi o presidente do “Banco do Brasil de 22 Ibid. p. 59.
Mauá” nos anos de 1852 e 1853, antes de assumir o referido Gabinete. A respeito dos partidos e 23 ANDRADE, loc. cit. A taxa de redesconto “é a taxa de juros cobrada pelo Banco Central (a autoridade
dos gabinetes ministeriais, principalmente com a criação do cargo de presidente do conselho de monetária atual; no Império, em meados do século XIX, era o Tesouro Nacional e Banco do Brasil)
ministros em 1847, Cf. CARVALHO, José Murilo de. Os partidos políticos imperiais: composição e junto as instituições financeiras para empréstimos de assistência a liquidez que visam equilibrar
ideologia. In: CARVALHO, op. cit, p. 181-208; SALLES, Ricardo. O Império do Brasil no contexto do suas necessidades de caixa diante de um aumento mais acentuado da demanda por recursos de
século XIX: escravidão nacional, classe senhorial e intelectuais na formação do Estado. Almanack: seus depositantes.” Esta definição foi retirada de PROGRAMA de Pós-Graduação em Economia
Revista Eletrônica Semestral, n. 4, nov. 2012. Disponível em: <http://www.almanack.unifesp.br/ da UFRGS. Porto Alegre, 2002. Disponível em: <http://www.ppge.ufrgs.br/giacomo/arquivos/
index.php/almanack/issue/current>. eco02002/politica-monetaria-oferta-moeda.pdf>.

440 441
1.971, 31/8/1857), o Banco da Província do Rio Grande (Dec. nº 2.005, de para a cidade de Vassouras, esta juntamente com Campos dos Goytacazes,
24/10/1857), Banco de Pernambuco (Dec. nº 2.021, 11/11/1857), o Banco do Valença, Piraí e Cantagalo eram os municípios com maior população
Maranhão (Dec. nº 2.035, de 25/11/1857) e o Banco da Bahia (Dec. nº 2.140, escrava, e no caso específico de Vassouras, após 1850, os plantéis de escravos
de 3/4/1858). O Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro, que já funcio- ficaram concentrados nos grandes e mega proprietários.28
nava na Praça do Comércio do Rio de Janeiro desde 1854, foi reorganizado
tabela 1: população escrava existente em vários municípios da província
para se tornar um banco emissor e, através do Decreto nº 2.111, de 27/2/1858, do rio de janeiro, segundo relatórios dos presidentes da província
foi-lhe concedida essa atividade pelo governo.24
Município 1840 1844 1850 1856 1872
O Banco Commercial e Agrícola (BCA) teve seus estatutos aprovados
Angra dos Reis 10.554 9.053 9.659 10.480 3.247
pelo Governo imperial, através do Decreto n.º 1.971, de 31/8/1857.25 Era um
Barra de São João --- --- 3.987 4.810 3.426
banco de depósito, desconto e emissor – Artigo 1 –, organizado sob a forma
de sociedade anônima e com um capital de vinte mil contos, divididos em Barra Mansa 6.820 --- --- --- 10.944

cem mil ações – Artigos 2o e 3o. O banco, no prazo de um ano, iria estabelecer Campos 37.318 35.595 31.966 36.484 34.621

“pelo menos duas filiaes, huma em Vassouras e outra em Campos, e quatro Cantagalo 3.257 9.654 9.957 19.537 16.305

agencias nas seguintes localidades: Bananal, cidade do Parahibuna, S. Jose Mangaratiba 3.882 4.445 4.630 4.040 1.650

da Parahyba e Cantagalo” – Artigo 7o. Tais cidades, situadas nas províncias Nova Friburgo 2.157 --- 2.927 3.874 6.684

do Rio de Janeiro (Vassouras, Campos e Cantagalo) e São Paulo (Bananal, Paraíba do Sul 8.506 --- 8.513 --- 17.107

Parahibuna e S. José do Parahyba), constituíram-se nas principais regiões de Parati 3.461 3.899 4.588 3.345 2.069

produção de café e açúcar do período 1850-1860,26 e com grandes plantéis de Piraí 11.186 13.242 19.090 23.862 13.475

escravos.27 Conforme destacamos na Tabela 1, embora faltem alguns dados Resende 8.663 10.000 9.120 10.210 9.437
S. João do Príncipe 6.679 --- 9.483 11.853 7.653
24 Para maiores detalhes verificar BRASIL. Ministério da Fazenda. Relatório do Ministro da Fazenda de Valença 12.835 10.417 20.119 23.468 23.496
1857. Rio de Janeiro: Imp. Nacional, 1858. No tocante ao Banco Rural e Hipotecário cf. GUIMARÃES,
Carlos Gabriel. A Guerra do Paraguai e a atividade bancária no Rio de Janeiro no período 1865-1870: Vassouras 14.333 --- 19.210 --- 20.168
o caso Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro. Heera, Juiz de Fora: Ed. UFJF, v. 1, p. 1-27, 2007.
Fonte: MARTINS, op. cit., p. 11; SALLES, op. cit., p. 258-259.29
25 No referido decreto, o ,inistro Souza Franco destacou: “Attendendo o que me representarão
Custódio Teixeira Leite e outros acionistas de hum Banco que pretendem fundar nesta Corte
sob denominação de – banco Commercial e Agricola; – e tendo ouvido a Secção de fazenda do
Retornando ao BCA, embora não estivesse explícito nos estatutos, havia
Conselho d’Estado. Hei por bem autorisar a incorporação e approvar os estatutos do referido banco uma hierarquia do banco com a matriz no Rio de Janeiro (Município Neutro
[...]”. (grifo nosso). Cf. COLEÇÃO das Leis do Imperio do Brazil de 1857. Rio de Janeiro: Typographia da Corte) se sobrepondo às caixas filiais (Vasssouras e Campos), e essas às
Nacional, 1857. t. XX, parte II, p. 265-281. A partir deste momento, utilizaremos a sigla BCA para se
referir ao banco. agências (Bananal, cidade do Paraibuna, S. José da Paraíba e Cantagalo). Tanto
26 A vila de São José do Paraíba, atual cidade de São José dos Campos, diferentemente das outras cida- as filiais como as agências podiam fazer as mesmas operações bancárias, ou
des do Vale do Paraíba paulista, não teve uma grande produção de café. Já Bananal, segundo Renato
Marcondes, foi o principal município produtor de café do Vale do Paraíba paulista e, em 1854, teve
uma produção de 554 mil arrobas. Paraibuna tinha uma produção entre 100 e 200 mil arrobas. Cf.
MARCONDES, Renato Leite. A propriedade escrava no Vale do Paraíba paulista durante a década
de 1870. p. 54. Niterói. Anpec, 2004-2013. Disponível em: <www.anpec.org.br/encontro2001/arti-
gos/200101028.pdf>. caso da fazenda Resgate. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 83-128, 2010. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/anaismp/v18n1/v18n1a04.pdf>; MARQUESE; TOMICH, 2009, p. 341-383.
27 Há uma extesa bibliografia sobre a escravidão, café e açúcar nas regiões e cidades destacadas. Entre
os vários trabalhos cf . MARTINS, 1973; STEIN, 1961; SALLES, 2008; MARCONDES, Renato L. A Arte de 28 SALLES, 2008, op. cit., p. 155-163.
Acumular na Economia cafeeira: Vale do Paraíba (século XIX). Lorena: Stiliano, 1998; FARIA, Sheila 29 Embora a fonte seja a mesma, os Relatórios de presidente da província do Rio de Janeiro, utilizamos
de Castro. Terra e trabalho em Campos dos Goytacazes. 1986. Dissertação (Mestrado em História). os dados do livro de Ricardo Salles, em virtude da maior precisão do que no texto de Martins.
– Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1986; Com relação à coluna do ano de 1844, utilizamos os dados do texto de Martins, pois não constam
MARQUESE, Rafael de Bivar. O Vale do Paraíba cafeeiro e o regime visual da Segunda Escravidão: o no livro de Salles.

442 443
seja, desconto de letras e depósitos, além de emitir bilhetes (artigo 15)30 e, no quadro 1: a primeira diretoria do banco commercial e agrícola (1858)
tocante a administração das caixas e agências, as diferenças estavam: ENDEREÇO
FILIAÇÃO
NOME COMERCIAL E ATIVIDADES E OUTROS
Artigo 32. As caixas eram administradas por uma diretoria composta de cinco E OUTROS
MORADA
membros, nomeadas anualmente pela diretoria do Banco, a qual designará
Presidente: Filho de Francisco José Campo da – Negociante nacional;A matrícula
entre eles, um presidente e um vice-presidente [...].31 Teixeira (1º barão de Aclamação, 107 n.º 212, de 13/3/1851, comércio de
João Evangelista
Artigo 55. A Directoria do banco só poderá nomear para seus Agentes, pes- Itambé) e de Francisca descontos;B vereador e presidente
Teixeira Leite
soas que pelo seu caracter inspirem inteira confiança, não podendo os mes- Bernardina do Sacramento da Câmara Municipal de Vassouras
mos entrar em exercicio sem prestarem fiança correspondente ao fundo que Leite Ribeiro. Um dos seus (várias legislaturas); responsável, junto
lhes for confiado pelo banco.32 (grifo nosso). irmãos, Francisco José com seus irmãos, de levar a Estrada de
Teixeira Leite foi o barão Ferro D. Pedro II para Vassouras.
de Vassouras.
Importante destacar que na resolução 416, de 16 de janeiro de 1856, ou
Vice-Presidente: Rua do Oliveira, 6, – Presidente da província de Sergipe,
seja, antes da criação da filial do BCA em Campos, a Seção da Fazenda do Lagoa de nomeado por carta imperial de 2 de
Dr. José Antonio
Conselho de Estado analisou e aprovou um requerimento que alguns capi- de Oliveira e Silva Rodrigo de junho de 1851, de 19 de julho de 1851
Freitas a 14 de julho de 1853.
talistas e negociantes da dita cidade “pedem para approvação dos estatutos
– Presidente da província de Santa
do banco Commercial de depósitos, e descontos, que pretendem estabelecer Catarina em 1854.
naquella cidade”.33 Campos dos Goytacazes, além de ser o maior município
DIRETORES
escravista e produtor de açúcar da província do Rio de Janeiro, continuou
a desempenhar importante papel como entreposto comercial do Norte da Francisco José – Diretor da Cia. de Seguros contra a
Rua São José, 57
província, ligando-se às várias localidades em seu entorno, seja pela cabo- Gonçalves mortalidade de escravos.
tagem externa, como as vilas de São João da Barra e Macaé, seja pela cabo- Conselheiro
Rua Real – Moço da Imperial Câmara;H
Antonio Henrique
tagem fluvial e estradas com “as vilas de Cantagalo, Muriaé, Carangola e Grandeza, 5 guarda-roupa da Casa Real.A
de Miranda Rego
Itabapoana, que abasteciam o crescente mercado de Minas, Espírito Santo
Dr. Ignácio Rua São – 1º tenente do Imperial Corpo de
e, também, o da Corte”.34 da Cunha Galvão Clemente, 21 Engenheiros do Ministério da
Guerra e fez parte da Comissão de
demarcação de limites do Império
30 “Artigo 15: Terá a faculdade de emittir bilhetes ao portador e á vista, não podendo a somme emittida do Brasil com o estado oriental do
pelo banco, comprehendida a emissão das Caixas filiaes e agencias, exceder a 50% do capital Uruguai; sócio fundador do Instituto
realisado do Banco”. COLEÇÃO das Leis do Imperio do Brazil de 1857, p. 269. Politécnico Brasileiro e catedrático
da mesma instituição; membro do
31 Ibid., p. 273. Conselho Administrativo da SAIN
32 Ibid., p. 276. (1870); diretor da EF D. Pedro II;D
33 Infelizmente não temos maiores informações sobre o desdobramento desse banco, nem os nomes participante ativo e autor do livro
dos negociantes e capitalistas campistas. Também não sabemos se eles viraram acionistas do Banco Estudo sobre a imigração (1866) e
Commercial e Agrícola. IMPERIAES Resoluções do Conselho de Estado na Secção da Fazenda substituiu na Secretaria de Estado dos
desde o anno em que começou a funcionar o mesmo conselho até o presente colligidas por ordem Negócios da Agricultura, Comércio
do governo. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1871. v. IV, anos de 1856-1860, p. 16. e Obras Públicas Bernardo Augusto
Nascentes de Azambuja em 1871.C
34 CRYSTOSOMO, Maria I. de Jesus. Uma Veneza no sertão fluminense: os rios e canais em Campos dos
Goitacazes. História Revista: Revista da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação – Negociante estrangeiro;A negociante e
Francisco José Rua da Quitanda,
em História da UFG, Goiás, v. 14, n. 2, p. 6-7, 2009. A respeito da economia de Campos, conferir fornecedor de gado vacum;A diretor da
de Mello e Souza 117
os trabalho de FARIA, 1986; PENHA, Ana Lúcia Nunes. Nas águas do Canal: política e poder na Associação Central de Colonização.A
construção do Canal Campos-Macaé (1835-1875). 2012. Tese (Doutorado em História). – Programa
– Deputado por Minas Gerais (distrito de
de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012; PEREIRA, Walter Pedro Alcantara
Diamantina); participou da “Revolução”
L. C. de Mattos. Francisco Ferreira Saturnino Braga: negócios e fortuna em Campos dos Goytacazes. Machado
de 1842 em MG-Diamantina.E
História, São Paulo: Ed. Unesp, v. 31, n. 2, p. 212-246, jul-dez 2012.

444 445
DIRETORES EMPREGADOS

Dr. Francisco de Rua dos – Natural de São Paulo, bacharel


Secretário: R. do Conde, 27,
Assis Vieira Bueno Pescadores em Direito pela Faculdade de
Dr. José Joaquim 2º andar
SP; deputado suplente em várias
legislaturas; autor do livro A cidade Ferreira do Valle
de São Paulo: recordações evocadas
de memória;F fundador e diretor da Guarda-livros: Rua do Theatro, 21
Cia Brasil Industrial (1871) de fiação, Joaquim José
tecelagem e estamparia de algodão Marques

SUPLENTES Thesoureiro: R. do Sabão, 383


Francisco Alves de
João Antonio Rua da Direita, 82 – Negociante nacionalA Brito
Moreira
Fiel do R. do Sacco do
Francisco Rua de S. Pedro, – Negociante nacionalA Thesoureiro: Alferes, 53
de Assis Carvalho 60 Agostinho Pereira
João Nepomuceno Rua da Quitanda, – Negociante nacional A Cardoso
de Sá 144
Contador: R. Nova do
José Frazão de Filho (primogênito) do Rua da Saúde, 35 – Negociante, Consignatário e casa de Antonio Machado Conde, 18
Souza Breves comendador Joaquim José comissões de gêneros de importação e Dias
(José Frazão de de Souza Breves e de Maria exportaçãoA
Souza Breves Izabel de Moraes Breves
& Cia) (filha de José Gonçalves Obs: Este quadro está incompleto no tocante às atividades dos negociantes/diretores
de Moraes, barão de Piraí)
– grande proprietário Fonte: A ALMANAK LAEMMERT. Rio de Janeiro: Typ. Un. Laemmert, 1851, 1858-1862. Arquivo Nacional.;
de fazenda e de escravos
da região de São João do
B
Registro de cartas de matrículas dos comerciantes, corretores, agentes de leilões, trapicheiros e admi-
Príncipe, Piraí e outras nistradores de armazéns de depósitos do Tribunal do Comércio da capital do Império. Rio de Janeiro:
(litoral sul fluminense Arquivo Nacional, 1851/1855. IC3 57. Tomo I, livro I.
até o Vale do Paraíba C
CARVALHO, 1996, p. 320.
fluminense);
deputado provincial do sul D
MARINHO, Pedro E M de Monteiro. Ampliando o Estado imperial: os engenheiros e a organização
fluminense (1858/1859)G da cultura no Brasil oitocentista, 1874-1888. 2008. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. p. 111.
Antonio Vidal Filho do capitão de Rua dos Ourives, – Negociante nacionalA
Leite Ribeiro ordenanças e comendador 193; E
MARINHO, José Antonio. História do movimento político de 1842. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
da Imperial Ordem Rua dos Edusp, 1977.
das Rosa Francisco Pescadores, 60 F
ARAUJO, Maria Lucília Viveiros de. Lojas e armazéns das casas de morada paulistas. Revista de História,
Leite Ribeiro (irmão de
Custódio Leite Ribeiro, São Paulo: Edusp, v. 160, p. 285-322, 1. sem. 2009. Nota 15.
barão de Aiuroca) e de G
MOREIRA, Gustavo A. C. Legislação eleitoral e política regional: um estudo sobre o impacto das refor-
Rita Teresa de Jesus da mas de 1855, 1860 e 1875 no sul fluminense. 2013. Exame de Qualificação (Doutorado em História) –
Silva; grande proprietário Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.
de fazendas e escravos na
Zona da Mata de MG. Um H
BARATA, Carlos Eduardo de Almeida. Moços da Real e Imperial Câmara – 1808-1866: subsí-
dos seus irmãos, Joaquim dios biográficos. Colégio Brasileiro de Genealogia. Disponível em: <http://www.cbg.org.br/novo/
Vidal Leite Ribeiro foi o mocos-da-real-e-imperial-camara/>.
barão de Itamarandiba.

446 447
A diretoria do BCA era composta de um presidente, um vice-presi- No momento em que os bancos emissores regionais tiveram autori-
dente e de seis diretores – artigo 67 –, e eleita pela Assembleia Geral dos zação para iniciar as suas operações, ocorreu a crise de 1857. A retomada
Acionistas – artigo 69 –, sendo que “nenhum membro da (diretoria) poderá das exportações russas de cereais após a Guerra da Crimeia (1853-1855) fez
entrar em exercicio sem possuir e depositar no Banco 59 acções as quaes com que eclodisse em Nova York uma espetacular queda dos preços das
serão inalienaveis em quanto durarem suas respectivas funções” – artigo commodities, repercutindo em cadeia pela Europa Ocidental, atingindo
70. Portanto, assim como ocorreu com outros bancos da Praça do Rio de bancos e bolsas.38 Esse abalo dos preços interrompeu uma alta geral dos pre-
Janeiro, os maiores acionistas faziam parte da diretoria, e entre esses, con- ços provocada, entre outros fatores, pela descoberta de ouro na Califórnia e
forme Quadro 1, destacamos o presidente, o negociante João Evangelista na Austrália no início da década de 1850 e pelo boom ferroviário.39
Teixeira Leite, membro da família Teixeira Leite,35 e os suplentes da direto- A crise de 1857 significou uma interrupção de uma prosperidade em
ria José Frazão de Souza Breves e Antonio Vidal Leite Ribeiro, das famílias termos mundiais, até então sem precedentes.40 Preocupados com a reper-
Souza Breves e Leite Ribeiro.36 cussão da crise no Brasil, os credores ingleses passaram a pressionar o
No tocante às operações, o BCA podia realizar descontos, empréstimos governo, exigindo não só que os débitos fossem saldados imediatamente,
e contas correntes – artigo 12 –, operações típicas de um banco comercial. como também suspenderam a concessão de prazos adicionais, o que na
Quanto às emissões, era permitido ao banco: prática funcionava como um “roll over da dívida”.41 Em virtude da adoção
do padrão-ouro pelo Brasil, com a Reforma Monetária de 1846, essa pressão
Artigo 15. A faculdade de emittir bilhetes ao portador e à vista, não podendo
a somma emitida pelo banco, compreendida a emissão das Caixas Filiaes e significou uma saída líquida de moeda, já que a conversibilidade do papel-
agencias, exceder a 50% do capital realizado do banco. Os bilhetes emittidos moeda funcionava para os credores como uma garantia para os momentos
pelo banco central não serão menores de 20$000, nem menores de 10$000 os de crise. Não foi por outra razão que a saída líquida de moeda, no caso,
que o forem pelas caixas filiaes e agencias. representada pela remessa de cambiais em 1857, chegou a ser 76% maior do
Artigo 16. O Banco terá um fundo disponivel representado por moeda cor- que em relação ao ano de 1856.42 Analisando a Tabela 2, verificamos que a
rente, barras de ouro de 22 quilates e prata de 11 dinheiros, na importancia de
remessa de cambiais do Rio de Janeiro para Londres, em 1857, no valor de
de hum quarto da sua emissão; e a Directoria poderá, para maior regularidade
da circulação dos titulos emittidos, estabelecer semanal ou mensalmente com 685 mil libras, foi bem superior aos anos anteriores, confirmando também
os Bancos de emissão que existirem no paiz a troca reciproca de seus bilhetes, que as principais operações com o câmbio eram sobre Londres.
pagando-se o saldo em conta corrente; e bem assim offerecer caução em valo-
res equivalentes á decimaparte de sua emissão.37

35 A respeito da família Teixeira Leite e dos comissários de café na região de Vassouras, Cf. STEIN, 1961;
38 A respeito da propagação da crise verificar KINDLEBERGER, Charles P. Manias, pânico e crashes:
SWEIGART, Joseph E. Coffe Factorage and the Emergence of a Brazilian Capital Market, 1850/1888.
um histórico das crises financeiras. Tradução de Vânia Conde e Viviane Castanho. Porto Alegre:
New York: Garland Publishing, 1987; MUNIZ, Célia Maria Loureiro. Os Teixeira Leite: trajetórias e
Ortiz, 1992. p. 165-167.
estratégias familiares em Vassouras no século XIX. Rio de Janeiro, 2005. Mimeo; SALLES, 2008.
39 HOBSBAWM, Eric J. Capítulo 2: a grande expansão. In: ___. A Era do Capital (1848-1875). 3. ed.
36 Segundo José Murilo de Carvalho, “os Leite Ribeiro de Vassouras tinham oito barões e dois
Tradução de Luciano Costa Neto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982; LANDES, David. Capítulo
viscondes na família [...]”. CARVALHO,1996, p. 238. Importante ressaltar que no período 1808 a 1830,
4: eliminando a defasagem. In: ___. Prometeu desacorrentado: transformação tecnológica e
o tronco mineiro da família Leite Ribeiro constituiu-se, ao lado da família Ferreira Armond, nas
desenvolvimento industrial na Europa Ocidental desde 1750 até a nossa época. Tradução de Vera
duas principais famílias no negócio de despachos de escravos do RJ para MG. Cf. PINHEIRO, Fábio
Ribeiro e revisão de Cesar Benjamim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
W. A. Os condutores de almas africanas: concentração e famílias no tráfico de escravos para Minas
Gerais, c.1809-c.1830. Cedeplar. Belo Horizonte, 2008. Disponível em: <http://www.cedeplar.ufmg. 40 Para Jean Bouvier, a crise de 1857 foi a primeira crise propriamente dita capitalista. A respeito das
br/seminarios/seminario_diamantina/2008/D08A078.pdf>. A respeito da família Souza Breves cf. crises no século XIX, cf. BOUVIER, Jean. A economia: as crises econômicas. In: GOFF, Jacques;
LOURENÇO, Thiago Campos Pessoa. O Império dos souza Breves nos oitocentos: política e escravidão NORA, Pierre (Dir.). História: novas abordagens. Tradução de Henrique Mesquita. Rio de Janeiro:
nas trajetórias dos Comendadores José e Joaquim de souza Breves. Niterói, 2010. Dissertação F. Alves, 1976. p. 21-39.
(Mestrado Em História). Universidade Federal Fluminense. PPGH. 41 LEVY, 1977, p. 73.
37 COLEÇÃO das Leis do Império do Brazil de 1857. 42 ANDRADE, op. cit., p. 66 (quadro 5).

448 449
tabela 2: remessas de cambiais feitas para londresª (em libras) gráfico 2: exportações brasileira de café, 1831-1865

ANO RIO DE JANEIRO BAHIA PERNAMBUCO TOTAL

1850 175.000 176.500 118.095 524.695


1851 178.000 166.900 143.153 540.758
1852 201.227 194.566 189.447 601.561
1853 152.000 143.575 180.262 522.588
1854 381.915 74.706 33.100 542.222
1855 460.107 20.500 72.000 568.107
1856 403.241 95.000 40.000 538.241
1857 685.000 145.000 118.650 948.650
1858 417.000 - - -
Fonte: BACHA, op. cit, p. 324-325 (Apêndice estatístico, tabela 1.6)
1859 956.651 64.000 46.500 1.067.151

a) Os valores correspondentes às províncias do Maranhão, Pará e outras são residuais ou incompletos.


Fonte: COMISSÃO DE INQUÉRITO SOBRE O MEIO CIRCULANTE, 1859. In: ANDRADE, 1987, p. 66.
A respeito da queda das exportações de café em meados do século XX,
Edmar Bacha ressaltou:
Num artigo escrito para o jornal The New York Daily Tribune, de 5 de
O Brasil apresentou um desenvolvimento extraordinário da produção a partir
janeiro de 1858, Karl Marx diagnosticou corretamente os efeitos da crise da década de 1810. Mas essa expansão acelerada praticamente terminou no
sobre o Brasil, dizendo o seguinte: final da década de 1840. Nas três décadas seguintes, a expansão foi muito lenta
Os principais problemas deste período da história brasileira do café foram a
[...] Em dezembro se protestaram letras vencidas, por um valor de nove
falta de transporte e de mão de obra [...].46
milhões, que firmas de café do Rio de Janeiro haviam girado contra Hamburgo,
e esta quantidade de protestos motivou um novo pânico. As letras para os fretes Em face de tal situação, os bancos comerciais da Praça do Rio de
açucareiros da Bahia e Pernambuco experimentaram em Janeiro, verossimil-
mente, um destino similar e provocaram um recrudescimento da crise. [...].43 Janeiro aumentaram a taxa de desconto, que passou de 8,5% em 1857, para
10% em 1858, uma consequência direta do aumento da taxa de redesconto
A repercussão da crise na economia brasileira foi grande. O câm- do Banco do Brasil, que também suspendeu a troca de notas e câmbio.47
bio desvalorizou, passando de 8,71 rs./£ em 1856/1857 para 9,10 rs./£ em A dificuldade de acesso ao desconto dos bancos fez com que as casas
1857/1858 e 9,39 rs./£ em 1858/1859.44 Essa depreciação no câmbio, junta- bancárias aumentassem também os seus descontos, criando dificuldades
mente com a diminuição da demanda externa, prejudicou as exportações, para o setor comercial em virtude da cadeia formada pelos bancos, casas
que no decorrer do período tiveram um comportamento oscilante, com bancárias, casas de descontos, comissários e produtores. Embora con-
uma tendência de queda de 1855 até 1858, se recuperando em 1859 e decli- corde com Affonso de Taunay, Stanely Stein, Marieta de Moraes Ferreira
nando em 1861 (Gráfico 2). No entendimento de Dênio Nogueira, tais osci- e Joseph Sweigart sobre a importância do comissário na intermediação
lações ampliaram ainda mais o déficit fiscal.45
43 MARX, Karl. Crisis en Brasil. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Materiales para la Historia de 46 BACHA, Edmar. Polítca brasileira do café: uma avaliação centenária. In: MARTINS, Marcelino;
America Latina. Córdoba: Cuadernos de Pasado y Presente, 1972. p. 345. JOHNSTON, E. 150 anos de café. 2. ed. rev. São Paulo: Salamandra Cons. Editorial, 1992. p. 21.
44 NOGUEIRA, 1988, p. 332. 47 “O Banco do Brasil elevou a sua taxa de desconto de 8 para 9% e logo a seguir para 11%” PELAEZ;
45 Ibid. SUZIGAN, 1981, p. 88-89.

450 451
financeira da produção cafeeira,48 Guimarães, analisando o Banco Rural Analisando os balanços do banco,51 algumas contas permitiram com-
e Hipotecário do Rio de Janeiro e outros bancos comerciais, verificou preender melhor a atuação do banco e sua relação com a conjuntura. No
a presença dos comissários como acionistas dos mesmos e não como ativo, nos anos de 1859 e 1860, apareceram ações da Cia. Estrada de Ferro
meros tomadores do crédito bancário. A relação entre bancos, casas D. Pedro II,52 ferrovia essa que teve uma estação na cidade de Vassouras,
bancárias e comissário era mais complexa, necessitando de uma maior sede do poder político e econômico do barão de Vassouras e da família
investigação.49 Teixeira Leite e Leite Ribeiro.53
Portanto, nessa conjuntura crítica, o BCA iniciou as suas operações No tocante aos empréstimos, na matriz, o banco privilegiou o desconto
em 15 de março de 1858, cinco meses após a primeira reunião dos acionis- de letras com penhor, seguidos pelas caucionadas e hipotecadas. O emprés-
tas em de 9 de outubro de 1857. Segundo o vice-presidente da instituição, timo em conta corrente, uma conta pessoal de empréstimo utilizada como
José Antonio de Oliveira e Silva – Quadro 1 –, que assinou o Relatório de crédito desde os tempos coloniais,54 e presente em todos os bancos nacio-
1859, o atraso deveu-se a: nais e estrangeiros,55 consistiu na terceira principal forma de empréstimo
(Gráfico 2 e Anexo 2). Com relação às filiais,56 a principal forma de emprés-
1. Não tendo encontrado um imóvel apropriado, arrendaram um prédio e
fizeram várias obras, entre elas, “uma casa forte das mais sólidas”; timo também consistiu no desconto de letras com penhor, seguido pelo
2. Demora da prontificação do material para a emissão, visto que a diretoria 51 Os balanços são fontes sujeitas a manipulações, como qualquer outra fonte documental. O
havia encomendado a Londres as notas e como estas demoraram a chegar, cuidado com tais informações deve-se ao fato de que, no período, não existiam instrumentos
ela resolveu aprontar nesta cidade, Rio de Janeiro, notas para uma emissão de controle externo sobre as empresas, face à ausência do Banco Central e de um sistema de
auditorias independentes. Com todo esse problema, “o método da análise dos balanços (método
provisória; se tal não fosse feito o banco só teria iniciado as suas opera-
contábil tradicional aplicado ao caso da atividade bancária) permite a obtenção de informações
ções em agosto de 1858, uma vez que somente em julho chegou a primeira fundamentais para se conhecer a trajetória da empresa, desde que os números apresentados nos
remessa de encomendas feitas a Inglaterra; balanços sejam considerados valores aproximados da situação patrimonial. Mais importante do
que caracterizar os balanços como fontes deturpadas da realidade econômica de um banco, é
3. Com o fundo de capital de 1.447:580$000, realizado após a primeira
encontrar os elementos que equilibram a tendência à manipulação das demonstrações contábeis”.
entrada, sendo insuficiente para o começo das operações, fazia-se neces- Cf. MARQUES, Teresa Cristina N. O setor bancário privado carioca entre 1918 e 1945: os bancos
sário que a diretoria chamasse à mais uma chamada, porém ela só foi feita Boavista e Português do Brasil – um estudo de estratégias empresariais. 1998. Dissertação
para fevereiro de 1858, mesmo assim, na opinião dela “se atreveu” a fazê-lo, (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio
“em consequencia da crise commercial e monetária (1857) que sobreveio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998.
logo depois da primeira (entrada)”.50 (Grifo nosso). 52 A Cia Estrada de Ferro D. Pedro II foi inaugurada em 28/3/1858, e seu primeiro trecho ligava a
estação da Corte até Queimados, um trajeto de 47,21 km. Cf. EL-KAREH, Almir C. Filha preta de
mãe branca: a Cia da Estrada de Ferro D. Pedro II, 1855-1865. Petrópolis: Vozes, 1982.
53 Ocorreu um conflito entre José Pereira de Faro, barão de Rio Bonito, e Francisco José Teixeira Leite,
48 Para Afonso de Taunay, descendente da família Teixeira Leite de Vassouras, neto de Francisco José barão de Vassouras, a respeito do traçado da Estrada de Ferro D. Pedro II. O primeiro defendia que
Teixeira Leite, o barão de Vassouras, e sobrinho-neto do comissário Joaquim José Teixeira Leite, a ferrovia tomasse a direção de Barra do Piraí, enquanto o segundo se batia em favor de Vassouras.
o comissário era o intermediário financeiro que captava recursos dos bancos em forma de letras A ferrovia acabou passando por Barra e, depois, por Vassouras. Cf. MATTOS, 1987, p. 63-64. A
endossáveis, já que os bancos “recusavam-se sistematicamente, a aceitar os endossos dos lavradores”. respeito da família Teixeira Leite, cf. MUNIZ, Célia M. L. Os Teixeira Leite: trajetórias e estratégias
TAUNAY, Affonso de E. Pequena história do café no Brasil. Rio de Janeiro: Dep. Nacional do café, familiares, em Vassouras, no século XIX. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISADORES EM
1945, p. 173; STEIN, 1961, SWEIGART, 1987; FERREIRA, Marieta de Moraes. A crise dos comissários de HISTÓRIA ECONÔMICA E CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DE EMPRESAS, 5. e 6.,
café no Rio de Janeiro. 1977. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em Conservatória. Anais... Conservatória: ABPHE, 2005. 1 CD-ROM.
História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1977. 54 SÁ, A. Lopes de. O uso da conta corrente. In: ___. Aspectos contábeis no período da Inconfidência
49 GUIMARÃES, 2007. A complexidade da relação entre bancos e agentes, envolvendo relações Mineira. Ouro Preto: Esaf, 1980. p. 26-29.
pessoais e não meramente uma racionalidade econômica, foi analisada por Noemi Lamoreaux para 55 GUIMARÃES, 2013.
o caso da montagem do sistema bancário na Nova Inglaterra (EUA). Cf. LAMOREAUX, Noemi. 56 A caixa filial de Vassouras começou a funcionar em 17/10/1858 e a caixa filial de Campos somente
Banks, Kinship, and Economic Development: the New England case. Journal of Economic History, em 1/8/1859, nove meses depois. Tal atraso, segundo o Relatório, deveu-se “principalmente pela
Cambridge: Cabridge University Press, v. XLVI, n. 3, p. 647-667, Sept. 1986. difficuldade promptificar-se o edificio em que esta funcionando”. BANCO COMERCIAL E AGRICOLA.
50 RELATÓRIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de setembro de 1859. Rio de Relatorio apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de setembro de 1859. Rio de Janeiro,
Janeiro: Typ. de F. de Paula Brito, 1859. Typ. de F. de Paula Brito, 1859.

452 453
desconto com caução. Na filial de Vassouras, o desconto de letras aumentou Quanto aos empréstimos sobre hypothecas, apezar de permitidos pelos
de 691 contos no “primeiro semestre” de 1859 para 921 contos no “segundo Estatutos a directoria não tem podido annuir ás poucas propostas, que lhe tem
sido feitas nesse sentido. Tem dado preferência ao credito pessoal, áquelle que
semestre de 1860”, um aumento de mais de 33%. Na filial de Campos, o
se funda sobre a producção, que em pouco tempo se liquida, sobre o credito
desconto aumentou de 119 contos no “segundo semestre de 1859” para 603 que se baseia no solo, que immobilisa o capital e cujo valor é nos districtos agrí-
contos no “segundo semestre de 1860”, um aumento bastante significativo colas, sobretudo n’aquelles que cultivam café, muito precário.59 (Grifo nosso).
de mais de 5x (607%). O desconto de letras hipotecadas inexistiu nas filiais
– Anexos 2, 3, 4, 5 e 6 –, embora no Relatório de 1860, a diretoria da caixa No tocante ao passivo, nominalmente o banco apresentou um capi-
filial de Vassouras destacou que tal de 20.000 contos, embora conste no ativo uma conta de acionistas por
entradas não realizadas de 7.237 contos. Esse capital do banco, mesmo não
em harmonia com o espirito desta instituição, a Directoria se tem empenhado integralizado, colocava-o na terceira posição entre as maiores sociedades
em levar os recursos de credito diretamente aos lavradores, sem dependência anônimas do Império na época, perdendo somente para a Cia. Estrada de
de intermediário, cujo concurso sujeita-os sempre a acréscimo de juros que
Ferro D. Pedro II e o Banco do Brasil, com 38.000 contos e 30.000 contos
tomam muitas vezes as proporções de usura escandalosa.57 (Grifo nosso).
respectivamente.60 O fundo de reservas aumentou de 18 contos para 70 con-
tos e o caixa declinou 40% de 1859 para 1860, revelando que a crise reper-
gráfico 2: empréstimos do bca-matriz, 1859-1861
cutiu no primeiro ano de funcionamento do banco. As emissões passaram
de 5.790 contos para 6.958 contos, um aumento de 12% relacionado com a
necessidade de liquidez no mercado em crise.
Com relação aos depósitos na matriz, Gráfico 3 e Anexo 1, houve um
declínio de 50% do anos de 1859 para 1860. Infelizmente, face à escritura-
ção das contas relativas aos caixas filiais, não pudemos organizar as contas
como foi feita para a matriz e os depósitos não puderam ser contabiliza-
dos. Porém, nos Relatórios das caixas filiais, as diretorias das caixas filiais
de Vassouras e Campos relataram a situação dos seus depósitos. Na filial de
Vassouras, em 1859, a situação dos depósitos era a seguinte:
A verba dos depósitos é quase nulla; este mesmo facto é menos devido á falta
de confiança que merece este nascente estabelecimento, do que ao concurso
simultâneo de outras causas, como sejam – novidade do estabelecimento,
Fonte: Anexo 1 escassez de reservas accumuladas, emprego mais lucrativo do capital em um
paiz novo, onde elle não abunde Algumas destas causas podem ser removidas
Entretanto, no mesmo Relatório de 1859, ficou clara a preferência pelo com o tempo; e então poderá também este estabelecimento funccionar como
desconto de letras com penhor, uma modalidade de empréstimo de curto verdadeira caixa econômica [...].61 (Grifo nosso)
prazo, porém com juros menores (ao ano) do que forma de letras descon-
No Relatório de 1860, a diretoria da filial de Campos destacou:
tadas por hipotecas com prazos maiores.58 Essa preferência foi destacada,
novamente, no Relatório do ano de 1860: relacionado com a necessidade de “cobrir com essa diferença as despezas especiaes desta administração”.
RELAT’ORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de setembro de 1859, anexo nº 2.
59 RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de setembro de 1860.
57 BANCO COMERCIAL E AGRICOLA. RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 60 MAPA das Companhias ou Sociedade Anônimas registradas no Tribunal do Commercio da capital
30 de setembro de 1860. Rio de Janeiro: Typ. F. de Paula Brito, 1860. do Imperio de 1850 a 1865. In: RELATÓRIO do Ministerio dos Negocios da Justiça, 1865 apud EL
58 Embora não conste no Relatório de 1859 a questão da taxa dos descontos das letras, há uma menção de KAREH, 1982, p. 58.
que na filial de Vassouras, a diretoria adotou “a mesma do banco (RJ), com augmento de 1%”, e estava 61 RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de setembro de 1859, anexo no 2.

