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René Girard – Desejo, Violência e Literatura I

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Crédito da foto: L.A.Cicero.

Por Felipe Cherubin

O filósofo, antropólogo e crítico literário francês René Girard, professor emérito de


antropologia da Universidade de Stanford, nasceu em Avignon e estudou história
medieval de 1943 a 1947 na École des Chartres, em Paris concluindo seus estudos com a
monografia A vida privada em Avignon na segunda metade do século 15. Em 1950
obteve seu doutorado em história na Indiana University,EUA com a tese A França na
opinião dos norte americanos,1940-1943.

O estilo francês esteve sempre presente na obra e personalidade de Girard e a quase


totalidade de suas obras foram publicadas originalmente na língua francesa, embora sua
carreira profissional tenha ficado ligada ao mundo acadêmico norte-americano onde
ensinou literatura francesa e antropologia cultural na Universidade de Nova York, na
John Hopkins e a partir de 1980 em Stanford.

O filósofo Michel Serres apontou Girard como o “Darwin das ciências sociais”, e tudo
indica que o diagnóstico de Serres estava correto, pois o impacto do pensamento
girardiano é crescente e vem sendo objeto de estudos nas mais variadas áreas: da biologia
à economia, da antropologia às ciências políticas. Além do mais, as idéias girardianas

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desafiam teses basilares da cultura contemporânea como os estudos freudianos sobre o
desejo, a interpretação dos mitos de Claude Lévi-Strauss e o determinismo econômico de
Marx, abrindo um novo campo de especulações.René Girard foi eleito em 2005 membro
da Academia Francesa, fundou em 2008 uma instituição para disseminar suas idéias e
fomentar pesquisas, o Instituto Imitatio, que conta com financiadores de peso como o
empreendedor Peter Thill, criador do sistema PayPal, ex-aluno de Girard em Stanford.

A tese principal da obra girardiana é a de que o ser humano está essencialmente marcado
por um desejo mimético (ou desejo de imitação) que o situa no interior de um circuito de
rivalidades caracterizado por soluções “sacrificiais”, em detrimento próprio e de seus
semelhantes. O caráter violento desse comportamento caracteriza o fenômeno que
estaria, metaforicamente, “oculto desde a fundação do mundo” ou como o psiquiatra
Lipot Szondi assinala em seu livro Caim e o Cainismo na História Universal – “Caim rege
o mundo”.

Girard compreende o ser humano como uma criatura que não sabe o que desejar e dessa
forma se vira para modelos na tentativa de preencher sua mente, imitando o que os outros
desejam. O desejo mimético é constitutivo da natureza humana; é o desejo de ter o bem
do outro que Girard encontrou como constante antropológica embasando suas conclusões
em exegeses de textos das mais variadas culturas. A tese do antropólogo é simples, mas
com conseqüências perturbadoras. Primeiro, não somos auto-suficientes ou indivíduos
plenos como a modernidade nos ensinou. Segundo, invejamos ou admiramos modelos
para nos guiar nos corredores da vida, contudo quando invejamos um objeto, pessoa ou
idéia que outros detêm ou também invejam engendramos conflitos que podem irromper
num sacrifício, seja ele com a eliminação física como Caim fez com Abel, seja ele por meio
de um sacrifício simbólico, colocando um colega de profissão no ostracismo ou por meio
do assédio moral e psicológico, por exemplo, fenômenos tão típicos de nossa sociedade.

Assim, todos os sistemas políticos, culturais e econômicos estariam permeados por um


sagrado potencialmente violento em que a violência seria um componente natural das
sociedades, necessitando ser ininterruptamente exorcizada pelo sacrifício de vitimas
expiatórias.

A função do sacrifício é, portanto, apaziguar a violência e impedir a explosão de conflitos


decorrentes de rivalidades cada vez mais crescentes que paradoxalmente focalizam uma
vítima arbitrária cuja eliminação reconcilia o grupo e alcança o estatuto do sagrado. Essa
vítima é chamada por Girard de “bode expiatório”, um inocente que polariza para si o
ódio universal.

Para Girard, o desejo mimético é um fenômeno exclusivamente humano que não se


confunde com a mera imitação que, segundo Roberto Mallet, desde Aristóteles já era
reconhecida como fator decisivo no desenvolvimento de todos os animais. As inclinações
de cunho biológico como a fome, a sede e o sexo dependem da constituição orgânica do
individuo e são espontâneas .Já o desejo mimético no sentido girardiano surge quando
todas as necessidades elementares foram satisfeitas e o homem passa a desejar algo que
ele não sabe exatamente o quê é. Se o instinto tem uma direção bem determinada essa

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sensação identificada como desejo não tem objeto específico, não é predeterminado e cria
no sujeito um sentimento de privação e uma expectativa de que o outro lhe diga o que ele
deve desejar.