454 455
[...] 200 mutuarios tem tido conta corrente com a Caixa desde a sua aber- período, sofreu uma corrida perigosa, e outras como as de Antonio José
tura; destes tinham-se reirado até o dia 17 de agosto 48 por conseguinte nesta Domingues Ferreira e a Astlley Wilson & Co, que tinham dívidas com ban-
data 152, sendo o saldo a favor dos existentes de réis 387:138$543, somma esta
cos, acabaram falindo.65 Ao final da crise, os prejuízos foram calculados em
avultada em relação ao curto prazo de existencia da Caixa, e que denota a
confiança que inspira sua solidez.62 torno de 15.000 contos, e o número de falências aumentou de 49 em 1857
para 90 em 1858.66
gráfico 3: depósitos do bca – matriz, 1859-1861
Pressionado pelos conservadores, que acusavam a sua política de ser
a causa da depreciação cambial, e, por tabela, da crise da economia, Souza
Franco recorreu ao Banco do Brasil. Através dos vários ofícios encaminha-
dos pelo ministro à diretoria do banco, e vice-versa, ficou visível a descon-
fiança e a divergência de ambos acerca da solução para a crise. Enquanto o
Banco do Brasil sustentava a posição de que somente através dos emprésti-
mos e das remessas de ouro e outros metais do fundo disponível consistia
na melhor política para estabilizar o câmbio, o governo achava que o banco
deveria usar suas reservas para a sustentação do câmbio.
A crise chegou ao seu máximo quando a diretoria do Banco do Brasil
Fonte. Anexo 1 suspendeu todas as operações de sustentação do câmbio em fevereiro de
Em outras palavras, embora o BCA não fosse um banco de poupança, 1858, o que levou a câmbio a uma forte depreciação, sendo cotado a 22,75
saving bank, como a Caixa Econômica,63 nas caixas filiais estava ocorrendo pence/mil réis (9,10 rs/£) em março.67 Legitimada pelo parecer da Sessão de
uma situação bastante interessante de saving accounts, ou seja, de depósitos Fazenda do Conselho de Estado,68 composta pelo visconde de Itaboraí, que
como “poupança”, uma conta segura para os depositantes. tinha se retirado da presidência do Banco do Brasil com a ascensão de Souza
Ainda com relação ao passivo, os dividendos distribuídos aos acionis- Franco, o marquês de Abrantes e o visconde de Abaeté, todos ligados ao
tas e a comissão da diretoria, acompanhando a situação desfavorável do
geradas no centro do sistema financeiro internacional em vista do grande descompasso entre os
banco (matriz), caíram em torno de 20% de 1859 para 1860. Declínio maior prazos de liquidação de seus depósitos e de suas aplicações”. ABREU, Marcelo de Paiva; LAGO,
foi na conta lucros e perdas, que quase zerou em 1860, e a explicação para Luiz Aranha Correa do. A economia brasileira no Império, 1822-1889. PUC-Rio: Departamento de
Economia. p. 29. (Texto para Discussão, n. 584). Disponível em: <http://www.econ.puc-rio.br/pdf/
tal perda não foi relatada no Relatório. td584.pdf>.
65 GUIMARÃES, 2012, p. 219.
a queda de souza franco e 66 BRASIL. Ministério da Justiça. Comissão de inquérito sobre as causas da crise na praça do Rio de
rumo ao fim da pluralidade bancária Janeiro, 1864: relatório da comissão encarregada pelo governo imperial por avisos do 1º de outubro
e 28 de dezembro de 1864 de proceder a um inquérito sobre as causas principais e acidentais da crise
A crise de 1857 significou o início das dificuldades do sistema financeiro do mês de setembro de 1864. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1865. p. 270.
67 A respeito da posição do Banco do Brasil frente à crise, negando ajuda ao ministro da Fazenda
brasileiro.64 A famosa Casa Bancária Alves Souto, uma das maiores do
Souza Franco, cf. RELATÓRIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas do Banco do Brasil
na sua reunião de 1858 pelo director, servindo de presidente, Jerônimo José de Mesquita. Rio de
62 RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de setembro de 1860. Janeiro: Typ. Nacional, 1858. p. 6-8. Uma análise detalhada do confronto entre o Banco do Brasil e
63 A respeito da Caixa Econômica do Rio de Janeiro, criada em 1861, cf. LEITE MARCONDES, Renato. o governo está em CAVALCANTI, Amaro. O meio circulante nacional: 1836 a 1866. Rio de Janeiro:
CAIXAS ECONÔMICAS PÚBLICAS E DEPÓSITOS POPULARES NO BRASIL (1861-1940). América Imprensa Nacional, 1893. v. 2, p. 213-215; PELAEZ; SUZIGAN, 1981, p. 87-92; NOGUEIRA, 1988, p. 369-
Latina en la Historia Económica. Revista de Investigación, vol. 21, núm. 3, septiembre-diciembre, 370; VILLELA, 2004, p. 12-14; GAMBI, 2010, cap. 5.
2014, p. 116-143. Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=279131794004>. 68 Consulta n.º 488, de 26 de março de 1858 “Sobre as causas da baixa do cambio com a praça de
64 No entendimento de Marcelo de Paiva Abreu, “as casas financeiras (casas bancárias) que se tinham Londres, meios que deve empregar o governo para sanear esta ocurrencia”. CONSULTAS da Secção
tornado importantes na década de 1850 demonstraram ser extremamente vulneráveis às crises de Fazenda do Conselho de Estado. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1856-1860. v. 4, p. 258-264.

456 457
Partido Conservador, à decisão do Banco do Brasil fez com que o ministro e fazendeiros, e a agiotagem das ações de empresas.72 Respondendo as críti-
Souza Franco recorresse à Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & Cia, cujo cas, o barão de Mauá afirmou que a agiotagem começou com a organização
diretor presidente era o barão de Mauá, deputado pelo Partido Liberal na do Banco do Brasil em 185373 e justificou o “jogo” das ações destacando:
Assembleia Geral. Consoante o Relatório do Ministério da Fazenda de 1858,
Não entendo por agiotagem a compra e venda de ações, nem essa animação
o “banco” do barão de Mauá,69 através de um cronograma de saques junto sensata ou ágio que podem merecer os valores públicos de empresas bem cal-
a sua filial em Londres, tornou possível o restabelecimento do câmbio para culadas [...]. Sem tal ou qual animação de confiança representada no ágio ou
a paridade e a crise superada. No referido relatório, Souza Franco afirmou: prêmio de ações tudo esmorece. Agiotagem propriamente dita são as operações
aleatórias é um contrato feito entre partes para receberem o ágio, se os títulos
Ao governo cumpria, na forma do artigo 2º da Lei de 1846, fazer as operações ou qualquer valores forem elevados, ou pagarem a diferença se baixarem [...].74
de crédito necessárias para conservar a oitava de ouro o valor de 4$, ou o que
era o mesmo – elevar o câmbio a 72 pence por mil réis, sendo o Banco do Fragilizado politicamente, Souza Franco foi substituído por Sales
Brasil o seu cooperador natural, pelo interesse direto da sustentação do valor Torres Homem (visconde de Inhomirim), seu maior opositor na Câmara
dos seus bilhetes, e porque nos fundamentos de sua organização e dos favores,
dos Deputados.75 Ex-liberal, conservador, defensor do monometalismo e da
que se lhe concederam, entrara a obrigação em que se constituiu de contribuir
para a fixação do valor da moeda circulante. centralização bancária, Sales Torres Homem apresentou o Projeto de Lei nº
E como lhe faltasse agora esse cooperador natural, o governo dirigiu-se à casa 50 à Assembleia Geral em 15/6/1859, em que reafirmava os postulados do
bancária – Mauá, MacGregor & Cia – e no mesmo dia da recusa do Banco padrão-ouro e insistia no retorno do monopólio de emissão ao Banco do
da Brasil (12 de março de 1858), aquela casa tendo aceitado a incumbência do Brasil.76 Esse projeto tinha um único artigo que dizia o seguinte:
governo, abriu saques (negociados a cotação de 25 1/2 a 90 dias) sobre a sua
filial em Londres até a soma de L 400.000 para o vapor de março, a sair; – e Artigo Unico: O Banco do Brazil e suas caixas filiais, e bem assim os bancos
depois, até as somas de L 200.000 para o de abril; – de L 150.000 para o de de circulação autorizados por decretos do Poder Executivo, são obrigados a
maio e de L 60.000 para o de junho.70 realizar suas notas em ouro á vontade do portador.
SS1º. O troco em ouro, nos termos desse artigo, tornar-se-ha exigível no prazo
A atuação da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & Cia fez com que, de tres annos decorridos do dia da publicação da lei;
na Assembleia Geral, os conservadores acusassem o ministro da Fazenda de SS2º. A emissão dos referidos bancos, enquanto suas notas não forem con-
privilegiar o banco do barão de Mauá e de promover a agiotagem e a espe- vertidas em ouro á vontade do portador, não poderá exceder o máximo da
culação. Analisando o Relatório da Comissão de Inquérito de 1859, a culpa emissão que cada um delles houver feito nos mezes de fevereiro, março, abril
e maio do corrente anno;
caiu sobre o fator externo e a política emissionista do governo.71 Entretanto,
para os conservadores, os responsáveis pela crise na Praça do Comércio
72 Ibid., p. 4-16.
foram os “jogos de cambiais” envolvendo manipulação do câmbio entre os
73 O número de instruções do governo acerca das subscrições ou distribuições das ações para o
bancos e as casas bancárias, como forma de salvaguardarem as transações público demonstrava para Mauá a especulação. Sobre as instruções verificar CAVALCANTI, 1893, p.
comerciais, principalmente as que envolviam casas bancárias, comissários 202-204.
74 BRASIL. Câmara dos Deputados. Anais do Parlamento Brasileiro. 2º ano da 10ª Legislatura. Rio de
Janeiro: Tip. J. Villeneuve, 1858. t.1, sessão de 29 de maio de 1858, p. 143. In: ANDRADE, 1987, p. 143.
69 A diferença entre banco e casa bancária era no tamanho (capital) e na forma de organização, pois 75 O presidente do Conselho de Ministros foi mudado com o novo gabinete. Saiu o conservador Pedro
os bancos eram S/As e as casas bancárias eram sociedades comerciais. Cf. GUIMARÃES, 2012. de Araujo Lima, o marquês de Olinda, e ascendeu o liberal Antonio Paulino Limpo de Abreu, o
70 BRASIL. Ministério da Fazenda. Relatório do Ministro da Fazenda de 1857. Rio de Janeiro: Imprensa visconde de Abaté. O debate no legisativo Cf. SAÉZ, Hernan Enrique Lara. O tonel das danaides:
Nacional, 1858. p. 9. No Anexo A do referido relatório, constam os ofícios enviados pelo ministro um estudo sobre o debate do meio circulante no Brasil entre os anos de 1850 a 1866 nas primeiras
da Fazenda ao Banco do Brasil, e vice-versa. instâncias decisórias. 2013. Tese (Doutorado em História Econômica) – Faculdade de Filosofia,
71 A comissão foi criada no Ministério do Conservador Silva Ferraz, e serviu de “base” para a Lei dos Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
Entraves de 1860. Cf. COMISSÃO de inquérito sobre o meio circulante. In: RELATÓRIO da Comissão 76 A primeira medida de Torres Homem foi a revogação da autorização concedida por Souza Franco
de Inquérito nomeada por aviso do Ministério da Fazenda de 10 de outubro de 1859. [S.l.: s.n.], 1859. ao Banco do Brasil de emitir suas notas até o triplo de seus fundos. Como destacou Thiago Gambi,
3 v. em 1. as emissões não ultrapassaram esse teto. GAMBI, 2010.

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SS3º. Os bancos que tiverem excedido este limite, ficam obrigados a reduzir a O projeto tal qual se acha concebido, não podendo apoiar-se nos principios da
emissão no período de cinco mezes [...]; sciencia, nem nas condições economicas do nosso paiz, parece-nos realmente
SS4º. O governo nomeará um fiscal para cada banco, creado em virtude de mais uma ideia cruamente lançada á discussão, do que um acto serio de um
autorização administrativa, e lhe marcará honorario pago pelos cofres do ministro da fazenda; infelizmente, porem, o afan com que o gabinete de 12
mesmo banco. Compete ao fiscal vigiar as operações do estabelecimento, e de Dezembro procura por todos os meios imaginaveis, vencer na votação da
fazer cumprir as disposições dos estatutos [...]. camara temporariamente, despertou-nos: alerta! bradaremos pois, com toda
SS5º. Enquanto a emissão do Banco do Brasil estiver limitada pela disposição energia da convicção; tratava-se de uma questão vital para a sociedade brasi-
do SS2º desta lei, fica suspensa a obrigação, que lhe impoz a de 5 de julho de leira; desde que se pretende ousadamente converter em lei um projecto que
1853, de resgatar dois mil contos de réis de papel do governo. não sabemos como qualificar, pois que nem mesmo como producção poetica
SS6º. É permittida ás caixas matriz e filiaes do Banco do Brazil receber em
podemos o admitir para apreciar como tal, desde que lhe falta harmonia versifi-
pagamentos notas dos outros bancos de emissão, creados nos logares em que cação[...].78 (Grifo nossos).
cada uma dellas funcionar.
O projeto foi aprovado por uma pequena maioria dos votos.79 Não
SS7º. Só ao Poder Legislativo compete conceder autorização para se incorpo-
rarem novos bancos de emissão ou prorrogar o prazo dos que já existem [...].77 resistindo às pressões contrárias ao projeto, o ministro Sales Torres Homem
(Grifos nossos). foi substituído por Angelo Muniz da Silva Ferraz. Essa mudança, segundo
uma testemunha da época, consistiu numa manobra política do Partido
O projeto de Torres Homem estava de acordo com a reclamação do Conservador, em virtude do novo gabinete conservador ter uma maioria
Banco do Brasil junto ao governo, datada de 23 de abril de 1859. Nessa recla- na Assembleia Geral, possibilitando a aprovação do projeto.80
mação, assinada pelo presidente da instituição, o visconde de Itaboraí, que
retornara para a presidência do banco após a queda de Souza Franco, a dire- a lei dos entraves, a “vitória” do banco do brasil
toria alegava que o banco só poderia desempenhar bem as suas funções, e o fim do banco commercial e agrícola
caso o ministro encaminhasse à Assembleia Geral medidas que fizessem
o banco retornar às condições impostas pela Lei nº 683, de 5/7/1853. Em O senador Angelo Muniz da Silva Ferraz (barão de Uruguaiana), minis-
outras palavras, significava retornar o monopólio das emissões ao Banco tro da fazenda e presidente do conselho de ministros do novo gabinete de
do Brasil, acabando com a pluralidade bancária e, também, com os bancos 10/8/1859, encaminhou o projeto para o Senado e, ao mesmo tempo, pro-
emissores como o BCA. moveu um forte ajuste no sistema bancário e na organização das socieda-
Encaminhado para a Câmara, o projeto foi debatido intensamente e des anônimas no início de seu governo. Através do Decreto nº 2.457, de
uma série de emendas foi apresentada. No Jornal do Commercio, na seção 5/9/1859, os estabelecimentos bancários e as sociedades anônimas estavam
Publicação a Pedidos, apareceu uma série de críticas ao projeto, demons- obrigados a enviar no primeiro dia de cada semana, da Corte à Secretaria de
trando que os interesses de determinados grupos podiam ser prejudicados. Estado dos Negócios da Fazenda, e das províncias aos respectivos presiden-
O barão de Mauá, que estava num desses grupos, criticou duramente o pro- tes, uma demonstração das operações da semana anterior, mencionando:
jeto, argumentando o seguinte: 1) Cada uma espécie de letras ou valores de qualquer natureza, que formas-
O projeto tem em vista substituir o regimen do papel-moeda, que infelizmente sem o activo; 2) O estado de seu capital e de sua reserva; 3) O estado de seu
domina a circulação monetária do Imperio ha cerca de 36 annos, fazendo fundo disponível e das especies de que este se compunha; 4) O movimento
apparecer, como por encanto [destaque do autor], a época tão ardentemente de sua emissão, si a tivesse, com declaração da quantidade emittida, com
almejada por todos os homens pensadores de ter o Brazil um meio circulante
78 MAUÁ, Barão de. As medidas do sr. ministro da Fazenda e a situação economica do paiz. Jornal do
estavel, baseado nas espécies metallicas, unicas que devem realmente servir de Commercio, Rio de Janeiro, 6 jul. 1859. Publicações a Pedido, p. 2.
padrão de valor nas sociedades bem organizadas. [...] 79 CAVALCANTI, 1893, p. 236-244.
80 MILET, H. Augusto. O meio circulante e a questão bancária. Recife: [s.n.], 1860 apud CAVALCANTI,
77 CAVALCANTI, 1893, p. 235. op. cit., p. 245.

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especificação de suas letras, notas ou valores, sua serie e valores; 5) O movi- retorno do monopólio das emissões ao Banco do Brasil –,84 o “novo” projeto
mento das contas correntes, depósitos, quantias recebidas por emprestimo e foi aprovado pelo Senado. Encaminhado para o governo, foi sancionado e
quaesquer outras operações especiaes, e etc.81
promulgado como a Lei nº 1.083, de 22/8/1860, conhecida como a Lei dos
Um segundo Decreto, o de nº 2.490, de 30/9/1859, reforçou a política Entraves.85 Entre os pontos principais dessa lei, composta de sete (7) artigos
de Ferraz de restrição ao crédito e aos estabelecimentos bancários. Esse e com vários parágrafos, destacamos: 1) os bancos criados por decretos do
decreto tratava de regular a fiscalização e a arrecadação do selo, que estavam poder executivo – período Souza Franco – ficavam proibidos de emitirem
sujeitos o capital das companhias e sociedades anônimas, como também as sob a forma de notas ou bilhetes ao portador (vales bancários), “quantia supe-
transferências de suas ações, notas promissórias, bilhetes, vales, obrigações rior ao termo medio de suas emissões operadas no decurso do primeiro semes-
e cautelas, ou seja, “todos os escriptos contendo promessa ou obrigação de tre do corrente ano” (grifo nosso), enquanto não se mostrassem capazes de
entrega de valor recebido em deposito ou de pagamento ao portador á vista, reembolsar os vales em ouro; caso não conseguissem efetuar tal operação,
ou a prazos menores de 10 dias”.82 os bancos entrariam em liquidação – artigo 1º; 2) o maior controle para a
O projeto original de Torres Homem chegando ao Senado entrou em constituição de sociedades anônimas, que além de dependerem da auto-
discussão na primeira sessão de 9/7/1860. O ministro Silva Ferraz ofereceu rização do governo, conforme constava no Código Comercial, passaram
emendas substitutivas, que tornavam o projeto ainda mais rigoroso com o também a depender da aprovação da Assembleia Legislativa – artigo 2º.
crédito. Dentre as emendas destacamos: A política do governo ficou mais restritiva com os decretos criados
após a promulgação da Lei dos Entraves, como os de nº 2.630 de 29/8/1860,
1º. a restringir as emissões dos bancos, devidamente autorizados, ao termo das
2.664, de 10/10/1860, de nº 2.679 e 2.680, ambos de 3/11/1860, de nº 2.686,
que se haviam realizado no ultimo trimestre de 1860, enquanto elles se não
habilitassem para a troca de suas notas em moeda metallica, devendo conver- de 10/11/1860, e o de nº 2.711, de 19/12/1860.86 O primeiro, o governo impôs
ter o seu fundo de garantia nessa especie os que o tivessem constituído. reformas nos estatutos do BCA, principalmente no tocante às emissões e
3º. a diminuir a circulação das notas bancárias, de pequenos valores, e a prohi- atuação das caixas filiais, e que essas, no prazo de 60 dias, estivessem adap-
bir a emissão,em geral, não autorizada por lei, de bilhetes ao portador, a quaes- tadas, pois corriam o risco de “estarem sujeitas ao que dispõe o Artigo 10
quer individuos, companhias, etc.; do Decreto nº 575 de 10 de janeiro de 1849”,87 ou seja, de dissolver as caixas
4º. a fazer effectiva a responsabilidade dos bancos ou indivíduos, pelo valor filiais.88 O último decreto, no tocante aos bancos, continha vários artigos
desta circulação;
que dificultavam ainda mais sua organização. Entretanto, importante des-
5º. a reprimir o abuso de se fundarem e funccionarem sociedades anonymas
sem prévia autorização do governo, na forma do Código Commercial e mais tacar que no referido Decreto nº 2.711, o governo reconheceu as dificulda-
legislação em vigor, ficando a autorização de bancos de emissão e de compa- des de implementar sua política de restrição ao crédito, quando concedeu
nhias de estrada de ferro, canaes, etc., ou que pretendessem algum privilegio, não a prorrogação por mais tempo, quatro (4) meses – o prazo marcado pelo
autorizado por lei, a cargo do Poder Legislativo; [...].83 (Grifo nossos). artigo 1º, da Lei nº 1.083. Concordando com Maria Barbara Levy, face às
Após um interessante debate de posições divergentes entre o senador e
84 29º Sessão em 4 de setembro de 1860: ordem do dia – questão bancária. In: ANNAES do Senado
ex-ministro da fazenda Bernardo de Souza Franco – a favor da pluralidade –, do Imperio do Brasil: quarto anno da décima Legislatura. Rio de Janeiro: Typographia do Correio
e o presidente do conselho de ministro e ministro da fazenda Silva Ferraz Mercantil, 1860. v. 1-4, p. 185-199.
e o visconde de Itaboraí – ambos contrários à pluralidade e favoráveis ao 85 CÓDIGO Comercial do Brasil, op.cit., p. 754-770 (Apêndice).
86 Ibid., p. 758-810.
87 COLEÇÃO das Leis do Império do Brasil de 1860. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1860. t.
XXI, parte I, p. 375-376.
81 CAVALCANTI, op.cit., p. 245.
88 BRASIL. Decreto nº 575, de 10 de janeiro de 1849. Câmara dos Deputados: legislação informatizada,
82 Ibid., p. 246. Brasília, DF. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-575-
83 Ibid.,p. 255. 10-janeiro-1849-559714-publicacaooriginal-82062-pe.html>.

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pressões políticas da Praça do Comércio do Rio de Janeiro, “o governo não Seus autores, não obstante legislarem para membros notáveis de uma classe que
podendo acabar com a pluralidade, procurou cerceá-la”.89 em todos os tempos se tem distinguido por seus hábitos de obediência legal,não
confião nestes hábitos.93 (Grifo nosso).
O resultado dessa política restritiva do crédito consistiu na retração do
sistema bancário de tal forma que, entre os anos de 1861-1863, foram organi- Face à tal situação, o banco adotou uma política ainda mais conser-
zados somente 5 casas bancárias e dois bancos, sendo esses últimos de ori- vadora, como destacado no Relatório de 1861. Nos ativos, o banco (matriz)
gem inglesa,90 além do aumento do número de falências das casas comer- adquiriu um volume expressivo de mais de 4.000 contos de apólices da
ciais da Praça do Rio de Janeiro, chegando ao número de 105 em 1862.91 Para dívida pública (com juros de 6% ao ano), um ativo mais conservador do
efeito de comparação dos números, em 1858, um ano após a crise de 1857, que as ações, e que estava de acordo com a conjuntura crítica face à Lei dos
90 casas comerciais faliram. Essa política, que o governo alegava “que saíam Entraves.94 Os empréstimos diminuíram principalmente o desconto com
do mercado aqueles que visavam a mera especulação sem base real”, não letras caucionadas, e constatou-se um aumento dos empréstimos em hipo-
condiz com a realidade. Para Maria Barbara Levy, tecas com juros maiores de até 12% a.a. – Gráfico 2 e Anexo 2. Ainda com
[...] esse dimensionamento era evidentemente de caráter ideológico, pois o relação aos ativos, embora não constasse no balanço de 1861, o BCA era o
próprio Silva Ferraz constatou a notável diminuição do movimento comercial, segundo maior acionista do Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro do
observando o abatimento e escassez do capital flutuante, além da morosidade mesmo ano, com 1.961 ações, seguido pelo Banco do Brasil com 800 ações.95
dos pagamentos. Essas causas provocaram uma redução de aproximadamente Ainda com relação aos empréstimos com hipotecas, Thiago Alvarenga,
10% nas rendas públicas, sem considerar a inflação, que não se estancara ainda.92
trabalhando com registros de dívidas com hipotecas encontrados nos car-
Analisando o Relatório do BCA de 1861, ficou bastante nítida a crítica à tórios do Rio de Janeiro, destacou a pouca participação dos bancos e casas
Lei dos Entraves. Na seção Lei Bancária, a diretoria do banco, desfalcada de bancárias96 nessas operações. Embora não podendo fazer o levantamento
seu presidente João Evangelista Teixeira Leite, que tinha falecido em 16 de das quantias emprestadas pelos bancos e casas bancárias, de um total de
março de 1861, expressou o seu descontentamento com a lei. 1.714 registros de dívidas com hipotecas no período de 1856 a 1864, o Banco

O estado de marasmo commercial e de constrangimento geral que se mani- 93 RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de setembro de 1861. Rio de
festou ao discutir-se a lei, e que não tendo soffrido interrupção durante todo Janeiro, Typ. F. de Paula Brito, 1861. p. 5.
o tempo que tem tido de execução, bastarião para denunciar o espírito de 94 Infelizmente, os relatórios do banco de 1859 a 1861 estão incompletos e não há menção sobre o
reacção contra a opinião publica que a domina porquê da mudança na composição dos ativos. No caso específico dos balanços, embora estejam
Suas próprias disposições são porém a mais convincente demonstração deste especificados nos relatórios como “Balanço do semestre findo em 31 de agosto”, o balanço do ano
de 1859 retrata as operações efetuadas pelo banco de 15/3/1858, quando o banco iniciou as suas
asserto. operações, até até 31/08/1858, e os dois semestres seguintes, ou seja, 1/9/1858 a 31(?)/2/1859 e 1/3/1859
Profusão de penalidade, eis o seu primeiro distinctivo. a 31/8/1859. Nos demais anos, 1860 e 1861, os balanços referem-se aos balanços anuais do banco,
Para todas as suas infracções há uma pena. [...] de 1/9/1859 a 31/8/1860 e 1/9/1860 a 31/8/1861. RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos
Accionistas em 30 de setembro de 1859; RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas
em 30 de setembro de 1860; RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de
89 LEVY, 1977, p. 85. Um adendo importante no artigo 1 da Lei dos Entraves, que autorizou o Banco setembro de 1861.
do Brasil e suas caixas filiais de continuarem a emitir, demonstrava a dificuldade do governo de
95 A maior acionista era a casa de câmbio e desconto de letras Montenegro, Lima & C. com 2.597 ações.
eliminar a pluralidade de emissão no período.
Na relação nominal dos acionistas do Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro, constava casas
90 Foram criados o London and Brazilian Bank e o Braziliam and Portuguese Bank. Cf. GUIMARÃES, bancárias, como Antonio José Alves Souto & Cia. com 205 ações, fazendeiros como o barão de
2012. São Gonçalo, negociantes nacionais como Jerônimo José de Teixeira Jr. com 100 ações, negociante
91 BRASIL. Ministério da Justiça. Commissão de Inquérito sobre as causas da crise na praça do Rio de estrangeiros como João José dos Reis (futuro conde de São Salvador de Matozinhos) com 200 ações
Janeiro, 1864: relatório da commissão encarregada pelo governo imperial por avisos do 1º de outubro e comissários como Jeronymo José de Mesquita com 132 ações. O maior grupo de acionistas era
e 28 de dezembro de 1864 de proceder um inquérito sobre as causas principaes e accidentaes das de comissários. RELATÓRIO apresentado pela directoria do Banco Rural e Hypothecario do Rio de
crise no mes de setembro de 1864. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1865. p. 268-274. Janeiro em assembléa geral dos accionistas aos 15 de Julho de 1861. Rio de Janeiro: Typographia do
92 LEVY, 1977, p.85. A respeito da inflação do período, verificar o trabalho de GOLDSMITH, 1986, p. Diario do Rio de Janeiro, 1861.
29-35. 96 A respeito da diferença entre um banco e uma casa bacária cf, GUIMARÃES, 2012.

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Rural e Hipotecário foi o que teve o maior número de registros, que foi de ordem”, ou seja, de defesa do monometalismo,99 encaminhou um projeto de
172. Depois tivemos a casa bancária Antonio José Alves Souto & C. com reforma do banco, que, mesmo não tendo aprovação pela Seção da Fazenda
47, seguida pela sociedade bancária Mauá, MacGregor & C. com 26, e por do Conselho de Estado em 1862,100 foi para a Câmara dos Deputados. Uma
último o Banco Commercial e Agrícola com 16 – Tabela 3. Comissão foi nomeada para analisar a proposta de reforma do Banco do
Brasil e a mesma deliberou pela aprovação do seguinte projeto de resolução:
tabela 3: participação bancária no crédito hipotecário, 1856-1864
Artigo 1º. Fica o governo autorisado a elevar o capital do banco do Brasil a
Bancos e Casas Bancárias Nº de Registros (% do Total) 33.000:000$, e a approvar, quer o accordo e fusão ajustado entre este e o banco
Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro 172 (10%) Commercial e Agricola, mediante as condições da respectiva proposta anexa
á sua representação, como também approvar a compra que o mesmo fizer do
Casa Bancária A. J. Alves Souto & C. 47 (2,75%)
direito de emissão do banco Rural e Hipotecario;
Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & C. 26 (1,52%) Artigo 2º. Fica igualmente o governo autorisado a dispensar pelo espaço de um
Banco Commercial e Agrícola 16 (0,9%) a dous annos, segundo a situação real do banco, que verificará na averiguação
a que proceder o onus do resgate do papel-moeda, na razão da terça parte do
Fonte: OLIVEIRA, Thiago Alvarenga de. Relações econômicas escravas: autonomia escrava urbana no Rio capital augmentado, na forma dos estatutos do banco.101 (Grifos nossos).
de Janeiro do século XIX. 2013. Monografia (Bacharel em História) – Faculdade de História, Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 2013.
Encaminhado o projeto para o governo, esse foi regulamentado pelo
Retornando ao passivo do BCA, não podendo mais emitir, o valor das Decreto nº 2.970, de 9 de setembro do mesmo ano, e,
emissões de 1861 foram iguais as de 1860, e os depósitos aumentaram em Assim, entraram em vigor as seguintes disposições: o capital do Banco
22,4% em relação a 1859 – Gráfico 3 e Anexo 2. Os dividendos distribuí- do Brasil foi elevado para 33.000:000$000, dividido em 165 mil ações de
dos aos acionistas aumentaram em relação ao anos de 1860, assim como a 200$000 cada uma; o Banco do Brasil cedia ao Banco Comercial e Agrícola
24 mil ações ao par, para compensar desistência que este fazia do seu direito
comissão da diretoria.
de emissão; o Banco Comercial e Agrícola pagava ao Banco do Brasil o valor
Nas caixas filiais, a diretoria do BCA teve que formular novos estatu- real de 24 mil ações que recebesse na proporção das prestações realizadas, ou
tos para o funcionamento das mesmas, consoante o Decreto 2.630, “que de 160$000 por ação, correspondentes ao capital de 3.840:000$000, ficando,
remetidos ao governo a 27 de outubro foram approvados sem alteração pelo além disso, os possuidores das novas ações obrigados a completar o seu valor
decreto nº 2.800 de 25 de maio do corrente anno”.97 nominal quando fosse exigido dos demais acionistas; o Banco do Brasil entre-
gava ao Banco Rural e Hipotecário a soma de 400:000$000, para compensar
Com relação aos ativos das filiais, diferentemente da matriz, os
a desistência que este fazia do seu direito de emissão; logo que recebesse as
empréstimos em letras descontadas aumentaram – Anexos 5 e 6. No pare- 24 mil ações o Banco Comercial e Agrícola entraria em liquidação, por sua
cer sobre as condições da caixa filial de Vassouras, o comendador Joaquim conta e risco; após a entrega das 24 mil ações do Banco Comercial e Agrícola
José Teixeira Leite, importante comissário de café de Vassouras, acionista
do BCA e irmão do falecido presidente, relatou o seguinte: “As operações da 99 A respeito das decisões da Assembleia dos Acionistas e da diretoria do Banco do Brasil frente à
caixa continuão a limitar-se quase exclusivamente ao desconto de letras”.98 Lei dos Entraves cf. GAMBI, 2010; p. 355-393. (Cap. 8 – O longo caminho de volta ao monopólio de
emissão).
Entretanto, mesmo com uma situação melhor do que a do ano anterior, 100 Interessante constatar que os conselheiros visconde de Itaboraí e Bernardo Souza Franco tiveram
e diante de tal conjuntura política e econômica, o BCA foi incorporado pelo a mesma posição contrária aos interesses do Banco do Brasil. BRASIL. Conselho de Estado. Seção
da Fazenda. Imperiaes Resoluções do Conselho de Estado na Secção da Fazenda desde o anno em que
Banco do Brasil em 1862. Esse último, para continuar como o “banco da
começou a funcionar o mesmo conselho até o presente colligidas por ordem do governo. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1871. Ata de 10/07/1862, v. IV, annos de 1856 a 1860, p. 178-182.
101 SESSÃO em 26 de julho de 1862: reforma nas disposições do Banco do Brasil. In: ANNAES do
Parlamento Brasileiro: Câmara dos srs. deputados – segundo anno da undecima Legislatura. Rio de
97 RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de setembro de 1861, p. 16. Janeiro: Typographia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve & C., 1862. Sessão de 1862, tomo 3,
98 Ibid., anexo A. p. 241.

466 467
e o pagamento ao Rural e Hipotecário de 400:000$000, nos termos do acordo tem sido feitas neste sentido. Tem dado preferência ao credito pessoal áquelle que
aprovado e dentro de um prazo inferior a 30 dias da data do decreto, começa- se funda sobre a producção, que em pouco tempo se liquida sobre o credito que se
riam a sair de circulação as notas dos dois bancos.102 baseia no solo, que imobiliza o capital e cujo valor é nos nossos districtos agrícolas,
sobre tudo n’aquelles que cultivam o café muito precário”.104 (Grifo nosso).
considerações finais Nesse sentido, com todo discurso produzido pela diretoria do banco,
A crítica feita por Luiz Peixoto de Lacerda Werneck ajudou-nos na aná- de “levar os recursos do crédito directamente aos lavradores, sem depen-
lise sobre a organização e atuação do BCA. Com todas as ressalvas sobre a dência de intermediários”, o BCA não corroborou com as novas formas de
crítica, pois se tratou de um discurso produzido num contexto de crise,103 financiamento para a agricultura. Mesmo com a dificuldade das fontes,
foi importante perceber que no interior do Partido Conservador não havia como por exemplo, na pesquisa dos acionistas, acreditamos que muitos dos
um consenso sobre a política econômica do Império, pois o banco foi orga- comissários do Rio de Janeiro, de Vassouras e de Campos eram acionistas
nizado no momento de uma política da Conciliação, com o conservador do banco, como a família Teixeira Leite. A política de crédito veio de encon-
marquês de Olinda como presidente do Conselho de Ministros e o liberal tro com a lógica creditícia e do papel intermediário do comissário, como já
Souza Franco na “pasta” da Fazenda. Como destacamos no texto, muitos destacou Staney Stein, Joseph Sweigart e outros autores.
membros do Partido Conservador foram acionistas do BCA, e depositavam Portanto, o principal entrave na questão do crédito estava na própria
esperanças no banco de promover o crédito direto aos “lavradores” (pro- relação do banco com a estrutura agrária da época, seja no Brasil escravista,
prietários de terras e de escravos) sem os intermediários. seja em outros mercados inseridos no mercado capitalista em expansão de
Entretanto, o BCA foi um banco comercial e privilegiou principal- meados do século XIX. A participação dos bancos no crédito agrícola era
mente o comércio e o curto prazo através do desconto de letras com penhor mínima, com exceção talvez nos Estados Unidos.105 Herança ou não de uma
mercantil e com caução. No tocante ao desconto de letras com garantias de cultura bancária fundamentada na propensão à liquidez do que na renta-
hipotecas, muito importante para o financiamento da agricultura em vir- bilidade,106 o BCA, assim como outros bancos já analisados (a Sociedade
tude do longo prazo para o pagamento dos juros desse título (12 meses), Bancária Mauá, MacGregor & Cia e o banco Rural e Hipotecário do Rio de
esse não se constituiu numa política do banco. Embora na matriz do banco Janeiro), privilegiou o curto prazo e os próprios acionistas. Os empréstimos
do Rio de Janeiro, o desconto de tais letras foi realizado; esteve relacionado sob a forma de descontos por hipotecas foram insignificantes. Conforme
com os bens urbanos e foram de valores bem inferiores aos outros descon- destacou Sebastião Ferreira Soares em 1860:
tos. As caixas filiais não realizaram tais empréstimos com hipotecas e, no Não tratarei dos diversos meios por que se pode por em ação o crédito e tão
Relatório de 1860, João Evangelista Teixeira Leite destacou: somente me ocuparei do crédito bancário, para que passarei a analisar o nosso
atual sistema de bancos de desconto e emissão; porquanto não temos, senão
Quanto aos empréstimos sobre hypothecas, apezar de permittidas pelos
em nomes, bancos agrícolas e hipotecários, visto que os estabelecimentos que
Estatutos, a Directoria não tem podido a annuir ás poucas propostas, que lhe
existem com estas denominações só emprestam a curto prazo.107 (Grifo nosso).
102 BANCO DO BRASIL. Diretoria de Marketing & Comunicação. História do Banco do Brasil. 2. ed. rev.
Belo Horizonte: Del Rey, Fazenda Com. & Marketing, 2010. p. 50-51; Cf. GAMBI, 2010.
103 Segundo Normam Flairclough, “o discurso é uma prática social, ou seja, é um meio de ação sobre
o mundo, sobre os outros e é também um meio de representação. Através dele podemos fazer ver 104 RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de setembro de 1860, anexo A.
o que somos, como nos vemos, como queremos que nos vejam e como vemos o universo que nos
105 LANDES, 1994, cap. 5 (Falta de ar e recuperação do fôlego)
envolve. Mas este não existe isolado da estrutura social, pois a moral, a educação, o direito, e etc.,
atuam sobre a produção destes discursos. Mas os discursos também produzem estruturas sociais – 106 A respeito da propensão à liquidez cf. PAULA, Luiz Fernando de. Bancos e crédito: a abordagem
ambos são condição e efeito do outro. Assim, o discurso é uma prática, não apenas de representação pós-keynesiana de preferência pela liquidez. Revista de Economia, Curitiba: Ed. UFPR, v. 32, n. 2, p.
do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado”. 81-93, jul.-dez. 2006.
FLAIRCLOUGH, Normam. Discurso e mudança social. Revisão técnica e prefácio à edição brasileira: 107 SORES, Sebastião Ferreira. Notas estatísticas sobre a produção agrícola e carestia dos gêneros
Isabel Magalhães. Brasília: Ed. UNB, 2001. p. 91. alimentícios no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Ipea: Inpes, 1977. p. 306. 1. ed. 1860.

468 469
anexo 1: AGOSTO/18591 AGOSTO/18602 AGOSTO/18613
Balanços do Banco Comercial e Agrícola – Matriz/RJ 10. Lucros e perdas
(importe dos juros que passam - - 4:222$477
(1859-1861) para o semestre seguinte)
Total 28.218:307$629 28.196:705$178 28.627:920$724
AGOSTO/1859 1
AGOSTO/1860 2
AGOSTO/1861 3 PASSIVO
ATIVO 1. Capital 20.000:000$000 20.000:000$000 20.000:000$000
1. Acionistas 2. Reserva: 70:144$880 129:335$093 79:672$679
7.237:900$000 7.237:900$000 7.237:900$000
(por entradas não realizadas) 3. Depósitos:
1.1 Ações por emitir 3.1 Letras a pagar 130:557$185 56:229$802 244:614$613
5.524:200$000 5.524:200$000 5.524:200$000
(pelas que existem no banco) 3.2 Caixas filiais 506:073$528 314:841$701 534:440$218
1.2 Ações da E. F. D. Pedro II 3.250:000$000 3.250:000$000 - 636:630$713 371:071$503 779:054$831
2. Apólices da dívida pública de 3.3 Depósitos (total)
560:000$000 440:000$000 4.319:000$000 (100%) (58,3%) (122,4%)
6% (pertencem ao banco) 4. Selo 34$700 135$400 337$100
7.536:030$005 8.061:093$648 7.035:482$372 5. Comissão da diretoria 17:048$350 13:701$592 16:682$438
3. Empréstimo:
(100%) (107%) (93,4%)
6. Comissão ao fiscal
3.1 Letras descontadas 5.800:727$153 6.420:000$000 6.417:143$278 2:085$304
do governo
3.2 Letras caucionadas
7. Juros e dividendos
(pelas garantias por títulos 1.386:800$000 843:900$000 764:700$00 417$998 151$958 106$958
de conta alheia
do governo e comerciais)
8. Emissão
3.3 Letras a receber 1:200$000 2:748$000 20:509$999 6.987:900$000 7.237:900$000 7.237:900$000
(1ª série em circulação)
3.4 Letras de hipotecas 240:000$000 381:000$000 390:300$00
9. Dividendo 1% 593$650
3.5 Conta corrente 108:502$852 413:445$648 482:329$095
10. Dividendo 2% 1:374$300
4.300:152$889 3.536:882$487 3.064:610$689
4. Caixa (total) 11. Dividendo 3% 408:941$350 649$750
(100%) (82,3%) (71,3%)
4.1 Caixas filiais 12. Dividendo 4% 702$000
1.462:292$947 1.533:196$786 1.573:657$689 13. Dividendo 5% 328:600$000
(Vassouras e Campos)
4.2 Caixa matriz 2.424:779$942 1.744:138$000 1.077:873$000 14. Dividendo 6% 1:146$600
4.3 Diversas notas 15. Dividendo 7%
398:084$500
(do Banco do Brasil, BRHRJ e 413:080$000 215:410$000 413:080$000 (importe de 72.379 ações a 5$500)
do próprio banco) 16 Descontos
114:219$672 2:268$000
4.4 Metais (nas notas de 10$ a 30$)
44:137$701 276:234$874
(ouro, prata e cobre)* 17. Lucros e perdas 95:221$688 237$550 110:582$314
5. Títulos em liquidação 124:829$975 54:678$038 37:217$871 Total 28.218:307$629 28.196:705$178 28.627:920$724
6. Juros e dividendos a receber 44:243$834 43:643$834 43:190$000
6.1 Juros 1:334$325 735$500 Obs.: *Ouro amoedado de 22 quilates; Prata amoedada de 11 dinheiros
7. Material do escritório 1. Balanço referente ao período de 5/3/1858 a 31/9/1859
21:780$058 20:323$719 22:252$981 2. Balanço referente ao período de 31/8/1859 a 31/8/1860
e emissão
3. Balanço referente ao período de 31/8/1860 a 31/8/1861
8. Mobília 6:252$490 5:766$373 5:866$768
Fonte: RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de setembro de 1859;
9. Obras na casa do banco 23:404$053 20:679$822 18:272$692
RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de setembro de 1860;
RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de setembro de 1861.

470 471
anexo 2: anexo 3:
Balanços do Banco Comercial e Agrícola – Balanços do Banco Comercial e Agrícola – Vassouras (31/8/1860)
Vassouras e Campos (17/10/1858 a 31/8/1859)

CAIXA DE VASSOURAS
CAIXA DE VASSOURAS CAIXA DE CAMPOS CONTAS 1º semestre 2º semestre
CONTAS 1º semestre 2º semestre 2º semestre ativo passivo ativo passivo
ativo passivo ativo passivo ativo passivo 1. Capital - 625:000$000 - 625:000$000
1. Capital 625:00$00 625:000$00 600:000$000 2. Letras descontadas 903:333$485 - 925:701$714 -
2. Letras 3. Letras caucionadas 4:232$804 - 8:200$000 -
691:792$515 853:958$442 119:922$182
descontadas 4. Letras por dinheiro
- 19:914$362 - 8:903$045
3. Letras a prêmio
10:000$000 3:300$000
caucionadas 5. Contas correntes 380$010 - 160$014 -
4. Conta 6. Banco Commercial
820$002 600$006 32:053$411 40$000 - 40$000 -
corrente e Agrícola
5. Banco 7. Banco Commercial
Commercial & 30$000 6:671$181 1:408$819 31:802$440 350:010$000 - 66:477$195 - 106:740$749
e Agrícola S/C
Agrícola S/C
8. Banco Commercial
6. Banco - 195:612$341 - 206:233$695
e Agrícola N/C
Commercial & 98:621$525 213:163$026 17:285$928
Agrícola N/C 9. Diversas contas 4:913$859 4$300 4:439$667 2$200
7. Letras 10. Fundo de reserva - 5:054$040 - -
a receber 1:000$000 11. Comissão
n/saques - 1:443$232 - 1:664$455
da diretoria
8. Letras a pagar 12. Juros para
n/remessas e 8:544$994 18:942$564 206$186 - 69$421 -
o seguinte semestre
saques sobre nós
13. Lucros e perdas - 20:472$600 - 17:760$186
9. Diversas
5:902$937 $400 5:296$208 4$400 6:303$660 1$500 14. Caixa 20:871$726 - 27:693$514 -
contas
10. Fundo de Sommas 933:978$070 933:978$070 966:304$330 966:304$330
476$807 2:591$330
reserva
Fontes: RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de setembro de 1860.
11. Comissão
298$719 1:325$101
da diretoria
12. Juros para
o seguinte 208$689 142$075
semestre
13. Lucros
13:182$070 18:743$775 2.889$386 5:695$485
e perdas
14. Caixa 54:241$633 40:167$089 137:339$240
Sommas 752:995$776 752:995$776 911:572$636 911:572$636 637:750$396 637:750$396

Fonte: RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de setembro de 1859.

472 473
anexo 4: anexo 5:
Balanços do Banco Comercial e Agrícola – Campos (31/8/1860) Balanços do Banco Comercial e Agrícola – Vassouras (31/7/861)

CAIXA DE CAMPOS CAIXA DE VASSOURAS


CONTAS 1º semestre 2º semestre CONTAS 1º semestre 2º semestre
ativo passivo ativo passivo ativo passivo ativo passivo
1. Capital - 600:000$000 - 600:000$000 1. Capital - 625:000$000 - 625:000$000
2. Letras descontadas 375:210$381 - 603:115$326 - 2. Letras descontadas 999:816$344 - 1.022:409$384 -
3. Letras caucionadas - - 1:000$000 - 3. Letras caucionadas 8:000$000 - 8:148$924 -
4. Letras por dinheiro 4. Letras por
- - - - - 5:662$494 - 8:148$924
a prêmio dinheiro a prêmio
5. Contas correntes - 235:043$074 - 430:769$573 5. Contas correntes - - - -
6. Banco Commercial 6. Banco Commercial
250:010$000 - 205:862$373 - 5:370$000 - 10:940$000 -
e Agrícola e Agrícola
7. Banco Commercial 7. Banco Commercial
- 2:020$319 3:353$786 - - 142:671$232 - 174:620$579
e Agrícola S/C e Agrícola S/C
8. Banco Commercial 8. Banco Commercial
30:504$002 - 151:434$292 - - 237:740$926 - 210:753$738
e Agrícola N/C e Agrícola N/C
9. Diversas contas 5:520$142 - 4:872$234 - 9. Diversas contas 4:141$07 6$500 3:978$043 8$400
10. Fundo de reserva - 147$627 - 542$710 10. Fundo de reserva - - - -
11. Comissão da 11. Comissão da diretoria 1:360$856 6:000$000
- 92$513 - 340$098
diretoria 12. Juros
27$456 - 358$538 -
12. Juros para para o seguinte semestre
- - - -
o seguinte semestre 13. Lucros e perdas - 20:935$547 - 20:117$745
13. Lucros e perdas - 8:989$303 - 11:559$597 14. Caixa 16:022$748 - 13:929$959 -
14. Caixa 185:047$311 - 73:573$967 - Sommas 1.033:377$555 1.033:377$555 1.059:764$848 1.059:764$848
Sommas 846:291$836 846:291$836 1.043:211$978 1.043:211$978
Fontes: RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de setembro de 1861.
Fontes: RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de setembro de 1860.

474 475
anexo 6: Modernidade, ordem e civilização:
Balanços do Banco Comercial e Agrícola – Campos (31/7/1861) a companhia Estrada de Ferro D. Pedro II
no contexto da direção Saquarema
CAIXA DE CAMPOS
CONTAS 1º semestre 2º semestre Magno Fonseca Borges
ativo passivo ativo passivo Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro Marinho.
1. Capital - 600:000$000 - 600:000$000
2. Letras descontadas 588:257$021 - 816:903$574 -
3. Letras caucionadas - - - -
4. Letras
- - - -
por dinheiro a prêmio
5. Contas correntes - 649:367$681 - 746:470$464
6. Banco Commercial
250:010$000 - 250:010$000 - introdução
e Agrícola
7. Banco Commercial Este artigo tem como objetivo voltar o olhar para a Companhia Estrada
79:730$855 - 98:820$497 -
e Agrícola S/C
de Ferro D. Pedro II (CEFDPII) em seu maior desafio, o de ultrapassar a
8. Banco Commercial
330:104$565 - 136:381$040 - imponente Serra do Mar e levar os trilhos da Corte ao Vale do Rio Paraíba
e Agrícola N/C
9. Diversas contas 4:429$093 - 4:041$273 - do Sul no apogeu da cultura cafeeira (1850-1865). Através do prisma da
10. Fundo de reserva 542$710 - 996$723 Segunda Escravidão, abordaremos o tema, para que assim possamos com-
11. Comissão da diretoria - - - - preender como esta Instituição articulou Ciência e Poder no contexto da
12. Juros
- - - - hegemonia saquarema. Entender como se deu o processo de constituição
para o seguinte semestre
da CEFDPII e ação de seus dirigentes; na construção de um caminho que
13. Lucros e perdas - 27:370$320 - 39$187$350
buscava promover a economia cafeicultora e, ao mesmo tempo, legitimar e
14. Caixa 24:749$177 80:782$667
interiorizar o conjunto de valores e as regras do Estado imperial brasileiro
Sommas 1.277:280$911 1.277:280$911 1.386:939$051 1.386:939$051
e que tinha na escravidão a solda que organizava a coerência entre moder-
Fontes: RELATORIO apresentado a Assemblea Geral dos Accionistas em 30 de setembro de 1861. nidade, ordem e civilização. É importante ressaltar que este capítulo é fruto
de pesquisas1 ainda em andamento e que possui várias frentes. Por isso, seu

1 (1) O presente capítulo congrega alguns primeiros resultados de pesquisas em fase de desenvolvi-
mento. Na Coordenação de História da Ciência do Museu de Astronomia e Ciências Afins (CHC/
MAST/MCTI) a pesquisa “A expansão para dentro: a Companhia Estrada de Ferro Dom Pedro II e as
associações técnico-científicas no Brasil oitocentista”. No Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-Unirio) a pesquisa “Companhia
Estrada de Ferro D. Pedro II: Segunda Escravidão, ciência e poder no desafio da Serra do Mar
- 1850/1865”. Na Coordenação de Pesquisa da Universidade Severino Sombra (USS), o projeto
de pesquisa intitulado “Vassouras e o projeto que não foi: urbanização, Segunda Escravidão e a
Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II no desafio da Serra do Mar - 1850/1865.” (2) Os autores
agradecem a Ricardo Salles, a Rafael Marquese a Mariana Muaze, a Adriana Maia e a Laura Roberta
pelas leituras, discussões e sugestões a diferentes versões deste texto; (3) Os autores agradecem ao
CNPq, a Capes e a Faperj que em diferentes momentos apoiaram as pesquisas.

476 477
objetivo maior é levantar reflexões e questionamentos, sendo expostas aqui Neste quadro, o ferro e o vapor ocuparam parte significativa dos
as primeiras ponderações deste processo.2 empenhos em pesquisas e inventos. Entre estes, o transporte sobre trilhos,
desempenhou papel especial. Sua adoção estimulou uma cadeia complexa
ferrovias e modernidade: de investimentos científicos, políticos, econômicos e sociais, que envolvia,
reflexões e construções historiográficas entre tantos outros elementos, os cálculos físicos e matemáticos de resis-
tências de materiais; os estudos topográficos; o desenvolvimento de sistema
Em meio àquilo que aos olhos de Eric Hobsbawm foi percebido como as
contábil; os debates e produções de leis, decretos e normatizações; a cap-
Eras das Revoluções3 e do Capital,4 se desenvolveu e consolidou a moderni-
tação de recursos financeiros.7 Quase de forma simultânea, foram implan-
dade. Impulsionada por modificações culturais que passavam pela ordem
tadas na Europa e América as malhas ferroviárias a integrar as zonas de
das transformações científico-tecnológicas em suas relações com o mercado
produção aos portos e daí ao mercado atlântico e além. As estradas de ferro
mundial, alteraram-se regimes de governo, doutrinas econômicas e rela-
contribuíram ao desenvolvimento da modernidade mundial, garantindo
ções de trabalho. A reformulação do mercado de commodities e a expansão
coerência ao desenvolvimento de um capitalismo em que mundos extre-
do consumo de produtos industriais também esteve no bojo destas trans-
mos mantinham íntima conexão e desenvolviam-se mutuamente.
formações. Foi neste instante que se colocou a derrocada do Antigo Regime
Em comum, Brasil, Cuba e Estados Unidos, cada qual a seu modo,
– e com ele a destruição do escravismo colonial – e deu-se o processo de
experimentaram o processo de formação de novas áreas de produção de
formação dos Estados Nacionais na América.5 Este processo carregava con-
commodities, organizadas a partir da mão de obra escrava, da alta especia-
sigo a certeza na ciência como força social e política de transformações e
lização da produção e de sistemas de integração entre as zonas de produção
rupturas. Segundo Hobsbawm, “com tal confiança nos métodos da ciência,
e as praças comerciais onde se centravam os portos. Assim, desenvolveu-
não é de se surpreender que os homens instruídos da segunda metade do
se a produção de algodão nos Estados Unidos, principalmente no vale do
século XIX estivessem tão impressionados com suas conquistas”. Concluía
Mississipi, e a produção açucareira no ocidente da ilha de Cuba.8 No Brasil,
que “de fato [esses homens], às vezes chegavam a pensar que estas conquis-
a experiência se deu em uma área também nova à produção em larga escala.
tas não eram apenas impressionantes, mas também finais”.6
2 Para tal, contamos com um interessante arsenal de fontes de composição variada que estão sendo
trabalhadas. Integram o corpus documental de nossa pesquisa: 20 relatórios apresentados pela dire- 7 Adriana Maia Lavinas, ainda que de forma rápida, realizou interessantes observações, informando
toria da Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II a seus associados; vasto conjunto de periódicos que a partir do “contexto da economia mundo, para além das unidades fabris, o mercado mundial
publicados na província do Rio de Janeiro – entre eles: O Jornal do Commercio, O Correio Mercantil, capitalista do século XIX conformava e era conformado também pela oferta de produtos primários”,
e Instructivo, e Político Universal, A Semana Ilustrada, A Atualidade, A Marmota na Corte; o con- onde as ferrovias desempenharam papel importante. Segundo suas verificações, os administradores
junto de leis e decretos que tratam das ferrovias do Brasil Imperial; Anais do Senado, das Câmaras destas ferrovias “desenvolveram medidas como o custo por tonelada – milha, para tipos indivi-
Geral do Império e da província do Rio de Janeiro e também do Conselho de Estado; conjunto de duais de mercadorias e para cada segmento geográfico de operações”, e “usaram uma nova medida,
correspondências oficiais e atas da Câmara de Vereadores de Vassouras e Piraí; um conjunto de chamada quociente operacional, que media a proporção entre despesas e receitas, usando-as para
inventários, livros notariais e processos criminais. duplo controle operacional”. Ainda, segundo Maia Lavinas, alguns destes conhecimentos podem
ter impactado a administração das fazendas do Vale do Paraíba, a partir também de um controle
3 cf. HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções (1789-1848). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
contábil sobre o complexo produtivo. LAVINAS, A. T. D. C. M. A importância da contabilidade
4 cf. Idem. A era do capital (1848-1875). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. gerencial na gestão e tomada de decisão nas micro e pequenas empresas : um estudo no município
5 cf. BLACKBURN, Robin. A queda do escravismo colonial, 1776-1848. Rio de Janeiro: Record, 2002. cf. de Vassouras, RJ. 2012. Monografia (Bacharel em Administração) – Curso de Administração de
TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, Empresas, Universidade Severino Sombra, Vassouras, 2012; cf. EL-KAREH, Almir Chaiban. Filha
2011. cf. MARQUESE, R. B.; PARRON, Tâmis. Revolta escrava e política da escravidão: Brasil e Cuba, branca de mãe preta: a Companhia da Estrada de Ferro D. Pedro II, 1855-1865. Petrópolis: Vozes,
1791-1825. Revista de Indias, Madrid: CSIC, v. 71, n. 251, 2011. Disponível em: <http://revistadeindias. 1982. p. 14-15.
revistas.csic.es/index.php/revistadeindias/issue/view/90/showToc>. cf. SALLES, R. O Império do 8 cf. MARQUESE, R. B. Revisitando casas-grandes e senzalas: a arquitetura das plantations escravistas
Brasil no contexto do século XIX: escravidão nacional, classe senhorial e intelectuais na formação americanas no século XIX. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 14, n. 1, jan.-jun. 2006. Disponível
do Estado. Almanack, Guarulhos, v. 1, n. 4, p. 5-45, nov. 2012. Disponível em: <http://www.alma- em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0101-47142006000100002&script=sci_arttext>; cf.
nack.unifesp.br/index.php/almanack/article/view/840>. MARQUESE, R. B. O Vale do Paraíba cafeeiro e o regime visual da Segunda Escravidão: o caso da
6 cf. HOBSBAWM, op. cit., p. 24. fazenda Resgate. Anais do Museu Paulista, v. 18, n. 1, jan.-jun. 2010.

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Era o Vale do Rio Paraíba do Sul, que recebeu incremento à formação de É necessário avaliar de forma mais profunda por que o processo bra-
grandes fazendas especializadas na cultura cafeeira.9 sileiro se deu em momento tão posterior a estas outras regiões, afinal, a
A efetiva implantação dos caminhos de ferro – com seus respectivos e primeira ferrovia brasileira, de reduzida extensão, somente teria sido levada
necessários investimentos em capitais e debates políticos – se deu rapida- a cabo em 1854, como resultado das iniciativas de Irineu Evangelista de
mente no continente americano. Duas das três maiores potências escravis- Souza, que por conta deste feito, recebeu o título de barão de Mauá.
tas de então, já na década de 1830, efetivaram a criação de suas primeiras Para o caso brasileiro, a proposta de construir uma estrada de ferro
ferrovias. Eram elas Estados Unidos e Cuba. ligando a Corte às províncias de São Paulo e Minas Gerais foi processo
Os Estados Unidos tiveram as primeiras estradas de ferro do continente longo, moroso e marcado por uma série de tensões que envolviam desde
americano. Em 1830, já contava com empresas para a construção de loco- as avultadas somas dos capitais necessários, passando pelas questões das
motivas.10 Nesta experiência de transformação dos meios de transporte, foi viabilidades técnico-científicas. Deve-se, ainda, compor este quadro o dese-
seguido por Cuba, que em 1832 já iniciava a construção de uma ferrovia que quilíbrio das contas do Império e sua situação política. Ainda assim, o tema
deveria ligar Havana a Guines. O intento foi concretizado em 1837, quando também foi posto no horizonte das propostas estratégicas dos dirigentes
se inaugurava a primeira estrada de ferro cubana. Isso se deu onze anos da nação. Em 1835, Antonio Paulino Limpo de Abreu, ministro da Justiça e
antes da Espanha, de quem era colônia, ter a primeira ferrovia.11 Daí por interino do Ministério do Império e o então regente, Diogo Antonio Feijó,
diante, as ferrovias nestas duas regiões, assim como na Inglaterra, na França, assinaram decreto que “concedia a uma ou mais Companhias, que fizerem
na Alemanha e em outras regiões da Europa, só fizeram crescer. De certo uma estrada de ferro da Capital do Império para as de Minas Gerais, Rio
modo, o mesmo aconteceu no continente americano. No conjunto destas Grande do Sul, e Bahia, o privilégio exclusivo por espaço de 40 anos para
transformações dos meios de transporte, também se conformaram mudan- o uso de carros para transporte de gêneros e passageiros”.13 Com estas con-
ças no processo produtivo com a adesão às alterações propiciadas pelo ferro dições, não se apresentaram interessados. Contudo, em junho de 1838, o
e pelo vapor, em substituição à madeira e à água, nas regiões de plantation.12 dr. Tomás Cochrane realizou requerimento para “um privilégio por oitenta
anos para construir uma estrada de ferro que partindo da Pavuna, no Rio,
9 A formação da plantation cafeeira no Vale do Paraíba, a partir de uma íntima relação com o mer- fosse até Resende, às margens do Paraíba”.14 Apesar de destoar da legislação
cado externo, foi tratado em várias obras. Entre outras ver: DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história
e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Em especial o pertinente, o requerimento foi aceito em novembro de 1840.15 Para estu-
capítulo 8.; MARQUESE, R. B. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle diosos do tema ferroviário, a iniciativa “permaneceu letra morta da lei”.16
dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Em especial o capí-
tulo 6.; Sobre a construção social do Vale do Paraíba como locus de referência da produção cafeeira
Dez anos depois, o mesmo Cochrane, mesmo sem ter conseguido amea-
para o mercado externo e esteio da economia e cultura Imperial, aos agentes coevos, Taunay afirma lhar os capitais necessários ao início da obra, sem ter fincado um único
que ao se dizer “‘o Vale’, todo o país sabia tratar-se do Vale-paraibano, ou do Vale do Paraíba ou, metro de trilhos paralelos, apresentou, à Assembleia Geral e à Assembleia
ainda, do Vale do rio Paraíba do Sul”. Cf. TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Pequena história do café no
Brasil: 1727-1937. Rio de Janeiro: Ed. do Departamento Nacional do Café, 1945. p. 233-234; Ver tam-
bém: cf. SALLES, R. E o Vale era o escravo: Vassouras, século XIX – senhores e escravos no coração 13 COLEÇÃO de leis e decisões do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1827-1889.
do Império. 1. ed. Rio de Janeiro: Civlização Brasileira, 2008; MUAZE, M. A. F. O Vale do Paraíba e a Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/publicacoes/doimpe-
dinâmica Imperial. In: LERNER, Dina; MISZPUTEN, Francis (Org.). Inventário das fazendas do Vale rio>. Acesso em: 14 abr. 2014.
do Paraíba fluminense: fase III. 1. ed. Rio de Janeiro: Inepac: ICCV, 2011. v. 3, p. 293-340. 14 EL-KAREH, 1982, p. 12.
10 FOGEL, Robert William. Railroads and American Economic Growth: essays in econometric history. 15 Ibid.
Baltimore: Johns Hopkins Press, 1964.
16 cf. CUNHA, A. S. Políticas ferroviárias no Império: o Brasil e a Bahia. Anpuh. São Paulo. Disponível em:
11 RODRIGUEZ, H. S. A formação das estradas de ferro no Rio de Janeiro: o resgate da sua memória – <http://anpuhba.org/wp-content/uploads/2012/12/Aloisio_Santos_da_cunha.pdf>; cf. MARINHO,
memória do trem. S.l.: s.n.]: 2004; BAZZANI, Eduardo L. Moyano. La nueva frontera del azúcar: el P. E. M. M. Engenharia e política: os engenheiros entre a sociedade civil e a sociedade política. Anpuh,
ferrocarril y la economía cubana del siglo XX. Madrid: CSIC, 1991. 2007. Disponível em: <http://anpuh.org/anais/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S24.0465.
12 RIBEIRO, L. C. M. A invenção como ofício: as máquinas de preparo e benefício do café no século pdf>. SILVA, Ercília de Fátima Pegorari. Ferrovias: : da produção de riquezas ao apoio logístico no
XIX. Anais do Museu Paulista, v. 14, n. 1, jan.-jun. 2006; MARQUESE, 2010. Disponível em: <http:// triângulo mineiro. 2008. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em
www.scielo.br/pdf/anaismp/v18n1/v18n1a04.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2014. Geografia, Instituto de Geografia, Universidade Federal de Uberlândia,, Uberlândia, 2008.

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da Província do Rio de Janeiro, novo pedido de privilégio e outras regalias principais porta-vozes políticos que incorporavam e eram incorporados à
que considerava necessárias ao intento. Após intensos debates em ambas as direção hegemônica do Império.19
casas, foi concedido novo privilégio e ainda a garantia de juros sobre o capi- As grandes unidades de produção buscavam formar suas próprias
tal investido até que a companhia pudesse ofertar lucro aos investidores.17 tropas, provendo a produção de um conjunto de saberes neste ramo. Luiz
Novamente, o intento de Cochrane não logrou êxito. Gomes Ribeiro, importante proprietário de terras e escravos no Vale do
A formação das unidades produtoras de café no Vale do Paraíba esteve Paraíba, faleceu em 1839. Em seu inventário, aberto no ano de 1841, entre
relacionada, entre outros fatores, à existência de uma série de estradas e o conjunto de bens listados pelos avaliadores, a fazenda do Guaribu, con-
trilhas, variantes do Caminho Novo. Caminhos abertos entre fins do século tava com muares, escravos tropeiros e toda a tralha necessária para equi-
XVII e XVIII foram transitados por tropeiros que garantiam o abastecimento par as tropas de muares. Entre os filhos deste proprietário, Claudio Gomes
das regiões mineiras e, posteriormente, o fluxo de alimentos para o Rio de Ribeiro de Avellar, o barão de Guaribu, foi um dos mais destacados. Com
Janeiro e para a Corte, instalada, em 1808, nesta cidade. Boa parte dos bens sua morte, em 1863, foi lido seu testamento. Nele, o barão de Guaribu decla-
e alimentos envolvidos neste comércio era produzida no Vale do Paraíba.18 rou que entre os bens que possuía estavam “as Fazendas de Guaribu, Antas,
Foi neste instante que o tropeirismo encontrou sua fase de maior expansão Boa União, Encantos e Guaribu Velho, com todas as terras e benfeitorias
e complexidade. A partir de uma grande rede comercial, eram integrados ao nelas existentes, escravatura, tropa, gado, diversos trastes e obras de prata”.20
Vale, os muares criados em escala comercial no sul do Brasil. As tropas de Para o mesmo ano de 1863, Mariana Muaze mostra que, entre os bens
muares – capazes de percorrer a topografia montanhosa que se interpunha que compunham o espólio do barão de Capivary, além dos 709 escravos,
entre o Vale do Paraíba e os portos litorâneos – formaram um sistema de dentre os quais vários tropeiros, estavam as fazendas Cachoeira, Posse, São
transporte que atendia as demandas do período de introdução e expansão Joaquim, Gloria, Papagaio e Pau Grande. Entre louças, pratarias e animais
da cultura cafeeira. As novas configurações do mercado mundial jogaram de criação, constavam também 80 bestas e 100 bois de carga.21 A elevação da
forte peso aos sistemas de transporte. Numa conjuntura em que o princi-
19 cf. RIBAS, Rogério de Oliveira. Tropeirismo e escravidão: um estudo das tropas de café das lavouras de
pal item de exportação da nação era transportado por milhares de mua-
Vassouras, 1840-1888. 1989. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Paraná,
res, conduzidos por centenas de escravos e homens livres, desenvolveu-se Curitiba, 1989; cf. LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação
um intricado mercado que, por um lado, promoveu a riqueza e poder dos política do Brasil, 1808-1842. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Trabalho e Emprego – Prefeitura
do Rio de Janeiro, 1992; ESCOSTEGUY FILHO, João Carlos. Tráfico de escravos e direção Saquarema no
grandes senhores de escravos do Vale, e também permitiu a alguns destes Senado do Império do Brasil. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense,
tropeiros a acumulação de capitais. Por outro lado, o adensamento deste Niterói, 2010. Sobre o adensamento do mercado na região do Rio de Janeiro e a conformação de inte-
resses próprios e de sua expressão no plano político, cf. OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. Tramas
mercado e da formação social ao seu redor permitiram, de algum modo, políticas, redes de negócios. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São
que, dos extratos mais altos deste corpo social, emergissem alguns dos Paulo: Hucitec: Edusp. Também da mesma autora e na mesma direção, cf. OLIVEIRA, Cecília Helena
de Salles. Sociedade e projetos políticos na província do Rio de Janeiro (1820-1824). In: JANCSÓ, István
(Org.). Independência: História e historiografia, São Paulo: Hucitec, 2005.
20 cf. SALLES, R.; BORGES, Magno Fonseca A morte do barão de Guaribu. Ou o fio da meada. Heera,
Juiz de Fora: Ed. UFJF, v. 7, n. 13, p. 69-86, jul.-dez. 2012.
17 LIMA, Célio. C. de A. Onde há fumaça há fogo: a influência da economia cafeeira na construção 21 Ainda tratando da questão das atividades do transporte feito em lombos de mula, Mariana Muaze
da estrada de ferro Pedro II: 1855-1889. 2007. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade descreveu que “depois que o café era descascado, separado e ensacado, um grande número de
Severino Sombra, Vassouras, 2007. escravos conduzia-o, em tropas, no lombo de burros, sob o comando de um arrieiro, até uma casa
18 cf. BORGES, Magno Fonseca. Protagonismo e sociabilidade escrava na implantação e ampliação da comissionaria no Rio de Janeiro”. Mariana Constatou que “somente os fazendeiros mais ricos do
cultura cafeeira: Vassouras – 1821-1850. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade vale possuíam tropas”. Isto se dava, porque o contingente de escravos e animais destinados ao trans-
Severino Sombra, Vassouras, 2005; cf. ALMEIDA, Ana Maria Leal de. Da casa e da roça: a mulher porte era muito grande. Um senhor de escravos que possuísse tropas, deveria ter ainda, escravos
escrava em Vassouras no século XIX. Vassouras: [s.n.], 2005; cf. STEIN, Stanley. Vassouras: um em número suficiente para tocar as atividades rotineiras e cotidianas da propriedade, enquanto os
município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990; cf. LAMEGO, Alberto. tropeiros estivessem em viagem. Soma-se a isso, o elevado custo com a aquisição e alimentação
O homem e a serra. 2. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 1963; RAPOSO, Inácio. História de Vassouras. Niterói: dos animais. A partir de suas pesquisas, Muaze revela que na década de 1860, o barão de Capivary
Seec, 1978. teve que recorrer ao aluguel de pasto e compra de milho para a manutenção da tropa. Além da

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produção cafeeira e a necessidade de avanço espacial da fronteira da mer- pequenas roças.26 Contudo, Stein indicava que “o fazendeiro se rendia ao
cadoria foram uma constante e provocaram grande tensão sobre aquele sis- inevitável”, pois, segundo o próprio barão de Paty do Alferes – que em 1855
tema de transporte. Até a década de 1860, mal ou bem, o sistema de trans- era possuidor de 105 bestas que, em 4 dias, percorreram a Serra do Mar
porte por tropas ainda satisfazia às necessidades da cafeicultura escravista, com destino a Corte, para levar o montante de 30 mil arrobas de café para a
mantendo a paisagem do Vale basicamente inalterada. praça de negócios do Rio de Janeiro27 – concluiu, “sem o trem de carga você
Mas a configuração desta paisagem começou a ser impactada já no não pode ser um fazendeiro da Serra Acima”.28 Eduardo Silva destacou que
começo da década de 1850, momento de apogeu da cultura cafeeira, por um “o alto custo de manutenção das tropas e a má conservação das estradas
lado, e de inflexão na história do país, por outro. Esse impacto deveu-se, basi- eram as principais queixas dos ‘Barões do café’ que assim, justificavam seus
camente, à proibição do tráfico internacional de escravos. Neste momento, o pedidos de que a estrada de ferro chegasse até Vassouras”.29
avanço da cultura cafeeira sobre as antigas zonas de produção de alimentos Se, até meados dos anos de 1850, os altos custos envolvidos com as
mostrava seu revés, gerando forte pressão inflacionária sobre os mantimen- tropas eram compensados com a expansão das plantações e da produção,
tos, dentre os quais assomava o milho, que constituía o combustível das tro- bem como pela abundância da mão de obra escrava proveniente do tráfico
pas de mulas.22 A partir de suas investigações, Muaze verificou que, em 1855, africano, a partir desse momento essas condições começaram a mudar. As
o barão de Paty do Alferes reclamava que “haveria de comprar 25 animais, grandes propriedades cafeeiras já estavam estabelecidas e colhiam os fru-
de um pequeno lavrador, a 110 mil reis cada, para repor sua tropa. [...] Tal tos dos pés de café plantados nas décadas anteriores, diminuíam as áreas
aquisição implicaria ainda mais investimentos na compra de milho”.23 de terras virgens que poderiam manter e expandir o ritmo da produção e,
Stein, ao tratar o tema, narrava os elevados riscos da viagem – em parte principalmente, escasseava a mão de obra escrava. É nesse momento que a
proveniente do péssimo estado das estradas. A logística de transporte por questão da ferrovia, assim como a questão da introdução de novas tecno-
muares “exigia uma despesa fixa e frequentemente envolvia perdas com logias nas fazendas de café, volta a se colocar na ordem do dia. Para Rafael
mulas aleijadas ou afogadas e café encharcado ou sujo de lama”.24 Sobre Marquese, a este quadro deve-se somar que, na década de 1850, “consolidou-
este ponto, Muaze concordou com as verificações de Stein, que também se o know-how necessário para a construção de linhas ferroviárias capazes
destacou o elevado custo com manutenção da tropa, principalmente com de atravessar grandes obstáculos topográficos como serras e cordilheiras”.30
a contratação de arrieiros, com alimentação e com o volume de escravos Engenheiros ingleses e americanos passaram a ser requisitados por conta
destinados à atividade do transporte, que deixavam de compor a força dos do domínio tecnológico. Foram responsáveis por estudos e direção de obras
trabalhos da fazenda.25 Como salientou Muaze, as tropas teriam peso nas da Estrada de Ferro D. Pedro II entre as décadas de 1850 e 1860.31
relações de negócio e de poder entre grandes senhores e aqueles homens A construção historiográfica brasileira sobre as ferrovias, em sua maio-
pobres e livres, pequenos lavradores, ou ainda escravos, no cultivo de suas ria, repousa na noção de que modernidade e escravidão não faziam parte
do mesmo processo histórico, ou, dito de outro modo, que existia uma
contradição entre desenvolvimento capitalista e escravidão. Ao apresentar
manutenção de escravos tropeiros, que deixariam as atividades da produção para dedicar-se ao
transporte, ainda havia a necessidade de contratarem-se os arrieiros, que tinham a função de con- 26 cf. MUAZE, op. cit., p. 90.
duzir o deslocamento, liderar e vigiar os escravos e zelar pela carga bem como pela vida e saúde dos 27 cf. SILVA, Eduardo. Barões e escravidão: três gerações de fazendeiros e a crise da estrutura escravista.
muares. Este arrieiro ainda devia organizar o percurso de volta à fazenda, aproveitando a tropa para Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 161.
fazer afluir ao Vale gêneros adquiridos na Corte ou no mercado externo. cf. MUAZE, Mariana. As 28 WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda – barão de Paty do Alferes apud. STEIN, Stanley. 1990, p. 121.
memórias da viscondessa: família e poder no Brasil Império. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. p. 87-90.
29 cf. SILVA, op. cit. p. 164-165.
22 cf. RIBAS, 1989.
30 MARQUESE, R. B. Capitalismo, escravidão e a economia cafeeira do Brasil no longo século XIX. São
23 cf. MUAZE, 2008, p. 87-90. Paulo: USP, 2012. p. 19. Disponível em: <http://people.ufpr.br/~lgeraldo/textomarquese.pdf>. Acesso
24 cf. STEIN, 1990, p. 121. em: 14 abr. 2014.
25 cf. Ibid., p. 121-133. 31 EL-KAREH, 1982.

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a abolição como a consequência de um processo de longa duração que periódicos de época, foram apresentadas. Entre elas, a proposta resultante
envolveu mudanças estruturais, situações conjunturais e uma sucessão de dos estudos custeados pelos Teixeira Leite, com apoio dos Werneck e dos
episódios que culminaram na Lei Áurea, Emília Viotti da Costa32 colocou Correa e Castro, ainda pelos idos de 1852.36
em lados opostos os senhores escravistas do Vale fluminense e do oeste Em meio ao apogeu da cultura cafeeira no Vale, para cumprir o papel
paulista, onde os primeiros, mais que os segundos, eram comprometidos de levar os trilhos até as margens do Rio Paraíba do Sul e de lá desdobrar-
com a escravidão. Assim, entre outros elementos apresentados pela emi- se em direções opostas, com vistas a alcançar as províncias de São Paulo e
nente historiadora, as estradas de ferro fariam parte do processo do desen- Minas, nasceu, não sem conflitos, a CEFDPII. Em nossa análise, entendemos
volvimento capitalista do Brasil e estariam em contradição com a escravi- que, embora a Estrada de Ferro D. Pedro II (EFDPII), construída e adminis-
dão. Neste processo, as ferrovias propiciaram a racionalização dos meios de trada pela Companhia de mesmo nome, não tenha sido a primeira ferrovia
transporte, o estímulo às novas atividades econômicas e à urbanização, e do Brasil, foi o resultado possível do processo de embates entre a sociedade
tudo isso teria garantido a possibilidade para o emprego do trabalho livre. e o governo, iniciado em 1835. Foi das tensões em torno do caminho de ferro
O resultado inevitável desta equação de longo tempo teria sido o que iria transpor a Serra do Mar que se formaram as bases para a implantação
seguinte: senhores do oeste paulista, mais afeitos à modernidade e menos de ferrovias no Brasil. As ferrovias compunham parte da agenda das políticas
apegados à escravidão, prosperaram. No revés desta moeda, os senhores públicas que envolvia as obras de infraestrutura, ou, como no linguajar de
escravistas fluminenses, por seu comprometimento com a escravidão, por época, as melhorias materiais. Ferrovias e outros melhoramentos de infraes-
sua não adesão aos novos tempos, fracassaram. Teriam deixado como trutura que já vinham sendo pensados antes começavam a sair do papel, ou
legado, assim como constatou Raimundo Faoro33 e antes dele Monteiro melhor, foram retomadas a partir de 1848, em grande medida a partir de uma
Lobato,34 ainda no início do século XX, as “cidades mortas”. Nesta oposi- linha política conservadora e modernizante, impressa pela trindade saquare-
ção, as ferrovias fluminenses, e em particular a Pedro II, não se destaca- ma,37 a exemplo do Decreto nº 641, de 26 de julho de 1852, que reorganizou a
ram como objeto de pesquisas, frente ao caminho da modernidade trilhado concessão de linhas férreas para integrar a Corte, a região do Vale do Paraíba
pelas estradas paulistas e mesmo de outras províncias, que atraíram a grande e as províncias de São Paulo e Minas Gerais através da Serra do Mar.38
maioria dos estudos contemporâneos – com a exceção da obra clássica de Nossa análise tem como seu objeto principal os interesses materiais e
Almir Chaiban El-Kareh, com quem dialogaremos com maior devagar. morais que foram levados em conta na delimitação do traçado da segunda
Concordamos com as conclusões de Rafael Marquese, ao entender que seção da EFDPII. Replica-se constantemente na historiografia que este tra-
as estradas de ferro do Brasil imperial, ao contrário de acelerar o processo çado colocou em lados opostos as famílias Darrigue Faro e Teixeira Leite.39
abolicionista, fizeram o inverso: irrigaram a escravidão, ou, como em 1883 Esses conflitos, travados em torno de questões técnicas e científicas, opondo
Joaquim Nabuco afirmava, a escravidão havia sido “vivificada e alentada os engenheiros Lane e Garnett, evidenciaram fraturas entre duas importan-
pelo vapor e pela locomotiva”.35 tes famílias da classe senhorial da região de Vassouras e Piraí/Valença. A
Como verificamos acima, as iniciativas de Cochrane não foram adiante, reflexão acerca desse conflito pode evidenciar até que ponto certo discurso
em muito por conta da dificuldade de conseguir os capitais necessários. nacional poderia confrontar-se com interesses locais. Como os estudos
Outras propostas para construção de uma ferrovia que ultrapassasse a Serra
do Mar, pouco ou nada estudadas pela historiografia, mas encontradas nos
36 RAPOSO, 1978, p. 129.
32 COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: Ed. Unesp, 1998. p. 20-30. 37 MARINHO, P. E. M. M. Engenharia imperial: o Instituto Politécnico Brasileiro (1862-1880). 2002.
33 FAORO, Raymundo. A questão nacional: a modernização. Estudos Avançados, São Paulo: Edusp, v. 6, Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2002.
n. 1, p. 7-22, 1992. 38 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo:
34 LOBATO, José Bento Monteiro. Cidades mortas. São Paulo: Globo Livros, 2007. Hucitec, 2004. p. 182-189.
35 NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Petrópolis: Vozes, 1988. p. 122. 39 LAMEGO, Alberto. 1963, p. 352; RAPOSO, op. cit., p. 129; MATTOS, op. cit., p. 75-76.

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técnico-científicos, empreendidos à época, foram utilizados para tomada de pela História da ciência e da História de escravidão no Brasil oitocentista,
decisão? E por fim, de que forma se articulam Instituição, Ciência e Poder? optamos pela noção de Segunda Escravidão, formulada por Dale Tomich.42
Segundo esse ponto de vista, a Segunda Escravidão integrou-se no desen-
reflexões teóricas e metodológicas sobre a temática: volvimento do capitalismo industrial e do mercado mundial do século XIX.
a segunda escravidão como alternativa e abordagem E, por isso mesmo, se desenvolveu com ele, não a despeito dele. Este pro-
cesso promoveu alterações profundas no escravismo em escala mundial.
Entre as maiores dificuldades para empreender estudos sobre as questões
Essas mudanças levaram à crise e derrubada do Antigo Regime, que em
que envolvam ciência, técnica e tecnologia em sua relação com o Vale
certa medida sustentava e era sustentado pelo escravismo colonial. Mas,
do Rio Paraíba do Sul oitocentista, certamente encontra-se a necessidade
diferente do que se poderia supor, este novo momento não marcou deci-
de suplantar duas importantes vertentes historiográficas, quais sejam: (1)
sivamente a destruição do escravismo como força motora da economia e
aquela que apregoa a ideia de um modo de produção colonial, o que per-
interações entre sociedade e governo. Pelo contrário, segundo o historiador,
mitiu a formulação do conceito de escravismo colonial. A vertente já está
os princípios liberais e a Revolução Industrial se por um lado causaram, ou
superada; entretanto, não se pôs nada no lugar e, implicitamente, a escravi-
ao menos favoreceram, a implosão de diversos sistemas escravistas como
dão continua sendo vista como uma continuidade colonial nos tempos do
na Jamaica, no Haiti e na Martinica, por exemplo, em outras regiões, como
Império e (2) aquela que apresenta o arcaísmo como um projeto. Embora
no ocidente de Cuba, no sul dos Estados Unidos e no sudeste do Brasil, a
tais correntes sejam diametralmente opostas, em comum, ambas apresen-
escravidão foi reforçada e ampliada em novos moldes. Nessas regiões, a tec-
tam a noção de que a escravidão teria sido um obstáculo à modernidade do
nologia e a expansão do mercado mundial deram novo fôlego à escravidão
Brasil oitocentista.40 Tal visão entra em conflito com os estudos da história
segundo novas justificativas e novas formas de dominação e reprodução do
da ciência, da técnica e da tecnologia no Brasil oitocentista, que têm apre-
sistema. “Essa ‘segunda escravidão’ se desenvolveu não como uma premissa
sentado novos e importantes resultados, contribuindo para alterar percep-
histórica do capital produtivo, mas pressupondo sua existência como con-
ções anteriores de um Império que, quando muito, seria mero consumidor
dição para sua reprodução”.43
e reprodutor de ciência produzida alhures.41
O conceito de Segunda Escravidão, formulado por Dale Tomich, tem
Para o desafio de melhor estudar a relação entre escravidão, moderni-
encontrado ressonância na produção historiográfica brasileira. Em trabalho
dade e formação/consolidação dos estados nacionais no continente ameri-
recente, Sidney Chalhoub menciona o conceito, ainda que sem aprofundá-lo
cano, e de forma mais particularizada, a relação entre os avanços propiciados
analiticamente.44 Para aprofundar suas reflexões sobre o tráfico de escravos
entre 1838 e 1850, João Escosteguy Filho45 também partiu deste conceito.
40 Sobre o escravismo colonial ver: GORENDER, J. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978;
GORENDER, J. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990; CARDOSO, C. F. S. O modo de pro- Partindo da formulação de uma “escravidão nacional que teria se fir-
dução escravista colonial na América. In: SANTIAGO, Théo (Org.). América colonial. Rio de Janeiro: mado em algumas regiões, como o Brasil e Sul dos Estados Unidos, depois
Palhas, 1975; CARDOSO, C. F. S. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979. Sobre
o arcaísmo ver: FRAGOSO, J. Os homens de grossa aventura: acumulação mercantil e hierarquia na da ‘destruição do escravismo colonial’ e como parte constitutiva de uma
praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992; FRAGOSO, ‘segunda escravidão’”, Ricardo Salles46 realizou um estudo para a região
J.; FLORENTINO, M. O arcaísmo como projeto. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993.
de Vassouras, tanto do ponto de vista econômico como político. Para este
41 Como bem pontuou Pedro Marinho, no século XIX “tomaram vulto discussões científicas e técni-
cas e estas chegavam ao Brasil ao mesmo tempo em que outras eram aqui formuladas com igual
intensidade” cf. MARINHO, 2002, p. 65. Ver também: DOMINGUES, H. M. B. O Homem, as Ciências 42 TOMICH, 2011.
Naturais e o Brasil no Século XIX. Revista Acervo, Rio de Janeiro, 22 nov. 2011. Disponível em: 43 Ibid., p. 87.
<http://revistaacervo.an.gov.br/seer/index.php/info/article/view/76/58>; DOMINGUES, H. M. B. Os
44 CHALHOUB, S. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo:
intelectuais e o poder na construção da memória nacional. Tempo brasileiro, Rio de Janeiro, v. 87,
Companhia das Letras, 2012.
1986. MARINHO, P. E. M. M. Ampliando o Estado imperial: os engenheiros e a organização da cul-
tura no Brasil oitocentista, 1874-1888. 2008. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal 45 ESCOSTEGUY FILHO, 2010.
Fluminense, Niterói, 2008. 46 SALLES, 2008, p. 28-34.