Todavia, o homem girardiano não é mero “desejo mimético”, o filósofo afirma


incondicionalmente a possibilidade de elevação humana sobre a destrutividade mimética.
Essa possibilidade de elevação sempre em aberto havia sido notada pelo embaixador
Mário Vieira de Mello em seu livro O Conceito de uma Cultura da Educação quando ao
discorrer sobre o tema da educação e da descoberta da liberdade como problema moral,
assinala que o ser humano se educa, sobretudo, por meio da imitação de modelos, que em
sua dureza se constitui como inimiga da espontaneidade, ou seja, a imitação é uma forma
incipiente de liberdade, necessária, mas não suficiente. Essa questão também é tratada
pelo filósofo americano Charles Larmore em seu livro As Práticas do Eu, que, seguindo
expressamente Girard, propõe uma revisão de ambigüidades em torno da noção de
espontaneidade para dar conta de uma teoria de ressonâncias ética e política. Estas
questões terão ressonâncias nas noções contemporâneas de individuo e sujeito nos passos
iniciados pelo francês Alain Renaut em seu A Era do Indivíduo, que, não por
coincidência, escreveu um livro em parceria com Larmore, Débat sur l’éthique, que trata
dos fundamentos da ética contemporânea.

Assim, o desejo não podendo ser satisfeito individualmente coloca o homem como
dependente dos outros homens, com o duro fardo de assumir seu desejo como produto de
uma imitação, para daí transpor o caráter violento que a imitação e a rivalidade primitiva
impõem desde sempre.

Esse aspecto havia sido bem assinalado pelo psiquiatra austríaco Viktor Emil Frankl
(1905-1997), representante da terceira escola de psicoterapia de Viena (Freud , Adler e
Frankl) que entendia que os homens diferentemente dos animais não agem pelo
imperativo categórico dos instintos e das contingências especificas. Vivendo sob a égide
da modernidade em que a força da tradição e seus valores universais já são incapazes de
lhes dizer o que fazer, os seres humanos não sabendo mais o que se tem e o que se deve
fazer, mostram algumas vezes não saberem o que eles desejam fazer. Para Frankl, a
conseqüência disso é que o homem simplesmente desejará o que as outras pessoas estão
fazendo (conformismo) ou fará apenas aquilo que as outras pessoas querem que ele faça
(totalitarismo).

A antropologia de Girard revela o homem que vive na dimensão e no dilema moral entre o
bem e o mal, entre a violência e a razão. Do cumprimento ingênuo dos preceitos morais
passamos para a consciência da obrigação moral como liberdade e responsabilidade,
caminho que começa com uma primeira renuncia à violência. As idéias girardianas
aproximam-se muito das do filósofo francês Eric Weil (1904-1977), que também entendia
o homem como um ser entre a violência e a razão e das reflexões de Jean Nabert que em
seu Ensaio sobre o Mal reconhecia o caráter da consciência como uma causalidade
impura em que ao respeito à lei mescla-se o interesse, o amor próprio e a vaidade.

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Nos livros A Violência e o Sagrado (1972); Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo
(1978), A Rota Antiga dos Homens Perversos (1985) e O Bode Expiatório (1986), Girard
explicita sua grande descoberta: o mecanismo da vítima expiatória por meio de suas
investigações antropológicas e textuais das noções de desejo, violência, sagrado, mito,
rito, interdito e bode expiatório.

Em Eu via Satanás cair do Céu como uma Raio (1999), Girard faz uma análise muito
interessante da antropologia bíblica, demarcando uma contraposição essencial que já
havia sido exposta em outros livros, não só entre a antropologia do novo testamento com
a dos mitos antigos e primitivos, mas também com a do velho testamento.
Não obstante, o mais interessante da obra de Girard é seu ponto de partida por meio da
literatura. Com a publicação de seu primeiro livro Mentira Romântica e Verdade
Romanesca (1961), o autor revelou o mecanismo do desejo mimético na literatura
ocidental navegando pelos textos de Cervantes, Stendhal, Dostoievski e Proust. Mas é em
sua obra Shakespeare: Teatro da Inveja (1991) que podemos acompanhar uma análise
realmente exaustiva de quase toda a obra de um dos gênios da literatura universal para
desvendar os meandros da teoria mimética. A importância desse livro não está apenas no
fato dela apresentar o ciclo mimético na obra do bardo, mas também por constituir uma
espécie de autobiografia, onde Girard em certa passagem quebra o gelo da postura
estritamente científica e nos saboreia com confissões de seus demônios internos.