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estudo, o autor empreendeu a análise do que denominou por “relação significado do processo anterior a 1850, Stein e Marquese concordam com
demográfica de forças sociais” e construiu uma periodização para a cul- a ideia de que as transformações na paisagem e na estrutura da fazenda se
tura cafeeira em Vassouras. Os períodos são: “implantação, de 1821 a 1835; fizeram ao longo de duas gerações e tiveram maior avanço a partir de 1850.
expansão da produção de café e da plantation escravista, de 1836 a 1850; Salles caracterizou o instante de 1850 a 1865 como o apogeu da cultura
apogeu, de 1851 a 1865; e grandeza, de 1866 a 1880”. Sua análise revelou que a cafeeira em Vassouras.51 Para o autor, neste instante, o ritmo do plantio de
propriedade cativa já nasceu concentrada em Vassouras, pouco sendo alte- pés de café em novas áreas para produção diminuía “premido pelo fim do
rada ao longo do bloco histórico imperial brasileiro. Verificou que, embora afluxo de novos braços alimentado pelo tráfico internacional e, principal-
concentrada, a propriedade escrava se espraiava por quase toda a tessitura mente, pela escassez de terras virgens para alimentar a expansão experimen-
social de então. Fato que “permitiu a disseminação do ethos senhorial-es- tada no período anterior”. Salles destacou, contudo, que do ponto de vista
cravista, que atingiu mesmo os setores mais baixos da sociedade, muitos social este momento significou o “enquadramento das tensões sociais entre
dos quais libertos, que sempre podiam almejar a posse de poucos cativos e senhores e escravos, com certa estabilização das comunidades de senzala”
a proteção de um grande senhor”.47 que correspondeu à “consolidação e difusão do ethos senhorial-escravista”.
Em torno da percepção que “as modificações ocorridas com o advento Assim, as novas condições demográficas e sociais resultantes da extinção do
da economia-mundo industrial do século XIX impuseram aos senhores de tráfico internacional de cativos, moldaram uma “comunidade escrava mais
escravos americanos a necessidade do aumento constante da produtividade estável, centrada na crioulização dos plantéis, no maior equilíbrio em sua
de seus cativos” Rafael de Bivar Marquese verificou que, nesse movimento, composição sexual e etária, no aumento do número de famílias estáveis, na
os destinos do sul dos Estados Unidos, do ocidente de Cuba e do Vale do disseminação do cultivo de roças familiares”.52
Rio Paraíba do Sul no Brasil “entrelaçaram-se de modo estreito”. Segundo Apesar da abrangência dos estudos empreendidos por Marquese, sua
o autor, “em cada uma dessas novas fronteiras [...] surgiram unidades pro- análise se deu, em grande medida, pela ótica de uma paisagem que, a partir
dutivas escravistas com plantas inéditas, cujas combinações de terra, traba- de um jogo de relações e significações, foi produzida e produzia as hierar-
lho e capital romperam com os padrões anteriormente vigentes no mundo quizações sociais. Salles, em muito seguindo Ilmar Rohloff de Mattos, reali-
atlântico”. Isso lhe permitiu cunhar a noção de “regime visual da segunda zou uma análise organizada a partir dos laços entre governo e região53 para
escravidão”. Para Marquese, no caso brasileiro, isso pode ser observado a manutenção e expansão da ordem imperial. Contudo, os autores não con-
“pelas alterações que, no intervalo de duas gerações, modificaram por com- templaram com profundidade – até porque não eram os objetivos de suas
pleto a paisagem natural e cultural do médio Vale do Rio Paraíba do Sul”.48 obras – a questão dos transportes e o papel preponderante da moderniza-
Ao pensar o “intervalo de duas gerações”, Rafael Marquese concorda ção da economia e da sociedade que se erigiu a partir da cultura cafeeira no
com as constatações apresentadas logo nas primeiras linhas do capítulo quadrante das políticas públicas de infraestrutura. Não contrário às pers-
introdutório da obra de Stanley J. Stein49 que, abordando a arquitetura das pectivas destes autores, mas buscando adensá-las, o que propomos é avaliar
fazendas para explicar o porquê de sua baliza temporal inicial, argumen- o quanto e de que forma essa paisagem podia ser também a paisagem da
tava que “datando, via de regra de 1850, essas estruturas impressionantes e civilização e do progresso, com escravidão. Afinal, como nos advertiu Salles,
numerosas não foram às primeiras construções do local. Elas se desenvol- o Estado monárquico se construía como um projeto civilizatório que domi-
veram a partir de origem humilde, quando apenas um punhado de colonos nava e incorporava o meio e a natureza, simbolizando a identificação entre
habitava os morros cobertos por matas primitivas”.50 Embora divergindo no
47 Ibid., p. 31-32.
48 MARQUESE, 2010. 51 SALLES, 2008.
49 STEIN, 1990. 52 Ibid., p. 151.
50 Ibid., p. 27. 53 MATTOS, 2004.

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Estado-civilização e o espaço físico-natural.54 Marquese chegou a abordar montagem da plantation nestas regiões. Mas, nos dois primeiros casos, a
a questão da ferrovia em ensaio recente.55 Contudo, não se tratou de um implantação de ferrovias se deu em momento muito anterior ao brasileiro.
estudo que buscava esmiuçar as tensões entre os agentes coevos nos debates Para compreender este desenrolar histórico, acreditamos ser neces-
sobre o projeto de uma malha ferroviária ou, ainda, sobre o cotidiano da sário dialogar com o processo de complexificação da sociedade brasileira
construção de uma obra que exigiu tão elevado grau de complexidade. oitocentista, na formação de variadas modalidades de associações. Como
Assim, propomos incluir na análise desta paisagem o complexo apontou El-Kareh,57 a construção de instituições organizadas como socie-
cafeeiro de forma mais ampla, aderindo-lhe a questão dos caminhos, dos dades anônimas foi uma alternativa criada no bojo da modernidade para
meios de transporte, das controvérsias sociais, políticas e técnico-científicas captar os capitais necessários aos investimentos na criação de Companhias
em torno desta temática e, neste sentido, de forma mais particular, os deba- Ferroviárias. Esta nova modalidade de obras de infraestrutura requisitava
tes em torno do traçado da segunda seção da Estrada de Ferro D. Pedro grandes somas de capitais nem sempre disponíveis no setor público. Dito
II, que deveria integrar de forma ágil a Corte ao Vale, e dele irradiar ou de outro modo, as transformações técnico-científicas propiciadas pelo setor
expandir para dentro56 o Império na direção conservadora modernizante metal mecânico, que foram formatadas ao mesmo tempo em que formata-
da consolidação nacional. Este é o nosso objeto imediato. Em nosso estudo, ram a modernidade oitocentista, promoveram mudanças na formação de
portanto, buscaremos o papel da construção de uma ferrovia específica, a associações comerciais em escala mundial. Contudo, divergimos do peso
D. Pedro II, na manutenção e expansão do complexo cafeeiro escravista do dado pelo autor, ao entender que a CEFDPII – por constituir-se enquanto
Vale. Isso em um momento específico e sobre o qual não repousa a maioria sociedade anônima – deveria ser categorizada como uma empresa capita-
dos estudos sobre as ferrovias no Brasil, qual seja, aquele delimitado pelo lista de novo tipo, em contradição a uma nação que tinha seu modo de
apogeu da cultura cafeeira. produção organizado a partir do escravismo colonial.
Apesar da constante ampliação das pesquisas que buscam analisar o A criação das condições legais à formação desta modalidade de asso-
Brasil oitocentista sobre o prisma da Segunda Escravidão, a validade do ciação no Brasil se deu a partir do estabelecimento de regras para a incor-
conceito em sua aplicação ao contexto social brasileiro ainda carece de poração de quaisquer sociedades anônimas58 e a promulgação do Código
aprofundamento exatamente em um ponto que lhe é caro e basilar, qual Comercial do Império.59 Mas entendemos que a própria noção de moderni-
seja, o do desenvolvimento de um eficaz sistema de transporte e da moder- dade pode ser mais bem apreendida a partir também do movimento de for-
nização do complexo produtivo ampliado, tema pouco ou nada tocado pela mação de várias tipologias de associações. No caso daquela modalidade – a
historiografia da Segunda Escravidão produzida para o caso brasileiro. sociedade anônima, embora esta tenha se iniciado com vistas à formação
Sobre o conceito de Segunda Escravidão, repousa a ideia de que não das grandes obras de infraestrutura que passaram a compor parte impor-
havia incompatibilidade entre modernização tecnológica, expansão do tante da cadeia produtiva –, a ideia logo se espraiou para outras formas de
mercado capitalista e escravidão. Ao contrário! O recrudescimento da negócios e, entre elas, ganhou grande difusão nas instituições bancárias.
escravidão no sul dos Estados Unidos, em Cuba e no Brasil, no começo do Por este encaminhamento, direcionamos o nosso foco àquela que, embora
século XIX, demonstra bem isto. Inovações tecnológicas diretas, no pro- não tenha sido a única, foi a maior sociedade anônima do Brasil de então: a
cesso produtivo, ou indiretas, no processo de transporte, armazenamento, CEFDPII.60 Neste modelo institucional, a Companhia existiu por onze anos,
etc. estavam no bojo deste desenrolar histórico e, portanto, na raiz da 57 EL-KAREH, 1982.
58 BRASIL. Decreto nº 575, de 10 de Janeiro de 1849. Coleção de Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro,
1849. v. II.
54 SALLES, R. Nostalgia imperial: a formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. 59 BRASIL. Lei nº 556, de 25 de junho de 1850. Coleção de Leis do Império do Brasil, 1850. v. I.
Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 100.
60 GUIMARÃES, Carlos Gabriel. O império e o crédito hipotecário: o estudo de caso do Banco
55 MARQUESE, 2012. Commercial e Agrícola 1858-1861. In: SEMINÁRIO SEGUNDA ESCRAVIDÃO E O VALE DO PARAÍBA,
56 MATTOS, 2004; MARINHO, 2008. 3., [2012?], Vassouras. Anais... Vassouras: [s.n., 2012]. p. 15-16. Texto inédito.

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tendo sido encampada em 1865 pelo governo imperial. Sendo esta a baliza seja, instituições podem ser associativas, profissionais, de ensino etc., que
final de nossa delimitação temporal. formam e viabilizam uma rede de relações objetivas entre agencia e agen-
Uma das principais características da Segunda Escravidão, que teria se tes”.65 Estes agentes instrumentalizaram associações como instrumento para
firmado com a queda do escravismo colonial, foi sua influência mútua com ampliar fronteiras sociais e tencionar a direção política. Foram diversas as
a edificação de Estados nacionais e com a expansão do mercado internacio- modalidades e os padrões possíveis de associações. A formação do núcleo
nal capitalista. No Brasil, isto se deu em processo simultâneo ao da formação urbano de Vassouras, por exemplo, foi resultado da associação empreen-
da classe senhorial e do Estado imperial, sob a direção da facção fluminense dida por senhores locais, organizados a partir da edificação da Irmandade
do Partido Conservador, os saquaremas, e da Coroa enquanto “partido” de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras.66
desta classe.61 Este momento foi perpassado por um conjunto de tensões Ao optarmos por direcionar nossa pesquisa às atividades de uma deter-
antiescravistas, que passavam pelo interior do próprio Estado nacional minada instituição, a Sociedade Anônima CEFDPII, a entendemos não ape-
através de suas instituições e agentes, assim como através do espaço públi- nas como uma instituição econômica, mas também como instituição cientí-
co,62 envolvendo intelectuais, políticos, escritores, jornalistas, a imprensa, fica, onde a ação de seus dirigentes em suas interações com a sociedade e com
associações e demais instituições.63 Para o momento que propomos estudar, o governo se dava no complexo jogo entre a construção de teorias, as novas
estava consolidada a hegemonia do ponto de vista social e político da classe tecnologias e a sociedade. Ser moderno no Brasil oitocentista era “fomentar
senhorial. De certo modo, este quadro foi, ao mesmo tempo, resultado e uma ‘nova ordem’, cujos principais valores seriam ‘progresso’ e ‘civilização’”.
resultante do processo de complexificação da sociedade, o que significou a “A ideia de nação constituiu-se no instrumento por meio do qual a moderni-
construção e consolidação de um Estado ampliado.64 zação tomou forma e a sua construção passou a estar diretamente ligada ao
A trajetória histórica do Brasil imperial foi marcada pela criação de processo de introdução deste conceito na sociedade brasileira”.67
instituições que se disseminaram por amplos setores da sociedade e atra- Para estudar este quadro, optamos por dois conceitos, formulados por
vessavam o Estado. “Pensamos em instituições num sentido ampliado, ou Pierre Bourdieu. O primeiro deles é aquele que trata da noção de Habitus
que seria a internalização, pelos agentes, de um conjunto de disposições
61 MATTOS, 2004, p. 69. duráveis, capazes de gerar determinadas práticas ou modalidades de inter-
62 SALLES, 1996, p. 110-111. venção na realidade.68 O segundo é aquele que trata do campo científico
63 Id., 2008, p. 44.
“enquanto sistema de relações objetivas, entre posições adquiridas, e o lugar,
64 Nesta concepção, estamos seguindo a formulação de Ilmar Rohloff de Mattos sobre o Estado
imperial brasileiro, construída a partir de Antonio Gramsci (força + consenso; sociedade política o espaço do jogo de uma luta concorrencial” que se desenrola em torno de
+ sociedade civil). Para Ilmar, “quando operamos o conceito de Estado Imperial não estamos con- uma autoridade científica.69 A articulação entre o habitus e o campo cien-
siderando nem única, nem exclusivamente os aparelhos de coerção possibilitadores e garantidores
da dominação, e sim operando com um conceito de Estado que tem como um de seus elementos
tífico remete-nos a uma fração importante da modernidade, aquela que
fundamentais o fato de ser o locus dos dirigentes.” Isso significa dizer que estes dirigentes exerciam ampliava o Estado.70 Articulavam-se aí as relações entre saber e poder, em
uma direção intelectual e moral sobre o Estado. Neste sentido, em que o Estado é entendido como que a autoridade científica dava peso e/ou embasava/justificava a tomada
ampliado, os dirigentes não são mais apenas aqueles que “se restringem aos empregados públicos,
encarregados da administração do Estado em seus diferentes níveis. Por dirigentes saquaremas de decisões e o exercício de sua legitimação.71 Nesta perspectiva, o Estado
estamos entendendo um conjunto que engloba tanto a alta burocracia imperial – senadores, magis-
trados, ministros e conselheiros de Estado, bispos, entre outros – quanto os proprietários rurais 65 MARINHO, 2002.
localizados nas diversas regiões e nos mais distantes pontos do Império, mas que orientam suas
66 BORGES, 2005.
ações pelos parâmetros fixados pelos dirigentes imperiais, além dos professores, médicos, jorna-
listas literatos e demais agentes ‘não públicos’ – um conjunto unificado tanto pela adesão aos prin- 67 MARINHO, op. cit., p. 32-35.
cípios da Ordem e Civilização quanto pela ação visando sua difusão”. MATTOS, op. cit., p. 15-16. 68 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 191.
Para um aprofundamento sobre a noção de Estado no Brasil do século XIX, cf. MARINHO, Pedro
69 Id. O campo científico.
Eduardo Mesquita de Monteiro. O centauro imperial e o “partido” dos engenheiros: a contribuição
das concepções gramscianas para a noção de Estado ampliado no Brasil Império. In: MENDONÇA, 70 MATTOS, 2004, p. 15-16.
Sonia Regina de (Org.). Estado e historiografia no Brasil. Niterói: Eduff, 2006; e MARINHO, 2008. 71 MARINHO, op. cit., p. 65-66.

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passa a ser percebido como relação social. É o espaço de ação dos agentes e Entendemos que a CEFDPII, assim como outras instituições científicas,
está no cerne da complexificação da própria sociedade, sendo esta configu- constituíam-se também em espaço de poder. As relações entre poder e gru-
ração parte da modernidade ocidental. A organização de associações cien- pos sociais/indivíduos, apreendidas a partir das disputas por hegemonia,
tíficas na formação/consolidação do Estado imperial brasileiro dá conta é percebida na perspectiva relacional por meio da qual os agentes sociais
deste espaço de luta concorrencial na formação de uma autoridade cien- atuavam e interagiam de modo a legitimar e interiorizar valores e regras.
tífica com vistas a uma hegemonia conservadora modernizante, expressa A hegemonia política da classe senhorial se foi fruto da ação imediata dos
na direção saquarema. Como nos faz lembrar Ilmar Rohloff de Mattos, “o saquaremas, a transcendeu em muito.
exercício cotidiano de uma direção pelos Saquaremas estava referido pre- Como observou Sonia Mendonça, ao se pensar em política pública
cipuamente aos ‘cidadãos ativos’, e por extensão a ‘boa sociedade’”. A esta a “investigação junto aos documentos oficiais, produzidos por agência(s)
observação Ilmar ilustrou com o dizer de Bernardo Pereira de Vasconcelos, estatal(is), consiste em procedimento indispensável”. Entretanto, é neces-
que se tratava de “difundir as luzes”, ao que o autor acrescentou que signi- sário que a “abordagem de um corpus documental, com características tão
ficava promover o “espírito associativo”, “recorrendo diretamente ou não específicas, como Relatórios, Anais e Boletins, seja feita à luz de uma defi-
aos meios que o aparelho de estado fornecia”. A isto ilustrou com a fala do nição bastante precisa do que se concebe como Estado”. Pois, segundo a
barão de Mauá que afirmou: “o espírito de associação é um dos elementos pesquisadora, somente assim se poderão adotar procedimentos para des-
mais fortes da prosperidade de qualquer país, e por assim dizer, a alma do velar “toda a carga de conflitividade e relatividade junto a ele abrigada”.76
progresso”. Agindo assim, os saquaremas “não deixaram de estar também, Neste sentido, entender o Estado imperial como Estado ampliado contribui
quase que por decorrência, nas praças e nas ruas públicas”.72 tanto a nossa abordagem teórica, como impõe procedimentos metodológi-
O momento da construção da EFDPII, quando se impunham os deba- cos. Percebemos que toda política pública é resultado de um embate e de
tes e estudos sobre o traçado da segunda seção que tinha como desafio atra- conflitos estabelecidos entre frações de classes com interesses distintos.77 O
vessar a imponente Serra do Mar, foi perpassado pela formação de uma alcance destas políticas passava por não ser identificada como a concretiza-
série de instituições que estiveram na base da consolidação definida pela ção de interesses exclusivos dos grupos beneficiados, mas como expressão
engenharia imperial.73 Foi neste instante que se deflagrou o processo da ins- de toda a sociedade.78 O que exigia legitimar decisões na pluralidade social.
titucionalização da engenharia civil no Brasil. Em 1858, deu-se a criação Apreendermos a EFDPII como política pública, ou seja, com o resultado
da Escola Central do Largo de São Francisco – transformada em Escola possível, frente a outras possibilidades. Estudá-la é compreender estes con-
Politécnica em 1874, quando a instituição encontrava-se já desvinculada flitos. Para isso, é necessário identificar estes conflitos e o eixo central que
por completo da órbita militar. Ainda neste sentido, formou-se a associa- os organiza e articula. Quais os atores envolvidos na disputa? A que classe
ção de um significativo contingente de alunos e professores de engenha- ou fração de classe estavam vinculados?
ria concretizada com a fundação, em 1862, da primeira entidade civil dos Ao tratarmos as fontes, deveremos observar como uma política pública
engenheiros brasileiros, o Instituto Politécnico Brasileiro.74 Já no plano do era o resultado possível de conflitos – o que nos remete a entender o pro-
governo, durante o gabinete conservador de Luis Alves de Lima e Silva, de cesso de tomada de decisões. Buscaremos compreender quais foram os
2 de março de 1861, levaram-se a cabo os debates que ocorriam desde 1859 setores representados na sociedade política e como influenciavam nas deci-
sobre a criação do Ministério de Agricultura, Comércio e Obras Públicas.75 sões de governo. Como os setores não representados na sociedade política

76 MENDONÇA, Sonia Regina de. Estado e políticas públicas: considerações político-conceituais.


72 MATTOS, 2004, p. 170. Outros Tempos: Revista Virtual, São Luís: Ed. Uema, v. I 1 Especial, p. 8. Disponível em: <http://
73 MARINHO, 2002, p. 65-66. www.outrostempos.uema.br/vol_especial/dossieespecialart01.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2014.
74 Id., 2008. 77 MENDONÇA, loc. cit.
75 Id., 2002, op. cit., p. 70-79. 78 MARINHO, 2002, p. 1-2.

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poderiam influir nas decisões? Como as pressões chegavam à sociedade agentes coevos, só poderiam ser vencidas com o sucesso da atividade de
política? Qual a relação entre poder central e poder local? Como as deci- plantation. Isso, de certo modo, implicava em investimentos no setor de
sões chegam ao destino e como eram recebidas? Este conjunto de perguntas transporte, o que oneraria os cofres públicos e ampliaria os riscos políticos.
nos ajudará a desvelar nas fontes como as decisões eram tomadas e como se A esse nó górdio, a solução foi a possível. Ampliavam-se os caminhos a
operavam os mecanismos de sua legitimação. serem trilhados por mulas, ainda que sem se perder de vista a possibilidade
futura dos caminhos de ferro.
breves conclusões Aos agentes coevos também não faltavam conhecimentos sobre seu
ramo de atividade. Não eram desconhecidos os limites ecológicos da ati-
A região pioneira da produção em larga escala do café, o Médio Vale do vidade cafeeira empreendida. Levar o solo à exaustão significava também
Paraíba, separada geofisicamente da baixada fluminense, da praça de negó- gerar os dividendos necessários ao investimento em novas áreas e outros
cios do Rio de Janeiro e da Corte pela Serra do Mar, era irrigada por um ramos de negócios no futuro. A estabilidade política, a direção hegemônica
denso conjunto de caminhos que podiam ser, e eram, percorridos por tro- consolidada, a escravidão – embora não homogênea, mas hegemonicamente
pas de mulas. Este sistema de transporte, de certo modo, limitava a expan- aceita e difundida – deram as bases à formação das empresas ferroviárias a
são da cultura cafeeira para áreas mais distantes. Também impunha limites partir da década de 1850. O próprio fim do tráfico atlântico de escravos,
às modificações no sistema produtivo. Mas o sacrifício da produção, princi- neste sentido, não era uma ação que deslegitimava a escravidão como solda
palmente no que tangia ao beneficiamento dos grãos de café com recursos entre sociedade e governo. Os saquaremas reforçaram as referências centrais
de maquinários rudimentares, embora não desejável, era suportável pelos junto aos poderes locais. Para isso, garantiam junto aos proprietários que
agentes coevos. Frente aos desafios de consolidar o Estado imperial e irra- acabar com o tráfico não significava dar cabo da escravidão. A estabilidade
diar uma direção hegemônica, esta era a decisão possível. da escravidão foi alcançada exatamente no momento em que as fazendas
Neste sentido, não se deu uma relação política e social arcaica ou conseguiam diminuir a desproporcionalidade dos sexos e a formação de
colonial no Brasil. O Estado imperial ampliado construía os caminhos famílias era estimulada, por um lado, e, por outro, o tráfico interprovincial
possíveis à modernidade, que significava também as melhorias materiais. garantia circulação de capitais dentro das diferentes regiões do Império.
Difundiam-se Instituições a dar suporte e legitimar a tomada de decisões. O alcance dos trilhos às novas regiões de implantação e/ou expansão
Sobre elas, repousava o peso das possibilidades técnicas, conjugadas dis- das plantations expandia para dentro o Império e irrigava estas regiões com
ponibilidade de capitais, a direção moral, a ordem e a civilização. O limite escravos. Nestas novas unidades, as possibilidades de organizar o trabalho
aos investimentos nesta modernidade era gerido pelo próprio quadro de escravo com novos equipamentos, permitiria a modernidade e a civiliza-
instabilidade política e desequilíbrio financeiro. ção. Aproveitando os escritos de Ilmar Rohloff de Mattos, à medida “que
Os recursos privados deveriam estar disponíveis ao investimento e os Saquaremas foram consolidando suas posições no interior do governo,
reinvestimento nas unidades de produção. Produzir mudas, adquirir terras, unindo a seus propósitos mesmo os homens livres, não proprietários, o
ampliar a escravaria exigiam grande esforço financeiro. Ainda assim, asso- tema da Ordem [que tanto impactou as decisões no instante da implan-
ciados, estes fazendeiros empreendiam transformações em núcleos urbanos tação e expansão da cultura cafeeira nas pioneiras zonas de plantations]
de forma a garantir que estes fossem monumentos da centralização. Estes passou a ser secundário, sendo suplantado pela necessidade da difusão de
senhores rurais constituíam-se em classe à medida que eram eles mesmos uma Civilização [...] face complementar da escravidão”.79
agentes da centralização, entendida como necessária à estabilidade política. A região de cultura madura, apesar de sua produtividade decli-
Os recursos públicos, por sua vez, eram parcos. O Império encon- nante, principalmente se a compararmos com outras áreas em expansão,
trava-se mergulhado em dívidas, o que elevava o risco de sua desintegra-
ção. O grande desequilíbrio financeiro, aos olhos da fração hegemônica dos
79 MATTOS, 2004, p. 213.

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apresentava ainda a perspectiva de bons negócios. Se a solução para alguns Terras, escravos, açúcar, café, ferrovias e bancos
fazendeiros significava a expansão de suas unidades para outras áreas, a
outros, isso também poderia significar investir em novos ramos de ativida-
em Campos dos Goytacazes: o rol dos negócios de
des. É neste pensamento de futuro que entra em cena os debates em torno Saturnino Braga no século XIX1
do traçado da EFDPII, e não em torno de objetivos imediatos, como tantos
afirmaram até então. Walter Luiz Carneiro de Mattos Pereira
Enfim, no Brasil monárquico, a construção da ideia de nação elabo-
rou-se, também, pela constituição dos projetos e setores estratégicos da
administração imperial. As atividades econômicas atingiram um patamar
de destaque e, como consequência, os engenheiros começaram a assumir
tarefas importantes nos setores governamentais e em outros da sociedade
civil, responsáveis pelas obras públicas. A demanda pelo trabalho do enge-
nheiro aumentou consideravelmente, tornando-se uma realidade. As fren- Esse texto pretende investir no estudo da dinâmica da economia em
tes de trabalho foram muitas, principalmente nas estradas de ferro, e, apesar Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, nas duas décadas que antece-
de, inicialmente, a participação de o engenheiro brasileiro ter ocorrido na dem a abolição da escravatura no Brasil, a partir dos negócios tocados por
qualidade de auxiliar dos engenheiros ingleses, aos poucos ele foi galgando Francisco Ferreira Saturnino Braga, proprietário de terras, escravos, usi-
postos de direção nas ferrovias. A partir dessas reflexões, entendemos a neiro, industrial, concessionário de ferrovias e banqueiro, figura chave para
importância da análise que conjuga produção cafeeira, escravidão, ciência e perceber as transformações ocorridas em uma região coberta pelo vale do
modernidade, para entendermos mais sobre o Brasil do século XIX. rio Paraíba, ao norte da província do Rio de Janeiro, com acentuada pro-
dução açucareira voltada para atender o mercado interno. Nesse aspecto, as
singularidades e particularidades obtidas pela observação em escala redu-
zida podem revelar a possibilidade de perceber uma articulação mais ampla
com as estruturas de uma economia de mercado.
Dia de Ano Novo, 1º de janeiro de 1884, o jornal Monitor Campista
externara em suas páginas a preocupação de um grupo de 28 fazendeiros de
Campos dos Goytacazes, reunidos no teatro São Salvador, em 30 de dezem-
bro de 1883, sob a liderança do barão de Miranda, em constituir uma asso-
ciação para o desenvolvimento da lavoura, que pudesse propugnar por uma
maior introdução de colonos na região, em função da redução da força de
trabalho, dado o processo de libertação dos escravos. O encontro retomava
uma tentativa anterior, de 23 de janeiro de 1881, quando, o presidente da
Sociedade Campista de Agricultura, barão de Santa Rita, fora autorizado por

1 Esse artigo foi produzido na expectativa de retomar os estudos sobre a trajetória de Francisco
Ferreira Saturnino Braga e de seus negócios em Campos dos Goytacazes, no século XIX. Versão
mais ampliada foi publicada na revista História da Unesp, vol. 31, p. 212-246, 2012, com o título:
“Francisco Ferreira Saturnino Braga: negócios e fortuna em Campos dos Goytacazes (século XIX)”.
Colaboraram com a pesquisa os bolsistas de Iniciação Científica Renato Boia de Oliveira (Faperj),
Giselle de Jesus Gomes Escocard (Faperj) e Alba de Souza Vieira (UFF/CNPq).

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seus pares a mandar vir da Europa, para instalarem-se na região, cinquenta aberto depois da morte de sua esposa, Maria Isabel Marques Braga, em 10
famílias compostas de quatro membros cada uma. Na lista dos presentes de março de 1888, no total de Rs. 892:330$000. Assim, o monte-mor de seu
àquela reunião de 1883, constatamos a ausência do português Francisco patrimônio chegaria a Rs. 1:868.605$000 ou 1:868 contos,3 traduzidos por
Ferreira Sadorninho, um dos maiores proprietários da região, assim como 196.203 libras esterlinas.4 Logo, trata-se de uma fortuna de grosso calibre, de
uma das mais representativas lideranças econômicas em Campos. capitais dispersos, cuja circulação combinava com a dinâmica da economia
Francisco Ferreira Sadorninho,2 depois Francisco Ferreira Saturnino local naquela conjuntura.
Braga, português, da cidade de Braga, nascido em 17 de fevereiro de 1810, Nícia Vilela da Luz e Carlos Pelaez5 observam que, naquele contexto,
veio para o Brasil na década de 1830. Depois de alguns anos no Rio de Janeiro, algumas estruturas vinham-se modificando no Rio de Janeiro, com a supera-
mantendo contato com negociantes de açúcar de Campos dos Goytacazes, ção de antigas técnicas de produção pela aparição de novas indústrias e pela
transferiu-se da Corte para a cidade tornando-se abastado senhor de terras construção de caminhos de ferro. No município de Campos, essas inovações
e de escravos. Em Campos, diversificou seus empreendimentos, tornou-se apontadas pelos autores poderiam ser cabalmente percebidas, além da pro-
usineiro, industrial, concessionário de obras públicas e banqueiro, trans- fusão de serviços urbanos, bancos, seguradoras, entre outros. Que impactos
formando-se em um destacado capitalista, empreendedor, na qualidade de produziram essas transformações? Deve-se destacar que a economia local,
maior acionista e presidente da Companhia de Fiação e Tecidos Industrial apesar de concentrar, em larga escala, a produção açucareira com vistas a
Campista; contratante, acionista e presidente de duas companhias ferro- atender a demanda existente na Corte, vinha passando por alguns ensaios de
viárias: da Estrada de Ferro Campos-São Sebastião, que ligava o centro de industrialização e renovação de máquinas industriais utilizadas na produção
Campos às freguesias de São Gonçalo e São Sebastião, corredor de privilegia- do açúcar. Acrescente-se a isso, a expansão da cafeicultura nas bordas da pla-
das planícies com extensos canaviais, onde possuía terras, cana e usina; e da nície. Para além dos capitais que revestiam os setores produtivos da econo-
Estrada de Ferro do Carangola ou Campos-Carangola, que ligava Campos mia, João Fragoso6 chama a atenção para o fato de, no século XIX, boa parte
ao noroeste fluminense, à Zona da Mata de Minas Gerais, delimitada geo- deles escapulirem para operações rentistas. Essa é uma das questões centrais
graficamente como “sul de Minas”, e aos limites com a província do Espírito nesse trabalho. Sem desprezar a mobilização em torno dos investimentos
Santo, artérias vitais à formação de um mercado inter-regional diversificado. na região de Campos – como a modernização de usinas e construção de
Os negócios de Saturnino Braga estendiam-se a outras empresas do ferrovias –, ocorria, simultaneamente, uma pulsante atuação de instituições
ramo, pois possuía papéis da Estrada de Ferro de Santo Antônio de Pádua financeiras como bancos e seguradoras. Os bancos da cidade se por um lado
e da Estrada de Ferro Campos Macaé. Por fim, fora presidente e conse- apresentavam uma considerável demanda por crédito, por outro, recebiam
lheiro da Caixa Econômica de Campos, detinha participações no Banco de recursos do público para serem aplicados em depósitos remunerados ou em
Campos e no Banco Comercial e Hipotecário de Campos, na Companhia títulos da dívida pública. As seguradoras locais, cujos capitais segurados e
de Seguros Marítimos, Terrestres São Salvador e na Companhia de Seguros prêmios estavam em ascensão, mantinham vínculos com esses bancos.
Marítimos, Terrestres e de Escravos Perseverança, todas as institui- Nesse contexto, no caleidoscópio de capitais produtivos e improdutivos,
ções situadas em Campos. Sua fortuna pode ser expressa pelo valor dos a trajetória empreendedora de Saturnino Braga é um caminho possível para
bens e dinheiro distribuídos em vida aos seus herdeiros, no montante de
3 ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL. Campos dos Goytacases, [18--]. Inventário I030043.
Rs. 976:275$044, somado ao montante dos bens relacionados no inventário
4 Para efeito de conversão cambial, elegemos a cotação da libra esterlina em 31 de dezembro de 1888 (1
Libra = Rs. 9$523). Fonte: MATTOSO, Kátia de Queiroz. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense,
2 A mudança do último sobrenome, de Sadorninho para Saturnino Braga, ganha uma explicação
1990, p. 254.
curiosa: segundo Roberto Saturnino Braga, ex-senador e ex-prefeito da cidade do Rio de Janeiro,
o sobrenome original de seu antecedente era confundido com Saturnino, nome comum na cidade 5 LUZ, Nícia Vilela; PELAEZ, Carlos Manuel. Economia e História: o encontro entre os dois campos
de Campos. Para diferenciá-lo de possíveis homônimos, agregou-se ao novo sobrenome o local de do conhecimento. Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro, n. 26, p. 273, 301.
nascimento de Francisco Ferreira, a cidade de Braga, em Portugal. Ver também, LAMEGO, Alberto 6 FRAGOSO, João Luiz. Para que serve a História econômica? Notas sobre a história da exclusão social
Ribeiro. A terra goitacá. Niterói: Imprensa Oficial, 1943. no Brasil. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 29, p. 3-28, 2002.

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juntar o micro ao macro, na expectativa de contribuir para o estudo da qua- da intensa procura por sacos para acondicionar café e açúcar, entre outros
lidade e os atributos das inversões capitalistas no Brasil nas últimas décadas produtos locais. Essa demanda por sacaria estaria implícita pela recorrente
do século XIX. Trata-se, na concepção de Giovanni Levy,7 da possibilidade e hábil publicidade nos jornais locais feita pela Companhia de Tecidos de
de reconstituir o vivido, permitindo ver as estruturas invisíveis e conside- Suruí, de Magé, no Rio de Janeiro. Para estimular os negócios entre suas
rar os aspectos singulares, multiplicadores da ação coletiva. Traz, também, próprias empresas, a Estrada de Ferro Campos-Carangola, por exemplo,
como argumenta Carlos Guinzburg,8 a necessidade de o historiador atri- negociava sacos produzidos pela fábrica campista de tecidos, imprimindo
buir-se do saber conjuntural para apropriar-se dos traços individuais de um maior complexidade aos negócios do empreendedor campista. Pode até
objeto e de suas particularidades. Na miragem dessa conjuntura plural, per- ser, como sugere Hervê Salgado,10 que o industrial campista não fosse mais
cebida na relevância do tempo e pela dinâmica do espaço, de um disjuntor simpático ao predomínio exagerado da atividade açucareira, pois se tra-
específico da história do Brasil, podemos refazer os cálculos. A paisagem tava de alguém que apostava na diversificação dos negócios agrícolas, pois
mostra os contornos do prólogo da escravidão, em Campos dos Goytacazes, “cultivara muito café nas suas fazendas do Imbé e nas suas fazendas em
às vésperas da Lei de 13 de maio, em que o trabalho cativo pulsava ainda, Campos, que além de produzirem muita cana produziam um algodão de
em batidas fortes. Por acaso, mais certo que não, os avaliadores do inventá- ótima qualidade, que utilizava para fabricar a roupa de seus próprios escra-
rio apresentaram suas contas em 14 de maio de 1888. Talvez o corte factual vos”. Nessa ótica, o industrial assumia que em suas fazendas e engenhos só
tenha sido uma fatal demonstração das intermitências da riqueza. se comprava sal e querosene, pois as outras necessidades seriam por elas
supridas. Proprietário de terras, senhor de escravos e usineiro, os negócios
companhia de tecidos e fiação industrial campista de Saturnino Braga convergiam para o universo fabril, expondo questões
muito próprias da conjuntura brasileira, em especial quanto à dimensão do
Desde a década de 1870, Francisco Ferreira Saturnino Braga parecia decom- trabalho livre nos estertores da escravidão:
por seus capitais pela indústria, pelas ferrovias, por imóveis urbanos e no
setor financeiro. Evidenciava, portanto, a emergência de um empreendedor O Sr. Saturnino Braga, reconhecendo que a grande lavoura fora da crise tre-
menda porque está passando, teria que sofrer grande abalo primeiro, que se
capitalista cujos negócios tornaram-se plurais nas décadas finais da escra-
firme no pé em que ele deve ficar, concebeu o projeto de dotar a localidade
vidão. Quando se tornou industrial têxtil, passou a defender publicamente em que reside, de um desses focos da indústria que, lhe compensado os capi-
a diversidade da produção agrícola em Campos. Segundo ele, a planície tais empregados, desse trabalho honesto a centenas de braços inativos; espe-
goitacá não deveria fazer do plantio da cana de açúcar “sua única e maior cialmente mulheres e crianças, condenadas pelo sexo e pela idade a pesarem
riqueza”. Sua indústria têxtil em Campos precisava de matéria prima local. sobre a família.11
Lançou, então, pelo Monitor Campista, entre os dias 08 e 10 de março de O Auxiliador da Indústria Nacional, órgão impresso especializado,
1883, uma espécie de manifesto com o propósito de convencer os plantado- representativo da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional – SAIN –
res locais a cultivarem sementes de algodão, entregando-as gratuitamente exibira, nesse artigo, os impactos da desarticulação contínua, embora lenta,
para aqueles que estivessem dispostos iniciar seu plantio.9 Para o empre- do trabalho escravo em Campos dos Goytacazes e as saídas articuladas
sário campista, gerir sua unidade fabril a partir da compra de insumos pelos proprietários locais para redefinir seus investimentos. Como bem
locais seria bem mais vantajoso. Sua fábrica deveria, também, beneficiar-se mostra o jornal, o esgotamento do trabalho escravo indicava aberturas, em
7 REVEL, Jacques. Prefácio. In: LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Rio de Janeiro: Civilização regime de compensação de perdas, ao apostar em novos arranjos nos mun-
Brasileira, 2000. dos do trabalho. Historicamente, recairia sobre mulheres e crianças, não
8 GINZBURG, Carlo. Mito, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras,
1999. p. 143, 179.
9 ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL. Monitor Campista de 12 e 13 de março de 1885. Campo dos 10 SALGADO, Hervê Rodrigues. Campos: na taba dos goytacazes. Niterói: Imprensa Oficial, 1988.
Goytacases, 1885. 11 BIBLIOTECA NACIONAL. O auxiliador da indústria nacional. Rio de Janeiro, maio 1885. p. 114-115.

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diferente do que havia acontecido em países da Europa, a força capaz de o uso do vapor como fonte de energia, substituindo as rodas d’água e tur-
mover as turbinas da acumulação capitalista. binas hidráulicas, provocou o deslocamento para o Rio de Janeiro, Corte
A Companhia de Tecidos e Fiação Industrial Campista foi inaugurada e província, do núcleo mais importante das fábricas do país.16 Segundo
em 12 de março de 1885, no bairro da Lapa, às margens do rio Paraíba. A Wilson Suzigan, o investimento de capital nas fábricas do Rio de Janeiro,
fábrica era de proporções médias e mostrava-se ser uma das mais bem entre 1870 e 1880, em especial o caso da fábrica de Campos, pode ser visto
montadas das existentes no país, por dispor de nova tecnologia de proce- como uma transferência direta de capitais do açúcar, pois o fundador da
dência inglesa.12 A sociedade anônima instaurou-se com um capital inicial empresa, Francisco Ferreira Saturnino Braga, além de proprietário de usina
de 500 contos de réis, dividido em 2.500 ações no valor de 200 mil réis era uma das mais abastadas fortunas de Campos no século XIX. Suzigan
cada.13 Alguns dias depois de sua abertura, a fábrica de Campos já havia incluía a fábrica de tecidos de Campos, como uma daquelas que frutificou
produzido 30.000 metros de fazendas. No ano de 1886, Júlio Feydt informa, entre os surtos cíclicos de investimentos em indústrias de transformação,
sem citar suas fontes, que a fábrica teria produzido 16.680 peças de algodão, no período entre 1880 e 1892, visto pelo autor como uma conjuntura posi-
com 588 mil metros de tecidos em 75 qualidades diferentes.14 tiva ao aparecimento de novas indústrias têxteis no país. Naquele momento,
A indústria têxtil de algodão na província do Rio de Janeiro ocupava estariam dispostos indicadores favoráveis à ampliação desses investimen-
um lugar de destaque na produção industrial nacional com a aplicação de tos em face do aumento do volume das exportações nacionais e da política
médios e grandes capitais. De 1840 ao final do Império, a Corte e a provín- monetária expansionista praticada pelo Império.17 Os recursos direciona-
cia sediavam 25 fábricas têxteis, sendo 14 delas na província.15 Desde 1860, dos à indústria nacional de transformação aumentariam 11%, consideradas
outras variáveis que orientavam seu impulso. Os bons ventos para inves-
12 FEYDT, Júlio. Subsídios para a História de Campos dos Goytacazes. Rio de Janeiro: Esquilo, 1979. p.
tir levaram os proprietários de usinas em Campos a inovarem sua produ-
487. Acervo Biblioteca Pública de Campos dos Goytacazes (doravante – BPCG). A Campista possuía
nove cardas, 594 fusos de maçaroqueira, 2.248 fusos de fiação, 50 teares e todo o maquinário neces- ção pela montagem de máquinas a vapor no lugar das antigas moendas
sário para a fiação, tecelagem e tinturaria. Todas as máquinas eram movidas por um motor a vapor de almenjara, com o intuito de garantir maior produtividade, reflexo da
Compound, de força de 160 cavalos nominais e duas caldeiras Cornish de 50 cavalos cada uma. A
obra civil foi realizada por contrato, com a Henry Rogers Sons Bullough, de Accrington, Lancashire; modernização industrial desejada pelo governo imperial para atender as
e as máquinas foram importadas de Mather Platts, em Manchester, Inglaterra. No Almanak... de necessidades conjunturais. Nesse aspecto, Suzigan não deixa de destacar os
Campos... para 1885, consta uma versão mais detalhada sobre a estrutura da fábrica: a fábrica estava
situada na rua de D. Pedro II, “A área total do edifício é de 1.568 metros quadrados, tendo além estímulos à indústria açucareira, a partir de certas estratégias que depen-
disso um sobrado nos fundos com 351 metros também quadrados. As transmissões são todas fixas diam das oscilações percebidas pelas espirais cíclicas projetadas pelo autor.
por columnas e vigas de ferro fundido, dispostas de modo a ficarem completamente independente
de apoio sobre as paredes do edifício. Os aparelhos com exceção das caldeiras, estão perfeitamente
dispostos em um vastíssimo salão, cujo solo é acafelado de cimento. Além das janellas para frente, bancos
para o fundo e para os lados, tem também cinco ventiladores archimedianos, collocados nos telha-
dos, e que dão a maior quantidade de ar a todas as partes do edifício. Todos os machinismos são de As sinuosidades do crédito com circulação interpares, ou seja, aquele que se
procedência ingleza e dos systemas mais aperfeiçoados. O algodão entra pela fábrica, em caroço, e
passa por todas as operações desde o descaroçamento até a tecelagem, Possue atualmente a fábrica faz entre os pares de uma sociedade agrária açucareira escravista, medido por
nove cardas, 594 fusos de maçaroqueira, 2.248 fusos de fiação, 50 teares e todos os apparelhos prepa- negócios que envolvem a compra e venda de propriedades ou garantias por
ratórios para a fiação, tecelagem e tinturaria. Todas as máquinas são movidas por um motor a vapor
Compoud de força de 160 cavallos nominaes; tem duas caldeiras Cornish de 80 cavallos cada uma Isabel e Fiação e Tecelagem Cometa (Petrópolis), Fábrica de Pau Grande (Pau Grande), Fábrica
com economisador de Green. A torre mede 24 m, 20 cm de altura e o boeiro de base mede 1m,50cm. de Niterói, Companhia São Joaquim, Manufatura Fluminense (Niterói) e Fábrica e Tecelagem
Além do edifício actual, o proprietário da fábrica possue outros prédios ao lado, que devem servir Andorinhas (Andorinhas). SUZIGAN, Wilson. Indústria brasileira: origem e desenvolvimento.
de depósitos e um grande terreno por onde a fábrica se poderá estender mais tarde”. Campinas: Hucitec: Unicamp, 2000. p. 404-405.
13 ACERVO PARTICULAR DE WALDICE PORTO. Cota representada pelo título nº 1989, emitida em 23 de 16 ALBUQUEQUE, Júlio Pompeu de Castro. O Estado do Rio agrícola e industrial. In: ___. Album do
julho de 1886. [S.l., 1989?]. Estado do Rio de Janeiro: Exposição Nacional de 1908. Rio de Janeiro: Oficinas da Renascença, 1908.
14 FEYDT, 1979. Impresso no governo de Alfredo Backer. Ver também: TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da
15 Fábrica de Santo Aleixo (Magé), Fábrica de Santa Tereza (Parati), Fábrica Brasil Industrial engenharia no Brasil: séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Clube de Engenharia: Clavero Editoração, 1984.
(Macacos), Fábrica de São Pedro de Alcântara, Fábrica Petropolitana e Fábrica e Tecelagem Dona 17 SUZIGAN, op. cit., p. 86.

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hipotecas, podem auxiliar no diagnóstico de uma conjuntura de “crise”? Que séries apresentadas pela historiadora, que a maior deflação das operações
“crise”? “Crise” do escravismo? “Crise” da propriedade escravista? “Crise” de crédito e transações imobiliárias nos campos do açúcar era flagrante,
financeira? “Crise” mercantil? “Crise” de riquezas? Ou seria apenas uma justamente nas freguesias onde a produção açucareira era imperativa: São
“crise” de acomodação ou renovação no quadro das fortunas locais? A priori, Gonçalo e São Sebastião. Ocorre que, se tomarmos, naquele contexto, balan-
a contribuição do trabalho de Sheila Faria é bastante reveladora ao examinar ços e demonstrativos das instituições financeiras acreditadas na cidade, fon-
a dinâmica do crédito local, livre da ingerência de instituições financeiras tes que Sheila Faria prescindiu, por razões óbvias de escolhas metodológi-
especializadas, modernas e racionais. Entretanto, seu trabalho perpassa, por cas, observamos movimentação inversa àquela sustentada pela autora.
um período de transformações, por uma conjuntura de mudanças efetivas, Ao examinarmos essas fontes, por exemplo, para o ano de 1883, não é
de um espaço econômico rústico, agrário e escravista para um espaço onde arriscado sinalizar que poderia haver sim uma migração de capitais do setor
surgem indústrias, obras e serviços públicos e a financeirização e moneta- agrário para o setor financeiro, para investimentos em títulos do governo
rização das relações econômicas. Creio, por exemplo, que essas mudanças e depósitos a prazo, remunerado com juros, sem falar da constituição de
possam ser apreciadas a partir dos movimentos feitos por Francisco Ferreira linhas de crédito permanentes de curto prazo. Esse capital cambiante tinha
Saturnino Braga entre as décadas de 1870 e 1880. Os caminhos pelos quais história. Desde 1871, o Banco de Campos esbanjava recursos. Naquele ano,
seus capitais se deslocam dão a dimensão do quadro geral da economia. São o banco já apresentava uma considerável carteira de créditos, desdobrada
capitais que se renovam no campo ou se deslocam para as indústrias e as em descontos e empréstimo sobre penhores. Para o exercício compreen-
ferrovias, são capitais que se invertem na produção açucareira e industrial, dido entre julho de 1871 e junho de 1872, o banco emprestou 2.644 contos,
mas, também, são capitais que naqueles anos puderam migrar para o setor referentes ao desconto de 776 letras. O valor médio das letras descontadas
especulativo, em especial para as instituições financeiras: bancos, segurado- chegara a 2,3 contos, a taxa de juros de 10% ao ano, em curto prazo. No
ras e caixa econômica, que gerem ativos e passivos com universos distintos mesmo período, o banco cobrou 1.782 contos referentes a essas mesmas
de devedores e credores. Falo com maior ênfase das instituições financeiras letras, restando com saldo a cobrar de 862 contos. Esses valores demons-
acreditadas em Campos. Saturnino Braga era sócio do Banco de Campos e tram uma taxa de retorno anual de 80% do crédito disponibilizado. Além
do Banco Comercial e Hipotecário de Campos. Portanto, o que move esse disso, o banco realizara empréstimos em conta corrente, da ordem de 269
trabalho é a metamorfose desses capitais, ainda que a migração desses recur- contos, tendo retomado 83 contos em curto prazo, com juros de 10% ao
sos traduza-se na acomodação da riqueza, sempre pelas investidas amplas e ano, com saldo em carteira de 186 contos, o que significa uma rotatividade
plurais do grande capitalista, como diria Braudel. menor nesse tipo de crédito por contemplar prazos maiores para o paga-
Sheila de Castro Faria18 ao estudar o movimento dos capitais agrários mento das obrigações. No mesmo período, o Banco de Campos registrou
em Campos dos Goytacazes, entre os anos de 1850 e 1920, destaca uma depósitos e saques nos valores de 811 contos e 539 contos, respectivamente,
determinada cronologia dentro desse intervalo, mais precisamente, entre os registrando um saldo em caixa de 272 contos, que, somado ao saldo do
anos de 1870 e 1885, para sinalizar a ocorrência de uma “crise” na economia balanço encerrado em junho de 1871, gerou um saldo atualizado de 930
açucareira local. Segundo a autora, o baixo número de registros de transfe- contos. Até 31 de março de 1872, o Banco de Campos havia remunerado os
rências de propriedades e hipotecas que aparecem nos livros do Cartório do depósitos em conta corrente com juros de 5% ao ano; entretanto, a taxa após
Primeiro Ofício da Comarca de Campos, revelaria um fraco desempenho essa data fora reduzida para 4% ao ano pela razão de “não haver emprego
da economia local, que resultaria, em marcha acelerada, dentro de poucos a lhe dar”, explicitando que a oferta de crédito seria maior que a demanda,
anos, no infortúnio de muitas riquezas na planície goitacá. Destaca-se, nas por motivos não detalhados. O lucro líquido naquele ano chegara a 86 con-
tos. O saldo em caixa, de 50 contos, estava distribuído em papel moeda, em
18 FARIA, Sheila de Castro. Terra e trabalho em Campos dos Goytacazes (1850-1920). 1986. Dissertação
(Mestrado em História Social) – Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade
moedas de cobre, e em notas do Banco do Brasil. O dividendo pago foi de
Federal Fluminense, Niterói, 1986.

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Rs. 5$250 por ação.19 Logo, havia um confortável estoque de créditos, com- for afirmativa, ainda assim, não teria ocorrido, portanto, uma “crise” com
binado com um fluxo de caixa concorrente. O Banco de Campos era ainda o refluxo dos negócios no campo, pois haveria estoque de crédito disponí-
credor de recursos depositados no London & Brazilian Bank, com registro vel e sendo utilizado nos bancos locais, indicando até mesmo uma pulveri-
no balanço de 1871, e depois no New London & Brazilian Bank, conforme zação das operações por cautela bancária, denotando certa racionalização
escriturado no balanço de 1883. Esse fluxo de capitais emprestados era rea- das práticas creditícias. Essa migração de capitais, se confirmada, pode, no
lizado em baixos níveis de inadimplência. meu ponto de vista, dialogar plenamente com o trabalho de Sheila Faria, na
Mesmo que um grande volume de capitais fluísse para aplicações tentativa de especular sobre a decomposição de uma elite pela ascensão de
em títulos da dívida pública, como acentuava o demonstrativo da Caixa outra nas últimas décadas do século XIX. Dessa forma, os bancos na cidade
Econômica de Campos, tais transferências, ainda assim, não representa- de Campos teriam assumido um papel de destaque no deslocamento de
riam um baixo estoque de crédito disponibilizado pelas duas instituições capitais e riquezas. João Fragoso21 avalia sobre a queda dos estoques de capi-
bancárias da cidade, pelo contrário, tanto o Banco de Campos quanto o tal mercantil em favor de aplicações em títulos da dívida pública, no Rio de
Banco Comercial e Hipotecário de Campos voltaram, dez anos depois, a Janeiro, como principal opção dos investidores da Corte. Segundo o autor,
demonstrar em seus ativos, nos balanços para o ano de 1883, forte vigor no Maria Barbara Levy já havia detectado que o interesse em papéis do governo
crédito, em especial por letras descontadas, mostrando baixa provisão para estava relacionado a alguns fatores conjunturais como a Lei dos Entraves de
títulos em liquidação ou pelo registro de operações ajuizadas. No Banco de 1862, que criava dificuldades para os investimentos produtivos impedindo
Campos, o ativo registrava operações de crédito da ordem de 2.923 contos a formação de sociedades anônimas; e a Guerra do Paraguai, pela neces-
(60,6% do ativo total) distribuídos por 3.074 letras descontadas. No Banco sidade de cobrir os custos com as despesas do conflito e, posteriormente,
de Crédito Comercial e Hipotecário de Campos, o registro dessas operações honrar os compromissos internacionais assumidos com a Inglaterra. Os
chegava a 912 contos (53,4% do ativo total) relativos a 1.276 letras desconta- números apresentados por Fragoso e por Maria Barbara Levy insinuavam
das. Logo, os balanços das instituições apresentavam um percentual bastante que parte da acumulação da riqueza no Brasil estava sendo carreada para
expressivo em oferta de crédito. A dívida privada líquida contabilizada pelos papéis do governo. Ainda que o mesmo perfil acumulativo se reproduzisse
dois bancos, em 1883, chegaria a 3.850 contos, correspondentes a 76% das na cidade de Campos, tal fato não teria limitado o volume de crédito dis-
receitas com as exportações globais da cidade para o Rio de Janeiro naquele ponível, a partir da observação contábil retirada dos balanços dos bancos
ano.20 Isso significa que as casas bancárias em Campos emprestavam muito, locais. Com certa acuidade é possível afirmar não ter havido, nem mesmo
mantendo uma taxa de inadimplência significativamente baixa. com a corrida aos investimentos rentistas, um refluxo nas operações de cré-
Impõe-se refletir, analisando os dados apresentados no trabalho de dito que pudesse instaurar uma situação de “crise”.
Sheila Faria e a partir dos números lançados nas demonstrações contá-
beis das instituições financeiras campistas, se, havendo ocorrido de fato a estradas de ferro
migração de capitais do setor agro-açucareiro para o setor financeiro – o
que tudo indica –, esse deslocamento implicaria uma acelerada queda no O auge da construção de ferrovias na província do Rio de Janeiro aconteceu
ritmo das negociações diretas por empréstimos interpares. Se a resposta entre 1875 e 1885. Segundo Andréa Rabello,22 em 1889, havia 1.344 quilô-
metros de trilhos fincados, nos quais os corredores do café determinaram
19 SILVA, Josino do Nascimento. Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Rio de a expansão da malha ferroviária. Andréa Rabello chama a atenção para a
Janeiro... Rio de Janeiro: Typ. Perseverança, 1872.
20 Segundo Teixeira de Mello, as vendas do município no ano de 1880 chegaram a 5.011 contos: café, 750 21 FRAGOSO, 2002; ver LEVY, Maria Bárbara. A indústria no Rio de Janeiro através de suas sociedades
contos; açúcar 2.645 contos; aguardente, 773 contos; alcool, 64 contos; goiabada, 150 contos; feijão, 4 anônimas. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994.
contos; milho, 8 contos; sola e peles, 18 contos; jacarandá, 360 contos; peroba, 133 contos; tapinhoam, 22 RABELLO, Andrea Fernandes Consídera Campagnac. Os caminhos de ferro da Província do Rio de
4 contos; cedro, 45 contos; outras madeiras, 34 contos; e produtos diversos, 20 contos. MELLO, José Janeiro: ferrovias e café na 2º metade do século XIX. 1996. Dissertação (Mestrado em História Social)
Alexandre Teixeira de. Campos dos Goytacazes em 1881. Rio de Janeiro: Laemmert, 1886. p. 149. – Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal Fluminese, Niterói, 1996.

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cesta de privilégios no processo de contratação de ferrovias com as provín- máquinas a vapor. O incentivo, além das máquinas, incluía a construção de
cias, como a isenção de impostos de importação sobre máquinas e mate- ramais ferroviários entre os estabelecimentos produtivos e os eixos das prin-
rial rodante e o privilégio de zona para garantir o monopólio na prestação cipais ferrovias. Era preciso correr contra o tempo, no esforço de garantir
do serviço. O fato das ferrovias constituírem-se de sociedades anônimas a competitividade do produto nacional. Dessa forma, as mudanças seriam
garantia não só a possibilidade de maiores investimentos coletivos, como estimuladas por subsídios governamentais, com oferta de garantias de juros
dinamizar a expansão de empresas capitalistas no país, segundo a autora. até o limite de 30.000 contos (3,3 milhões de libras) em empréstimos.
De antemão, o contorno mais delicado para esse tipo de empresa capitalista No Rio de Janeiro, seis projetos de engenhos centrais seriam benefi-
no século XIX, estaria subscrito, para Andrea Rabello, no próprio corpo do ciados entre 1877 e 1888: Quissamã, Barcelos, Limão, Queimado, Cupim e
Decreto de Concessão do Serviço Público, que proibia a utilização de traba- Figueira; alguns deles construídos por proprietários locais sem garantia de
lho escravo nas obras da ferrovia. Muitos projetos de ferrovias fluminenses juros, em função da restrição parcial do incentivo nos anos de 1876 e 1877,
foram iniciativas de fazendeiros locais, com capitais próprios, que se empe- em face da depressão econômica internacional. Além disso, o governo ofe-
nhavam por concessões, privilégios, empréstimos, emissão de debêntures, receria isenção de impostos e de direitos de importação sobre máquinas e
ações, sob os parâmetros da lei que passara a reger as sociedades anônimas. equipamentos para usinas e para a montagem de ramais ferroviários auxi-
O maior dos privilégios seria a garantia de juros, na sua maioria, fixado liares de bitola estreita, incluído material rodante. Em 1881, as concessões
em 7% ao ano a serem pagos pela província aos acionistas por um período retomariam com as garantias de juros, em função de cotas destinadas a cada
médio de 30 anos. Esses valores, posteriormente, deveriam ser reembolsa- província. Em 1884, as 54 concessões em vigor abarcavam 29.600 contos,
dos aos cofres provinciais, desde que a renda líquida gerada pela ferrovia sob a garantia de juros dada pelo Império, alcançando quase que totalmente
ultrapassasse 8 ou 9% do valor do capital social, o que raramente acontecia. o limite anteriormente projetado. Destarte, um mar de dificuldades na uti-
Para Rabello, esse tipo específico de privilégio poderia ser visto como um lização dos recursos, inclusive, por má fé, envolveram grande parte desses
processo artificial para atrair capitais para formação das empresas. engenhos no país, o que levou o governo imperial, em 1885, a rever tais
Surgem nesse cenário os caminhos de ferro, dos quais Saturnino concessões, revogando 35 delas. Em 1887, o governo reduzira para 26 aque-
Braga apareceria como empreendedor em Campos. O primeiro alcançava las que continuaram gozando de garantia com juros. O fim do sonho dos
a crescente produtividade dos engenhos e usinas de açúcar reestruturadas engenhos levou o governo a investir em usinas. Segundo Suzigam, a opção
pelo uso da máquina a vapor. Tratava-se da Estrada de Ferro Campos-São pelas usinas revestia-se do fato delas terem uma maior independência em
Sebastião,23 contratada com a província, em 4 de setembro de 1869, por João relação aos plantadores, com melhor controle sobre os suprimentos e pre-
de Sá Vianna e Rodolfo Evaldo Newbern pelo prazo de 30 anos, cuja obra ços da cana, embora não estivesse tão distante da estrutura do engenho. No
iniciou-se em 2 de outubro de 1871, inaugurada ao tráfego em 1873. A ferro- lugar dos engenhos, as usinas passariam a ser o centro das atenções.24
via tinha uma extensão aproximada de 20 quilômetros ligando o Largo do Em 1883, a Estrada de Ferro Campos-São Sebastião, um desses ramais
Rocio, em Campos, à freguesia de São Sebastião, passando pela freguesia de ferroviários que ligava as usinas aos canaviais, a outras ferrovias e a Campos,
São Gonçalo, com um ramal até a Usina de São José, alcançando seis esta- transportou 46 mil pessoas com suas quatro locomotivas e oito carros de
ções: Campos, Cruz das Almas, Dona Anna, São Gonçalo, Campos-Limpo passageiros, 7.890 toneladas de mercadorias e 1.803 animais, registrando um
e Mineiros. Wilson Suzigam destaca que a concorrência com o açúcar de
beterraba europeu e a melhor produtividade e qualidade do açúcar produ-
24 SUZIGAM, 2000, p. 213-228. O autor utiliza-se de uma vasta documentação a respeito. Para o caso
zido pelos engenhos a vapor em Cuba seduziram o Império a apostar na de Campos, as fontes e obras citadas seriam: O auxiliador da indústria nacional: documentação
inovação tecnológica nos engenhos e usinas brasileiras pela utilização de diplomática inglesa; e as obras de Gileno de Carli (A evolução do problema canavieiro fluminense) e
Richard Grahan (Britain and the Onset of Modernization in Brazil, 1850/1914). Segundo o cônsul
Monsen, citado por Suzigam, cônsul britânico no Rio de Janeiro, 25 das 33 usinas existentes em
23 A concessão foi autorizada pela Lei Provincial 1.407 de 24 de dezembro de 1868. Campos, em 1918, operavam pequenos ramais ferroviários, com um total de 207 quilômetros.

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resultado positivo de 11,6 contos.25 No ano anterior, a companhia registrara evaporadora e defecadores a vácuo.27 Dessa forma, a ferrovia atendia a uma
o transporte de 47 mil passageiros, 8.723 toneladas de mercadorias e 1.952 planície de grandes produtores que avançavam no processo de ampliar a
animais, produzindo receitas de 76 contos e despesas de 58 contos, com um produtividade da agroindústria açucareira, em face da implantação de equi-
resultado positivo de 18 contos. O capital inicial era de 600 contos.26 Depois pamentos modernos em áreas geográficas tradicionalmente tidas como as
de tímidos resultados, decorrentes do elevado preço de suas tarifas e pela que mais produziam cana e açúcar no município, localizadas nas freguesias
recusa de muitos fazendeiros em transportarem seus produtos por ela, pre- de São Gonçalo e São Sebastião.28
ferindo ainda os carros puxados por bois e guiados por escravos, a empresa A aquisição dessa ferrovia do açúcar por Saturnino Braga, não seria
conseguiu reverter a situação. Desde 1881, a ferrovia havia sido adquirida uma novidade nas oportunidades de investimentos em obras públicas por
por Francisco Ferreira Saturnino Braga, conforme Termo de Transferência parte do empreendedor. A “Estrada de Ferro entre a cidade de Campos e as
de Contrato de 4 de setembro de 1869, que juntou quatro sócios para forma- raias da Província de Minas Gerais” a percorrer os “férteis e já assaz povoa-
rem a Sociedade Comanditária Saturnino Braga & Cia.: o barão de Miranda dos vales dos rios Muriaé e Carangola” foi contratada, ainda sem privilé-
(Júlio de Miranda e Silva, médico), o comendador José Cardoso Moreira, gio, em 12 de abril de 1872, pelos bacharéis Mariano Alves de Vasconcellos,
Francisco das Chagas Silva Júnior e Antônio Manoel da Costa. Na reali- Manoel Rodrigues Peixoto, Chrisanto Leite de Miranda Sá e pelo médico
dade, a Estrada de Ferro Campos-São Sebastião servia de corredor para o Francisco Portella.29 Portella, além de ser experiente contratador de obras
transporte de aguardente, cana, açúcar, escravos, lavradores, fazendeiros e públicas como ferrovias, tinha atuação política destacada: fora presidente da
usineiros entre as usinas e Campos. De fato, a ferrovia atenderia várias usi- Câmara Municipal de Campos, deputado provincial e seria futuro presidente
nas no seu percurso e até mesmo engenhos: a Usina São José, em que um do Estado do Rio de Janeiro, inaugurando a primeira administração estadual
dos sócios era o próprio barão de Miranda, sócio da empresa ferroviária, republicana. Mais adiante, a Estrada de Ferro Campos-Carangola ou Estrada
prestes a incorporar ao seu patrimônio a Usina de Santa Cruz. No percurso, de Ferro do Carangola levaria o trem de ferro ao extremo norte da província
os trilhos passavam ainda pela Usina de Queimado, pela fazenda e fábrica fluminense, a Minas Gerais e ao limite com o Espírito Santo. Em 1881, o cami-
do Colégio – do tenente-coronel Francisco de Paula Gomes Barroso –, nho de ferro contaria, aproximadamente, com 150 quilômetros de extensão,
todas elas situadas na mesma freguesia de São Gonçalo. Na freguesia de uma das maiores da província. Sua diretoria, desde 1879, era formada, além
São Sebastião, no ponto terminal da ferrovia, estava a Usina Mineiros, de de Saturnino Braga, pelo comendador José Cardoso Moreira e por José Alves
Antônio Jacques Janot e Affonso Peixoto de Abreu Lima – deputado pro- da Torre. Cardoso Moreira era fazendeiro, proprietário de extensas terras
vincial pelo Rio de Janeiro –, que juntos formavam a sociedade Abreu Lima entre Cachoeiras do Muriaé (Cardoso Moreira), Monção (Italva) e Porto
& Janot. Além da Usina Mineiros, na mesma freguesia, compartilhando Alegre (Itaperuna), todas elas localizadas na freguesia de Santo Antônio de
dos trilhos da Estrada de Ferro Campos-São Sebastião, estava o Engenho Guarulhos, onde produzia cana, aguardente e café. Também era sócio de
Central de Coqueiros, do tenente-coronel Manoel Ribeiro de Azevedo Saturnino Braga na Estrada de Ferro Campos-São Sebastião. Alves da Torre
Veiga, parente dos proprietários da Usina São José. Havia, também, o era diretor do Banco de Campos, vice-cônsul de Portugal em Campos e,
engenho da fazenda Velha, de Francisco Ferreira Saturnino Braga, mon- supostamente, detinha o título de barão de Goytacazes. Essa diretoria substi-
tado com tecnologia semelhante a Coqueiros, com a utilização de bateria
27 Tanto a Usina São José quanto a Usina de Queimado pareciam fazer parte de um mesmo grupo
de fazendeiros de cana da região: Maria de Souza Gomes, João Ribeiro de Azevedo, comendador
Ignácio Ribeiro de Azevedo Veiga, tenente Vicente Ribeiro da Silva Vasconcellos, José Pinheiro de
25 ALMANAK... DE CAMPOS... PARA 1885. Campos: Typ. do Monitor Campista, ano II, 1885. Organização Andrade, Manoel Ribeiro de Azevedo Arêas e Vicente Gomes de Souza. ALMANAK... DE CAMPOS...
João de Alvarenga. PARA 1885.

26 VASCONSELLOS, José Leandro de Godoy e. Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa 28 ver FARIA, 1986. Posteriormente, a Estrada de Ferro Campos-São Sebastião seria incorporada, em
Provincial... Rio de Janeiro: Typ. Montenegro, 1884. Acervo Biblioteca Estadual de Niterói. Sala da 20 de janeiro de 1889, à Estrada de Ferro Macaé-Campos.
História Fluminense, BEP / SHF. 29 SILVA, 1872.

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tuiria a primeira, formada por Manoel Rodrigues Peixoto, pelo próprio José da província” de Minas Gerais,32 o custo da ferrovia, por quilômetro cons-
Cardoso Moreira e por Francisco Portella. Outra vez, Portella, por dedução, truído, até alcançar Itaperuna, chegaria a 30 contos, revelando um custo
faria o papel de fiador político e intermediário dos interesses de grupo nas total de 4.576 contos com a sua construção até aquele ponto. Teixeira de
negociações entre a província e a empresa. Sua atuação política ocupava um Mello diria que Saturnino Braga dera a medida exata ao empreendimento
lugar de destaque no jogo de poder provincial. iniciado por Francisco Portela. Os principais produtos transportados pela
As obras da Estrada de Ferro do Carangola foram iniciadas em 1875, na ferrovia eram: café, açúcar, aguardente, madeira em toras e curvas, móveis,
estação inicial situada no “Lado Norte”, na margem esquerda do rio Paraíba, lenha, frutas, ovos, milho, feijão, arroz, mandioca, farinha de mandioca,
cuja pedra fundamental fora lançada com a presença do Imperador Pedro cereais em geral, cal, tijolos, telhas, asfalto, cimentos, paralelepípedos,
II. No ano de 1881, quando a ferrovia chegaria a Porto Alegre (Itaperuna), materiais de construção em geral, máquinas para a lavoura, estrume, capim,
seu leito seria acompanhado pelos cafezais que floresciam rapidamente na animais de todo tipo, encomendas diversas, além de... cadáveres.33
região. Naquele ano, a ferrovia produziu receitas líquidas de 170 contos. A ferrovia que unia o Rio de Janeiro ao Espírito Santo e a Minas Gerais
Seu capital inicial fora de 6.000 contos, distribuído por 30.000 ações com auferiu rendas, em 1883, num montante de 561 contos de réis, sendo 447 con-
juros de 7% ao ano, afiançado por 20 anos e garantido por mais 10 anos.30 tos relativos às mercadorias transportadas e 87 contos resultantes do trans-
Segundo José Alexandre Teixeira de Mello,31 seria a única da província flu- porte de passageiros.34 No ano anterior, pelo transporte de 43 mil passageiros,
minense a gozar desse privilégio, embora as fontes indiquem que outras 25 mil toneladas de mercadorias e 1.763 animais, com suas sete locomotivas e
companhias seriam passíveis de favores no processo de concessão. Com 12 carros-salão para passageiros, a estrada de ferro teria um resultado positivo
rendimentos positivos, a ferrovia iniciara sua terceira expansão para che- de 263 contos de réis. Quatro anos depois, em 1886, já com seus 188 quilôme-
gar até São Paulo do Muriaé e Tombos do Carangola. Para atingir “as raias tros, a Estrada de Ferro Campos-Carangola transportaria 51 mil passageiros,
32 mil toneladas de mercadorias (12 mil toneladas de café, 2 mil de açúcar
e 18 mil toneladas de mercadorias diversas) e 2.623 animais.35 O transporte
de mercadorias representava aproximadamente 80% das receitas da ferrovia.
30 Decreto-Lei 6.618 de 9 de fevereiro de 1876, nos termos da Lei 245 de 14 de setembro de 1873, con-
cedia a garantia de juros de 7% a.a., ao capital adicional que for efetivamente empregado na cons-
Outra importante fonte de receita da empresa anteriormente mencionado,
trução da Estrada de Ferro do Carangola e seus ramais, até o máximo de mil contos de réis, ficando, embora não estivesse computada em seu demonstrativo, seria a receita com
assim, elevado a seis mil contos de réis o capital ficado pelo Decreto 5.822 de 12 de dezembro de
1874. Thomaz José Coelho de Almeida, com rubrica do Imperador.
“aluguel” de sacos, o que, certamente, representava um braço dos negócios
Em 1º de novembro de 1877, seria aberto o primeiro trecho de 17 quilômetros até Travessão. Logo de Francisco Ferreira Saturnino Braga em aproveitar-se da ferrovia para criar
depois, as composições chegariam à Penha, Vila Nova e Murundu. No ano seguinte à sua inaugura- mercados em que pudesse negociar os produtos da sua fábrica de tecidos.
ção, a ferrovia chegaria a Cachoeiro, próximo a atual Italva, encerrando, assim, sua primeira seção,
avançando sobre a margem esquerda do rio Muriaé, por 74 quilômetros além de Campos. Seis
meses depois, entraria em funcionamento o ramal de Santo Eduardo, nos limites da província do
32 Decreto 6.119 de 9 de fevereiro de 1876: permite o prolongamento da Estrada de Ferro do Carangola
Espírito Santo, cuja linha de chegada ficava próxima a uma das margens do rio Itabapoana, a 700
até a cidade de São Paulo do Muriahé, em Minas Gerais, a partir do ramal de Patrocínio, extensão
metros da divisa que separa o território fluminense do território capixaba. Entre Murundu e Santo
de Porto Alegre, atual Itaperuna. Os privilégios seriam os mesmos concedidos pela província do Rio
Eduardo, o ramal media 23 quilômetros. O avanço da ferrovia exibia a extensa fruição do comércio
de Janeiro, salvo o prejuízo do direito adquirido por outras empresas já concedidas. Entretanto, no
e das unidades produtivas localizadas na interseção dos territórios das três províncias. O projeto
trecho Patrocínio-Muriahé, não poderiam ser auferidas rendas sobre passagens ou mercadorias. No
desenhado para a Estrada de Ferro do Carangola buscava fazer de Campos, por excelência, o cen-
entanto, as obras só poderiam ser iniciadas depois de completo o trecho original Campos-Tombos
tro econômico de confluência entre aqueles limites. Esse vértice estaria reproduzido na própria
do Carangola.
dimensão de Campos como um dos principais eixos ferroviários regionais, nas primeiras décadas
do século XX. Três anos à frente, em 1880, os trilhos da ferrovia chegariam às estações de Monção 33 Ver ALMANAK... DE CAMPOS... PARA 1885.
e São Pedro, as duas na margem direita do rio Muriaé, alcançando 106 km em pouco tempo. Em Ver também, INSTRUÇÕES e tarifas da Estrada de Ferro do Campos ao Carangola. Rio de Janeiro:
17 de outubro de 1881, as locomotivas da Estrada de Ferro do Carangola chegariam a Porto Alegre, Typographia de G. Leuzinger & Filho, 1877. Acervo Biblioteca de Obras Raras, BOR/CT/UFRJ.
atual Itaperuna, depois de passar por São Domingos e Cubatão. 34 ALMANAK... DE CAMPOS... PARA 1885.
31 MELLO, 1886. Teixeira de Mello era genro de Francisco Ferreira Saturnino Braga, casado com Isabel 35 LEÃO, Antonio da Rocha Fernandes. Relatório apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do
Saturnino Marques de Mello. Rio de Janeiro... Rio de Janeiro: Typ. Montenegro, 1886.

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Outra ferrovia estratégica para a cidade de Campos foi a Estrada de porto macaense, pronto para dar o golpe mortal no precário escoamento
Ferro Macaé-Campos, a qual, também, Saturnino Braga tinha pequena par- dessa produção regional pela navegação de cabotagem feita a partir de São
ticipação. Apenas para título de comparação, a estrada de ferro que ligaria João da Barra, “por navios de vela sujeitos às invernadas e aos caprichos de
Campos ao porto de Imbetiba, em Macaé, apresentara para os anos de 1882 uma barra inconstante pelo seu fundo movediço de areia”, pelo rio Paraíba.
e 1883, juntos, uma receita total de 1.311 contos de réis pelo transporte de 67 A precariedade do transporte marítimo e fluvial acentuava-se tanto no tre-
mil toneladas de mercadorias e 31 mil passageiros. O ganho com mercado- cho fluvial entre Campos e São João da Barra quanto na navegação marítima
rias transportadas chegava à marca de 70% da receita total. Assim como as de cabotagem a partir de São João da Barra. Para esse serviço, a Companhia
rendas da ferrovia, estava computado o faturamento do ramal que ia de São de Navegação de São João da Barra, da qual Saturnino Braga possuía algu-
Fidelis a Miracema, denominado Estrada de Ferro Santo Antônio de Pádua, mas ações, lançava-se ao mar com 10 navios a vela e dois vapores utilizados
incorporado à empresa.36 Francisco Ferreira Saturnino Braga, igualmente, como rebocadores. Para a rota fluvial, a mesma companhia dispunha de
investira seus capitais nesse ramal cujas receitas com transporte de merca- um vapor e 14 barcas. Esses dados valem para 1884!38 No intuito de supe-
dorias – café, especialmente –, equivaleriam a quase 20% do total faturado rar a intempéries da natureza trazidas por velas, ventos e bancos de areia,
pela empresa mãe. Deduz-se daí, pelas receitas das ferrovias que cortavam os caminhos de ferro trifurcavam-se em Campos dos Goytacazes, planície
e se entrecruzavam em Campos, pelo transporte de múltiplas mercadorias, espremida entre o mar e elevações irregulares ao seu redor.
sob a liderança do café, que o desempenho dessas empresas se valia, em A integração promovida pelas ferrovias, sob as quais Francisco Ferreira
grande parte, do transbordo das toneladas de produtos “em trânsito”, trazi- Saturnino Braga tinha alguma ingerência, trouxe para Campos a centrali-
dos de áreas contíguas a Campos, incluindo àqueles trazidos das províncias dade das trocas regionais. Há muito, desde a década de 1850, a cidade e
vizinhas. A estação terminal da Estrada de Ferro Santo Antônio da Pádua seus representantes políticos demonstravam uma pretensão inequívoca em
ficava em Miracema, área fronteiriça com a Província de Minas Gerais, usufruir de certa autonomia, consubstanciada pelo seu papel econômico. O
abrangendo localidades conhecidas hoje como Palmas, Laranjal, Mar de primeiro passo seria juntar em uma só unidade política, a cartografia que
Espanha, Leopoldina, Pirapetinga, Além Paraíba entre outras. Junto com as envolvia as terras ribeirinhas aos rios Paraíba, Pomba, Itabapoana, Muriaé,
estações de Patrocínio, São Paulo do Muriaé e Tombos do Carangola, ramais Carangola e Itapemirim. Se o projeto político de fundar a província de
da Estrada de Ferro Campos-Carangola, que chegariam a Minas Gerais, Campos dos Goytacazes esvaiu-se no tempo, os negócios e a fortuna de
mais a Estação de Santo Eduardo, que esbarrava nos limites com a Província Francisco Ferreira Saturnino Braga riscaram cada quilômetro dessa utopia.
do Espírito Santo, fechava-se um circuito ferroviário que encontrava o seu
ponto de magnetismo em Campos para depois seguir para Macaé. A Estrada
fortuna
de Ferro Macaé-Campos foi inaugurada em junho de 1875, com um trajeto
de 104 quilômetros do porto de Imbetiba à estação da Coroa, a 500 metros Maria Isabel Marques Braga e Francisco Ferreira Saturnino Braga faleceram
do centro de Campos. Para João Alvarenga, a cidade de Campos chegara em datas próximas, ela em 1888 e ele um ano depois. O inventário dela foi
quase à condição de um posto “exclusivo intermediário na exportação e aberto em 12 de abril de 1888, ficando Saturnino Braga como inventariante
importação de gêneros de nosso e circunvizinhos municípios”.37 dos bens até a sua morte. A avaliação dos bens foi assentada em 14 de maio de
Esse xadrez ferroviário, cujo eixo de integração localizava-se em 1888, um dia depois da abolição, o que explica a omissão de qualquer escrava-
Campos, tornara-se multimodal lançando-se das “raias de Minas” até o ria em sua propriedade. No inventário, consta a declaração de que os dois, em
comum acordo, entregaram aos seus herdeiros, como adiantamento de legí-
36 O trecho entre São Fidelis e Santo Antônio de Pádua deriva da Lei Provincial nº 1.574 de 31 de outu- tima, a cada um dos onze filhos a quantia de 88:754$274, em bens e dinheiro,
bro de 1871, com concessão por trinta anos. perfazendo um total de 976:275$014, “metade justa dos bens que possuía o
37 ALMANAK... DE CAMPOS... PARA 1881. Campos: Typ. do Monitor Campista, 1881. 366 p. Organização
João de Alvarenga. 38 ALMANAK... DE CAMPOS... PARA 1885.