Girard toma a obra de Shakespeare como uma espécie de precursor de sua teoria
mostrando a armadilha montada pelo bardo inglês, que, de acordo com o autor estava
farto da “tragédia de vingança”, gênero batido que sempre culminava no mesmo enredo; a
vingança que alimenta o círculo vicioso da rivalidade, a retribuição mimética, o
acirramento da crise e a sucessão de sacrifícios.

Dessa maneira, o filósofo nota que os heróis shakespearianos hesitam o tempo todo e
chegam mesmo a demonstrar nenhum desejo de se vingar. Contudo, Shakespeare era um
homem de seu tempo: se por um lado colocava em evidência a angustia de seus
personagens e segurava a vingança até os 45 minutos do segundo tempo, por outro cedia
no final de suas peças aos caprichos de seu público que freqüentavam os teatros sedentos
por sua habitual cota de cadáveres, como bem explica João Cezar de Castro Rocha em sua
apresentação para a edição brasileira de Shakespeare: Teatro da Inveja, citando o
exemplo da peça Hamlet.

No pensamento girardiano, o teatro de Shakespeare encarna todo o drama da teoria


mimética, no mundo do bardo onde os outros aceitam sugestões tão facilmente como os
gatinhos o leite, podemos traduzir, segundo Castro Rocha, a célebre indagação
shakesperiana do “ser ou não ser?” para “vingar ou não vingar: eis a questão”.

Seguindo nosso fio de Ariadne e agora com um espírito mais sintetizador, podemos
compreender que a obra de René Girard comporta três momentos fundamentais. Segundo
verbete reproduzido no site oficial do Instituto Imitatio, observamos que: 1) O ser
humano é constituído por um aspecto comportamental que não afeta apenas seu
aprendizado, mas também seu desejo. A busca por modelos é causa de conflitos; 2) O
mecanismo do bode expiatório é a origem do sacrifício e mecanismo fundador da cultura

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humana primitiva. A religião nesse sentido,surgiu como um esforço para controlar a
violência humana disparada pelas rivalidades miméticas; 3) A antropologia do novo
testamento revela o desejo mimético e denuncia o mecanismo do bode expiatório,
colocando a vítima inocente no centro da narrativa, invertendo a lógica presente nos
mitos arcaicos e no Velho Testamento mostrando como a partir dessa inversão lógica o
mecanismo dos sacrifícios rituais foram perdendo importância e sendo eliminados das
sociedades ocidentais.

Portanto, da tragédia grega de Sófocles e Eurípides, das narrativas bíblicas do velho e


novo testamento e de Cervantes a Proust passando por Shakespeare, René Girard
apresenta a totalidade do ciclo mimético, da sua origem, transformações e
questionamentos que ela impõe ao homem do século 21.

Assim, num mundo em que os problemas cada vez mais tomam uma proporção global e
exigem que extrapolemos as noções de individuo ou de soberania nacional para uma ação
conjunta, notamos ao mesmo tempo uma cultura fortemente narcisista baseada na
imitação de estereótipos, como a busca pelo corpo perfeito ou pela riqueza sem esforço,
explodindo em verdadeiras epidemias de depressão e suicídios, ou mesmo pelo sacrifício
de nossos bodes expiatórios preferidos: seja por sua cor de pele no racismo, seja pela
orientação sexual na homofobia, seja esmagando os mais fracos na luta abortista.

Portanto, a equação de problemas globais com cultura narcisista é uma bomba relógio que
pode explodir a qualquer momento como, por exemplo, a conotação sagrada e religiosa
em torno dos problemas climáticos entre alguns ambientalistas radicais no qual o meio
ambiente é o bode expiatório moderno que endeusamos ao mesmo tempo em que o
destruímos e destruímos a nós próprios. Nesse sentido, essa sacralização do meio
ambiente é compreensível pois ele parece talvez o ultimo objeto disponível que toma um
caráter religioso (na acepção clássica de religar) todos os homens em busca de um
objetivo comum, que não desperte rivalidades e destruição. Em um mundo cada vez mais
global teremos que descobrir o que realmente importa e o que desperta os bons
sentimentos de todos os homens, para não vivermos um revival global do teatro da inveja.

Felipe Cherubin é jornalista, formado em Direito e estudou Filosofia na


Harvard Extension School.

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