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casal”. Desfeitos da metade de seus bens, inventário do casal registrou um decomposição de bens
patrimônio que chegara a 892:330$000. Logo, somadas as duas partes, a
Bens Valor %
fortuna considerável de Francisco Ferreira Saturnino Braga e de sua esposa
somaria um monte-mor considerável de 1:868.605$014, ou seja, 1.868 contos. Dinheiro 162:710$000 22,00
Em primeiro lugar, gostaríamos de analisar a fortuna de Saturnino Imóveis urbanos (1 no Rio e 106 em Campos) 435:200$000 58,86
Braga considerando os bens do inventário, bastante significativos para per- Imóveis rurais, benfeitorias e 123 escravos 135:000$000 18,26
ceber a metamorfose dos capitais do empreendedor campista. Os bens dei- Participações societárias na Estrada de Ferro Campos Carangola 6:360$000 0,88
xados pelo casal mostram, com bastante evidência, que Francisco Ferreira
Total 739:270$000 100,00
Saturnino Braga havia se transformado em um empresário capitalista de
primeira grandeza. Para melhor visualizar a distribuição dos seus negócios,
decomposição dos imóveis urbanos
podemos dividir o inventário em grupos patrimoniais distintos: imóveis
urbanos, imóveis rurais, benfeitorias, animais, cana e usinas, e participa- Imóveis por faixa de preços Valor %
ções societárias. No Quadro 1, podemos perceber que a maior incidência
Acima de 10:000$000 (6, sendo 1 no Rio de 5 em Campos) 167:000$000 38,37
dos negócios de Saturnino Braga está no grupo “participações societárias”
Entre 5:000$000 e 9:999$999 (15 em Campos) 79:000$000 18,15
e no grupo “imóveis urbanos”, ficando por último o grupo “imóveis rurais,
benfeitorias, animais, canas e usinas”. No Quadro II, fica caracterizado o Até 4:999$999 (87 em Campos) 189:200$000 43,48

impulso pela aquisição de imóveis urbanos, que poderiam estar sendo uti- Total 435.200$000 100,00
lizados, em grande parte, para locação. Somente em Campos eram 29 imó-
veis. No Quadro III, representado pelo mais baixo percentual de patrimônio decomposição dos imóveis rurais, benfeitorias e escravos
deixado por Saturnino Braga, chama a atenção o valor imobilizado em ter-
Descrição Valor %
ras, usinas e seus equipamentos, sem maior relevância para a área plantada
e a produção de açúcar estimada (15 contos). A criação de gado desponta Fazenda Santana, benfeitorias e 59 escravos (1/2) 45:000$000 33,00
como a principal atividade nas fazendas. No quadro IV, da participação Fazenda Velha, benfeitorias e 64 escravos (1/2) 90:000$000 67,00
de sociedades anônimas ou não, concentra-se a espinha dorsal dos investi- Total 135:000$000 100,00
mentos de Francisco Ferreira Saturnino Braga, com 58% do seu patrimônio
investidos na indústria, 24% em ferrovias e 18% em bancos e seguradoras.
bens de posse do casal
partilha de parte dos bens realizada em 5 de julho de 1886 inventário de maria isabel marques braga (14/5/1888)

Para cada um dos onze filhos, coube a quantia de 65.352$000, com exceção decomposição dos bens
de um deles a quem coube 20.000$000 a mais, como compensação sobre a
partilha das ações da fábrica de tecidos. Nesse sentido, o testamento perfaz Patrimônio Valor %
739:270$000. No inventário de 1888, há uma observação de que teria sido Imóveis urbanos 304:500$000 34,12
distribuído a cada herdeiro, por antecipação no testamento, a quantia de Imóveis rurais, benfeitorias, animais, cana e usinas 155:980$000 17,48
88:752$274, o que resultaria num total de 976:275$014. Portanto, o que foi Participações societárias 48,40
431:850$000
antecipado pelo testamento difere do total informado no inventário, num
total de 237:005$014. Total 892:330$000 100,00

520 521
imóveis urbanos por concluir

Imóveis por faixa de preços Valor % Quem seria Francisco Ferreira Saturnino Braga? Sua trajetória de homem
de negócios aponta possibilidades distintas de interpretação. Pode ser visto
Acima de 10.000$000 – 3 imóveis em Campos e 4 na Corte 205:500$000 67,48
como um agente indutor do desenvolvimento econômico como imperativo
Entre 5:000$000 e 9:999$999 – 9 imóveis em Campos 63:300$000 20,78 da mudança, percebido como o empreendedor shumpteriano, cujas quali-
Até 4:999$999 – 17 imóveis em Campos 35:700$000 11,74 dades aparecem em raras pessoas, atribuídas do processo de inovação e da
capacidade transformadora capitalista no século XIX. Por outro lado, sua
Total 304:500$000 100,00
riqueza poderia ser explicada por constituir-se, se assim fosse, membro de
uma fração da classe senhorial, enriquecido pela renda obtida da explo-
imóveis rurais, benfeitorias, animais, cana e usinas ração da grande propriedade, seja pelo uso do trabalho escravo, seja pela
apropriação de parte da produção de lavradores e arrendatários, mantidos
Fazendas; usinas e canas; e animais Valor %
sob as relações de produção pré ou não capitalistas. Contudo, creio que a
Fazendas Velha e Santana e benfeitorias (1/2) 85:265$000 54,66 mais adequada das interpretações seria aquela que aposta na recriação per-
Usinas c/ todo equipamento e safra de cana (presente e futura) 45:803$000 29,36 manente das fortunas no espaço da economia de mercado, cuja atividade
econômica move-se a partir da produção mercantil para integrar-se ao
Animais diversos, incluindo bovinos (802 cabeças) 24:912$000 15,98
capitalismo. Daí o recurso a Braudel, sem dispensar a possibilidade e o cui-
Total 155:980$000 100,00 dado em desatar os rígidos fios da estrutura observando as singularidades e
particularidades inscritas na redução de escala e no recurso a trajetória dos
participações societárias agentes individuais e coletivos da história. Dessa feita, podemos interrogar
sobre a reprodução das fortunas em Campos dos Goytacazes e na sofistica-
Empresa Valor % ção dos ganhos que fazem da “crise” motor da riqueza. Quem viria depois
de Francisco Ferreira Saturnino Braga?
Companhia Tecidos Fiação Industrial Campista 250:000$000 57,89

Estrada de Ferro Campos Carangola 81:000$000 18,75

Estrada de Ferro Santo Antônio de Pádua 20:000$000 4,63

Estrada de Ferro Macaé Campos 2.300$000 0,53

Banco de Campos 56:000$000 12,99

Banco Comercial e Hipotecário de Campos 12.450$000 2,88

Cia de Seguros Marítimos e Terrestres São Salvador de Campos 2:500$000 0,58

Cia de Seguros Marítimos e Terrestres e de Escravos Perseverança 1.500$000 0,35

Companhia de Seguros Prudente (Rio de Janeiro) 4.600$000 1,06

Companhia de Navegação de São João da Barra 1:500$000 0,34

Total 431:850$000 100,00

522 523
Tortuosos caminhos: obras públicas provinciais e de gado. Seus povoadores viriam a se corresponder com a Bahia, as Minas
Gerais e o litoral.2
o difícil escoamento das mercadorias de Cantagalo, Outro ponto de povoamento foi São Vicente, fundada por Martim
Campos dos Goytacazes e Macaé para o Afonso em 1532. Cruzando a Serra do Mar, o donatário criou outra vila,
Rio de Janeiro (século XIX) depois chamada de São Paulo. A situação geográfica na bacia do Tietê e do
Paraíba do Sul favoreceu a organização das primeiras bandeiras, que mais
Ana Lucia Nunes Penha despovoaram do que povoaram, tomando de assalto as aldeias que encon-
traram pelo caminho e causando deslocamento de índios e disseminação de
doenças. A penetração pelas margens do São Francisco e por São Vicente
permitiu a proximidade entre o litoral e os chamados “sertões de dentro”.
Por volta de 1680, enquanto os conquistadores lutavam contra os índios de
Paraguaçu e Ilhéus, já haviam se formado em torno de São Paulo as vilas de
Mogi das Cruzes, Jundiaí, Taubaté, Guaratinguetá, Sorocaba e outras. Por
A colonização e penetração do território luso americano, iniciadas no esta última, alcançava-se Curitiba, nascida entre os pinheirais.
século XVI, acompanharam o povoamento, desenvolvendo-se do litoral A interiorização mais efetiva deu-se em fins do século XVII e XVIII com
para o interior. Em terras da colônia, gerações de desbravadores viriam a descoberta do ouro das Gerais, Mato Grosso e Goiás. No caso dos centros
a se embrenhar pelas matas servindo-se dos rios, “tendência de todos os mineradores, alcançados inicialmente via São Paulo e Bahia, o povoamento
povoadores”, como afirmou Capistrano. Para o autor de Caminhos anti- que deu origem a importantes vilas coloniais seguiu padrão inverso. Partiu
gos e povoamento do Brasil, além da busca de metais preciosos, também a de dentro para fora, formando um corolário de povoados estabelecidos nas
conquista do inóspito sertão, a obra bandeirante, a ação de missionário e a rotas dos tropeiros e ao pé dos caminhos por onde eram conduzidos os pre-
abertura de caminhos para a gente e o gado fizeram avançar a marcha para ciosos metais com destino ao porto do Rio de Janeiro, de onde seguiriam
o interior. Foi pelo influxo de quatro núcleos de penetração e povoamento para a metrópole portuguesa. Posteriormente, os centros abastecedores de
a partir de São Vicente, Salvador, Pernambuco e Rio de Janeiro, que se deu gado e produtos agrícolas mineiros buscariam novas rotas de saída pelo
a formação do território e da população brasileira.1 Espírito Santo, Porto Seguro e Ilhéus.
Os dois primeiros focos foram Pernambuco e São Vicente. Pernambuco As vias fluviais, subsidiadas pelas vias terrestres, cumpriram papel fun-
foi um dos pontos irradiadores da interiorização que alcançou o Ceará, damental no processo de povoamento do Brasil. Ofereceram maior segu-
Alagoas e o Recôncavo Baiano. Era a extensão de maior proximidade rança aos viajantes e exploradores que, acompanhando os cursos dos rios,
com a Europa, de onde vinham os capitais e braços para a colônia. Duarte viam reduzidos os riscos de se perderem na vastidão das matas. Também
Coelho, estabelecido em Igaraçu, na divisa com Itamaracá, fundou a vila de as estradas e vias terrestres tendiam a seguir os caminhos fluviais, fazendo
Olinda em 1537. Seus sucessores, Jerônimo de Albuquerque, Duarte Coelho muitas vezes a ligação entre os trechos de difícil navegação.
II e Jorge de Albuquerque, prosseguiram rumo ao sul, buscando o São Segundo Caio Prado, até fins do XVIII, as vias de comunicação com o
Francisco. Do confronto com os cariris, seguiu-se a pacificação no início do interior dividiam-se em quatro grupos independentes: o da Amazônia, com-
século XVIII e o domínio de grandes áreas onde se estabeleceram fazendas posto de abundante rede hidrográfica; do nordeste, com vias fluviais e ter-
restres ligando o Maranhão e Bahia; os do centro-sul, onde predominavam

1 ABREU, João Capistrano de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Nota liminar de José
Honório Rodrigues. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975. p. 29. 2 Ibid.

524 525
as vias terrestres de aproximação ente as regiões mineradoras e o litoral do No intuito de contribuir com os estudos sobre os caminhos fluminen-
Rio de Janeiro; e, por último, o do extremo-sul, mais escasso em caminhos.3 ses do século XIX, nossa análise aborda os projetos de abertura de estradas,
Ao desenvolver estudos sobre as estradas interprovinciais de Mato canais e redes de navegação voltadas para o escoamento de mercadorias
Grosso, Goiás e Minas Gerais, Viviane Morais aponta para a insuficiência das atuais áreas situadas no curso médio do Vale do Paraíba e no norte flu-
das pesquisas sobre o tema, ressaltando o papel secundário que as estradas minense. A ênfase recairá sobre os municípios de Campos dos Goytacazes,
e caminhos terrestres ainda ocupam na produção historiográfica.4 Macaé e Cantagalo e tem por objetivo apresentar um breve panorama das
Entre as décadas de 1950 e 1970, os estudos sobre economia e sociedade dificuldades encontradas pelos produtores dessas regiões para fazerem
colonial se debruçaram sobre os setores subsidiários à exportação, posto que escoar suas mercadorias em direção à Corte, principal centro consumidor
voltados para o mercado interno, concentrando-se mais naqueles voltados e exportador do Império. As duas primeiras constituem áreas pertencentes
para o abastecimento. Os setores ligados à economia mineira, notadamente à antiga Capitania de São Tomé, abandonada por Pero de Góis e depois
a produção de gêneros de subsistência, a criação e o transporte de animais por Gil de Góis, segundo donatário das terras. A capitania foi doada, em
de carga receberam maior destaque. As estradas ocuparam papel apenas 1627, por Martim de Sá, governador do Rio de Janeiro, aos chamados Sete
coadjuvante na maior parte daqueles estudos, uma vez que as ênfases esti- Capitães, em retribuição aos serviços prestados à Coroa quando da expul-
veram no comércio de tropas, na organização das atividades econômicas são dos franceses do Rio de Janeiro. Estes efetuaram o reconhecimento das
integradas e interdependentes intra e inter-regionais, na ação de comer- terras recebidas marchando de Cabo Frio até as proximidades da Lagoa
ciantes, tropeiros e peões, e na arrecadação de impostos, entre outros.5 Feia e do Paraíba do Sul. Ocuparam e desenvolveram a região, introduzindo
Os Relatórios de presidentes de província, Anais da Câmara dos o gado e as lavouras de cana.7
Deputados, Relatórios de ministros do Império e documentos cartográficos, Campos dos Goytacazes, tornada cidade em 1835, destacava-se desde
entre outros, fornecem subsídios inestimáveis para o estudo dos caminhos fins do século XVIII pela produção canavieira dominante, secundada pelas
internos e de integração entre as diversas áreas econômicas brasileiras. lavouras de alimentos e de café. Cortada pelo rio Paraíba do Sul e seus afluen-
Estudos como os de Maria de Fátima Gouvêa, Miriam Dolhnikoff, Viviane tes, a terra campista se beneficiou das vias fluviais e lagoas. Graças a elas,
Alves de Morais, Adriano Novais, Weder Ferreira e outros trazem em manteve contato com os municípios vizinhos fluminenses e com as provín-
comum o mosaico de questões que afligiram as administrações das várias cias de Minas Gerais e do Espírito Santo. Na obra intitulada Memória topo-
províncias do Império quanto ao melhoramento, modernização e integra- graphica e histórica sobre os Campos dos Goitacases, escrita em 1819 por José
ção dos caminhos.6 Carneiro da Silva, importante fazendeiro e eminente líder político regional,
encontramos descrições do relevo e potencial hídrico da região. O rio Paraíba,
principal artéria em torno da qual se desenvolveu a terra goitacá, nascia na
3 PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense, 2008. p.
235-263. Serra da Bocaina, capitania de São Paulo, como informa Carneiro, passando
4 MORAIS, Viviane Alves de. Estradas interprovinciais do Brasil Central: Mato Grosso, Goiás, Minas pela cordilheira das serras de Parati, ganhando as proximidades de Mogi
Gerais. 2010. Dissertação (Mestrado em História Econômica) – Faculdade de Filosofia, Letras e
das Cruzes e Vila de Jacareí, São José e Tabaté, para aproximar-se das Vilas
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
5 Ibid., p. 23-28.
de Pindamonhangaba e Guaratinguetá. No seu percurso, dividia a fregue-
6 GOUVÊA, Maria de Fátima S. O império das províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro: sia de Piedade e passava pela freguesia de Campo Alegre para mais adiante
Civilização Brasileira, 2008; DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no receber o rio Piraí. Dali ficava inavegável, recebendo grandes cachoeiras e o
Brasil. São Paulo: Globo, 2005; NOVAIS, Adriano. Caminhos antigos do território fluminense.
Instituto Cidade Viva. Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: <http://www.institutocidadeviva.
Paraibuna, antes de chegar a Campos, onde desaguava no oceano pela Vila de
org.br/inventarios/sistema/wp-content/uploads/2008/03/textos_autorais_sem_correcao.pdf>;
SILVA, Weder Ferreira da. Colonização, política e negócios: Teófilo Benedito Ottoni e a trajetória 7 GABRIEL, Adelmo H. Daumas; LUZ, Margareth da (Org.). Roteiro dos Sete capitães: documentos
da Companhia do Mucuri (1847-1863). 2009. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de inéditos. Transcrição e edição do documento Carlos Roberto B. Freitas, Fabiano Vilaça dos Santos,
Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2009. Mimeo. Paulo Knauss. Notas explicativas Arthur Soffiati. Macaé: Funemac Livros, 2012.

526 527
São João, atual São João da Barra. Outro rio, o Muriaé, desaguava no Paraíba brasileiras passaram a fazer parte do projeto de grupos de expedicionários
e possuía nas suas margens bons engenhos. Também o Cabapuana, no limite portugueses empenhados em conhecer o território e as populações situa-
de Campos dos Goytacazes com a capitania do Espírito Santo, desaguava no das no seu interior. Rios, estradas e canais navegáveis tornaram-se pontos
mar, onde fazia barra. Quase no meio de Campos estava a Lagoa Feia, que de partida para integrar e conhecer a colônia, o que incentivou projetos de
recebia as águas do Macabu, do Ururaí e de outros muitos córregos.8 melhoramentos das vias de comunicação, embora com resultados insuficien-
Igualmente identificada como área de produção canavieira, sobretudo tes. Uma das explicações para o estado precário dos caminhos coloniais, já
em terras da baixada, estava a vila de São João de Macaé, criada em 1813 e apontada por Holanda e outros autores, consistia na política de adminis-
erigida a cidade de São João Batista de Macaé em 1846. Voltada para o corte tração adotada pela Coroa em relação às áreas de mineração. Durante boa
de madeira, a produção de açúcar, alimentos e café, destacou-se ainda por parte do período aurífero houve o controle metropolitano sobre as vias de
possuir um bom porto. Pelo seu principal rio, o Macaé, trafegavam curve- acesso à região das minas, ocorrendo proibição para abertura de estradas e
tas, algumas embarcações maiores e lanchas transportando madeira, café caminhos, notadamente nas Gerais. Entre as provisões baixadas com esse
e açúcar, que seguiam para o Rio de Janeiro. Outro rio, o São Pedro, vinha fim destacavam-se:
desaguar no Macaé e suas margens eram povoadas por fazendas e matos de
[...] a Carta Régia de 27 de abril de 1727, proibindo a abertura de estradas para
onde se tirava muita madeira.9 Minas e Mato Grosso; a Carta régia de 15 de setembro de 1730, proibindo
As terras mais tarde denominadas de Cantagalo, de ocupação mais tar- estradas novas para São Paulo e Minas; a Ordem Régia de 18 de novembro
dia se comparadas às do norte fluminense, afirmaram-se na produção de de 1733, mandando trancar os rios Caeté e Doce; e sobretudo o Alvará de 23
gêneros de abastecimento, por indução da Coroa, no início do XIX, vindo de outubro de 1733, cominando pena aos que ousassem penetrar nas “Arias
Prohibidas” construídas pelos Sertões do Leste e do Macacu; a Carta Régia de
a transformar-se, em pouco mais de três décadas, numa importante área
8 de fevereiro de 1730, que interditava a abertura de estradas nas imediações
cafeeira fluminense e ponto de irradiação daquela cultura para outras áreas. de minas já reveladas e o descobrimento de novas jazidas sem prévia autori-
No último quartel do século, na marcha para noroeste, a cafeicultura se zação; e o Alvará de 3 de dezembro de 1750, que, além de instituir o confisco
expandiu em direção à serra de Itaperuna, onde atingiria seu apogeu nas do ouro apreendido em circunstâncias irregulares, estimulou o mau vezo das
primeiras décadas do século XX.10 A cultura cafeeira recolocou a necessi- delações, premiando com metade do produto arrecadado todos aqueles que
denunciassem a prática do descaminho.11
dade da abertura e melhoria dos caminhos terrestres e fluviais e atraiu para
aquelas regiões os investimentos em estradas de ferro. O controle da metrópole sobre os descaminhos teve como consequên-
cia a interdição das áreas contíguas às minas e a proibição de trilhas alterna-
os caminhos do norte e a busca do litoral tivas. Além do seu reduzido número, o mau estado daquelas vias de comu-
nicação tornavam ainda mais difíceis as viagens. Isto porque as estradas
Em fins do século XVIII, no bojo das reformas ilustradas implementadas
de chão, repletas de buraco, lama e poeira, mal permitiam a passagem de
por Pombal, as vias de comunicação interna que interligavam as capitanias
pedestres e animais de carga, transformando-se em verdadeiros atoleiros
8 Sobre o potencial hídrico da região dos Campos dos Goitacazes, ver LAMEGO, Alberto Ribeiro.
nas estações de chuvas. Independentes entre si, desarticulados e fragmen-
O homem e a restinga. 2. ed. rev. pelo autor. Rio de Janeiro: Lidador, 1974. p. 275; Id. O homem e o tados na sua maior parte, os caminhos terrestres constituíam pequenos
brejo. Rio de Janeiro. Conselho Nacional de Geografia, 1945; e também SILVA, José Carneiro da.
Memoria topographica e histórica sobre os Campos dos Goitacazes, com huma noticia breve de suas
sistemas autônomos cujas vias só viriam a convergir mediante o avanço
produções e o commercio: oferecida ao muito alto e muito poderoso Rey e senhor nosso D. João VI. da interiorização. As estradas possuíam traçados que ligavam importan-
Rio de Janeiro: Imprensa Regia, 1819. Disponível em: <http://www.general-search.net/fileinfo/gsd tes fazendas aos locais de escoamento de mercadorias, sem que houvesse,
77a6h60I0>.
9 SILVA, op. cit., p. 7-11.
10 BARTHOLAZZI, Rosane Aparecida. Os italianos no noroeste fluminense: estratégias familiares e 11 ERTHAL, Clelio. Cantagalo: da miragem do ouro ao esplendor do café. Niterói: Gráfica Erthal Ltda.,
mobilidade social (1897-1950). Rio de Janeiro: Garamonde, 2013. p. 130. 1922. p. 27.

528 529
contudo, um plano geral que as interligassem. A via marítima litorânea cos- As iniciativas em prol da melhoria dos caminhos ganhariam impulso
tumava ser a principal ligação entre elas com a chegada da família real ao Brasil, em 1808, quando foi criada a Junta
Também as vias fluviais não ofereciam melhor sorte aos viajantes, que do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação, sendo uma das suas pri-
ficavam expostos aos riscos das estações chuvosas, à sinuosidade dos rios meiras providências o estreitamento da comunicação com as Minas Gerais.
e às variações do relevo. Nas estações secas, ficavam a descoberto os leitos Outra medida tomada pelo príncipe regente foi centralizar as informações
dos rios e expostas as pedras no caminho das águas,12 o que aumentava o militares sobre o território, através da criação de um arquivo central desti-
risco dos trajetos. nado ao recolhimento de acervos como mapas, projetos e relatos geográfi-
Tampouco as viagens entre os portos brasileiros e a metrópole costu- cos resultantes das expedições realizadas e em curso.14
mavam ser mais fáceis. Em algumas épocas do ano, elas podiam se tor- Até o início do século XIX, o chamado Caminho Novo, concluído por
nar impossíveis, devido à “sazonalidade” dos ventos e correntes, o que Garcia Rodrigues Paes, em 1699, era praticamente a única ligação entre as
obrigava os viajantes a submeterem-se a um calendário marítimo preciso. Minas e o Rio de Janeiro. Além deste, outras variantes abertas por D. João
Em alguns períodos, era necessário levar em conta as condições desfavo- VI como o Caminho do Comércio, a Estrada Nova e o Caminho da Serra,
ráveis às partidas e desembarques na costa brasileira. Como afirma Filipe visavam facilitar a comunicação do litoral com o planalto, embora ofere-
Alencastro, até o advento dos barcos a vapor nos meados do século XIX, cessem pouca segurança aos viajantes.15 Contudo, a importância política e
“só as sumacas – barcaças pequenas de dois mastros – conseguiam sair da econômica da cidade do Rio de Janeiro, elevada à capital do vice-reino em
Bahia, de Pernambuco, ou mais do Sul, e bordejar na torna-viagem do Pará 1763 e à sede da Corte no Brasil, em 1808, exigiu maiores investimentos na
e do Maranhão.” As dificuldades de navegação pela costa do Brasil haviam região fluminense.
condicionado até mesmo as decisões políticas relativas à colonização, A chegada da Corte ao Brasil produziu, entre outras consequências, a
como observa o autor, a exemplo da separação entre o Brasil e o Estado do expansão dos setores ligados ao abastecimento interno, responsáveis pelo
Maranhão, em 1621, tendo por limite o cabo de São Roque, que respondia fornecimento de víveres, gado, açúcar, hortaliças, feijão, madeiras e pro-
ao quadro de ventos e marés predominantes na costa sul-americana. Para o dutos de subsistência para o Rio de Janeiro, aumentando o movimento dos
autor, o transtorno da navegação litorânea sul-americana teria sido um dos tropeiros que conduziam em lombo de animais os produtos vindos das
fatores determinantes para a criação de duas colônias distintas no espaço da mais recônditas regiões.16
América portuguesa. Até a década de 1830, esses setores mercantis haviam desempenhado
Além destes, havia outros inconvenientes impostos pela navegação à função vital no crescimento das forças produtivas em terras fluminenses,
administração portuguesa. Reclamações feitas ao Tribunal da Relação na como mostra Lenharo, sendo as estradas povoadas “principalmente para
Bahia, em 1609, acusavam as dificuldades de encaminhamento àquele tri- dar cobertura aos tropeiros e viajantes que por ali transitavam”.17 A aber-
bunal dos pleitos de outras capitanias. Também o isolamento a que estava tura, portanto, de grande parte das trilhas que foram percorridas pelo café,
submetida a região amazônica, onde só chegava de Lisboa uma embarcação deveu-se às rotas abertas para o abastecimento do mercado carioca.
por ano, havia levado o padre Antonio Vieira a concluir ser mais fácil nave-
gar da Índia a Portugal do que da missão em que estava, no Maranhão, até o 14 CHAVES, Claudia Maria das Graças. A construção do Brasil: projetos de integração da América
Portuguesa. Revista de História, São Paulo: Edusp, n. 147, p. 135-157, 2002. Disponível em: <http://
Brasil. Missionários e autoridades civis ao serem despachadas da Bahia para www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/18945>.
São Luís e Belém faziam sua primeira baldeação em Lisboa para depois 15 NOVAES, Adriano. Os caminhos antigos fluminenses. Instituto Cidade Viva. Disponível em:<http://
seguirem viagem até o Maranhão e o Pará.13 www.institutocidadeviva.org.br/inventarios/sistema/wp-content/uploads/2008/06/oscaminho-
santigos.pdf>.
12 Ibid., p. 253. 16 LENHARO, Alcir. As tropas da Moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil,
13 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico sul, séculos XVI 1808-1842. São Paulo: Símbolo, 1979.
e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 58-59. 17 Ibid., p. 29.

530 531
A expansão da economia e do território fluminense deveu-se também à – a poaia. A conquista partiu dali para o lado mineiro, com a corrente do
chegada de colonos vindos de São Paulo e Minas Gerais para o Rio de Janeiro, Paraibuna; para o lado fluminense, deu-se pelo rio Pomba e transposição
entre as décadas de 1810 e 1830, período de surgimento de novos municípios do Paraíba, denominado Porto Velho do Cunha.21
nas fronteiras do Vale, destacando-se Valença, Vassouras, Paraíba do Sul, Mais tarde, deu-se a incursão de contrabandistas na região. A existên-
Iguaçu, Itaboraí, Piraí, Barra Mansa, Mangaratiba e Município Neutro.18 cia de vias naturais e a descoberta de metais preciosos atraíram explorado-
Em 1832, Campos e São João da Barra, áreas que estavam sob a juris- res mineiros, quando já então as reservas auríferas das Minas apresentavam
dição do Espírito Santo desde 1753, voltaram a integrar o território do Rio visíveis sinais de esgotamento. Diante da suspeita de que mineiros faisca-
de Janeiro. Também Parati, desmembrado de São Paulo, foi incorporado às vam clandestinamente em terras fluminenses, por ordens do governador
terras fluminenses, em 1834. Segundo Maria Izabel Chrysostomo, através o sargento-mor Pedro Afonso Galvão de São Martinho, do Regimento de
do Ato Adicional e da Lei de 28 de março de 1835, assinada por Joaquim José Dragões de Vila Rica, conduziu a diligência na área e constatou a existência
Rodrigues Torres, “Sam Salvador dos Campos” passou a chamar-se “Cidade de um grupo de invasores na margem esquerda do Paraíba, sob a liderança
de Campos dos Goytacazes, consolidando Campos como cabeça de uma do garimpeiro português Manuel Henriques, apelidado de Mão de Luva.
nova Comarca”.19 Ciente do fato, as autoridades metropolitanas desinterditaram a área,
Nas fronteiras com Minas, os caminhos entre Cantagalo e Campos antes proibida, e ordenaram a ocupação do arraial e prisão de seu chefe.
dos Goytacazes eram frequentados por comerciantes mineiros desde fins A fim de exercer o controle e coibir as atividades auríferas clandestinas,
do século XVIII. Como aponta Chaves, esses comerciantes possivelmente o vice-rei do Brasil, Luís de Vasconcelos de Sousa foi autorizado a iniciar
desenvolviam atividades no Registro do Rio Pomba, utilizando a navegação o povoamento, concedendo terras e datas. Persistindo o garimpo clandes-
pelo rio Paraíba, principal artéria fluvial da região. Outras vias fluviais corta- tino, o governador Cunha Menezes mobilizou o regimento de dragões, que
vam a capitania mineira, como o Paraibuna, Grande, Doce, Jequitinhonha, ganhou a selva a fim de capturar os aventureiros. De acordo com relatos de
Mucuri, Pardo, São Francisco e Rio das Velhas e faziam a comunicação das contemporâneos, que mais tarde foram incorporados à história da locali-
Minas com o Rio de Janeiro, Goiás, Mato Grosso, Espírito Santo, São Paulo dade, o episódio da captura dos sitiados seria marcado por um fato curioso
e Bahia. Os pedidos pela melhoria daquelas vias eram frequentes, observa que deu nome ao arraial, pois já as tropas pensavam em regressar de uma
a autora, mencionando que desde 1799 havia apelos de moradores das pro- busca frustrada quando se ouviu o canto de um galo, denunciando a pre-
ximidades do Porto de Estrela, entre a Serra da Boa Vista e o Registro de sença humana na mata, o que permitiu a captura de Mão de Luva e seus
Paraibuna, para que fossem melhoradas.20 companheiros. Afastada a ameaça, o vice-rei impetrou, em 1786, medidas
A região centro-norte da província fazia parte dos chamados “sertões de incentivo às lavouras na região através de concessões de sesmarias nos
de Macacu” e começou a ser oficialmente ocupada a partir de 1781, com o rios Negro e Grande.
estabelecimento dos capuchinhos italianos Vitorio de Cambiasca e Angelo As iniciativas particulares também desenvolverem a agricultura em
de Lucca. A fixação dos primeiros colonos na região dera-se com a expe- Cantagalo, levando à criação do povoado em 1802. Naquele ano, a popula-
dição de 1746, que atingiu as cabeceiras do Rio Doce, pacificando os índios ção já chegava a 869 pessoas. Entre outras medidas, foi incentivada a ligação
xopotó, com quem os aventureiros desenvolveram intenso tráfico de ervas entre as Minas e o Rio de Janeiro através do Rio Doce, como alternativa ao
difícil transporte terrestre de gêneros. Também a navegação pelo rio Mucuri,
18 CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Atlas histórico do estado do Rio de Janeiro, 1984, p. 93 (mimeo)
apud GOUVÊA, 2008, p. 36. rio Pardo e o Jequitinhonha comunicaria as Minas com o sul da Bahia.
19 CHRYSOSTOMOS, Maria Isabel de Jesus. Uma Veneza no sertão fluminense: os rios e os canais em As estratégias de incentivo à agricultura lograram êxito. Nas palavras
Campos dos Goitacazes. História Revista: Revista da Faculdade de História e do programa de Pós- de Erthal:
Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, Goiás, v. 14, n. 2, p.5, 2009. Disponível
em: <www.revistas.ufg.br/index. php/historia/article/view/9558>.
20 CHAVES, 2002, p. 79. 21 ERTHAL, 1922, p. 19.

532 533
[...] Cantagalo, cujos arredores foram totalmente tomados pelos cafezais, consti- Outra, construída nos anos 1830, ligava Cantagalo a Macaé e foi con-
tuiu-se no centro de irradiação desta cultura. Dali é que ela se expandiu para as tratada pela província Caldas Viana, em 1836. Avaliada em 49:345$880, a
freguesias de Santa Maria Madalena, São Francisco de Paula, Carmo, N. S. Da
estrada era mencionada na década de 1840 como ponto de estabelecimento
Conceição das Duas Barras, Santa Rita do Rio Negro, Sumidouro e São Sebastião
do Alto, ensejando ainda o desenvolvimento de redutos então apáticos como de barreiras para os produtos que passariam pelo canal Campos-Macaé. Seu
Macuco, Boa Sorte, Barra Alegre e São João Batista da Ventania (atual Trajano melhoramento na década de 1850 ficou a cargo do cidadão Manuel Antunes
de Morais), que se transformaram em outros tantos centros produtores.22 Moreira, e incluía obras no aterrado do Tipotá, na serra de Macabu.25 Por
essa estrada descia a produção serrana, sobretudo de café, que chegava ao
O viajante e mineralogista John Wave, que visitou o Arraial de
Porto de Imbetiba, em Macaé, e de lá partia para o Rio de Janeiro. O porto
Cantagalo em 1809, admirava-se de que a região tão perto da sede do
das Caixas, conhecido nos anos 1850 por sua importância, teve sua expor-
governo, fosse tão pouco conhecida por aquelas autoridades. O inglês sur-
tação prejudicada entre outras razões pelo mau estado das estradas que lhe
preendeu-se com a vitalidade e robustez dos homens da serra, comparada
davam acesso e pelo uso da Estrada Cantagalo a Macaé.
aos da baixada. A fecundidade do solo era complementada pela criação de
Segundo Erthal, por volta de 1850, não havia recanto do território
animais que auxiliavam no transporte da produção de milho, feijão, banha,
cantagalês que não fosse invadido pelo café, cultivado naquele ano em 111
ovos, galinhas, madeira e fumo. No lombo de burros, os produtos da serra
fazendas, número que se elevou, em 1860, para 733, conforme Almanak
desciam até Porto das Caixas, perto da vila de Macabu, de onde eram trans-
Laemmert. Nos vales do rio Negro, Paquequer e Ribeirão das Areias, os
feridos para faluas e levados até a Guanabara. Os balaios que subiam de
cafezais proliferaram encabeçando a produção no setor oriental da provín-
volta a serra conduziam os produtos acabados que faltavam no interior, tais
cia.26 Rodrigues Torres, em relatório apresentado à assembleia provincial
como sal, tecidos, farinha de trigo, ferragens, equipamentos para beneficia-
fluminense em 1836, já destacava a importância das lavouras de Cantagalo
mento do café e outros, instituindo a ligação entre o Rio e a região interio-
ao mencionar a fertilidade e riqueza do seu solo e o “progressivo cres-
rana de Cantagalo.23
cimento que ali vai adquirindo a cultura do café”, motivos que, além de
O arraial foi erigido por D. João VI em vila de São Pedro de Cantagalo,
outros, eram suficientes para “facilitar os transportes, e comunicações hoje
em 1814, ano seguinte da criação da Vila de São João de Macaé. A aber-
tão difíceis com aquela parte da província”.27
tura de caminhos internos que levassem a Macaé, onde existia bom porto,
Indicava o mesmo relatório quatro possibilidades de caminhos a serem
levou à construção de uma estrada no início da década de 1820. Os irmãos
abertos para o transporte do café cantagalês, embora nenhum deles apresen-
Carneiro da Silva, da freguesia de Quissamã em Macaé, haviam proposto a
tasse condições satisfatórias. Dois deles iam dar na baía de Niterói, outro na
abertura de uma estrada comunicando os habitantes da vila de São Salvador
vila de Macaé e o quarto na aldeia de São Fidélis. O primeiro atravessava a
com os da Corte. Informa Alberto Lamego que onde existia uma trilha velha
Serra da Boa Vista, de difícil trânsito, passando por lugares pantanosos até,
e intransitável em virtude das enchentes dos rios Ururaí e Macabu, foi feito
finalmente, chegar ao Porto das Caixas; o segundo seguia pela vila de Magé e
um aterro para sua construção, acompanhado de 13 pontes, ligando Campos
não oferecia melhores condições aos viandantes. Ambos distavam 24 léguas,
e Niterói, com escala em Macaé. A estrada foi inaugurada em 1826, mas pas-
havendo necessidade de maiores exames para a administração provincial
sados dez anos, com a “falta de conservação e a obstrução das valas, o seu
decidir qual seria preferível. Outro caminho, que levava até Macaé, distava 16
leito foi transformado em extenso pantanal, cheio de atoleiros, tornando-se
intransponível”.24
25 FERRAZ, Luiz Pedreira do Coulto. Relatório apresentado ao exmo vice-presidente da província do Rio
22 Ibid., p. 180. de Janeiro... Rio de Janeiro: Typ. do Diário de A. & L. Navarro, 1853. p. 71.
23 Ibid., p. 96-97. 26 Ibid., p. 181.
24 LAMEGO FILHO, Alberto Ribeiro. Macaé à luz de documentos inéditos. Anuário Geográfico do 27 TORRES, Joaquim José Rodrigues. [Sem Título]. Rio de Janeiro: [s.n.], 1 mar. 1836. p. 24. Disponível
Estado do Rio de Janeiro (11), 1958, p. 102. em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u814/index.html>.

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léguas e atravessava uma áspera picada de “serranias sem culturas” até chegar Em função dos prejuízos que recaíam sobre o transporte da produção
a uma planície “muito paludosa” e de difícil transito no tempo das águas. açucareira fluminense “pelos baixios de São Tomé e as ventanias da foz do
Apenas a estrada que ia por São Fidélis, de extensão igual a de Macaé, Rio Paraíba”32 foi idealizada, nos anos 1830, a construção do canal Campos
era aberta por bons solos, menos ásperos nas subidas e descidas, apresen- a Macaé. Certamente, com a criação da província do Rio de Janeiro e o
tando condições favoráveis ao transporte do café. Não fosse pela “dificul- funcionamento da Assembleia Provincial, a ideia do canal arregimentou
dade da navegação de Campos”, aquele seria o caminho “mais fácil para os adeptos e seus defensores puderam planejar a realização da obra.
habitantes do norte de Cantagalo”.28 Entre eles estava José Carneiro da Silva, barão e depois visconde de
Para os campistas, apesar de possuir bons cursos d’água, o problema da Araruama, renomado chefe político regional que havia aberto a estrada
navegação não era novo. A falta de uma saída para o mar, livre de corredeiras para a ligação dos dois municípios na década de 1820, como mencionado
e ventos desfavoráveis tornava irregular o transporte de cargas pelo Paraíba acima. Atribui-se a ideia do canal ao campista José Joaquim da Cunha
até o porto situado na vila de São João da Barra, o que representava sério obs- de Azeredo Coutinho, nomeado bispo de Olinda em 1794, e de Elvas em
táculo ao escoamento da produção. Quanto às vias de comunicação terrestre 1808. O envio à Assembleia fluminense de uma representação da Câmara
que ligavam a baixada campista aos portos de Macaé e do Rio de Janeiro, de Campos, em 1835, solicitando a construção de uma ponte sobre o rio
eram tomadas por frequentes alagamentos, como apontado por Sheila de Paraíba, uma estrada até São João Del Rei (Minas Gerais) e canais navegá-
Castro, problema com os qual os campistas se deparavam desde a segunda veis na região, podem ser indicativos da estreita relação entre os interesses
metade do XVIII, quando se expandiu a lavoura canavieira na região.29 campistas e mineiros e da persistência da ideia do canal entre os campistas.
A questão envolvendo uma saída para o mar permanecia de grande Sua realização ficaria a cargo do inglês H. Freese que obtivera o privi-
interesse dos campistas nas décadas de 1830 e 1840, sobretudo pela expan- légio para a construção e se pusera a formar a companhia reunindo capitais
são das lavouras ao norte e centro-norte da província. Era difícil a navega- obtidos na Inglaterra. O negociante era sócio da casa Freese Muter & Cia
ção pelo rio Paraíba em algumas épocas do ano, quando afirmavam não e estava estabelecido na Corte desde 1808. Entre seus empreendimentos
terem condições para vencerem a direção dos ventos que sopravam no sen- mais recentes estava a formação de uma companhia para navegação do Rio
tido contrário da navegação, sendo uma das soluções para o problema o Doce.33 Além do canal, o inglês faria a abertura da estrada de Cantagalo e
uso de barcos a vapor.30 Assim o jornal O Campista afirmava, em 1834, que: a construção de uma ponte sobre o rio Paraíba. Afirmava o Paulino J. S de
Sousa, em 1836, que a realização das referidas obras traria “incalculáveis
Ninguém ignora que a barra de Campos é tal, que os barcos depois de carrega-
dos precisam para saírem de vento sul, ou sudoeste e depois de saírem, de nor- vantagens para os distritos de Macaé, Cantagalo e Campos”.34 Entretanto, a
deste para seguirem viagem para o Rio de Janeiro: e sendo este último constante companhia não se efetivou e a construção do canal ficou a cargo da admi-
nesta costa em certas épocas do ano, sucede muitas vezes estarem os mesmos nistração provincial fluminense.
carregados três e mais meses sem poderem seguir viagem com grave prejuízo Para tanto, o governo provincial obteve, através da Lei no 333 de 11 de
do comércio, e da lavoura, como ainda no ano passado todos experimentamos.31
maio de 1844, o crédito extraordinário de 1.432:000$000, concedido pelo
28 TORRES, 1836, p. 17. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u814/0000001.html>. governo central para aquela construção. Deveria o canal fazer a ligação
29 FARIA, Sheila de Castro. Terra e trabalho em Campos dos Goytacases. 1986. Dissertação (Mestrado entre aqueles dois municípios, partindo da Lagoa do Ozório, na cidade de
em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1986. p. 28. Campos, até a foz do rio Macaé, de onde as mercadorias seriam conduzidas
30 Até 1850 não havia em Campos navegação a vapor. O inglês Alexandre Davison foi quem primeiro
até o pequeno porto de Imbetiba, na mesma vila, e postas nas embarcações
a construiu. Em 20 de junho de 1852, a barca “Goitacaz” fez o primeiro trajeto entre Campos e São
João da Barra. Em 1853, o inglês construiu outro vapor, o “Rainha do Parahyba”, que veio a explodir
em janeiro de 1854 no regresso de São João da Barra. SOUSA, Horácio. Ciclo áureo: história do 1º 32 ALENCASTRO, 2000, p. 61.
centenário da cidade de Campos (1835-1935). Campos: Artes Gráficas, 1935. p. 68. 33 O CAMPISTA, v. 1, n. 86, p. 3, 19 nov. 1834.
31 O CAMPISTA. Campos: Typ. Patriótica, v. 1, n. 15, p. 1, 22 fev. 1834. Biblioteca Nacional do Rio de 34 SOUSA, Paulino José Soares. Relatório... Rio de Janeiro: [s.n.], 18 out. 1836. p. 53. Disponível em:
Janeiro. <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u815/>.

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que as conduziriam até o Rio de Janeiro. Outro trecho da obra deveria pros- contínua e completa até o porto de Imbetiba foi mais exceção do que regra.37
seguir desta ultima localidade até o Porto das Caixas ou outro ponto nas Alternativas de ligação daquelas áreas com Rio de Janeiro, no entanto, já
imediações da baía de Guanabara, aproveitando os cursos dos rios Macaé, eram ensejadas desde os anos de 1860.
Macabu, Lagoa de Imboassica, cabeceiras do rio das Ostras, São João,
Lagoa de Juturnaíba, Bacachá Grande, Madre de Deus, rio Bonito, Porto estradas de ferro fluminenses e a marcha do café
das Caixas, rio Macacu e outras águas que encontrasse.35 Esta etapa, porém,
não foi realizada. Dois grandes projetos de estrada de ferro para o norte e centro-norte flu-
As obras foram dirigidas por José Carneiro da Silva, deputado da minense foram discutidos na Assembleia Provincial do Rio de Janeiro nos
Assembleia Legislativa da província do Rio de Janeiro nas legislaturas anos 1860: a ligação entre o Porto das Caixas e Cantagalo, já defendida pelo
entre 1835 a 1839 de 1844 a 1847. José Carneiro recebeu o título de barão de barão de Nova Friburgo desde a década de 1840, e a ligação entre Niterói e
Araruama em 1844 e de visconde de mesmo título em 1847, ocasião em que Campos, posta em andamento apenas na década de 1860. Esta última teve o
S.M.I. visitou o norte da província e inspecionou pessoalmente as obras do trecho Macaé-Campos inaugurado em 1875, o que propiciou, finalmente, o
canal em construção. escoamento regular de mercadorias até o porto de Imbetiba, como deseja-
Iniciadas em 1845, as obras entre Campos e Macaé duraram quase trinta vam os fazendeiros regionais desde a década de 1840.
anos, considerando-se a inauguração do canal em 1872. Dois anos depois, os A concessão de uma estrada de ferro ligando o Porto das Caixas a
problemas da obra eram mencionados pelo presidente de província Manuel Cantagalo foi idealizada pelo visconde de Barbacena e teve seus estatutos
Freitas Travassos. O canal que estivera, desde 1871, com a empresa privada aprovados por decreto em 23 de agosto de 1857. Como não se efetivasse a
União Industrial, com subsídios da província, voltava a ser administrado por companhia, a concessão foi transferida ao português Antonio Clemente
ela. O relatório apresentado pelo engenheiro fiscal, o sr. Luiz Raphael Vieira Pinto, barão de Nova Friburgo, e seus sócios: os negociantes da Praça do Rio
Souto, mencionava, em 1874, antigos problemas em relação à obra, pois: de Janeiro, Cândido José Rodrigues Torres, 1º barão de Itambi, e Joaquim
José dos Santos Junior.
[...] o canal iniciado há quase trinta anos, orçado em 1.432 contos ainda não Fazendeiro de café e primeiro proprietário do casarão localizado no
se acha concluído, apesar de ter consumido mais do dobro daquela quantia e
das obras terem sido executadas já por administração, já por empreitada, já, Catete, que abrigou os presidentes da República do Brasil até a construção
enfim, por empresas e companhias auxiliadas pela Província. O traçado e aber- de Brasília, Clemente Pinto foi um dos acionistas da Caixa Econômica na
tura não foi executado em conformidade com um plano baseado em estudos década de 1860 e esteve entre os negociantes mais ricos do Império. Até
completos e detalhados. Não houve precedência de planta, nivelamento e per- o fim do Segundo Império, era dono de cerca de 21 fazendas distribuídas
fis transversais cuidadosamente levantados, nem de um exame detido sobre a entre o vale do rio Negro e Nova Friburgo.38 Também foi sócio da empresa
importância, natureza e regime dos mananciais de alimentação do canal [...]36
organizada pelo visconde de Mauá, a Imperial Cia de Navegação a Vapor e
Obviamente, as expectativas regionais de escoamento das mercadorias Estrada de Ferro Petrópolis (1854) e outras.
pelo canal, vindas de Cantagalo, Campos dos Goytacazes, sul de Minas e A construção da linha férrea viria, pois, descongestionar o trans-
outras localidades do norte e centro-norte da província com destino ao Rio porte feito pela velha estrada, substituindo “o prestino processo de tropas
de Janeiro deixaram a desejar. Sobretudo os problemas técnicos, a reduzida de muares, que levavam o produto da lavoura, acondicionando em sacos,
água para alimentação em estações mais secas, ou seu excesso, figuraram balaios e caixas, após enormes e dolorosas caminhadas através dos sertões
entre as principais causas do malogro do canal. Em vista disso, a navegação 37 PENHA, Ana Lucia Nunes. Nas águas do canal: política e poder na construção do canal Campos-
Macaé (1835-1875). 2012. Tese (Doutorado em História Econômica e Social) – Programa de Pós-
35 Ibid., p. 44. Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012.
36 TRAVASSOS, Manuel José de Freitas. A7-5-6. In: ___. Relatório... Rio de Janeiro: Typographia do 38 FERREIRA, Acácio Dias. Terra de Cantagalo: subsídios para a história do município de Cantagalo.
Apostolo, 1874. Niterói: Diário Oficial, 1942. p. 188.

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do Macacu até Porto das Caixas”.39 A companhia recebeu garantia de juros A inauguração da ferrovia remodelou o perfil do município de Macaé,
de 1/3 de suas ações pelo governo e a construção da ferrovia teve início em fazendo aumentar o número de casas comerciais, como é possível verificar
1859. Seu percurso foi dividido em três seções, cujos contratos foram feitos pelas indicações no Almanak Laemmert, referente à freguesia de São João
separadamente. O primeiro trecho, com 39 quilômetros de extensão, ligava Batista (cidade de Macaé), onde estava sediado o porto. Comparando os
Porto das Caixas a Cachoeira de Macacu; o segundo com 35 quilômetros anos de 1875 e 1880, verificamos, para este último, o aumento do número
entre Cachoeira e Nova Friburgo e o terceiro distando 70 quilômetros de de capitalistas/proprietários existente na cidade no ano de 1880. Em 1875,
Nova Friburgo a Macuco.40 às lojas de alfaiate, padaria, açougue, barbeiro, sapateiro e outras, foram
Devido ao falecimento de Antonio Clemente Pinto, em 1869, os outros adicionadas novas casas comerciais a exemplo das lojas de fazendas e arma-
dois trechos foram assumidos por seu filho, o bacharel Bernardo Clemente rinho, molhados e louças, secos e molhados, botequins e casas de pasto,
Pinto Sobrinho. Mais tarde, ele recebeu o título do pai. Outras conces- trapiche, além de fábrica de cal e fábrica de cigarros.
sões provinciais garantiam a extensão das linhas como a continuação de Evidenciava-se em Campos, naquelas décadas, um quadro de notável
Cantagalo à Vila Nova (atual Itambi), de Porto das Caixas a Niterói. crescimento econômico que coincidia com a expansão das linhas férreas.
Na década de 1870, outras ferrovias ficavam autorizadas a cruzar as ter- Fazendeiros e negociantes “de fora” dos circuitos regionais, mas também
ras fluminenses. O governo provincial havia autorizado, em 1871, o funcio- os residentes, enxergavam ali oportunidades promissoras de investimentos.
namento e aprovação dos estatutos da Estrada de Ferro de Macaé a Campos Foi o caso do português Francisco Ferreira Saturnino Braga, que amea-
e também da 1ª seção da Estrada de Ferro de Niterói a Campos, além do lhou fortuna com investimentos em ferrovias e indústrias em Campos.
ramal de Rio Bonito. Foram ainda firmados acordos com outras companhias Como mostra Walter Pereira, o abastado fazendeiro de açúcar investiu seus
como a Ferro Carril Nictheroyense – a quem pertencia o trecho de Vila Nova capitais em usinas, presidiu a Companhia de Fiação e Tecidos Industrial
a Niterói – e a Estrada de Ferro de Cantagalo – dona do trecho de Vila Nova Campista, atuou em negócios bancários detendo participações no Banco de
Campos e no Banco Commercial e Hypotecário de Campos e foi acionista e
e Porto das Caixas – a fim de definir o uso compartilhado de alguns trechos.
presidente da Estrada de Ferro Campos-São Sebastião, e da Estrada de Ferro
Iniciados os trabalhos, foi inaugurada em agosto de 1874 a 1ª seção da
do Carangola, que ligou Campos ao noroeste fluminense, sul de Minas e às
estrada de ferro Macaé a Campos, compreendida entre Macaé e Carapebus.
fronteiras do Espírito Santo. O capitalista possuía também ações da Estrada
Seus cessionários, o engenheiro civil Andrew Taylor, o negociante portu-
de Ferro de Santo Antônio de Pádua e da Estrada de Ferro Campos-Macaé.
guês José Antonio dos Santos Cortiço e o fazendeiro de açúcar Antonio
A diversificação de seus negócios e seu aguçado tino empresarial podem
Joaquim Coelho, obtiveram o privilégio de até 70 anos e a demarcação de
ser sugestivos do quanto se mostravam promissores os negócios em linhas
zona sendo vetado o estabelecimento de outra linha que não aquela entre a
férreas, sobretudo na confluência das três províncias, áreas em plena expan-
capital e a cidade de Campos. Os empresários também ficaram incumbidos
são das atividades agrícolas. Como estima Pereira, a fortuna deixada por
de estabelecerem uma linha auxiliar de navegação ligando Macaé à Corte.
Saturnino a seus herdeiros, somada ao inventário aberto em 1888, após a
Por deliberação de 11 de maio de 1873, a companhia da estrada de ferro rece-
morte de sua esposa, atingiu um valor aproximado de 1:631 contos.41
beu autorização para o prolongamento até a praia de Imbetiba e construção Na primeira metade do século XIX, a cultura itinerante do café espraiou-
de um porto naquela enseada. se pela baixada leste fluminense, chegando a Campos dos Goytacazes, Espírito
Santo e Zona da Mata Mineira. Na década de 1870, como mencionado, ocor-
reu significativa expansão das vias férreas do Rio de Janeiro em direção à zona
39 GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Bancos, economia e poder no Segundo Reinado: o caso da sociedade
bancária Mauá, MacGregor & Co., 1854-1866. 1997. Tese (Doutorado em História Econômica) – 41 PEREIRA, Walter Luiz Carneiro de Mattos. Francisco Ferreira Saturnino Braga: negócios e fortuna
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997. em Campos dos Goytacazes. História (São Paulo), São Paulo, v. 31, n. 2, 2012, p. 212-246, jul/dez.
Mimeo. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Disponível em <http://www.redalyc.org/
40 ERTHAL, 1922. articulo.oa?id=221025227011>

540 541
central e oriental da província, através da estrada de ferro de Cantagalo e do As exportações feitas pela Companhia incluíam a produção dos vales
ramal férreo ligando aquela via à cidade de mesmo nome, além da constru- do Paraíba, Muriaé e Pomba,46 assim como os municípios de Cantagalo e
ção da 1ª seção da estrada de ferro de Niterói a Campos, das ferrovias Macaé Santa Maria Madalena. A fim de projetar sobre uma base segura o valor
a Campos e da Campos-Carangola, que buscaram atender a produção do total do comércio entre Macaé e Campos, a Companhia considerou nos
norte, noroeste fluminense e sul de Minas, ocorrendo no período em que as seus cálculos “que do valor total do comércio de Macaé e Campos, só 6.000
terras ocidentais do Vale do Paraíba fluminense como Resende, Barra Mansa, arrobas utilizem a viação férrea e a navegação a vapor”, lembrando, entre-
Vassouras e Paty do Alferes, já se encontravam em franco esgotamento.42 tanto, estar o número aquém do valor real das importações e exportações
Os valores da exportação do café de Campos para o Rio de Janeiro, realizadas. A Estrada de Ferro, em conexão com o porto de Imbetiba e o
para o decênio de 1852-1861, eram de 178:712$000, tendo quadruplicado no transporte marítimo, integrou o circuito de ligação do porto do Rio com
decênio de 1872-1881, para 807:206$400 como apontava o Almanaque de as áreas mais distantes ao norte. Ao mesmo tempo, serviu como opção de
Campos para o ano de 1885.43 Na década de 1870, deslocava-se a cultura para investimentos dos capitais ávidos por lucratividade e atentos às novas opor-
as terras virgens da região oriental, Paraíba do Sul e Cantagalo. A expansão tunidades oferecidas pelo capitalismo em expansão.
ferroviária da província dera-se, portanto, quando já as plantações de café
estavam maturadas, com exceção das áreas orientais. considerações finais
Nessa mesma década, os subsídios do governo para a formação de
engenhos centrais prometiam novo alento à produção açucareira da baixada O melhoramento dos caminhos foi tema recorrente na história do vasto terri-
campista. Além da criação, em 1875, do Engenho Central de Quissamã, na tório, brasileiro. A busca da modernização das vias de comunicação remonta
freguesia de mesmo nome, em Macaé, data das últimas décadas do século a ao fim do século XVIII com os grandes esforços de viação fluvial, inspirados
criação de outros engenhos como o Engenho Central de Barcelos (São João nas experiências dos povos da Antiguidade e dos países Civilizados e prós-
da Barra) e o Engenho Central de Pureza (São Fidélis), fundados, respecti- peros da Europa e América. Nestes países, antes da ferrovia, observa Manoel
vamente, em 1878 e 1885.44 Boa parte desses produtos seguia até o porto de F. de Sousa Neto, “a constituição de estradas de rodagem, e obras em canais,
Imbetiba de onde partia em direção ao Rio de Janeiro. bem como a introdução do vapor na navegação fluvial revolucionaram o
O relatório sobre o movimento do tráfego feito pela Companhia Macaé sistema de transportes e impulsionaram sua economia”.47
a Campos não deixa dúvidas de que o dinamismo do porto de Imbetiba Na província fluminense, esta modernidade se materializou na grande
devia-se, principalmente, às atividades da linha férrea. De acordo com o obra de engenharia do Canal Campos-Macaé, capaz de unir lagoas, desviar
documento, partiam de Campos, diariamente para Macaé de 10 a 12 vagões cursos de rios, sanear e drenar pântanos combatendo as febres que aco-
de mercadorias e os armazéns de Santa Fé de Macabu e Santana manti- metiam os habitantes que os cercavam e, finalmente, fazer-nos trilhar os
nham-se abarrotados, aguardando transporte.45 caminhos da civilização. Pelos abundantes cursos d’água, transitaria o pro-
gresso da indústria e do comércio do interior. Tínhamos a riqueza do solo,
42 VIEIRA, Wilson. Apogeu e decadência da agricultura fluminense (1860-1930). 2000. Dissertação
(Mestrado em História Econômica) – Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas,
46 O rio Pomba é um dos prinicipais afluentes da margem esquerda do rio Paraíba do Sul. O vale do
Campinas, 2000. p. 21. Mimeo.
rio Pomba constituiu-se na principal zona cafeeira de Minas Gerais na região da Mata. A respeito
43 ALMANAK... DE CAMPOS... PARA 1885. Campos: Typ. do Monitor Campista, 1885. ano II, p. 56. do café em Minas, cf. PIRES, Anderson. Capital agrário, investimentos e crise na cafeicultura de
Organização João de Alvarenga. Juiz de Fora, 1870/1930. 1993. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-graduação
44 PENHA, Ana Lucia Nunes, 2012, p. 41; FARIA, 1986. Sobre o Engenho Central de Quissamã, ver em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1993; SARAIVA, Luiz Fernando. Um cor-
VIANA, Sonia Bayão Rodrigues. O Engenho Central de Quissamã. 1980. Dissertação (Mestrado em rer de casas, antigas senzalas: a transição do trabalho escravo para o livre nas fazendas de café,
História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1980. 1870-1900. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,
45 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO. Melhoramento do porto de Imbetiba e Universidade federal Fluminense, Niterói, 2001.
o caminho de ferro de Imbetiba a Campos em agosto de 1873. Rio de Janeiro: Publicação Oficial: 47 NETO, Manoel Fernandes de Sousa. Planos para o Império: os planos de viação para o Segundo
Typographia Nacional, 1875. p. 15. Reinado (1869-1889). São Paulo: Alameda, 2012. p. 240.

542 543
a abundância das águas, a amenidade do clima. Faltavam-nos as grandes Crédito e finanças no desenvolvimento da
obras hidráulicas, o aperfeiçoamento das técnicas agrícolas, o trabalho e a
formação moral da nação.
economia cafeeira em Vassouras, Vale do Paraíba
Na província fluminense, o café expandiu-se, reforçou a vocação agro-ex- fluminense, durante o século XIX
portadora, alicerçada na escravidão, e recolocou a necessidade de expansão
e aperfeiçoamento dos caminhos e da modernização. Ainda no período Rabib Floriano Antonio
joanino, José Carneiro da Silva, como muitos outros fazendeiros que não
podiam enviar suas mercadorias aos centros consumidores, empreendeu
a abertura de caminhos, o conserto de pontes, e construção de estradas,
como a que ligou Campos a Macaé, destacando-se aos olhos da Coroa e do
Imperador pela iniciativa daqueles empreendimentos. Malogrou a grande
obra do canal, posto em funcionamento no início da década de 1860 e sub-
metido a intermináveis obras de melhoramentos até o abandono quase total Durante o século XIX, a região do Vale do Paraíba fluminense foi um dos
por parte da administração provincial na década de 1880. As vias fluviais mais importantes centros de exportação de café no mundo. Grande parte
auxiliaram o pequeno comércio e as fazendas no seu entorno, entretanto, a dessa produção desembarcava na Inglaterra e na França. A cidade de
melhoria da navegação e das vias terrestres passaria por longa espera. Vassouras1 surge no mesmo contexto de muitas outras cidades do Médio
Sobretudo a partir da década de 1850, as administrações provinciais Vale, através da expansão das terras agricultáveis, logo após a crise do ouro
tentaram instituir planos gerais e elencar estradas principais a serem recu- nas Minas Gerais. As fazendas já existentes e as que foram sendo funda-
peradas pelo poder público. Seria ocioso analisar em detalhes a imbricada das tornaram-se pontos de partida para a implantação da cultura do café,
relação entre interesses privados, a expansão das vias de comunicação importante commodity em expansão no mercado internacional.2
e os interesses orquestrados pelo Estado em formação. Nesse sentido, a Vários fatores compõem o quadro da cafeicultura no século XIX: o
plantio, a escravidão, o transporte, o comércio. Este artigo discute mais
Assembleia Provincial Fluminense constituiu-se no locus que abrigou inte-
uma característica da composição do quadro da economia do Império: o
resses regionais em prol da melhoria dos caminhos e sobre o qual também
crédito e a dívida.
incidiram as políticas do governo imperial.
Isso se justifica porque o crédito é um fator importante de análise dentro
No último quartel do século, os trilhos das estradas de ferro rasgaram
da perspectiva da economia agrário-exportadora do século XIX, pois compõe
a província fluminense e alcançaram terras mais distantes, rumo à Zona
parte de sua rede de encadeamentos. Sabemos que havia pouco lastro monetá-
da Mata mineira e Espírito Santo. Desenvolveram-se, a custos crescentes,
rio circulando no Brasil Império e que o crédito bancário era restrito ao público
em vista do envelhecimento dos cafezais e desgaste das terras fluminenses,
mais amplo, em especial aos cafeicultores, que o acessavam via comissários.
quadro que seria ainda mais agravado no período de 1876 a 1890 quando
as cafeiculturas do oeste paulista, Espírito Santo e Minas Gerais aumenta-
1 Atualmente a cidade de Vassouras conta com um centro de documentação que deu suporte através de
ram suas produções. Quanto às obras de manutenção ou melhoramento das fontes primárias suficientes para se estabelecer certas reflexões e desenvolver esta pesquisa. Estas fontes
estradas, pontes e canais, a cargo da diretoria de obras públicas, permane- se encontram no acervo da USS, sob administração do professor e historiador Magno da Fonseca Borges.
ceriam insuficientes durante todo o império. 2 O termo aqui utilizado refere-se à rede de commodities desenvolvidas a partir da inserção de
produtos de baixo valor agregado, mas que foram importantes pois desenvolveram redes mundiais
de comércio. TOPIK, Steve; MARICHAL, Carlo; FRANK, Zephyr. From Silver to Cocaine: Latin
American Commodity chains and the Building of the World Economy, 1500-2000. Durham,
NC: Duke University Press, 2006. p. 2. Aconselhamos também a leitura dos trabalhos de Rafael
Marquese e Dale Tomich, que contribuem sobremaneira para novas reflexões sobre a cafeicultura
do século XIX, em especial do Vale, e os mercados internacionais.

544 545
Para Pires, A partir de 1840, Vassouras exportava em larga escala, chegando ao
apogeu entre 1861 a 1865. As fazendas passaram a refletir a ascensão desta
Da mesma forma que o produto básico condiciona ou determina o processo de
desenvolvimento econômico regional, seria natural que também sua dimen- produção e os fazendeiros, privados do mercado externo de cativos desde
são financeira estivesse ali determinada, nos seus aspectos básicos, limites e 1850, voltaram-se para o comércio doméstico de escravos e a reprodução
possibilidades.3 natural dos indivíduos. Para Salles,
O produto primário estabelece, na teoria de M. Watkins, o fator de O patriarcalismo e o paternalismo, nas novas condições demográficas e
desenvolvimento econômico, dando-lhe ritmo, além de proporcionar efeitos sociais resultantes da extinção do tráfico internacional de cativos, pareciam
então, estar perto de moldar uma comunidade escrava mais estável, centrada
de dispersão sobre os atores econômicos locais. Logo, a cafeicultura se encon-
na crioulização dos plantéis, no maior equilíbrio em sua composição sexual e
trava em um período propício onde o mercado interno ainda não havia se etária, no aumento do número de famílias estáveis, na disseminação do cul-
constituído, mas havia mão de obra abundante e recursos ociosos, além de tivo de roças familiares.7
um mercado internacional baseado na divisão internacional do trabalho.4
A dinâmica da lavoura de café estabelecida no século XIX na zona do Vassouras crescia economicamente. Para Stanley Stein,8 as mudanças
Rio de Janeiro e Minas Gerais5 era a que mais gerava riqueza no período. na estrutura econômica geral movimentaram a cidade na segunda metade
De acordo com os dados de Laerne,6 estavam plantados mais de 850.252.453 do século XIX. Os comerciantes escravistas, com a crise do tráfico de escra-
pés de café na citada região, em 1880. Ao longo do século XIX, segundo o vos, voltaram seus investimentos para o mercado financeiro gerando casas
mesmo autor, o Vale supera a produção das demais províncias, tornando as bancárias no Rio de Janeiro.
fazendas da região mais valorizadas, conforme mostra o gráfico a seguir: Vassouras, cuja prosperidade se encontrava irrevogavelmente comprometida
com a monocultura, estava pronta para ampliar ainda mais sua extensão em
gráfico 1: valor das fazendas de café da província acres. Com bom crédito no Rio, o fazendeiro de Vassouras incumbiu-se de
do rio de janeiro em 1883 (valor em mil-réis) melhorar e embelezar seu estabelecimento e apurá-lo, um desejo fomentado
pelo seu contato mais próximo com a capital litorânea. Consciente da sua nova
posição econômica e importância como fazendeiro de café, ele nunca duvidou de
suas habilidades em liquidar, com as novas safras de café, as dívidas contraídas.9

A particularidade do café como um produto inelástico10 gerava sempre


um descompasso entre as alterações de demanda e produção. Além disso,
ocorriam as variações de preço em épocas de pragas, secas, pressões econô-
micas externas, etc. Para suprir essas situações, os agentes econômicos bus-
cavam formas alternativas de adquirir crédito para o financiamento de suas
Açúcar Café Café/Açúcar Café Café/Açúcar
Outras regiões do RJ Vale do Paraíba lavouras e comprar bens de uso agrícola ou pessoal devido à carência de
Fonte: Gráfico confeccionado a partir dos dados de LAERNE, 1885, p. 218-219.
moeda circulante no período. Logo, a sociedade foi se ajustando à conjun-
tura econômica. Durante o século XIX, o café do Vale propagava um efeito de
3 PIRES, Anderson. Café, finanças e indústria. Juiz de Fora: Funalfa, 2009. p. 194.
4 Cf. BARROS, Nicélio do Amaral. Sob clima tenso: crise estrutural, mudanças institucionais e 7 SALLES, Ricardo. E o Vale era o Escravo: Vassouras, século XIX – senhores e escravos no coração do
deslocamento do eixo político e econômico em Minas Gerais – 1920-1940. 2007. Dissertação Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 151.
(Mestrado em História) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007. p. 28. 8 STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café (1850-1900). Rio de Janeiro: Nova
5 Famosa “Zona Rio” que é relatada também nos trabalhos de Hildete Melo. Fronteira, 1990.
6 Cf. LAERNE, C. F. V. Delden. Brasil and Java: report on coffee – culture in America, Asia and Africa 9 STEIN, 1990, p. 56.
(1885). London: W. H. Allne, 1885. p. 367. 10 Que demora a responder às variações do mercado em relação a preços ou ofertas.

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encadeamento de créditos. Para Hirschman,11 uma dada unidade produtiva opção. Sua análise recai sobre a necessidade constante da busca de terras
causa efeitos posteriores e anteriores a si mesma. Os efeitos retrospectivos virgens para plantio de tempos em tempos no ciclo da produção cafeeira.
correspondem ao aparecimento e desenvolvimento de fatores utilizados O café só conseguiria manter sua produtividade na expansão das fronteiras
na produção e os prospectivos no produto já elaborado, como transporte, abertas, daí a necessidade de investimentos constantes para sua manutenção.
embalagem, etc. Existe um terceiro efeito que recai sobre as finanças, que é Mas existem variações por local e data em relação às produções dentro
o efeito fiscal. O aparecimento de organismos produtivos ao redor da uni- da teoria da commoditie chains.
dade principal gera, em toda a cadeia, a oportunidade de novos impostos e
[...] um novo modo de produção está intimamente ligado à existência, no
a demanda por financiamentos. Apesar da teoria do desenvolvimento por
tempo apropriado, de uma atividade econômica específica, que apresente uma
efeito de cadeia ter sido elaborada para explicar o setor industrial na década afinidade mais forte com este modo de produção do que a que é constatada
de 1960, pode-se muito bem aplicar a teoria em outros setores, como na mais tarde, quando o modo de produção já se tornou ubíquo e dominante, e,
agricultura do século XIX do Vale do Paraíba fluminense. Vista desta forma, portanto, parece ser, e na realidade já se tornou, independente dessa atividade.16
a teoria pode ser complementar à tese do produto primário de exportação,
Assim sendo, uma dada produção pode não funcionar igualmente em
desenvolvida por Herald Innis12 que defende que as economias de países
suas estruturas se comparada tanto com regiões ou períodos diferentes. O
novos, como também o desenvolvimento destes, são amplamente caracteri-
que a cultura cafeeira pode provocar em uma região como, por exemplo, o
zados por produções e exportações do setor primário.
acirramento da escravidão ou o desenvolvimento de linhas férreas, pode
O produto do Vale proporcionou um vasto estímulo à formação de
não ocorrer em outras áreas. Essa análise garante então a especificidade
efeitos de encadeamento entre produtores de commodities – os famosos
da commoditie e o processo de superação do modo de produção ligado a
Barões do Café –, pequenos produtores locais, comerciantes, tropeiros,
ela.17 Logo, o desenvolvimento através dos produtos primários de exporta-
capitalistas, criadores de animais entre outros. Para Hirschman,
ção, segundo a teoria geral de Hirschman, requer intrínsecos parâmetros
O que nos vem à mente como exemplo é a situação dos países plantadores de que vão além da esfera do estado, como, por exemplo, terras, ferramentas,
café, como no Brasil e a Colômbia. Em ambos os países o café tem sido crucial na adequação técnica, crédito, etc. Podem agir com ele ou além dele. Isso ajuda
criação nos padrões de ocupação da terra (Settlement patterns), redes de trans-
a compreender a forma de organização pessoal do crédito em Vassouras
porte e repercussões do consumo, porém, somente bastante tarde na sua carreira
de produto primário de exportação é que rendeu alguma contribuição fiscal [...]13 alavancado por particulares, mesmo antes das instituições de mercado con-
troladas pelo estado.
Dentro da teoria das commodities chains (ou redes de produtos primá- No que se refere às características da economia imperial e a intrínseca
rios, com baixo valor agregado) entende-se que os elos que unem as várias relação do financiamento no Vale do Paraíba, pode-se dizer que as estra-
etapas da rede produtiva não dependem exclusivamente da vontade do pro- tégias para o financiamento e a transformação da economia foram as mais
dutor, mas dos múltiplos fatores que compõem as características próprias de variadas durante o século XIX. Em relação à macroeconomia do Império,
cada produto.14 Segundo Hirschman,15 o expansionismo se caracterizou mais para Levy,18 a estrutura financeira no Brasil pode ser dividida em duas gran-
por uma rigidez no processo de produção da cafeicultura do que por uma des partes: as chamadas bolsas de valores e os bancos comerciais. Segundo
a pesquisadora, o aumento institucionalizado de empresas destinadas à ofe-
11 Cf. HIRSCHMAN, Albert. Desenvolvimento por efeitos em cadeia: uma abordagem generalizada. In:
SORJ, Bernardo. Economia e movimentos sociais na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 31-51. recer crédito só se inicia a partir da segunda metade do século XIX. Antes,
12 Cf. PIRES, 2009. o mercado de crédito estava nas mãos de indivíduos que o ofereciam como
13 HIRSCHMAN, 1985, p. 42. corretores ou banqueiros.
14 Cf. VITTORETTO, Bruno. Do Parahybuna à Zona da Mata: terra e trabalho no processo de
incorporação produtiva do café mineiro (1830-1870). 2012. Dissertação (Mestrado em História) – 16 HIRSCHMAN, loc. cit.
Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2012. 17 Aqui devemos atentar aos trabalhos de PIRES, 2009 e VITTORETTO, 2012.
15 HIRSCHMAN, op. cit., p. 76. 18 Cf. LEVY, Maria Bárbara. História da bolsa de valores do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ABMEC, 1977. p. 3.

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Com a integração do Brasil aos mercados internacionais ao longo do às contas correntes e créditos pessoais, muitos dos quais ligados às confra-
Império, a economia deixa de ser mercantil tradicional e o capital comer- rias de mercadores. Já no século XIX, percebem-se modificações inerentes
cial passa a se subordinar a uma acumulação capitalista mundial. Porém, à própria mudança do eixo econômico para as áreas do Rio de Janeiro, da
Levy defende a formação de um sistema financeiro como “pedra angular” Zona da Mata mineira e do oeste paulista. Tanto Renato Leite Marcondes
no processo econômico da esfera política. Segundo ela, como Anderson Pires24 abordam a figura dos comerciantes como elementos
dinâmicos no início do processo de acumulação e financiamento da pri-
Há um fluxo constante do capital produtivo reconvertido em capital finan-
ceiro, num contínuo processo de financiamento da reprodução do sistema. meira grande produção do Brasil independente.
O capital financeiro passa a constituir uma parcela do capital total, funcio- Essa mudança no eixo econômico proporcionou uma alteração, durante
nando de maneira autônoma e assegurando o financiamento das operações o século XIX, nos elementos de crédito e investimentos. Junia Ferreira e Katia
econômicas. As disponibilidades monetárias não são mais vendidas ou alu- Maria Abud25 afirmam que as novas categorias de agentes, apesar de difí-
gadas como mercadorias e escapam às determinações de equivalência para
ceis de analisar, se dividiam grosso modo em homens de negócio e comer-
vincularem-se à produção social, do qual participam através da determinação
das taxas de juros.19 ciantes. Os homens de negócios poderiam ser comerciantes de escravos, de
terras e outros elementos importantes na economia colonial/imperial. Já os
Há um fluxo constante do capital produtivo reconvertido em capital comerciantes menores, como vendeiros e quitandeiros, tinham uma esfera
financeiro, num contínuo processo de financiamento da reprodução do sis- mais limitada de atuação nas regiões. Em geral, o agente que ligava a fazenda
tema. O capital financeiro passa a constituir uma parcela do capital total, ao mercado internacional, efetivo processo exportador, era o comissário. Ele
funcionando de maneira autônoma e assegurando o financiamento das se enquadrava no primeiro perfil de comerciantes. Em geral, fazia o papel
operações econômicas. As disponibilidades monetárias não são mais ven- de financista e “catalisador”26 da produção que estava dispersa em diver-
didas ou alugadas como mercadorias e escapam às determinações de equi- sas unidades produtivas, em maior ou menor grau de produção. A figura
valência para vincularem-se à produção social, da qual participam através do comissário era, portanto, fundamental para criar uma padronização no
da determinação das taxas de juros.20 comércio.27 Marcia Kuniochi28 acredita que, em determinados momentos do
Para Guimarães21 e Levy,22 foi o café que trouxe a possibilidade de apa- modelo agrícola analisado, as famílias produtoras sofriam algum desvali-
recimento dos bancos comerciais particulares já que se necessitava finan- mento material. Nestas circunstâncias, a figura do credor era a garantiria de
ciamento para a inserção e manutenção da produção no mercado interna- recursos em tempos de crise para tocar a produção. Desta forma, o comis-
cional. Levy23 afirma que, a economia do açúcar durante o período colonial sário seria a ponte entre o mundo mercantil e o mundo familiar, entre o
era muito marcada pela presença do “agente usurário” como elemento de interior e a capital, entre a economia doméstica e internacional.
acumulação prévia do sistema pré-capitalista. Como havia pouca moeda O historiador Carlos Gabriel Guimarães aponta que:
circulante, o próprio açúcar tinha se tornado base de troca. Contudo, com a
valorização deste produto no mercado internacional, sua produção passou a
ser vinculada à exportação e apareceram as práticas de crédito relacionadas 24 Cf. MARCONDES, R. L. A arte de acumular na gestão da economia cafeeira: formas de enriquecimento
no Vale do Paraíba paulista no século XIX. Tese (Doutorado em Economia) – Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1998; PIRES, 2009.
19 Ibid., p. 4. 25 MARCONDES, 1998, p. 163-5.
20 LEVY, loc. cit. 26 PIRES, A. Capital agrário, investimento e crise na cafeicultura de Juiz de Fora (1870/1930). 1993.
21 GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Bancos, economia e poder no Segundo Reinado: o caso da sociedade Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1993. p. 48-49.
bancária Mauá, MacGregor & Co., 1854-1866. 1997. Tese (Doutorado em História Econômica) – 27 Ibid., p. 49.
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997. p. 51.
28 KUNIOCHI, Márcia Naomi. Os negócios no Rio de Janeiro, crédito, endividamento e acumulação
22 Cf. LEVY, Maria Bárbara. História financeira do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: IBMEC, 1979. (1844-1857). Abphe, 2003. Disponível em: <http://www.abphe.org.br/congresso2003/Textos/
23 Ibid., p. 26. Abphe_2003_88.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2009.

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No tocante à forma de financiamento para o setor agrícola, essa não se modi- de acesso aos empréstimos e créditos. O autor remete às relações culturais
ficou substancialmente com os primeiros bancos brasileiros. Mesmo com o ligadas à formação da questão moral,32 mas, ao mesmo tempo, alerta para
surgimento de novos ativos, analisando os estatutos e os balanços do Banco
uma transformação quando as relações pessoais passaram a ser vistas como
Comercial do Rio de Janeiro, o mais importante do período 1830/1840, e que
serviu de referência para os demais bancos, chegamos à conclusão de que o elementos dentro de uma sociedade que se apresentava cada vez mais inse-
banco privilegiou principalmente o curto prazo e as atividades comerciais. rida no conceito de competição de mercados e disputas econômicas.
Mesmo utilizando recursos de terceiros, através dos depósitos à vista, o banco No Brasil, o século XIX foi um período de impactos nessa economia
emprestava sob a forma de desconto de letras, e através de um intermediário, moral para relações mais institucionalizadas, ou seja, reguladas por regras
que podia ser um comissário ou um outro comerciante ligado ao setor impor-
estabelecidas que garantissem novos investimentos e associações de capital
tador e exportador. Se os comissários eram os únicos que estavam avalizados
pelo banco para pegar os empréstimos, e eles eram acionistas dos bancos, con- nas relações econômica. A economia desenvolvida no Vale muito impul-
cluiremos que ao repassar ao agricultor o empréstimo, o lucro da operação sionou essas transformações. Para Karl Polanyi,33 uma economia moral era
ficava com o banco e o comerciante, seu acionista. Segundo um observador caracterizada por relações econômica não estabelecidas preferencialmente
da época, o lucro do banco Comercial do Rio de Janeiro.29 por relações exclusivas de mercado. Toda economia primitiva se baseava
O papel inicial do comissário de café no Vale era uma espécie de repre- não em laços econômicos, mas em fortes laços sociais, quer sejam eles
sentação dos fazendeiros junto aos agentes negociadores do porto do Rio de fomentados pela religião, pelas tradições ou pela política local. Cada comu-
Janeiro e às casas bancárias da capital. Era ele quem unia várias produções nidade mantinha seus laços econômicos de subsistência pelas festas rituais
regionais, criava a padronização e negociava com os ensacadores. Muitas ou tradicionais de acordo com a cultura. Enfim, o homem primitivo não
vezes se envolvia dentro do processo financeiro da fazenda emitindo cré- era subordinado à economia de mercado, mas sim a economia era inserida
dito e empréstimos em momentos de entressafra para a manutenção do e subordinada dentro de um contexto social em que ele vivia.
complexo cafeeiro. Ele [o homem primitivo] não age desta forma para salvaguardar seu interesse
Até a primeira metade do século XIX, as relações entre fazendeiros individual na posse de bens materiais, ele age assim para salvaguardar sua
e comissários eram muito pessoais e informais. Segundo Maria Sylvia situação social, suas exigências sociais, seu patrimônio social. Ele valoriza os
bens materiais na medida que eles servem aos seus propósitos. Nem o pro-
Carvalho Franco, as “transações se desenvolviam quase inteiramente den-
cesso de produção nem o de distribuição está ligado a interesses econômicos
tro de pequenos grupos, entre pessoas interligadas por relações mais inclu- específicos relativos à posse de bens.34
sivas e mais duradouras que os contatos formais e impessoais de negócios”.30
Essas relações que perpassaram os primeiros contatos entre os homens Essa realidade também pode ser percebida no Brasil durante a colônia
de negócios não são próprias do Brasil e podem ser identificados no desen- e no início do Império, pois era comum as relações pessoais influenciarem
volvimento do passado histórico europeu, como demonstra Muldrew.31 fortemente nas decisões econômicas, como nos mostra Mônica Ribeiro
Para ele, a confiança, como vínculo social é um fator necessário para as inter Oliveira35 para a Zona da Mata mineira.
-relações comerciais que são formadas pela boa reputação, a honestidade e Estamos diante de uma certa coletividade que, mesmo com a presença de uma
a confiabilidade. Assim, com a complexidade das relações de crédito e o não diversificada hierarquia social, com diferentes níveis de riqueza, e acesso à
cumprimento de obrigações, tornaram-se também comuns os tratados que terra, [...] foi marcada pela constituição de uma forte elite agrária, com fortu-
garantissem as “honestidades”. Isso fazia da reputação uma garantia e forma nas consolidadas na propriedade de vastas terras, grande número de escravos,

29 GUIMARÃES, 1997, p. 55-56. 32 Em especial a influência do cristianismo.


30 FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4. ed. São Paulo: Ed. Unesp, 33 POLANYI, Karl. A grande transformação. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 2000.
1997. p. 174. 34 Ibid., p. 65.
31 MULDREW, Craig. The Economy of Obligation: the culture of credit and social and relations in early 35 OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Negócios de família: mercado, terra e poder na cafeicultura mineira
modern England. Hempshire: Palgrave, 1998. p. 123-174. (1780-1870). Juiz de Fora: Funalfa, 2006.

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além da presença de uma cadeia interna de crédito, responsável pelo financia- mercado e buscaram adequá-las à tendência econômica do Império, cada
mento da própria dinâmica agrícola local.36 vez mais envolvida com as exigências impostas pelos mercados internacio-
A pesquisadora identificou em seus estudos para a Zona da Mata nais. Esse é o caso do exemplo estudado por Carlos Gabriel Guimarães para
Mineira um conglomerado de relações familiares perpassadas por casa- a firma Samuel Phillips & Co.
mentos, compadrios ou alianças que poderiam ser a estratégia das famí- A auto-afirmação em ser judeu fortaleceu a firma comercial e seus negócios,
lias para pagamento de dívidas ou acumulação de riquezas. Para Paiva, as mesmo atuando num mercado hegemonicamente católico e socialmente
“famílias das classes senhoriais reproduziam internamente, uma estratégia escravista, como era o Império Luso-brasileiro, depois, o Império do Brasil.
Com toda crítica à usura, aos juros cobrados, a firma comercial Samuel
do próprio Estado imperial, que buscava conciliar valores ambíguos como
Phillips & Co era reconhecida na praça mercantil do Rio de Janeiro, e de
modernidade e ideal aristocrático, liberalismo e escravidão, o indivíduo e a Londres, como uma firma financeira. Foi no setor financeiro, mais do que na
família patriarcal”.37 venda de commodities, que ela se destacou.38
A partir de 1840, as exportações de café aumentaram (Gráfico 2) gra-
dativamente dominando a maior parte do comércio internacional de café. Em 1850, a balança comercial brasileira começa a ficar positiva e há
A Inglaterra passou a ser a maior importadora seguida por países como um estímulo ao estabelecimento de novos créditos e operações mercantis.
França e Estados Unidos. Com as mudanças no Rio de Janeiro, o acúmulo de capital nas mãos de
cafeicultores, escravistas e comissários, os novos créditos passaram a ser
gráfico 2 – exportação de café do brasil (1821-1879) em 1000£ /us$ 10(6) utilizados em atividades financeiras. O crescimento favorável estimulou o
(registro do porto de nova york)
investimento em vários setores, em especial o exportador. Novas modali-
dades de crédito e empréstimos surgiram e passaram a concorrer com as
notas promissórias e letras de câmbio. O vale bancário passou a ser um
ativo muito especial, sendo utilizado no período do império como alterna-
tiva de moeda de crédito.39 Influenciados na década de 1850 pelo discurso
do barão de Mauá e pela nova legislação, começaram a aparecer bancos
emissionistas que poderiam colocar na praça tais vales bancários, além de
ações a ponto de suprir as demandas de crédito.
O começo do longo surto cafeeiro no Brasil, a prosperidade geral do mundo
nos anos de 1850/60, a adaptação no Brasil dos princípios do estabelecimento
de bancos por meio da emissão de ações, e outros fatores, contribuíram para
o desenvolvimento contínuo dos bancos de emissão.40

Uma das propostas levantadas por Mauá, juntamente com negocian-


Fonte: BACHA, E; GREENHIL, R. 150 Anos de Café.
Rio de Janeiro: Marcelino Martins & E. Johnston, 1993. p. 355-356.
tes favoráveis ao desenvolvimento financeiro, era defender a tese da livre

Ainda que envolvidos numa cultura oriunda da primeira metade do 38 GUIMARÃES. C. G. Finanças e Comércio no Brasil da primeira metade do século XIX: a atuação
XIX, os homens de negócios sentiram o processo de mudança nas regras de da firma inglesa Samuel Phillips & Co, 1808-1831. In: ENCONTRO REGIONAL DA ANPUH, 14.,
2010, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Unirio, 19-23 jul. 2010. Disponível em: <http://www.
36 Ibid., p. 164. encontro2010.rj.anpuh.org/site/anaiscomplementares>. Acesso em: dez. 2011.
37 PAIVA, Lucas Gesta Palmares Munhoz de. Lembranças da saudade: estratégias para a manutenção 39 GUIMARÃES, 1997, p. 57.
do poder de uma família cafeicultora no século XIX. 2013. Dissertação (Mestrado em História 40 PELAEZ, Carlos Manuel; SUZIGAN, Wilson. História monetária do Brasil. 2. ed. Brasília: Ed. UNB,
Social) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. p. 32. 1980. p. 76.

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associação ou a garantia de associações de capitais através das sociedades dução, mas para investimentos de maior vulto como, por exemplo, o início
anônimas como elemento para manutenção do crescimento econômico. de uma nova plantação de café ou a compra de propriedades produtoras.46
Para eles, a associação anônima garantiria o fortalecimento do investi- Para Pires,47 as possibilidades de crédito iam além da figura do comis-
mento e o “progresso”. Muitas casas bancárias surgiram através dessas asso- sário. Outros agentes, como os chamados “capitalistas”, pessoas que empres-
ciações.41 A ampliação do poder bancário aqui descrita fez com que, entre tavam seu capital por juros estabelecidos em certo intervalo de tempo,
1841 e 1854, o número de estabelecimentos no Brasil crescesse de 1 para 5, também atuavam como fornecedores de capital. No século XIX, alguns
conforme evidenciam Pelaez e Suzigan.42 capitalistas já se restringiam apenas a emprestarem dinheiro e esperarem o
Como era comum antes do estabelecimento dos bancos, os comerciantes retorno financeiro, vivendo quase que exclusivamente da atividade usurá-
e comissários assumiam os empréstimos e créditos necessários ao desenvol- ria. Em outros casos, tais atividades dividiam espaço com outros negócios
vimento da economia, assim como transações em conta corrente, em espe- como a própria cafeicultura, comércios ou outras produções agrárias.48
cial, ao setor agrícola. Muitos desses bancos passam a se constituir a partir Mas a situação nem sempre era favorável, em especial, aos tomado-
da ligação ou associação destes indivíduos. Nota-se que era comum o finan- res de empréstimos. Os prazos dados pelos comissários e comerciantes, em
ciamento do setor comercial, ligado ao comercio exterior, em detrimento do geral, eram curtos e qualquer atraso nas colheitas ou problemas na safra
setor agrícola que, muitas vezes, carecia de crédito.43 Esse crédito era suprido gerava estagnação dos pagamentos, comprometendo o credor e o devedor.
ou pelos empréstimos locais ou pelos comissários do café. Os prazos pode- Os empréstimos a longo prazo, praticado pelos “capitalistas”, envolviam
riam variar de acordo com cada situação, região ou momento histórico. um volume maior de capital. Nestes casos, Saes calcula que a taxa de juros
Marcondes identifica o “vácuo” do sistema bancário como condição girava de 12 a 18% ao ano para São Paulo.49 Pires demonstra que na região
para a manutenção do crédito pessoal que, por sua vez, promoveria um da Zona da Mata mineira a situação era semelhante. Para o pesquisador
processo de acumulação. mineiro, a atividade creditícia nas áreas de cafeicultura da Zona da Mata
Entretanto, a inexistência de um sistema bancário desenvolvido abriu opor-
atendeu a uma dinâmica própria, o que quer dizer gerando possibilidades
tunidades para as pessoas com disponibilidades de recursos para realizar esse de crédito a partir da origem local. E, muitas vezes, “as demandas e ofertas
financiamento. Destarte, a experiência da continuidade das condições propí- de liquidez” coexistiam e se efetivavam em um mesmo espaço.50
cias à cafeicultura e a reduzida oferta de crédito resultaram em empréstimos A estrutura financeira do país teria surgido como um suporte neces-
efetuados a taxas de juros elevadas e a prazos curtos.44 sário à própria realidade de desenvolvimento da economia do século XIX.
Pires45 aponta que o crédito exercido pelos comissários poderia ser a A organização de uma estrutura financeira que ampliasse o acesso ao cré-
curto prazo, que passava a ser “identificado como movimento de giro ou a dito garantiria opções para investidores e tomadores de créditos. Mas, para
reprodução simples da unidade.” Essa forma de crédito era muito comum Bárbara Levy, houve um descompasso entre as estruturas nascentes – como
no Vale do Paraíba fluminense e paulista. Sua desvantagem era ser feita na os bancos comerciais e o Banco do Brasil – oriundas de intervenções desor-
base da remessa de café que, por vezes, se tornava irregular. Outra forma de denadas do Estado e de políticas monetaristas ortodoxas e a introdução do
crédito levantada pelo pesquisador teria sido a de longo prazo – geralmente capital internacional.51
utilizado não para suprir as fazendas com produtos necessários à sua repro-
46 Ibid., p. 50.
41 Ibid., p. 77. 47 Ibid., p. 51.
42 Ibid., p. 79. 48 PIRES, loc. cit.
43 GUIMARÃES, op. cit., 1997, p. 58. 49 SAES apud MARCONDES, 1998, p. 178.
44 MARCONDES, 1998, p. 175. 50 PIRES, 1993, p. 52
45 PIRES, 1993, p. 49. 51 LEVY, 1977, p. 47.

556 557
Mas com a criação do Código Comercial Brasileiro,52 elaborado por uma na cidade do Rio de Janeiro e foi se proliferando por todo o Vale do Paraíba,
comissão composta por notáveis representantes do Partido Conservador e sendo utilizado também em outros estados. O crédito hipotecário era uma
comerciantes ligados à praça mercantil do Rio de Janeiro, houve a regu- saída ao financiamento pelo seu prazo estendido e pelas garantias que exi-
lamentação da profissão de banqueiro, das operações feitas pelos bancos, gia, em geral, propriedades. O tempo médio para os fazendeiros quitarem
além da diversificação dos ativos financeiros. O Código estabeleceu tam- suas dívidas com os bancos variava de 2 a 4 anos, com diferentes taxas de
bém as formas dos contratos mercantis, a regras de hipotecas e penhor, e a juros dependendo do banco. Contudo, a grosso modo, podemos dizer que
formação das companhias comerciais. Neste processo, os bancos garanti- essas taxas de juros tinham uma variação de 6% a 15% ao ano, dependendo
ram a mobilização dos créditos, seja por forma de depósitos de capitais de da região ou cidade. Em geral, o Vale do Paraíba fluminense e o Vale do
terceiros, seja por empréstimos dos valores requeridos. Paraíba paulista seguiam diferentes tendências de variações de juros,55 mas
As hipotecas serviam como garantias de obrigações de dívidas ou, no o mesmo padrão de crédito hipotecário. Percebe-se que quanto mais era a
caso, se estabeleciam como contratos e eram utilizadas para assegurar as quantia emprestada, maior era o prazo para saldar a dívidas.56
obrigações de dívidas estabelecidas. Havia na sociedade brasileira, antes da
Empurrado cada vez mais para longe dos centros exportadores, o fazendeiro
promulgação do código comercial, um apreço pelos bens de raiz. Terras, via multiplicar-se, entre ele e o embarque, uma série de agentes não afeitos
escravos e moradia eram, sem sombra de dúvidas, fundamentais para a às estritas relações pessoais, tão ao seu gosto, como bem caracterizou Maria
sociedade agrária exportadora, logo, antes de 1850 era comum a prática da Sylvia de Carvalho Franco. E o foco desse processo multipolar era a relativa
hipoteca dos bens de raiz, já que não havia maior diversificação dos ati- autonomia que a vida econômica do Município da Corte ia adquirindo, para
o que sem dúvida, concorria a retração da unidade produtora como mercado
vos nesse período.53 Com a organização das sociedades em Companhias de
para o comercio, agora renovado.57
Comércio ou sociedades anônimas, o capital adquiriu uma outra tônica,
pois estas se definiam como sociedades compostas por um grupo de Para este autor, estaria começando a ocorrer no Vale uma nítida sepa-
homens que, juntamente com seus investimentos e forma organizacional, ração entre o capital mercantil e o capital financeiro, o que define como
empreendem alguma atividade útil. A vantagem das sociedades anônimas “solidariedade funcional”, fruto de um processo de urbanização. As relações
era que poderiam delegar à população (que tinha capital) suas ações e a que antes sustentavam os processos de “salvação pública” à falência, ou, na
quantidade delas limitaria os sócios à esfera de atuação nessas companhias. visão de Polanyi,58 a malha social de relações que evitava o desvalimento
A importância do Código Comercial recai sobre a mobilização de capi- dos indivíduos, a ajuda mútua, perdia-se para os novos arranjos que esta-
tal associado que iria movimentar, pelo menos em parte, os negócios do vam se formando a partir de 1850. “Era muito raro o aparecimento de uma
café, mesmo que indiretamente através da atuação dos comissários. Com as falência até 1850 apesar de não haver formalização do Código Comercial”,
dificuldades do Banco do Brasil em promover uma efetiva política mone- dizia o escriturário da Fazenda e posteriormente do Tesouro Nacional, dr.
tária, os bancos comerciais começaram a atuar na Praça do Rio de Janeiro, Sebastião Ferreira Soares.59
captando depósitos de capitais e revertendo-os aos que buscavam financia- Conclui-se que, entre 1815, período de elevação do Brasil a Reino
mento. De acordo com Guimarães,54 tais atividades foram regulamentadas Unido, até o início da década de 1880, houve uma intensa movimentação
no Decreto n° 737, de 25 de novembro de 1850.
O sistema de crédito hipotecário oferecido pelos bancos e garantido 55 Guardadas as devidas diferenças regionais e temporais.
por esse movimento de diversificação da atividade financeira teve seu início 56 Cf. MARCONDES, Renato Leite. O financiamento hipotecário da cafeicultura no Vale do Paraíba
paulista (1865-1867). Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, v. 56, n. 1, mar. de 2002.
57 GRANZIEIRA, Rui. A moeda e o crédito no limiar do capitalismo no Brasil. 1976. Tese (Doutorado em
52 GUIMARÃES, 1997, p. 86. Economia) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1976. p. 20-21.
53 Ibid., p. 89. 58 Cf. POLANYI, 2000.
54 GUIMARÃES, 1997, p. 89. 59 SOARES apud GRANZIEIRA, op. cit., p. 22.

558 559
financeira a respeito do problema da liquidez, financiamento, crédito e Antes de 1850, mesmo os pequenos e médios valores creditados não
opções de investimento por parte da elite brasileira. As políticas emissio- eram caucionados por hipoteca. Somente em alguns casos de valores
nistas ora eram incentivadas, ora eram combatidas. Mas, de forma geral, maiores é que havia alguma forma de hipoteca, conforma exemplificado
nota-se uma ligação entre importação, exportação, crédito e emissão que abaixo:
garantia o impulso de uma economia. Porém, as crises internas de emis-
Devo que pagarei ao senhor João Barbosa 205 oitavas de ouro em pó prece-
são conjuntamente com as crises internacionais que retraíram o consumo didas de um negro que comprei do gentio moçambique por nome Francisco
das commodities, em especial o café, geraram pressões que alteraram o a qual quantia pagarei a ele dito ou a quem este me mostrar da feitura deste a
plano seguido para o desenvolvimento, saúde financeira e econômica do um ano e para sua clareza lhe dei este de minha letra e sinal hoje 28 de feve-
Império. reiro de 1720.62
No centro do jogo estavam os cafeicultores de Vassouras que, entre Para Schumpeter,63 os homens de negócios muitas vezes necessitam
escolhas e crises, optavam por formas diversas de buscarem financiamentos das relações de endividamento. Muitos, antes de se tornarem “credito-
para superarem as características ímpares da produção de café para expor- res” e “depositores”64 de riqueza, eram devedores dos agentes credores.
tação. Para tanto, contraíam empréstimos pessoais, bancários e das casas Essas relações descritas são comuns nos inventários de membros das eli-
comerciais, sejam por vias próprias ou de agentes comissários. Havia capi- tes cafeicultoras e capitalistas de Vassoura, no interior do Vale do Paraíba
talistas, fazendeiros credores e instituições financeiras atuando na cidade. fluminense, fazendo com que alguns nomes de indivíduos ligados à lista
Tal diversidade já fora apontada por Pires, de devedores em um momento, se tornam credores em outro. O próprio
Um leitor mais atento poderia acusar nossa análise de tautológica, advertindo barão de Itambé (Francisco José Teixeira), capitalista por excelência em
que, afinal de contas, [...] os mesmos atores sociais que estão a demandar Vassouras, está na lista de dívidas do inventário de José Teixeira Leite.65
financiamento seriam os mesmos a prover os recursos financeiros. Esta crítica Enquanto Anna Bernardina, que aparece como devedora do barão de
seria válida se considerássemos a classe dos grandes proprietários de terra
Itambé, também era credora de muitos indivíduos. Mas o crédito por si
como uma massa invariável, inerte, de comportamento uniforme e, princi-
palmente, destituída de níveis significativos de diferenciação em sua posição só decorre de um risco que se subentende nos processos de confiança e
financeira, grau de endividamento, níveis variados de lucratividade.60 garantias.66 Essa confiança era necessária na produção de café pelo alto
grau de endividamento já discutido neste trabalho e devido à inelastici-
O Código Comercial, a Lei de Terras e a Lei de Hipotecas são basica- dade do produto. Além do mais, em momentos de safra, precisava-se de
mente aprovados em períodos próximos entre si, criando regras gerais para capital antecipado para contrato de trabalhadores, em geral escravos, para
o desenvolvimento da economia do Império. Nota-se que a formação de a colheita do café.
um mercado de capitais – que é um recurso dos investimentos financeiros No inventário do barão de Guaribu, identificamos essa atividade
e um efeito de encadeamento na economia – só pode ser bem estabele- quando este senhor se endividou com D. Margarida, esposa do capitão Luiz
cida com a formação das bases institucionais e formais que acompanham
a formação do próprio estado. Para Zuijderduijn, o funcionamento de um
62 SANTOS, R. F. O ouro e a palavra: endividamento e práticas creditícias na economia mineira
mercado de capitais só poderia estabelecer-se a partir de certos pré-requisi-
setecentista. In: CARRARA, A. A. (Org.). À vista ou a prazo: comércio e crédito nas Minas
tos como legislação, policiamento e jurisdição.61 Seguindo esse raciocínio, o setecentistas. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2010. p. 78.
corpo legal que estava se estabelecendo consolidava tal mercado no Brasil. 63 SCHUMPETER, J. A. Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital,
crédito, juro e o ciclo econômico. São Paulo: Nova Cultural, 1997. p. 97.
64 Termo utilizado pelo Schumpeter na obra Teoria do Desenvolvimento Econômico.
60 PIRES, 2009, p. 198. 65 Fonte: Centro de Documentação Histórica da Universidade Severino Sombra.
61 ZUIJDERDUIJN, C. J. Medieval Capital Markets: markets for renten, state formation and private 66 No “Princípios de economia”, de Fetter, é afirmado que o crédito é um negócio cuja renda deriva das
investment in Holland (1300–1550). Boston: Brill, 2009. p. 27. promessas que os agentes devedores empenham para pagar.

560 561
José Barbosa dos Santos em 15 contos de réis para obtenção de escravos tabela 1: empréstimos de anna bernardina carvalho leite,
(alugados) para a colheita de café de 1841 a 1845.67 do barão de itambé e do barão de guaribu
Assim como em várias outras regiões produtoras de café, é comum
notar nos inventários de Vassouras os agentes disponibilizando suas rique- distribuição dos empréstimos
zas pessoais sob a forma de crédito, objetivando lucro a curto prazo. Em valor em réis
Anna Bernardina
geral, tais proprietários são denominados pela historiografia especializada Carvalho Leite
Barão de Itambé Barão de Guaribu
de “capitalistas”68 ou, segundo algumas tendências, de rentistas. Nota-se, em
alguns inventários, que essa inserção do crédito alimenta pequenos senho- Acima de 50:000,000 0% 2% 0%
res, médios produtores e diferentes indivíduos da cidade que, por um motivo
De 25:000,000 a 50:000,000 0% 2% 0%
ou outro, recorrem ao crédito.69 Os pequenos e médios produtores, em geral,
seguem a lógica da sazonalidade de suas produções e da demanda interna. De 20:000,000 a 25:000,000 0% 8% 16%
Mas, as maiores cifras creditadas se destinam à elite agrária da região, cuja
capacidade de “resgate da dívida” era maior, devido não só ao fato de que o De 15:000,000 a 20:000,000 3% 8% 5%
montante negociado e a parcela de consumidores no mercado internacional
De 10:000,000 a 15:000,000 3% 4% 4%
era maior, mas também ao crédito oferecido em melhores condições.
No inventário de Anna Bernardino Carvalho Leite, datado de 1851, De 5:000,000 a 10:000,000 11% 13% 16%
encontramos um montante de 144 empréstimos para indivíduos, somando
um montante de 328:660$276, sendo que o maior valor pago foi a José De 1:000,000 a 5:000,000 35% 36% 19%

Manuel da Silva Ferreira (18:619$641). Já a Câmara Municipal de Vassouras Até 1:000,000 48% 28% 50%
tomou emprestado 2:920$000, o que demonstra que os empréstimos
podiam ser tanto natureza pessoal quanto institucional. A análise dos Fonte: INVENTÁRIO de Anna Bernardina Carvalho Leite, barão de Itambé e barão de Guaribu.
inventários também demonstra que a maioria dos empréstimos foram Vassouras: Centro de Documentação Histórica da Universidade Severino Sombra, [18--].

concedidos por volta da década de 1840, ainda no processo de desenvol- Anna Bernardino Carvalho Leite fazia parte de uma importante e
vimento da cafeicultura, e em pequenas proporções de até 5 contos de réis influente família de fazendeiros e capitalistas de Vassouras. Mesmo os
(Tabela 1). Já sua fortuna é distribuída em 55% de Bens de Raiz, incluindo fazendeiros não deixam de emprestar parte da sua fortuna em um movi-
suas fazendas, 42% de ativos – empréstimos –, 1% em escravos e 2% em mento de inserção de crédito para os mais variados fins e sob diferen-
bens móveis. tes aspectos. Um estudo mais detalhado sobre os 144 devedores de Anna
Bernardino demonstra que uma parte deles integrava o rol das famílias
mais tradicionais da cidade. Não foi possível perseguir todos os docu-
67 A duração das plantas produtoras de gêneros. O cafeeiro, por exemplo, que pode produzir por mentos da lista que aparece no inventário, mas dos que foram encontra-
20 ou 30 anos se torna um bem de capital e necessita de uma manutenção constante para que dos no acervo pudemos verificar que a maior parte dos créditos emitidos
se preserve enquanto tal. Nesta lógica, o processo de endividamento se constitui numa realidade
necessária do processo produtivo do café no Vale. Cf. PENDERGRAST, Mark. Uncommon Grounds. se destinava a pequenos e médios produtores, muitos em períodos de
New York: Basic Books, 2010. p. 87. entressafra.
68 O termo “capitalista” ou “rentistas” gera debates entre muitos historiadores. Existe uma alternativa
de tratá-los como empreendedores, na acepção de Schumpeter, que se refere a tais indivíduos como
A família Teixeira Leite chegou ao município de Vassouras através de
preceptores de oportunidades, no âmbito dos negócios, de maneira inovadora ou pouco ortodoxa. Custódio Teixeira Leite, que havia sido encarregado de construir uma ponte
69 Cf. INVENTÁRIO da família Teixeira Leite. Vassouras: Centro de Documentação Histórica da na região que ligaria a Estrada da Polícia ao lado esquerdo do Paraibuna.
Universidade Severino Sombra, [18--].

562 563
Este, por sua vez, chegou a dever quase 8:000$000 à Anna Bernardina. gráfico 3: volume de crédito fornecido pelo barão de itambé
Um dos mais importantes credores do clã Teixeira Leite foi sem dúvida e o resgate (1859-1866)
Francisco José Teixeira (barão de Itambé), e seu inventário (1866) é bas-
tante rico para analisar os efeitos da economia sobre a oferta de crédito.
Descrito como capitalista por sua quase exclusiva atuação como credor e
investidor, o barão de Itambé acumulou uma das mais importantes fortu-
nas de sua época. Os empréstimos somam 740:838$162. Sua riqueza estava
distribuída da seguinte forma: 1% em bens de raiz, 1% em bens móveis,
1% em escravos, 8% em dívidas passivas e 89% em empréstimos cedidos a
várias pessoas.70
Assim como no caso de Anna Bernardina, os credores do barão se
distribuem por várias camadas sociais, mas seus empréstimos concentra-
vam-se nos mais altos valores, com maior risco (Tabela 1). A maior inver-
são do capital do barão de Itambé se encontrava no empréstimo e no cré-
dito, seguido de letra, vencida ou não. Em terceiro, estavam as escrituras Fonte: INVENTÁRIO do barão de Itambé.
de hipotecas que, na década de 50 e 60, se tornaram garantidas por uma
legislação, gerando uma maior credibilidade na transação hipotecária. Foram feitos os seguintes empréstimos e quitações ao barão:
tabela 3: relação de empréstimos e quitações do barão de itambé
tabela 2: distribuição das opções de aplicação do barão de itambé
(1859-1866)71

tipo distribuição dos empréstimos ano empréstimo quitações ano empréstimo quitações

Crédito 59% 1859 1 4 1863 7 5

Letra vencida 14% 1860 2 2 1864 12 4

Letra 12% 1861 5 5 1865 6 14

Escritura de Hipoteca 7% 1862 3 5 1866 3 5

Outros 5% Total 38 4471

Papel de contrato 3% Fonte: INVENTÁRIO do barão de Itambé.

Fonte: INVENTÁRIO do barão de Itambé. Os movimentos do Gráfico 3 e da Tabela 3 demonstram que o sistema
creditício local estava aquecido. Entre 1863 e 1866, ocorreram dois fenô-
Podemos notar no inventário do barão de Itambé um interessante menos que podem explicar as curvas do gráfico e seus momentos de pico.
movimento de acesso ao crédito e pagamento entre 1859 e 1866. Entre 1863 e 1864, ocorreram graves crises de cunho ambiental nos cafezais

71 O número excede porque se supõe que sejam dívidas anteriores ao período descrito ou dívidas não
70 INVENTÁRIO do barão de Itambé. registradas.

564 565
de Vassouras. Uma praga conhecida como “praga da bruxa” afetou e com- de colonização do Vale. Os demais devedores são de famílias cujos sobre-
prometeu a produção de café daqueles anos. Para manter-se operante no nomes não encontramos entre os considerados grandes proprietários. Na
mercado, a única saída viável era lançar mão de empréstimos para garantir análise do seu inventário, notamos que o resgate da dívida de seus devedo-
a manutenção da fazenda até a situação se equilibrar. Um segundo fenô- res somaram o montante de 556:403$037, ou seja, cerca de 36% a mais em
meno estaria ligado à praça mercantil do Rio de Janeiro. A crise e a falência relação ao capital inicial emprestado.
do Banco Souto alterou a capacidade creditícia das instituições bancárias Em Vassouras, famílias ligadas ao fornecimento de crédito e ao mer-
comerciais do período. A crise se avolumou e o crédito ficou escasso. Esses cado de capitais ofereciam a custos baixos (1% ao mês), empréstimos que
fenômenos mostram um aumento significativo na curva do gráfico entre financiavam a lavoura em épocas de crise ou na sua modernização, como é
1863 e 1864. É interessante notar que a curva se inverte no ano seguinte. A o caso do barão de Itambé aqui citado.72 Essa posição nos garante que não
Tabela 3 também mostra que o total de dinheiro emprestado foi recuperado, havia uma prática de usura, já que muitas vezes os juros eram até mais bai-
o que mostra a capacidade de pagamento das elites locais. As crises deman- xos do que os praticados na região do oeste paulista.
daram um número muito maior de capital para supri-la do que em período Vassouras também foi palco de uma dessas experiências financeiras
anteriores, como mostrado no Gráfico 4. Mas, de forma geral, notamos que bancárias, demonstrando que a cidade não viveu apenas de créditos pes-
o capital aplicado era sempre recuperado pela atuação do barão. soais ou da praça mercantil do Rio de Janeiro. Aproveitando o clima liberal
que a economia brasileira oferecia na década de 1850, com o aumento da
gráfico 4: montante emprestado pelo barão de itambé entre 1850 e 1866. autonomia creditícia das províncias, em especial com a ascensão de Souza
Franco ao Ministério, e com as reformas que garantiram a autorização de
bancos se tornarem emissores e comerciais, João Evangelista Teixeira Leite,
o barão de Vassouras, possuidor de fazendas e cafeicultor, se tornou presi-
dente do Banco Commercial e Agrícola do Rio de Janeiro, em 1858. Sendo
um dos acionistas majoritários, o barão de Vassouras assumiu a presidên-
cia, tendo na diretoria o dr. José Antonio de Oliveira Silva, Francisco José
Gonçalves, conselheiro Antonio Henrique de Miranda Rego, dr. Ignácio da
Cunha Galvão, Francisco José de Mello e Souza, Pedro Alcântara Machado
e dr. Francisco Assis Vieira Bueno.73 Em 31 de agosto de 1857, a instituição
foi autorizada a emitir moeda pelo Decreto n° 1971.
O Banco Commercial e Agrícola foi organizado em forma de socie-
dade anônima, já garantido desde o Código Comercial de 1850, e, segundo
Guimarães, formado pela associação de 20.000:000$000 divido em cem
Fonte: INVENTÁRIO do barão de Itambé.
mil ações. Pelos artigos 2 e 3 do Decreto n° 1971, o banco deveria abrir duas
Pode-se notar que o barão de Itambé contribuiu como agente particu- filiais, uma em Vassouras e outra em Campos e mais quatro agências nas
lar credor em momento de crise de produção. Neste período, o produtor principais cidades cafeicultoras do Vale do Paraíba.74
local teria muita dificuldade para conseguir créditos, visto que os bancos
nem sempre emprestavam direto aos cafeicultores. 72 INVENTÁRIO do barão de Itambé.
73 GUIMARÃES. Carlos Gabriel. O império e o crédito hipotecário: o estudo de caso do Banco
Em 1851, o inventário de Maria Ismênia Teixeira Leite totalizava um Commercial e Agrícola, 1858-1861. Artigo não publicado apresentado no Seminário O Vale do
ativo de 407:722$492 baseado em empréstimos (créditos) para vários ramos Paraíba e a Segunda Escravidão e O Vale do Paraíba no século XIX e nas primeiras décadas da
República, ocorrido em Vassouras entre os dias 23 e 25 de novembro de 2012.
da sociedade, entre eles a família Werneck, nome importante no processo
74 Ibid.

566 567
Pelo artigos 15 e 16, Ao analisar o inventário do barão de Vassouras, percebemos uma série
de situações que apontam para uma mudança de comportamento em rela-
Artigo 15. A faculdade de emittir bilhetes ao portador e vista, não podendo
a somma emitida pelo banco, compreendida a emissão das Caixas Filiaes e ção à sociedade de mercado que se forma. O inventário mostra o pensa-
agencias, exceder a 50% do capital realizado do banco. Os bilhetes emittidos mento “capitalista” do barão. Pode-se notar uma ordem interessante de sua
pelo banco central não serão menores de 20$000, nem menores de 10$000 os visão à sua filha. Lê-se na página 41v do inventário de 1884 sobre a divisão
que o forem pelas caixas filiaes e agencias. das 50 apólices da dívida pública em seu poder:
Artigo 16. O Banco terá um fundo disponivel representado por moeda cor- As apólices formarão um capital permanente e inalienável, livre e isento de
rente, barras de ouro de 22 quilates e prata de 11 dinheiros, na importancia de todo e qualquer ônus e responsabilidades, penhor, hipoteca, fiança, abono,
de hum quarto da sua emissão; e a Directoria poderá, para maior regularidade penhora, execução, sugeiçao [sic] dividas próprias antigas, ou modernas [...]
da circulação dos titulos emittidos, estabelecer semanal ou mensalmente com só podendo usar os lucros nunca vendê-los.
os Bancos de emissão que existirem no paiz a troca reciproca de seus bilhetes,
pagando-se o saldo em conta corrente; e bem assim offerecer caução em valo- O barão investiu em crédito e hipotecas. As apólices da dívida pública
res equivalentes á decima parte de sua emissão.75 somam apenas 400.000 réis. Já o inventário de Cláudio Gomes Ribeiro de
A situação limítrofe estabelecida pelo artigo garantiu ao credor local de Avellar, o barão de Guaribu, é um documento, no mínimo, curioso. O barão
Vassouras que sua operação de crédito no mercado se daria sem concorrên- foi dono de 4 fazenda, Antas, União, Guaribu e Encantos. Nos registros de
cia direta. Ocorre que, após a valorização da terra, as hipotecas passaram a suas posses não foram encontrados qualquer volume expressivo de investi-
ser garantias de caução nas relações financeiras, de investimento e emprés- mentos fora escravos, terras e café. Estes aparecem no inventário de 1886 e
timos, conforme notamos no Gráfico 5. Esse aumento de hipotecas coincide se compõe de 9 letras a 1% a.m., que em 4 anos lhe garantem 29% do capi-
com o período de queda na produção de café da cidade e a tentativa de tal aplicado, ou seja, um lucro de 14:512$592. Apesar de ser um importante
conseguir novos créditos, evitando falências e oportunidades de geração de cafeicultor, não deixada de lançar-se ao crédito. Seu inventário mostra o
registros de hipotecas que poderiam ser parte de investimentos na crença montante de 152:195$620 em empréstimos (sem o cálculo do prêmio) que se
de que a crise fosse passageira. distribuem conforme demonstrado na Tabela 1.
Nesta pequena exposição sobre o crédito no Vale do Paraíba flumi-
gráfico 5: registros de hipotecas de vassouras (1840-1880) nense, utilizando como locus de pesquisa a cidade de Vassouras, concluí-
mos que o século XIX foi um século de intensas transformações para Brasil
recentemente independente. A formação dos complexos cafeeiros forçou o
governo imperial a repensar suas instituições financeiras em busca de dina-
mismo econômico e de suas finanças. Através da teoria de encadeamento
de Hirschman e da inserção do Vale no mercado mundial, conseguimos
concluir que a dinâmica da produção de café fez aparecer um mercado
financeiro local (além do da capital) para suprir uma demanda por crédito
que era necessária, visto a característica inelástica do produto. Até onde se
pode perceber, a elite financeira da região, ou pelo menos muitos de seus
indivíduos, cumpriram o papel de financiadores. Assim, inverteram seus
capitais e suas poupanças particulares, gerando créditos ao invés de investir
Fonte: Centro de Documentação Histórica da Universidade Severino Sombra.
diretamente em terras. Esses empréstimos eram fáceis de serem alcançados
com juros relativamente baratos (1% a.m). Através das finanças do barão de
75 Ibid.

568 569
Itambé, percebemos o movimento de empréstimos e a capacidade de paga- Sobre os autores
mento dos devedores naquele espaço temporal. Isso nos leva a crer que o
assunto está longe de ser esgotado, pelo contrário, o estudo do movimento
creditício pode contribuir para um melhor entendimento de como o Brasil,
enquanto país agrário-exportador e escravocrata no século XIX, foi capaz
de se inserir e se sustentar no mercado internacional por um período de
tempo, inclusive mudando a estrutura desse mercado. Acreditamos, por
fim, que os registros de hipotecas e a movimentação financeira geral podem ALAIN EL YOUSSEF – é mestre e doutorando em História Social pela FFLCH-USP.
nos dar algumas respostas positivas sobre as questões nebulosas que ainda Atualmente, estuda a crise da escravidão brasileira nos quadros da “segunda
assolam os estudos sobre a crise que vigorou no Vale do Paraíba fluminense. escravidão”.

ANA LUCIA NUNES PENHA – é doutora em história pela Universidade


Federal Fluminense. Leciona na Rede Municipal de Ensino de Macaé e na
FAFIMA (Faculdade de Ciências, Letras e Filosofia de Macaé).

BRENO APARECIDO SERVIDONE MORENO – é mestre e doutorando em his-


tória pela USP.

BRUNO FABRIS ESTEFANES – é mestre e doutorando em História Social pela


FFLCH-USP. Autor do livro Conciliar o Império: o marquês de Paraná e a
política imperial, 1842-1856 (Annablume, 2013).

CAMILA DOS SANTOS – é mestre em história social pela Universidade


Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

CAMILLA AGOSTINI – é professora adjunto do Departamento de Arqueo-


logia da UERJ e professora do Programa de Mestrado Profissional em
Ensino de História – PROFHIST / UFF. Organizou o livro Objetos da escra-
vidão: abordagens sobre a cultura material da escravidão e seu legado
(7Letras, 2013).

CARLOS GABRIEL GUIMARÃES – é professor do Departamento de História da


UFF e pesquisador do CNPq.

DALE TOMICH – é professor nos Departamentos de Sociologia e de História


da Binghamton University, NY.

ENIO SEBASTIÃO CARDOSO DE OLIVEIRA – é doutorando em história polí-


tica na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e professor mestre
em história social pela Universidade Severino Sombra (USS).

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HEITOR P. DE MOURA FILHO – é economista e mestre em História Social THIAGO CAMPOS – é professor doutor em História Social pela Universidade
pela UFRJ, atualmente doutorando em História na UNIRIO. Federal Fluminense (UFF).

LUCAS GESTA PALMARES MUNHOZ DE PAIVA – é mestre em história social VLADIMIR HONORATO DE PAULA – é mestre em história social pelo PPGH
pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ). da Universidade Severino Sombra (USS).

MAGNO FONSECA BORGES – é professor da Universidade Severino Sombra, WALTER LUIZ CARNEIRO DE MATTOS PEREIRA – é professor adjunto
doutorando em História no Programa de Pós-Graduação em História da do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, em
UNIRIO (bolsista da Capes) e docente do curso de licenciatura em história Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro e autor de Óleo sobre tela, olhos
da USS. para a história: memória e pintura histórica nas Exposições Gerais de Belas
Artes do Brasil Império (1872 e 1879) (7Letras, 2013)
MARCO AURÉLIO DOS SANTOS – é doutor em história social pela USP.

MARIANA MUAZE – é doutora em história pela Universidade Federal


Fluminense (UFF), professora adjunta do departamento de história da uni-
versidade federal do estado do rio de janeiro (Unirio).

PEDRO EDUARDO MESQUITA DE MONTEIRO MARINHO – é pesquisador


no MAST/MCTI e professor no Programa de Pós-Graduação em História
da UNIRIO.

RABIB FLORIANO ANTONIO – é mestre em história econômica pela


Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor do Centro de
Ensino Superior de Valença.

RAFAEL MARQUESE – é professor no Departamento de História da


Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo e bolsista 1D – PQ/CNPq.

RICARDO SALLES – é professor da Escola de História da UNIRIO.

TÂMIS PARRON – é mestre e Doutor em História Social pela FFLCH-USP.


Organizador de Cartas a favor da escravidão (Hedra, 2008), coautor de
Escravidão e política: Brasil e Cuba, 1790-1850 (Hucitec, 2010) e autor de
A Política da escravidão no Império do Brasil (Civilização Brasileira, 2011).
Atualmente, estuda as condições sistêmicas de ascensão e crise da escravi-
dão negra nos Estados Unidos, no Brasil e no império espanhol durante o
primeiro século XIX.

TANIZE DO COUTO COSTA MONNERAT – é mestre em história social pela


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

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impresso na gráfica da editora vozes
para viveiros de castro editora
em outubro de 2015.

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